aureas tenebrae
fotografia © pepe diniz
carlos nogueira, permanência da água | permanence of water, lisboa, 15 de dezembro de 1994.

fotografia © pepe diniz

carlos nogueira, permanência da água | permanence of water, lisboa, 15 de dezembro de 1994.

© mário botas, o milagre de nossa senhora da nazaré, tinta-da-china e aguarela sobre papel, 1981-82.
© museu dr. joaquim manso — museu da nazaré

© mário botas, o milagre de nossa senhora da nazaré, tinta-da-china e aguarela sobre papel, 1981-82.

© museu dr. joaquim manso — museu da nazaré

maria helena vieira da silva e arpad szenes em 1940.
© galerie jeanne bucher jaeger, paris
josé álvaro de morais, ma femme chamada bicho, 1976
filme documental de josé alvaro de morais (1943-2004) sobre os pintores maria helena vieira da silva e...

maria helena vieira da silva e arpad szenes em 1940.

 
© galerie jeanne bucher jaeger, paris


josé álvaro de morais, ma femme chamada bicho, 1976

filme documental de josé alvaro de morais (1943-2004) sobre os pintores maria helena vieira da silva e arpad szenes. com a presença de guy wellen, mário cesariny, sophia de mello breyner andresen, agustina bessa-luís, entre outros.

https://www.youtube.com/watch?v=Th2s01LnrA8&t=1847s&ab_channel=ForgotenFilms

yuri norstein, tale of tales, 1979
https://www.youtube.com/watch?v=gbmoEGDyzyE&ab_channel=MuminekBambo
john cale with the velvet underground, 1967

john cale with the velvet underground, 1967

desalmadamente

Num período de despropósitos juvenis, anos 50, período profusamente pessoano, alcancei o Almada para saber coisas do outro, o Pessoa, como era ou fazia, como dizia e quando. O Pessoa ouvia-me com muita atenção. Assim rápido, em cheio, inverso, deslocando o enredo para os lados convenientes, Almada mostrava-me o que era preciso: encontrar o sítio próprio para o dizer próprio. Esta atenção, a do dizer que põe e dispõe, era a maior das atenções, maior que a de quem ouvia. Ouvir, sim, pode ouvir-se com atenção restrita, flutuante; mas a atenção de dizer tem de ser imensa. E foi através desta atenção que ele descobriu que havia um erro no nome de Mário Cesariny de Vasconcelos. Disse-lhe: O seu nome certo é Mário Cesariny. Daí em diante os livros apareceram assinados Mário Cesariny. E num dia realmente nominal, um dia de guerra, durante uma daquelas suas efervescentes acções teatrais, o dito e o movido porventura sobre o tema: número de ouro, pintar o sete — Almada estendeu na minha direcção todo o braço direito: O seu nome está bem. Parece que, sem o saber, eu pintara uma espécie de pequeno sete. Ah não, não esperassem — e nós na altura tivemos a boa atenção de não esperar — que ele se calasse. Até ao fim esteve a começar a palavra: pintada, escrita, movida, falada. Quando uma tarde, nas colinas de Campolide, fez uma fogueira de muitos papéis, houve perplexidades, consternações, alarmes. Tirem-lhe os papéis da mão, vai queimá-los todos. Eu pensei que era o de Vasconcelos do Mário Cesariny. Estavam a mais, a atenção intrépida levantara nas leves colinas um fogo para os sobejos, um fogo longo e lustral. Significa que furtivas distracções invadem continuamente a atenção. Por isso, a atenção está sempre a começar, distribui as fogueiras. O implacável investimento nos papéis chamava a atenção para as colinas, aí onde a Lisboa da época principiava a ser excêntrica. Era uma razão radical, a das colinas iluminadas. Nesse lugar, um lugar de poder, Almada encontrara o ponto exacto na trama dos pontos, o centro, para nele pôr o pé, Anteu recebendo as forças de Deméter, a materna — e então fazer tudo: acender os fogos, descobrir os alfabetos, pintar o sete. Eu cá por mim acho que ele trabalhou os dias de modo a não deixar nada a mais nem a menos, quero eu dizer que, à parte o efémero e o eterno de cada um, Almada está completo. E temos aqui a fotografia que não foi tirada: o corpo atento a tomar conta do espaço, atrás os lumes de Campolide. De que irredutível forma recebia ele a terra, com que atenção de corpo e pensamento? Recebia-a sem descanso, entre papel e fogo, pintando o sete com vinte e três letras de alfabeto — dois mais três somam cinco — 5 —, número da criação. O segredo dos números (o sete entra no cinco, ou o cinco apodera-se do sete — ora pois: a atenção votara-se às uniões de acto, de contacto, de facto), Almada sabia-o todo, a este segredo. Eu julgo que a expressão dos números respeita aos ritmos do mundo. É tão imediato, tão funcional, que a simplicidade popular logo o capta e formula consumadamente: pintar o sete. E a ciência 5, essa, conhecia-se pelos dedos da mão e pela figura do corpo: pernas e braços abertos, a cabeça em cima do tronco, tudo ligado para demonstrar uma estrela de cinco pontas — o belo pentagrama como está em Leonardo. Mas o que se chama simplicidade, levou Almada a vida inteira a aprendê-la, irrevocável atenção, escreve e queima, começa, oh vigília!, sempre, sempre, até à morte. Olha-se agora: morrer era ainda pintar o sete. De que atenção se precisa para morrer? Não se começa por aí? Por lançar a atenção da vida sobre a atenção da morte? Morre-se da mesma atenção de que se vive. Vem no sete pintado, está lá para ser lido indefinidamente. Nunca acaba de começar, esta presença. Lembro-me de um poema voltado para a morte — A um poeta que morreu —, de que vi algumas versões manuscritas a lápis. Múltiplas atenções da vida dirigidas à morte. Vou aos livros para confirmar, e reparo que há um único poema com esse título directo. Ou ninguém entendeu nada, ou o acaso, também ele, tem as suas colinas de Campolide. Arde nelas o que sobejou. A obra está limpa, o homem está limpo. Deve ser isso. 

Herberto Helder, A Phala, Assírio & Alvim, Jan. 2002; Photomaton & Vox, 5.ª ed., revista e aumentada, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013.

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