domingo, 29 de dezembro de 2024

Celso Furtado, no beco


Celso Furtado é economista burguês embora seja considerado pelo senso comum um crítico do desenvolvimento capitalista no Brasil. Durante a ditadura, os liberais de esquerda eram em boa medida permitidos e, de fato, a despeito do exílio, jamais deixaram de ser publicados enquanto os críticos marxistas amargavam veto e esquecimento entre nós. A propósito, o clássico Subdsenvolvimento e Revolução de Ruy Mauro Marini foi por nós publicado somente em 2012, mais de quarenta anos (!) após a aparição do original em espanhol. Ruy explicou a dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil; desfrutava de prestígio no mundo - especialmente na América Latina - e era completamente ignorado em nosso meio, como se de fato não existisse. Assim, Furtado e Conceição Tavares - e todos os representantes do estruturalismo cepalino - reinavam soberanos enquanto os críticos marxistas da dependência e do subdesenvolvimento simplesmente figuravam como ilustres desconhecidos.

A despeito de sua filiação burguesa, jamais ignorei Furtado. Ao contrário, li sua obra inteira por exigência acadêmica e obrigação militante. Na verdade, no Brasil a maioria dos economistas "marxistas" durante a ditadura eram keyensianos, o que, ainda hoje, é a norma. E o keynesiano mais importante aqui era, sem dúvida, Furtado, embora ele mesmo se considerasse uma flor rara, irreconhecível no espelho cristalino de Keynes. Não constitui fenômeno nacional esse quid pro quo. O historiador Eric Hobsbawm indicou que, quando estudante em Cambridge nos anos 30, os jovens mais capazes aderiam ao Partido Comunista e escreveu juízo jocoso do clima intelectual britânico pois "os filósofos cumunistas eram wittgensteinianos, os economistas comunistas eram keynesianos... e os historiadores? Eram marxistas porque não havia nenhum historiador que conhecessemos em Cambridge que puedesse competir com Marx, como mestre e inspiração". No Brasil, o fenômeno se repetiu em larga medida por razões distintas. A oposição consentida à ditadura fomentou o liberalismo de esquerda que inexoravelmente encontraria em Keynes seu profeta e também sua catedral, a Unicamp. De resto, Keynes, ainda em 1925 (Am I a liberal?), forneceu um salvo conduto ao liberalismo de esquerda quando afirmou que "the Class war will find me on the side of the educated bourgeoisie". Uma burguesia ilustrada na França ou na Inglaterra? Por favor! Entretanto, a miserável e fetichista definição foi levada a sério entre nós e o resto é História.

Na obra de Furtado, a análise do desenvolvimento capitalista no Brasil continha determinações históricas mas, finalmente, aparecia em grande medida como uma sucessão de erros e decisões equivocadas de política econômica praticados pelos tecnocratas e o então “czar” da economia, Delfim Neto. No jargão furtadiano, determinações históricas e decisões de política econômica conformavam o "modelo de desenvolvimento", uma mistura de progresso burguês, profundas injustiças e soberania limitada. O otimismo do II PND caiu por terra quando em 1975 os clássicos problemas de balanço de pagamentos de um país periférico emergiram com força, obrigando o regime na direção da "abertura lenta, gradual e segura" de Golbery e os interesses da segurança hemisférica do imperialismo estadunidense embalada na política de "respeito aos direitos humanos" de Carter. Após a crise do milagre, Furtado ganhou mais autoridade, a despeito de sua estapafúrdia tese da estagnação (1968) logo desmentida pelo brutal desenvolvimento das forças produtivas promovido pela ditadura amparada na superexploração da força de trabalho e intenso endividamento externo, o útero do rentismo atualmente dominante.

Embora escolado com as modas acadêmicas, fiquei surpreso com a recente publicação de um antigo livro do autor, O desenvolvimento econômico, um mito, pela Editora UBU. O livro é uma reunião de ensaios coligidos de sua fase pessimista. A nova edição não é ingênua, nem tampouco extemporânea: na verdade, a completa adesão dos governos petistas à economia política do rentismo justifica plenamente a recuperação daquele pessimismo que marcou em alguma medida a publicação do célebre The limits to growth, em 1972. É possível considerar o relatório elaborado por uma equipe do MIT - o primeiro grande grito ecologista mundial com influência na periferia capitalista latinoamericana -, uma poderosa ideologia de extração imperialista embora os ecologistas atuais ignorem completamente a trama teórica, política e ideológica na qual são atores coadjuvantes e úteis instrumentos da ideologia dominante. Ora, antes que me acusem de indiferença aos graves problemas ambientais, recordo que  William Pety anunciou, ainda no século XVIII, o caráter destrutivo do sistema capitalista em relação ao homem e à natureza, razão pela qual não ignoro os efeitos ultra-destrutivos da produção capitalista que, naquela época, estavam apenas começando.

A despeito do pessimismo que orienta os ensaios reunidos no livro agora reeditado, a verdade é que o otimismo burguês de Celso Furtado era mesmo incorrigivel e, em consequência, em 1976, ele voltou à cena com a publicação do Prefácio a uma nova economia política. Aqui, nem aroma do pessimismo anterior resistiu à sua formação de economista. O apelo ecologista anterior se dissipou diante da reprodução ampliada da dependência e obrigou o reconhecimento de que "nos países periféricos existem tendências estruturais no sentido da concentração da renda e da orientação da popupança para investimentos improdutivos". A afirmação reconhecia implicitamente o mérito de Ruy Mauro Marini ao afirmar a superexploração da força de trabalho como fundamento do sistema, embora Furtado, precisamente para não fortalecer a autoridade do mineiro de Barbacena, apenas esboçou particular e débil teoria do mercado de trabalho para esquivar a certeira tese da supereploração da força de trabalho!

A reflexão sobre a dependência - e a internacionalização da esfera produtiva sob controle crescente das multinacionais - "voltou" com força em sua vasta obra. Assim, Os limites do crescimento era coisa do passado e os desafios do presente não admitiriam o fim da história para os povos da periferia. Ademais, sua formação histórica - especialmente influenciada por Braudel - tampouco autorizaria a queda na armadilha ideológica do Informe do Clube de Roma, fomentado em escala mundial com imensa força. Hoje, aquela notável e exitosa operação ideológica, atende pelo nome de "crise ecológica" e seus inúmeros derivativos. Não desconheço - repito - o caráter ultra-destrutivo do desenvovimento capitalista em escala mundial, pois longe de ser uma novidade, o atual ambientalismo não guarda relação alguma com os estudos de Marx a partir da relação homem-natureza mediada pelo avanço da técnica capitalista. A monstruosidade do subdesenvolvimento jamais ingorou os problemas mundiais mas também não  desprezou nossa especificidade, pois não faltará quem diga - sustentado em argumentos científicos – que, para salvar o planeta, teremos que condenar dois terços de nossa gente à miseria irremediável.  A crise ecológica agora aparece como um beco sem saída, um grito de desespero, um lamento interminável destinado a criticar com certa dose de inveja inocultável o desenvolvimento capitalista nos Estados Unidos, India ou China. É expressão, portanto, do pessimismo, num mundo sem revoluções, sem protagonismo das classes subalternas, sem superação do capitalismo. Os guetos se multiplicam no sistema eleitoral com a eleições de indígenas que se proliferam na representação parlamentar com a mesma velocidade da devastação de suas terras, cultura e costumes. 

Diga-se de passagem, o entusiasmo de Vladimir Saflate pela obra é onocultável. Entretanto, é entusiasmo ordenado pelo pessimismo! Há, de fato, um pessimismo frankfurtiano subjacente a toda filosofia acadêmica dominante entre nós para o qual a antiga advertência de Lukács jamais foi considerada. A propósito, o húngaro afirmou que a despeito da importância para a intelectualidade jovem alemã, as contradições da escola de Frankfurt eram até proveitosas, "porém, se o propósito é aprender algo, há que separar-se da escola de Frankfurt". Mais adiante em resposta a Abendroth, o filósofo marxista afirmou categoricamente que os "estudantes podem passar perfeitamente seus primeiros anos em Frankfurt, mas logo têm que sair dali". Ocorre que no Brasil, dominado pelo ambiente acadêmico e suas modas mais ou menos fugazes, Frankfurt é muito mais que estação de passagem; figura efetivamente como eterno "porto seguro", uma espécie de desaguadouro natural de toda sabedoria. A vida intelectual é muito dura na periferia...

Eu lamento a recuperação parcial de Furtado embora não ignore sua função ideológica. No Brasil não há, de fato, um debate econômico fecundo pois as universidades estão tomadas pela neoclássica e os supostos críticos - keynesianos e "heterodoxos" de muitas cores - respeitam os dogmas liberais que sustentam a ordem burguesa com uma paciência cínica e cúmplice como meio de ascensão social e carreirismo autorizados pelo pacto dominante do liberalismo de esquerda, cuja maior expressão é o terceiro mandato de Lula. Nesse contexto, o economista "tortura os números" e as evidências de tal modo que faz corar um estudante de segunda fase. De resto, ao contrário das forças existentes na transição da ditadura para o regime liberal burguês, não há um movimento de qualquer natureza pra varrer a ignorância e a ideologia que formam os economistas em todas as universidades do país. Nesse contexto, os últimos escritos de Furtado - "O longo amanhecer", "Brasil construção interrompida", "Em busca do novo modelo", e mesmo a trilogia da fantasia, entre outros - constituem apenas um alerta sobre a deformação dos economistas e um testemunho da derrrota pessoal, a despeito dos bons combates que o paraibano travou. É claro que permanecerá sempre útil o seu Formação econômica do Brasil, um livro de história econômica que a exemplo de outros ideológos burgueses pode e deve ser lido. Entre os economistas é frequente que mesmo um autor reacionário ou conservador possa dar boa contribuição na historiografia. É o caso, por exemplo, de Schumpeter no contraste entre a pedestre e ideológica Teoria do desenvolvimento econômico e a obra póstuma no terreno da historiografia, História das doutrinas economicas. 

Ao final de sua longa carreira, Furtado ainda esboçava certa criatividade e o antigo incômodo que sempre o acompanhou. A propósito dos descaminhos do Brasil, anotou em 1992 que "na melhor das hipóteses, retomamos o crescimento sem nos afastar do subdesenvolvimento". Contudo, a verdade é que seus últimos escritos não passavam de mensagens em garrafas pois o desenvolvimento capitalista rentístico turbinado por governos tucanos, petistas, ultra-liberais e agora, petucano, nem mesmo audiência permitem ao velho combatente do desenvolvimentismo. O otimismo burguês e humanista que sempre o inspirou perdeu aderência. Agora, de maneira molecular, a rendição intelectual atende pelo nome de pessimismo.

 Revisão: Junia Zaidan

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Zé Dirceu e o modo petista de iludir

A decisão do ministro Gilmar Mendes proferida em 29 de outubro passado anulou os processos contra José Dirceu, condenou uma vez mais a indiscutível parcialidade da Lava Jato e abriu inesperadamente uma disputa no interior do Partido dos Trabalhadores. O governo é de centro direita tal como o próprio Zé Dirceu afirmou há poucos meses (agora, tão disciplinado quanto cauteloso, afirma que é de centro-esquerda com base parlamentar de centro-direita!). Zé Dirceu é esperto na formulação e na arte de iludir o petismo e o progressismo em geral pois sabe a partitura que essas filas gostam!

É claro que a decisão do ministro Gilmar Mendes não era uma novidade para os mais atentos e menos ainda para o ex-ministro da casa civil do primeiro governo de Lula. Hábil nos bastidores, Zé Dirceu sabe que Gilmar Mendes é mais do que um aliado na defesa da "ordem democrática". Não é preciso nem mesmo um simples jantar entre os dois personagens para selar uma aliança estratégica contra a "ameaça da direita e o golpismo". Pois bem, a absolvição definitiva de Zé Dirceu permitiu que o ex-presidente do PT por 4 vezes atuasse agora com a desenvoltura que as circunstâncias exigem pois o governo não somente é "confuso" mas repleto de ministros incompetentes e oportunistas, incapazes, portanto, de dar um rumo mais ou menos ordenado para enfrentar as eleições presidenciais de 2026. Zé Dirceu apesar de octogenário voltou na plenitude e, tudo indica, será mesmo candidato a deputado federal por São Paulo ao covil de ladrões nas próximas eleições.

O DNA do petismo foi modulado por Zé Dirceu sempre em comum acordo com Lula. Ele se mantém invariavelmente fiel ao governo mas sabe operar a máquina partidária, fazer alianças dentro e fora de sua base e, ademais é, talvez, o único capaz de revitalizar o modo petista das antigas ilusões que colocaram a esquerda liberal impotente e cativa da classe dominante. Em consequência, ensaia uma rebeldia nos marcos da ordem burguesa e do compromisso inquebrantável de Lula com a burguesia e Washington. A operação elementar é mais do que evidente: Zé Dirceu candidato a deputado federal já vocaliza o desespero, a angustia e, ao mesmo tempo, a contra-ofensiva da esquerda petista residual e de sua ampla base eleitoral na disputa interna do congresso do PT no próximo ano como representante da ala esquerda.  O movimento permitido pela decisão do STF contra o lavajatismo, a experiência do governo protofascista de Bolsonaro e o aprofundamento da dependencia, autoriza e exige a presença de uma esquerda parlamentar capaz de flertar com a mudança da política economica mas impotente para corrigir o rumo inexorável do rentismo sob a batuta de Lula e Haddad. A tensão calibrada no interior do partido e do governo é, portanto, necessária para mantera a arte de iludir e, ao mesmo tempo, bloquear a crítica pela esquerda.

Nas circunstâncias atuais ele não faltará em hipótese alguma com o apoio incondicional ao governo mas já pratica uma disputa ideológica de baixa intensidade orientada a "abrir o debate" sobre questões cruciais que o petismo é medularmente incapaz tal é seu grau de deterioração ética e programática. Assim, com a autoridade que todo cristão novo não pode exibir, Zé Dirceu - escolado nas disputas internas -, pretende matar dois coelhos com uma cajadada: fortalece a base social (eleitoral também) do governo, tenta inibir a crítica de esquerda em potencial ruptura com o petucanismo e, de quebra, captura para seu discurso a chamada "midia progressita" que recentemente descobriu ou se opõe (pasmem!) ao caráter "neoliberal" do governo. Entre a negação da verdade cotidiana e a necessidade de apoio financeiro para manter seu sustento econômico, a chamada "midia progressista" terá agora em Zé Dirceu seu principal porta voz e ganhará certa margem de manobra tão necessária para manter tanto a audiência molelucar quanto o apoio a Lula em 2026. Assim, os poucos "rebeldes" existentes no interior do PT e todos os puxadinhos fora dele (PSOL, Rede, MST, etc) terão um adversário mais potente que Pimenta, Rui Costa, Gleisi, Lindenberg, entre outros. 

Em recente entrevista ao Opera Mundi ele recusou a presidência do PT, enventuais cargos no governo e inclusive fez campanha para deputado federal afirmando que talvez não necessite de um mandato parlamentar para contribuir com o futuro do Brasil! Afirma que pode fazer mais na condição de "militante de base" escrevendo artigos e proliferando ideias... Pode? Ora, ninguém mais do que Zé Dirceu defende a concepção parlamentar de política e, em consequencia, sabe a importância de sua presença no covil de ladrões tanto para pressionar internamente quanto para atenuar a oposição aberta ao governo. Lula detesta o presidencialismo porque, entre outras razões, não está a altura dos desafios que o país enfrenta e, por isso mesmo, negocia com Lira e Pacheco em total harmonia deixando o conflito para Flávio Dino e a comoda tarefa de calibrar a força da corrupção parlamentar em favor do governo. Nesse contexto, Zé Dirceu ganha enorme margem de manobra simulando um "projeto para o Brasil" somente possivel - segundo sua concepção - no longo prazo... Nesse enredo, a conclusão mais do que óbvia indica que não há mais remédio senão entender a correlação de forças sempre adversa e "pensar" uma "estratégia" de longo prazo num interminável "acumulo de forças"... Na formulação mais explicita ele segue falando em "revolução" mas seu "programa" não passa de um esboço genérico de medidas nos marcos da ordem burguesa (reforma tributária, reforma política, diminuição radical dos juros, ataque retórico ao rentismo, disputa ideológica, entre outras quinquilharias) incapazes de tocar no nervo da imensa crise que se aprofunda diante de nossos olhos.

Zé Dirceu voltou e exibe a antiga capacidade de iludir. Entretanto, o seu partido já não possui os recursos e a antiga legitimidade anterior ao primeiro mandato de Lula. Agora, ao contrário, carrega um enorme passivo e também desprezo em amplos setores sociais além, é claro, da dúvida, companheira incômoda até mesmo para os mais devotos de seus eleitores. Nas atuais circunstâncias, o antigo militante foi superado pelo funcionário do partido (mandatos, prefeitos, governadores, etc) ávido por abrigo inclusive em governos "aliados" espalhados pelo Brasil. Não há convicção, mas cálculo eleitoral e carreirismo sem inibição. De resto, a lógica de situações extremas - algo muito mais relevante que a polarização ou politização da sociedade civil - exige soluções mais ou menos radicais que o governo não pode sequer imaginar e muito menos simular. A arte de iludir tem sempre limites mas agora eles são intransponíveis.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

A luta pela redução da jornada de trabalho

 

“A experiência demonstra que a diminuição das horas de trabalho – evitando a fadiga – não acarreta prejuízo. O interesse dos patrões deveria contribuir para o estabelecimento de novas regras do trabalho”.

Evaristo de Moraes, Apontamento do direito operário, 1905

 

“... a produtividade do trabalho não é, em absoluto, assunto que incumba ao trabalhador”

Marx, O Capital, Tomo I

“...o verdadeiro reino da liberdade que, não obstante, somente pode florescer sobre aquele reino da necessidade como sua base. A redução da jornada de trabalho é a condição básica”

Marx, O Capital, tomo III

 

A característica dominante na luta de classes no Brasil é a ausência do movimento de massas. Com certa frequência, o reconhecimento do fenômeno é utilizado para justificar a orientação assumida pelos governos da esquerda liberal (governo petucano) e, não raro, também uma via rápida para responsabilizar as massas por sua própria miséria e exploração na mesma medida em que exime Lula e seu governo pela paralisia político-ideológica decorrente da antiga adesão ao programa da classe dominante. 

Ademais, as organizações sindicais e partidos políticos carecem de um programa de ação, que somente pode ganhar consistência e força como resultado da experiência de lutas dos próprios trabalhadores capazes de assegurar a independência política diante dos governos e do Estado. De resto, enquanto a fragmentação identitária tem sido um obstáculo importante, até o momento, para a realização da totalização das lutas no interior da esquerda liberal, somente a direita apresenta uma utopia reacionária como promessa de futuro para as maiorias.

É nesse contexto que a emergência de um “movimento” chamado VAT (Vida para além do trabalho) despertou certa atenção, que, de outra maneira e em outras épocas, seria tomado sem dúvida alguma apenas como mais um protesto desesperado de um trabalhador submetido ao tacão de ferro dos capitalistas. Com efeito, somente boa dose de generosidade e outra não menor de indigência poderia considerar o VAT um movimento real da classe trabalhadora. Não há desprezo na afirmação, posto que o VAT, antes de se firmar como movimento real, foi logo canalizado para seu curso natural diante das circunstâncias atuais: a representação parlamentar no âmbito municipal. O precursor do protesto que passou a ser designado com VAT – Rick Azevedo – é agora vereador pelo PSOL no Rio de Janeiro eleito com mais de 29 mil votos.

Em consequência, tampouco surpreende que uma deputada do PSOL – Erika Hilton – no embalo das redes digitais, logo transformasse o protesto solitário e desesperado de um trabalhador confinado numa farmácia em projeto de lei que, há pouco, logrou o número de assinaturas para começar a tramitar na Câmara federal a proposta de redução da jornada de trabalho para 36 horas semanais. O entusiasmo de distintas organizações sociais e sobretudo da concepção parlamentar de política é imenso e, a julgar pelo ambiente digital, o protesto realizado no dia 15 de novembro anunciado como o início da retomada das ações de massas, nas versões mais delirantes, autorizariam supor que, em breve, e com algum esforço militante estaríamos próximos de uma virada na correlação de forças atualmente sob comando da direita liberal. O entusiasmo digital é, de fato, imenso! Entretanto, funcionará nas ruas? O 15 de novembro provou aos iniciados que estamos longe de construir uma plataforma de lutas da classe trabalhadora e menos ainda de superar a concepção liberal de política dominante nos partidos da esquerda liberal. A propósito, no momento em que escrevo essa nota, há um silencio profundo sobre o completo esvaziamento da atividade de 15 de novembro, mas, não tenho dúvidas, logo surgirão avaliações positivas sobre “o primeiro ato” de uma longa caminhada...

Tampouco podem existir dúvidas sobre o apoio dos trabalhadores a qualquer iniciativa destinada à redução da jornada de trabalho. Todos os socialistas, comunistas e revolucionários devem apoiar qualquer projeto parlamentar destinado à redução da jornada de trabalho. Mas é igualmente uma obrigação dos socialistas, comunistas e revolucionários observar e analisar o contexto e as consequências de semelhante iniciativa, sobretudo quando está marcada pela origem parlamentar da proposta e conta com o ingênuo entusiasmo e a alienação inerentes ao “ativismo” midiático das redes digitais. Com efeito, já existem dezenas de propostas que favorecem os trabalhadores nas gavetas do parlamento (de deputados ativos ou não) que, quando consideradas, poderiam produzir o paraíso mesmo nas condições do sistema capitalista e, mais ainda, na periferia latino-americana. 

O governo Lula/Alckmin não possui qualquer iniciativa para mitigar o sofrimento dos trabalhadores. A Reforma Trabalhista anunciada em campanha como objeto de revogação ou revisão goza de boa saúde e nem em sonhos dourados o governo cogita rever qualquer uma de suas cláusulas. Acrescente-se a isso o fato de que, no momento, o governo petucano (Lula/Alckmin) sofre acentuado desgaste que até mesmo as pesquisas de opinião assinalam. Entretanto, não são necessárias as pesquisas para avaliar a grave situação do país e a debilidade do governo atual. A força da crise encontra um governo de tal forma dócil ao capital, que torna inútil a repetição maçante e impotente das políticas sociais  ademais, obrigando o governo da esquerda liberal a arrochar a classe trabalhadora em favor da coesão burguesa que dirige o país desde 1994.

Há dias, a esquerda liberal aguarda com angústia o anúncio de um “pacote econômico” destinado a cortar gastos sociais e precarizar ainda mais as condições de vida dos trabalhadores. Nesse contexto, as redes digitais da esquerda liberal explodiram em apoio ao VAT e rapidamente unificaram a data de 15 de novembro para uma manifestação em favor da aprovação da PEC na vã tentativa de mudar o foco da atenção pública e retomar a iniciativa política.

O melhor dos mundos possíveis

A exemplo de quase tudo que ocorre no país, o VAT não tem nacionalidade brasileira. A própria deputada Erika Hilton escreve na sustentação da proposta: 

“No Brasil, o programa piloto de implementação de jornada de 4 dias começou a ser realizado pela Reconnect Happiness at Work em parceria com a 4 Day Week Global e Boston College, e teve seu início em setembro de 2023. Cerca de 22 empresas com até 250 colaboradores aderiram à iniciativa, em que os resultados do projeto no país, apresentam projeções importantes para a transição das jornadas de trabalho para o modelo de 4 dias, em que é possível observar menor número de faltas dos empregados e produtividade em alta, em razão da adoção de estratégias de organizações funcionais para o modelo da empresa”.

A reconciliação entre trabalho e a felicidade (reconnect happiness at work) não deixa de ser boa nova tanto nos países centrais quando na periferia do capitalismo, uma vez que, aqui, o processo de acumulação de capital se sustenta na superexploração da força de trabalho. No Brasil – como na Alemanha – a adesão a semelhante programa é voluntária sem, portanto, obrigatoriedade na lei! Na maioria dos casos, a redução da jornada de trabalho foi produto de duras negociações entre sindicatos e empresas, ainda que reguladas pela legislação do trabalho e não fruto de ativismo midiático, regado a interesses eleitoreiros.

Entre nós, a luta pela redução da jornada de trabalho sempre esteve presente nos partidos de esquerda e nos sindicatos. Contudo, sua implementação depende, obviamente, dos ciclos de acumulação do capital que, como sabemos, alternam períodos de bonança com outros recessivos. Em tempos de crise, é normal que propostas semelhantes apareçam como a salvação da lavoura e não raro, os trabalhadores lançam mão de semelhantes propostas mesmo quando implicam simultânea redução salarial.

Na Alemanha, em 2017, o poderoso IG Metall, que representa a indústria metalúrgica e de engenharia com 3,9 milhões de associados e alcance em empresas tão importantes como Daimler, Bosch, Porsche, Audi, BMW entre outras, propôs a redução da jornada para 28 horas semanais distribuídas em 4 dias e sem redução salarial.  Válida por 27 meses, a proposta cobre aproximadamente 900 mil trabalhadores. As negociações se arrastaram em meio a muitas greves e paralisações de advertência especialmente importantes nos Estados da Baviera e Baden-Wrttemberg, no sul da Alemanha, responsáveis por prejuízos de até 200 milhões de euros às empresas. Assim, em meio a forte combate, a categoria conseguiu um aumento da massa salarial de 4,3%, ante a reivindicação de 6%, e a redução da jornada de trabalho semanal de 35 para 28 horas. Portanto, o acordo posterior até hoje celebrado como uma conquista foi fruto de lutas no chão da fábrica. A jornada de trabalho na Alemanha está regulada em lei nas 35 horas semanais.

Naquele período (2017), a economia da Alemanha apresentava taxa de crescimento positiva e as exportações exibiam sucessivos superávits. Na prática, há muitos anos, a Alemanha apoiada no poder do euro e sua considerável base industrial,  transformou-se numa máquina de exportação junto com Estados Unidos e China. Portanto, no momento favorável à acumulação de capital – mesmo considerando um período caracterizado como “de crescimento lento” por analistas de distintas orientações teóricas – os sindicatos atuaram na busca de melhores acordos com greves e paralisações que revelaram a força dos trabalhadores na busca também concentrada na reivindicação de reajuste e participação nos lucros. Nós sabemos que naquele país existe um sindicalismo integrado à ordem burguesa, mas capaz de buscar seu quinhão diante da crescente acumulação de capital. Na atualidade, a adesão à redução da jornada alcança principalmente empresas menores – entre 10 e 250 trabalhadores – que, em função da crise, lançam mão da redução da jornada em acordos variados que nem sempre se sustentam ao longo do tempo. Na periferia capitalista, ao contrário dos países centrais, o azul é sempre mais escuro. Em consequência, a resistência capitalista é ainda mais ferrenha, pois o fundamento da acumulação é a superexploração da força de trabalho que sempre foi considerada – e seguirá sendo – uma lei de bronze que ninguém poderá violar.

Na periferia capitalista

No Brasil, a redução da jornada de 48 para 44 horas semanais ocorreu na elaboração da Constituição de 1988, no início do regime liberal burguês que sucedeu a ditadura militar. A despeito de graves limitações políticas, o sindicalismo mantinha certa força nas reinvindicações de extração econômica, sobretudo porque as taxas de inflação eram elevadíssimas (hiperinflação) e não raro alcançavam 3 dígitos! Nesse contexto, as greves se sucediam como decorrência direita da luta entre preços e salários no interior das quais a politização dos trabalhadores ocorria mesmo sob o controle político ideológico dos líderes sindicais com Lula e suas conexões na Europa e Estados Unidos.  

Ao longo do tempo, especialmente após a implementação do Plano Real, as condições de luta em tempos de inflação baixa mudaram radicalmente. As greves inerentes ao período da corrida entre preços e salários dependiam de outros fatores e não foram poucos aqueles sindicatos que começaram a cobrar ganhos de produtividade nas negociações entre patrões e empregados. Mas ainda assim, em pouquíssimos casos, a pauta de reivindicações incluiu a redução da jornada de trabalho. Os sucessivos governos do PT durante longos 14 anos (Lula e Dilma), jamais ousaram sequer discutir um pacto entre capitalistas e trabalhadores inclusive quando as taxas de desemprego eram indiscutivelmente baixas e o ciclo da acumulação favoreceria os sindicatos, se a iniciativa do governo existisse. A razão para a omissão tanto dos sindicatos (especialmente a CUT), quanto dos governos petistas é conhecida: nada contra a burguesia!

No chão da fábrica e na solidão política, os trabalhadores amargam não apenas jornadas de 44 horas semanais, mas, inclusive, em não poucos casos, acima do limite legal. Aqui, na periferia capitalista, o mundo real conspira contra a lei, razão pela qual a violação da legislação trabalhista adquire feições particulares nada desprezíveis.

Em abril de 2010, por exemplo, o DIEESE informava que "ao se analisar os dados da PED (Pesquisa de Emprego e Desemprego - DIEESE/SEADE) observa-se que, em 2009, 36,1% dos assalariados trabalham mais do que a joranda legal de 44 horas. Esta realidade explicita que, no caso do Brasil, a hora extra perdeu a característica de ser uma hora a ser realizada em momentos excepcionais, passando a ter um caráter de hora ordinária". Na prática, a hora extara é uma forma de prolongamento da jornada de trabalho e, portanto, de extração de mais valia absoluta, mesmo quando os capitalistas pagam valores monetários superiores àqueles da hora regular.

Dados recentes do Tribunal Superior do Trabalho (TST) informam que o tema “hora extra” foi o mais recorrente em novas ações na Justiça do Trabalho de janeiro a julho de 2023, somando mais de 288 mil processos em todo o país. Entre as demandas, estão questões como “não pagamento das horas extras realizadas, falta de registro da jornada de trabalho, supressão das horas extras habituais, integração das horas extras em outras verbas salariais e invalidade dos cartões de ponto em razão de horários uniformes”. Ao contrário da luta pela redução da jornada de trabalho, nas condições atuais, parcela importante dos trabalhadores não possuem outro recurso senão a ... ampliação da jornada de trabalho!

Há, além disso um dado relevante que o cretinismo parlamentar em voga ignora e a militância virtual também. O IBGE informa que “em 2023, dos 100,7 milhões de ocupados do país, 8,4% (8,4 milhões de pessoas) eram associados a sindicatos. Esse foi o menor contingente e o menor percentual da série iniciada em 2012, quando havia 14,4 milhões de trabalhadores sindicalizados (16,1%)”. A velocidade da queda não deixa de chamar atenção pois, segundo a mesma fonte, “na comparação com o ano anterior, houve queda de 7,8%, ou de 713 mil pessoas. Em 2022, eram 9,1 milhões de sindicalizados, 9,2% do total de ocupados”. Ora, o fenômeno alcança todos os setores e “em relação a 2012, as maiores quedas na taxa de sindicalização foram nos grupamentos de transporte, armazenagem e correio, com -12,9 p.p. (passando de 20,7% para 7,8%), indústria geral, com -11,0 p.p. (de 21,3% para 10,3%) e administração pública, defesa, seguridade social, educação, saúde humana e serviços sociais, com -10,1 p.p. (de 24,5% para 14,4%)”.

A reforma trabalhista de Michel Temer (Lei 13.647/2017) representou um grave e inédito ataque contra a CLT. A lei foi promulgada em julho de 2017 numa conjuntura marcada pela ofensiva burguesa contra os trabalhadores que jamais foi interrompida pelo governo atual a despeito das promessas de campanha. E, não custa lembrar, os capitalistas contam com a enérgica e sistemática ação do STF, que não cansa de decidir contra os trabalhadores e suas conquistas históricas. Em 11 de setembro passado, por exemplo, o ministro Cristiano Zanin pediu vistas do processo sobre o trabalho intermitente em análise naquela corte, que já conta com 4 votos favoráveis e três contrários. Em caso de aprovação seria outro duro golpe nos direitos elementares dos trabalhadores no contexto da reforma de Temer e uma via rápida para o aprofundamento da superexploração da força de trabalho, fundamento do capitalismo dependente rentístico.

Quando a redução da jornada entrou nas negociações permitida pela Medida Provisória 936/2020, posteriormente sancionada como Lei nº 14.020, de 06 de julho de 2020, previa de maneira clara a redução dos salários no âmbito do "Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda diante dos impactos da Covid-19", que assegurava elevada taxa de lucros aos capitalistas e passava o prejuízo para os trabalhadores. A medida era uma proteção da taxa de lucro e, naquele contexto, os trabalhadores não possuiam forças suficientes para se proteger da ofensiva do capital contra o trabalho. Portanto, é compreensível que uma PEC destinada à redução da jornada de trabalho desperte aprovação de milhões de trabalhadores e, de fato, mais de 2 milhões de brasileiros assinam a iniciativa parlamentar. Tampouco causa surpresa que a PEC tenha granjeado um número aparentemente surpreendente de assinaturas de deputados e senadores com direito a discursos em defesa da medida até mesmo por parlamentares de direita, que, na tribuna do covil de ladrões, defenderam sua imediata aprovação. A propósito, Cleiton de Azevedo, o senador Cleitinho (Republicanos/MG), fez um discurso tão radical em defesa da medida, que, aos desavisados, poderia parecer que se trata de esquerdista radical. Contudo, essa simpatia automática necessita ultrapassar a simples adesão midiática e transformar-se num momento real.

No setor de serviços (supermercados, farmácias, restaurantes, shopping e call centers, etc), existe um imenso proletariado submetido a jornadas de trabalho exaustivas e salários baixíssimos, que conta com o silêncio cúmplice do governo petucano e baixo nível de sindicalização. Até hoje, o governo não mexeu uma molécula para enfrentar a superexploração da força de trabalho e se limita tão somente à repetição enfadonha das antigas políticas sociais, incapazes de sequer mitigar o sofrimento das massas. A propósito, os programas sociais antes de redimir ou mesmo mitigar o sofrimento tornam-se, na prática, um pilar da superexploração da força de trabalho na forma de filantropia.

Dessa forma, no setor de serviços, a rotatividade da força de trabalho é igualmente intensa, superior a qualquer outro país do mundo capitalista. Eis as condições materiais que tornam toda medida destinada a enfrentar a superexploração da força de trabalho popular dócil aos patrões e incapaz de qualquer mobilização em favor dos trabalhadores sobretudo quando os sindicatos do setor de serviços estão dominados pela burocracia e priorização do enfrentamento jurídico em detrimento das ruas.

A descoberta da pólvora

Rick Azevedo – o festejado vereador do PSOL carioca – lançou o VAT num ato de solitário protesto. Não se trata, obviamente, de um movimento, mas de um recurso midiático com adesão exclusivamente eletrônica e que, portanto, não está isento de graves limitações. A mais eloquente evidência da situação se deve ao fato de que o vereador solicitou registro da marca (VAT) no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (!!) como uma forma de manter sob controle seus seguidores e, ao mesmo tempo, autorizar a eventual ampliação sob seu exclusivo comando. 

Em setembro passado – portanto antes do ativismo eletrônico da semana passada – a   Organização Comunista Internacionalista (OCI) publicou em sua página importante denúncia sobre a ofensiva do agora vereador Rick Azevedo, autor do VAT contra aqueles que queriam somar no movimento, dando-lhe não somente transparência, mas também organicidade e potência.

Qual era a suposta heresia proposta pela OCI? 

Em 3 de setembro, a OCI solicitou um encontro nacional destinado a avançar na organização e massificação da luta e a resposta de Azevedo foi a expulsão de todos aqueles que endossaram a petição. Então candidato a vereador, Azevedo não poderia ter reação mais ilustrativa do caráter do VAT e notificou extrajudicialmente a OCI proibindo o uso da marca!

https://marxismo.org.br/sobre-as-acoes-de-rick-azevedo-e-demais-membros-da-coordenacao-do-vat-contra-a-oci/

Ora, a organização propunha um encontro nacional com tirada de delegados pela base em escala nacional destinado a massificação e maior representatividade do moivmento. 

https://marxismo.org.br/por-um-encontro-nacional-do-movimento-vat-com-delegados-eleitos-na-base/

A resposta do vereador foi uma rara combinação entre ação extra judicial contra a OCI acusando-a de “uso indevido do nome, marca e identidade do movimento VAT, bem como na tentativa de apropriação indevida de sua liderança e propósito, sem qualquer autorização ou consentimento”. Na verdade, Rick lançou um movimento que, diante das circunstâncias do mundo real, logo escolheu como objetivo a conquista de um mandato na câmera de vereadores do Rio de Janeiro e, em consequência, não poderia abri-lo para a participação de todos os trabalhadores e muito menos se submeter às instâncias que todo movimento real exige, especialmente quando o objetivo é a redução da jornada de trabalho. Entretanto, ninguém tem dúvidas que somente uma unidade política de todos os trabalhadores poderá arrancar dos capitalistas a redução da jornada de trabalho. Além do mais, como a experiência ensina, o papel do governo nunca será de mero expectador, mas, ao contrário, de ativo participante em favor da classe trabalhadora! Não é de surpreender que Rick Azevedo chegou a publicar nas redes que não admitiria bandeiras contra o atual governo como expressou com clareza em seu twitter. A despeito da inocência, é claro que as forças, partidos e parlamentares que foram às ruas no dia da proclamação da república estão na sua maioria comprometidos com a defesa do governo petucano diante do que chamam “ameaça fascista”. Em consequência, creem atuar como espírito crítico do governo petucano na vã esperança de que Lula abandone as leis inerentes à política econômica do rentismo e mais do que colocar os “pobres no orçamento” rompa com as regras que alimentam o Plano Real desde 1994, entre as quais o teto de gastos.

A esquerda virtual 

Eis o segredo do ativismo midiático dos dias imediatamente anteriores à data nacional da proclamação da república: não foram poucos os ingênuos que consideraram a manifestação do interesse pela redução da jornada de trabalho no trending topics do Twitter e o número de “likes and views” como clara demonstração da virada na conjuntura, o inédito constrangimento da direita parlamentar incapaz de argumentar contra a PEC e inclusive, num arroubo delirante, indicar a eminente “virada do jogo político brasileiro” com a consequente retomada de um novo ciclo de lutas favorável a classe trabalhadora. Tudo a que assistimos no dia 15 de novembro foi uma demonstração contundente contra as pretensões de que o “mundo virtual” dirigia o “mundo real”, mas bastou o amanhecer do feriado republicano para observar o abissal contraste entre a expectativa exuberante das mídias e o esvaziamento das praças nas principais capitais do país. Com efeito, nenhum ato foi massivo! No Rio, talvez 3 mil pessoas na Cinelândia e em SP apenas um quarteirão. No Espírito Santo, gatos pingados não ultrapassaram o número de 300 pessoas. Em Floripa não mais do que 500 pessoas, em Pernambuco manifestação minguada e em Porto Alegre pra lá de modesto! Em muitas cidades o “ato” foi apenas simbólico. Em São Paulo, para dar um exemplo emblemático da natureza artificial da articulação, várias organizações que ajudaram na convocatória da manifestação sequer tiveram direito ao microfone. De fato, onde o VAT comanda, a ampliação não prospera.

No parlamento

No covil de ladrões não há surpresa! No parlamento, tanto parlamentares da esquerda quanto da direita liberal assinaram a PEC conscientes de que a proposta não tem a menor possibilidade de aprovação e caso avance em algum aspecto, será algo bem distante da proposta original. Observando iniciativas anteriores, alguém poderá ter dúvidas sobre os “acidentes” de seu trâmite? Nesse contexto, o PT assinou em massa na semana anterior as manifestações. Mas, na página do partido figurava o destaque de que as nobres deputadas assinaram a PEC sem menção aos homens! No PSOL, Boulos, convertido a linha lulista do “paz e amor”, jamais cogitou discutir o tema na última campanha eleitoral e, de fato, foi um dos últimos a assinar a iniciativa de sua colega de bancada. É um tempo duro para convicções...

O futuro da luta pela jornada de trabalho dependerá da capacidade de enfrentamento dos trabalhadores, todos sabemos. Portanto, não será fruto de eventual repercussão nas redes digitais, mas das contradições de classe próprias de nosso país. A esquerda identitária descobriu algo valioso na cartada recente: a classe, como expressão universal, tem lá sua força mesmo quando reivindicada por aqueles que expressam a soberania do eu de maneira permanente e não possuem qualquer compromisso com a revolução brasileira e o socialismo. O “debate” das redes digitais exibe não somente a pressa inerente ao meio técnico, a vocação parlamentar da esquerda (identitária ou não) mas, sobretudo, o completo desprezo pelas leis objetivas que governam o desenvolvimento capitalista na periferia latino-americana. Essa mesma esquerda liberal, treinada na estranha arte de insistir num caminho exaurido cuja expressão mais importante é o apoio ao governo petucano de Lula/Alckmin na persistente justificativa de que supostamente não temos outro horizonte possível, precisa despertar de sua letargia para tomar o céu de assalto.    

Na prática, o ativismo midiático responsável pela tentativa de massificação da campanha pela superação do 6 x 1 tinha um objetivo inconfessável: salvar o governo petucano de Lula/Alckmin. O delírio segundo o qual os atos de 15 de novembro constituem uma “virada no jogo” político não passa de uma tentativa de oferecer um salvo conduto para um governo que em cada medida acentua a dependência, o subdesenvolvimento e a superexploração da força de trabalho. Contudo, a esquerda liberal não é capaz de romper com as ilusões e passar a fazer radical oposição de esquerda ao governo que administra a economia política do rentismo na mesma medida em que arrocha os trabalhadores. Nesse momento, Lula elabora um “programa de ajuste”, reivindicado pela classe dominante à luz do dia. Programa esse que não poupará os mais miseráveis entre os miseráveis. Em consequência, o desespero e angústia da esquerda liberal em manter a fidelidade ao governo e ao mesmo tempo defender os interesses imediatos dos trabalhadores chega, finalmente, ao seu término: não é possível servir a dois senhores!

Tudo indica que o “pacote” curtido em negociações com banqueiros, latifundiários, grandes comerciantes e industriais decadentes pode, no papel, tocar nos interesses marginais dos capitalistas, mas certamente cortará fundo em algumas leis e programas relativos aos trabalhadores. O “pacote” será enviado ao covil de ladrões e a maioria folgada que a classe dominante possui no parlamento se encarregará de dar a devida “racionalidade” às medidas, eliminando eventuais “exageros” contra a propriedade e os lucros e dividendos dos capitalistas. Assim, o governo petucano simula fazer justiça social e a esquerda liberal seguirá com a ladainha de que Lula não possui maioria para aprovar outro programa. 

A conjuntura exige lucidez antes que simulação. Uma PEC ou o mais intenso ativismo midiático são incapazes de mudar a correlação de forças. O problema não pode ser resolvido por um passe de mágica e menos ainda pelo mais intenso ativismo midiático, mas somente no terreno que as maiorias já identificaram: o governo eleito para “barrar o neoliberalismo”, “derrotar o neofascismo” e inverter a correlação de forças diante da ofensiva burguesa acelera o programa econômico da própria burguesia e segue alimentando a mais profunda corrupção do sistema político. Portanto, não há no governo programa econômico alternativo e menos ainda uma tímida “reforma política” para salvar da podridão a república burguesa! O vale de lágrimas se configura eterno diante dos trabalhadores e o povo acumula sua ira de maneira silenciosa até que por um motivo qualquer, num momento indeterminado, se manifeste com a força dos vulcões, varrendo tudo e todos. Haverá, nesse momento, alguma organização política ou liderança com completa independência diante do governo capaz de ganhar a confiança das maiorias e abrir as portas da revolução brasileira?

Revisão: Junia Zaidan

domingo, 27 de outubro de 2024

Na aba do chapéu

 

Na aba do meu chapéu
você não pode ficar
Porque, meu chapéu tem aba curta.
Você vai cair e vai se machucar
Como vai se machucar
Eu compro cerveja, você pede um copo
e bebe logo
Eu compro cigarro, você pede um
Como você pede um
Mando vir um salgado, o senhor come tudo.
Parece que nunca comeu
Pede tudo que vê, tu es um 171
Um tremendo 171

Samba cantado por Martinho da Vila


Um ciclo da política nacional exibe agonia terminal. Até mesmo para aqueles incapazes de pensar a política para além do estritamente eleitoral, é inocultável o mal-estar, a confusão e, não raro, o desespero. Nesse contexto, o sujeito vai para a urna como se estivesse diante de um ato extremo em que sua decisão de impedir a vitória de seu adversário está, na prática, destituída de sentido construtivo, longe de produzir um novo horizonte, limitada tão somente ao veto de seu adversário real ou fantasmagórico. A alegoria do eleitoral não é capaz, contudo, de ocultar a miséria do estritamente político em que a impotência é a marca mais eloquente, pois, diante do governo atual, nem mesmo o mais otimista pode afirmar que existe algo, de fato, relevante para conservar diante da “ameaça externa”, capaz de fortalecer uma política de “terra arrasada”.

Não podemos afirmar por quanto tempo o espetáculo mórbido da agonia permanecerá entre nós. Entretanto, basta observar o cenário de alianças e apoios nesse processo eleitoral que hoje termina no segundo turno das eleições municipais, para concluir que todos aqueles que buscam uma racionalidade para seu voto ou apoio via redes digitais não conseguem sequer ocultar misérias próprias e muito menos, exorcizar as alheias. Portanto, o exercício repetitivo da simulação seguirá dominante mesmo se quando a ordem que o criou desaparecer por completo.

Não estamos num deserto, longe disso, razão pela qual não desprezo cada movimento em círculo que aceita ou recusa o voto nesse ou naquele candidato, como se a vida estivesse realmente em jogo quando milhões se dirigem à urna e outros tantos permanecem em casa recusando a “festa da democracia”. De resto, o espetáculo midiático, controlado nos mínimos detalhes pela classe dominante – do uso enfadonho da camisa azul num cenário igualmente azul dos debates televisivos – constitui um contraste absoluto com o cinza que predomina na vida cotidiana de milhões de brasileiros subsumidos pela mais absoluta miséria sem esperança alguma na possibilidade de progredir nesse inferno que caracteriza a vida nas grandes cidades de nosso país. O otimismo alienante dos liberais de esquerda é incapaz de angariar apoios para qualquer mobilização imediata e menos ainda de acumular alguma força para os combates futuros. À sombra do liberalismo de esquerda, a direita administra em doses homeopáticas de seu irracionalismo – elucidando o caráter racional do irracionalismo – na medida em que ataca as instituições da república burguesa repudiadas pela ampla maioria do povo. O surrado bordão que no passado logrou simpatias no interior da consciência ingênua segundo a qual a esperança poderia vencer o medo, se enfrenta agora com um adversário mais difícil e de comprovada eficácia: o temor é quase um artigo de uso exclusivo da esquerda liberal pois se encontra sem capacidade de mobilização, destituída de horizonte utópico, na defensiva política e unicamente filiada à defesa inútil das conquistas passadas. Estas que derretem como gelo sob o sol, aniquiladas, portanto, não por um presidente protofascista, mas pela ação decidida do governo petucano cujas promessas da última campanha presidencial ainda subsistem nas anotações daqueles que alimentaram as ilusões diante de "compromissos de campanha" que sabidamente não poderiam ser honrados.    

No cenário eleitoral atual, portanto, tudo esta resumido como se, de fato, estivéssemos diante da clássica opção entre civilização e barbárie. Na tradição intelectual universitária, a síntese aparece sob a forma de escolha entre democracia e autoritarismo como último recurso para justificar o voto ou dar algum sentido, mesmo que difuso, às disputas digitais nas quais o irracionalismo tem um terreno incomparavelmente mais fecundo que os democratas de qualquer origem. É batalha perdida, sem dúvida!

A despeito do resultado medido por vitórias ou derrotas eleitorais em prefeituras, a verdade é que o saldo será positivo para a direita em larga medida. O abandono da disputa ideológica por parte da esquerda liberal em sua “ação eleitoral”, exibe agora o quanto pode ser nociva a recusa do radicalismo político cujo horizonte não é outro senão a defesa aqui e agora do socialismo. E isso na mesma medida em que o pragmatismo não tem a menor aderência de outros tempos quando Lula venceu a primeira eleição presidencial. Ora, cada ato “realista” praticado pela esquerda liberal orientada pelos “princípios” da administração democrática da ordem burguesa desde então, não fez menos que fortalecer o discurso da direita que opera com o horizonte de uma utopia reacionária na qual cada insuficiência de um país subdesenvolvido e dependente é acusada como suposta prova de que ainda não vivemos efetivamente num sistema capitalista pleno onde cada iniciativa e esforço individual seriam inexoravelmente recompensados com a glória no mundo dos monopólios.

No lado “oposto”, as promessas e “debates” entre a esquerda liberal diante da ofensiva da direita revelaram o quanto o sistema está azeitado para receber e turbinar o movimento em círculo nos estreitos limites do sistema político agonizante. É verdadeiramente impressionante que nesse redemoinho funcional aos interesses da direita, Marçal e Boulos – o primeiro como protagonista e o segundo como coadjuvante – praticaram um “diálogo respeitoso” que, ao contrário dos manuais de inspiração frankfurtiana, caiu como luva para os interesses da ultra direita com a ultrajante chancela do mais rasteiro oportunismo eleitoral da “esquerda democrática”. Até ontem, lembre que o bordão era “com fascista não tem papo” ou enunciava-se que o fascista era “inabordável”... Nesse contexto, obviamente fracassou a “ação midiática” do liberalismo de esquerda ao tentar um “corte” para alimentar o insaciável público da mass mídia, indicando que, como o aprendiz de feiticeiro, Boulos venceria o debate ou massacraria o fascista quando a verdade é exatamente oposta! Aqui, precisamente, a fronteira entre o oportunismo eleitoreiro e a irresponsabilidade social se encontram ao amparo do êxito individual.

Com efeito, se a direita não perdeu tempo e afirmou sua ideologia na disputa eleitoral, no lado da esquerda liberal restou o patético papel de afirmar sua filiação à Lula e a defesa aberta ou velada do governo petucano completamente funcional aos interesses da coesão burguesa que governa o país desde sempre, ainda que com interesses redefinidos radicalmente a partir do Plano real de 1994. Esse beco sem saída fazia supor que o inexorável eclipse de Lula na política constituiria o caminho seguro para a renovação vitalizada da esquerda liberal, mas, ao contrário do otimismo ingênuo, a cena não poderia ser mais clara: todas as versões emanadas do útero petista, incluindo Lula, não passam de modalidades deterioradas e empobrecidas de uma forma eficaz em outros tempos e completamente datadas diante das transformações do capitalismo no país. A propósito, é preciso dizer de forma clara que a fase rentística da dependência não admite ilusões. O manejo da política econômica pelo uspiano Fernando Haddad ou mesmo a paralisia da ministra Marina Silva enquanto o país ardia em incêndios, são demonstrações incontestes disso. Nesse contexto, a orfandade de todos aqueles que votaram por Lula nas últimas eleições presidenciais alegando motivações supostamente nobres, pode ser vista à luz do dia mesmo sob o disfarce da indignação e dos apelos tão sistemáticos quanto inúteis exigindo coerência de um presidente que não possui o menor compromisso com a redenção do país e do povo diante da miséria e da exploração a que estamos historicamente submetidos.

Não é exagero afirmar que o ciclo chega a seu término mesmo que novos espasmos possam ainda prolongar a agonia da esquerda liberal simulando alguma função defensiva. Na aba do chapéu de Lula e do PT nada brotará para enfrentar os dilemas da dominação burguesa na fase atual do desenvolvimento capitalista em sua fase rentística. Afinal, os tempos da administração democrática e “inclusiva” da ordem burguesa atingiram seus limites objetivos. Não há novidade nesse cenário ainda que muitos insistam que é preciso retomar as antigas promessas e imprimir conteúdo de verdade como forma de superação da desilusão e decepção. Ora, a antiga promessa em si não era capaz de oferecer qualquer horizonte para os trabalhadores exceto a surrada digestão moral da pobreza dos programas sociais completamente incapazes de redimir as maiorias da miséria e exploração e menos ainda de criar um movimento de massas destinado à atualização do radicalismo político indispensável num país dependente e subdesenvolvido como o Brasil. 


Revisão: Junia Zaidan

domingo, 6 de outubro de 2024

a função ideológica do "debate"

A potência técnica das redes digitais produziram um fenômeno relativamente novo, nocivo e profundamente deletério: a recusa da crítica. Na prática, a proliferação de "debates" eletrônicos - cuja maior expressão é um quadro da CNN denominado cinicamente "Grande debate" - no qual dois liberais cuidadosamente escolhidos tematizam quinquilharias ideológicas destinadas à alienação do grande público sob o manto protetor do jornalismo-propaganda.

A primeira vez que vi o "debate" - depois a detestável cena se repetiu ad nauseam - um liberal de direita chamado Caio Coppolla "debatia" com um liberal de esquerda, José Eduardo Cardozo, ex-ministro petista - reproduzindo ignorância e alienação durante 20 ou 30 minutos. Uma barbaridade alimentada por dupla via! Entretanto, trata-se de operação ideológica eficaz, uma peça de controle da opinião pública, de manufaturação do consenso em favor da burguesia. Na prática, o recurso jornalístico simula pluralismo mas pretende tão somente educar milhões de pessoas nos limites do permitido pelas ideias dominantes que, tal como ensinou Marx, são as ideias da classe dominante.

O recurso midiático dos monopólios praticado no atacado é repetido no varejo pelas mídias digitais de canais alternativos, reproduzindo a mesmíssima lógica com idênticos resultados. De resto, para os que acreditam nesse tipo de programa, bastaria revisar o atual processo eleitoral concluído há poucos dias com o estelar "debate da Globo". Quem venceu? Ora, a classe dominante e seu absoluto controle sobre o sistema político da república burguesa em frangalhos, porém sempre útil para a manutenção de seus interesses! Quem venceu? A pergunta do espectador angustiado se repete: Nunes, Marçal, Boulos, ou Tabata? Quem, afinal, venceu? Nenhum deles!! Não se trata apenas do formato ou regras de cada "episódio", mas da função de qualquer modalidade de "debate" nos marcos da podridão do sistema político e da ofensiva da direita nas disputas eleitorais e ideológicas! Na prática todos os "debates" reforçam a ideologia da classe dominante a despeito das intenções dos supostos protagonistas.

Ora, qualificar esse tipo de polemica como se fosse disputa ideológica é uma ofensa à memória e à inteligência. O recurso a "militância eletrônica" nas atuais circunstâncias atesta precisamente a ausência do protagonismo das massas, a decadência dos partidos políticos da esquerda liberal, a corrupção da prática parlamentar, a debilidade dos chamados movimentos populares, a renuncia e irresponsabilidade dos acadêmicos que constituem características essenciais da hegemonia burguesa que, nem mesmo em sonhos, podem ser superadas pelo ativismo midiático. Num passado não muito distante, os revolucionários aprenderam com muito estudo e intensa práxis, a importância da contradição, razão pela qual não me importa quando acusam meu diagnóstico de fomentar a apatia e desolação, como se fosse um convite à paralisia política numa terra arrasada, diante da qual não haveria qualquer alternativa. Jamais! As contradições - entre as quais a miséria do "debate" público midiático - deve ser encarada com seriedade e não uma via de reprodução da hegemonia burguesa.

A propósito, no auge da ofensiva sionista contra o povo palestino, diante de assassinatos em massa de crianças, mulheres e inocentes de todo tipo produzidos pela máquina de guerra de Israel, assisti um debate num canal qualquer em que um defensor da causa palestina e outro do sionismo discutiram durante uma hora quem tinha razão. Era, sem dúvida alguma, um debate estéril nos quais ambos saíram da disputa exatamente como entraram e certamente, entre os ouvintes, a situação se repetiu, pois tal evento é incapaz de mudar a posição de alguém ou ainda de aprofundar no conhecimento histórico sobre a questão nacional palestina e as razões pelas quais o imperialismo estadunidense apoia sistematicamente o estado terrorista sionista sabotando qualquer iniciativa de paz. Os debates midiáticos não foram capazes de produzir eventos de rua com forte participação popular ou mesmo nas filas da esquerda liberal; ao contrário, exibiam a apatia dominante nesse e em qualquer outro tema estratégico.
Nas universidades, supostamente a casa de ciência, da cultura e da crítica, o ambiente não é melhor. O "debate" - quando existente - esta determinado pela diminuta capacidade de convocatória das mídias eletrônicas e nem de longe exibe a vitalidade de outros tempos (15 anos atrás, mais ou menos). Os centros acadêmicos, sindicatos de técnicos e professores, prisioneiros de agenda que não tocam nos interesses das maiorias, são notoriamente incapazes de encher um auditório. Essa constatação não pretende ocultar misérias e oportunismos do passado e, portanto, descarto qualquer idealização do ambiente universitário em outras épocas pois a natureza da instituição num país subdesenvolvido e dependente não permite arroubos semelhantes. Mas o domínio do acadêmico sobre o intelectual é devastador, uma miséria, cuja expressão mais evidente - desde logo, não única - é o identitarismo decadente que sofremos como forma de interdição da crítica.

Na contramão do ambiente dominante, o IELA convidou o antropólogo Antonio Risério para atividade pública e um seminário interno destinado a análise de seu livro Em busca da nação (Topbooks). O baiano é raro crítico da cultura nacional além de estudioso das coisas do Brasil, portanto, intelectual atento às novidades impostas pela classe dominante para consumo das massas, além, é claro, de ser também zeloso revisionista de nossa História. Em consequência, diante do autor e da câmara, os membros do Instituto fizeram a crítica após a leitura do livro e ouvimos as respostas que você agora pode conferir no nosso canal e na TV UFSC. A experiência revelou o quanto é fecundo um debate diante do livro e do autor sem pretensão de procurar um vencedor, aquele que nos marcos das disputas eleitorais e dos chamados canais "alternativos" está em busca tanto de votos quanto "likes and views" para proveito particular. A propósito, a habilidade de Marçal na empreitada paulista foi elucidativa pois aproveitava o tempo de TV para reforçar suas redes de produção ideológica; os outros candidatos assumiram o mesmo comportamento com eficácia muito menor! Em qualquer caso, vence a classe dominante pois ninguém é capaz de superar a lógica imanente dessa estranha modalidade de "debate" em que o essencial não pode ser discutido.

Abaixo indico as três atividades que realizamos com Risério e faremos com outros tantos destinados a divulgar o debate que travamos com Antonio Risério sobre seu livro que, a despeito de diferenças aqui e acolá, eu recomendo à todos.

Seminário interno do IELA
https://www.youtube.com/watch?v=CNwoMkRiz04

Conferência aberta ao público
https://www.youtube.com/watch?v=dWoV-D5NRIs&t=6256s

Programa Pensamento Crítico
https://www.youtube.com/watch?v=r8Z7zHT_2j0&t=748s

Saludos!

domingo, 25 de agosto de 2024

A solidão identitária


Leo Huberman era leitura obrigatória para minha geração e hoje não passa de autor desconhecido para a juventude com algum grama de rebeldia e compromisso político com o socialismo. Naquele tempo, quem não lia História da riqueza do homem ou História da riqueza dos Estados Unidos não participava da discussão nem tampouco tinha direito a opinar sobre o imperialismo ianque. Entretanto, há pouco (2017) descobri mais um valioso livro do autor que nos ajudou a analisar os Estados Unidos: Nós, o povo. A epopeia norte-americana. Uma potência imperialista nunca possui - por definição - um desenvolvimento endógeno e, em consequência, necessita sugar do mundo tudo que o processo de acumulação exige. Nesse livro, Leo exibe a verdade elementar de todo império de maneira clara e fica fácil perceber que os Estados Unidos necessitam da imigração permanente para fazer funcionar a máquina imperialista de produção de riqueza.

A propósito da convenção do Partido Democrata dos Estados Unidos concluída na quinta-feira, 22 de agosto, eu recordei o livro de Huberman, no momento em que os democratas consagraram Kamala Harris como candidata presidencial. Na prática, foi uma repetição da convenção que escolheu Barak Obama porque também há 16 anos, a orientação da convenção e do partido foi a reivindicação do "povo" (american people). Nada de identitarismo! Os discursos de Michele, Obama e Kamala foram a negação completa do beco identitário que alimentou Bernie Sanders quando o senador pelo pequeno estado de Vermont enfrentou Hillary Clinton e amargou uma derrota da qual jamais se recuperou. Um veranico, nada mais. Entretanto, se não funcionou nas primárias democratas, a reivindicação identitária representa um produto ideológico de exportação capaz de render aliados para a potência capitalista e, de fato, foi terrivelmente fecundo para a América Latina, um continente estratégico para a dominação imperialista.

Em seu discurso final, Kamala anunciou de forma inequívoca "o privilégio e orgulho de ser americana". Noutro trecho, recordando sua atividade como juíza, repetiu que em toda sua carreira "eu só tive um cliente, o povo"; depois, marcou novamente que "os americanos, sem distinção de gênero, raça e língua" são uma potência, para, em consequência, declarar a origem de pai e mãe nascidos em outros continentes como motivo para afirmar sua opção de alma; Kamala, de pai jamaicano e mãe indiana e Barak Obama, de pai queniano e mãe americana, representam em larga medida as origens do povo estadunidense: a força da imigração que segue sendo uma potência para a riqueza do império e turbina seu expansionismo no mundo. Ambos, cuja nomeação pelo Partido Democrata dista 16 anos, repetem a afirmação de algo essencial na sociedade gringa: a importância estratégica da imigração e o valor supremo do nacionalismo. Ninguém - rigorosamente ninguém - chegará à Casa Branca, se não for nacionalista de profunda convicção, embora americano de primeira geração. Entretanto, o nacionalismo gringo é invisível aos olhos latino-americanos porque a indústria cultural e a ideologia “from the United States” rechaça o nacionalismo de todos os demais povos como doença muito semelhante à lepra. 

A convenção democrata relegou a reinvindicação identitária para a esquina. Na prática, good bye indentitarismo!! A notícia ainda não chegou aqui entre outras razões porque o sistema de corrupção e cooptação via fundos medidos em milhares de dólares da Open Society, Fundação Ford, Fundação Rockefeller, Embaixada, sindicatos filiados a FLCIO e do próprio Partido Democrata - além é claro, do Departamento de Estado e das empresas multinacionais - segue jorrando. Não são cifras bilionárias mas para as condições de um país apoiado na superexploração da força de trabalho, bastam algumas centenas de dólares ou alguns poucos milhões para reunir um batalhão importante nas universidades, nos partidos, nos sindicatos e nos chamados "movimento sociais".   

A receita de Kamala, portanto, é a repetição da fórmula vitoriosa de Barak Obama. O primeiro negro na presidência dos EUA jamais flertou com o identitarismo desde seu primeiro mandato como senador; ao contrário, para chegar ao senado, derrotou sem piedade um antigo líder negro identitário. Na disputa presidencial, afirmava sem vacilação ou concessão o valor supremo de ser americano. Venceu duas presidenciais e ensinou a lição com tanta eficácia que obrigou os democratas a reescrever o programa do partido. Há coisas que não se dizem, se fazem, ensina uma antiga lição revisionista.  

Nos Estados Unidos, a força da ideologia nas condições de um país imperialista, consiste em afirmar o desafio de todo imigrante: tornar-se americano! No discurso democrata, é preciso agregar o horizonte da classe média, pois sem ela não se alcança a promessa do nível de consumo típico da sociedade opulenta. Aos deserdados, especialmente a pequena população negra (12,4% no Censo de 2021), restou a marginalidade e a invenção do identitarismo como forma específica de integração à ordem burguesa. Na medida em que a potência industrial estadunidense foi diminuindo por várias razões que aqui não posso enumerar, o Partido Democrata valorizou a agenda identitária, mas amargou derrotas eleitorais sucessivas para os republicanos, embora pudesse garantir alguns deputados e senadores para fazer maioria no Congresso. 

Em resumo, o identitarismo é mais do que nunca apenas um produto ideológico de exportação da potência imperialista que, entre nós, garante fidelidades políticas e nos divide profundamente. Não mais o povo brasileiro (Darcy Ribeiro) mas o "povo negro" (Abdias do Nascimento). Não mais a saga brasileira de João Ubaldo Ribeiro, mas a "diáspora africana" de Djamila. Não mais o povo novo, mas a valorização fictícia dos "ancestrais". No conjunto da obra, a reivindicação identitária não passa, nas condições nacionais, de um meio de mobilidade social num país marcado pela superexploração da força de trabalho. Entretanto, como em toda mobilidade social, a fórmula funciona para poucos e, num país dependente e subdesenvolvido, para pouquíssimos. Com uma boa dose de cinismo e outra de malabarismo acadêmico (anti-intelectual), pode simular alguma virtude política por um tempo, mas tem fôlego curto.   

No Brasil, a boa nova democrata foi transmitida ao vivo pela CNN em inglês (em trechos pela filial em português), mas ainda não alcançou a militância virtual dominante na esquerda liberal, especialmente aquela apegada à concepção parlamentar de política. Por aqui, a reivindicação identitária ainda fomenta fidelidade eleitoral porque o mercado de trabalho é uma vala interminável do sofrimento de milhões de brasileiros. Não obstante, está com os dias contados. Ademais, a força da direita ultra liberal conta com o identitarismo para seguir na toada da moral conservadora que simplesmente não pode ser vencida pelos apelos "tolerantes" da moral "progressista". Nada há de conservador no DNA brasileiro! Basta alguns átomos de lucidez para "valorizar a família, a moral, deus e os bons costumes" nessa selva terrível reservada aos trabalhadores. As instituições de uma miragem do estado de bem estar social se degradam sob o comando da esquerda liberal - Lula e seu governo petucano - razão suficiente para explicar o recurso de muitos trabalhadores aos deuses e à família. Elementar! 

As razões da crise identitária são inequívocas, embora ainda dissimuladas. Ao contrário de alguns anos atrás, já é possível ver as fissuras no interior desse mangue identitário e de maneira mais clara muita gente balbuciando nas redes digitais reparos aqui e ali ao identitarismo. No Rio, uma candidata a vereadora do PSOL afirma que "não basta ser mulher" é preciso ser "combativa". Logo ouviremos "não basta ser negro" e "não basta ser gay"... É um reconhecimento ainda molecular do fracasso de uma política que alimentou o liberalismo de esquerda como se a agenda identitária fosse uma espécie de antessala da consciência crítica e não a cristalização da consciência ingênua em favor da classe dominante. 

Em consequência, a agenda das "opressões" já não possui o antigo poder de sedução não somente por força da oposição da ultradireita, mas sobretudo pelo raquitismo do governo petucano e sua completa adesão ao programa ultraliberal mais do que visível no terceiro mandato de Lula. É óbvio que o distanciamento ainda tímido em relação ao identitarismo por parte de autodeclarados socialistas e comunistas ao simular o "desencanto" e, em outros casos, até mesmo enorme "surpresa" com a orientação "neoliberal" do governo Lula/Alckmin apenas começaram. De resto, os desavisados e oportunistas que apostaram suas fichas na defesa de Lula "contra o fascismo" (no primeiro ou no segundo turno da última disputa presidencial), agora reconhecem não somente o caráter filantrópico e impotente das políticas públicas mas o fomento do capitalismo dependente rentístico nas questões estratégicas de Estado por um governo supostamente eleito para fazer exatamente o contrário!

Ocorre que a crise terminal do identitarismo entre nós é medida - como quase tudo aqui - como expressão do resultado das urnas. O voto é o critério miseravelmente definitivo. Não importa que algumas "conquistas eleitorais" ocorram mesmo se a correlação de forças se apresente cada dia mais favorável à direita e o horizonte se revele terrível; mas se alguns mandatos garantem o espaço cinicamente chamado de "resistência", o identitarismo se justifica e ainda navega na tormenta como se não tivéssemos outra opção. A consciência e organização dos trabalhadores diminui - não importa - se um lugar no parlamento estiver assegurado. Ademais, a caça de "likes" e "views" com o consequente fomento das "tretas" eletrônicas ainda justificam o "debate" sobre as questões identitárias, mas não passam de reforço consciente ou não da ideologia burguesa importada dos EUA. 

Como anunciei há meses, a vitória eleitoral e ideológica da direita nas eleições municipais esta assegurada. Em quantidade de votos, tudo indica que sairá muito fortalecida e, talvez, com alguma folga; mas a vitória ideológica está igualmente garantida não somente porque não existe candidatura de esquerda com firmeza política e ideológica em nenhuma capital importante do país, mas porque o deboche e escracho contra o processo eleitoral, é eficaz para desacreditar as eleições ao mesmo tempo em que seus protagonistas lutam pelo voto!! O exemplo mais claro é um tal Pablo Marçal em São Paulo, a despeito de seu êxito ou fracasso eleitoral no próxima dia 6 de outubro. Portanto, a atuação de Marçal assinalada como "bizarra" ou mesmo "criminosa" pela esquerda liberal, não passa de uma declaração de impotência diante da ofensiva burguesa em curso desde 2018. Nesse contexto, a reivindicação de um "debate sério" sobre políticas públicas no processo eleitoral destinadas à melhoria do transporte, da saúde, da educação, da cultura, etc., é declaração de impotência e falta de leitura crítica do processo político em seu conjunto. Ora, quem pode realizar tantas promessas de melhoria senão apenas e exclusivamente aqueles municípios financiadas pelos royalties do petróleo? Ademais, no contexto do capitalismo dependente rentístico, quais as alternativas reais de uma gestão democrática da ordem burguesa em escala municipal? De resto, grande parte do "debate público" ocorre nas redes digitais, um suculento negócio que alterou radicalmente as normas legais de uma eleição considerada até ontem como expressão da democracia liberal.

Voltemos à convenção do Partido Democrata. 

Nos EUA, a convenção democrata recordou Huberman: o povo estadunidense se faz com "gente de fora". Não apenas os pais do Obama e Kamala, mas milhões de trabalhadores que fugindo do subdesenvolvimento e das guerras promovidas pelo imperialismo criam, com seu trabalho, submetido à alta taxa de exploração, a riqueza capitalista em favor dos monopólios. A contrapartida é a promessa de um green card e o reconhecimento de cidadania para todos aqueles que sabem por sofrimento que ninguém nasce americano, mas se torna americano. Logo, o sistema ideológico e a força das instituições (polícia, universidades, sistema de saúde etc.) os tornará cativos do nacionalismo estadunidense a ponto de recusar sua própria origem. Portanto, nada de apreço pela "diáspora" pois o elogio desmedido às origens é um bloqueio objetivo ao combustível da potência imperialista: o nacionalismo! Lá, como aqui, o lamento extemporâneo à diáspora e aos ancestrais, é artigo pra acadêmicos...

Obama declarou na convenção que os EUA não deveriam ser a polícia do mundo, mas Kamala não pode cultivar as bondades reservadas aos ex-presidentes e, de maneira lógica, anunciou que seu país possui a força armada "mais forte e letal" destinadas a enfrentar as ameaças desse mundo incerto. Em política externa, o acordo entre republicanos e democratas é mais do que visível pois ninguém brinca de ser imperialista no sistema capitalista. 

O Partido Democrata está mudando de pele para ficar com a mesma função no sistema político estadunidense. O discurso de Kamala afirmou que o interesse americano está "acima dos partidos" não somente para captar os republicanos descontentes com o domínio de Trump no tradicional adversário dos democratas, mas sobretudo para angariar a simpatia de milhões que desacreditam abertamente na "democracia americana". Ao espetar Trump, acusando-o de estar mais preocupado com sua riqueza e seus amigos do que com o povo americano, Kamala seguiu a orientação de Obama para quem o republicano "está focado no seu próprio interesse". O recado serve para Trump, mas também para os antigos interesses especiais (trabalhadores, latinos e negros), que, excluídos na administração Clinton, ganharam posteriormente espaço renovado via identitarismo. Porém, agora, precisam ser devidamente arquivados. Portanto, os temas dominantes na convenção do Partido e no discurso de Kamala foram a saúde pública, a escola, os baixos salários, o respeito aos direitos humanos - incluindo, os imigrantes que devem receber um tratamento "humano". O escritor mexicano Carlos Montemayor - autor de Guerra en el paraíso -, elucidou de maneira lapidar o segredo da xenofobia de Trump quando escreveu há muitos anos: nos Estados Unidos, a economia capitalista "necessita nosso trabalho, mas não nos querem!" Eis o núcleo racional da xenofobia que não se pode encontrar em questões culturais ou num racismo abstrato mas na economia política!

A troca de Biden por Kamala não assegura a vitória dos democratas, a despeito do entusiasmo da convenção embalada nas pesquisas de opinião iniciais e dos recordes de arrecadação de fundos milionários dos Super PACs. Entretanto, a redefinição programática do Partido Democrata já ocorreu na prática. O identitarismo se manterá um mero produto de exportação da indústria cultural estadunidense, com capacidade de cooptação por algum tempo de certos setores marginais no Brasil (e América Latina) em favor do imperialismo, mas seu poder de iludir já é uma peça de museu. A notícia chegará aqui com algum atraso não por força da enorme ignorância sobre as acirradas disputas eleitorais no interior da potência imperialista, mas em função dos limites ideológicos e políticos da esquerda liberal que aqui habita. Até lá, os reparos ao identitarismo e à sua cumplicidade objetiva com a opressão e exploração de milhões de trabalhadores na periferia capitalista se manifestará a conta-gotas. Mas sua queda no Brasil, sob outras circunstâncias e diante de outras exigências, é também inevitável. 

Revisão: Junia Zaidan