Mensagens

Dia de Agosto

Imagem
  Agosto foi um dia cinzento de setecentas e quarenta e quatro horas. De uma noite que aconteceu apenas na lentidão dos ponteiros, talvez em pronúncio, agosto não nasceu bonito. Chegou assombrado e varreu a claridade possível do dia. Em momentos de vida, a ausência de luz escurece-me também e transforma tudo em nevoeiro cerrado. Leva-me para um lugar pequeno. Deserto de muito, onde o pouco tem dificuldade em resistir. Um sítio onde sou outra coisa, bicho que arranca a sobrevivência da própria pele. Onde até o silêncio ganha dentes e morde. Agosto foi escuridão, unhas e pedras. Mas foi também pontas soltas de luz.  Duas pequeninas âncoras, em beleza subliminar. Uma para cada mão. Faróis de esperança para que nenhuma desista ou se perca da outra e eu consiga ver acima da linha do olhar. Saio deste dia como quem sai de uma estrada empoeirada, a sacudir o pó até à próxima curva e na incerteza do que estará para lá dela. Foram setecentas e quarenta e quatro longas horas e estou...

Aves perdidas

Imagem
Há aves assim, já feridas mesmo antes do primeiro voo.  Verdades pousadas em bando, conscientes de cada vez que uma asa se ergue para o seu propósito. Sombras que adiam a sua existência. Hoje sei o quanto se existe entre estas duas sombras. Corpo de ave ferida. Em consciência profunda de que afinal, enfrentar o céu, pode ser uma queda fatal. O quanto isso pesa em cada uma das asas. Uma dor aberta de cada lado, fora do sítio. Como se tudo ao contrário. Pelo avesso. E quando se quer cantar, só um grito esvazia o peito. Faca afiada, que rasga qualquer expectativa de melodia. Já não se sabe como ou para onde voar. Mas sem queda não há voo absoluto, nem certezas de asas. Apenas duas sombras em dor, abertas de cada lado, como gaiolas inúteis. Aves perdidas do lugar do seu voo.   Raquel Branco 2024 junho 14  

Recorte de céu

Imagem
Lembro-me de olhar o lugar de cada um no outro. Das conversas mudas, quando o corpo de um no corpo do outro. Ou de quando na distância de um batimento cardíaco. Melodia de um peito aceso.  Lembro-me de tudo. De quando passeávamos de mãos dadas, nos passadiços do verão, nas calçadas do inverno. Nos dias da vida intensa ou nos dias de horas apenas. A música em cada sorver de sol, triste em cada uivo de tempestade. Lembro-me de tudo. De olhar o céu que era só nosso de ver. Simples. A acontecer no mesmo tempo e medida em que acontecíamos também. Um pequeno recorte de azul visto de umas pequeninas águas furtadas. Só nosso de ver. Há coisas que sempre quis sentir apenas contigo. Talha dourada a emoldurar um pedaço de luz em tempos escuros de caos. Sonhos que o músculo do mundo nunca conseguiu desfazer. Pergunto-me se vias o mesmo que eu, quando deitados, lado a lado. Se o que eu via naquele recorte de céu era o mesmo que via nos teus olhos, enquanto uma mecha de cabelo se enrolava nos te...

Carta aberta

Imagem
Pai. Se a desilusão tivesse um nome, seria o teu. Ainda é o teu. Cinco anos depois, é ainda isto que dói cá dentro. A desilusão. Coisa triste que me percorre o sangue. Que envenena a memória e que lamenta tudo o que deveria ter sido, mas não foi. E o teu nome está em praticamente tudo o que defino por desilusão. Palavra (muito) pesada… Sabes, Pai. No sofrimento somos todos carne. Todos somos pele, ossos em revelação. A dor dá-nos a oportunidade de perceber que somos todos iguais. Definhamos, choramos, sentimos culpa, remorosos. Queremos abrir o coração. Dizer o que nunca dissemos. Pedir desculpa. Fazer ver aos outros o quanto errámos, o quanto outros erraram. Sermos duros! Dizer também do amor e do orgulho. Sermos leveza! Ego em abnegação. Peito aberto ao abraço, à mão que suporta. À resignação que, afinal, somos todos feitos da mesma matéria. Finita. E que quando o fim chega, é apenas a nudez total que levamos connosco.  Mas tu, nunca. Nunca te vi sozinho. Sempre te vi acompanhado...

Escuridão

Imagem
Densa, em dias magoados, a escuridão é inevitável. Impossível não a sentir nos golpes dolorosamente mais finos.  E com a força do querer, fechamos muito os olhos, para que ao abri-los, a inundação da claridade aconteça. Bálsamo cicatrizante.  Mas nem sempre assim o é.  E quando fechamos muito os olhos, o que acontece tantas vezes, é apenas a antecipação do escuro. E o escuro nem sempre é só a ausência de luz. Por vezes o escuro é tão brilhante que cega, lancina. Porque também dói. Porque também sangra. E lateja a cada respirar. Como um coágulo preso em cada veia. Que não cede e silenciosamente cresce, enquanto nos entretemos nos intervalos do tempo. Quando o medo é só mais uma palavra adormecida, à espera. E entre o espaço denso e escuro dos dias magoados, em que fechamos muito os olhos, em esperança, somos matéria por ser.  Indefinida. Sombra e luz, medo e coragem.  Vida em recomeço ou em mergulho de morte. Pergunto-me de que forma vamos sair desta vez. 

Por uma gota

Imagem
Talvez seja esta. A gota tão pequena quanto aparentemente inofensiva na sua queda. Tão subtil na sua dança descendente. Inconsciente do vento que a leva e da gravidade do seu impacto. Talvez seja esta a gota do momento. Aquela que cai e tudo transforma, num efeito de torrente, lamacento. Por vezes necessário para que a beleza possa finalmente brotar. A que faltava para criar uma nova maré que nenhuma margem consiga conter.  Talvez tenha sido esta. A gota. A derradeira. Aquela que manteve o charco desiquilibradamente húmido. Por muito tempo estagnado. Mas por fim choveu, sem saber que chovia em força. E com isso, pariu das entranhas do tempo uma nascente de imprevisibilidade. E uma nova consciência líquida gritou o seu lugar no mundo. Com uma gota só. Tão clara como só a água o sabe ser.

(In)existir

Imagem
Há dias assim. Dias apenas. Em que só existimos na pequena dimensão de inexistência. No escuro lado do esquecimento. O lado que tão bem nos conhece, numa fragilidade de ser. Ou num rasgo de luz, talvez. Na claridade que a sombra não consegue acompanhar. Em contra mão. Como se possível fosse passar entre os pingos do mundo, num dia de tempestade interior. De simplesmente ser na invisibilidade. Não sendo nada em lado nenhum.  (In)existir.