
Queríamos entregar-nos a uma experiência de voluntariado nesta nossa viagem onde o tempo nos deixa parar sem pressas. E a Índia, um país que nos enche os sentidos, tinha sido o eleito, de entre tantos outros que também visitáramos com janelas abertas para a pobreza.
Tínhamos reservado duas semanas para trabalhar com uma NGO e seguimos para Pushkar, uma cidade já nossa conhecida e que escolhemos para esta estadia prolongada.
Cidade sagrada estendida em torno de um lago, à porta do deserto, Pushkar ergue-se por entre mais de duzentos templos, com montes a toda a volta, esculpindo o "belo" neste lugar de peregrinação hindu. Berço do templo mais antigo de Bramha, o deus da criação, diz-se que, do lago da cidade, Bramha deu a forma ao mundo. E todos os dias, logo com a madrugada, corpos descem pelos ghats desta cidade de reflexos brancos, para um banho sagrado matinal que lhes purifica o espírito e os abençoa na criação desse novo dia.

Chegados a Pushkar sentimo-nos em casa, reconhecendo caras, sítios e paisagens. Um sorriso que cresceu nos nossos lábios por poder repetir destinos tão longe da nossa morada e revê-los como um bom velho amigo que não víamos há muito tempo. Uma pérola que claramente já foi descoberta pelo turismo mas que não deixa de maravilhar com a bruma especial com que se veste, com o pôr do sol que nos oferece dos ghats, com os terraços
with a view por todo o lado, com a tranquilidade que gravita em torno do lago e que ninguém ousa desrespeitar.
Depois de uma noite no luxuoso Pushkar Palace, para relembrar a nossa passagem pela
Camel Fair há dois anos atrás, instalámo-nos por duas semanas no Bharatpur Palace, bastante mais modesto, mas grandioso na vista sobre a cidade com quartos de janelas rasgadas para o nascer do sol sobre o lago.

Começando a nossa estadia em festa, com o João a fazer 30 anos em plena Índia e na nossa querida cidade, não nos demorámos a cruzar com a Fundação Fior di Loto. As crianças do sexo feminino são as que mais dificilmente têm acesso a uma escolaridade completa, pelo que esta fundação, à semelhança da Children International, apadrinha meninas de famílias pobres, para lhes garantir o acesso à escola e um futuro de formação. Deepu, um brahmin de Pushkar apaixonado pela vida, contou-nos como em dois anos conseguiram já inscrever 150 alunas na escola e como quer chegar a mil, com o projecto de uma escola da própria fundação a iniciar-se já no próximo ano. Paralelamente a esta actividade eles também apoiam a comunidade nómada que vive em tendas à entrada do deserto. Acesso à água pela construção de poços, cobertores para as noites frias a descoberto, roupa para as crianças vestirem, são algumas das ajudas desta fundação. E como nestas comunidades
gypsy a vida de casa às costas não lhes dá estabilidade para uma educação institucional, o apoio passou também por trazerem a escola às crianças.

Uma tenda montada nas areias áridas do deserto deu vida a uma sala de aula onde o Yoguesh, o professor, de segunda a sábado lhes ensina hindi, inglês e matemática. Com trinta a quarenta alunos, dos 2 aos 14 anos, a sala e o professor são um só, numa ginástica de ensino esforçada para tentar responder a cada um na sua individualidade de idade e compreensão. Apenas com a ajuda de voluntários podiam as aulas ser divididas e o ensino mais ajustado, pelo que nos juntámos à causa vestindo a camisola de professor, por duas semanas.

Meia hora a pé nos separava da escola, um percurso passeio por entre caminhos de areia que usávamos para ir planeando as aulas. Com quinze crianças cada um, estávamos entusiasmados com o desafio de ensinar crianças com um vocabulário tão limitado de inglês. Gina, Rakesh, Sara, Moorea, Lu nah, Sucia, Leela ... nomes que iríamos aprender depressa para nos aproximarmos deles. Meninos de olhar brilhante, éramos recebidos com grandes sorrisos e festa mal nos descobriam, vindo ao longe. Aqui, no meio do deserto, eles adoravam a escola, as duas horas de aulas onde recebiam atenção e as gozavam com a leveza de uma tarde de brincadeira. E tendo apenas duas semanas para poder deixar uma semente de inspiração, ao fim da primeira tarde tínhamos arranjado forma de memorizar as caras e nomes da nossa turma, conquistando-lhes um sorriso vindo de dentro por descobrirem que sabíamos quem eles eram. Nós, éramos a Pepa Madam e o Jo.
Queríamos ensinar-lhes a geografia do mundo, mergulhá-los na matemática, inspirá-los para uma profissão no futuro, mas percebemos na primeira aula que tínhamos de ir bem atrás. O Yogesh tinha-lhes dado as bases do abecedário e dos números, um trabalho de mérito para todas aquelas crianças em simultâneo e onde as nossas letras são uma realidade tão distinta dos seus caracteres hindi. Com uma disciplina exemplar eles cantarolavam a lenga-lenga das letras e números. A for apple, B for bee, .... mas quando lhes trocávamos a ordem criava-se o caos! Com a melodia baralhada perdiam-se nesse espaço abstracto de caracteres e algarismos e trocavam tudo. Um desafio para nós, recente professores, que se tornou numa aventura apaixonante. Cada um com a sua turma, uma de mais velhos e outra de mais novos, "ganhámos" quinze crianças para ensinar mais de próximo, com jogos inventados para lhes treinar o pensamento, desafiar o raciocínio e lhes dar auto confiança. As cores, as partes do corpo humano, os animais, as bases da soma e da subtracção, disciplinas que criámos com eles fazendo as horas passarem despercebidas à sombra daquela tenda no deserto. Ganhávamos o dia ao fim de cada aula, recompensados pela vontade e o esforço para aprender. "Me, me, me" diziam eles na hora dos exercícios. Duas horas que invariavelmente se esticavam para as três, com pedidos de trabalho de casa ou mais um exercício: "one more, just one more".

Uma ligação que foi crescendo, inocente e autêntica, e que foi pesando com o aproximar da despedida. Meninos do deserto, expostos precocemente à dureza da vida, estas crianças tinham uma doçura inesgotável. Sempre com a mesma roupinha, suja dia após dia, estas crianças não choravam, não barafustavam, não pediam coisas ... apenas pediam atenção. Queriam aprender e os seus olhos brilhavam a cada "very well" ou certo no caderno. Crianças sorridentes mas carentes. Filhos de músicos, dançarinas ou vendedores de artesanato, que ali estavam à entrada do deserto enquanto os pais se deslocavam à cidade para ganhar algum nas suas artes.

Com o último dia preparámos uma surpresa. No sábado anterior tínhamos tirado fotografias no final da aula. Cada um sentado na cadeira do professor, tinham vivido a excitação da fotografia de escola, alguns trazendo mesmo o caderno ou o lápis para serem captados pela objectiva. E nesse último dia tínhamos, para cada um, um diploma especial daquelas duas semanas de aulas. Uma cartolina preta, dobrada em dois, protegia as suas fotografias impressas, fixando cada um daqueles sorrisos encantadores. Com a ajuda do Yoguesh preparámos um exercício numa folha em branco, onde escreveram o nome, a idade, a sua cor preferida e o que gostariam de ser quando crescessem. Recolhidas as folhas, juntámos as turmas e chamámos um a um. De pé, cada um apresentou-se à turma, partilhando a sua cor preferida e o seu sonho de profissão. E depois juntávamos a folha à fotografia, uma espécie de inspiração para não se esquecerem dos seus sonhos de criança. Para alguns seria a sua primeira fotografia pelo que a receberam tão emocionados quanto nós. Futuros professores, polícias, médicos, actores, dançarinas e enfermeiras, músicos e engenheiros. Todos ali desfilaram no seu sonho de criança, uns querendo voar mais alto, outros ainda conduzidos pela tradição da família. Meninos do deserto, aprendemos com eles nas aulas, crescendo com a sua energia e com a felicidade inocente de quem não conhece vícios e tem tudo pela frente.
No nosso último adeus escondíamos a lágrima da saudade antecipada. Outros voluntários viriam e o Yoguesh continuaria sempre com eles. Mas nós já não estaríamos lá para os receber com o seu caderninho e lápis na mão, chamando Pepa e Jo do alto da duna. Com o destino por escrever estes pequenos sonhadores tinham pela frente a grande aventura de querer e lutar por voar mais longe. Uma aventura difícil na sua vida de casa às costas, essa vida de tradição gypsy. Mas alguns destes aventureiros tinham no brilho dos seus olhos o espírito de um vencedor. Gostaríamos de os ver vencer, gostaríamos de os acompanhar nessa aventura, gostaríamos de ficar ...
Mas a nossa viagem era outra e tínhamos de voltar. Deixávamos contudo um pouco de nós com estes Capitães da Areia, com todos e cada um deles que nos acenava lá do alto, à entrada do deserto.
Conhecam por aqui os nossos Capitaes da Areia ...