quinta-feira, 22 de outubro de 2020

TOMAR CONTA DA AMIZADE


Mesmo antes da quarentena, já andava isolado. O que não quer dizer que não sinta falta, ou deixe de me preocupar. É que sempre tive limitações e andei adquirindo outras novas. Aprendi também, no entanto, ao longo da jornada, que não precisamos estar no mesmo espaço para cuidar. Quando você pensa em alguém com carinho, uma onda de energia boa dá um jeito de chegar. Então, fico na minha, aqui em casa; tocando a vida, cuidando das crianças, das flores, dos bichos, lendo um pouco, meditando, escrevendo. Vira e mexe, penso, todavia: e fulana? Será que encontrou um cara legal? Está se alimentando direitinho? E fulano? Será que está pegando leve? E cicrano? Está conseguindo administrar o divórcio? E beltrano? Será que arranjou um trampo? E o pescador? Será que tem pegado bons peixes? Diga-me com quem tu andas e eu te direi. Meus amigos são tudo meio doido. Tem um, lá em Pira, que dividiu comigo um ovo frito. Se você ouvisse as conversas, ficaria abismado. Eu também não bato muito bem. Como disse Jidu: "não é sinal de saúde ser bem adaptado a uma sociedade profundamente doente". Há tardes de domingo em que coloco um som e penso em cada um deles com amor; em todas as barras e farras que enfrentamos juntos, e, tal e qual Coltrane, nesta hora sagrada, creio na canção como forma de cura. Se há um Deus nesse mundo, em tais momentos Ele se materializa no sorriso bobo que se forma no meu rosto e nessa vontade doida que sinto de abraçar cada um e nem precisar dizer: eu te amo. Que a vida nos toque com delicadeza

AMOR DE ÍNDIO


Acho que todo mundo fez coisas na vida das quais não se orgulha. Eu me casei aos quinze e me separei aos dezesseis. Seguiu-se uma época sombria, de álcool, drogas e loucuras. E, aí, quando a gente começa a gostar de verdade de alguém, fica com medo que a pessoa descubra as coisas feias que a gente já fez e deixe de gostar. A gente sente pena até de contar e ferir o outro. Há coisas, no entanto, que não tem como esconder. Faz alguns meses que encontrei esse menino. Ele me trata bem, toca tudo quanto é instrumento e até compõe um monte de músicas só pra mim. Só que eu fiz aquelas coisas e, por medo de que ele descobrisse, terminei várias vezes. Quase enlouqueci ele. Todo mundo fez coisas na vida das quais sente vergonha; só que, quando você conta a coisa feia que fez e o outro, em vez de julgar, abraça e acolhe você, aí então você fica gostando mais ainda. De um jeito que dá até vontade de gritar na janela. Eu sofri um exposed. Foi isso. Naqueles dias tristes, participei de um ménage que acabou caindo na rede. Depois daquilo, achei que nunca mais. Até que. A coisa mais difícil que já tive de fazer na vida foi contar. Recuei várias vezes. A voz simplesmente não saía. Quando, por fim, consegui falar, esperei que ele fosse embora sem olhar na minha cara: "E você tem vontade de repetir essas coisas?" Respondi que não. "Então esquece, a gente não vive no passado". E, como se o que eu tinha contado não tivesse a menor importância, pegou do violão, me deu a mão e a gente foi junto - de mãos dadas - ao trailer da praça pra cantar Legião Urbana e comer um cheese-tudo

VARRER UMA CASA


Hoje, quando varria a casa, não pude deixar de resmungar. Todos os dias, o mesmo trabalho. A cada manhã, a rotina bate forte. As crianças deixam as coisas espalhadas; bebem água e esquecem o copo sobre a pia. Difícil sim; mas, então, do nada, lembrei-me da alegria com que, pela primeira vez, varri este chão. Saíamos de uma casa de dois cômodos alugada. Por todo o piso, a cerâmica branquinha. O trabalho era o mesmo, mas quanta diferença! Cada filho agora teria seu quarto e eu limpei este mesmo chão com um senso de sublime gratidão. Emular aquele sentimento bastou para que a tarefa se tornasse mais leve. Olhei meus filhos adolescentes e saudáveis. Boas pessoas, pô! Coloquei uma canção pra tocar e realizei que isso de viver não é só sobre ganhar prêmios, ou vencer debates. A vida é também varrer o chão, regar as plantas, cuidar dos bichos, ver as crianças crescendo, fazer amor com quem a gente gosta. Não é necessário pintar o teto da capela Sistina, ou viajar para Marte. Não é necessário sequer escrever poemas. Qualquer atividade é veículo; linguagem propícia para dizer do quanto amamos. Como nada mudara por fora, mas eu era completamente outro por dentro, a filha se ofereceu para limpar o banheiro e meu menino perguntou:
- Ô pai, já cuidou dos bichos? Se não, deixa que eu cuido.
O trabalho não terminou. Nunca termina. Agora é hora de preparar o almoço, o qual se segue de uma pia de louça suja. Não há como fugir dessas tarefas. Mas, como tudo o que fazemos na vida, é mais fácil e fica melhor se a gente faz com amor.

O CULTO DA VOVÓ


Lembro que foi na época em que o Chorão morreu. Vovó e eu assistíamos às reportagens na tevê e eu pensava que não estava muito distante do mesmo destino. Como o músico, estava separado e metendo as ventas. Um pé no abismo e o outro na casca de banana. Era questão de tempo. A vó, vivida, comerciante, ganhava tudo: "Meu filho, por que tu não vem ao culto comigo? Pela última vez". Pela última vez, vó? A velha já dava o óbito como certo😲 De medo, resolvi. E fui. A velhinha se ajoelhou no banco e chorou. Segurando minha mão. Quando estamos desandados e não temos, as emoções ficam à flor. Uma vez chorei vendo uns cachorros cruzar. Mas, enfim, lá estávamos nós; na Igreja. Eu, todo fodido por dentro, com aquela sensação de culpa. E aí chegou essa outra velhinha. Pediu que me abaixasse e começou a orar na minha cabeça. Senti um arrepio. Ela rezava, gritava, dava uns tapas, falava em línguas e contou toda a minha vida: desde o dia em que levei uma pedrada na cabeça na terceira série até o dia em que pulei, loucão, de cima do viaduto da Vila Carrão. Eu era um cara cético; mas, naquele dia, senti a visita do Espírito Santo. E aceitei internação. E consegui parar. E, de lá pra cá, nunca mais. Pois bem, hoje estava com meus filhos, tomando café na casa da vó, e, nem sei o porquê, relembrei aquele dia e o milagre que se deu. A vó começou a gargalhar. Riu até engasgar, até perder o fôlego, até os óculos caírem no chão. E foi então que confessou: "Foi tudo armado, malandro, agora que você está firme no caminho do Senhor, posso confessar. Marialice é a professora de teatro da Igreja. Contei tudo e combinei com ela de te dar um choque. Psicologia de vendedor. Tinha certeza que ia funcionar. Tu tava doido pra comprar a salvação. Só dei um empurrãozinho". Pense num cabra com cara de tonto! As amigas da vovó chamaram no portão e nós fomos juntos. Estava na hora de deixar meus filhos. Fiquei olhando aquelas velhinhas sapecas batendo bengala rumo à Igreja e pensei que o Maior age mesmo de modos misteriosos. Mas, como a ferrugem nunca dorme e o Diabo quando não vem manda office-boy, ao entrar no carro, vi um pino fechado, inteirinho, perdido no vão do meio fio. Fechei a porta e acelerei.

ESCREVER PARA DECEPCIONAR

 ESCREVER PARA DECEPCIONAR. Para ir tanto contra os bons costumes, quanto contra o politicamente correto. Escrever para arrancar dos meus ombros as mãos daqueles que me dão tapinhas e dizem: "ele é um dos nossos!" Não sou um de vocês, tampouco sou um dos outros. Não tenho intenção de ofender, mas se ser quem sou ofende, então ofendam-se. É uma ofensa querer ser livre? Manifestar o que sente no fundo do coração? Todos têm a receita para os problemas do mundo. Todos nos querem parte da tribo, da igreja, do bando, da empresa, do partido. Posso até caminhar um pouco com a galera ao longo da jornada, mas não me esperem dizendo amém. Não me esperem seguindo ordens ou, pior ainda, dando-as. Nem no que chamam de amor vocês conseguem escapar desse jogo sujo entre dominador e dominado. Esses lados opostos engendram-se mutuamente, o que não quer dizer que sejam iguais. Fora de mim a hipocrisia, essa gente que posta sobre responsabilidade afetiva, mas engana o parceiro com o melhor amigo; que não come carne, mas sacaneia o colega de trabalho; que diz preservar a natureza, só que joga o entulho na rua. Eles são muito bons pra fiscalizar e apontar o dedo. Odeio juízes! Tampouco esperem que meu coração acompanhe os que visam o lucro, os que tratam a Terra sem o menor respeito, os canalhas que se acham superiores. Escrevo para decepcioná-los a todos: aos que me querem só dócil ou só revoltado. A vida não cabe nos seus esquemas. Os dias derrubam-se uns aos outros. Na vida, há a fúria do pai que teve a filha de cinco anos abusada; mas também a ternura entre os velhos jogando xadrez e partilhando a dor das enfermidades. Na vida, acontece a violência gratuita, mas também o amor sem porquê. Escrevo para decepcionar, porque as ideias são enrijecidas e a vida não acontece sem paradoxos. Escrevo para agredir, porque vocês me agridem diariamente, a cada instante, não dão folga, porra, repetindo sempre essa ladainha que não brotou aí, que ouviram em outra parte. Nos dias em que acordo de mau humor, tenho vontade de cortar-lhes os dedos e a língua. Escrever para sobreviver; porque o que fizemos do mundo me mata e, na palavra, encontro tanto vingança, quanto perdão.

SUPEREGO-CALIGARI

Eu engoli uma Alemanha

Há em mim uma coisa fria feito faca
Algo mórbido, sombrio, enrijecido
Ultraviolento e, ainda assim, delicado
Há toda uma Alemanha em mim
Florestas cheias de maus presságios
Onde feiticeiras trans emasculam homens dotados
E os lobos esperam vísceras em silêncio
Há em mim essa parcela gótica, romântica, visceral-gelada
Mora, mora em mim uma Alemanha
E nela cabem
A mulher barbada
O mago cornudo
A estrela vaudeville destinada ao suicídio
E eu sou também
Essa festa de carnaval em preto e branco
Essa compreensão intuitiva de Nietzsche, Heidegger, Schopenhauer
Caem sobre mim, quando anoiteço
Toda uma legião de anjos de Win Wenders
Bach, Beethoven, Pachelbel
Essa força que me castra como uma língua imposta, como um pai de Kafka
Todos os meus pesadelos são Auschwitz
Porque metade de mim é um general nazista,
Mas a outra metade, um menino judeu:
caramelo escondido no bolso para presentear a irmã mais nova

CÁLIX BENTO


O lago é a meditação da água. Ele, todavia, era inquieto; de modo que dirigir. Naquela manhã, no entanto, não podia libertar. Não curtia o ressentimento, nem por isto conseguia. Não se queria expor na prateleira. O que não significava que não quisesse ser. Lembrava o pai, pedreiro, que enchia o peito e sorria ao encerrar uma obra. "'É o melhor pedreiro de São Miguel, Itaim, Guaianases e região!" E a alegria da mãe quando elogiavam sua comida? Não era diferente do pai quando assentava um tijolo, ou da mãe quando picava a cebola em quadrados minúsculos. O zelo com o que fazia era o mesmo. Para tudo o mais - ganhar dinheiro, pagar contas, andar de ônibus, comprar pano de chão, assinar contrato - era inútil. Só sabia emendar palavras, mas precisava pagar. Alguém acenderia lâmpada para esconder embaixo da cama? Haveria ali alguma lâmpada de fato? Duvidava. Revoltava-se. Voltava a ser apenas humano. Fraco. Insatisfeito. Semi-mesquinho. Andava querendo acabar com tudo; só que o trânsito. No semáforo, uma velhinha com os dentes enferrujados, vendendo doce de abóbora em forma de coração, daqueles que já não se vêem por aí: "E o seu sorriso de menino? Quantas vezes se escondeu? É por conta, faz falta não, pega!" E era Deus ali, fantasiado de necessitada. Luz verde, o trânsito andando e a vida era isso aqui mesmo e não aquilo lá com o que sonhava. Sem cavar dualidade. Sem criar resistência ao que é. Seja feita a Vossa vontade. Torna, no entanto, nossa alma dócil, Senhor, de modo que sejamos macios ao nosso destino.
Ensina-nos a parar de doer