Etica Cultura de Paz LiaDiskin
Etica Cultura de Paz LiaDiskin
Etica Cultura de Paz LiaDiskin
Lia Diskin
Sobre este último tema, o Prof. Leonard Swidler ― teólogo cristão dedicado ao
diálogo inter-religioso ― desenvolve um estudo muito oportuno a respeito das
características da afirmação da realidade sustentadas na cultura ocidental até o
século XIX. Elas eram absolutas, estáticas e excludentes, provocando durante séculos
a depreciação da produção espiritual, científica, filosófica e cultural do resto da
humanidade. A apropriação do critério de verdade criou domínios de ações imperativas
que moldaram o gênio criativo de gerações inteiras.
Pesquisas sobre comportamento animal realizadas pelo Prof. Tinbergen2 mostram que
certas espécies guardam “lembranças” de até três gerações anteriores, sem estarem
submetidas aos mesmos estímulos. Uma das experiências mais curiosas foi realizada
num galinheiro que era atacado freqüentemente por gaviões. Os ovos foram retirados
e transportados para outra região onde não havia esse tipo de predador. Quando a
nova geração, nascida desses ovos, deu origem a outros ovos, estes foram levados para
um terceiro espaço. Poucos dias depois de nascerem, os pesquisadores fizeram passar
por cima do galinheiro um falcão de madeira preso à ponta de um arame. Os pintinhos,
iguais a seus “avós”, reagiram aterrorizados como se o falcão fosse verdadeiro; o
mesmo não acontecia quando a imagem era de uma gaivota, um pato, uma garça ou uma
pomba.
Não podemos concluir que o mesmo se passa com todas as espécies animais, menos
ainda com a humana, porém já dispomos de trabalhos muito interessantes na área da
Etologia, Psicologia e Neurobiologia que nos falam de um “mecanismo liberador inato” –
estrutura herdada do sistema nervoso que predispõe a reação de um animal diante de
uma situação nunca vivida antes ─ um “inconsciente coletivo”, de “campos
morfogenéticos”, de “padrões culturais de comportamento”. Em outras áreas do
conhecimento, as contribuições de Teilhard de Chardin e Jean Gebser têm sido
igualmente estimulantes.
Entretanto, essa continuidade ancestral no universo das relações interpessoais e
institucionais parece estar sofrendo uma ruptura, uma subversão que organiza a vida
privada e pública presentes de um modo nunca antes experimentado pela humanidade.
Essa situação radical, nós a encontramos na habilidade das gerações mais novas para
usar ferramentas, tecnologias e saberes que não estiveram disponíveis na formação
dos que hoje são adultos. O depoimento do Prof. Lord James, graduado em Química na
Universidade de Oxford e antigo vice-chanceler da Universidade de Nova York, é um
exemplo disso. Ao analisar as questões de Química propostas nas provas e exames da
universidade onde se formou, ele disse: “Concluí que não apenas sou incapaz de
resolvê-las, mas que jamais fui capaz de resolvê-las, porque pelo menos dois terços
dessas questões envolvem conhecimentos que simplesmente não existiam quando eu me
graduei”.3
Os conceitos, como tudo o que é gerado pelo homem, têm história -- movem-se no
tempo adquirindo as feições que lhes empresta a dinâmica cultural e social. O termo
ética não é uma exceção; nasce em solo grego, entre os pré-socráticos, especialmente
em Homero e Hesíodo, e tem o sentido de “morada, hábitat, toca de animais”. O termo
êthos (com eta inicial) faz referência a uma espacialidade física mensurável, com três
características bem definidas: a) a sobrevivência está garantida pelas condições
naturais que constituem o entorno do organismo; b) a ameaça à existência por parte
de predadores está atenuada, e c) há possibilidades de conforto, segurança e
familiaridade com seus pares.
A metáfora contemporânea desse conceito pode ser vista no filme ET, que gira em
torno da insistência do personagem principal em “voltar para casa”, reencontrar-se
com as suas referências, com aquilo que lhe é familiar e natural, onde sua própria vida
pode achar significado e direção. O motivo da terra-mãe, espaço sagrado ou paraíso,
está presente na vitalidade de todas as culturas, seja através de mitos, lendas,
contos, ritos ou mesmo das diferentes terapias contemporâneas.
É com Aristóteles que essa espacialidade deixa de ser física para tornar-se uma
disposição interna dos humanos, passando a significar “caráter, índole, hábito,
natureza, costume” (ethos, com épsilon inicial). Essa transposição corresponde à
mudança de foco das próprias investigações filosóficas daquele tempo: enquanto os
primeiros pensadores gregos tinham por objetivo compreender a origem do Universo a
partir da sua constituição material ou dos seus elementos ― afastando-se das
explicações mitológicas de seus predecessores ― de Sócrates em diante as questões
relevantes giram em torno da alma, do conhecimento, da beleza e da justiça.
Para Aristóteles, o caráter, a natureza ou índole humanos, visam o bem, “toda arte e
toda investigação e todo ato e todo propósito parecem ter em mira um bem; por isso
definem o bem como aquilo a que todos aspiram”, diz na sua Ética a Nicômaco, e
acrescenta: “De todos os bens, a felicidade é o supremo.” A consolidação de hábitos e
disposição do caráter devem ter por objetivo o bem comum, o que implica ir além da
simples satisfação de impulsos e desejos auto-referendados. Essa prática sobre
assuntos públicos teve lugar na Ágora da polis grega, no conviver democrático, no
exercício popular de legitimar o diferente. E é lá, na praça e no mercado, que a
disposição interna para o bem adquire seu ideal vivente na figura do sábio ― único
digno de admiração e imitação. A educação, então, será o instrumento por excelência
para atingir esse modelo de ação prudente, justa e bela.
O termo ética continua transitando, e chega ao mundo romano onde é traduzido pela
expressão latina mor-mores: “costume, norma de conduta, hábito”. Contudo, o ideal a
ser emulado já não é o do sábio, mas o do legionário e do jurisconsulto, que conquistam
espaços e poder na concretude da terra, não mais na fluidez do espírito. Aqui cabe
lembrar a advertência do Prof. Raimon Panikkar4 quanto a traduzir termos de uma
língua ou cultura para outra; a linguagem está profundamente enraizada no espaço-
tempo de uma comunidade, ela tem a ver com a topografia, o clima, o entorno imediato
que se apresenta aos sentidos de um observador, e igualmente com a tradição que se
desenvolveu nessa espacialidade particular. O que podemos fazer, diz Panikkar, é
assinalar homeomorfismos (homeo = semelhante, morfo = forma), isto é, termos com
funções aproximativas, mas não idênticas, pois não conseguem esgotar a significância
conceitual que eles tinham no seu solo natal.
Assim sendo, apoiados na história, podemos afirmar que, enquanto o ethos indica algo
que se constrói, educa, pratica e conquista pela ação conjunta do indivíduo e seu
entorno, o mor-mores revela um sentido normativo, vertical, autoritário, que pede
obediência e uniformidade. No primeiro, deparamo-nos com um sistema aberto, que
pressupõe uma dinâmica criativa de aprendizagem e adaptação às circunstâncias reais
e imprevisíveis do cotidiano. No segundo, com um sistema fechado, no qual as
respostas já estão prontas e independem das novas informações que possam chegar ao
indivíduo e sua comunidade. Aqui não há retro-alimentação, apenas repetição e
confirmação do já sabido.
Hoje não é possível falar-se em ética sem fazer referência à teoria dos valores, e, ao
abordá-la, teremos de fazê-lo da maneira mais isenta em termos globais, sem excluir
ou desconsiderar o repertório particular de cada cultura, etnia, comunidade ou credo.
Como muito bem assinala o filósofo peruano David Sobrevilla7 acerca dos pré-
requisitos para qualquer proposta de uma ética universal: 1) ela não deve ser
etnocêntrica; 2) não deve apoiar-se em verdades superiores, mas em razões que se
possam expor e debater, e 3) não deve referir-se apenas aos seres humanos, deve
contemplar também a natureza.
É nos séculos XIX e XX que surge a teoria dos valores como disciplina filosófica
autônoma. Entre os inúmeros trabalhos nessa área, cabe destacar o do Prof. Miguel
Reale, que abre uma corrente denominada “historicismo axiológico”, onde os termos
cultura, história e axiologia estão profundamente imbricados pois, como ele diz, “os
valores são fruto das diferentes projeções do espírito humano sobre a natureza,
desenvolvendo-se e manifestando-se ao longo da história.8
E AGORA, JOSÉ?
• A passagem de uma ciência sem ética para uma ciência eticamente responsável.
• A passagem de uma tecnocracia que domina as pessoas para uma tecnologia que
serve à humanidade das pessoas.
• A passagem de uma indústria que destrói o meio ambiente para uma indústria que
promove os verdadeiros interesses e necessidades das pessoas, em harmonia com
a natureza.
• A passagem de uma democracia formalmente de direito para uma democracia
vivida, na qual liberdade e justiça estão reconciliadas.
Estas podem ser boas pistas pelas quais nortear a geração de novos conhecimentos ―
matrizes de novos comportamentos. Uma ética genuinamente universal talvez seja a
maior tarefa que temos pela frente. Ela exigirá toda a nossa humildade e
solidariedade porque, como na história das duas crianças que brincam na floresta,
todos nós somos um pouco “cegos” e igualmente “pernetas”. Exigirá, sobretudo,
disposição para abrirmos mão da pretensa possessão da verdade, justificadora do
controle, da imposição e até da eliminação dos que não se submetem a ela.
Sabemos que uma tal ética não nasce mediante a simples declaração de intenções. Ela
é fruto ― como diz o Prof. Maturana ― de uma “rede de conversações consensuais em
convivência” que carrega anseios coletivos, sonhos acalentados de crescimento e
confirmação. Mas também sabemos, ou “sentimos”, que essa ética universal já está em
gestação, não só nos cérebros privilegiados de artistas e acadêmicos, ela está numa
nova Ágora -- na internet, no seio das famílias, das organizações, das comunidades
aprendentes; nas ruas, nas feiras e nos bairros. Nos gestos de responsabilidade
coletiva dos empresários, dos centros comunitários, das agremiações, das
universidades e, até, das religiões.
Lia Diskin
Co-fundadora da Associação Palas Athena
Coordenadora do Comitê Paulista para a Década da Cultura de Paz
Sócio-fundadora da Rede Gandhi
Notas
1. Swidler, Leonard, O Sentido da Vida: No limiar do terceiro milênio; São Paulo, Editora
Paulus, 1996, p.73.
2. Tinbergen, N., The Study of lnstinct; Londres, Oxford University Press, 1951, pp.7-10.
3. Citado em Pike, Graham e David Selby, Educação Global: O aprendizado global; São Paulo,
Editora Textonovo, 1999, vol. 1, p. 104.
4. La Experiência Filosófica de Ia India; Madrid, Editorial Trotta, 1997, Introdução.
5. Entre as várias obras de Hannah Arendt já traduzidas ao português, recomendamos a
leitura de: As Origens do Totalitarismo e A Vida do Espírito.
6. Cornford, Francis M., De la Religión a Ia Filosofia; Barcelona, Editorial Ariel, 1984, p.62.
7. Sobrevilla, David et al., Ética y Diversidad Cultural; México, Fondo de Cultura Económica,
1993, p.69.
8. Mateos Garcia, Angeles, A Teoria dos Valores de Miguel Reale; São Paulo, Editora Saraiva,
1999.
9. Kung, Hans, Projeto de Ética Mundial; São Paulo, Edições Paulinas, 1992.
10. Freire, P., “Año Mundial de la Paz”, El Correo de la UNESCO, dezembro de 1986.
11. Todos eles se encontram, na íntegra e em português, no site do Comitê Paulista para a
Década da Cultura de Paz, coordenado pela Associação Palas Athena em parceria com a
UNESCO. www.comitepaz.org.br