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Karmatopia: Uma viagem à Índia
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Karmatopia: Uma viagem à Índia
E-book309 páginas5 horas

Karmatopia: Uma viagem à Índia

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Sobre este e-book

Instigada pelas ideias que se vende sobre a Índia, a autora Karla Monteiro deixou a vida confortável e bem-sucedida como jornalista e partiu numa viagem de descobertas. Pediu demissão, assinou o contrato com a editora e passou cerca de 6 meses presenciando essa cultura tão diferente da brasileira. Mais do que um livro sobre a Índia, Karmatopia é um livro de estrada, sobre o consumo de uma ideia sobre um país; prende o leitor do início ao fim, através de uma escrita de reportagem empolgante e reveladora.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de jul. de 2014
ISBN9788520012499
Karmatopia: Uma viagem à Índia

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    Karmatopia - Karla Monteiro

    1ª edição

    Rio de Janeiro

    2014

    Copyright © Karla Monteiro, 2014

    Projeto gráfico de capa e miolo da versão impressa:

    Rafael Nobre/Babilonia Cultura Editorial

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    M777k

    Monteiro, Karla

    Karmatopia [recurso eletrônico] : uma viagem à Índia / Karla Monteiro. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2014.

    recurso digital

    Formato: ePub

    Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions

    Modo de acesso: World Wide Web

    Sumário, posfácio

    ISBN 978-85-200-1249-9 (recurso eletrônico)

    1. Índia - Descrições e viagens. 2. Memória. 3. Livros eletrônicos. I. Título.

    14-13191

    CDD: 915.4

    CDU: 913(540)

    Todos os direitos reservados. É proibido reproduzir, armazenar ou transmitir partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

    Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

    Direitos desta edição adquiridos

    EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Um selo da EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA.

    Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380

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    mdireto@record.com.br ou (21) 2585-2002.

    Produzido no Brasil

    2014

    Chamou-a utopia, voz grega cujo significado é não existe tal lugar.

    FRANCISCO DE QUEVEDO

    Para Domingos, Marcus e Rita.

    Sumário

    Capa

    Rosto

    Créditos

    Epígrafe

    Dedicatória

    Nevoeiro

    O começo e o fim do mundo

    Bom dia, Índia

    Planeta Osho

    O encontro

    O sadhu e o chimarrão

    Domingo

    On the way to Goa

    Iniciação na prática do nada

    O último hippie

    Rolf

    Pedágio no inferno

    A terra do dalai

    Gueshe Lhakdor

    O caminho de Marcel

    O farfalhar das asas

    Jimi Neal

    Hotel Tibet

    Tenzin Palmo

    O casamento

    O inimigo mora na cabeça

    Capital da karmatopia

    A mulher de branco

    Prem Baba

    Dr. Arora

    I love Varanasi

    Professor Ravi Ravindra

    C’est la vie

    Menaka Desikachar

    A marcha do som

    St-Tropindia

    Vida simples

    A casa do amor

    A última estação

    B. N. S. Iyengar

    Depois do nevoeiro

    Posfácio

    Colofon

    Saiba mais

    Nevoeiro

    Uma massa branca cobria tudo. O morro Dois Irmãos, a pedra da Gávea — o Rio de Janeiro desaparecendo —, os contornos que me faziam identificar a cidade não estavam lá. Só o cheiro da maresia e o barulho do mar quebrando violento na pedra do Arpoador envolta em bruma para me lembrar que, sim, estava em casa.

    Vivia no Rio havia cinco anos. E isso era uma espécie de recorde pessoal, conquistado com esforço de atleta. Havia feito uma promessa a mim mesma, no dia em que cheguei à cidade: persistiria. Naquela tarde fosca, porém, senti que a cidade que me seduzira a permanecer estava me traindo. O Rio só fazia sentido sob o sol.

    Minha pele estava amarelada, sem vontade. Os cabelos, castanhos e finos, haviam se emaranhado, formando alguns pequeninos dreadlocks espontâneos. Há muito não ousava penteá-los. Esquecera-me deles por completo e eles, por despeito, assumiram a aparência de um jardim abandonado. O corpo, outrora rijo e alongado, se conformava com uma barriguinha discreta. Sozinha na areia, de biquíni sob o moletom puído nos punhos, me olhei no espelhinho do batom. Fiquei feliz com a imagem. Pela primeira vez, estava me enxergando.

    As luzes da cidade apagavam o mistério quando voltei para casa, um apartamento pequeno, aconchegante, com uma vista que nunca me deixava esquecer a opção de estar no Rio. Da janela, quase pousado sobre a minha cabeça, via o Cristo. Ao abrir a porta, cumpri o ritual de sempre. Acendi a luz do corredor, atravessei a sala na penumbra, abri a persiana e olhei para cima. O Cristo tinha sido engolido pelo nevoeiro.

    A tela do computador brilhava no escritório. No dia seguinte, precisava entregar o perfil de uma celebridade para a capa de uma revista feminina. Fiquei em frente ao computador, sem cogitar acender a luminária, olhando... Digitei: Os lábios carnudos de G. movem-se sem parar. Deletei. Tentei de novo: G. chegou esbaforida ao restaurante, pediu uma água mineral e começou a falar sobre a sua trajetória de Cinderela. Deletei.

    Se conseguisse escrever o texto de 6 mil caracteres sobre G., atingiria a marca de cinco perfis para revistas diferentes sobre a mesma atriz. Carregava a impressão, aliás, de que vinha entrevistando a mesma pessoa a vida inteira. De vez em quando, conseguia publicar um texto ou outro que me agradava, dava orgulho. Mas na maior parte do tempo, porém, escrevia sobre a vida de G.

    Acendi um cigarro. Havia parado de fumar havia três semanas e quatro dias. O que poderia dizer sobre G. que já não tinha dito nos quatro perfis anteriores? Pensei em mandar um e-mail para o editor: Minha avó morreu e parto hoje para Minas. Mas não podia fazer isso.

    A chaleira repousava sob o fogão, com o resto do café preparado pela manhã. A pia estava lotada de louça suja. O saco de pão de linhaça dormia aberto sobre a mesa. A manteiga tinha desmoronado. Tentei pensar em G., enquanto a chama dourada requentava o meu café. Meu pensamento voou para o último ex-namorado, um catalão que conhecera no Arpoador ensolarado. A relação começou com promessas de uma vida de aventuras. Atingiu o cume da paixão durante umas férias no Mediterrâneo. O catalão era velejador. Terminou com um e-mail. O café estava com gosto de passado. Voltei para o computador e escrevi o texto, numa golfada automática. Saiu tão velho quanto o café. Apertei: Enviar.

    A cama amarfanhada, tomada por seis travesseiros. Sem tomar banho para tirar o sal do corpo, me acomodei, fechei os olhos, não dormi. Levantei, tomei três gotinhas de Rivotril, voltei para a cama e, mais uma vez, não dormi.

    Os pensamentos ganharam velocidade, robustez. Não estava deprimida. Havia superado essa fase. Comprara um apartamento num dos melhores bairros do Rio. Consolidara a carreira. Pelo menos, jamais me faltava trabalho. Bons amigos, uma vida social com pulseirinha VIP. Não estava infeliz. Nem feliz. Pulei da cama, voltei à tela do computador, abri o site da British Airways: Rio-Londres-Bombaim. Marquei a data de volta para seis meses depois.

    O começo e o fim do mundo

    Pensei numa frase do Thoureau. Ela me pareceu tão minha: Se eu não for eu mesmo, quem o será por mim?

    Só um haxixe bom, macio, que se quebra nas pontas dos dedos, do tipo que não precisa esquentar para derreter, me leva ao delírio filosófico. No estado normal, sou normal. Ridicularmente prosaica. Eu devia fumar mais. Quem sabe não me baixaria um Sartre, um Proust, um Joyce, um Rimbaud? Improvável. E eu fumo todos os dias. O problema é que, na maioria das vezes, o haxixe só me conduz à geladeira.

    Por que estou indo para a Índia? Não sei. Já estive por lá duas outras vezes. E a fome não me foi saciada. Talvez porque lá estejam os desarvorados. Talvez porque lá a fome dos homens se mostre como tripas expostas. Talvez porque eu precise sempre ir para outro lugar. E a Índia é o lugar mais longe de mim — ou mais perto. Ou talvez pela soma disso tudo. Não adianta: não vou virar filósofa agora, aqui, nesse frio do cão.

    Meu corpo tirita, chicoteado pelo vento outonal inglês. Há quanto tempo eu estou parada nesse lugar? Minutos, horas, dias, semanas. Na cabine telefônica em que me escoro, um junky dorme seu sono opiáceo. Será que ele vai acordar? Vai tomar um banho? Vai cuidar das feridas dos braços, do pescoço? Frio dos infernos. Como os britânicos suportam tanto cinza? Concentra: estou parada nessa calçada, congelando, pensando todo tipo de merda, esperando o ônibus para o aeroporto de Heathrow. Emma, minha comadre, acabara de me abandonar aqui, com essa mochila nas costas e a minha passagem para Bombaim. Ou Mumbai? Por que os indianos mudam os nomes das cidades? E a porra desse ônibus que não chega?

    Brighton, meu doce exílio! Entre tantos vagabundos e neo-hippies e velhos hippies, eu pude — muitas vezes, repetidas vezes — ser aqui qualquer coisa que eu quis ser, embora não tivesse a intenção de ser coisa alguma. Brighton foi — Brighton é — minhas férias do mundo. Todas as vezes em que eu me enchi das redações dos jornais, das revistas, corri para cá. Já corri para outros lugares, é verdade. Mas em nenhum lugar pude me vestir de fada e andar pelas ruas. Em Brighton, sim. Teve uma época em que cismei que era uma fada. Tinha até umas orelhas pontudas de borracha, perfeitas, cor da pele, para compor o figurino. E houve a fase Anaïs Nin, em que eu botava uma pena na testa, presa com uma tiara de falsos brilhantes.

    Brighton! Não é uma cidade grande. Nem pequena. Linda, recortada por ruelas estreitas, adornada pelo Royal Pavilion, banhada pelo canal da Mancha, sonorizada pelas gaivotas. O ponto dos ônibus para o aeroporto fica bem no centro, no Pool Valley. Quantas vezes já vivi a mesma cena: parada, batendo queixo, mal agasalhada, chapada, esperando o ônibus para Heathrow, no Pool Valley.

    O ônibus da National Express que não aparece. A infalível National Express. Ou a Emma se livrou de mim muito cedo ou a Inglaterra não é mais a Inglaterra, pois ônibus da National Express não atrasa. O junky acorda, levanta a cabeça, olha para mim como se eu fosse um ET, empurra a porta da cabine vermelha e me pede um cigarro. Não dou. Mudo de calçada. Uma coisa está esquisita. Muito esquisita. Eu sempre quero ir. Mesmo que o destino seja pior do que o lugar onde estou, eu quero ir. Mas, dessa vez, não quero. Estou com medo. Não quero pegar o ônibus, apesar da aflição para que ele chegue logo. E foi, a essa altura, que eu vi uma mulher. Vestia um sári de seda azul. Na narina direita, um rubi. Nas orelhas, ouro. Não havia orelhas. Apenas ouro. No pescoço, mais ouro. Caminhou na minha direção, arrastando uma valise Louis Vuitton. Sem pressa, com o recato e a altivez das mulheres indianas.

    Assim, nessa exaltação do espírito, nessa inquietação, nesse colóquio comigo mesma, eu me encontrava desde o minuto em que abri os olhos e me dei conta de que, naquela noite, eu embarcaria para uma temporada de seis meses na Índia. Não, não era o efeito do haxixe. Era o efeito Índia. Sou dada a diálogos internos obsessivos. Mas, naquele dia sem cor de setembro, a coisa ficou feia.

    De manhã, sentada em frente ao meu prato de ovos mexidos com bacon, sorvendo uma xícara espantosamente grande de café preto, comecei a fazer o inventário das desgraças que me aguardavam. Eu, certamente, enfrentaria agonizantes diarreias. Num país com noções medievais de higiene, que não possui água tratada, a caganeira é um suvenir. O meu computador, novinho em folha, não resistiria muito tempo. Como eu escreveria o bendito livro? Na Índia, a eletricidade é cortada várias vezes ao dia, todo santo dia. O vaivém da luz escangalha os nervos até dos aparelhos eletrônicos. E o pior: pelos próximos 180 dias, eu não teria direito a privacidade, silêncio, essas coisas que nós, ocidentais, prezamos tanto. Não há espaço para esses luxos num lugar onde 1,2 bilhão de almas sobrevivem aos solavancos.

    Emma me chamou para dar uma volta nas lanes, um emaranhado de ruelas charmosas no centro de Brighton, onde outrora fui tão feliz, atrás de balcões de pubs, servindo mesas nos cafés, livre dos deadlines. Além de obsessiva, eu também estava nostálgica e melancólica. Tão melancólica quanto a tempestade que se anunciava, mas não caía. Repeti para Emma a frase que eu havia lido antes de dormir em O tigre branco, livro do Aravind Adiga: Veja só: os muçulmanos têm um Deus. Os cristãos têm três. E nós, os hindus, temos 36.000.000. O que dá um total de 36.000.004 sacos divinos para puxar. Estava intrigada com aquilo: 36.000.000? Será mesmo?

    Estacionamos no Tesco, caminhamos até a Sidney Street e fomos tomar cappuccino no Guaraná Bar, o café mais new age de todos os cafés new age de Brighton. Quase chorei. Os melhores anos da minha vida, anos que não voltarão jamais, passei trabalhando ali. Tomei três cappuccinos, que, somados ao café preto de antes, elevaram o nível de cafeína no meu sangue ao limite da overdose.

    O mais insuportável na Índia, e ao mesmo tempo o mais divertido, seria, pensei, o trânsito. O trânsito inglês não tinha graça nenhuma, aquela educação insossa, que não te permitia pôr a cabeça para fora da janela e soltar um libertador filho da puta. Na Índia, não. O trânsito equivalia a uma aventura. Uma aventura non-stop, frenética, radical, inesquecível. O trânsito indiano não podia nem mesmo receber a alcunha de trânsito. Transbordava o limite do que chamamos de trânsito. Não, não existia nome para aquilo, para aquela massa densa que se locomovia, ao mesmo tempo, em todas as direções, sem atentar para a invenção de mão e contramão.

    As ruas mal pavimentadas e malcheirosas, sem calçada, comportam, controlados apenas na buzina, diferentes espécies de rodantes: riquixás, autorriquixás (também chamados de tuk-tuk, um carrinho de três rodas que pula que nem mula xucra), bicicletas, motos, carros novos, carros velhos, caminhões enfeitados para a Marquês de Sapucaí, pedestres e vacas. Tantas vacas que o trânsito indiano talvez pudesse ser chamado de rebanho. E, em alguns lugares do país, somam-se elefantes, camelos e búfalos. O estouro da boiada, era isso o trânsito da Índia, levando-se em conta um espaço físico limitado e bois por todos os lados, mugindo loucamente.

    Na primeira viagem, alimentei um ódio assassino aos motoristas de autorriquixá. Já me aproximava deles com disposição para a briga. Os dentes vermelhos, manchados pelo paan, uma coisa que mascam e cospem o tempo inteiro, me irritavam. Eles não falavam inglês e, sim indoglês, um inglês desfigurado, composto de palavras-chave. Tornei-me fluente no indoglês. Era capaz de passar horas discutindo os preços das corridas. Obviamente, eu sempre saía perdendo, pois quem estava naquela guerra profissionalmente não se deixaria vencer no jogo da barganha, o esporte nacional. Uma das cenas mais impressionantes que vi na Índia foi em Nova Déli. Sentei-me na calçada para assistir. Um israelense de dreadlocks e um hindu de turbante chegaram à minúcia de negociar centavos de rupias, que nem valor econômico tinha fora da Índia. Invejei aquele judeu.

    Com a energia turbinada pela cafeína, eu precisava caminhar. Poderia ir para a Índia a pé. Mas fui só até a livraria da Church Square comprar um livro. Emma ficou me esperando nas lanes. Ela odiava a Church Square. Achava muito caótica. Convenhamos, minha amiga não exibiu muita sensibilidade ao dizer aquilo para alguém que estava indo para Bombaim. Eu não sabia que livro queria ler na viagem. Demorei quase uma hora, indo da seção de best-sellers à seção de clássicos para em seguida voltar para a seção de best-sellers. Por um triz não parei na seção de autoajuda. Eu bem que estava precisando. Um livro pulou da estante: O lobo da estepe, de Hermann Hesse. Se eu pudesse escolher um livro para ter escrito, escolheria O lobo da estepe. Comprei e, feliz, saboreando o meu instante de felicidade, fui procurar um banheiro para fazer xixi. A cafeína tinha que sair por algum lugar.

    Não digo que foi um ataque de pânico porque não sei como é um ataque de pânico. Mas eu me lembrei deles, dos banheiros indianos. E assim que me lembrei dos banheiros, eles subiram para o topo do meu inventário de desgraças. Mesmo nos hotéis menos ruins ou nos restaurantes não tão ordinários, os banheiros eram pavorosos: cagados, mijados, sem água nas torneiras ou com água pingando para todos os lados. E nunca, nunca, havia papel higiênico. Não que não houvesse papel higiênico na Índia. O problema é que nunca estava à mão quando você mais precisava. A primeira vez que frequentei um banheiro indiano representou uma mudança de paradigma na minha relação com excrementos, incluindo os meus.

    Tinha chegado naquele dia e fui a um restaurante no terraço de uma pensão de Paharganj, uma região perto da estação central de Nova Déli, onde os viajantes low-budget estacionam as mochilas em pensões low-budget. O restaurante era bem simpático. Sentada nas mesinhas do terraço, pude curtir com certa distância a música das buzinas que não cessavam, uma cacofonia tão ensurdecedora que, se não parasse um pouco para prestar atenção, você simplesmente deixava de ouvir. Nunca entendi por que os indianos buzinam tanto. Como todo mundo buzina o tempo inteiro, o ato de buzinar perde a essência básica de ser um instrumento para chamar a atenção. Comi um pratão de vegetais ao curry, arroz e dal, uma espécie de sopa de lentilha. Não demorou muito e meu intestino começou a dar sinais de desagrado. Corri para o banheiro. Respirei fundo. Tapei o nariz. E fiz o meu trabalho. Cadê o papel higiênico? O recurso foi usar a mão esquerda. De cócoras naquele vaso até bem lógico, pois se a pessoa tiver equilíbrio, não encosta em nada, entendi a função da torneirinha com baldinho que estava ali no lugar onde o papel higiênico deveria estar.

    A merda era, inclusive, um assunto muito recorrente entre os viajantes. Entabulei longos colóquios sobre banheiros. Houvesse um campeonato mundial de merda, a Índia seria medalha de ouro. A merda das vacas, a merda dos macacos, a merda dos búfalos, a merda dos camelos, a merda dos elefantes, a merda dos ratos, a merda dos homens, todas as merdas se somavam nas ruas.

    Em O grande bazar ferroviário, Paul Theroux dedicou páginas a esse assunto. Numa das passagens, ele descreve uma cena que eu gostaria de ter visto. Não que eu seja uma shit voyer, digamos assim. Mas é pelo lado emblemático da coisa, que explica uma das minhas teorias sobre a Índia, a de que os indianos, na verdade, cagam para você. Literal e metaforicamente. Theroux escreveu:

    No início, pensei que as pessoas estivessem simplesmente assistindo à passagem do trem, mas depois notei as espirais amarelas brilhantes embaixo delas. Observando um, vi mais de uma centena diante do trem, felizes com a diversão que ele lhes proporcionava, sujando o caminho sem pressa. Defecavam tranquilamente quando o trem chegou e assim continuaram depois que ele partiu. Havia um trio curiosíssimo: um homem, um menino e um porco enfileirados, cada um evacuando a sua maneira. Um homem com o aspecto digno levantara o dhoti para agachar-se na estrada. Olhava o trem passar; parecia disposto a permanecer ali algum tempo, pois se abrigara sob um guarda-chuva e tinha um jornal sobre os joelhos. Era o símbolo perfeito do comentário de um amigo que eu ouvira em Déli: o excremento do mundo.

    O céu de chumbo finalmente se decidiu. Caiu uma tempestade sobre Brighton. O vento arrastou a bicicleta de uma moça que a empurrava na minha frente. O veículo voador quase me atropelou. Logo em seguida levei uma guarda-chuvada na cara. Emma e eu chegamos ao carro encharcadas, geladas, murchas. O meu humor nublado estava agora molhado. Eu queria mais um café. Que diabos! Eu precisava parar de aumentar a lista de motivos para não ir e tratar de arrumar motivos para ir para a Índia. Não havia escolha. O dinheiro do adiantamento da minha editora já tinha virado fumaça. Eu havia espalhado aos quatro ventos que escreveria um livro.

    Para voltar para casa, pegamos a beira-mar. O mar estava prateado, revolto, imenso, dramático. Uma densa camada de nuvens nos envolvia. Emma, que já morou na Índia, só me dizia para ficar tranquila, que quando eu chegasse lá esqueceria o mundo de cá. Fizemos a lista dos três tipos de viajantes que me aguardavam. Havia aqueles que estariam na Índia pela qualidade do haxixe, o melhor do mundo, e pela possibilidade de viver em rupias. Desse grupo, os israelenses eram maioria. Bandos, recém-saídos do exército, em busca de esquecimento. Havia os perdidos, que, ao mesmo tempo que fumavam haxixe, praticavam yoga, meditação, faziam cursos de budismo, tratamentos aiurvédicos... Esses não queriam muita coisa, talvez só achar um substituto para o Rivotril. E havia os que levavam a coisa a sério, que apostavam todas as fichas, que consumiam a Índia em doses cavalares.

    Subi para o quarto, tomei um banho, enrolei um baseado, dei uma baforada, fiz uma xícara de chá com leite, fui para a cama com o Hermann Hesse:

    Mas na realidade não há nenhum eu, nem mesmo o mais simples, não há uma unidade, mas um mundo plural, um pequeno firmamento, um caos de formas, de matizes, de situações, de heranças, de possibilidades. Cada indivíduo isolado vive sujeito a considerar esse caos como uma unidade e fala de seu eu como se fora um ente simples, bem-formado, claramente definido; e a todos os homens, mesmo os mais eminentes, esse rude engano parece uma necessidade, uma exigência da vida, como o respirar e o comer.

    O homem é um bulbo formado por cem folhas, um tecido urdido com muitos fios. Os antigos asiáticos sabiam disso muito bem e encontraram no yoga búdico uma técnica precisa para descobrir a ilusão da personalidade. Divertido e múltiplo é o jogo da humanidade: a ilusão que levou milhares de anos para ser descoberta pelos hindus é a mesma ilusão que aos ocidentais custou tanto trabalho custodiar e fortalecer.

    Em vez de reduzir teu mundo, de simplificar tua alma, terás de recolher cada vez mais mundo, de recolher no futuro o mundo inteiro na tua alma dolorosamente dilatada, para chegar talvez algum dia ao fim, ao descanso. O mesmo caminho foi percorrido por Buda e por todos os grandes homens, uns conscientemente, outros inconscientemente, na medida em que a fortuna favorecia sua busca. Nascimento significa desunião do todo, limitação, afastamento de Deus, penosa reencarnação. Volta ao todo, anulação da dolorosa individualidade, chegar a ser Deus quer dizer: ter dilatado a alma de tal forma que se torne possível voltar a conter novamente o todo.

    Duas horas se passaram. Eu tinha que ir para o Pool Valley. Não queria levar um casaco gigante, que eu teria que jogar fora assim que chegasse à Índia. Decidi pelo sacrifício de congelar até o ônibus chegar. Perdi os meus óculos escuros. Em vez de me convencer de que eu era Buda, eu podia, primeiro, ter assimilado a regra básica para a preservação dos óculos, do sábio Geoff Dyer, no livro Ioga para quem não está nem aí. Ele ensina: Se não estiverem no nariz, devem permanecer guardados no estojo.

    Não havia tempo para procurá-los, já que não estavam onde deveriam estar, no estojo. No momento seguinte, lá estava eu, na minha chuva interior, tiritando de frio, com o meu baseado, escorada na cabine telefônica, olhando aquele junky carcomido pelas agulhas e pela desesperança, pensando aquelas coisas... Eu e a mulher de sári acomodamos nossas bagagens no porta-malas ao mesmo tempo, sem

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