A Lenda De Arquitaurus
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A Lenda De Arquitaurus - Carlos Costa França
I
A Hora
A vista nos deliciava como em nenhum outro
lugar das terras latinas ou bárbaras. Nessas vastidões
que pareciam intermináveis aos olhos de qualquer
mortal, florestas se erguiam como extensões
beatificadas pelos deuses eternos, enquanto as
montanhas jaziam como testemunhas dos poderes de
eras antigas da Terra. Ali nos extensos vales, os rios
deslizavam prateados pelos recantos mais verdes para
depois se desnudarem solenes nas aprazíveis campinas
até o oceano. Em alguns trechos, os rios corriam
imponentes e caudalosos, sendo uma benção para os
povos que habitavam próximos as suas margens. Mas
nada se destacava tanto quanto a vasta península, que
parecia avançar com voracidade em sua sede para o
grande e belo mar, e em sua vocação incessante de
conquista.
Nessa região do mundo, puríssimos ventos
sopravam contra os arvoredos e os arbustos das
encostas rochosas, dotando a vegetação de certo
movimento e graciosidade. Em sua jornada habitual, os
ventos, ao passarem por terras mais baixas, extraíam o
perfume das flores silvestres, espalhando os aromas
florais por todo o principado conhecido naquele tempo
como Arquitaurus. Foi assim que os ares benfazejos
chegaram a mais alta janela de uma velha fortificação e
a fustigaram até abri-la. Neste caso, como se obra de
uma vontade poderosa. Não foi surpresa que dessa ação
do vento, o sol, em seu avançar imperturbável, flechasse
a abertura da modesta janela, dissolvendo as últimas
sombras perpetradas pela noite.
O homem ali acordou de um sonho estranho e
agoniado, como se imensas distâncias tivessem sido
percorridas por velozes cavalos alados. Desertos,
pântanos, florestas, abismos e mares surgiram e
sumiram em imagens prodigiosas. Céus e terras se
separaram e se aproximaram sem que fossem maiores
ou menores suas distâncias. Trombetas soaram do alto
das montanhas, abalando os moradores do mundo.
Sonhou que coisas misteriosas devoravam a essência
primordial do mundo, e mais assustador ainda, do seu
próprio mundo. Vislumbrou vidas de pessoas sendo
perdidas frente a promessas de homens insensatos e
impuros. Guerras sem triunfos perseguidas por
aventureiros de nações estranhas e povos sem memória,
vazio e esterilidade transformando a face da Terra.
Combateu numa praia deserta um inimigo invisível e
íntimo a sua carne. Viu seu túmulo aberto, e sem
qualquer cerimônia foi-lhe apresentado cenas que
assustariam o mais sábio dos homens. Por lá
descansava um leão com três cabeças e asas
exuberantes saindo de seus flancos. O animal o fitava
com a severidade própria do transcorrer tempo. Depois,
uma linda mulher aparecia montada num corcel negro
de estirpe superior, ataviado com insígnias sublimes.
Ela usava na cabeça, prendendo as mechas douradas do
seu cabelo, uma tiara do deus sol. Ao desmontar,
mostrou-lhe de uma só vez o nascer e o pôr do sol, então
as nuvens desceram sobre ele como um manto real e
várias cachoeiras surgiram de repente em seu entorno
como se para consagrá-lo a um destino incomum. Por
último, uma voz ao longe sussurrava respeitosamente:
Pã está morrendo, mas o sol nascerá hoje ao meio dia
.
Compreendeu, assim que abriu os olhos, que eram
realidades só possíveis em sonhos, embora uma
sensação insana dominava sua disposição, que o fazia
não ter certeza de coisa alguma.
Quando se pôs sentado na cama, ainda respirava
de modo ofegante e o coração disparado galopava como
um potro selvagem. A primeira reação foi olhar para a
palma de sua mão esquerda. Viu que sua misteriosa
tatuagem estava com a cor mais viva e extremamente
brilhante. Então duvidou, "ou apenas, ela me parece
mais viva hoje?"
Entretanto, algo foi despertado em seu íntimo.
Talvez a jornada maior e decisiva de sua vida deveria
começar. Há muito tempo, vinha acreditando que tudo
isso não passasse de uma tolice, mas agora, de repente,
uma
torrente
de
sentimentos
o
assaltava
impiedosamente a partir de um sonho louco. Os sonhos,
diziam todos os sacerdotes, eram mensagens dos
deuses. O que fazer, ou para onde ir?
, questionou para
si mesmo enquanto vestia uma túnica negra. A única
resposta que lhe veio ao espírito apontava na direção
das terras ermas, nos domínios de Gorjala, o terrível,
bem distante do coração da Gália. Pois de lá tinha as
únicas pistas de sua origem e de seu nascimento. "É
preciso partir, apenas partir... tenho que descobrir isso
de uma vez."
"Sim, de fato, era o que eu deveria fazer de
imediato, sem esperar qualquer sinal ou um mestre em
sabedoria e em vidência que, por acaso, depois de se
perder pelos arredores dos densos bosques, viesse
aparecer
nestes
domínios,"
refletia
o
rapaz,
desesperançado com o mundo.
Como ele podia esquecer, estava noivo e
comprometido com a filha do senhor de Arquitaurus. O
casamento já estava em andamento, faltando apenas a
data do cerimonial. E, claro, o senhor daqueles domínios
não consentiria, nem de longe, numa desfeita
vergonhosa ou desonrosa para a filha. "Como fui me
meter nisso?", estava aturdido, gemendo sob o peso do
compromisso. Não se lembrando mais que a linda
Cercira lhe despertou os mais profundos sentimentos e
aveludou o último ano com dedicação e ternura.
Estava doente ou enfeitiçado, era isso!
Qual
deus do Olimpo estava possuindo a sua alma naquele
instante? Nada mais poderia explicar a sua situação
embaraçosa, e nada, absolutamente nada, era mais
temerário na vida de um mortal do que a possessão
divina. Olhou pela janela, agora escancarada, e divisou
o austero palácio do futuro sogro. Suas colunas dóricas,
quase ameaçadoras, inibiram os pensamentos mais
ousados, tanto que quase houve uma quietude interior.
Depois de algum tempo, percebeu que o sol
avançava sem descanso e ele ainda permanecia
encafifado com aquelas idéias estranhas de partir para
os reinos sanguinários de Gorjala. Precisava sair, e foi
isso que fez.
Saiu à procura de Sabázio, seu bom e velho
amigo romano, um antigo centurião que ficara rico com
o comércio e era um renomado um farrista até em
terras bárbaras, pelo que se contava. Preparou a
montaria e partiu sem desperdiçar mais tempo com
miudezas da vida doméstica, que incluía aí um
desjejum. Seu fiel criado, Enginardo, ainda insistiu em
que ingerisse um pão molhado num saboroso vinho
novo. Embora o mesmo, de forma ciosa, e conhecendo
como o conhecia, intuísse que seu patrão estava num
daqueles momentos de destempero que apenas s
senhores costumavam ter.
Logo chegou à residência do amigo, um edifício de
dois andares como se via em Roma e em algumas
colônias do império. Exibia um pátio externo amplo e
decorado com caminhos pavimentados entre jardins
exuberantes. Destacava-se, nesse edifício, sua belíssima
fachada, onde havia murais com pinturas de touros em
cenas pouco comuns. Também se via, na entrada
principal, uma arcada na qual o mesmo animal aparecia
esculpido de forma magistral. A casa Tauri, como era
conhecida pelos habitantes do principado, sempre fora
motivo de muitos falatórios que se misturavam a relatos
históricos e a lendas originadas em outras terras.
Antiga casa dos governantes que Roma designava. Para
alguns, estava imantada com um encanto poderoso. Não
eram poucos os relatos de cura atribuída a uma fonte
no centro do pátio. No entanto, nos dias correntes de
nossa narrativa, sua especialidade, se assim pudermos
ser fiéis aos falatórios, eram os escândalos. Estes,
apreciados tanto pelo mais pobre camponês, escravo ou
artesão, como pelas nobres damas em seus salões
requintados. De tal sorte, que quando o oposto chegava
aos ouvidos das pessoas, elas não faziam questão de
esconderem certa frustração.
A casa estava fechada e tudo em volta muito
quieto, isto numa hora em que o sol já avançara mais do
que o suficiente para um dia de trabalho. Apenas três
criados cuidavam e circulavam pela propriedade,
mantendo por aquela hora alguma atividade junto aos
animais domésticos. Perceberam a pressa do visitante
no trote do cavalo em que vinha e no passo cumprido
que manteve após ter desmontado. O reconheceram
desde antes como o mais estimado amigo do patrão.
Fizeram uma deferência e informaram que o senhor
dormia e não queria ser perturbado, mas nem de longe
tentaram demovê-lo de sua intenção, a partir dali, fosse
ela qual fosse. Nos assuntos dos senhores era sempre
melhor não se intrometer.
O visitante nada disse, e sem dar satisfação à
criadagem, apenas seguiu para um dos lados da casa.
— Sabázio! — gritou com toda voz que possuía
para uma janela superior, contígua a porta que se abria
numa sacada.
Repetiu com mais vigor. E mais uma vez o
chamou, até que o amigo apareceu com a disposição dos
indivíduos que são arrancados precocemente do sono.
Trajava um longo manto branco com desenhos,
lembrando os ramalhetes e cachos de uvas; já na
cabeça, trazia uma espécie de gorro escuro.
— Suba! — disse ele, acenando com uma das
mãos e esfregando os olhos com a outra.
A parte de baixo daquele edifício era um imenso
salão onde havia uma mesa retangular somente, com
dois touros esculpidos em cada ponta. O chão, por uma
influência oriental, era todo em madeira polida de um
tom carmesim, contrastando com as escadas de
mármore. Elas subiam em forma da letra s
,
localizando-se nos extremos desse salão. Era costume
por lá, subir por uma e descer pela outra. Escolheu a
que apontava para o norte, talvez tal atitude lhe
inspirasse algo, afinal queria dar um norte para sua
vida.
Quando chegou ao andar de cima, Sabázio o
chamou para a cozinha. Queria comer seu desjejum
predileto, uma suculenta vitela, ainda que não fosse
seu costume prepará-la. Retirou parte do sal que cobria
um bom pedaço da iguaria, e passou a assá-la num fogo
brando.
— Onde estão todos? — indagou o visitante com
alguma surpresa.
— Os serviçais da casa? — inquiriu Sabázio,
espreguiçando-se todo nesse momento e
encarando o visitante com expressão de dúvida.
—Sim, claro — confirmou o amigo.
— Dispensei a maioria, queria sossego. Mas vejo
que não previ tudo — considerou, sorrindo e bocejando
muito.
— Oh! É quase meio dia, Sabázio, não me venha
com essa agora! — bradou com descontração e
intimidade, maneiras que só são vistas entre velhos e
ternos amigos.
— Como queira — sorriu e olhou mais
detidamente o camarada — mas o que lhe importuna?
Diga de uma vez, pois está com a cara péssima — e fez
uma expressão exagerada.
— Uma coisa terrível! — respondeu de modo
alarmado o visitante, enquanto passava uma jarra com
óleo de oliva para Sabázio. Suas mãos pareciam tremer.
— O quê? — preocupou-se Sabázio, que tinha as
sobrancelhas arqueadas agora, diante da declaração do
outro.
— Um sonho que tive hoje, a tatuagem... Não sei
o que dizer, meu amigo.
Após relaxar as feições, com voz sonolenta e cara
de enfado, considerou o anfitrião: — bem, isso não me
parece novidade e não merece maiores preocupações ou
considerações, meus bom amigo. Acredito que nós dois
precisamos é de mais sono, isto sim!
— Vou me casar em breve! Isto não lhe diz nada?
— disparou finalmente, em tom confuso.
Com essa revelação tudo mudou.
— Agora sim, concordo, é um fato muito
preocupante, meu caro amigo — as feições de Sabázio
eram de um horror solene.
— Então, reconhece?
— Ora! Sempre lhe disse, alertando-o para
tal desventura. Não é possível que tenha esquecido de
tudo quanto o prevenir — agastou-se fervorosamente,
mas sem uma irritação verdadeira.
— É mesmo, devo reconhecer — ponderou o
visitante que lembrou dos vários avisos, muito mais que
insistentes. — O que devo fazer agora? — tornou ele,
fitando o amigo com expectativa.
— O dia está muito bonito — disse, botando a
cabeça do lado de fora por uma das janelas, observando
o céu quase sem nuvens — vamos por nossos trajes de
caça e sair — falou em tom mais sério do que se poderia
se presumir inicialmente.
— Não zombe de mim! — ressentiu-se o outro.
— Zombando! Você se comprometeu com a filha
do homem mais poderoso e perigoso dessa parte do
mundo, até o rei de Castelle Real o teme, sendo que
mesmo o senado romano o respeita e o prestigia. E acha
que estou zombando. Preciso pensar numa saída, se é
que existe alguma — passou a mão pela testa, puxando
os cabelos para trás e os soltando a seguir. — Não vai
ser fácil!
Depois deu um tapa surdo no peito e disse:
— Olha, dada a nossa velha amizade e o
conhecendo como o conheço, o que mais me preocupa é
por quais caminhos você chegou a essa resolução.
— Desculpa-me, Sabázio, é o desespero.
— Está se vendo. Claro que não o culpo
inteiramente por ter se comprometido nesse noivado,
seria até uma insanidade tal afirmação, pois não existe
moça mais bela, formosa e rica do que Cercira. E isso
lhe traria riquezas e poder que dificilmente alcançaria
numa vida. Sem falar que poderia um dia alcançar a
corte de Castelle. Pensando bem! Não é tão ruim assim
— tinha os olhos fixos e mirados para cima, como se
aprofundando nas próprias reflexões.
— Você sabe que não é isso que está em jogo. E
muito me admira essa sua conclusão, você mesmo não
se alistou, apesar de ter o dote necessário e mesmo certo
grau de parentesco com o alcaide — replicou o visitante.
— Sim, somos primos distantes, mas nesse caso
não quer dizer muito.
— Não importa, por que não quis concorrer à mão
de Cercira? — questionou.
— Eu! Por convicção religiosa, é claro —
empertigou-se. — Entretanto, todo o restante dos
homens do principado de Arquitaurus se alistaria de
bom grado se tivessem as condições. Sem mencionar os
pretendentes dos países estrangeiros que marcaram
forte presença.
— Por convicção religiosa, você disse? Religiosa!
— repetiu o visitante, ainda espantado com o que
ouvira. Sem ter dado mais atenção a nada.
— Sim, evidente! Não posso subir à mansão dos
casados sendo um devoto de Baco, o renascido deus do
êxtase. E minha fama não é nada boa nos corredores
palacianos, e claro, muito além deles também, na
metade das casas das melhores famílias de nosso povo
— passou a mão no cabelo e parou de repente, como se
estivesse ainda elaborando melhor aquele pensamento.
— Bem, para ser honesto, posso acrescentar que em
muitas outras casas o valor dado a mim é o mesmo.
Contudo, compensando a tudo isso, em lugares menos
prestigiosos ou de má reputação, eu ganhei certa
notoriedade. Mas sabe de uma coisa... é inútil qualquer
explicação aqui, você mesmo é meu melhor amigo, e não
posso desejar outro melhor, e sabe muito de tudo isso.
— Achei que tinha perdido sua consciência há
muito tempo, Sabázio!
— Pois bem espertinho, está aí nossa diferença e
semelhança. Eu a perdi um dia, é fato, mas você nunca
a teve — retrucou ele.
O visitante o mirou perturbado por alguns
instantes.
— Incrível, sou forçado a lhe dar alguma razão —
disse finalmente com uma expressão de espanto solene.
— Não tenha dúvida disso! — considerou Sabázio
com visível satisfação.
— O principal é que não quero fazer Cercira
infeliz — prosseguiu o visitante, refeito um pouco da
fala anterior.
— É uma preocupação verdadeira da sua parte,
eu sei! Inclusive, pedirei mais por você em minhas
preces semanais e nos meus ritos mensais a Baco, fique
certo! — e fez um gesto engraçado com as mãos que não
foi percebido pelo companheiro. — Mas me responda
agora, como não magoar Cercira se você quer deixá-la.
Tenho certeza de uma coisa, meu caro: você é uma
escolha para ela em qualquer condição.
O visitante nada falou, pensando nas palavras do
amigo. E Sabázio prosseguiu de um jeito quase
profético.
— Pelo que me lembro, você foi a única exceção
naquela lista de pretendentes, pois possuía metade do
dote exigido. Isto só aconteceu certamente por
influência dela, com toda a certeza. É do conhecimento
de todos que o pai é muito sensível aos seus apelos.
Dizem que até a deusa Atenas, em sua relação filial com
Zeus, inveja Cercira pela influência que esta exerce
sobre o pai.
— O que diz é correto e assombroso.
— Muito. Por isso, se quer de fato a felicidade
dela, não tem saída, pode tratar de marcar o casório.
— Mas eu tenho que me ausentar de
Arquitaurus.
— Somente se essa ausência for indefinida, aí
sim, necessitará findar o compromisso de noivado. Em
qualquer outro caso, não haverá nenhuma necessidade
— interveio com a suficiência das pessoas que tem um
olhar isento.
O visitante o mirou, uma vez mais, com surpresa
e consternação.
— Meu caro amigo, se não o conhecesse bem,
diria que está fazendo de tudo para que me case.
— Eu, impossível! — exclamou com veemência —
tento apenas entendê-lo nesse mar de tormentas que
levam os navios da razão a se despedaçarem contra os
rochedos da insanidade. Ou você imagina que tudo na
vida pode se resolver com um estalar de dedos?
Sabázio sentou-se à mesa e convidou o outro a
fazer o mesmo. Enquanto um mastigava o alimento com
prazer e sem pressa, o segundo pensava na confusão
que estava sua vida, que era uma mescla tanto de
tribulações reais como imaginárias.
— Bem! — exclamou Sabázio ao visitante,
parecendo mais acordado e disposto do que antes. Ali
cortou um pedaço de vitela e colocou numa cratera
funda, oferecendo ao amigo também pão, leite e mel. —
O que pensou primeiro em fazer a respeito? —
questionou entre uma bocada e outra.
— Estou pensando em ir até lá e falar com o
alcaide.
— Se tiver coragem, é uma opção mais honrosa —
de repente, fez uma expressão estranha e ansiosa. —
Espere um pouco! Por que realmente não quer se casar?
A qual ausência se refere? — questionou como se
despertado por uma possibilidade que só naquele
instante passou a enxergar mais