Françoise Dolto: Cultura, psicossomática e clínica
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Sobre este e-book
Neste livro vemos, com ampla riqueza de perspectivas, o impacto superlativo que essa ideia pode ter em vários campos do conhecimento. Em suas páginas, ouvimos Dolto à luz da psicanálise, da medicina, da cultura em seus vários caminhos. E a partir de seus autores, e de Dolto, talvez nos aproximemos um pouco mais de cumprir o grande desafio de ouvir enfim as crianças e acolhê-las.
Julian Fuks
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Pré-visualização do livro
Françoise Dolto - Luciana Pires
Prefácio
Luciana Pires
O livro que vocês têm em mãos deriva de um evento que eu, Juliana Braga, Vitoria Whately e Miguel Fausto organizamos em 2018. Agradeço enormemente aos três pela companhia nessa empreitada. A organização desse evento foi uma daquelas raras experiências em que prazer, respeito e seriedade se unem a favor de uma construção coletiva. E desejo que a subsequente leitura siga em sintonia com esse estilo de fazer as coisas, que, num plano mais amplo, faz eco à afirmação do psicanalista Adam Philips (1994) de que a psicanálise é tudo menos o território das últimas palavras.
Muitos são aqueles que indagam o motivo da restrita penetração da obra de Françoise Dolto entre psicanalistas. Sua escrita se espalha em ilustrações e alegorias clínicas que nem sempre ascendem a formulações mais estruturais, tal qual um pastiche que nos encanta ao mirar pelos diversos caminhos do pincel e diversas paisagens que delineia, mas é dificultoso mirá-lo em ampla perspectiva e obter o desenho total. O desenho total nos engana e é na força e direção do traçado e na apreensão do pincel que devemos buscar aquilo que resta como marca de transmissão.
Sauzervac (2008) afirma que, na obra de Dolto, tanto a teoria quanto a clínica são consequentes da posição ética, que é sua marca mais forte no campo da psicanálise com crianças. Ética esta que se pauta na escuta radicalizada do sujeito da criança e do bebê em quaisquer circunstâncias, sem nunca recair num reducionismo de subordinar a escuta da criança à escuta do adulto.
Diante da percepção da ambiguidade da apreensão da teoria de Dolto no campo psicanalítico, nós, organizadores, ficamos surpresos e felizes com a excelente recepção do evento de 2018, que contou com nove palestrantes de peso, que falaram para uma plateia entusiasmada de 150 pessoas – fora a lista de espera que se formou.
São esses nove palestrantes de outrora que aqui se apresentam como autores do livro Françoise Dolto: cultura, psicossomática e clínica. Juntam-se a eles os organizadores do evento citado, além da psicanalista Carmen Molloy. Todos os autores têm em comum o encantamento por Dolto, além do trabalho empenhado nos campos que atravessaram a obra da psicanalista e que resumimos como a cultura, a psicossomática e a clínica.
A subdivisão do livro segue o desenho das mesas do evento de 2018 e torna evidente a abrangência do trabalho de Dolto, que não se restringiu jamais à clínica psicanalítica, estando, desde sempre, situado na intersecção com os campos da saúde médica e da cultura. Nos idos de 1916, Françoise, então com 8 anos, definiu um campo de atuação para si: seria médica da educação
. Não existia ainda a figura da psicanalista com crianças. Mas o que os médicos têm a ver com a educação, e o que os educadores têm a ver com a medicina? Sua criativa designação de um campo resume bem a abrangência que vislumbrava para os efeitos de seu trabalho; sua aspiração coloca médicos e educadores de mãos dadas na direção do cuidado infantil. O que nos parece mais importante nessa nomeação é a introdução da compreensão de que as doenças corporais infantis (comumente encaminhadas aos médicos) dizem respeito ao modo como são tratadas pelos adultos, e como são montados os espaços para elas destinados.
Médica da educação: nessa célula germinal, primeiro parágrafo de sua obra, já se encontram vários de seus desdobramentos mais memoráveis. Mais no terreno médico, temos a ideia de que o corpo (da criança e, por extensão, de qualquer um) é constituído pelos laços afetivos e simbólicos que o rodeiam, o que virá a desembocar em seu conceito princeps de imagem inconsciente do corpo. Já mais no território da educação (e da sociologia e da política), reconhecemos um apelo à responsabilidade inexorável dos adultos pelos destinos das crianças e a consciência de que as crianças são afetadas pelas falas e montagens que dirigimos a elas. Aqui já se vislumbra sua importante contribuição no debate público (na rádio, na televisão e em numerosas palestras) sobre temas como desfraldamento, escolaridade, adoção, aborto e separação dos pais, além da criação do dispositivo das Maisons Vertes em 1979.
Como já dissemos, o livro é dividido em três seções de abrangência da obra de Dolto. Vitoria Whately, Miguel Vallim, M. Cristina Kupfer e Luciana Pires escrevem sobre sua penetração na cultura; Miguel Fausto, Florência Fuks e Wagner Ranna contribuem na área da psicossomática; e, finalmente, Christiane Carrijo, Juliana Braga, Cybelle Al Assal e Carmen Molloy refletem sobre a clínica de Dolto. A despeito dessa divisão, os escritos se entrecosturam em eixos principais, tais como a relação entre corpo e psiquismo, a dialética entre verdade e o não saber, a transmissão de sua obra e a concepção de psicose. Num embaralhamento de cartas, pinçaremos alguns desses alinhavos, pespontos e transpasses.
Em sua análise do tratamento de Dominique, o paciente adolescente psicótico cujo atendimento foi registrado em livro, Al Assal nos lembra de episódios em que a tensão entre o que é do corpo e o que é do psiquismo é trazida à tona pelo próprio paciente e seus familiares. Dominique diz sofrer de uma doença no coração da infância
e o pai de Dominique afirma sua descrença na análise, dizendo que, enquanto não houver meio cirúrgico para curar essas crianças, não se pode fazer nada
. Doença no coração da infância: pode haver melhor definição da problemática de que nossa médica da educação se arvorou a tratar, encontrando resistências como as do pai de Dominique que, descrente, questiona como é possível cuidar de doenças do corpo com palavras? Kupfer pode vir ao nosso socorro: médico da educação é um médico que sabe que os problemas na educação podem provocar doenças nas crianças, . . . capazes de causar aborrecimentos para as famílias e complicar a vida
delas. E, na intersecção com a pediatria, Ranna e Fuks trazem para a discussão interessantes exemplos desses aborrecimentos do desenvolvimento e de como o olhar psicanalítico pode ajudar a pensá-los: como entender um caso de enurese sem causação orgânica? E como cuidar para que o impacto de uma síndrome não reduza a construção da concepção da criança para si mesma e para os cuidadores principais? Ou, como indaga Fuks, como manter a potência daquele corpo sequelado como íntegro na percepção psíquica da criança
? E nos olhos da mãe que só veem as características da síndrome a serem cumpridas
? Todos guiados pela mesma convicção: de que o corpo é constituído pelo entrelaçamento entre o organismo, as imagens e as palavras, no encontro com o semelhante
, sumariza Ranña.
Sobre sua concepção de psicose, tema que segue atraindo muitos estudiosos até os dias de hoje, Braga diz: trata-se de um tumor na simbolização, um tumor imaginário, construído por uma função simbólica que andou no vazio e sem nenhuma possibilidade de relação com um outro humano
. E nessa medida, acrescenta Carrijo, o psicótico permanece cativo de uma imagem incomunicável
, portador de palavras-barulho
. Mas quem são os outros da psicose? Estas e outras perguntas são alinhavadas na seção clínica.
Na seção de psicossomática, além de uma interessante complexificação da ideia de esquema corporal, que estabelece na companhia de autores contemporâneos, Fausto destaca a qualidade clínica do conceito de imagem inconsciente do corpo e o quanto esse conceito é intrínseco à situação transferencial. A imagem do corpo não é a imagem desenhada ali, ou representada na modelagem
, ela está por ser revelada pelo diálogo analítico com a criança
, precisando, portanto, desse outro (do analista, no caso) para se revelar por completo
, ele diz. A imagem inconsciente do corpo é o conceito que Dolto cunha para dar conta de sua leitura psicanalítica de fenômenos corporais, para assim viabilizar sua sonhada profissão de médica da educação
e atender pacientes que não têm na linguagem verbal seu principal elo com o mundo, tais como crianças, bebês e psicóticos.
Outro polo de discussão costura-se ao redor de qual a verdade que Dolto veicula em sua obra. Somos lembrados de que Lacan escreveu que não é possível dizer toda a verdade, por mais que se queira
. Então como compreender o apelo de Dolto às palavras verdadeiras? No que se constituíam suas palavras verdadeiras? Em alguma medida, é o esforço dessas palavras verdadeiras que desfaz o tumor psicótico ao qual nos referíamos acima. Molloy reconhece que a psicanalista se submetia ao sem sentido dos significantes que ouvia e os valorizava muito mais do que os referentes teóricos das escolas de psicanálise, os quais quebrava constantemente, para espanto dos analistas que queriam entender de onde vinha a eficácia de sua prática clínica
. É nesse sentido que, como Pires pontua, Dolto atua com firmeza na área do não saber
, ao mesmo tempo que supõe e abre-se à verdade da criança
e do outro, o que podemos ver ilustrado na interpelação frequente da psicanalista, destacada por Fausto: eu não compreendo o quê, mas desejo compreendê-lo e, talvez, poderemos saber melhor da próxima vez
. As palavras verdadeiras avizinham-se, portanto, do não sentido e da não compreensão. Outra direção é apontada pela psicanalista na ética de sua clínica com crianças: desdramatizar. Para depurarmos o que importa na escuta analítica, para que o não saber possa ser convidado à nossa escuta e, assim, nos submetermos ao sem sentido dos significantes que ouvimos, encontramos em Dolto o conselho recorrente de que pais e profissionais da infância desdramatizem suas apreensões das cenas infantis. Desdramatizar aqui é o correlato da indicação freudiana da atenção flutuante para que psicanalistas possam ouvir além de si mesmos e de seus conhecimentos prévios.
Como identifica Carrijo, estamos aqui, atentos, ainda escutando suas histórias
, em posição de receptividade de sua obra, e, nesta medida, este livro testemunha e figurabiliza sua transmissão, pautado na premissa de que quem conta um conto acrescenta um ponto ou, como pontua Vallim, a cada psicanalista que se forma, a história da psicanálise se refaz
. Boa leitura a todos!
Referências
Dolto, F. (1990). Auto-retrato de uma psicanalista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Philips, A. (1994). Futures". In On flirtation – psychoanalytic essays of the uncommitted life (pp. 153-164). Cambridge: Harvard University Press.
Sauverzac, J.-F. (2008). Itinéraire d’une psychanalyste. Paris: Champs Biographie.
Uma obra, a cultura e o tempo
Miguel Vallim
Neste texto procuro tecer algumas considerações a respeito da transmissão da psicanálise de modo geral e, como um caso específico, da transmissão da obra pouco conhecida desta autora tão célebre: Françoise Dolto. Particularmente, colocarei-me a pensar sobre os modos peculiares pelos quais a psicanálise se transmite de pessoa a pessoa, algumas vezes sem a mediação da palavra escrita. Parafraseando Hannah Arendt – em As origens do totalitarismo (2013) –, podemos dizer que, a cada psicanalista que se forma, a história da psicanálise se refaz.
Ao falar de uma figura como Dolto diante do panorama da história da psicanálise e do trabalho com a infância, estamos também tratando da passagem do tempo; daquilo que atravessa as gerações e que chamarei aqui de herança.
A obra de Dolto é uma obra multifacetada; é uma pedra bruta. Silvia Fendrik (2007) a compara a um quadro cubista ou a um quebra-cabeça em que sobram peças.¹ Aproveitando a analogia e levando adiante a imagem que Fendrik nos oferece, penso que, se sobram peças neste quebra-cabeça, não me parece que elas possam ser jogadas fora simplesmente – como se poderia supor –, mas que se trata de um quebra-cabeça que admite diferentes arranjos, do qual emergem diferentes figuras. Imagens coerentes e perfeitas em si mesmas, mas nem sempre em consonância com as outras que possam por ventura se formar.
Um quadro cubista – diferentemente de um quadro renascentista, que nos oferece A perspectiva – permite que o olhar se posicione de diferentes ângulos, com sentidos diversos e coexistentes. Em todo caso, há ainda um trabalho a ser feito pelo receptor/leitor. A esse trabalho nos dedicamos neste texto. Não me parece que esta coletânea seja apenas uma homenagem à memória de Françoise Dolto – que seria merecida –, mas um modo de nos apropriarmos de sua herança, ainda que trinta anos após a sua morte e a um oceano de distância.
Antes de observar a lógica interna da sua obra (o que não seria uma tarefa simples, pelo modo como é fragmentada e pelo fato de ser uma obra multimídia), parece-me importante pensar em como situar a sua figura na história. Para além de uma certa caricatura que se costuma construir em torno dela, proponho que façamos um exercício de análise, de separação, uma espécie de destilação de sua herança.
Penso que há ao menos três facetas que merecem ser contempladas quando falamos de Françoise Dolto, cada qual situada de um modo próprio diante da história, a depender também da concepção de história que se carrega.
São três modos – ao menos – de situar Dolto no tempo, três maneiras de colocá-la em relação à cultura. Uma cronologia de sua vida, que de modo algum é dispensável, não poderia dar conta de alguns aspectos da passagem do tempo. Talvez haja aqui uma pergunta maior, um tanto mais filosófica a respeito do próprio tempo: a respeito daquilo que passa, daquilo que permanece e também daquilo que se repete; um nó bastante psicanalítico.
A história da psicanálise já é vasta: em aproximadamente 120 anos de clínica, pesquisa e escrita, já há uma miríade de autores, práticas e ideias com os quais o psicanalista no curso de sua formação precisa entrar em contato. Não é simples traçar um percurso ao tecer a própria teia de referências, e me parece que as escolhas que se faz são parte determinante da construção da identidade de cada analista como uma figura singular. Diante deste horizonte extenso que é o mundo dos autores psicanalíticos, convém ter consigo, também, um modelo de história, uma grade que nos permita organizar e colocar os autores em relação e, ao mesmo tempo, nos situar em relação a eles.
Esse modelo é precisamente o que nos oferece Renato Mezan (2019b) em O tronco e os ramos, um extenso trabalho de pesquisa que procura a um só tempo organizar os diferentes autores em relação à evolução do campo psicanalítico como um todo e à maneira como as suas obras se entrecruzam epistemologicamente de modo a dar conta dos problemas clínicos que se colocam a enfrentar ou leituras que buscam promover.
Para compreender o que se passa, convém utilizar o conceito psicanalítico de sobredeterminação. Este conceito não implica apenas que o fenômeno considerado tenha várias causas concomitantes; implica ainda que o fenômeno remeta a elementos múltiplos, capazes de se organizar em sequências significativas múltiplas, das quais cada uma, num certo nível de interpretação, possui uma coerência própria
. Essas cadeias significativas se recortam umas às outras em torno de um ponto nodal: é o que afirma a teoria clássica do sintoma e do sonho. (Mezan, 2019b, p. 37)
Apoiados na definição de tempo oferecida por Mezan, podemos situar, então, as três diferentes facetas da obra de Dolto. Três maneiras de habitar ou de se deixar afetar pela passagem do tempo:
a) Dolto teórica (imagem inconsciente do corpo e as castrações simboligênicas) – uma autora contemporânea.
b) Dolto clínica – um clássico.
c) Dolto política – uma pioneira.
Passarei rapidamente pelas duas primeiras, para me deter naquela figura que chamei – na falta de um nome melhor – de Dolto política, uma habitante da cidade, o tema mais específico deste debate, embora os outros dois aspectos obviamente também pudessem ser aprofundados, trazendo resultados interessantes.
Dolto teórica
A grande contribuição de Dolto ao campo da teoria psicanalítica foi a criação do conceito de imagem inconsciente do corpo, um conceito complexo que se presta a articular a leitura das relações entre o corpo e a linguagem nos primeiros estágios do desenvolvimento do bebê.
Articulada à ideia de imagem inconsciente do corpo surge uma teoria do desenvolvimento psíquico e uma particular apropriação do conceito de castração. As castrações simboligênicas, termo cunhado por Dolto, são momentos cruciais no desenvolvimento das crianças