Diários: 1935-1936
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Sobre este e-book
Assim a editora Heloisa Jahn se referiu aos diários em que Eunice Penna Kehl registrou, entre 1935 e 1970, a vida em família da perspectiva de uma mulher culta, de classe média, no Rio de Janeiro do período do entreguerras. Mencionados ou apenas inferidos, acontecimentos políticos e fatos da história, no Brasil e no mundo, muitas vezes ganham em seu texto peso e nitidez surpreendentes.
Para Eunice, a ideia de escrever um diário não foi casual. Passado a limpo com esforço, o primeiro caderno surgiu com a função de fazer frente à depressão. Em 1935 Eunice perde Victor Luis, o filho mais velho, e essa dor a acompanharia a vida toda, bem como a culpa por julgar não ter cuidado bem do filho.
O ano seguinte traz os esforços de Eunice para superar essa perda. Além de cuidar das tarefas domésticas e familiares, ela abre uma academia de ginástica com uma amiga, iniciativa ousada para uma mulher de sua época. E, apesar de viver um casamento estável com o marido Renato, Eunice muitas vezes desabafa sobre seu caráter melancólico e neurastênico.
Em seu posfácio, afetivo e pessoal, Maria Rita Kehl parte das lembranças da avó para conciliá-las com aquilo que os diários revelam a respeito de Eunice e de sua época — o "curto século XX" de Hobsbawm, quando o mundo parecia ter um futuro de progresso constante pela frente.
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Diários - Eunice Penna Kehl
Sumário
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Folha de rosto
Sumário
Nota do editor
Diários
Posfácio — Maria Rita Kehl
Notas
Créditos
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Body Matter
Table of Contents
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nota do editor
Eunice Penna Kehl escreveu diários de forma sistemática entre 1935 e 1970. A família tem guardados catorze cadernos manuscritos, que foram transcritos e digitalizados. Alguns cadernos registram os dias de um único ano, como é usual na maioria dos diários. Outros são Five Year Diaries, que trazem cada página dividida em cinco partes, cada espaço correspondendo ao mesmo dia do mês, ao longo de cinco anos. O caderno de 1937 e o Five Year Diary que vai de 1943 a 1947 não foram encontrados pela família. Podem estar perdidos. É possível também, mesmo que improvável, que Eunice não tenha escrito durante esses anos, ou que tenha destruído os volumes.
Nesta edição estão reproduzidos na íntegra os dois cadernos inaugurais, de 1935 e de 1936 — foram mantidas, inclusive, as anotações das contas pagas que Eunice, como boa dona de casa, fazia com regularidade, na alegria e na tristeza. Ela tinha 34 anos quando começou a fazer registros nos diários. Nesses dois cadernos, além de registrar o cotidiano miúdo e revelar um delicado senso de humor, Eunice abre espaço para digressões e expõe mais abertamente sua intimidade, seus desejos, alegrias, frustrações e, em especial, sua dor profunda. Ao longo do tempo, e superando a dor, ela passa a se concentrar principalmente no registro das atividades do dia a dia.
Como a leitora e o leitor verão, a escrita acabou por se tornar uma necessidade incontornável para Eunice. No final de 1936, ela diz que não voltará a escrever, para em seguida acrescentar, em adendo datado de 1939: "Escrevi nunca mais e não o devia ter feito. Já escrevi mais dois anos e pretendo continuar a escrever". Ela foi mesmo adiante, disciplinadamente, até 1970.
Diários
1935
meu diário
1935
Último ano de felicidade completa, quando éramos ainda quatro: Renato, Eunice, Victor Luis e Sergio Augusto.[1]
13 março-1935
Tencionei iniciar estas anotações no dia 1.o do ano. Não o tendo feito, porém, neste dia, fui adiando, adiando e só hoje, resolvi fazê-lo. Bem sei que isto não me recomenda muito quanto a minha força de vontade e decisão, mas... isto é um mal de família e o simples fato de eu hoje aqui estar, de pena em punho, representa uma grande vitória sobre estes dois graves defeitos.
14-3-935
Hoje fomos jantar com China. Renato e os meninos tomaram banho de mar. Eu não o fiz, porque Renato não foi de automóvel e não pude levar minha roupa como tencionava.
15-3
Levei os meninos ao Liceu Francês, mas as aulas só começam no dia 18.
O bombeiro veio consertar o cano da mina. Passei metade do dia cosendo, nervosa e triste sem motivo. Irritei os meninos. Coitados! Não tenho motivos para estar alegre, mas vou procurar o meio de o ficar.
16-3
Manhã cheia. Ondina chegou para passar um mês no Rio. Ela muito gorda, Victor Lacombe com as mãos cheias de eczema, Claudio anão, Lucio insuportável e lindo, Cezar feio e estrábico. Mamãe, Julinha e Marina almoçaram comigo. Celina jantou. Tudo por tabela, mas, está certo!
O bombeiro não veio. Chegou ração para galinha.
17-3
Dia pau! Renato mais pau ainda! Irritante! Resultado: todos nós nos tornamos irritados. Vesti os meninos e levei-os para ver Meu coração te chama. Gostaram muito. Duas horas de prazer entre muitas de aborrecimento. Viva Jan Kiepura!
Não houve reunião de família, não sei por quê.
18-3
O bombeiro já consertou o cano do tanque e o jardineiro endireitou o jardim. Tudo em ordem.
Os meninos foram hoje ao colégio. Gostaram muito. Victor Luis fez um bonito, pois, entre trinta e dois alunos, foi o único que soube responder às perguntas do professor. Estou contente!
Nada mais a registrar de importante. A nova ge chegou.
19-3
Escrevi hoje à Olga. Registro o fato, para ver quanto tempo ela vai levar para me responder. Fui à casa de Maria e lá encontrei Ligia. Conversamos muito sobre eugenia e religião. Maria ainda está zangada com Renato, por causa dos pernambucanos. Renato terá que ceder, porque eles já fazem parte da família.
Julinha está doente e os filhos também.
20-3
Fui visitar Julinha. Eduardo está doente com gripe e ela aflitíssima como sempre. Lá estiveram Ligia e Ondina. Mamãe me pagou 27$000 da loção curativa. Vai para a fazenda sexta-feira. Papai lá está só e abandonado gozando o prêmio da asneira que fez. Está tudo errado!
21-3
Hoje foi dia dedicado aos carrapatos. Gastei horas com as empregadas a limpar paredes e ladrilhos com fogo, água quente, gasolina e Flit. Baiaco contaminou copa, cozinha, varanda e até o hall. A limpeza foi completa. Espero exterminar a praga. Assisti hoje a uma chuva espantosa! Chuva de corda
! Renato e meninos chegaram tarde. O jardineiro plantou as heras portuguesas. Não fui à ge.
22-3
Passei o dia em casa, cosendo. O Kaelble chegou da Europa e parece que trouxe boas notícias. Pretendem fundar a firma brasileira, entrando Renato como sócio. Bom? mau? Não sei. Nunca se pode confiar na sinceridade desta gente.
Renato está se sentindo muito bem de saúde, cousa rara.
23-3
Luiz Antonio limpou o jardim do 34. Ainda não fui ver. Passei a manhã na cozinha preparando jantar para Ondina e Victor Lacombe. Pretendia sair à tarde, mas Victor Luis ficou com febre, fez-me uma série de malcriações; eu chorei e não pude sair, porque fiquei com os olhos vermelhos. Quando acabarão estas cenas? Idade? Falta de jeito meu?
O Kaelble ainda não falou com Renato.
Espero acabar bem o dia, proseando com Ondina e Victor Lacombe. Sergio está com um tumor embaixo do braço, tomando Cariogon.
24-3
Victor e Ondina jantaram ontem conosco, mas foram-se cedo para ver padre Resende, que os foi visitar.
Hoje cedo rasgamos o tumor do Sergio, que mostrou-se bem valente. Depois fomos levar Baiaco ao banho de mar. Uma tragédia!
Victor Luis já está bom da gripe, mas não foi ainda ao passeio que fizemos ao Leblon, Copacabana, etc. Levamos Ondina e Victor, que apreciaram muito o passeio. O dia foi calmo e acabou-se bem.
25-3
Fui hoje cedo com os meninos à cidade, encomendar os uniformes. Seis — 980$000! Já estão ambos curados. Levei-os ao colégio. Fui até ao Leme levar o Serra e voltamos para almoçar em casa. À tarde cosi e à noite fomos ao Alhambra assistir um belo film sobre a vida de Chopin.
Os alemães estão vencendo!
26-3
Ando mais ou menos nervosa e irritável. Hoje saí para me distrair. Fui ver Julinha e trouxe de lá, para Ondina, um bolo que Helena fez. Ficou muito artístico. Pena que ela gaste sua habilidade em cousas comíveis e... digeríveis. Sinto-me gripada.
Visitei João que ainda está adoentado.
27-3
Escrevi hoje cedo à Cecilia, pedindo que venha tratar do marido.
Tive um dia insípido. Gasto a manhã a lidar, ou antes, a lutar com os filhos para estudar, tomar banho, etc. O Serra veio almoçar. Trouxe-me um estudo sobre a filosofia positiva do Comte, escrito por Lévy-Bruhl. Comecei a ler agora.
Durante o dia li as vidas amorosas de Musset e Chopin, ambos enfeitiçados pela mesma mulher, George Sand. Duas de suas muitas vítimas.
Cosi um pouco e lá se foi mais um dia.
27-3
Divagações
Bem vontade tenho eu de saber escrever. Gostaria imenso de me impor a admiração e respeito de toda gente por este dom, espalhando ideias, mas boas ideias. Não sei por quê, nem em que me baseio para esperar que, futuramente, serei uma grande escritora. Nada, por enquanto, revela em mim esta tendência, a não ser uma sensação, ou antes, uma intuição muito íntima de que isto vai acontecer um dia. Não me esforço, contudo, para cultivar esta ideia e dar-lhe um sentido prático, pois raramente pego na pena para divagar, como ora estou fazendo. Sinto, às vezes, um grande desejo de o fazer, mas falta-me coragem. Não posso ainda precisar minhas ideias sobre os vários assuntos que me preocupam, porque não me sobra tempo para meditar. A mulher não pode dedicar-se à literatura, sem prejuízo para suas obrigações. A vida doméstica nos absorve a tal ponto, que é quase impossível termos sequência em nossos pensamentos. O materialismo, a banalidade das ocupações femininas combina tão pouco com as preocupações intelectuais, que já me conformei com a ideia de não pensar mais em escrever tão cedo. Outra cousa me afasta também da vida literária. Não creio que um casal possa ser feliz, quando marido e mulher lutam no mesmo campo de competições. O homem raramente se conforma com o sucesso literário da esposa, por mais que a ame. É um sentimento tão natural, tão humano e tão... masculino, que creio não poder escapar à regra. Para que o orgulho masculino nada sofresse com isto, seria necessário, que o marido fosse um espírito de uma superioridade fora do comum, ou um simples joão-ninguém
que ficasse satisfeito em ser o marido de fulana de tal
e nada mais.
Compreendo muito bem tudo isto e prezo muito minha tranquilidade e harmonia conjugais para tentar a experiência.
Não só Renato não se sentiria feliz, como os filhos teriam que sofrer as consequências do desvio de minhas ocupações. Raciocinando assim, é que pude fugir à tentação que me assaltou, três anos atrás, quando ainda existia A Colmeia. Se eu tivesse perseverado naquela ocasião, teria feito hoje progressos bem aproveitáveis.
Mas, apesar da renúncia, continua no meu subconsciente a ideia fixa de que um dia, ainda remoto, serei uma grande escritora. Por quê? Eu mesma não sei responder com segurança, pois que ao lado desta convicção, um sentimento de inferioridade e incapacidade me persegue sem tréguas. Este sentimento me foi incutido em criança, por um vício de educação muito comum. Poderei vencê-lo, adquirindo confiança em mim mesma com o correr do tempo?
Outro motivo me leva também a adiar o início de uma vida literária. A mulher é muito individualista quando escreve. Levada sempre pelo sentimento e, já pela sua própria natureza, ela é incapaz de objetivar completamente suas ideias. Raramente leio uma página feminina que me agrade. Tenho a impressão de que ela não ultrapassa as páginas do livro que escreve. Quando muito pode atingir um outro coração de mulher e nada mais. Meu desejo seria abranger horizontes mais largos. Trazer benefícios à coletividade, esclarecer, orientar, melhorar. O banal me enerva.
Mas de que maneira conseguir tão alto objetivo, se nada em mim parece confirmar este ideal tão alto?
Mesmo assim, prefiro não alcançá-lo, por muito elevado, do que conseguir um mais baixo.
Eis por quê, vou adiando a realização deste grande, imenso desejo, que talvez nunca chegue a ser executado. Acalentá-lo não equivale, porém, [a] vivê-lo a meio?
28-3
Nada hoje a registrar, a não ser a nova carta que escrevi à Cecilia, pedindo-lhe que venha.
Estou resfriadíssima; no período agudo em que se fica desprezível. Passei quase todo o dia deitada e à tarde consertei uma porção de meias.
Li um livro de Júlio Verne, no qual ele expõe as doutrinas socialista, anarquista e comunista, mostrando a insanidade de todas elas, incapazes de trazer benefícios satisfatórios quando postas em prática. Grande espírito e imortal o de Júlio Verne, votado à admiração imorredoura dos homens, sempre tão humano e atual.
29-3
Ninguém tem culpa de que uma pessoa coma uma coxinha de galinha engordurada, mas aqui em casa toda a família sofre, quando Renato se lembra de a comer. Fica impertinente e o Victor Luis é a vítima de sua má digestão. Escrevi novamente à Cecilia. Estou com pena dela. Falei com João, que vai só para a fazenda e depois irá a São Paulo. Sinto-me gripada e abatida. Passei o dia lendo a filosofia positiva
para ter uma noção justa do pensamento do grande Comte. Lévy-Bruhl, autor do livro, é um ótimo expositor, claro e conciso, duas qualidades que raramente se encontram juntas.
Tenho grande empatia pelo positivismo, mas, no geral, não gosto do que escrevem os positivistas. Sua linguagem não me agrada com a mania que têm de escrever numa ortografia arrevesada e usar as datas do calendário positivista. Ao demais, ler um é ler todos. No seu fanatismo pelo mestre, escrevem sempre as mesmas frases, têm todos as mesmas ideias.
Um livro como o de Lévy-Bruhl é cousa rara. Estou encantada com sua leitura e adquirindo outra compreensão da doutrina filosófica de Comte, cujo espírito genialmente superior é incontestável. A lei dos três estados
que é uma concepção tão lógica, tem sido acerbamente criticada, talvez por pessoas que jamais tenham lido seu autor. É uma filosofia tão simples e clara, que desconfio ser este o motivo da aversão que lhe votam.
Os homens só apreciam o que é absurdo e incompreensível. Só admiram quem escreve ou fala o que eles não entendem. Deriva isto de um vício de educação metafísica que há séculos perverte o espírito humano, desviando sua compreensão das cousas as mais banais. Só o tempo poderá remediar tal estado de cousas.
A anarquia de ideias que assola o mundo não é mais do que o desequilíbrio causado pelo conflito intelectual entre as concepções metafísicas e as verdades positivas impostas pelo progresso das ciências. A humanidade se acha desorientada, pois falta-lhe uma unidade de doutrina capaz de pôr cobro a este conflito. Como é impossível ao espírito humano retrogradar até a Idade Média, época de um completo equilíbrio intelectual, moral e religioso, porque para isto, ele teria de eliminar de suas cogitações todo o progresso da ciência, — não temos outro remédio senão esperar o advento de uma doutrina mais positiva que venha trazer novamente ao homem a paz de que tanto necessita.
Este o grande sonho de Comte, que aos poucos vem se realizando, sem lutas nem sangue, mas pela evolução natural dos espíritos.
Toda reforma que se vem fazendo no mundo, sob que rótulo seja imposta aos homens, é um novo passo para o estado positivo ideado por Comte. Isto porque sua doutrina não é mais do que o bom senso sistematizado
e a humanidade, apesar dos percalços, caminha para um aperfeiçoamento lento, mas incessante.
30-3
Este mês está custando a acabar. Hoje foi um dia insípido para mim. Gripada como estou, passei-o deitada ou lendo. Sinto-me nervosa, abatida, impaciente, sem encontrar solução para vários problemas da minha vida. Nada tenho, pois, a registrar de interessante.
30-3
Divagações
Não tentes medir com palavras o incomensurável, nem mergulhar a ronda do pensamento no impenetrável. O que interroga busca ilusão, o que responde engana.
É sábio o provérbio, é justo o conselho e só poderia ter sido ditado por uma perfeita sabedoria.
O homem vem buscando, em vão, resolver o problema das causas primeiras e finais. Todo o seu esforço se resumiu, até hoje, na formação de doutrinas metafísicas, sem base na experiência, ditadas pela sua imaginação e amor ao maravilhoso.
No despertar de sua consciência o homem primitivo procurou explicar os fenômenos da natureza, para ele incompreensíveis, emprestando aos mesmos faculdades iguais às suas, sendo as suas próprias sensações o único campo de observação de que dispunha.
Daí a crença em um deus ou deuses, peculiar à infância da humanidade, único sistema filosófico
capaz de satisfazer uma mentalidade primitiva, por ser também o único que dispensa premissas, isto é, uma hipótese ou dados científicos sobre os quais se pudesse basear. É uma crença espontânea, inerente à própria natureza humana e à ignorância das leis naturais que regem o mundo. Esta crença além de inevitável, foi de grande benefício para a humanidade nos primórdios de sua existência, pois ajudou-a a vencer inúmeras dificuldades, graças à convicção de que suas preces e dádivas poderiam facilmente demover as divindades, mudando assim o curso dos acontecimentos seguindo o desejo de cada um.
Só muito mais tarde puderam os homens aceitar o mundo tal qual ele é, regido por leis inflexíveis e imutáveis, não tendo eles para quem apelar, senão para sua própria inteligência, para solucionar os inúmeros problemas que a vida em comum exige. Esta transição, porém, não foi brusca. Fez-se e vai se fazendo aos poucos, até que passe o estado metafísico e abstrato em que vivemos ainda, para o estado positivo ou científico.
E o mundo caminha para lá em passos largos! Um simples olhar na nossa história bastará para verificar-se como está longe a era dos milagres... Como o século xx é exigente na demonstração científica dos mais simples fatos e dos fenômenos os mais complexos!
31-3
Último dia do mês; domingo de tédio, tédio, tédio! Foi no que consistiu o dia. Tédio, por quê? Nem eu sei. Fomos ao cinema ver Kay Francis. Melhora passageira, mas o mal cá está novamente. Só desejo que chegue a hora de dormir. Quem sabe amanhecerei melhor?
31-3
Divagações
Escrever parece fácil; no entanto quando releio o que escrevo e vejo a banalidade de minhas frases em contraste com meus pensamentos que sinto tão profundos, expostos em termos inexpressivos e frios, fico desanimada. Por que razão não posso transmitir ao papel aquilo que sinto em mim tão vivo e forte? Talvez seja ainda cedo para cogitar de assuntos que não alcançaram meu subconsciente, para onde vão os conhecimentos adquiridos após longa assimilação. Minha memória é fraca por falta de educação, pois minha instrução foi das mais rudimentares. Depois dos trinta anos, quando se deu a minha emancipação intelectual, é que comecei a ler e ter contato com os grandes espíritos. Vivo, até hoje, num deslumbramento, descobrindo cada dia um pedaço deste mundo, para mim inteiramente novo: o mundo do pensamento humano.
Tenho, contudo, uma ótima qualidade: sou ruminante. Quando um assunto me interessa disseco-o mentalmente, o que me permite guardar alguma cousa do muito que tenha lido. Mas como meus colóquios íntimos diferem do que escrevo! Muitas vezes sou mesmo incapaz de transmitir ao papel o que penso com a mais límpida clareza. Falta de hábito? Qual! Incapacidade da legítima! Mas, pouco importa! Hei de perseverar! Ninguém vai ler o que escrevo no meu diário, posso, pois, continuar até a verificação de que deva ou não prosseguir.
1-4-935
Primeiro de abril! Não fui enganada nem uma vez, nem mesmo por mim. Amanheci melhor humorada, depois de uma noite bem-dormida. Iniciei minha ginástica, depois de um mês de descanso.
Estou destreinada e cansei-me bastante. À tarde fui ver d. Antonieta e pagar a última conta do Victor Luis, 250$000!! D. Antonieta, como sempre, encantadora e muito nossa amiga. Renato está resfriado ou cousa parecida.
1-4
Divagações
Hoje é o Dia da Mentira! Mas foi esse o dia que escolhi para tomar uma resolução verdadeira. Não direi inabalável, pois não creio que haja qualquer cousa inabalável neste mundo. Contudo minha resolução é bem firme e tanto mais firme porque resolvi registrá-la no meu diário, apesar do muito que vai me custar levá-la a termo.
Tenho um temperamento muito impulsivo e impaciente. Creio mesmo que sou muito intolerante para com os defeitos alheios, quando o alheio
são os meus dois filhos.
Sempre fui muito aplicada e ordeira quando menina. Não posso perdoar aos meus filhos não o serem também. Não admito a transigência de um dever por menor que seja.
Até hoje tenho me preocupado muito com eles; esforço-me para que sejam cumpridores de suas obrigações, que tenham método, etc. Meus esforços são porém baldados. Não progridem um milímetro sequer. É preciso que eu constantemente lhes lembre o que devem fazer, ou mesmo acabe fazendo tudo o que lhes cabe executar.
Creio que andei errada até agora. É preciso deixar às crianças a noção de sua responsabilidade no cumprimento ou não cumprimento de suas obrigações. Tenho ajudado tanto meus filhos, que eles nunca se esforçaram por si sós, contando sempre com minha intervenção, minha constante vigilância e auxílio para que tudo ande nos eixos.
Minha resolução consiste, pois, em deixá-los entregues a eles mesmos, e sofrerem as consequências das próprias transgressões do dever.
Terei coragem para tanto? Tenho que me esforçar para prosseguir até o fim, sob pena de ficar doente dos nervos, mal que já se manifesta de maneira assustadora, tornando-me incapaz de fazer felizes os meus filhos, pelo excesso de minhas exigências.
Esta resolução tomada em 1.º de abril, precisa ser cumprida. Por que não agir como as outras mães? Por que desejar que as crianças sejam umas perfeições, exigindo delas mais do que podem dar?
Meu papel, de hoje em diante, será aconselhar, aconselhar sempre. Se quiserem agir, bem! Se não quiserem, que sofram as consequências dos erros cometidos. Não darei um só passo para resolver as dificuldades criadas por eles, pela preguiça ou descuido. Não sei se estou certa ou errada. O tempo e a experiência mo dirão. Mas o fator principal para o