A Escola de Ulm: 1953-1968
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Sobre este e-book
Com 16 ensaios do autor e contribuições dos professores Nelson Aguilar e René Spitz, o livro A Escola de Ulm: 1953-1968 apresenta, ainda que repleto de vivências pessoais, um panorama bastante objetivo da história da formação e das pedagogias dessa Escola de Design. Antípoda do fascismo, Ulm é historicamente motivada pela democracia técnica e industrial, pela pluralidade internacional; inspirada pela arte concreta e pelo jazz. O momento é de ocupação política e cultural norte-americana na região de Baden-Württemberg, na Alemanha. Aquela música negra, assim como a memória da Bauhaus são alimentos da necessidade espiritual europeia para o retorno à ordem, mais que isso, para a renovação cosmopolita dessa ordem, tudo em meio aos escombros físicos e psíquicos deixados pelos tambores, marchas e canhões do militarismo.
A Escola de Ulm é assim, princípio histórico da esperança para aqueles convencidos de um modelo que afirma o caminho, o método, humanista na utilização dos recursos e das capacidades técnicas da humanidade, destinadas ao conhecimento e, por ilação, à paz perene. Mas o design de Ulm, nas suas intenções mais puras, não teria se tornado algo clássico? Ideal? Exclusivo? Não seria isso o contrário do que poderia ocorrer a um conceito ou objeto que almeja ser útil, funcional, cotidiano? O humanismo é possível no sistema econômico de uso e troca da produção industrial? Essas e outras questões devem instigar e intrigar a leitura sobre a história da trajetória ulmiana.
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A Escola de Ulm - Rodrigo Otávio da Silva Paiva
Sumário
CAPA
Uma Escola em Ulm
Inge Scholl e Otl Aicher
Max Bill
Tomás Maldonado
Grundlehre
Arquitetura
Fotografia
Design de Produtos e Construção Industrial
Comunicação Visual, Informação e Cinema
Crônica de um ângulo reto
Concreto e Cinético
A boa forma
Bauhaus ou Ulm
Linguagem
Ciência
Sociedade
Referências das Imagens
Referências
SOBRE O AUTOR
SOBRE A OBRA
CONTRACAPA
A Escola de Ulm
1953-1968
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2023 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
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Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
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Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Rodrigo Otávio da Silva Paiva
A Escola de Ulm
1953-1968
A Almir Mavignier e Martin Krampen.
Agradecimentos
Às instituições que apoiaram esta pesquisa e a possibilitaram na forma de livro, seguem meus mais sinceros agradecimentos: à Universidade Federal do Espírito Santo, representada por seu magnífico reitor, o Prof. Dr. Paulo Vargas, ao Consulado-Geral da República Federal da Alemanha no Rio de Janeiro, na pessoa do Exmo. Sr. Dirk Augustin; ao Museu da Cidade de Ulm e ao Arquivo da Escola de Ulm (HfG Archiv), na pessoa da Sr.a Christiane Wachsmann; ao Museu de Arte de São Paulo, na pessoa da Sr.a Ivani Di Grazia Costa; ao Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, na pessoa da Sr.a Anna Carboncini, além do Arquivo Histórico Wanda Svevo da Bienal de São Paulo e à Fundação Ernst Scheidegger.
Meus especiais agradecimentos ao Prof. Dr. René Spitz, cujo arquivo forneceu uma série de fotografias de autoria de Hans Conrad. Também ao arquivo de Otl Aicher, representado por Florian Aicher; ao de Max Bill, representado por Jakob Bill; ao de Almir Mavignier, representado por Delmar e Sigrid Mavignier.
Meus mais afetuosos sentimentos de gratidão às pessoas: Nelson Aguilar, Andrea Emmerich, Hartmut Espe, Malaak Kallache, Karlheinz Lüdeking, Jörn Luther, Torsten Malcherczyk, Elena Pinto Canellada, Bernd Potschka, Marcela Quijano, Maria Helena da Rocha Paranhos, Dagmar Rinker, Christiane Rudolph e Dirk Rudolph, Peter Samodelkin, Jenny, Caio e Lino Sander, Katrin Scharnweber, Bernd Schulzer, Ute Szczepanski, Johannes Touché, Elizabeth Varela e Juliane Westphal. Gratidão também à Sr.a Pia Rühmann do setor de serviço cultural do Consulado-Geral da República Federal da Alemanha no Rio de Janeiro.
Por fim, aos ex-membros da Escola de Ulm e seus familiares, seguem sempre minhas lembranças e meus cordiais agradecimentos a Giovanni Anceschi, Gui Bonsiepe, Ulla Brehm, Erich Brenziger, Josef Breuer, Lucien Bringolf, Ernst Buchwalder, Hansruedi Buob, Günther Elstner, Klaus Erler, Susanne Eppinger-Curdes, Urs Fanger, Jan Glasmeier, Karl Gröbli, Christine und Viktor Guirard, Ernst Hahn, Sieger Heinzmann, William Huff, Heiner Jacob, Winfred Jokisch, Eckhard Jung, Herbert Kapitzki, Ernst-Michael Klar, Peter von Kornatzki, Nobert Kurtz, Herbert Lindinger, Tomás Maldonado, Edgar Mauss, Rolf Müller, Walter Müller, Oanh Phamphu, Peter Polland, Hermann Roth, Sabine Sass, Claude Schnaidt, Rolf Schroeter, Hans Oskar Thehos, Maria Wagner, Sven Weisshardt, Alexandre Wollner, Shizuko Yoshikawa, Dolf Zillmann, Gerd Zimmermann.
Prefácio
Com Bill no Brasil
Um nó cósmico aportou no jovem MASP, composto de um metal sideral, visível sempre diversamente de qualquer ponto de vista plausível. Até então a mais desbastada peça escultórica provinha do ateliê de Constantin Brancusi. Alguns nostálgicos aspiravam por Henry Moore, contudo a Unidade Tripartida de Max Bill ultrapassa qualquer expectativa. Tem a solidez de um signo, porém é pura forma. A continuidade eterna de uma tira que se desdobra espacialmente envolta em aço espelhado desafiou críticos e artistas. Num arroubo de racionalização, aludiu-se à fita de Möbius, mas eis que Bill desconhecia os arcanos da topologia. Para dar conta do percurso dançarino, o visitante deveria se comportar como um Georges Perec que se instala num café da praça Saint-Sulpice, em Paris, durante três dias para narrar tudo o que vê, em tentativa vã de esgotar o lugar.
A fotografia realizada por Peter Scheir por ocasião da 1ª Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo [MAM] (1951) focaliza um grupo de artistas em torno da recém-premiada escultura de Max Bill. O que se tornaria o Graal do concretismo brasileiro reúne artistas do Rio de Janeiro (Abraham Palatnik [1928-2020]), de São Paulo (Waldemar Cordeiro [1925-1973], Kásmér Fejér [1923-1989]) e de Buenos Aires (Tomás Maldonado [1922-2018]), da esquerda à direita da imagem. Chama atenção a jovialidade e o arrojo com que os jovens se situam em volta ao ícone. Palatnik, também galardoado com menção especial no certame pelo Aparelho Cinecromático, sentado, conserva pose semelhante à de um dos componentes dos Irascíveis norte-americanos, cioso de sua individualidade e intransigência; Cordeiro já desponta como o Jasão dos futuros concretistas, de braços cruzados, no centro geométrico do suporte fotográfico; Fejér não hesita mesmo em se apoiar numa das sinuosidades da peça cromada à maneira do pescador e sua presa e, finalmente, de branco, mãos nos bolsos, El matador
Maldonado, que anos mais tarde assumiria o lugar de Bill como reitor da Escola de Ulm. Além de Palatnik, Cordeiro e Fejér comparecem como artistas participantes da Bienal.
Figura 1 – I Bienal do MAM-SP, 1951. A. Palatnik, W. Cordeiro, K. Féjer e T. Maldonado
Foto: Peter Scheir. © Instituto Moreira Sales
A obra fora exibida no Museu de Arte de São Paulo [MASP], por ocasião de inédita exposição monográfica, alguns meses atrás. Devido ao impacto crítico da mostra, os organizadores do MAM requisitaram a peça mais insigne para a bienal, portanto a participação do artista no evento inaugural se deveu à colaboração dos dois museus que, na época, residiam no mesmo edifício.
Cabe perguntar como um artista europeu de ponta realiza a primeira grande retrospectiva de sua obra num museu recém-fundado da América do Sul, recebe o prêmio de escultura na 1ª bienal promovida por outro museu mais recente ainda, sem mesmo estar inscrito na delegação de seu país e se transformar em catalisador de mudanças fundamentais na arte brasileira.
A questão só recebe resposta se desvelarmos a afinidade entre dois parceiros culturais distintos, a saber, o diretor do MASP Pietro Maria Bardi [1900-1999] e o arquiteto e artista Max Bill. A carreira de Bardi, a despeito de dois livros dedicados a seu período italiano por estudiosos de seu país, ainda carece de pesquisas aprofundadas, uma vez que ambos se detêm apenas ao papel de notável propagador da arquitetura moderna, deixando de lado o campo das artes visuais, em que o destaque fora tão grande ou mesmo maior. Autodidata, Bardi opta pelo jornalismo, sempre atento ao trabalho de artistas plásticos, a ponto de estabelecer galeria em Milão e prosseguir como redator nos principais órgãos de imprensa. Em 1930, produz a exposição Carrà e Soffici, acompanhada de um ensaio no qual os artistas surgem como inconformistas diante da arte italiana corrente, capazes de guardar o rumo entre Futurismo, Metafísica e Novecento. Diretor da Galleria d’Arte de Roma no ano seguinte, promove a 2ª mostra de arquitetura racional, quando monta a chamada Mesa dos Horrores, montagem asfixiante em que construções carregadas pelas ornamentações de palácios empenachados conviviam a edificações pseudomodernas ao lado de cromos de almanaque e dísticos retóricos. Mussolini visita a exposição, e os jornais mostram o dignatário examinando a colagem polêmica. Bardi percebe a arquitetura como a mais congregadora das artes e instaura aí sua casa de forças. Funda uma das mais inovadoras revistas da época, Quadrante (1933-1936), na qual o trabalho dos melhores construtores italianos se justapõe aos de Le Corbusier, Walter Gropius, Mies van der Rohe. Participa do 4º Congresso Internacional de Arquitetura [CIAM] (1933), consagrado à cidade funcional, realizando o cruzeiro entre Marselha e Atenas sob a égide de Le Corbusier. Logo a seguir, convida a sumidade a proferir palestras na Itália. Os perigos da oficialidade começam a se sobrepor ao intrépido desbravador. Um sintoma claro se manifesta no último número de Quadrante dedicado inteiramente à Casa do Fascio, obra-prima de Giuseppe Terragni em Como. A construção prismática, escancarada por amplos planos de vidro, cuja maior qualidade está na simplicidade irremediável, critica o estilo vitorioso dos gladiadores da construção que almejava mimetizar a Roma imperial. Bardi se reergue mediante iniciativa particular, constituindo o Studio d’Arte Palma, alguns dias antes da liberação de Roma (4/6/1944). Trata-se de galeria de arte antiga e moderna, abrigando um núcleo de peritagem equipado com laboratório fotográfico e radiográfico. Apesar de exposições memoráveis (Giorgio Morandi, Giacomo Manzù, pintores italianos do século 17), Bardi não engole o resultado do referendo de 1946, que converte o Reino em República, alçando o partido democrata-cristão ao poder. O novo casal, agora formado com a arquiteta Lina Bo, considera salutar uma mudança de ares e a opção pelo Brasil pertence ao tirocínio do galerista que traz consigo parte do acervo. O contato com o dono dos Diários Associados, Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, e o convite para dirigir o futuro Museu de Arte de São Paulo pertencem à história da cultura brasileira.
A arquitetura se revelou a Max Bill, aos 17 anos, ao visitar a Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas de Paris e se deparar com o Pavillon de l’Esprit Nouveau, de autoria de Le Corbusier e Pierre Jeanneret. Até hoje, esse projeto se impõe como uma célula germinativa, um modelo multiplicável de habitação que deve ter alucinado por sua compacidade e clareza quem quisesse captar o sentido de moradia ao início de nova era. Se então a curiosidade do iniciante se estendesse até a leitura do manifesto Vers une architecture, não haveria retorno. O ponto de inflexão para Bill surge quando o conterrâneo Hannes Meyer, que privilegia em seu fazer o assentamento comunitário, assume a direção da Bauhaus. A partir daí, Bill transfere-se para Dessau, onde frequenta por dois anos os cursos de Josef Albers, Paul Klee e Wassily Kandinsky. Estabelece-se em Zurich, praticando arquitetura, escultura, artes gráficas e pintura. Torna-se membro do CIAM e edita o terceiro volume das Oeuvres Complètes de Le Corbusier (1934-1938). No pós-guerra, participa da fundação da Escola de Design de Ulm.
Com esses parâmetros, compreende-se por que o MASP começa suas exposições monográficas por Le Corbusier e Max Bill, dois pedagogos da arquitetura e da arte moderna, que sucederam às mostras didáticas que inauguraram a instituição paulistana, exemplo insigne do design contemporâneo através de expografia e mobiliário realizados por Lina Bo Bardi e de arte-educação. Curiosamente, os dois eventos não despertaram a unanimidade com que o diretor do museu contava, mais pelo desconhecimento do contexto cultural local do que pela qualidade impecável das exibições. Le Corbusier maculou seu papel de conselheiro na edificação do Ministério de Educação e Saúde Público, no então Distrito Federal, ao reivindicar a autoria do projeto da equipe de Lúcio Costa. Embora os arquitetos brasileiros reconhecessem a relevância dos pontos determinados pelo eminente precursor, tanto a implantação quanto a resolução dos problemas levantados pela construção pertenciam aos audazes implementadores. A situação só piorou pela publicação do quarto volume das Oeuvres Complètes (1938-1946), quando o mestre esboçou um desenho da obra inaugurada tomando-a como sua. Lúcio Costa manifestou indignação e somente mediante a participação de ambos em colegiados internacionais a querela se esvaneceu. Eis a razão da ausência de Le Corbu na abertura da 1ª Bienal, onde conquista o grande prêmio internacional de arquitetura, e do desinteresse dos cariocas em abrigar a mostra maspiana. Já Bill obteve sucesso entre artistas (além dos já mencionados, Lothar Charoux, Almir Mavignier, Luiz Sacilotto, Ivan Serpa, Geraldo Barros, Amílcar de Castro, Mary Vieira, Ivan Serpa) e críticos como Geraldo Ferraz e Mário Pedrosa. Max Bill visitaria o Brasil em junho de 1953, quando a verve crítica do artista e designer causou algum alvoroço. Esse tópico e os antecedentes foram pesquisados com rara acurácia pelo professor Rodrigo Otávio da Silva Paiva em max bill no brasil.
Aí não é gratuita a menção da frase proferida pela personagem da Carta roubada, de Edgar Allan Poe, na epígrafe do ensaio. Rodrigo emulou o detetive Auguste Dupin ao reconstituir as vicissitudes da exibição do artista suíço no país. Sem o conhecimento das regras que legislam o trânsito de obras de arte, não há como captar altos e baixos no relacionamento entre curador e artista. Até mesmo o prêmio a Bill na 1ª Bienal deveu-se à casualidade de suas obras permanecerem guardadas no MASP à espera de eventual exposição na Argentina que não ocorreu em parte por dificuldades alfandegárias. A reconstituição das peças da exposição por Rodrigo graças à frequentação assídua ao acervo billiano coloca o leitor dentro do salão do MASP e exemplifica o que se pede a um verdadeiro pesquisador. Diante do veterano Tomás Maldonado, em Milão, pergunta em qual idioma o famoso professor argentino preferia realizar a entrevista, italiano, espanhol ou alemão. —Em alemão
. E assim foi. O acompanhamento da correspondência entre Bill, Bardi e Wolfgang Pfeiffer elucida o dia a dia do museu, como quando da instalação da Vitrine das Formas, extenso percurso abrigando desde antiguidades egípcias até a máquina de escrever Lexikon 80, projetada por Marcello Nizzoli, inaugurada durante a exposição Le Corbusier, estabelecendo a fronteira entre a sala das exposições periódicas e a do acervo.
Como acontece Max Bill aos artistas brasileiros? A cada um, o encontro difere, recorre a como a arte se manifestou originariamente, mas ressoa uníssono na primeira impressão despertada pela Unidade Tripartida, congregando os companheiros da revelação. A Abraham Palatnik algo sucedeu quando tomou contato com os artistas do Centro Psiquiátrico Pedro II [CPPII] de Engenho de Dentro, em 1948, por intermédio de Almir Mavignier. Tudo o que até então compreendera sobre arte dissolveu-se. Aquelas pessoas criavam sem background, a partir do próprio sentir, longe do que se designa como composição. Em depoimento pessoal, Palatnik nos confessou que somente a eletricidade seria capaz de reconstituir o ímpeto com que aqueles homens exerciam a passagem do caos à ordem. Daí advêm os Aparelhos Cinecromáticos. O encontro com a obra de Bill apenas confirmou sua intuição primeira, o fluxo interminável das energias concentrado na peça do artista suíço.
Visitei Almir Mavignier em outubro de 2003. Fui até Hamburgo e conheci seu ateliê asséptico, semelhante à sala de reunião de uma multinacional, não fosse pela presença múltipla da obra. Uma questão me impulsionou: como coadunar seu papel fundamental na constituição do Museu de Imagens do Inconsciente [MII] à atividade discente na Escola de Ulm (a famosa HfG-Ulm) e docente na Escola de Belas Artes de Hamburgo. Aos 21 anos, Almir trabalha no CPPII, no Rio de Janeiro, como um bico para sustentar sua atividade artística. Propõe à doutora Nise da Silveira montar um ateliê de pintura para os internos. O problema-chave é encontrar os talentos no grande desaguadouro humano arvorado em serviço de saúde pública. O artista sai a campo como a personagem que recruta guerreiros nos Sete Samurais, de Kurosawa. Um dos doentes escondia os desenhos debaixo da cama; outro já pintava antes da internação, aos poucos, contando com o faro e a vocação, reúne Raphael Domingues, Emygdio de Barros, Issac Liberato, Carlos Pertuis, Arthur Amora, entre outros. Envolve-se tanto com a comunidade que frequenta a casa de Raphael, durante as melhoras, acompanha outro interno ao bordel (seria interessante saber que tipo de diagnóstico permite essa rápida socialização), aproxima colegas artistas como Ivan Serpa e Abraham Palatnik, além do crítico Mário Pedrosa, do núcleo do futuro MII, a ser fundado em 1952, quando Almir já se encontra na Europa. Em 1953, a HfG-Ulm é inaugurada com a ambição de reconstruir a Alemanha mediante uma produção artística voltada ao design, partindo da linguagem pura das formas, da abstração absoluta. Cabe a Max Bill a condução do projeto. Almir inscreve-se na primeira turma da Escola, matriculando-se em Comunicação Visual¹.
Diante de Luiz Sacilotto, em seu centro de operações, sentimos a presença de um aliado substancial dos empiristas. Seu conhecimento provém inteiramente da experiência aquinhoada ao talento. Responde apenas ao que é perguntado, valorizando o silêncio. Sem patrimônio herdado, vale-se de obstinação em época na qual se alargava o vão entre o trabalho manual e o intelectual. Sacilotto começa profissionalmente como letrista, prossegue na serralheria, atento à estrutura formal nos dois ofícios. Declara que trabalhava durante o dia para fazer arte à noite, quando, na verdade, exerce seu saber tempo integral. Quando conhece a obra de Bill, descobre um companheiro além-mar, igualmente avesso à clivagem entre a ética e a poética. Em suas telas ou esculturas, nada se perde, a economia pictural ou plástica presta contas mais ao ritmo intervalar, à correspondência colorística, ao poder do vazio. Se os artistas paulistas não se ajustassem ao mercado de trabalho, passariam por dificuldades: Geraldo de Barros labuta como funcionário no Banco do Brasil, Waldemar Cordeiro, paisagista, Fejér mantinha oficina de acrílico, Lothar Charoux vendia linha para costura. Orgulhoso de sua perícia profissional, Sacilotto pratica também escultura e exibe peças que intitula Concreções, onde o aspecto lúdico e geométrico do corte e da dobra orientariam vários neoconcretistas.
Geraldo de Barros já exercia atividades artísticas e fotográficas quando é convidado por Pietro Maria Bardi para instaurar um ateliê de fotografia com Thomas Farkas, no MASP, em 1949. Seu esmero laboratorial está demonstrado no ano seguinte pela exposição Fotoforma, no mesmo museu, quando se beneficia da expografia apurada de Lina Bo Bardi, na qual as fotos são hasteadas por cavaletes, diante de painéis brancos ou cortinas onduladas. O contato com a obra de Bill vem da montagem da exposição. Daí em diante, prolonga sua admiração pela arte concreta, reforçada por bolsa de estudos que garante um ano de permanência na Europa. Seu cartaz consagrado ao 4º centenário da cidade de São Paulo inspira-se diretamente nos realizados por seu mentor, como percebe Chico Homem de Melo. Em 1960, Max Bill organiza a exposição konkrete kunst: 50 jahre entwicklung no Helmhaus de Zurique, onde desfilam os precursores Albers, Delaunay, Kandinsky, Klee, Maliévitch, Mondrian, Schwitters, entre outros, os contemporâneos Bill, Dubuffet, Morellet, Rothko, Soto e demais, além dos brasileiros Geraldo de Barros, Waldemar Cordeiro, Luiz Sacilotto, Alexander Wollner, Kásmér Fejér, e outros 13 conterrâneos, o que comprova a sintonia do suíço com nossa arte.
Ficamos decepcionados com o documentário Bill – a visão de mestre (2008), de Erich Schmid, no cine Sesc, lançamento patrocinado pelo Consulado-Geral da Suíça em São Paulo, com a presença do diretor e sua cônjuge, a historiadora de arte Dr.a Angela Thomas Schmid, biógrafa que foi por sinal a derradeira esposa de Max Bill. Não há menção ao Brasil num filme de 93 minutos. Seria um efeito de queima de arquivo, uma vez que o melhor escultor da 1ª Bienal de São Paulo veio acompanhado da primeira esposa, Binia Spoerri Bill, em 1953, a convite do Ministério de Relações Exteriores (o que custou o posto do ministro, por conta da crítica acerba que Bill desferiu ao edifício do Ministério de Educação e a outros projetos de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer)? Schmid é muito progressista em relação ao Primeiro Mundo e conservador (ou indiferente) a outras partes do globo. Em seu texto disponível no site yumpu, Max Bill e suas ligações com o Ticino, aprendemos que o futuro mestre de Ulm, aos 12 anos de idade, por ter sido apanhado subtraindo revistas numa banca, foi encaminhado pelos genitores a Glarisseg, que ostenta instituição famosa por acolher adolescentes difíceis. Noutro passo, narra que os dois Max, Ernst e Bill pretendiam dar uma lição a um historiador de religião alemão de extração nazista convidado pela Fundação Eranos, perto de Ascona, aplicando-lhe alcatrão e penas, o que não dá certo. O erudito não se chamava Wolfgang como Schmid insiste, tratando-se do indologista Jakob Wilhelm Hauer, que, apesar de antissemita, desentende-se com o Partido Nacional-Socialista e é afastado por seus próceres. Esse mosaico de pormenores bizarros, vindo de quem conta com o respaldo da Fundação Max Bill Georges Vantongerloo, faz supor que visaria dar um lustro de insubmisso a quem a federação helvética pretende canonizar?
Impossível fazer o retrato de Bill sem o Brasil, pois tornou-se um oráculo aos artistas nacionais, como atesta foto de Emanuel Araújo visitando Delfos. Ter sido premiado na Bienal mais celebrada do pós-guerra que mexeu com a geopolítica das artes e de maior longevidade que a Escola de Ulm tornou o artista mais universal do que ser galardoado, em 1993, em Tóquio, com o Praemium Imperiale² ao final de sua existência, fato que o documentarista suíço, solene, comemora.
Nelson Aguilar
É professor colaborador de História da Arte no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Foi curador-geral de diversos eventos, entre os quais a 22ª e a 23ª Bienais de São Paulo (1994 e 1996), a Mostra do Redescobrimento (2000) e a 4ª Bienal do Mercosul (2003). Organizou as coletâneas Fenomenologia e arte, do filósofo Henri Maldiney (Edusp, 2018), Pietro Maria Bardi: Construtor de um novo paradigma cultural (Editora Unicamp, 2019) e Henri Maldiney Espace Rythme Forme (Cerf, 2022).
¹ Obras comentadas da coleção do Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo: Mam-SP, 2007. p. 157.
² O Praemium Imperiale é um prêmio global de artes concedido anualmente pela Japan Art Association. Desde sua inauguração, em 1988, tornou-se um marco das artes (apud https://www.praemiumimperiale.org/en/).
Apresentação
Historiografia da Escola de Ulm: um panorama
³
Quando Tomás Maldonado, por ocasião do quinquagésimo aniversário da Escola de Ulm (hfg ulm), inaugurou, no dia 14 de setembro de 2003, a exposição ulmer modelle – modelle nach ulm
, ele decepcionou aquele público que esperava ouvir uma apresentação autorizada da história da hfg. Maldonado rechaçou claramente tal aspiração em suas palavras introdutórias:
Aquele que é convidado a comemorar o aniversário de uma instituição, escolhe, em regra, um tom de honrosa-festividade. Ou escolhe, no caso dele mesmo ter sido um protagonista da instituição, um tom de nostálgicas divagações na lembrança dos bons e velhos tempos. Na minha contribuição, eu gostaria de evitar, tanto o tom de honrarias-festivas, quanto o tom impregnado de nostalgia. Nada seria mais absurdo do que fazer da Escola de Ulm um empoeirado objeto de culto ou um lugar de encontro em que se trocam [se, observação do autor] lembranças sobre as experiências coletivas feitas. Assim, para contornar este risco, eu me decidi, provavelmente contra as expectativas de muitos aqui presentes, a não tornar a Escola de Ulm como tema central de meu discurso. Eu não submeterei nem os modelos de Ulm, nem os modelos segundo Ulm a uma avaliação. Em outras palavras, eu não vou puxar um balanço crítico dos sucessos e fracassos do assim chamado experimento de Ulm. Eu creio que tal projeto não pode ser tarefa daqueles que, como no meu caso, estiveram entre os protagonistas desta instituição. Na minha concepção, os protagonistas nunca devem roubar o ofício do historiador. Normalmente, os protagonistas se tornam menos confiáveis quando eles usurpam a função do historiador.⁴
Nem todos os membros da hfg ulm, após 1968, foram assim reservados diante da visão e apreciação do passado, do qual eles mesmos participaram ativamente. Apenas poucos anos após seu término⁵, aparecia a publicação sobre a história da hfg. A revista suíça archithese dedica sua décima quinta edição à Escola de Ulm. A contribuição de Otl Aicher sobre as nove fases de seu desenvolvimento
influencia, desde então, como nenhuma outra⁶, a recepção. Aicher, o agente dominante de toda história da hfg, ambiciona para si o papel do cronista de juízo independente e mais capacitado, por causa de seu íntimo conhecimento da instituição. Essencialmente, Aicher esboça a seguinte periodização: a fase de fundação, como sucessora da Bauhaus, abruptamente substituída pela cientificidade do design, seguida de um breve florescer, sob a condução do designer, com o desenho icônico que justificou sua fama internacional e, por fim, o declínio.
Não é apenas surpreendente que essa introdução até hoje quase não tenha sofrido contradição. É também admirável que na percepção geral — mesmo dos especialistas – essas quatro etiquetas, em que pese a contradição interna evidente, tornam-se sedimentadas como uma fórmula de descrição da hfg. A Escola de Ulm é signo tanto de sucessão da Bauhaus, como de cientificidade do design. Sua especificidade mostra-se em alguns ícones e seu fim veio tão subitamente, porque a política
a fechou violentamente.
Depois que Petra Kellner e Holger Poessnecker se dedicaram⁷, em 1978, à sua dissertação sobre alguns aspectos do Departamento de Design de Produtos, do Grundlehre e do assim chamado estilo de ulm
— praticamente pouco observada na recepção histórica —, aparecia, no ano seguinte, na revista milanesa rassegna, uma vasta miscelânea de material histórico e retrospectivas⁸.
Na confluência de uma coleção estruturada de materiais, seguiu-se também a HfG-Sinopse, organizada por Nick Roericht, uma série de painéis expositivos, reduzidos e com alta densidade informativa, que colocam a história da Escola de Ulm num amplo contexto da cultura contemporânea e política do período⁹.
Uma excepcionalidade da primeira recepção histórica da Escola de Ulm é o catálogo editado por Hans Wichmann, referente à exposição de mesmo nome, Sistema-Design-Precursor
¹⁰, sobre o falecido, em 1965, Hans Gugelot. Por seu integral cumprimento das normas científicas, esse catálogo se distingue das demais publicações desse período inicial.
Com a dissertação precisa e rica em conhecimentos de Eva von Seckendorff (Hamburgo, 1986), começa uma série de análises científicas independentes, através de não participantes da Escola, que desde então cresce.¹¹
A publicação até hoje mais influente mundialmente é o catálogo da exposição A moral dos objetos
, organizada por Herbert Lindinger, em 1987¹². Aqui estão coletadas muitas imagens e diferentes contribuições, pelas quais se funda uma imagem viva da Escola de Ulm. Esse desempenho só é manchado pelas proposições introdutórias sobre as condições políticas e históricas, que desenham uma imagem unilateral em preto e branco da hfg. A lenda de seu fechamento através do parlamento de Baden-Württemberg, em novembro de 1968, é aqui formulada e, desde então, infelizmente, de maneira acrítica e contínua, difundida.
Uma outra publicação, que durante muito tempo é recebida — sobretudo em contextos acadêmicos —, é o ensaio de Heiner Jacobs no Journal of Design History¹³. Como Lindinger, aqui também se trata de um ex-membro da hfg ulm, cuja análise é colorida com vivências pessoais.¹⁴
A partir do trabalho de pesquisa científica do arquivo da hfg ulm, surgem, desde 1991, várias publicações confiáveis, que, em sua maioria, encontram um equilíbrio entre distância objetiva dada e inclusão dos membros da Escola.¹⁵ Os conhecimentos dos detalhes das pessoas que passaram