Jung & Sándor
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Sobre este e-book
Descreve aspectos da prática cotidiana do trabalho corporal e apresenta uma reflexão do relacionamento entre consciência e corpo ao longo do desenvolvimento humano e suas implicações.
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Jung & Sándor - Eliete Villela Pedroso
Apresentação
Este livro, baseado na concepção junguiana, trata de um método psicoterapêutico criado pelo professor Pethö Sándor, no qual o corpo é um instrumento para a estruturação e evolução da consciência.
Procuramos ressaltar a importância vital do corpo para a centralização, identidade e desenvolvimento da personalidade. Relatamos as diferentes maneiras de vivenciar o corpo no decorrer da História, suas distorções e consequentes perdas de sua contribuição.
Procuramos apontar, dentro da Psicologia Analítica de C. G. Jung, a significativa atuação do corpo na evolução humana.
Tradicionalmente visto como um obstaculizador no processo de desenvolvimento, o corpo, na verdade, contém a força propulsora e os recursos necessários para o desenvolvimento e a personalização de um ser humano renovado.
No processo de integração fisiopsíquica, o corpo atua em sua verdadeira dimensão, ou seja, como o campo propício para o enraizamento da consciência e o solo fértil para o crescimento humano.
INTRODUÇÃO
Todavia, o que está a nosso alcance, é a transformação dos indivíduos singulares, os quais dispõem da possibilidade de influenciar outros indivíduos igualmente sensatos de seu meio mais próximo e, às vezes, do meio mais distante. Não me refiro aqui a uma persuasão ou pregação, mas apenas ao fato da experiência de que aquele que alcançou uma compreensão de suas próprias ações e, desse modo, teve acesso ao inconsciente, exerce, mesmo sem querer, uma influência sobre o seu meio. (JUNG, 1989, par. 583).
A ideia deste trabalho nos veio da falta que sentimos do professor Sándor e do desejo de retribuir tudo o que recebemos por mais de 20 anos.
O projeto inicial era compilar anotações das muitas aulas e grupos de estudo que tivemos com ele. Procurávamos preservar um ensinamento precioso e compensar sua ausência, tentando recuperar um pouco do clima e do nível de troca que tínhamos nos grupos.
Inicialmente ficamos impressionadas com a quantidade e riqueza do material de que dispunhamos. Durante um bom tempo, rever esse material, trocando anotações pessoais, não resultou na elaboração de um texto. Mas foi se configurando uma percepção mais nítida do percurso realizado por cada uma de nós e do valor que isso teve.
Tínhamos um tesouro! Como ficar com isso só para nós? Era preciso, primeiro, nos apropriar dele, como um material que ajudamos a construir, para então transmitirmos a outras pessoas. Pela característica da atuação do professor Sándor, seus ensinamentos não eram simplesmente a transmissão de uma técnica ou a informação de um conhecimento, mas um caminho de desenvolvimento e evolução pessoal. Por isso, ele não foi apenas um professor, foi nosso mestre de vida.
Quando chegou ao Brasil, em 1949, além das marcas da Segunda Guerra, o professor Sándor trazia toda a rigidez e disciplina características de sua cultura europeia. As diferenças culturais dificultavam o entrosamento tanto do professor Sándor como de seus alunos. Foi uma aprendizagem mútua e lenta, que demandou boa vontade de ambas as partes. Houve benefícios para os alunos que, ao entrarem em contato com a erudição e o vigor mental do professor Sándor, precisaram desenvolver uma postura de seriedade e profundidade: isso implicava disciplina, organização, reflexão e dedicação. Com o passar do tempo, ele assumiu uma atitude mais flexível, com maior tolerância e bom humor para com as características juvenis e imaturas
de seus alunos.
O professor Sándor comentava sobre a receptividade que encontrou, em São Paulo, em relação a seu trabalho. Seus alunos, nos grupos de estudo, estavam ávidos por conhecimento e se ofereciam com curiosidade e confiança para experimentar o trabalho que ele propunha.
Esse trabalho foi crescendo. No início, eram apenas técnicas básicas de relaxamento desenvolvidas na Europa e já conhecidas aqui (Michaux, Jacobson, Schultz), as quais recorriam, basicamente, a comandos verbais e manipulação de segmentos do corpo. Paralelamente, o professor Sándor introduziu a Calatonia, de sua autoria, uma abordagem inovadora, em que uma sequência de toques suaves eram aplicados pelo psicoterapeuta, integrando o corpo como coparticipante no processo psicoterapêutico.
Como dizia o professor Sándor, devemos nos
empenhar no relaxamento, meio condicionador que – como a nossa experiência comprova – permite que cada um vislumbre aquilo que está destinado a ser e ajuda a que se prepare para cumprir sua incumbência individual como unidade dentro de uma unidade maior. (SÁNDOR, 1982, p. 10).
Isto abriu um vasto campo de trabalho, auxiliando na compreensão da complexidade da alma humana.
A primeira apresentação dessas técnicas foi feita em um curso na Sociedade Paulista de Psicologia, publicado em um Boletim de Psicologia, em 1969.
A introdução da ativa participação do corpo no processo psicoterapêutico junguiano foi uma elaboração feita pelo professor Sándor e corroborada por suas primeiras colaboradoras: Yone Galeotti, Beatriz Mauro, Isabella de Sanctis, Maria Luisa de Andrade Simões e outras.
Durante anos experimentamos a Calatonia e a aplicamos em nossos pacientes. O professor Sándor exigia que nos submetêssemos a essas técnicas de forma sistemática e constante antes de as aplicarmos. Foi um trabalho de desenvolvimento de maior percepção de si mesmo, maior sensibilidade, maior compreensão da integração fisiopsíquica. Com essa vivência nos percebemos menos suscetíveis aos desequilíbrios ocasionados pelas mudanças externas e mais abertos a um aprofundamento interno. Percebemos os mesmos benefícios em nossos pacientes. A partir daí, nosso olhar nunca mais deixou de incluir o corpo na concepção psíquica do ser humano.
Foi só no final da década de 1970, após dez anos de vivência e trabalho com a Calatonia, que se abriu espaço para ampliação, quando surgiram várias modalidades da técnica, todas englobadas sob o nome de toques sutis, de autoria do professor Sándor. Esse trabalho foi concretizado e aprofundado no curso de Especialização em Cinesiologia Psicológica, no Instituto Sedes Sapientiae, de 1982 até 1991¹. Vou realizar o curso que sempre sonhei.
Assim o professor Sándor se referiu a esse curso no qual ministrava aulas de Anatomia e Fisiologia humanas. Mostrou-nos como o corpo em movimento revela a psicologia individual, unindo o trabalho corporal ao estudo da Psicologia Profunda de C. G. Jung. Além disso, propiciava a vivência de diferentes técnicas, como reflexologia, eutonia, massagem ayurvédica e várias outras expressões, inclusive artísticas, em que o corpo era o instrumento de desenvolvimento.
Todo esse trabalho foi criando uma peculiar atmosfera grupal que permitiu a vivência de toques individuais e a extensão destes para toques grupais, dos quais participavam todos ao mesmo tempo: havia um grupo de observadores e um grupo de vivência direta, no qual todos tocavam e eram tocados. Muitas vezes, todo o grupo participava da vivência. Essa experiência nos mostrou que, participando diretamente ou não de uma vivência corporal, ela se irradia e atua em todo o grupo. Isso permitiu reafirmar o potencial energético do corpo humano.
Quando perguntado sobre como elaborou tais técnicas, o professor Sándor, sorrindo, dizia: "Isso é muito antigo, do patrimônio da humanidade." Ele inspirou-se nos recursos e rituais usados pela humanidade para sua sobrevivência e evolução, adaptando-os ao momento atual. Utilizava todas as possibilidades do corpo e elementos da natureza para elaborar um toque: os sentidos corporais, como a audição (sons, palavras, números, canto, etc.), visão (toque com o olhar), sopro, percussão óssea, toque sem toque. Alguns procedimentos evocavam experiências na natureza, como sons de água, o crepitar do fogo, o movimento do vento, o som e a textura da pedra, da madeira, o perfume, o toque de uma flor, etc. Tudo isso está gravado em nosso corpo como experiências ancestrais e traz uma comunhão com as forças primordiais, restaurando nossa energia vital, e, na comunhão com a natureza, o reequilíbrio fisiopsíquico.
Essa busca e pesquisa do professor Sándor pelos arcabouços da psique humana propulsionou-o² a uma realização pessoal de grande dimensão. Sabia do valor e do significado da vida humana individual e o quanto a realização de um plano maior depende da força de atuação de cada um de nós. Isso lhe dava poder de presença atrativa: pessoas dos mais variados tipos e níveis socioculturais recorriam a ele em busca de orientação, ajuda, conselho. Pela confiança que ele tinha no ser humano e em sua capacidade de desenvolvimento, sua resposta sempre continha compreensão, estímulo e algo de criativo. As pessoas sentiam que um campo novo de possibilidades se abria para elas, aliviando-as e libertando-as de um peso nem sempre consciente.
Fruto dessa vida e trabalho dentro de uma realidade profunda, o professor Sándor criou um tipo especial de atuação psicoterapêutica, de enorme valor, além de formar inúmeros psicoterapeutas e outros profissionais de áreas afins. Era, essencialmente, um educador: aquele que desperta, mostra e conduz. Estimulava-nos, despertando entusiasmo e alimentando-o com um material extenso, profundo e ainda inédito entre nós: traduções de autores de várias linhas psicológicas, nacionalidades e épocas; traduções diretas do original de textos de Jung ainda não disponíveis em português, além de adaptações de livros para fins didáticos. Trazia também contribuições culturais por meio da audição de músicas, tradução de libretos de óperas, comentários sobre obras literárias, filmes, teatro, etc. Especificamente sobre seu trabalho escreveu, além do Boletim de Psicologia (1969), já citado, o Questionário VELA³ e o curso apostilado de Cinesiologia Psicológica, entre outros.
O professor Sándor experimentou a força inteligente da energia psíquica nas paragens profundas do inconsciente e nos ensinou os atalhos que nos levam a esse fluxo energético. Colaborar com essa força vital é o principal objetivo de uma psicoterapia que, indo além de uma integração no presente, semeia uma evolução futura, em direção à realização daquilo para o qual o homem foi criado.
1. Corpomente
[...] o espírito que não aparece na carne é um vento que não soprou: o vento deve entrar na matéria para ser real. O espírito não é nada se não descer na matéria, assim como a matéria é totalmente morta se não for vivificada pelo espírito. (JUNG, 1937, p. 806).
Uma das grandes buscas do ser humano é compreender a relação espírito-matéria. Como lidar com um ser que vive a interpenetração, a influência mútua, e sofre as interferências desses dois princípios?
A relação espírito-matéria, com o desenvolvimento da consciência, passou por diversas etapas evolutivas, cada uma delas revelando uma maior compreensão sintética da atuação desses dois princípios, ou grandezas, na consciência.
Quando falamos de consciência humana, estamos nos referindo à síntese de uma disposição interna, aliada à aquisição de informações. Estas, configuradas em conhecimento, são incorporadas em experiência interna. Não é uma questão de apenas ter informações e conhecer, mas de saber.
Quando falamos de evolução humana, estamos nos referindo ao impulso criativo do homem, que o leva a buscar conhecimento e a expressar recursos internos. Essa vivência vai sendo elaborada, possibilitando a formação e evolução da consciência individual e coletiva. Existe, na constituição do ser humano, uma premência para a evolução que só é possível na consciência e com consciência.
Nossa discussão desse tema – focada na história ocidental – começa a partir do Cristianismo, quando o espírito foi colocado fora do corpo, contraposto à matéria. O espírito era claro, o bem, luminoso, para a mentalidade cristã. O ideal almejado era a entrega ao espírito, que estava fora do homem, colocado em Deus, em um plano acima. O homem via-se pequeno e inferior em relação a Deus. Essa pequenez era devida ao seu próprio corpo, que era visto apenas em sua dimensão material.
A matéria era considerada escura, pecaminosa, perigosa e ameaçadora. Quanto mais se macerasse o corpo (matéria), mais se elevava o espírito. Como o corpo era a prisão do espírito, o sofrimento e a dor eram o caminho para a libertação. A vida terrena era provisória e um calvário de penas que levaria, se suportado, a alcançar o mundo do espírito depois da morte. Havia uma aspiração à perfeição do espírito – ser totalmente bom – eliminando, assim, a fonte do mal, situada na matéria e no corpo.
Toda essa visão acentuava unilateralmente a apreensão do mundo de maneira verticalizada, em que o bem estava acima, em Deus, e o mal estava embaixo, no homem, na matéria. A única saída era libertar-se do corpo para ascender ao espírito.
Todas as manifestações naturais, inclusive as instintivas, eram consideradas menores e, por isso, deveriam estar sob o crivo da doutrina espiritual. As doenças eram a manifestação do mal, que o corpo deveria suportar para expiar seus pecados. Se o corpo estava doente, ele estava no mal, e a única salvação vinha do espírito.
Ainda hoje, como então, há uma crença profundamente arraigada de que podemos ser totalmente bons no espírito, eliminando as imperfeições da matéria e do corpo. A dimensão espiritual, vivida como abstrata, fora da matéria, é imortal, pura e imaculada. A matéria, por sua vez, vivida no corpo, é passível de degeneração, decadência e morte. Por consequência, queremos nos livrar da matéria, tornando-nos belos, bons e imortais.
Pela lei da energia psíquica, toda vez que um polo está com acúmulo de energia e atingiu o máximo de seu desenvolvimento, constela-se o polo oposto e começa uma reversão em sua direção.
O movimento da Renascença indica o começo dessa reversão. Nessa mudança de paradigma há uma ampliação de consciência: a matéria, que estava em uma posição de inferioridade, torna-se o foco de interesse e busca de conhecimento. A revolução comercial e científica, a expansão das navegações, o contato com outros povos, tudo isso mostrava o espírito se inclinando para a matéria. Se anteriormente a tônica estava na verticalização, agora se inicia a horizontalização da visão de mundo. Assim como os navios cruzaram os mares e descobriram novas terras, os homens abriram o corpo para se conhecer por dentro, anatomicamente. Enquanto na Idade Média a visão do corpo era essencialmente religiosa (cristã), a partir da Renascença cresceu paralelamente uma nova visão: a do conhecimento científico. Por meio do estudo da anatomia atingiu-se o conhecimento das causas dos sintomas, objetivas e materiais, em contraposição aos pressupostos cristãos anteriores.
A Revolução Francesa trouxe à tona este momento da humanidade: a reversão da crença religiosa para o desenvolvimento racional. Em meio à revolta e violência expressas, o homem tentava manifestar um instrumento que levou milhares de anos para forjar: a razão. Com ele, poderia destronar todos os santos e elevar ao altar a deusa Razão. Isso lhe deu coragem para enfrentar o mal
que estava no corpo. O homem, imbuído da força da razão, sentia-se capaz de enfrentar o mal e, quiçá, eliminá-lo.
Se antes o homem estava paralisado e à mercê dos poderes do bem e do mal, agora se sentia mais forte e com possibilidades de atuar, pois parte desse poder foi incorporada.
O olhar, voltado para dentro e para o alto, começou a se voltar para fora e para o outro. O corpo, que era oculto, negado, temido, desrespeitado e afogado
em milhares de roupas, começou a ser passível de conhecimento