O inferno da cocaína
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Sobre este e-book
O livro conta a jornada do autor da severa dependência de cocaína à superação do vício, relatando as internações, as recaídas e a visão espíritual que lhe abriu caminho e lhe deu forças para chegar à completa abstenção. É um generoso compartilhamento de experiência de vida que muito ajudará dependentes e familiares que lutam contra este mal de nossos dias.
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O inferno da cocaína - Quorum Editora
Do autor
Numa das noites de janeiro de 1993, dormia, profundamente, quando uma voz
ribombou em minha alma:
Escreve um livro
Acordei, assustado, com a voz
ecoando em minha cabeça.
Por essa época, completava um ano e dez meses sem cocaína e já sete meses sem maconha. Obedeci à voz
e iniciei este livro. Digo obedeci porque não foi um pedido, mas uma ordem. Não vou relatar todos os impedimentos ocorridos, toda a demora, três anos e meio para conclusão.
Ainda não sei de quem é a voz
. A ordem veio do Alto.
Graças ao Pai, consegui a determinação necessária e suficiente para concluir este depoimento na noite de 12/07/96, madrugada de 13/07/96.
Ironia do Eterno.
Justo, nessa madrugada, desencarnou Tális, meu amigo, ex-companheiro de desdita. Ele não conseguiu se desvencilhar do cipoal de forças negativas que amealhou com sua dependência cruzada de álcool e drogas. Essa dependência originou vários problemas de saúde física, emocional e comportamental como consequência, afastando todos, que o amavam, do seu caminho.
Quando iniciei minha participação no Programa de Prevenção da Celesc como voluntário, insistimos bastante, eu e os companheiros do programa que o visitávamos, na necessidade de a nós se unir, a fim de tentar abandonar as drogas, e com a ajuda do Alto, que, invariavelmente, viria, procurar um novo estilo de viver.
Insisti bastante, pois, quando estava na ativa, nos drogávamos muito juntos. Daí, por ele saber como eu estava, até os olhos, na cocaína, e por me ver saindo dela, a cada dia que passava, mais tentava convencê-lo.
Foi inútil. Fugia sempre. Perdeu o gosto pela vida.
Mas, se alguém acha que Tális morreu, inutilmente, está enganado. A disposição de lutar contra as drogas aumentou bastante, depois desta perda.
Para D. Mathilde e S. Idaulgo, para a Tânia, Téio e Toni um abraço carinhoso de um irmão de dor do vosso Tális.
Que o amor do Pai conforte vosso coração.
Ao Tális, onde estiver, muita luz é o que desejo.
Que Deus se compadeça da vossa boa alma.
––––––––
23/07/96
Legião do mal
E perguntou-lhe : Qual é o teu nome ? - Ao que ele respondeu : Legião é o meu nome porque somos muitos.
(Marcos, 5:9.)
O Mestre legou inolvidável lição aos discípulos nesta passagem dos Evangelhos.
Dispensador do bem e da paz, aproxima-se Jesus do
Espírito perverso que o recebe em desesperação.
O Cristo não se impacienta e indaga carinhosamente de seu nome, respondendo-lhe o interpelado:
Chamo-me Legião, porque somos muitos.
Os aprendizes que o seguiam não souberam interpretar a cena, em toda a sua expressão simbólica.
E até hoje pergunta-se pelo conteúdo da ocorrência com justificável estranheza.
É que o Senhor desejava transmitir imortal ensinamento aos companheiros de tarefa redentora. À frente do Espírito delinquente e perturbado Ele era apenas um; o interlocutor, entretanto, denominava-se Legião
, representava maioria esmagadora, personificava a massa vastíssima das intenções inferiores e criminosas. Revelava o Mestre que, por indeterminado tempo, o bem estaria em proporção diminuta comparado ao mal em aludes arrasadores.
Se te encontras, pois, a serviço do Cristo na Terra, não te esqueças de perseverar no bem, dentro de todas as horas da vida, convicto de que o mal se faz sentir em derredor, à maneira de legião ameaçadora, exigindo funda serenidade e grande confiança no Cristo, com trabalho e vigilância, até a vitória final."
(Livro 1 páginas 301 e 302 )
PÂNICO NA AVENIDA HERCÍLIO LUZ
Março de 1990 - um sábado
Mal me apliquei, senti a presença deles
. Olhava nos cantos, debaixo da mesa, dentro dos armários. Nada. Mas eles
estavam ali.
A angústia de ser observado, aliada ao efeito da droga,
cresceu. Joguei o restante do pó na colher. Agua, algodão
do filtro do cigarro, seringa
Carreira desabalada. Fuga de mim. Explosão de tudo. Rua afora. Apartamento aberto. Aos contrapassos, olhando para trás, para os lados, para a frente, em pânico, correndo, tentando me esconder atrás de qualquer coisa. Mas eles
estavam ali.
Atravessei a Gen. Bittencourt em direção à Praça Olívio Amorim, na Avenida Hercílio Luz, centro de Florianópolis, só parando no cachorro-quente do Alemão.
Arruaça total. Tentava me esconder atrás de qualquer coisa que existisse, mas, ledo engano, olhava para o lado, para trás, ou para a frente, ou fechava os olhos, e eles
estavam ali.
As duas senhoras que preparavam os cachorros-quentes nunca esquecerão a cena. Nem eu. Confronto físico com o dono, que não queria me deixar entrar na cozinha. As pessoas, que passavam pela Hercílio Luz, não entendiam o que se passava. Só queria fugir.
Havia, já há muito tempo, que a cocaína não me dava mais nenhum prazer. Pelo contrário, só me trazia horror, pavor, pânico, terror, dor, infinita dor.
Mas não conseguia ficar sem ela. A cobrança deles
se manifestava nas coisas mais sutis, e, quando me percebia, já estava com a agulha espetada, fazendo mais um passeio no inferno. Tinha passado por três internações e não conseguia continuar parado. Estava nessa.
Ficava, de dez a quinze dias, sem usar coca e, sem mais nem menos, quase como um autómato, lá estava no Morro do Xeca-Xeca, ou no Morro do Chapecó, ou no Morro do Copa Lord, ou no Morro do Mocotó, empenhando o que tivesse para conseguir, no mínimo, um grama de pó para me atolar.
Para tomar um pancadão. A palavra é esta. Pancadão. Porrada na cabeça. Bordoada. Tiro na moleira. Quantos neurónios fritava de cada vez!
Voltemos à Hercilio Luz. Pessoas indiferentes.
Este é maluco.
Deve estar drogado, (estava, e muito)
E querendo fugir. Mas eles
não me largavam.
Nessa fuga, já estava no paredão da Hercílio Luz, no meio da rua, os carros passando, me escondendo, não dos carros, mas deles
. Como não conseguia me livrar, passei a me jogar, deliberadamente, contra os carros em movimento. Num deles, bati a cabeça no pára-brisa, quebrando-o e amassando o capô. Era um Monza, com duas ou três mulheres dentro, não sei bem. Rolei no chão, me levantei, e eles
estavam ali. Corri. Corri. Sirene. Viatura. Policiais militares. Uns três. Tentaram me conter, sem sucesso.
Os três no chão. Sem bater. Ninguém esmurrando. Estava com uma força descomunal. Os soldados não queriam ser violentos, tentavam me conter, e eu os derrubava, sem bater. Estava fugindo era deles
, não dos soldados. Os soldados, eu derrubava. Não conseguia era fugir deles
. Ouvi o sargento ordenar que não era para usar da violência comigo.
Chamaram reforços. Aí, deu para mim. Oito soldados. Algemas. Cordas nas pernas. Fiat PM. Porta-malas. Hospital Celso Ramos. Berros .
- Eles
vão me matar.......
Eles
vão me matar
Eles
querem matar...(não os soldados. Eles
.)
Registro especial, com muita gratidão.
Obrigado, sargento, por ter me protegido, proibindo a violência. Tenho pela Polícia Militar de Santa Catarina profundo respeito e admiração. Nunca, em nenhum momento daquele inferno vivo, fui espancado ou agredido, nem ofendido por nenhum integrante da corporação. Por mais esse aspecto, esse enorme detalhe, a qualidade da nossa Polícia Militar, é imenso meu orgulho de ser catarinense.
Emergência do Celso Ramos. O sargento, de posse de minha carteira, deu entrada na papelada, solicitando atendimento.
Depois de alguma espera, de novo o pânico. Eis o quadro. Algemado, seguro por dois soldados, à minha frente o sargento, um médico e uma enfermeira.
O sargento :
- Seu Luciano, vou tirar as algemas para o doutor te examinar. Fica calmo e não faças besteira para não te machucar.
Tirou as algemas e se arrependeu muito. Tornei a Emergência num pandemônio.
Médico e enfermeira no chão, soldados no chão, e eu, de cabeça para baixo, seguro pelas pernas, na janela da Emergência antiga, em cima do morro, mais de quinze metros de altura.
Conseguiram me conter, novamente.
Algemas. Cordas. Sessão horror, a quatro paredes, com direito à audiência. Médico. Enfermeira. Sargento. Mais dois soldados. Não sei quantas doses de calmante me aplicaram. Sei, porém, que foram algumas horas me arrastando pelo chão, feito cobra, forçando as pernas (amarradas), os braços (algemados), revirando o rosto, alucinadamente, de um lado para o outro, berrando que eles
queriam me matar.
A plateia, atenta, comentava sobre o estado de pânico total em que me encontrava.
O sargento e um tenente, que chegou, passaram a me interrogar sobre possível envolvimento com tráfico, com crimes relacionados ao tráfico e ao uso ou abuso de drogas. Mesmo no estado de horror que eu estava, tudo neguei porque não me enquadrava em nenhuma daquelas situações.
Até que o calmante fez efeito, e serenei. Agradeci. Pedi perdão por todo o escândalo. Pedi para tirarem as algemas. Tinha muitas dores nos punhos. No queixo .Nas pernas.
Mas, principalmente, muita dor, uma dor intensa na alma.
Quando tiraram as algemas, pude avaliar o estrago. Os punhos estavam enormes. O punho direito estava duas vezes mais inchado que o esquerdo. Dores horríveis. Raio X. Como resultado do esforço inconsciente para me livrar das algemas, esmigalhei as pontas do osso do punho direito.
De prémio, sessenta e oito dias com gesso no braço direito para consolidação da fratura. O tempo normal para consolidar pequenas fraturas, para uma pessoa de minha idade, seria de quinze a vinte dias. Só que a cocaína descalcifica, totalmente, o usuário. Por isso, o pequeno acréscimo.
Após imobilizar o punho direito com uma tala, fui liberado.
O sargento me pediu que comparecesse, segunda-feira, ao Primeiro Distrito Policial de Florianópolis para prestar depoimento, tendo em vista o acidente de transito com danos materiais e ferimentos leves.
Peguei um táxi, informando ao condutor o roteiro para a minha residência. Só que, na primeira esquina, solicitei nova rota.
Fui ao morro do Xeca-Xeca, peguei pó, passei na farmácia para comprar seringa e passei o resto do domingo me furando. Porém, com doses bem fracas para não entrar numa de horror.
Só que o horror sempre vinha.
Então, ficava horas a fio encostado a uma parede, fumando um cigarro após outro, olhando a imagem de Jesus de um calendário de 1989 da LBV (Legião da Boa Vontade), pedindo que Ele me livrasse daquilo tudo, que não tinha mais forças para lutar. Quando passava o horror, me furava de novo, e, assim, cada vez mais me matava.
Bebia água, muita água, para recompor as perdas de líquido pelo suor. Se em estado normal transpiro bastante, quando usava cocaína, derretia.
Segunda-feira. Hospital, gesso no punho, atestado de quinze dias de licença para tratamento de saúde. Primeiro Distrito de Polícia, depoimento isentando a condutora do veículo que atropelei.
Fui almoçar. Na esquina do restaurante (grata coincidência), encontrei o sargento que me socorreu no sábado. Parei para, novamente, agradecer o atendimento e por não ter mandado descer o porrete em mim na hora do pânico, quando estava engalfinhado com seus comandados.
- Seu Luciano (lembrou meu nome), deu, de cara, para notar que o senhor estava alucinado. Assim que me aproximei, percebi as marcas no seu braço, os furos de agulha, né? O senhor teve sorte. Eu tenho um irmão que se fura, também. Está numa ruim. Tenho muita pena dele. Só que não consigo fazer nada por ele. Não me escuta. Quando vi o senhor naquele estado, se jogando contra os carros em movimento, a sensação que tive foi de muita pena, que aumentou, mais ainda, no hospital, vendo se arrastar pelo chão, tentando fugir do inferno em que se meteu. O senhor vai morrer, a qualquer hora dessa, se continuar assim. Já vi e levei muitos drogados mortos por overdose. Sai dessa.
- Obrigado, sargento. Estou tentando, mas, como o senhor falou, é um inferno. É muito fácil entrar no mundo das drogas. £)ifícil é sair. Venho tentando, já há dois anos. Já passei por três internações e não consigo sair.
Nos despedimos. Almoço. Táxi. Morro. Pó. Seringa. Lama. Não tinha mais nenhum controle. Nem fazia quinze dias que tinha aprontado uma grande onde morava, Edifício San Marino, na rua General Bittencourt, centro de Florianópolis.
"FALSAS ALEGAÇÕES
Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Peço-te que não me atormentes.
(Lucas, 8:28.)
O caso do Espírito perturbado que sentiu a aproximação de
Jesus, recebendo-lhe a presença com furiosas indagações,
apresenta muitos aspectos dignos de estudo.
A circunstância de suplicar ao Divino Mestre que não o
atormentasse requer muita atenção por parte dos discípulos
sinceros.
Quem poderá supor o Cristo capaz de infligir tormentos a quem quer que seja? E, no caso, trata-se de uma entidade ignorante e perversa que, nos íntimos desvairios, muito já compadecia por si mesma. A vizinhança do Mestre, contudo, trazia-lhe claridade suficiente