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O Ponto Jê e a Dama de Copas
O Ponto Jê e a Dama de Copas
O Ponto Jê e a Dama de Copas
E-book652 páginas10 horas

O Ponto Jê e a Dama de Copas

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Sobre este e-book

"O Ponto Jê e a Dama de Copas" é um livro apaixonante. Um desses romances que só poderiam ter sido produzidos por uma espécie de gênio da Literatura Contemporânea. Essa mistura de Emile Zola com Aluísio de Azevedo, essa mistura do Germinal com O Cortiço, todo esse conjunto leva a uma distorção imediata de todos os dados comuns, precipita o texto numa vala de concentração enorme de pensamentos e crises de valor. Este é um livro ímpar e um dos primeiros produzidos pelo autor que tratam a temática urbana com vigor, graça e humor. Esse ponto Jê aqui citado como título do compêndio é o tal ponto G, tão afamado depois dos estudos da sexualidade impostos pelos autores americanos e principalmente depois de Camille Paglia dizer que as coisas são assim, são assado.
Livro de costumes, romance intrincado, que desfila pela vida inteira de uma personagem cuja formação é inteiramente carioca. Tendo o Rio de Janeiro como pano de fundo, o livro mostra uma cidade completamente diferente daquela dos cartões postais. Os subúrbios são estudados de maneira funda, parcimoniosa, íntima, como se a sensação de um Rio de Janeiro que existe em outra dimensão devesse ser considerada, embora a razão do comportamento não destoar de um determinado tipo de alma. A personagem principal deste livro e todas as que giram em torno dela de maneira estelar, todos exibem seu comportamento sensual retirado de um clima nada ortodoxo. Há no texto uma realidade gritante, ácida, mordaz.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de ago. de 2024
ISBN9786527401858
O Ponto Jê e a Dama de Copas

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    O Ponto Jê e a Dama de Copas - José Humberto da Silva Henriques

    Capítulo 1

    Sezostras amanhecera, o seu o dia com uma divagação lisonjeira dentro dos lábios finos. Era mulher de saber-se. Não precisava de ninguém que lhe conferisse o mundo para que ele fosse um adendo de qualquer melhoria. As noções de coisas que tinha dentro do peito, dizia, bastavam-se por todas as alegrias que havia vivido. E para cada alegria um chumaço grosso de tristezas. Quando sozinha, ao chumaço chamava de grande engastalho. Como dizia, sozinha em mundo:

    - Grandessíssimo e grosso tolete de pau-ferro!

    Não podia dizê-lo em alta voz ou quando tinha visitas ou sob qualquer outra circunstância com procedimento social. Era conveniada com a Legião das Católicas Marianas e o mundo para ela, quando pesado, tinha que se haver em sequilhos e um chá de camomila com adoçados voluntariosos. A banda doméstica de sua vivência metia-se a um extremo de ser como visão através de um olho-mágico. Olhava a mesa de centro, daquelas que se dizem fórmicas, assuntada em brilho de estrelas sobre vermelho imprudente, peça que se contava ali desde a revolução dos tempos de 64. Um boião sobre ela, tabletes de doce de leite mofado ali dentro, que ela não tivera ainda o ânimo de tirar e jogar para as suas três galinhas poedeiras, as que tinha no pequeno quintal. A prateleira com latas de alumínio. Houve um tempo em que havia assunto de romanceiros pintados nelas. Depois, com as lavadas que o mundo exige, a esponja de aço comendo frouxa, os desenhos e os motivos foram sumindo e ficou somente a superfície espelhada. Graduação de todos os volumes, a menor para o pó de café, a outra com açúcar e a maior com arroz e alguns carunchos vivos. Havia uma intermediária onde ela escondia dinheiros e trocos debaixo de duas embalagens cheias de farinha de mandioca e uma de milho, sendo que a de mandioca vinha com duas formas: uma com beiju, que era preferência de Juca Mamão comer com seu leite; outra torrada a mais, miudazinha, que era a que ela usava para o paladar expressivo de seu feijão mulatinho com ovo frito.

    Se escondia o dinheiro era somente por questão de uma avareza providencial, que Juca Mamão não podia mais se mover para roubar um naco. Era o evidente: que seus quartilhos de pinga não mais eram provados desde que se metera às rodas da cadeira, depois que se entrevou com o derrame dito celebral. Sezostras olhava-o sem pena. Havia dias em que até se enveredava pela crueldade de haver que perder a paciência, pois que judiava do pobre até mesmo na hora de despejar um copo de água fresca pelo seu bucho a baixo. Deixava que parte caísse ao babadouro, doravante à tragédia do derrame e então, devia estar sempre usando. Trocava a peça que ficara da colostomia – depois de uma operação para reparação de raízes ruins na barriga -, o saco de plástico que aquilo escorava. Mas jamais deixava de fazer as caras de quem vai vomitar a qualquer momento. Em alguns dias, podia se dizer que estava mais branda, mais terna de sentimentos, mas não era sempre que se tinha tal roseiral em cheiros dentro de casa. Sezostras aprendera a ser franca consigo mesma. Jamais se deixava levar por um sentimento de falsidade, não mais se afetava para tratar com as poucas criaturas que a cercavam. Chegava a ser espinhenta, ríspida, plena de rigores quando queria se fazer entendida mais rapidamente. Não se importava com o peso que as palavras tinham, seu poder de serem bélicas e andarem à agressão quando interpretadas com senso de ferida com casca fina. Gostava de ser despojada e usar as franquezas, doesse a quem doesse.

    Juca Mamão olhava e queria dizer alguma coisa. Estava paralítico demais das vozes para que pudesse fazer-se expressar. Agitava os braços. Mostrava-se impaciente. Totalmente à mercê dela, sabia que a melhor coisa que podia fazer era mostrar-se menos ranheta e mais afável de modos. Para Sezostras, ver-se livre dele era somente uma questão de tempo, a bem dizer-se a verdade. Dentro de seus 81 anos, sentia-se rígida e capaz de levar avante mais cinco deles, sem esmorecer em nada o talo das coisas que precisavam de energia. Usava umas cápsulas verdes para o controle de sua pressão arterial – segundo informação do doutor Costacurta -, mas era somente isso e não havia nada mais que fosse enfermidade em sua vida. Ouvia do doutor Costacurta os conselhos sobre como administrar com boa resolução a sua vida, pois que era octogenária. Alguns entendia como plausíveis, outros desprezava como se fossem merda de gato. Quando estava sozinha, porém, lascava as frases que julgava pecaminosas demais, uma que não tivera oportunidade de lascar antes, quando tinha chafarizes e lumes entre as coxas. Não estava morta, dizia-se. Ainda tinha as lides para demarcar.

    - Grande sarrafo que me prende aos casos do mundo!

    Apreciava dizer as obscenidades quando estava sozinha ou quando se julgava observada por algum parente. Num aparato de tempos antigos, gostava de estar a tratar de suas três galinhas. Costume continuado. Houve uma época, trinta anos passados, Juca Mamão mantinha os capões ali, na engorda. Depois, como a preguiça lho amamentasse de todas as formas, andou a desleixar-se daquilo, mesmo sendo proibido naqueles dias – por lei federal de rascunho certo –, o criar-se animais em quintal. Os cheiros eram motivo de desentendimento entre vizinhos e as higienes haviam evoluído muito para que aquilo se mantivesse intacto. Dias mais soberbos. O quintal era grande. Juca Mamão foi se desfazendo dele aos pedaços. A casa dava fundos para o colégio dos jesuítas e ali havia agora muro alto, a divisória se fazia com quadra de esportes que atendia à gritaria dos alunos de lá. Então, para os dias de suas três galinhas, o espaço ficara reduzido ao que era naqueles dias últimos. E uma mulher com 81 anos de idade não precisa de grandes eleições para se manter dentro da vida, o espaço que requer há de ser pequeno. Com um marido paralítico, então, as coisas se tornam ainda mais simplórias. Que fosse a necessidade deles, casal fulaninho de suas precisões? Qual seria a exigência? Ela se perguntava. Um arroz que refogava de manhã e que servia de ajantarado, bastando acrescentar ao todo uns pedaços de qualquer coisa que se achasse no fundo da geladeira. Juca Mamão também nunca fora das exigências, não ia ser agora, em fim da vida, que iria se deixar levar pelas regalias impossíveis. Em seu tempo de estar sadio, o que exigia, além das cervejas geladas e do torresmo em hora qualquer?

    Sezostras fazia da rotina a grandeza excepcional em que se mantinha. Como todo ancião que se diz convicto, erguia-se da cama muito cedo e corria a verificar a água e a ração das galinhas. Jogava a elas pedaços de pão velho. Umas folhas de couve que colhia em seu canteiro particular – a couve, a camomila e uma moita viçosa de hortelã-pimenta. Deixava às aves as folhas mais encorpadas, as mais velhas e que se enrolavam às bordas. Numa das manhãs em que entrara ao quintal, encontrou a surpresa alegre. Mas ainda duvidosa. Avistou num cacarejo corajoso, um galo miúdo, da marca garnisé. Olhou a ver se havia algum buraco nos muros. Aquele galinho não era dela. Imaginou, de onde viera? O muro intacto. Muros todos abraçados pelo terreno do colégio, quadra e acessórios. Mais de quatro metros de altura. Devia o sacana haver sentido cheiro de galinhas virgens e fora bater ali, no meio delas e suas rações. Sempre quisera ali um galo, porém, deixara o tempo passar e não arranjara um. Não queria galo nanico, que aquilo seria degenerar o mundo de suas raças. Queria um galão dobrado, colorido de rubro, como aqueles que cantam em terreiros de Coimbra.

    - Espero que pelo menos encastoes uma delas, a cada dia, com a peça que tiveres disponível, já que galo não tem pino de centro!

    O galinho andava em roda de si mesmo, desconfiado e sem ter para onde fugir. Depois, como uma das galinhas lhe roçagasse as penas e entendendo que devia demonstrar a que vinha, cravou o bico às asas da fêmea que devia haver o dobro de sua altura e massa. A galinha berrou. Então, ele fez meia volta e como se quisesse cumprir à risca a encomenda, ver quem mandava ali, subiu-lhe ao dorso e arrestou rabo com rabo, na lisura que esbarra entre um e outro. Da forma esdrúxula como pode parecer às convenções das coisas bípedes, porém humanas, o funcionamento das aves ainda carece de vigor, pois que entre ele ainda falta a despesa do falo, não obstante a substância da cloaca que decide o rigor das coisas. Mesmo assim, Sezostras murmurou, num gesto de músculo e braço, torcendo pela encastoada completa.

    - Grande escandaloso... Grande esbulhado!

    Sezostras chegou a bater palmas de mão, tal o seu entusiasmo diante do que via. Se tinha uma coisa que sabia entender, que em tudo fazia a justiça, era na presteza de entendimento de uma montada sem-educação. E nem como se fosse um pau-mandado, o galinho que já recebia um nome qualquer no inventariado de seu pensamento de matrona, fez-se de menos rogado e correu a montar na outra e calcou-lhe o bico ao cangote, em seguida, sem que o cocoricó ficasse do tamanho de uma lacraia, já escorregou num monte de titica e fez reboliço – bichinho temperamental-, e em seguida fez às vísceras da terceira o presépio completo. Folhou as três de uma só escala, para todas e cada uma chegava a economizar as palmas. Sezostras deu uma risada alargada, a pança de couro fino projetada em avante, um Pantagruel nela esboçava o trejeito de alegria e excesso. Até que merecia um novo bater de palmas.

    Não ia exagerar, porém, que era para o bichinho não cair na caduquice da preguiça.

    Foi batizado naquele minuto. Ficou sendo o Manelzin Pinta Braba.

    Doravante, para Sezostras não importava de onde ele tivesse vindo – se do caixa-pregos ou das pedras de fogo, era indiferente. Também não ia sair por aí perguntando onde é que havia um galinho pinta braba, quem é que perdera um galinho assim-assado, um que tinha o botão encerado e coisa e tal. Fugir dali era pouco provável que ele conseguisse. Não havia como. O mistério de como aparecera se diluía na grandeza e fulgor que havia na pequena ave. O canto estrilado, pontual. Sezostras acordava agora sem despertador e fascinava-se com as ondas primitivas que a ela voltavam, tempos em que vivera nos descampados de Santa Tereza, num teleco de terra que bem poderia ser mais virado para os subúrbios do Rio de Janeiro. Telecos de terra cheios de campos de bete e de peladas de futebol. Meninos soltando pipas, as invenções de tempo, as modas que se inventam. Galinho prestimoso, fodelão. Ela via que sim.

    - Se tivesse tamanho na broca, bem que haveria todo o melhor proveito, mesmo para mim, assim carente. Que até hoje, se meto a mão num baralho, pode ser muito difícil que saia com a dama de copas. Quando muito um três de ouro bambo, uma coisa sem espírito de vigor!

    Apenas deu sinal das coisas que gostava, Pinta Braba viu-se num galanteio sem fim. Sezostras apreciava servi-lo. Era um galo com teores exibicionistas, pois que bastava vê-la, arrastava a asa no chão, cococó-cocócoró, metia a esporada numa das três galinhas e subia-lhe ao dorso. Pequeno, era-lhe difícil o tempo do equilíbrio. Mas subia e não caía. Sezostras ria, batia palmas de mão. Atirava restos de arroz da janta de ontem, o que sobrara do prato de Juca Mamão, pois que do prato dela era sagrado e uníssono que não sobrasse nada. O galo era fera, feroz. Doravante, era ovo que não tinha fim. As galinhas agradeciam o que lhes era fornido. Desandavam a pôr. E ovos grandes, com duas gemas. Quanto mais o galinho agia, mais elas se tornavam generosas. Sobrava ovo para se comer, quitandas e doces diversos. Excepcional. Tinha galinha, uma delas – a Pretinha -, que punha três vezes num só dia, administrada de exagero, a ponto de estourar o oveiro com aquelas cargas e recargas de ovação. O galinho cantava e tinha um olhar sério, meio que de bicho mamífero. Como um boi de porte, um marruás. Por momentos de definição em vida, Sezostras dizia que agora a casa estava ocupada e havia alegrias nela, pelo menos para as galinhas que se ocupavam o dia inteiro.

    Acabava de tratar das criações, voltava-se para os programas matutinos de rádio. Ouvia a voz de um locutor que conhecia havia quarenta anos. O mesmo programa que dava lições de vida, receitas de bolos diversos e xaropadas para revigorar aquilo que já ia de baixo fluxo. Como as densidades da próstata, por exemplo. Aumentava o volume quando o Compadre Evaristo Pécumpano dava seus avisos de precisão. Compadre Evaristo Pécumpano, o notável e eterno radialista, aquele que tudo sabia e tudo entendia das mazelas humanas, o que tratava tudo de um modo bem humorado, fazendo a capacidade do atormentado se esquecer por uns tempos da dor afligida. Quarenta anos que o Compadre emulava as razões das criaturas.

    - Meu compadre, minha comadre, se as coisas não vai bem aí em casa, mude logo de vida. Adote o uso da infusão de elixir de vergatesa. O que não erra nem na dose nem no fogo dosado. A senhora vai ver que seu marido vai estar outro, o senhor vai notar logo que a sua senhora vai estar nova em folha, arrebentando os botões do vestido de tanta luxúria e pecado. Elixir de vergatesa, o que se não cura, também não pesa!

    Sezostras olhava de lado. Ouvia a mensagem do Compadre com gosto. Depois de certa idade é que se tornara cheia de luxúria e vontade de fornicar. Da mesma forma como se tornara irreverente e sem paciência com os parentes. Estudada em escola boa, entendia que nem sempre o Compadre Pécumpano dizia os verbos em seus plurais exatos. Mas isso era de somenos para ela. Gostava era da alegria da mensagem. Sentada à sua poltrona velha, já com um rombo e deixando o estofo vazar – vísceras encardidas -, dava uma risadinha matreira da mais pura ironia. Depois, uma segunda, que era a risadinha da mais pura mordacidade. Sabia que Juca Mamão olhava para ela, deitado sobre as escoras de sua mais alentada paralisia. Do quarto, ele podia ver a mulher comendo bolachas que previamente molhava ao leite quente. Molhava a bolacha com sabor de baunilha, cheirava para que ele visse, depois, quando a massa se transformava naquela coisa informe que faz gestos para despencar, erguia a cabeça – qual o filhote que vai receber o regurgitado da mãe urubu – e despejava ao papo o angu completo. Juca Mamão, em jejum, tendo como alimento predileto o leite – que as doses homéricas de cachaça não mais o alcançavam -, deixava um resmungo no ar. Depois um abafado grito de terror. Ela o martirizava. Estava sendo condenado dentro de sua própria casa. Fazia com que visse o cibo, porém não o deixava provar dele o gosto.

    Diante do estofo do que via, Sezostras a comer refestelada à poltrona com recheio sendo parido, ele retirava de sobre o corpo a peça de lençol e se agitava o quanto podia. Ouvia os reclames de rádio. E ouvia a televisão comemorando presença dentro da casa. A mulher ligava os dois aparelhos. No meio daquilo, o cocorejar de um galo que devia ser miúdo, pela estampa da voz esganiçada. O barulho todo era intenção da mulher em mitigar a voz que dele vinha, os berros que dava, a simples solicitação de um pedaço que me dês, quando a via a lamber os dedos do leite que por eles escorria. A bolacha molhada, o cheiro de café.

    - Um galo garnisé pulou o muro cá para casa. Doido o galinho. Mas muito funcional. De uma batelada só, subiu em Pretinha, em Ganga e em Pérola. A coisa anda bem. Galo bom há que se haver um em casa, senão a bondade passa a sotavento e a casa nem é casa!

    Com um gesto infantil ela balançava as pernas. Depois coçava entre os dedos dos pés com os outros dedos dos pés. Desesperado e doido de aflição, Juca Mamão tirava para fora dos lençóis o sexo murcho e batia ao seu papo – que é o nome vulgar de onde se estica aquela linha ventral que mostra os caminhos do mijadouro. Uma vez, duas vezes, grunhia para que ela olhasse o que fazia. Dignificava-se o homem a mostrar que não era nenhum castrado. Não ia se dar ao derrotado, o palavreado dela que o comparava – embora sutilmente – a uma ave. Além do mais, um galinho garnisé ridículo. Era a mordacidade que tomava conta de Sezostras. Comparava o galo com sombras e fantasmas, entre eles a possibilidade de Juca Mamão ser considerado; dizia coisas cheias de veneno. Tentava bater sobre o papo outras vezes, mas a mão claudicava devido ao tremor que nelas morava desde que tomava doses de pílulas verdes, enormes, as que vieram da receita do doutor Costacurta. Depois, sem se ater ao facto de que um odor de urina velha vinha de seu leito, Juca Mamão não satisfeito com os tapas ao papo da amostra de sua masculinidade – erguia o corpo do falo murcho como um todo e exibia a ela. Fazia movimentos nele, de ir e vir, como se elaborasse a mais solene atividade solitária que poderia acontecer entre as divisas equatoriais do universo. Trazia junto o escroto, já punido com manchas escuras devido à degeneração imposta pela estática sobre o leito e a curtição continuada pelos fermentos da urina sua mesma.

    Sezostras via e calava-se. Mas tornava ainda mais renhida a sua bravura de sofrer. O murcho não se suspendia por nada desse mundo. Conformada com o que era e como era, mais seus dedos do pé subiam em direção ao joelho, não mais coçando, mas afagando enquanto lambia os dedos escorridos pelo leite com café muito doce. Sua preferência era ater-se ao café melado, a ponto de Juca Mamão se deliciar dez vezes em potência de delícia quando ela lhe servia do coado. Gostava, igual modo, de café doce ao mesmo extremo da grossura de açúcar. A peça murcha sumia-lhe dentro da cova das mãos enquanto o manipulava. A mulher começava uma cantiguinha serena, uma fingida e que parecia dizer que a ela nada mais importava do que não fossem bolachas estendidas em sabor de baunilha e uma caneca quente de café com leite. O mundo não era, então, um molambo sólido que se pode bambear com o quente e com o úmido? Sezostras punha no raciocínio a estabilidade da vida.

    Mal os pecados, Pinta Braba erguia o papo e cantava fora de hora. Uma particularidade para alegrar o tempo que anda.

    Juca Mamão era três anos mais jovem do que ela. Sua vida conjugada representava tudo que pode ser contado sobre casos particulares, assim comuns, que se tornam casos gerais, portanto públicos, portanto folclóricos, tão logo passe tempo suficiente para que caiam nos erários e domínios de anedota. Casaram-se cedo, ele com vinte; ela com vinte e três anos. Sezostras vinha de família, se não abastada, dona de seu lugar de fartura, um sítio claro ao largo de Santa Teresa, o subúrbio mais aveludado de toda a cidade do Rio de Janeiro. Lugar onde ela aprendera desde cedo a destilar as iguarias do bem viver e das sacanagens mais polutas que uma donzela pode encontrar. Dizia para si mesma, gozara mais nas beiras dos campos de bete, vendo as guloseimas dos equinos e muares do que toda a sua vida debaixo das solidões de Juca Mamão. Lembrava-se com perenidade da vida que vivera com ele. Logo que se casaram, emprenhou-se irrevogavelmente. Estava grávida sem que jamais soubesse o que era um êxtase, a não ser aqueles aos quais se permitia nas beiradas dos subúrbios e seus matos de consorciada. Juca Mamão nunca soubera que mulher sofria disso. Ou se soubesse fazia disso um enorme tendeiro de negação. Como se fosse um pecado supremo que entre eles fizesse o caldo da existência. Quando se lembrava da força do galinho Pinta Brava, o Manelzin, eriçava-se nela riso e simpatia por ele, a ave mais rapina que já vira em sua vida. Apeando-se do dorso de uma, regalando-se ao súbito querer da outra. Deixava a todas satisfeitas, portanto, sem nenhum armistício, que delitos e belicosidades entre elas não havia.

    Nascera-lhe Alisse e somente. Depois do nascimento da filha, uma menina alourada e de caráter muito resumido para as coisas de limpeza, o interesse de Juca Mamão por ela se fazia somente para cumprimento de seus deveres conjugais. Se era ruim antes, quando ela queria ou fingia que queria, depois as coisas se tornaram insuportáveis. A tal ponto que Sezostras um dia resolveu não mais se permitir, mesmo que ele se reconsiderasse em prendas e certas ramagens de flores: os buquês. Preferia ficar ranzinza, nervosa e dolorida de modos, sempre amarga, do que a ele se oferecer para conluios de carne. Conhecia os ares do homem. Sabia que para ele tanto fazia, igual modo. De facto, tudo somente a obrigação. Ela, sem expediente para traição – que sua criação e religiosidade não o permitiam -, jamais se dera ao luxo para estar com outro. E naqueles dias, com mais de oitenta anos sobre a cacunda, sabia-se fora da idade para namoricos e quaisquer aventuras mais apropriadas para a juventude. Se não podia mais aventurar-se, fazia questão de fazer Juca Mamão sofrer por tudo que lhe privara durante a existência. Via seu falo murcho. Ria daquilo. Achava nojento, indecente. Por isso mesmo, desdobrava-se no merecimento de uma vitória triste, amarga: derrocada.

    Havia os dias em que Alisse chegava, o sábado pela manhã em casa deles – era casada, com dois filhos e já divorciada, não era nenhuma estaferma e palerma para esperar e aguentar o que a mãe aguentara a vida inteira -, trazia produtos de limpeza e um avental, punha mãos à obra. Limpava e relimpava. Tinha dons muito resumidos para a limpeza. Para a mãe aquilo era martírio, pois que a filha, já fora de casa havia vinte anos, perdera a noção de onde as pequenas coisas devessem ficar guardadas. Ou se não perdera tal noção, não se afazia ao respeito de colocar no mesmo lugar de antes as coisas que eram regulares e dormidas, sempre. Era o suplício, saber que quando fosse procurar, nada estaria em seu lugar de antes. Temia Sezostras que a filha encontrasse as cédulas de dinheiro que escondia debaixo da caixa de bolachas, pois que estava sempre clamando que os atributos e vencimento de aposentadoria que o Mamão recebia não eram suficientes sequer para prover as dignidades de seus remédios de paralítico, que dirá o luxo para uma caixa de doces de figo que vira no mercado. Umas compotas secas, pastas enormes, que vinham da Pérsia, lugar longe como o diabo. Figos como aqueles, coisa sem dúvida, o acepipe que regala os olhos mesmo antes do estômago sentir saudades deles. Uma coisa como aquela nem deve ser comida, Sezostras pensava, mas somente precipitada entre a ambição e o delírio de ver e rever. Enfim, um namoro com a imagem e com a forma.

    Alisse esfregava, espanava, lavava. Dizia que os tempos estavam difíceis para se manter ali dentro uma serva. Sezostras suspirava e depois deixava uma frase lacônica no ar, desejosa de fato que a filha fosse embora, enquanto ainda não havia sumido com suas traquitanas de uso pessoal. Ranzinza, fazia comentários baixos, somente a dona deles sabendo o que dizia. Fazia muxoxos e puxava orações, pedindo que nada ali dentro de casa sumisse, fosse largado ao desmazelo que vinha da filha. Se não pedia que Alisse viesse às limpezas e faxinas, não entendia aquela insistência, como se ela fosse inútil ou lesa. Um martírio, um verdadeiro sacrilégio.

    Naquela manhã de sábado, particularmente afoita, Alisse chegou com um pacote grande debaixo dos braços e duas vassouras com as tarjas coloridas. A piaçava que nem era, mas o plástico que em tempos modernos a tudo rege. Dava os palpites e ouvia o repicado simpático do Pinta Braba, como se aquilo já fosse instrumento velho ali dentro da casa e quintal.

    - Uma empregada aqui seria bom. Espia só a sujeira que se acumula debaixo desta pia. Nojeira!

    - Coisa nenhuma. Sujeira merda nenhuma. Nunca tivemos uma desde que entendo teu pai com o nome de marido. Além do mais, não tolero que me apanhem com dedos tudo que é meu!

    - Arre!

    Alisse sacolejava a bunda no ir e vir da enceradeira. Nunca fora bonita. Tinha o nariz que nascera quebrado e torto para uma banda. Os olhos sob cabelos oxigenados faziam-na uma espécie de mulher bravia, daquelas que exigem teor de colhões para serem enfrentadas. Mas tinha sustância na bunda, se não sobrava enredo dentro do cérebro. Diante do silêncio da mãe, do aborrecimento que nela ficava verídico e intenso, fácil de ser apalpado, Alisse ia ao rádio e tirava a coisa da sintonia do programa de Evaristo Pécumpano. Sabia que isso era o que mais irritava a anciã. Havia quarenta anos que o mesmo rádio somente dizia a voz de Pécumpano. Fazer uma desordem daquele tamanho dentro da casa era o mesmo que atiçar todas as rebeldias da mãe. O que nem devia ser rebeldia, mas o hábito começado cedo e que se transformava numa mania que trazia gostos, tanto a ela como a Juca Mamão. A voz de Pécumpano era a solidão deles quebrada, atirada ao nada.

    - Não mando mais nem dentro da minha própria casa. Nem sei em que cruz foi que atirei a pedra!

    - O que a senhora diz?

    - Digo o que acabaste de escutar. A carapuça costuma servir a quem sente o frio no cocuruto!

    - Vou arrumar o meu quarto!

    - Tu não tens mais quarto aqui desde que se embrenhou com casamento. A tua casa fica naquele sobrado disforme do Grajaú. Vou arranjar cadeado e lacrá-lo, um dia me pode ser útil para alguma coisa. Algum dia, por acaso, já entrei em tua casa a fim de arrumar e limpar?

    Quando Alisse chegava, que estacionava o seu carro cor de abóbora à garagem da casa, em sossego de Santa Tereza, começava o suplício para a anciã. Mesmo para o velho, Juca Mamão, as coisas nem eram de haver o gosto, pois que de onde estava, estendido sobre a cama, era o último a ser cuidado. Só havia olhares para ele depois que tudo estava arrumado, lavado, espanado, encerado e brilhando. Alisse acreditava que as bravatas da mãe fossem somente capricho. Mas estava em ledo e completo engano. Sezostras não se dignava a receber aquilo com bons olhos. Além do mais, ouvia-se pela casa inteira os berros de Mamão. Fome, sujeira e sede. Quando acabavam é que cuidavam de metê-lo a tomar uma nesga de sol. Como não havia outra coisa a fazer que não fosse acabar aquilo logo, a mãe acudia e afastava uns móveis mais leves. Queria ficar livre da filha enquanto estava mais cedo. Se ajudasse, de alguma forma veria as coisas em melhor andada e assim, saber-se-ia às costas da filha antes das quatro horas da tarde. Melhor jeito de despachar é fazer jus ao despachado. Resmungando, as duas se cruzavam dentro da casa enquanto os barulhos faziam sua regência capitosa. Era comum que Alisse chegasse com vestido regalado, rodado e bonito. Trocava aquilo por uma veste caseira que retirava de dentro de seu eterno quarto, em seu eterno guarda-roupa. Sezostras via aquilo e suspirava profundo.

    - Meliça tem namorado novo, mãe. Nem sei se já te contei sobre a coisa. Um xodó demasiado!

    - Não disseste nada. Nem me interessa muito. Meliça por acaso se preocupa com alguém para que, depois, alguém possa se preocupar com ela?

    - Interessa muito sim. Ele é negro como as noites sem luz!

    - Minha Nossa Senhora. Namora um crioulo? Ainda bem que teu pai não pode mais abrir-se com as janelas reais, sofreria um novo derrame se entendesse isso que dizes!

    - É simpático. Gente boa!

    - Crioulo gente boa? E o que ele faz?

    - É instrutor de educação física. Formado em escola técnica. Muito simpático. E não é feio!

    - Minha Nossa Senhora. Ela, branca como flor de trigo, amarela como trigo em flor, misturada com piche! Deus me perdoe!

    Ouviu-se o resmungo de Juca Mamão nas cavas do quarto. Ouvira a conversa. Era prestimoso com a neta. Sempre fora. Meliça era branca, cal virgem. Se estava trotada com as vias de um negro, para eles aquilo era a remontada de um mundo espanado. Talvez aquele fosse o único ponto com que concordavam em suas litigas de repetição. Nenhum dos dois avós suportaria uma coisa daquelas. Para eles, envolvidos com a ebulição de mundos mais antigos, saber da história que a neta vivia era o mesmo que desacreditar que o destino das criaturas padeça de cura. Em toda a sua vida jamais viram alguém de seu sangue se misturar tanto, a ponto de deixar a família crendo na degeneração imediata de todos os sensos e dignidades.

    Juca Mamão tossia, desbragado, derrubava um copo. Para ele, já serviam tudo em copos de alumínio, pois que se se enervasse, atirava o que podia ao chão. Perdera toda a capacidade de preensão, mas ainda sabia soltar seus safanões com a mão aberta em direção a tudo que queria que se espatifasse. Em verdade, somente quisesse chamar a atenção para suas revoltas e seus propósitos. Queria ouvir de perto, escutar aquilo que a filha estava a dizer. Conferir: que a sua neta estava de facto a dar-se com um negro. Alisse acudiu, quase esquecida de que o pai estava vivo. Sabia que o ancião ouvira a conversa. Para Sezostras, a informação servia como argumento para solidificar a intolerância pela presença da filha ali em sua casa. Culpava-a pela ferocidade que se aclamava no pai. Embora a culpasse, pouco se importava com o que estava acontecendo a ele. Se havia uma preocupação maior, que até nos dias vindouros o efeito sobre o homem ainda seria grande, estaria a estapear e atirar ao chão tudo que estivesse ao seu alcance. Era a sujeira declarada dentro do quarto. Lambanças, como Sezostras gostava de dizer.

    - Acalma-te, ó pai, que tudo se resolve!

    Juca Mamão apenas resmungava aquilo que dava conta de resmungar. Todavia, a filha conhecia bastante o pai. Sabia muito bem o que significava aquela sapituca. Então, sentou-se ao seu lado e ofereceu-lhe um copo de água fresca. A bilha deixada comodamente sobre o criado-mudo. O pai abriu a boca, depois, aborrecido e atabalhoado com as coisas que lhe cruzavam a cabeça, cuspiu tudo, de vez, quase que à cara da filha, se acaso não tivesse saltado a tempo de não ser colhida. Alisse via a mãe a rir, atrás dela, as mãos apoiadas ao cabo de um rodo. Sezostras se divertia. Estava de acordo com a única coisa em sua vida que podia acordar com as reações do Mamão. Era preciso se fazer qualquer coisa para dissimular o sofrimento que campeia dentro da vida das criaturas. A situação não poderia jamais ser aquela consoante sem nenhuma vogal: de repente, vai que se emprenha a neta, que os jovens de hoje perderam de todo a estribeira que havia nos tempos de ouro do mundo.

    A casa cabia somente em um pedaço de si mesma.

    Capítulo 2

    Eurico Barsanufi Peixoto, o Piquira Bate-sola, estava sentado confortavelmente em cadeira do Bar Bella, na esquina da Lemos de Azevedo com a praça Sete de Setembro, rei de todo o lugar. Era o ano santo de 2004. Habituado à hora de estar ali, as nove da manhã, era freguês de fidúcia e sempre assíduo. Praticamente tinha regalias boas e servia-se de acordo com estar mesmo em casa, sem frescuras, que é como dizia o estar bem acomodado dentro das soluções mais cabais da vida. Um copo com vodca, outro grande com suco de laranja, outra vasilha para o porte do gelo em cubo. Bate-sola olhava em torno, meio ansioso devido estar sempre meio ansioso – sem estar –, que não era homem com lidas chamadas normais e não devia nada a cristão nenhum, de sorte tal que todos os imprevistos, governamentais ou particulares, a ele não podiam atingir. Era de haver as facilidades no manejo com a vida. Estava aposentado como militar reformado, um cabo de boas iguarias. E pronto. Não era de proventos exagerados, mas também não se achava às dificuldades de saber-se a um bom copo de vodca e seus adereços, a cor da laranja e o frescor do gelo. O resto era vida que se apreciasse.

    Era homem de estatura pequena, conforme dita o nome Piquira. O apelido bem posicionado. Herdou a pecha de um grupo de escritores e músicos com os quais se reunia em sábados matutinos num bar de Ipanema. Eram as reuniões de praxe, quando e onde se conversava sobre nada e, sobretudo, sobre nada. Se falava de política, mais era sobre a vida alheia e argumentos pessoais, que fulano é ladrão e que sicrano não deixa de ser um grandessíssimo veado. As manhãs com sábados ligeiros e suas vestes de crepe rasgado. Os sábados com suas impotências diante do peso de um domingo antecipado. Bate-sola olhava a face de todos aqueles intelectuais, achava em cada um somente um esmero de merda, que poeta de naipe maior era ele, apreciador imoderado das redondilhas perfeitas, dos alexandrinos sem jaça e de Jota Gê de Araújo Jorge, segundo sua opinião o mais castiço de todos que já cruzaram os frontispícios de um mundo de estética. Se ouvia uma opinião sobre Ponge, olhava de banda, mesmo não sabendo quem diabos era aquele Ponge, por certo que não era boa bisca. E cuspia feles, a dizer que não mais a poesia tem o encanto dos dias em que se dizia a palavra com a rima certa e a grandeza de uma palavra outra, que não se sabe o significado, mas que o dicionário ajuda na interpretação. Enriquecimento intelectual pela pesquisa. Era assim que admitia a estética como quadro de uma arrogância fingida de sentimentalismo.

    Não havia uma única semana que não chegasse a compor dois, três de seus sonetos. Mormente oferta para uma criança que vinha ao mundo, para um acontecimento nuclear qualquer, para uma paixão que surgia em sua vida, coisas sumárias que a vida ia ditando. Depois, apresentava-os quando o sábado era dia de reunião em mesa de botequim. Era apreciado devido à leveza dos assuntos. E o tal Ponge, fosse quem fosse, não passava de um monte de esterco que as chuvas se esqueceram de apagar. Assim é que pensava e nada podia demovê-lo de um Casimiro de Abreu bem untado nas tarraxas. Cada um com suas perfeições. E quem discordasse dele, que fosse então, aprender o que é poesia em outros terreiros. Não com ele, que conhecia a métrica e o clássico que detém a grandeza dos mundos e das letras.

    - Uns gostam da remela, outros dos olhos. O que é que se vai fazer? Não tenho culpa de ser perfeito no versejado. Sou transcendente e kafkiano. O resto é somente a sobra!

    Era seu modo de pensar e pronto.

    Era homem retaco, de compleição embarrigada devido ao consumo grande das cervejas e outros gêneros quaisquer de álcool. Tinha sempre uma resposta para ser dada. E desde os tempos em que fora soldado da polícia militar, que já exibia uma gagueira inconfundível. Isso era coisa que devia ser bem investigada, pois que em momentos de estar tranquilo e sem incômodo, jamais gaguejava, mas se submetido a qualquer questão, danava a tartamudear, de tal forma o fazia que uma gota de lágrima escorria de cada olho sob o suplício das explicações que queria dar. Um dos convivas, daqueles que vinham aos sábados, afirmava com palavra certa – mesmo diante dele -, que Bate-sola somente gaguejava se acaso estivesse a mentir ou se posto sob afirmação de suas condutas dentro da existência. Era provável que tivesse razão, porque mesmo acuado sob tal acusação, não se movia do lugar, aceitava as expiações que lhe eram impingidas e sempre a dizer que cada um cuidasse de seu nariz. Metia a mão a uma pasta ordinária que sempre carregava e sacava um belo soneto novo que pudesse calar a boca daqueles cafajestes, alcoólatras, pústulas e infectos, todos os frequentadores de lugares abomináveis: os botecos que corrompem e causam a infertilidade das almas em curso. Achava que um componente desagradável, mundano, que entrasse na sua roda de amigos devia ser chamado de obsessor, pois que havia nele muita qualidade para a doutrina que chamava sempre de espiritualista. Era fiel ao consumo da espiritualidade mais declarada que pode haver. Atribuía aos espíritos todos os fenômenos da natureza humana, desde a inteligência até a paranoia mais aflorada.

    Se não era sempre que se afivelava à cerveja, quase sempre tinha diante dos queixos a dose sobressalente de vodca. Foi assim, diante de um copo do destilado e gelo, um copo grande de suco de laranja, que enxergou de longe a marcha esquálida de Sezostras. Atravessava a praça e evidentemente havia que passar diante dele. Um saco na mão direita – pães em conteúdo certo -, na mão esquerda outro saco e dentro dele o leite contumaz. Caminhava até que serelepe para a idade que tinha. Bate-sola conhecia Sezostras desde o tempo de mais antigamente. Com cinquenta anos ao lombo, convivido do bairro e bem convivido, conhecia quase todas as pessoas que por ali chupavam os ares da existência. E conhecia, igual modo, Alisse e Meliça e mais quem fosse em tropel de imagem. No passado, sentara-se para beber coisas quentes ao lado de Juca Mamão, quiçá para discutir com ele as sedes do jogo do bicho, um pulo aqui, uma mandada na cabeça, acolá. Que era o tigre e não o porco, conforme ele sonhara. As conversas que soluçam entre as criaturas, as simplicidades que não podem ser modificadas. Era tudo questão de alinhamento de tempo e pronto. Sonetos são maravilha com a chave e o ouro todo incrustado no terceto final. Ele dizia e não abria mão. Não era nenhum simplório e displicente para desdenhar da forma de criação mais perfeita que pode haver: o soneto. Uma lágrima de grandeza escorria pelos seus olhos quando declamava uma estrofe de Raimundo Correia. Em últimos tempos, afincado em temas de Augusto dos Anjos, sempre repetia a frase capital, diante de quem quer que fosse.

    Triste, como a pedra medra!

    Sempre terminava com um sorriso de mofa, como se dentro dela a instilação da coisa perfeita fosse um argumento há muito tempo anunciado.

    Sezostras passou diante dele no momento em que sorvia um gole com favos de laranja. Os favos ficando pegados ao canto dos lábios. Observava-a como o gato esperto espera o pássaro se distrair. Com mais de oitenta anos vividos, seus passos eram lentos e a sombra que fazia era menor e ainda mais lenta. Bate-sola arregalou os olhos. – Maravilha! Delícia dos céus!, murmurou lá com seus botões mais íntimos e caseiros. Naquele momento o Bar Bella estava dono somente dele. Mais ninguém ali a não ser o balconista com seus panos velhos e surrados, aqueles ensebados que se usam para limpar porta de geladeira. Afoito, Bate-sola, percebia a distração da anciã. Passava ao largo sem lograr a ele um simples pedaço de olhada. Agiu com voz e com gesto. Fez um bico de discórdia. Sentia-se desleixado.

    - Bom dia, ó Sezostras. Onde é que vais, assim guapa e na pressa de nem me ver, sua danadinha?

    - Homem de Deus, que nem te vi!

    - Estás chibante, que coisa te manda além do mundo, rua adiante, assim como passinho de veado novo?

    - Ora, tu dizes as coisas com rima muito de agrado, seu moleque de botequim. Queres somente me agradar no engambelado. Estou velha demais para aguentar as admoestações e galanteios!

    - Não é não. É como estás é que bem merecias uma beijoca estalada entre os olhos!

    Para compor maior impacto diante dela, Bate-sola segurava-lhe a mão. As palavras pareciam não ser suficientes para segurá-la. Havia muito tempo que o homem fazia a Sezostras a corte, de forma escancarada. Ela percebia, somente não se deixava levar devido a razões que poderiam girar desde o pecado até o medo. Havia mais de quarenta anos que a anciã não provava dos doces de sexo. Como é que fosse enfrentar um sujeito pecaminoso como era aquele homem pequeno e gorducho? Cabelos brancos nele, porte insistente como uma mola pontuda em sofá novo. A cara concupiscente, de bode que quer se aproveitar da primeira urinada melada de uma cabrita qualquer. Sezostras imaginava, se faz a mim a corte, se me passa as cantadas, então deve fazê-lo com qualquer uma que lhe caía nas mãos. Que rede de um homem assim tanto segura o peixe quanto o caranguejo, tanto a serpente com as crias como a baleia. De repente, respeitoso, perguntava sobre a banda familiar da vida. Interrogava, sóbrio.

    - Como está o Mamão?

    - Lá, do jeito de sempre, entre o resmungo e a escarradeira!

    - E Alisse, que não a vejo faz tempo? E Meliça?

    - Tudo nos conformes. Mas que tenho que ir!

    - Por que é que não te assentas e provas um golezinho cá comigo?

    - Porque já passei do tempo dessas festas profanas!

    - Bobagem. Vou lá na tua casa qualquer hora, se queres bem saber, que estou nas vésperas de ir lá faz tempo!

    - Ora, seu sabido. Lá em casa tu não vais não...!

    - Vou sim...!

    - Não vais não... É arriscado!

    - Por isso mesmo é que eu vou!

    - Se o Mamão te paga, faz-te pagar erros que nem cometeste!

    - Corro o risco. Qualquer dia...!

    A prosa pueril entre os modos. Quem ouvisse podia pensar que fosse um jogo de paradoxo, pois que um com cinquenta, a outra com oitenta para mais, como é que podiam entabular uma conversa daquelas, que as caras que faziam eram de transtorno elementar e infantil. Em face de Sezostras podia se ler o emblema da frase: Vai mesmo, vai que me encontras lá a movimentar as estáticas da existência! E na dele: Vou, que te encontro a sossegar as dinâmicas de um mundo que me quer! Com os olhos de uma rapina voraz, Bate-sola buscava sob o vestido estampado a imanência do que eram ainda os seios dela. Olhava para os pés de Sezostras metidos a uma espécie de pantufa de cor cinzenta. O vestido longo com as sardas vermelhas, um crucifixo preso com alfinete na lapela. E as manchas que são o carijó que os anciãos ostentam em sua pele quando os tempos já tornam delgados os seus procederes diante das agruras da vida. As mãos trêmulas, as manchas sutis na pele. As unhas não agradecendo os mesmos cuidados dos tempos antigos; nem elas se dando ao arrojo da vaidade, embora não de todo, ainda existente. Seus olhos com albugem, outra vez a criança nela crescida.

    Com a sabedoria que orienta a decisão de um imperador chinês, vivaldino, Bate-sola sabia que havia mexido com a intimidade de Sezostras. Decorara seus movimentos, mas não com tanto afinco como passara a fazer daquele dia em diante. Aonde ela ia, a qualquer padaria ou congênere, era provável que ele estivesse a manipular a possibilidade de vê-la. Manietava os passos que eram dela, feito se fosse um homem mergulhado somente na função de querê-la como se quer a uma preciosidade. Se mais se afundasse, estaria todo entalado no que fosse a obsessão. Para ele, mesmo dizia nas rodas de cerveja que faziam as regalias dos sábados, estar assim com as mais eradas era o mesmo que os marmanjos ali presentes sentiam em estar atrás das adolescentes e até crianças. Ele dizia, o que estava na moda devido às manchetes de jornal e televisão, todo cheio de si, razoável sempre e cheio de sonetos.

    - Cambada de pedófilos, mequetrefes. Sou o que sou e sustento a minha grandeza de opinião. Elas, as mais velhas, são carinhosas, carentes, compreensivas e não me metem ao perigo daquelas putas paixões que vocês ganham de vez em quando e nenhum sabe contornar!

    Quando surgiu o dia seguinte, Bate-sola estava no mesmo Bar Bella do dia anterior. Esperava com alguma ansiedade pelo aparecimento de Sezostras. Ansioso, via que ela não aparecia. Já estava na segunda dose de vodca com suco de laranja, eram dez horas da manhã. Santa Tereza estava resplandecente de sol naquele dia, alguma coisa teria que ser feita – passava-lhe pela cabeça, para complemento do que mais fosse o bom mundo. Se ela não surgisse na esquina, por certo que iria até a sua casa. Lembrava-se da frase usada, feito se fosse uma menina que se recusasse a ver as coisas como elas são, e que usa de artimanha para debelar a visita boa. Levantou-se dali como quem vai partir para uma viagem curta, sem pagar e apenas tomando pé de todo o complemento das coisas em seu estado mais natural. Santa Tereza era bela como uma flor de mês de maio, um fulgor grande assava cores nos céus. Aquilo era suficiente para despertar no homem urbano uma coisa selênica, algum argumento de maior sentido em direção ao estado natural das coisas, um lago simpático com sossego e beiradas limpas, um crepúsculo tingido por alegrias e um galope de vento contra os olhos e cabelos. Era assim que o Bate-sola atingia o modo de estar o céus de Santa Teresa sobre seus ombros.

    - Abílio, vou num pé e volto no outro. Deixa a forma com o gelo pronta, que em uma hora cá estou de volta. E me dê aí um bombom, desses ordinários de embalagem rosada!

    Com seu passo miúdo e com a sensação de que fazia alguma coisa muito errada – caminhava rente ao muro do colégio -, Bate-sola cruzou seu tempo, avante. Levava nas mãos um jornal vencido – nunca comprava o jornal, mas usava o vencido que era de ontem, apanhado em restolhos de Abílio, no Bar Bella – e dentro do jornal o bombom. Tinha que agradar. Não é porque Sezostras estava uma anciã, que deixava de merecer as considerações apicais que qualquer mulher sempre há ter em merecimento. Uma sensação nova o apanhava. De fato, olhava para trás, como se temesse ser seguido, olhava adiante com uma sensação de vento dando em seus cabelos grisalhos. E desejo de urinar a cada segundo – muito ansioso é que estava. Partia para uma conquista que sabia já adivinhada, mas que também poderia dar errado, desde que não usasse de delicadeza para o começo, o meio e o fim das coisas de surpresa.

    Rua adiante, começava a compor os seus versos e tinha que usar uma palavra que a ele parecia sofrer de um impacto fulminante. Lúrida. Havia arrebanhado do Caldas Aulete aquela palavra deliciosa, segundo seus cálculos de último momento. Sentia um arrepio de dor esquisita quando pronunciava um verbete daquele calibre. Coisa rara. Não seria qualquer um borra-botas, prequeté sem procedência, que poderia usar ou entender um vocábulo assim substancioso. Todavia, o alvo maior que o atingia, Sezostras, impedia que levasse avante todo o ensejo de compor uma trovinha, mirrada que fosse. Estava com os nervos à flor da pele. Lembrava-se dos seios pequenos, o que restara deles, dentro do vestido de corpo alargado. As mangas soltas, a pele muito elástica e ainda conservada. Dentro de algum tempo estaria diante da casa dela. Um bom modo de chegar nem fosse aquele, de soar a campainha com a cara limpa. Se não houvesse as intenções, julgaria que fosse um gesto muito normal. Mas, sendo a coisa toante do jeito que era, sentia-se meio profanador, um tanto endiabrado ao fazê-lo. Em torno era só a beleza que se percebia. Sol vazando para tudo quanto é lado e um salgueiro lançando seus molhos de flores amarelas sobre o muro alto do colégio de freiras e jesuítas. Confundia-se. Tinha dificuldade em articular para mais as conjunturas. Aquilo nem fosse um salgueiro, não são vermelhas as flores do salgueiro, ou salgueiro não se veste com flores? Perguntas cicatrizadas, já nascidas como escaras somente. Bate-sola colheu um ramalhete mais proporcionado e enfiou dentro do jornal dobrado, junto com o bombom. Naquele momento sabia que o arsenal que compõe um sedutor está pronto, pois que joias eram surpresa que não entravam em seu orçamento. Flores são a resistência rota.

    Esteve durante um tempo que lhe pareceu mais suadouro que espera, diante da casa verde que era a de Sezostras. Ouvia uma lamúria de rádio lá dentro e contava em relógio de sol, deviam ser dez horas da manhã. Oxalá um arremate a mais. Defronte ao muro que fazia a cerca com o colégio das freiras, a casa simpática, daquelas que nem existem mais, com barrados desenhados, como se fosse a coisa portuguesa que ali deixava um marca indelével. Num mirar mais oportuno, percebeu que uma cabeça com lenço colorido atado atravessava a janela aberta. As paredes da casa faziam confronto direto com a rua, não havia lanço de separação ou ajardinado. A não ser pelo alpendre por onde se entrava, tudo resumia uma modéstia com um pé de samambaia ressequida dependurada ao mais rente da porta. E somente. Bate-sola conhecia a casa. Já estivera ali muitas vezes quando vinha para compor as pegadas e pulos de jogo do bicho junto com Mamão. Quando a cabeça com lenço cruzou a janela, os ossos de Bate-sola se comoveram. Achou que o movimento lá dentro era ligeiro demais, mas Sezostras era ainda jovial, tinha ligeireza de asas de melro no andado. Assim foi que julgou. Era hora de entrar naquela casa. Não podia adiar mais. Com os implementos embrulhados ao jornal, aquilo que devia depor aos pés dela, caminhou meio irresoluto e soou a campainha. Sentia as mãos frias e o falo virado para trás, em formato de anzol. Estava emocionado. Tenso.

    O sol de Santa Tereza era somente dardejado potente. Era um dia para um pedaço bom de praia. Mas tinha o Bate-sola coisas mais importantes que fazer. Ouviu lá dentro da casa as rimas de barulhos, uma espécie de azáfama doméstica com a qual não estava muito habituado. E ouvia também os estalidos de vasilhames sendo enxaguados e lavados, como fica sendo a cantilena dos copos quando estão em banho dentro das pias com granito. Os ruídos que demonstram que a cegueira é uma coisa que absolutamente prescinde da imagem e da forma. Não teve dúvidas ao soar a campainha. Juca Mamão que o perdoasse, mas estar ali e a requerer préstimos da Sezostras era somente uma forma que havia nele de promover saúdes ao universo. Seus pensamentos de certa ousadia. Se um queria, se ela queria, qual o motivo de se adiar a coisa querida? Seus olhos se enchiam de um louvor esbranquiçado, sabia o que queria e muito bem. Que os pecados fossem somente a invenção de quem não tem infernos para desfrutar deles sozinho, alguém que precisava compor sofreres com mais alguém que seja mais débil.

    A porta se abriu num repente, nem mesmo a pessoa que atendia era interessada em quem chamava. Era Alisse quem abria e seu pescoço estava voltado totalmente em rotação, a ponto dos olhos mirarem lá para dentro, para os lados da cozinha, e sua voz dizer coisas que não tinham nada a ver com a visita. Num instante que durou mais de minuto, Bate-sola até que foi condecorado com sorte, pois que arranjou uma desculpa qualquer para dizer diante da filha, visto que queria ver a mãe. Tartamudeou para alardear menor o tamanho de sua visita inesperada.

    - Mãe, não muda a estação de rádio. Estou avisando. É por isso que não gosto de vir aqui te ajudar. Se gosto dos boleros e tangos, a senhora vem com esses valseados mequetrefes!

    - Então, por que é que não ficaste no teu antro lá no Grajaú, que aqui não preciso de esmolas e penúrias!

    - Minha Santa Tereza, ninguém aguenta o temperamento da mãe, ninguém suporta. Nem sei o que faço aqui!

    Depois do pequeno quiproquó, que Alisse virou-se inteira para ele, Bate-sola ainda pensou em fugir. Mas isso era apenas uma reação infantil que lhe era rebarba. Uma coisa que pudesse estar fazendo errada? Questionava-se. Então, dono de toda a verve que era a sua, apanhou a mão estendida e apertou-a. Sabia que o discurso que fazia à mãe, em-todo, parte dele era dirigida ao recém-chegado. Para que ele também se afizesse à solidão paralela entre mãe e filha. Olhou em olhos de Alisse e percebeu neles o tributo da azáfama que punha em torno da pele a face rubra. Vestida de modo sumário para as tarefas domésticas, as coxas em cotó grosso, a malha branca que tinha dificuldades para selar o tamanho dos quadris e da bunda: Alisse assim se estabelecia ao visual chegado, de mão primeira. Tudo resumia uma grandeza que poderia muito bem agradar às vistas. A brancura do deslizado.

    - Bom dia, Alisse!

    - Ora, meu caro, se não és tu. Vamos entrar. Estou em bagatela de briga com a mãe. Cheia de manias. Tu bem ouviste. Não aceita que se toque no rádio velho, nem nas traquitanas que compõem as suas lembranças. Terrível. Deve estar lá nos fundos a bater boca, sozinha, ou então com a assessoria de Pinta-braba, o galinho que é o dela!

    - Ora, que passei cá apenas para um cumprimento. Passava via a via, a rua adiante, e vi seu cocuruto. Pensei. Vou até ali cumprimentar Alisse. Quando se passa tempo demais sem as prosas e revisões entre a gente, viramos todos

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