Gente Feita de Terra
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Sobre este e-book
Gente Feita de Terra conta a história de duas mulheres, mãe e filha, dos anos 60 até ao início do século XXI.
A mãe parte jovem de um Alentejo sem futuro, perseguindo um amor na Angola colonial portuguesa, que de princípio a recebe como lhe pertencesse, para depois a expulsar, como a todos, em desespero, mostrando-lhe que a pertença não passara de ilusão.
A filha é uma jovem viúva que habita a Lisboa suburbana do nosso século, rápida e desenraizada, e que na história da mãe tenta perceber a que lugar pertence.
Gente Feita de Terra transforma, num estilo clássico e bem elaborado, as histórias recentes de Portugal e Angola, com as suas violentas atribulações, em sentimentos, sensações, sentidos de uma grande riqueza. Serão os lugares o que as pessoas deles fazem, ou serão as pessoas o resultado dos lugares?
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Gente Feita de Terra - Carla M. Soares
Prólogo
A porta abriu-se. Do lado de lá uma figura alta e esguia, de olhos azuis como os seus, mais azuis do que os seus, estacou, fitando-o com incredulidade. Olharam-se enquanto atrás dele a agitação crescia, olharam-se enquanto ele era arrebatado num aperto de braços que lhe pareceram quase adultos, a que se juntaram outros, mais pequenos, mais familiares, muito excitados. Quando o libertaram, fitou as figuras que pairavam a meio da sala, grande e pequena, ambas perplexas. Por momentos, ficou sem saber o que fazer. Tinha palavras para dizer, defesa escassa contra a hostilidade. Apeteceu-lhe recuar, talvez fosse tarde para regressar. Não podia. Que mais tinha, a não ser o que estava ali mesmo, à sua frente? Respirou fundo. Falou com o coração.
Capítulo 1
Lisboa, 2015
Desperto do pesadelo habitual. Sento-me na cama, sufocada pela sensação familiar das lágrimas presas. No sonho, chorava. É possível chorar num sonho?
É tarde, tão tarde que já se fez silêncio na artéria movimentada onde vivo, e em breve começará a pressentir-se a primeira luz da manhã. Já não me sobra muito tempo antes do toque do despertador, a chamar-me para a rotina matinal, tingida sempre pelo cansaço. Cansaço, por vezes, de dentro para fora. Vou espreitar o meu filho, que dorme sossegado, e depois a rua, pela janela da sala. Cai uma chuvinha fina, está frio e, como acontece sempre que acordo durante a noite, não conseguirei voltar a adormecer. Estou exausta da própria exaustão, farta de ser a mulher que me tornei, saqueada por recordações com vontade própria, e, nos últimos tempos, pelos desejos contraditórios de me deixar ficar nelas e de limpar a cabeça e a vida, e avançar. Sei como, mas ainda não encontrei a força.
Suspiro, afasto-me da janela, faço um chá quente, sento-me à frente da televisão desligada, pego no computador, um ritual já familiar. A página branca desafia-me há dias, o princípio dessa história assombra-me, mas não fui capaz de quebrar o medo dos princípios. Todos são difíceis para mim. Depois de saltar esse muro, o muro de um ecrã em branco, talvez me descubra nas palavras. Talvez não.
Escrevo meia dúzia de sílabas, a ensaiar um título, apago-as, depois uma linha, que detesto e faço desaparecer. Quero começar por mim própria, antes de recuar a um tempo desconhecido, anterior à minha conceção. Para mim, procuro uma imagem que coloque a minha vida no espaço certo, uma dessas frases que se traduzem em lugares-comuns muito simples: dizer que sou uma ilha, o elefante na sala, uma nuvem transitória, e depois, encaixada nesse conforto, não pensar mais nisso. Nenhum dos clichés, porém, é exato. Dou por mim a achar que talvez não haja nada na minha passagem por este mundo que valha a pena definir. Nos momentos de silêncio, pergunto-me que espécie de existência valerá uma definição. Ou uma história.
Nenhuma, é o que concluo. Ou todas.
Todas, as simples e as outras, começam e acabam exatamente no mesmo ponto e, entre a primeira inalação e a última exalação, só há escolhas e consequências, uma ou outra casualidade. Há lugar para o extraordinário, claro, posso apontar com alguma certeza acontecimentos assim, o primeiro homem no espaço, a descoberta da pedra de Roseta ou da penicilina, a invenção da roda ou do telefone, a salvação de um milhão de humanos de algum genocídio, a criação de uma religião capaz de perdurar milénios, a aventura de enfurnar-se na selva para conhecer os gorilas. O extraordinário, porém, é muitas vezes coisa de um momento, a mudar uma vida, a mudar o mundo, pode vir tarde ou demasiado cedo na vida e, até então e depois disso, essas vidas também são feitas de nascimento, crescimento, acertos, erros, falhas, decisões, repetições e rotinas. Se porventura se fazem mais do que isso, é a voz do contador que, com as palavras certas, lhes inventa os interstícios, tece neles cheiros, cores, formas, verdades, mentiras, singularidade. A fantasia é omnipotente, inevitável: nenhuma história é real, talvez nem no momento em que se dá; no instante seguinte já vem coada e medida pelo narrador.
A história dos meus pais, por exemplo, é assim: comum. Apesar de todas as reviravoltas, dos muitos acontecimentos, gentes, odores que lhe imagino, os de um deserto que não conheço, os de uma cidade noutro continente de que não me lembro, depois o do mar que embala Portugal, ainda é comum. Um caminho de um para outro lugar neste mundo, despidos das tralhas de uma vida e da vontade que ficou para trás, metidos numa torrente de gente em reviravoltas de perdas e ganhos, uma multidão, milhares em poucos meses, que se verteu do gigante africano, a nossa terra-natal feita terra alheia, para este pedaço europeu e insignificante de solo e mar. Isso é sabido, cabe em registos e páginas de jornal, em blogues e imagens, o resto é mistério e reconto: o encontro dos meus pais em Lisboa, a partida para Angola, a vida boa ou má lá na cidade à beira-mar, à beira-deserto, o troar da guerra, uma partida apressada, eu demasiado pequena num mundo de monstros. Não guardo nada, nem um som, nem uma imagem burilada pelo tempo, só aprendi, nas fotografias antigas de família, as avenidas, a longa praia, a extensão imensa de um deserto, uma casa, um automóvel, um ou outro rosto desconhecido. Não trazem nem saudade, nem dor, nem pena de me ser estranho o lugar onde nasci. Não há nada em mim quando lhe ouço o nome, a não ser talvez uma curiosidade vaga, uma pena sem calor nem desejo de conhecer essa outra vida... A minha é feita dos cheiros da capital, que reconheço com prazer sempre que me ausento um dia ou dois, o aroma do sol quase constante sobre o rio, o das pedras da rua molhadas pela chuva.
Um bom contador, creio, poderia usar palavras cheias de sombras e luzes em pontos estratégicos, fazê-las incidir nos lugares exatos e preencher os vazios com as revolutas da imaginação: fazer da minha história sem interesse uma belíssima fantasia. Eu talvez não seja capaz dessa magia, duvido que saiba encontrar o ponto de equilíbrio entre a verdade e a mentira, o facto e a criação. Sou tantas vezes atraiçoada pela memória! Disponho de poucos factos, nenhuma confissão familiar. Tudo o que tenho é a vontade de encontrar palavras para essa migração de corpo e alma que não me foi dado sentir, recompor os dias longos do meu crescimento, a incompreensível relação dos pais. Recompor a minha própria realidade, quando se torna demasiado pesada. E, se vier repleta de fantasmas, torcida à sua vontade, mentira atrás de mentira enquanto persigo uma espécie de verdade só minha, tanto melhor. Não tenho leitores e, por isso, talvez não importe.
Ajeito a manta em torno do corpo, contra o frio e contra a cantiga da chuva na vidraça. Chove sempre na minha vida, é curioso. Nos momentos que importam, chove, o céu a batizar, lavar, castigar as consequências das minhas decisões. Na dos meus pais, imagino esse sol africano dos filmes, a arder, a queimar a terra. A queimar a gente. Puxo outra vez o portátil para o colo e lembro a mim própria que a história é minha: tenho nela a liberdade dos deuses.
Capítulo 2
Lisboa, 2015
É a voz do Miguel, numa excitação desengonçada, que me arranca ao alheamento a que me entreguei por instantes. Desapareci no meio de palavras, construindo na minha cabeça linhas que nunca encontrarão forma numa folha de papel, vou perdê-las entretanto. Não descobrirei a coerência das frases completas, não para estas ideias trémulas. Assim que tento segurá-las, fogem-me, tudo o que fica são pedaços desgarrados e sem encanto. As palavras sem arte do relatório imaginado de várias vidas.
— Ó mãããeee!
O som explode nos meus ouvidos, risos e conversas interrompidas por outras, com a excitação das reuniões familiares. Pressinto o olhar da mãe sobre mim, uma preocupação nada secreta. Dessa vez, não a tranquilizo com um sorriso inventado no mais fundo da minha mentira. O meu rapaz puxa-me a manga.
— Diz lá que não é parecido com o avô Alberto! É igual!
— Não é nada! — grita a prima pequena, estendendo dedos sujos de chocolate. Miguel afasta a moldura, defendendo o direito ao objeto que foi buscar.
— Larga! É parecido, é! Mãe, vê lá!
Levanto por fim o olhar da chávena de café que tranca sempre a interminável refeição, e fito sem vontade o friso de madeira. Sai-me do ângulo de visão no mesmo instante, sacudido numa luta benévola entre o meu filho e a prima. Sorrio, com uma ternura contrita, à imagem que não chego a ver, a do homem que preside à refeição, e dou mais um gole no café. O esforço para afastar as velhas incertezas é inútil, o café não pode lavar da boca do estômago o seu sabor agridoce e dúbio. Tantas vezes fitei esse mesmo retrato amarelado, com saudades de outro tempo, de outro pai, da minha própria inocência, antes de aprender a duvidar da curva dura do seu lábio de cima, tão parecida com a minha, dos olhos claros e aguçados que herdei. Do homem que o pai foi. Da mulher que o amou.
— Esse é o avô, quando era novo — corrigi. — Larguem isso, antes que estraguem.
A prima olha para o avô com desconfiança, aceita-o mais uma vez como o homem da fotografia. É sempre assim, tornou-se quase um jogo. O meu filho grita:
— Ó ‘vô, quantos anos tinhas aqui? Já eras veeeelho!
Sorri. Aos olhos de um rapaz de seis anos quase todos eram velhos. Eu, aos quarenta e dois, também sou velha. Talvez tenha razão, em dias como este, sinto-me mais velha do que Matusalém. Suspiro.
— Vá, Miguel, arranja-te para irmos embora.
— Ó mãe! Ainda é cedo!
— Não é nada cedo. Já devias estar na cama.
A minha sobrinha mais velha, dezassete anos em corpo miúdo, os olhos azuis da família, tira da mão do primo a pequena moldura e devolve-a ao seu lugar na estante.
— Não vês que a tua mãe está cansada? Anda lá comigo buscar o casaco.
Há um arrastar de cadeiras, que não deixa ninguém sentado à mesa. Fito de novo a fotografia do pai, enquanto visto o casaco em modo automático. A moldura parece pequena e solitária ao lado do retângulo prateado com a imagem da mãe, tão nova, e de um outro em que estão os dois, pai e mãe, em frente de uma casa rosa que não recordo, em Moçâmedes. O pai tem o rosto inclinado para a mãe, num gesto de amor que me causa estranheza. A ideia de que um dia os meus pais se amaram é disforme. A ideia de que eu própria amei dá-me a náusea das coisas falsas, mas tudo faz parte de uma narrativa que, embora não me pertencendo por inteiro, se vai desenhando há anos em mim.
Deixo perder o olhar noutras imagens, algumas a preto e branco. Os meus avós alentejanos em pose rígida em frente da igreja, no Alcôrrego, outra mais antiga, da avó sul-africana que nunca vi, loura como uma estrela de cinema, de grandes óculos e braço dado com um avô moreno e sorridente, numa paisagem de mar de beleza indomada. Há muitas de filhos e netos em diferentes fases do crescimento, uma galeria desgarrada de momentos perdidos, esqueletos que de nada serve querer fixar no tempo. Volto à do pai, ainda com o cabelo forte e escuro, de balalaica bege. Apercebo-me de repente que só guardo essa imagem dele em jovem, um africano que ele nunca deixou realmente de ser, num eterno verão em Lisboa. Na Lisboa dos anos 70 e 80, assim vestido, deve ter sido fácil apontá-lo como um dos muitos que chegou nessa enxurrada de retornos, ele que, na verdade, não retornou.
— Não queres deixar o miúdo a dormir cá? Descansavas — sugere a mãe, quando Miguel já vestiu o casaco e, com tremendo espalhafato, tenta escapar-se ao ataque de beijos da prima mais velha. — Alberto, diz-lhe que o rapaz fica cá!
O pai volta para ela os olhos azuis, de que os meus são cópia perfeita, e concorda.
A velhice não lhe assenta bem, concluo.
Uma velhice de chinelas, afastado de todas as coisas que lhe preencheram a vida. Desvio o olhar para a mãe. Parece-me sempre muito mais nova do que o pai, décadas, embora os separem apenas uns cinco ou seis anos. Por um instante, detesto-os, como quando era menina e queria saber o que se passava atrás das portas fechadas, que zangas eram sussurradas com tamanha fúria, quem tinha razão, detesto-os tanto quanto se pode detestar alguém que se ama, com todas as falhas e erros e defeitos. Resisti a repeti-los, mas sei que caí em muitos deles. Nenhum de nós lhes escapou. O meu irmão mais velho, o sedutor, está duas vezes divorciado aos cinquenta e dois, por amar de mais, amar de menos, amar mal, perder-se numa rotina de ciúmes infundados e insuficiências inventadas, apontados a cada mulher com olhares e meias palavras e acusações, a roubar o amor próprio e a vontade de ficar, num lento erodir das relações. O fim de uma é sempre, para ele, o recomeço de uma rotina de conquista e destruição. Olho de esguelha para a minha sobrinha, filha do primeiro casamento de Filipe. Saberá onde anda o pai? Importar-se-á?
A mãe prepara-se para tirar o casaco ao neto. Sacudo a cabeça, o que acentua a ameaça de enxaqueca que paira desde a hora do almoço.
— Não, deixa, ele gosta de dormir na sua caminha... É o mínimo, mãe. Mas obrigada.
Despeço-me por alto de toda a gente, desço os seis andares no elevador, com Miguel a fazer caretas para os dois no espelho, língua de fora, dedos na boca, olhos rolados em todas as direções, uma rotina nos percursos de elevador.
— És tão tonto! — exclamo, quando começa a balançar-se para a esquerda e para a direita, como um sempre-em-pé. O cabelo escuro e comprido cai-lhe para os olhos. Ajeito-lhe a franja — Temos de ir cortar isso amanhã.
— Ó mãe, não! ´Tá bom assim!
— Ai vamos, vamos.
Vai acabar por ser a avó a levá-lo depois da escola, mas a promessa faz-me sentir que talvez possa ter algum controlo sobre a minha vida, fazer melhor do que correr do trabalho para casa dos meus pais, para ir buscar o meu filho, já jantado e com o banho tomado, e conduzir para a casa que me recebe vazia, já escura e tão fria no inverno. Confiro os trabalhos de casa, se ainda tenho energia para isso, às vezes não, e resta-me pô-lo na cama e ler-lhe uma história. O Miguel começa a protestar que não é preciso, que já sabe ler muito bem, mas eu ainda me agarro ao ritual, sento-me na cama e aninho junto a mim o seu corpito cada dia mais comprido, para uns minutos de paz. Sabe-me bem o seu cheiro de menino, traz-me uma tranquilidade muito clara e doce. Um dia o meu homenzinho vai preferir outros abraços. Quanto me restará desse consolo?
Ajusto-lhe o cinto de segurança, sento-me atrás do volante e imito os sons do motor, muito alto, só para ouvi-lo rir. Rio-me com ele. Tão pequeno ainda, a crescer tão depressa, e eu já vítima do medo de vê-lo escapar-se como todas as coisas se escapam, levado pelo rolar inevitável do tempo, pelo espigar do corpo, pelo descolar da vontade, pelo mover dos interesses. Viro a esquina para a rua principal e observo-o pelo retrovisor. Vai silencioso, nesse cansaço de criança que resiste até ao fim, para quebrar de repente, uma máquina que se desliga. Sei que conta os carros por que passamos, os olhos escuros, grandes como os do pai, vigiando a noite. Controlo uma saudade súbita do corpo e da voz que me foi roubada cedo demais, e engulo as lágrimas. Começa a pingar, uma chuva molha-tolos a salpicar o para-brisas.
— Vem aí outra vez mau tempo — resmungo, arrepiando-me um pouco.
— Gosto da chuva!
— O que tu gostas é de meter os pés nas poças, e depois constipas-te.
— Não constipo nada, isso é do ranho! — chega-se para a frente, entusiasmado. — Olha, sabes o qu’é qu’aconteceu hoje ao Chum-Chum? Deu um espirro e saiu uma bola de ranho verde do nariz, mãe! Era gigante... assim! — abre os braços. — Ficou toda no Fanboy!
Em casa, deito-o, cumprindo o ritual noturno de aconchego mútuo. Deixo-o a dormir profundamente e, sem sono, encho meio copo de vinho tinto e vou enroscar-me no sofá, com a televisão emudecida como pano de fundo, a escutar o som doce da chuva na vidraça. Ligo o computador, releio as poucas palavras que já consegui alinhavar. Lembro-me do meu filho no carro, falando muito depressa sobre o episódio de bonecada que vira nessa tarde. A que outras coisas terá assistido, sentado no sofá ao lado do avô? Fecho os olhos, sentindo-me de repente exausta, um pouco culpada. Mais uma série favorita do Miguel que eu nunca vi.
Capítulo 3
Lisboa, 1978
Sentados no chão da sala, em pijama, pés descalços, os dois miúdos mais novos tinham os olhos presos ao ecrã a cores da Grundig nova. Pela porta da cozinha, Brígida via-os a eles e a um terço da imagem na televisão. Inclinou-se um pouco para lhe deitar um olhar distraído. A abelha de cabelo amarelo esbracejava, metida até ao pescoço numa substância viscosa. O amiguinho de cara mais comprida puxava-a pelos braços, em aflição. De cima, avançava, sobre uma teia, uma aranha alaranjada de lenço na cabeça.
— Vai, Vili! Puxa! — berrou Mena. — Ela vai...
— Cala-te, parva! — João empurrou o ombro da irmã mais nova. — Ele não te ouve, é só um boneco.
— Deixa-me!
— Deixa-me tu!
Ignorou a curta briga que se seguiu, a sua voz cansada não teria penetrado o entusiasmo guerreiro dos filhos. Acontecia dezenas de vezes por dia. Embrulhados no chão como polvos, braços e pernas multiplicados, nenhum dos dois viu Vili salvar Maia. Filipe lia uma banda desenhada sentado no sofá, indiferente aos irmãos e à TV. Brígida espreitou quando por fim se calaram, já as duas abelhinhas ziguezagueavam de regresso à colmeia. Ocorreu-lhe, enquanto tirava uma faca de uma gaveta, que devia saber mais sobre o que os filhos viam. Devia sentar-se ao sábado de manhã ao lado deles, e ficarem depois os três a falar sobre abelhas e o que mais houvesse na TV.
E depois levá-los ao parque, mesmo que o pai não esteja connosco.
O cansaço tornou-se tão agudo, que a faca com que se preparava para descascar uma maçã lhe tremeu nas mãos. Tinha na boca, aguado pelo tempo, o «não» trémulo, aflito, que não pronunciara quando podia e que se alojara dentro dela. Repetia-se na cabeça tantas vezes! Espalmou uma mão na mesa, com medo desse aperto no corpo todo e, odiando a fórmica com gana, fez-lhe um risco curto com a ponta da faca, depois outro, mais fundo, a esboroar o contraplacado por baixo dela. Não serviu de nada. Não podia mais. Não lhe restava nenhuma vontade. Se pudesse, dormiria para sempre. Ou gritaria até se lhe acabar a voz. Ou partiria a mesa barata em pedaços pequenos, tampo, pés de metal, tudo com as mãos. Lembrou-se de repente da sua mesa em Angola, a grande mesa de madeira, macia e sólida, onde tantas vezes Alberto a deitara. Lançar-lhe-ia fogo, se pudesse, ficaria a vê-la ser comida pelas chamas, a ver as chamas a devorar toda a casa, o seu passado, a sua vida. A saudade.
— Mãe, dás-me papel? Vou pintar a Maia!
Regressou de repente à cozinha, ao seu corpo, e fitou Filomena em silêncio. Porque permitira que Alberto lhe escolhesse o nome? Queria tanto que a menina se tivesse chamado Sara. Os olhos azuis, iguais aos do pai, abriam-se muito, a lembrar-lhe do que a mantinha de pé. Brígida endireitou as costas, pegou na faca.
— Tira na gaveta da sala, vá. Estão lá os lápis.
Ouviu as chaves na porta e o seu olhar desviou-se para o relógio na parede. Há quatro horas e vinte e seis minutos que Alberto saíra, depois de outra discussão, mas era quase hora de almoço na casa de família e ele estava sempre presente às refeições, sempre nos aniversários, no Natal, nos jantares de família, sempre impecável, sempre solícito, nunca ausente nas doenças, nas aflições, sempre apaixonado pela mulher e pelos filhos, dedicado a eles. Sempre o marido perfeito, o homem feliz, exceto quando brigavam e desaparecia. Então viam-se as brechas na personagem composta a preceito.
Fingiu-se concentrada no pelar exato da maçã, que continuava intacta, enquanto ele seguia, silencioso e circunspecto, pelo corredor. O ritual dos regressos levava-o da porta direito ao duche, ela achava sempre que ele ia lavar o cheiro do sexo. Filipe seguiu-o com um olhar duro, mas para os mais pequenos o pai fora só jogar à bola, e ela preservaria a sua inocência enquanto pudesse. A sua fora-se com a esperança e a fé, tudo abandonado em África com os móveis, o automóvel, parte da sua alma. A de Filipe também, embora de outro modo. Não sabia quando, se nos últimos meses em Moçâmedes, se no regresso à metrópole.
Fitou Alberto quando voltou a entrar na sala, bonito e banhado, alisando com os dedos o cabelo húmido. Desviou o olhar. A água limpava-lhe a pele, mas a Brígida parecia-lhe que sentia o rasto de perfume, sempre diferente, doce, frutado, intenso, ácido, espevitado, urbano, barato, sofisticado. Alberto sorriu aos filhos. Amava o ninho, um todo em que cada parte era importante e irrelevante: os filhos, para os quais tinha uma paciência inesgotável, não eram o Filipe, o João e a Filomena, eram «as crianças», e ela e as crianças, a «família», estavam acima de tudo. Mas era o mesmo Alberto que gostava de navegar entre as coxas das mulheres. Ele negava, mas ela sabia. Sabia. Quase lhe virou a cara. Quase. Deixou-o depositar nela um beijo que não pedia perdão e lhe soube à náusea de um engano só seu. Perdoava sempre, não perdoava nunca. Na verdade, não queria saber.
Quando ele voltou ao quarto para ir buscar alguma coisa de que se esquecera, Brígida pousou a faca na mesa, limpou as mãos e seguiu-o. O olhar de Filipe acompanhou-a, cansado, revolto. Via-o mesmo depois de fechar a porta atrás de si, para que as crianças não ouvissem o que tinha para dizer. Outra vez.
Capítulo 4
Alcôrrego, 1961
Alberto Jones Mendes Sousa disse um «sim» entusiástico numa capelinha no Alentejo, perante um padre com um sotaque cerrado, num dia glorioso no inverno. Fazia um frio intenso dentro da capela, a entorpecer os dedos dentro dos sapatos domingueiros, mas lá fora o sol brilhava, aquecia como podia a terra dura, e o céu estava de um azul de joia, brilhante e firme sobre os amarelos e castanhos da planície. Um silêncio dormente e doce estendia-se para dentro da capela, onde a cantilena do padre embalava os convidados. Alberto beijou com amor a sua Brígida, a noiva nascida e criada além Tejo, o seu beijo amoroso prometendo um «felizes para sempre» que, ainda não sabia, não seria capaz de oferecer-lhe.
Foi testemunhado nessa mentira inocente por muitos desconhecidos. Convidados seus, apenas três dos companheiros do curso de Engenharia e o tio sul-africano que vivia no Porto. Tinha pouca família, quase nenhuma em Portugal, e a mãe, que quisera meter-se num avião, acedera ao seu pedido para ficar em Moçâmedes a arranjar casa e a mobilá-la para receber Brígida como ela merecia. O resto da igreja preenchia-se com os familiares da noiva, divididos nas suas opiniões, «casa bem, bonito rapaz», «que bem posto na vida», «pois parece-me mal, então sai daqui para essas Áfricas», «mas então não é lá que se faz a vida?», «ora, estão apaixonados», «mas a rapariga estava prometida, não está certo», «ela está é prenhe». Uns estavam certos, outros não, mas todos sussurravam pelas costas as suas suspeitas e sorriam em frente da noiva. Todos a viam bonita e terna, e nenhum, a não ser a mãe, lia no seu sorriso tímido o entrançar dos fios do amor e do medo.
Alberto, ao contrário, nada temia. Sorria, desconhecendo que, enquanto fitava os olhos da noiva e prometia, numa certeza enganada, ser-lhe fiel, amá-la e respeitá-la em todas as circunstâncias que a vida lhes atirasse ao caminho, e decidia para si mesmo fazê-la sempre feliz, outras coisas sucediam muito longe, na terra avermelhada e rica onde nascera. Desconhecia que por lá, nesse mesmo dia, uma inesperada rebeldia fazia rolar sangue de branco e de preto, e essa seria a chispa que havia de atear um fogo que arderia anos e anos, de início lento, depois feroz, a empurrá-lo um dia de volta àquele retângulo de terra europeia. Não sabia que, enquanto Brígida dizia o «sim» titubeante, a tia Filomena gritava um violento adeus à vida, que fora tão boa, deixando atrás de si um rasto de fumo e o cheiro a queimado, de coisas e carne.
Ao mesmo tempo que, nesse dia do mês de março, noutras casas no Norte de Angola, em Carmona ou Bessa Monteiro se desferia essa primeira estalada de uma guerra que ainda tardaria a sê-lo, porque os portugueses levariam muito tempo a acreditar nela, em Lisboa servia-se um opulento pudim de abade de priscos e um espumante, para brindar aos nubentes, aos pais da noiva, à mãe ausente do noivo e à nova vida.
— O noivo da minha filha tem trabalho à espera em Angola, coisa importante. Curso acabado, trabalho dobrado!
A mãe Adelaide punha na voz a alegria que podia, para soprar as suas esperanças aos familiares descrentes, mas os olhos não mentiam: fitava Brígida, uma noiva tão linda, com o desalento de quem teria a filha demasiado longe. O homem que a levava, esse estranho, amigo de um amigo de um amigo dela, era muito bonito, toda a gente sabia que homens muito bonitos não davam bons maridos e ela tinha uma premonição, coisa de mãe, que bem podia ser apenas saudade antecipada e culpa. Culpa, culpa. Brígida insistira em ir estudar para professora em Lisboa, e quando o pai dissera que não, a mãe encontrara argumentos arrancados ao seu baú de desejos adolescentes. Tantas coisas quisera ser, sonhara muito, e de todos os sonhos tinha-lhe sobrado apenas o lugar apertado que fora o da mãe, o da avó e o de todas as mulheres antes delas. Filha, mãe e tia de Lisboa tinham-se juntado contra ele, o pai Romão não fora capaz de segurar o «não» e deixara-se ficar no contorno da ombreira da porta, num silêncio de planície que era quase sempre o seu, vendo afastar-se o automóvel em que a tia a levara para a capital. Depois fora beber o descontentamento em copos de vinho áspero, antes de esvaziar a fúria que ficara no rasto dessa ausência na