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Mitos e verdades sobre o ESG
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E-book344 páginas3 horas

Mitos e verdades sobre o ESG

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Sobre este e-book

O que estamos perdendo e o que podemos conquistar?
O desejo de mudança, a curiosidade de repórter e a alma otimista me levaram a escrever este livro que alerta sobre os descaminhos da sustentabilidade e sugere os caminhos para as soluções.
Deixei o ceticismo, as urgências e falsas urgências do jornalismo político para me aprofundar no que realmente interessa. Os dados científicos sobre o esgotamento do nosso planeta são consistentes. As práticas ultrapassadas de determinadas empresas na condução dos negócios são preocupantes e agravadas pela imaturidade de lideranças que ainda acreditam no comando estrito de equipes, subestimam talentos e ignoram a riqueza da singularidade de colaboradores. A desigualdade, os preconceitos e a discriminação ainda permanecem como estruturas sólidas, barreiras aviltantes. Esbarro em muita enganação na tentativa de mostrar o contrário e de revelar essa realidade. É hipocrisia e falta de coerência entre discurso e prática. Mas também encontro esperança que me move e me inspira, com tantos esforços e resultados positivos.
Em um jogo de luz e sombra, fico com a luz, consciente da sombra.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento23 de set. de 2024
ISBN9788542228632
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    Mitos e verdades sobre o ESG - Giuliana Morrone

    Prefácio

    Você está prestes a ler um texto leve e fluido, e ao mesmo tempo abrangente e profundo, sobre um tema essencial para todos nós: os impactos humanos e ecológicos de empresas que precisam ser bem governadas para que se tornem parte da solução dos enormes desafios que enfrentamos em nossa sociedade e no planeta.

    Giuliana Morrone ocupa uma posição privilegiada para falar sobre esse assunto por três razões principais. A primeira é a visão que ela tem do todo. Não é possível falar de ESG de maneira fragmentada, como se o acrônimo fosse a mera soma de práticas ambientais, humanas e de governança adotadas pelas empresas.

    O ESG requer um olhar integrado, inserindo o mundo empresarial em um contexto político, social e histórico mais amplo. Com sua longa trajetória interagindo com lideranças de todos os setores no Brasil e no exterior, cobrindo os mais variados temas – como eleições presidenciais, escândalos de corrupção, tragédias ambientais, movimentos sociais etc. –, Giuliana tem a vivência, o olhar ampliado e a capacidade de conectar os pontinhos entre diferentes campos essenciais para abordar o ESG sob uma perspectiva sistêmica.

    Aqui, vale uma digressão fundamental. O pano de fundo dos debates sobre ESG é a grande transição pela qual estamos passando, e que continuará a ocorrer ao longo das próximas décadas, entre duas grandes visões de mundo: de uma visão mecanicista, fragmentada e exclusivamente racionalista – a era das máquinas – para uma visão sistêmica, integrada e baseada em uma compreensão mais profunda do ser humano – a era dos sistemas.

    A era das máquinas se baseava na ideia, formulada por Isaac Newton, de que o universo seria um grande relógio composto de relações previsíveis e regulares de causa e efeito. Um relógio que cedo ou tarde seria integralmente decifrado pela racionalidade humana utilizando o pensamento analítico – método reducionista caracterizado pela separação em partes, análise de cada parte e reagregação ao todo.

    Essa forma de ver o mundo gerou duas implicações cruciais. No sentido macro, estabelecia que as relações de causa e efeito deveriam ter uma causa final, identificada por Newton como Deus. No sentido micro, estabelecia que todos os fenômenos seriam resultado de uma causa inicial. Deu-se início, então, à busca pelo menor componente possível nos mais variados campos: o átomo na física, o DNA na biologia, o fonema na linguística etc. Identificar esses blocos de construção seria supostamente a chave para compreender e controlar o mundo, algo que o tempo mostrou ser apenas uma quimera.

    A visão mecanicista de mundo também chegou ao ambiente empresarial. Assim como o universo seria uma máquina de Deus, nosso papel também seria construir máquinas para emular Sua obra. As empresas passaram a ser vistas não apenas como máquinas, mas também como máquinas de alguém: instrumentos com o único propósito de atender aos desejos de seus proprietários.

    No sentido micro, assim como ocorreu nas ciências, procurou-se reduzir o trabalho à menor unidade possível. Isto é, à atividade que poderia ser realizada apenas por uma pessoa de forma repetitiva e controlável (ou por uma máquina, quando possível). O trabalho foi empobrecido, gerando alienação, desmotivação, estresse e infelicidade. Ao final, todas as atividades seriam reagregadas de maneira sequencial, criando a famosa linha de montagem. Não por acaso, essa ideia passou a ser chamada de administração científica.

    O resultado dessa mentalidade industrial foi a criação de empresas ecologicamente inconscientes e desumanas por concepção – paradoxalmente, dentro de estruturas burocráticas altamente ineficientes.

    Ao longo dos anos, a realidade se impôs. No âmbito externo, descobriu-se que as empresas não fazem parte apenas do mercado. O mercado está dentro da sociedade e a sociedade está dentro do planeta. Todos precisam ser sustentáveis. Não é o que vem acontecendo. Seis dos nove limites planetários estabelecidos pelos cientistas como parâmetros para assegurar nossa sobrevivência coletiva já foram ultrapassados, incluindo a integridade da biosfera, as mudanças climáticas e o uso de água doce.

    No âmbito interno, descobriu-se que as empresas são compostas de seres humanos que vão muito além de um par de braços. Seres humanos que precisam trabalhar com dignidade – livres de assédios de toda sorte – e com elevada saúde mental, sentimento de pertencimento e segurança psicológica, de modo a poderem manifestar sua singularidade em um ambiente de elevada pluralidade.

    É por isso que, para avançar de forma genuína rumo ao ESG, o primeiro passo é evoluir da mentalidade mecanicista para a mentalidade sistêmica: em vez de uma grande máquina, a empresa precisa passar a ser vista como uma comunidade humana composta de pessoas com sonhos e necessidades próprias. Uma comunidade que faz parte de um sistema mais amplo – a sociedade –, que, por sua vez, faz parte de um sistema ainda maior – o planeta.

    A necessidade de harmonizar as necessidades e os propósitos de indivíduos, grupos, empresas, sociedade e planeta de maneira saudável e sustentável é a essência do ESG. Por isso, o acrônimo se refere muito mais a uma mudança de modelo mental das lideranças do que a um conjunto de indicadores a serem consolidados e reportados de maneira mecânica e fragmentada a fim de atender a exigências externas.

    O ESG se tornará uma consequência natural, em particular, nas empresas cujas lideranças conseguirem evoluir seus modelos mentais para uma perspectiva sistêmica: da quantidade para a qualidade; do crescimento para o desenvolvimento; da visão fragmentada para a visão integrada; do antropocêntrico para o ecocêntrico; da competição para a cooperação; da hierarquia para as redes; do curto prazo para o longo prazo; e do complicado para o complexo.

    A segunda razão que diferencia positivamente Giuliana Morrone na elaboração deste livro foi o fato de ela ter mergulhado no ESG com uma mentalidade aberta, curiosa, fresca: aquilo que os filósofos orientais chamariam de mente de iniciante. A meu ver, essa é uma grande vantagem em relação aos denominados especialistas.

    Por quê? Porque os especialistas com frequência tendem a abordar seus temas com uma visão estreita, fragmentada e presa a compromissos intelectuais assumidos em posicionamentos anteriores ao longo de suas trajetórias. Como diz o adágio: no mundo acadêmico, as pessoas passam a saber cada vez mais sobre cada vez menos, até o ponto em que sabem praticamente tudo sobre praticamente nada.

    A terceira razão que torna Giuliana particularmente bem posicionada para tratar desse assunto é que ela construiu uma reputação de décadas no jornalismo, caracterizada pelo cumprimento da ética jornalística de busca pela verdade sobre os fatos – o que inclui a apuração precisa das informações e sua correta divulgação.

    Saber a verdade sobre qualquer tema é cada vez mais difícil atualmente. Vivemos em um mundo abarrotado de informações, a maioria irrelevantes ou equivocadas. Um mundo em que as pessoas estão presas a câmaras de eco que reforçam seus pontos de vista e as levam a uma visão cada vez mais extremista e dogmática sobre os mais variados assuntos.

    Não é diferente no caso do ESG. Como Giuliana descreve, o tema se tornou cada vez mais ideologizado nos últimos anos, a ponto de alguns o considerarem uma pauta própria de pessoas com determinada orientação política. Por isso, é mais importante do que nunca sabermos o que é fato ou fake sobre ESG.

    Como Giuliana nos mostra por meio de histórias fascinantes (muitas delas, pitorescas!), existem muitas empresas fake em ESG. Ao mesmo tempo, felizmente é fake que ESG não se tornou um fato genuíno para um número crescente de empresas mais conscientes de seu papel na sociedade.

    Para concluir, vale uma mensagem importante. Falar sobre ESG é, em última instância, falar sobre ética. Isto é, sobre interdependência e integralidade. Como dizia o mestre budista Thich Nhat Hanh, nós não somos, nós intersomos. Quando desenvolvemos uma percepção ampliada do eu nos âmbitos pessoal e organizacional, passamos a ver a proteção e o bem-estar da natureza e de todos os stakeholders como a proteção e o bem-estar de nós mesmos, de nossas empresas, de nosso planeta e das gerações futuras.

    Boa leitura!

    PROF. DR. ALEXANDRE DI MICELI DA SILVEIRA,

    fundador da Virtuous Company, palestrante internacional, consultor, professor, pesquisador e escritor dedicado integralmente a governança corporativa, liderança e ética desde 2000. Doutor e mestre em Administração de Empresas pela FEA-USP, com pós-doutorados pelas Universidades de Louvain (Bélgica) e Cornell (Estados Unidos) e temporada de estudos na Universidade de Harvard em 2015, o Prof. Di Miceli é autor dos principais livros-texto sobre ética empresarial e governança no Brasil. É criador do Programa Lideranças Virtuosas, um programa de desenvolvimento pessoal e profissional com metodologia única no país para lideranças de vanguarda.

    Vamos por partes

    Foi a conclusão que tirei, depois de três anos imersa no universo da sustentabilidade. Vamos por partes, e vamos com franqueza, pela rota da verdade.

    Desde quando comecei a estudar sustentabilidade no mundo dos negócios, o que mais encontrei foram contradições, desinformação, equívocos, impropriedades e, sem mais, muita enrolação.

    Do greenwashing ao greenhushing. Da maquiagem para parecer sustentável à ocultação de ações sustentáveis para evitar cobranças e mensuração de resultados.

    Da promessa de boas intenções aos eufemismos climáticos: transição, gradação, trajetória, propostas de adaptação. Em relatórios de sustentabilidade, o horroroso gerúndio climático: estamos planejando, nossa jornada está se iniciando para a mudança, estamos aderindo, estamos aprimorando…

    O tempo ainda no futuro: nossos compromissos ESG serão impulsionados. Faremos, mudaremos…

    A verdade é que não há mais tempo para o futuro. Vivemos um momento decisivo, extremamente desafiador, em que temos que reaprender a consumir, a produzir, a gerar riqueza em novos modelos que levem em conta a finitude dos recursos naturais, o estresse climático, as pessoas e o planeta.

    Outra verdade é que o Brasil tem capital ecológico para ser a maior potência mundial em sustentabilidade. É tudo grandioso. Tem a maior biodiversidade do mundo: 70% das espécies vegetais e animais estão aqui. São 115 mil espécies animais, 48 mil espécies vegetais, um litoral escandalosamente belo, rico e único.[¹] É uma opulência: temos a Floresta Amazônica – a maior floresta tropical do mundo –, o Pantanal – a maior planície inundável – e o Cerrado, com sua delicadeza e robustez.

    Mas, cá entre nós, valorizamos o que temos? Sabemos enaltecer tantas virtudes?

    A diversidade é a marca do nosso povo. Sabemos valorizar e respeitar nossa pluralidade?

    A questão não é apenas de estima (no caso, baixa): é preciso também não deixar passar esse expresso superveloz de oportunidades e que pode levar o Brasil – e todos nós – a um posto de liderança mundial sustentável.

    Essa oportunidade não se abre somente para o país; ela afeta diretamente os brasileiros.

    O inverso já conhecemos. Quantos bondes, trens e aviões a jato perdemos na nossa história por falta de ação – ou por ações equivocadas – e por esse apego ao atraso?

    A evolução e o progresso dependem de sustentabilidade.

    O número de desastres naturais entre 2010 e 2014 foi equivalente ao número de desastres entre 1980 e 1991, um período quase três vezes mais longo.[²] Entre os desastres, enchentes, secas, incêndios e nevascas que afetaram pessoas e o planeta. Reduziram a qualidade de vida, ameaçaram ou comprometeram a infraestrutura de cidades, agravaram desigualdades sociais.

    Há mais de um século, a ciência entendeu por que as emissões de gases de efeito estufa provocam desequilíbrio climático. Há quase trinta anos, o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, o IPCC, com representantes de 195 países-membros, concluiu que as provas indicam uma influência do ser humano no clima global.[³] É consenso: 99,9% das publicações científicas confirmam que as nossas ações são responsáveis pelas mudanças climáticas.[⁴]

    A geleira se desmanchando no ártico deixou de ser a imagem clássica do desequilíbrio climático. As mudanças climáticas foram parar na boca do povo, estão na vida de todos nós.

    Nunca tivemos um ano tão quente. Nunca choveu tanto. A seca nunca foi tão forte. Incêndios florestais nunca foram tão intensos. Ciclone no Brasil.

    Dados coletados pela NASA mostram como o aquecimento da Terra aumentou de forma expressiva nas últimas décadas.[⁵]

    Fonte: adaptado de Scientific Consensus. NASA. Disponível em: https://climate.nasa.gov/scientific-consensus/. Acesso em: 29 maio 2024.

    Já faz algum tempo que o World Resources Institute (WRI) publicou um artigo que mostrou a urgência de uma mudança no modelo de negócios e de consumo. O título foi uma provocação: O elefante na sala de reuniões.[⁶] No artigo, de 2017, os pesquisadores Eliot Metzger, Samantha Putt del Pino e Lindsey Longendyke já alertavam para o fato de que os recursos do planeta são finitos e estão chegando ao limite, e de que é preciso mudar o padrão de consumo e os modelos de negócios baseados em comprar mais e consumir mais.

    No texto, os pesquisadores lembraram que quinze anos atrás as mudanças climáticas ainda eram o elefante na sala de empresas, mas que esse tempo passou. No mundo corporativo, é unanimidade a adoção de compromissos baseados na ciência para reduzir os gases de efeito estufa. Já o modelo de negócios baseado apenas no aumento do consumo é o novo elefante na sala.

    Essa realidade não é inexorável, há outros caminhos para a prosperidade. Kate Raworth usou a imagem de um donut para propor um novo paradigma de desenvolvimento.[⁷] No centro do donut estão as questões sociais, como saúde, educação, qualidade de vida, equidade. Na borda do donut, os limites planetários. A rosquinha fica bem-feita quando as necessidades de todos são atendidas, dentro das possibilidades do planeta.

    Aqui no Brasil, o elefante ronca de barriga para cima, no sofá da sala, enquanto a televisão grita urgente! para mesquinharias da política partidária, querelas do poder. A verdadeira urgência é a climática, social, e ela exige coerência de todos.

    Com a pressão de organismos internacionais, da ciência e de lideranças políticas, as empresas passaram a se posicionar para mudar negócios, buscar vantagens e não correr o risco de perder receitas. Mas será que realmente mudaram?

    É fato que, a cada ano, metas e regras são criadas e aperfeiçoadas por governos e entidades reguladoras, mas ainda há muitas brechas. É uma peneira de furos largos. A sensação ainda é a de estarmos andamos de lado.

    Andar para a frente exige compromisso e ação de todas as partes: consumidores, fornecedores, concorrentes, empresários, acionistas, governos e empresas públicas e privadas. Vamos por partes, vamos juntos.

    A partida

    Este livro é um projeto antigo. A ideia surgiu quando me mudei para Nova York e descobri um novo mundo, próspero, inclusivo, consciente e virtuoso.

    Mas vamos com calma.

    Aprendi cedo a contar com o dia seguinte: um futuro alegre, seguro e promissor. Eu tinha 3 anos e gostava da hora de dormir. Fazia um frio danado. Eram os primeiros anos de Brasília, na década de 1970. O vento zunia, sem encontrar obstáculos. A cidade se resumia a poucos bairros espalhados no Cerrado. Meu pai me enrolava no cobertor, como se fosse um casulo.

    C’era una vez uma principessa.

    Princesa, pai. Prin-ce-sa!

    Brinzeza, ele repetia com sorriso quadrado, ainda aprendendo português.

    Eu mal mexia os olhos para não sair do casulo e acabava caindo no sono, embalada pelo sotaque macarrônico do papai. Deixava para ouvir o final feliz na noite seguinte.

    Naquela época, nos Estados Unidos, Milton Friedman publicou um artigo no jornal The New York Times em que dizia que o único propósito de uma empresa era dar lucro para os acionistas. Passaram-se mais de 53 anos e, felizmente, a triste ideia de Friedman envelheceu mal.[⁸]

    Hoje tenho a consciência de que uma empresa deve ter como propósito gerar riqueza para todos: acionistas, clientes, fornecedores, vizinhos, concorrentes e planeta. Contudo, sei também que, definitivamente, estamos longe disso.

    E por falar em Nova York, foi lá que conheci um mesquinho, malfadado e excludente mundo dos negócios. Eu estava lá na pior crise econômica das últimas décadas, que quebrou não só Wall Street, mas mercados do mundo inteiro, e acendeu o farol para práticas corporativas espúrias, viscosas, movidas apenas pelo lucro dos acionistas.

    O crédito fácil levou a um aumento na procura por imóveis, que provocou a alta dos preços para novos compradores, que, por sua vez, assumiram financiamentos com juros progressivos de casas hipotecadas: o ciclo perfeito para formar uma enorme bolha, uma bolha imobiliária.

    A bolha estourou, e a consequência foram calotes nos financiamentos, devoluções dos imóveis hipotecados e desvalorização abrupta dos preços. Investimentos monumentais estavam lastreados nessas hipotecas. Estava tudo podre. O dinheiro sumiu do mercado, eu dizia de olhos arregalados nas minhas reportagens, gravadas na gelada Broad Street, que faz esquina com a Wall Street. Bancos quebraram e governos tiveram que injetar muito dinheiro público, 3,5 trilhões de dólares[⁹] em outras instituições financeiras para evitar uma catástrofe ainda maior. A ajuda, na época, foi equivalente a cinco vezes o orçamento do Programa de Seguridade Social dos Estados Unidos. Dinheiro de contribuintes que salvou os bancos e ajudou a frear quebradeira em dominó. Eu morava no Battery Park, no sul de Manhattan. Nos dias de fúria e queda de gigantes de Wall Street, eu saía de casa e esbarrava em centenas de demitidos, carregando caixas de papelão com seus pertences que, até então, ficavam na mesa do escritório: porta-retratos com fotos dos filhos, documentos pessoais, pacotes de biscoito antes guardados nas gavetas.

    Um dos gigantes financeiros que quebraram nessa época foi o Lehman Brothers. Christine Lagarde, atual presidente do Banco Central Europeu, avaliou o que contribuiu para a crise: o setor financeiro ainda coloca o lucro à frente da prudência de longo prazo, o curto prazo acima da sustentabilidade.[¹⁰] E destacou que bancos com mais mulheres em Conselhos de Administração sofreram menos na crise. Se fosse Lehman Sisters, o mundo poderia estar bem diferente.

    Eu trabalhava como correspondente internacional, cobrindo a crise financeira global mais grave do século e outras que vieram depois. Vi Bernard Madoff, protegido por um elegante sobretudo preto Armani, entrar na Corte Federal de Manhattan. Do lado de fora, vítimas de Madoff me contaram como entregaram todas as suas economias, acreditando no sonho de uma aposentadoria decente. Caíram num esquema de pirâmide. Madoff pegava dinheiro de novos investidores para pagar dividendos antigos. No processo, antes de ser condenado a 150 anos de prisão, ele contou como sustentou o esquema criminoso, que envolvia bancos e fundos: fundos e bancos mantinham uma cegueira deliberada. Se você está fazendo algo errado, não queremos nem saber.[¹¹]

    Quando crises surgem, nós, humanos, temos por natureza uma preferência poderosa pelo lado bom.[¹²]

    Foi em Nova York que conheci teorias e modelos econômicos que tratavam de sustentabilidade empresarial. Tudo era novo para mim.

    Um capitalismo de impacto e consciência de John Mackey e Raj Sisodia; um novo tripé econômico que integra pessoas, planeta e lucro, de John Elkington; um novo capitalismo, um capitalismo de stakeholders, de Robert Edward Freeman. As B corps – corporações voltadas para beneficiar a todos – e tantas outras que são variações de um ponto em comum: uma nova forma de empresas e negócios se relacionarem com as pessoas, com a sociedade e com o planeta, tendo como foco o lucro, sim, caro Milton Friedman, mas com um propósito maior, buscando benefícios para pessoas, para a sociedade e para o planeta. Talvez a origem de tudo remonte ao início do século XX, com a Teoria Publicista de Rathenau, ainda na República de Weimar. Já naquela época, Rathenau propôs que empresas conciliassem a questão privada com a função social para a comunidade.

    Um olhar de dentro para fora

    Um detalhe – que é essencial – me fascinou desde o início, porque partia do princípio de que é preciso fazer o que é certo por ser o certo, e agir corretamente para gerar resultados externos positivos: criar valor de longo prazo, numa existência útil para a sociedade – Por que a empresa existe? Por que a empresa é necessária? Que tipo de contribuição ela oferece? Se fechar, vai fazer falta?

    A estratégia passava por cuidar do ambiente e das pessoas, com uma governança competente. No fim da linha, havia lucro – muito lucro, inclusive –, mas com ética, benefícios e consequências positivas para todos. Ética num sentido amplo, envolvente.

    No início, eu tinha uma visão romântica. Conheci

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