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Um Lobo no Quarto
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E-book340 páginas4 horas

Um Lobo no Quarto

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Sobre este e-book

Leo quis morrer. Preparou o suicídio, mas a figueira da sua infância salvou-a. Decidida a deixar a vila sem destino, leva, na bagagem, as memórias dos seus relacionamentos, de um avô protetor, de uma mãe ausente e de um pai que não ama.


Naquela viagem de autodescoberta e de resgate do amor próprio, os planos são alterados e depara-se com a necessidade de cuidar do pai nos seus últimos dias de vida. E será este regresso ao passado que permitirá a Leo sarar todas as feridas.


Uma história sobre o impacto dos traumas da infância, reencontro, perdão e libertação.

IdiomaPortuguês
EditoraAurora
Data de lançamento6 de jun. de 2024
ISBN9789895771141
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    Pré-visualização do livro

    Um Lobo no Quarto - Valentina Silva

    I

    O Regresso

    2017

    Agora…

    1

    I will not kiss you

    ‘Cause the hardest part of this

    Is leaving you

    (My Chemical Romance — Cancer)

    Na casa de banho, sentada na sanita, mudou o penso das cuecas.

    Lembrou-se, subitamente, do dia em que tivera a menarca. Ia a sair de casa quando Lina, a vizinha, exatamente com o mesmo tom de voz que usara na chamada anterior, a intercetara com uma frase que nunca esquecera: Estás toda suja de sangue. Só tinha nove anos e os adultos estavam distraídos com as notícias. Os armazéns Grandella ardiam, na Rua do Carmo, em Lisboa, destruindo prédios e terrenos. Assim que ouvira aquela profecia, escondera-se em casa. Percebera que ardia em febre. O fogo a consumi-la; o fogo a consumir prédios. Os seus dias importantes sempre marcados por acontecimentos nacionais ou internacionais. Seria sempre assim, era quase premonitório. Por isso, era tão obcecada por notícias mediáticas e tinha seguido jornalismo, alimentando-se das tragédias dos outros para não refletir sobre a própria dor. Naquele dia, depois de vestir cuecas lavadas e de colocar um absorvente, percebera que a cadela a cheirava entre pernas e pensara: Será que os animais são mais inteligentes do que as pessoas e descobrem as coisas mais facilmente? Durante o resto de vida daquela cadela, desejara que ela o cheirasse e latisse qualquer coisa como:

    Pecador!

    Nojento!

    Criminoso!

    Ladrão de infâncias!

    Levantou-se da sanita, afastando aqueles pensamentos, e lavou as mãos. Assim que fechou a torneira soube que começaria a gotejar. Uma prolongação da tempestade que se adivinhava na humidade do seu peito. Passou as mãos molhadas na cara, por uma última vez, e estranhou-se ao espelho. Conseguia reconhecer-se na normalidade dos dias, mas havia qualquer coisa de diferente em si. Sentia-se mais bonita; por muito estranho que pudesse parecer, o silêncio de quem chorava baixinho espelhava-se em cada puxão de ruga. Sentia-se lavada, era isso.

    Envolveu-se numa manta tão velha quanto o seu estado de espírito. Um copo de vinho parecia ser uma boa opção para aquele momento. Não diria a Daniel o que se passava, mas tinha de tomar uma decisão. Caminhou até à cozinha, sem o encontrar, no escuro que antecedia o cair da noite, e escolheu uma garrafa qualquer, servindo-se no cálice maior. Sentia-se transida de dor. Interrompeu os pensamentos para organizar as possibilidades de viagem — outra viagem; uma viagem bem pior. Ou as probabilidades. Eram tão poucas, tão invadidas das tristezas antigas, e ainda frescas como uma ferida em greta. Daniel martelava lá fora, embora chuviscasse. Até nisso era especial: atento às solidões necessárias. Lembrou-se de Vitória. Seria uma boa conselheira naquela situação, mas preferiu a familiaridade de Cláudio. Depois enviaria uma mensagem à amiga.

    Agarrou no telemóvel, o mesmo que momentos antes a presenteara com a pior notícia que podia receber. Não a doença do pai — isso servira quase como gelo a escorrer pela sua pele, uma anestesia — mas a necessidade da sua presença no final de vida.

    — Amiga…. Que se passa? Disseste que só ligarias numa urgência.

    — O meu pai…

    — O que foi que esse…

    — Está a morrer. Ligou-me a vizinha. Pediu-me para ir cuidar dele — soltou, de ímpeto, como se libertasse uma confissão, não se sentindo mais leve.

    — Que morra… — A frase saiu-lhe honesta.

    Leo quase riu. Fora esta frescura de Cláudio que, muitas vezes, a salvara do choque dos dias, sendo o único que, durante muito tempo, soubera o que se passara com a amiga. No entanto, naquele momento, assemelhava-se a uma trágica comédia sem graça.

    — Desculpa… — refreou os ânimos. — Está a morrer de quê? — Tinha uma certa indiferença na voz.

    — Cancro. Terminal, parece-me…

    — Vá lá que desta vez não foi aos bons — suspirou, percebendo que deveria moderar as opiniões que não ajudavam em nada. — E, então, já decidiste?

    — Não sei, amigo…

    Sangrava de dentro, como se fosse feita de barro. Das profundezas da alma corria um choro fininho que não se compatibilizava com o rosto quase sereno, de profunda meditação. Naquele instante, Libório empurrou a porta mal fechada da cozinha e encarou-a. Os olhinhos tímidos pareciam compreender o labirinto em que Leo se encontrava.

    — Faz o que achares melhor. Sei que vais optar pelo mais correto, mesmo que não seja o mais justo… — lamentou Cláudio. — Sabes o que isso quer dizer.

    Ninguém riu, mas havia uma oportunidade de riso mórbido suspensa no ar. Leo sacudiu algum cotão da camisola e murmurou qualquer coisa. Era fácil de compreender que a decisão de ir estaria tomada mesmo antes de ter conhecimento da notícia. Por muito que lhe custasse aquele regresso ao passado, custaria ainda mais remoer nos «ses» que circulariam dali em diante. Não podia fugir da realidade nem da fatalidade de ser filha de quem era. Fez uma festinha a Libório.

    — Tens razão. Já decidi… — As palavras foram ditas com naturalidade.

    — Quando vais? — perguntou Cláudio, impenetrável nos seus julgamentos.

    — Vou ver… organizar-me… mas o mais rápido possível, para não desistir — Parecia tudo tão complicado quando colocado assim.

    — Se precisares de ajuda, já sabes.

    — Sei. Obrigada. Vou desligar. Não me sinto muito bem — Formava-se uma grande bola de vómito.

    — Entendo. Descansa e liga-me se precisares. Beijinhos.

    Desligou. Não conseguia continuar uma conversa normal: nada era igual. A vida acabara de dar uma cambalhota. E ela, que julgara que o início daquela jornada fora o pico de aventura, via-se agora num beco sem saída. Procurou um papel e marcou outro número. Tocou poucas vezes.

    — D. Margarida?

    — A própria. — Parecia irritada. — Quem fala?

    — Desculpe ligar assim… Bom, sou eu. Leo. A quem deu boleia há uns dias.

    — Leo! — A irritação suavizou. — Está tudo bem?

    — Sim, está. Quer dizer, mais ou menos. Olhe, estou a ligar, como me deu o seu número… eu sei que é um bocado inusitado, mas pensei…

    — Rapariga, onde estás? Precisas que te leve a algum sítio, não é?

    — É… mas só de manhã. — Engoliu em seco.

    — Diz-me onde estás.

    Leo explicou o melhor que conseguiu e desligou, ansiosa. Passaria o resto da noite fechada nos seus pensamentos, engasgada pela iminência. Mais tarde, quando Daniel já dormia, tirou uma folha branca da gaveta da cómoda e procurou a caneta.

    O meu pai está a morrer e eu preciso de ti. Vou-me embora, no entanto. Pretendo voltar, se assim o desejares…

    Foi sucinta, refreando a sua tendência para o exagero. Na verdade, queria que ele lhe trincasse a carne; que escorregasse no sal da sua pele sem que isso lhe provocasse vergões, mas apenas aquela breve sensação de justiça no corpo que se queria amado. Havia coisas que se escondiam na calada da noite e naquela, particularmente naquela, sentia-se tentada a camuflar o orgulho e a pedir-lhe que a impedisse de ir. Talvez fosse do tempo: as noites daquele início de verão gelavam-lhe a sensatez e exigiam-lhe a selvajaria de um corpo sobre o seu — sentia frio, e isso era suficiente para que se tomasse por louca. Ainda não se haviam experimentado, e queria que Daniel lhe apertasse os braços contra o colchão, sem a força bruta de quem não cuida, mas com toda a serenidade que parecia ter naqueles momentos. E ela, nua e volátil, esqueceria as regras do jogo. Enovelar-se-lhe-iam os olhos como se os tapasse com bocados de algodão, nuvens, quem sabe. Há quanto tempo não se sentia assim?

    A manhã aproximava-se e, com isso, o prenúncio de uma enorme angústia. Durante o dia era mais fácil viver na tragédia. A pressa da vida fê-la esquecer-se de si própria, mas não totalmente. Tinha-se encontrado em pequenas coisas e graças à sua força. Daniel fazia parte, mas, pela primeira vez, era tudo graças a ela e nada devido aos outros. Sempre vivera pelos outros. Pelo apego dos outros. Pelas migalhas dos outros.

    Sempre fora uma menina no quarto.

    O que percebia é que fora, toda a vida, apenas uma página desinteressante de um livro, que se lia de corrida, de fôlego cansado e sem paciência. Quiseram que ela fosse isso. Mas não o era e percebia, agora, que era livro. De cabeceira.

    Queria que Daniel a olhasse sem pudor. Gostava disso. Gostava da forma como ele a olhava, quase como se a tocasse com as curvas dos olhos escuros, delicadamente esticados para cima. Apetecia-lhe gritar de desespero porque, finalmente, se encontrava e, ao mesmo tempo, o destino trouxera Daniel até si. Uma espécie de adenda.

    Complementos.

    Um mais um.

    SMS

    Leo: Preciso de te contar uma coisa do passado, algo que nunca tive coragem para fazer.

    Vitória: Não me assustes… O que é?

    2

    Deixou o bilhete em cima da mesa da cozinha e saiu ainda nem seis horas eram. A madrugada pontuara-se pela sua febril insónia, colada à parede, de olhos postos na penumbra de Daniel, que dormia descansado. Depois de contar tudo a Vitória, por mensagem, porque sempre lhe fora mais fácil falar sobre as coisas por escrito, e de ter sentido um súbito alívio passageiro, passara pelas brasas, visitada por sonhos antigos, ela num carro, um ou dois anos, ao colo da mãe e, ao lado, um homem de rosto borrado. Não parecia o pai, embora lhe chamasse filha. E à frente, condutor e passageira, também a admiravam com amor. Queria conhecer-lhes os rostos, seriam tios? Amigos da mãe? Precisava de perceber quem a fitava com tanta devoção para se agarrar melhor à vida. Depois o sonho avançara à velocidade da luz e vira-se a casar com alguém, também de cara coberta, mas havia qualquer coisa na postura que a fizera acreditar ser Daniel.

    Era uma história triste, aquela: um encontro tão desejado e arrancado de rompante. Não se lamentava, ainda assim. Sabia que voltaria. O fresco roçou-lhe os ossos e apertou-se ao único casaco que levara. Cheirava a orvalho e sobravam mais sombras do que claridade. Apesar da seca ibérica, a pior desde 1931, segundo lera, aquele local parecia viver numa bolha de relento.

    Como se ela precisasse de ser regada.

    Borrifada.

    Inundada.

    O caminho até à estrada levava uma boa meia hora. Quase sentia as tonturas de toda a embriaguez que a esperava. Não conseguia compreender que espécie de destino era aquele que lhe reservaram. Receava que Daniel acordasse, lesse o bilhete e decidisse sair para procurá-la. Quando Margarida chegou, Leo entrou no carro e suspirou. Afundou-se no banco, encolhendo-se, e deixou que as lágrimas a domassem enquanto era levada.

    SMS

    Leo: Estou a caminho. Não sei como vou conseguir fazer isto...

    Vitória: Fazes o que puderes. Se não conseguires, vais embora, pronto. Não és obrigada a isso…

    3

    Correial parecia parado no tempo, tal era a sua identidade característica. Nada mudara, como se isso significasse que, fora dali, tudo podia correr na viagem do relógio, mas, no regresso, nada se havia alterado. Isso era doloroso para Leo.

    — Como te sentes? — perguntou-lhe Margarida.

    — Uma merda… — Era sincera.

    Contou, muito pelas bordas, sobre a relação difícil, sem revelar detalhes, os detalhes. Margarida encarou-a, esbugalhada, e elogiou o sentido de lealdade. Não sabia se era necessariamente isso ou uma caraterística intrinsecamente estúpida de nunca querer falhar. Conversaram sobre o incêndio em Pedrógão Grande, notícia que Leo só conhecera ao entrar no carro, através da rádio sempre ligada. Até nisso começara a transformar-se, durante aquela viagem. Até pouco tempo antes, ansiara por saber todas as tragédias que aconteciam à sua volta. Não precisava de analisar muito para compreender que as dores dos outros iam colmatando as suas. O incêndio já causara quase quatro dezenas de mortos e ainda não estava perto de ser controlado. Se calhar, havia coisas piores do que voltar à casa do pai. Era por isso que se alimentava dessas notícias fatídicas: para nivelar o seu sofrimento.

    Cheirava a zimbro.

    Um cheiro que lembrava Fernanda, a mãe.

    À medida que o carro avançava pela estrada, Leo ia reconhecendo todos os momentos de dor que deixara por ali: as escadas laterais à casa verde, onde tantas vezes provocara o vómito; a sombra da árvore centenária, onde deixara o tempo passar para voltar a casa, o banco do jardim, tão carcomido e seu amigo. O sino da igreja tinha exatamente o mesmo clamor. Até a forma como o sol cobria as ruas era a mesma. Era uma vida que a aleijava.

    — Quanto tempo ficas? — perguntou, por fim, Margarida ao virar para a estrada que Leo indicou, e que entrava, finalmente, na vila.

    — Até ele morrer. Depois, sou livre. Verdadeiramente livre.

    Houve um longo suspiro no ar, como se as palavras pronunciadas já significassem um funeral. Uma fatia de cimento desenrolava-se para lá da vista. O céu azul, bordado a branco nos cantos pelas nuvens, parecia comer, ao longe, a tira de estrada por onde o carro deslizava. A música ia alta, transbordando dos vidros meio abertos. Leo trauteava a letra, de semblante carregado e cabelos eriçados pela raiva que roía o seu coração. A vila fez-se ver quando pequenos cubos, de vários tamanhos, emergiram do horizonte, com as janelas que pareciam bocas.

    Margarida estacionou à entrada de uma casa de estatura média e paredes gema de ovo. Havia um hotel ao lado, com piscina e alguns luxos, e várias casas menores ocupavam o restante da rua. As duas mulheres abraçaram-se, em silêncio. Do abraço, Leo pôde ver mais similitudes: as cortinas dançavam ao vento e um silêncio desolador queimava o impacto do regresso. Despediu-se e saiu do carro, respirando com dificuldade. Ao chupar o ar ansiosamente, como se guardasse os fios de oxigénio nas caixas do peito, sentiu várias espécies de dores.

    A portinhola de ferro rangeu ao ser empurrada e os pés pisaram a erva que crescia ao abandono. Quando Leo chegou à porta gigante de madeira viu-se pequena, da altura em que a sua mão rechonchuda não alcançava o batente e ela ficava ali, a gritar pela mãe, que lhe abrisse a porta, que o preto da noite que a ladeava parecia sugá-la para o interior de um inferno escuro, tão escuro quanto um buraco. E aquele olho, grande e devorador, perto, demasiado perto. Lamentou, com um suspiro, e bateu.

    A velha que abriu a porta encarou o chão. Não se cumprimentaram; apenas um murmúrio, um sinal de presença. Entraram e sentaram-se na poltrona gasta da sala. E o silêncio. Sempre aquele silêncio que já fazia parte daquela casa, daquela família. Um silêncio podre que fingia uma tranquilidade.

    Um silêncio que escondia segredos.

    — Ainda bem que conseguiste vir — disse-lhe, por fim. — Quero que saibas que não foi ele a pedir. Liguei-te por minha iniciativa. Custa-me vê-lo assim.

    — Como é que ele está? — perguntou Leo, as palavras empacotadas em anos de afastamento.

    — A morrer — sussurrou Lina. — No fundo, penso que espera por ti para poder... — O choro cortou-lhe a voz. — Precisa do teu perdão. Ele não quer fazer tratamento, diz que não vale a pena...

    Leo encarou a vizinha e experimentou um peso no corpo. Não sentia carinho ou compaixão, nem sequer qualquer identificação. Sentia, simplesmente, um peso, como se estar diante dela a tornasse obesa de memórias más.

    — Como pode estar triste? — deixou escapar.

    Lina Ricoto moveu os ombros.

    — Sempre gostei dele.

    Apesar de tudo…

    — Vejo que nada mudou — suspeitava e confirmou. — Há alguém nesta merda de lugar que saiba o que aconteceu?

    — Há segredos que são para ficar em família, Leo…

    — Por mim, que morra! — praticamente gritou.

    Levantou-se e procurou pelo quarto. Percebeu que Lina saíra de casa; um rato a abandonar o navio. Viu-o estendido sobre a cama, debaixo de meia dúzia de cobertas, com o rosto apagado e a respiração cansada. Instintivamente sorriu.

    Sorriu para aquele que, em pequena, em vez de a proteger do escuro, a levava para um buraco ainda mais imundo.

    Sorriu para aquele que tornara a sua vida tão miserável.

    Sorriu, simplesmente, sorriu.

    E fez questão de que ele visse esse sorriso de vitória, de guerra, de ironia.

    Sorriu.

    Não o perdoaria. Não lhe afagaria a testa ou diria que tudo o resto fazia parte do passado, que os segredos estavam deitados para trás das costas, que esqueceria as noites mergulhada no breu. Sorriu como quem bate, como quem cospe, como quem pisa e volta a pisar e a massacrar.

    Sorriu e sentou-se como quem sempre esperara por aquele momento.

    — Filha… vieste… — murmurou.

    II

    A figueira

    2017

    Algumas semanas antes

    1

    Walk in silence

    Don’t walk away, in silence

    See the danger

    Always danger

    (Joy Division – Atmosphere)

    A cadeira balançou duas vezes para a frente e para trás, deslizando ligeiramente. Leo pousou a caneca vazia de café e esticou os braços diante da cabeça, sem deixar de olhar para a fila de carros que se formava na estrada em frente à enorme janela nua.

    — Com este trânsito nem me apetece sair — concluiu.

    — Ficou combinado para as oito. — Olhou para o relógio. Iam entrevistar Salvador Sobral, no rescaldo da vitória no Festival Eurovisão da Canção. — Queres jantar primeiro?

    Leo empurrou a cadeira com as pontas dos pés, fazendo-a girar em direção à voz rouca daquele homem. Fechou os olhos para imaginar que era ele quem rodava a cadeira, com delicadeza, sem vontade de desmanchar o silêncio que adormecia na redação, àquela hora. A primeira coisa em que reparou foi na bolsa atravessada ao corpo, com todos os aparelhos de que ele precisava para trabalhar. Ao pescoço, trazia a máquina fotográfica favorita, dando-lhe quase todo o charme. Jorge não era particularmente bonito, mas tinha uns olhos imensos e pestanudos e um sorriso de lábios cheios. Era enorme, talvez quase dois metros, e pesava, certamente, mais de cem quilos. Um dia, Leo perguntara-lhe se a sua altura lhe dava algum poder extra na fotografia. Nunca respondera. Devia ser agradável ver tudo acima dos outros.

    — Não largas isso? — questionou ela, tentando fugir ao embaraço dos segundos que perdera a contemplá-lo.

    — Nunca se sabe quando estará uma imagem pronta a ser fotografada. — Agarrou na máquina e apontou para Leo. — Não te mexas. O sol deixa-te o cabelo quase laranja. — Deu o clique. — Perfeito!

    Ela permitiu-se sorrir, não que gostasse de oferecer o rosto àquelas oportunidades de recolha de defeitos, mas porque se encantava de cada vez que ele a tratava assim. Amornou-se à cadeira, deixando as costas tombar e as pernas escorregar até ficarem completamente esticadas. Fechou os olhos e suspirou. Apetecia-lhe sushi.

    — E se encomendássemos comida para aqui? — sugeriu. — Ainda tenho de preparar o resto da entrevista.

    — Por mim… — Ele abanou as mãos, pestanejando. — Piza?

    Sushi. — Leo ajeitou os lábios em forma de biquinho.

    Sushi. — confirmou ele, enquanto procurava o telemóvel no casaco. Olhou para a esquerda, confirmando a presença de mais alguém. — Cláudio! — gritou. — Cláudio, jantas connosco?

    Cláudio espreitou através da porta de um outro gabinete, com os óculos de vista praticamente na ponta do nariz. Parecia transtornado, quase em súplica: nos olhos pousava uma película de água-viva. Fez sinal de negação e desapareceu no semiescuro do gabinete.

    — O que se passa com ele? — questionou Jorge.

    — Está apaixonado — suspirou Leo. — Outra vez…

    — Pelo ator da semana passada? — Parecia divertido.

    — Não. Pelo escritor que entrevistou ontem. — Ela revirou os olhos e abriu uma página da Internet. — Liga, então, para o restaurante que eu vou apontando para o que quero.

    Jorge, sentado, dobrou-se em direção aos joelhos, colocando um cotovelo sobre um deles e, com a mão livre, procurou o contacto do restaurante. Era a quarta vez que encomendavam sushi na redação, para os dois. Namoravam há quase um ano, já fora pedida em casamento por ele e, ainda assim, ela não se apercebera de que ele detestava peixe cru. A culpa seria da falta de amor por parte de Leo, ou de Jorge que nunca se impunha nos seus gostos? Ela entretinha-se com a escolha enquanto o telefone tocava. Os cabelos soltos, castanhos, chamavam a atenção do fotógrafo, descobrindo-lhe um sinal na nuca em que ele reparava pela primeira vez. Arrepiou-se com as possibilidades. Desceu os olhos pelas costas, detetando o sutiã talvez demasiado justo. A camisola de lã ficava ligeiramente acima das calças, deixando antever uma pele branca e o leve início da roupa interior, em algodão preto. Jorge levou a mão à testa e sacudiu o cabelo farto, quando foi salvo pela voz da funcionária do restaurante. Orientou-se pelo dedo de Leo, arregalando os olhos quando se apercebeu de que a escolha ainda não estava concluída.

    — Bem, isso é que é fome! — sorriu, ao desligar a chamada.

    Doeu-lhe. Doía-lhe de todas as vezes que alguém reparava no seu apetite voraz em algumas situações. Toda a vida se forçara a imposições e encarceramentos e, embora soubesse, em teoria, que o corpo jamais deveria ser uma prisão, não se libertara dessas cordas. Queria ser feliz ao máximo, mas só o era às vezes. Apertou as coxas e ajeitou a cadeira à secretária.

    — Quanto tempo demoram? — Tombou ligeiramente o pescoço e encarou Jorge.

    — Quarenta minutos.

    — Ótimo. Dá-me tempo para preparar isto. — Abriu o documento no computador e endireitou as costas.

    Não comia piza há muito tempo, provavelmente desde que o avô falecera. Ainda não conseguia comer, porque era uma memória demasiado próxima ao avô, fazendo-a sofrer. Naquela altura, raramente encomendavam comida, porque a avó Inês não abandonava os tachos. Era até uma afronta. Porém, naquele dia, a avó ausentara-se e havia fome. A fome era uma coisa engraçada, pensara. Começava ligeira, sem grandes contornos, e depois tornava-se a coisa maior do mundo. Um abraço de bocas vorazes dentro da barriga, às cambalhotas. O avô Dúlio marcara o número da pizaria e pedira uma familiar, simples, só de queijo, sem saber muito bem o que isso significava, mas ele e Leo eram família, família apertadinha, e isso bastava. Na espera, ficaram a olhar um para o outro, costas direitas na cadeira do alpendre, e a fome imensa a crescer. Não falaram e sorriam, na cumplicidade dos enigmas, e Leo só sabia imaginar como seria retirar o triângulo, sentir a elasticidade do ingrediente principal, a acidez do tomate maduro, a massa fininha e ainda enfarinhada. Fechara os olhos e lambera os

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