Esfera Empírica
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Esfera Empírica - Lucas S. G. Landale
1: Luz Escura
Os trovões vêm com força lá de fora. O estrondo demora um tempo para dissipar-se, embora o brilho ilumine apenas por um átimo todo o horizonte do vale de carne viva, revelando sua natureza grotesca. Chão, montanhas e tudo o mais que existe é feito de músculos vermelhos e fibrosos. Músculos de alguma criatura gigante que sequer imaginaria minha existência. O peso de meu casebre de madeira deve causar-lhe tanto dano quanto passos de mosquitos sobre minha espessa pele.
Hoje é um dia diferente. Eu percebi isso porque você apareceu. Achei graça, pois é algo que já aconteceu tantas vezes antes. Tantas vezes…
A madeira torta da janela range alto quando apoio nela os braços. Meus olhos doem com um novo relâmpago rasgando os céus escuros deste Mundo de Pesadelo. Sempre quando surgem essas tempestades eu penso no nosso futuro. O futuro que parece nunca chegar.
O ar sopra quente contra meu rosto envelhecido. As cortinas dançam como se quisessem fugir. De certo modo, é o mesmo que eu gostaria de fazer. Mas não adianta chorar. Eu preciso secar as lágrimas que teimam em escorrer… Elas misturam-se às fuligens e poeiras deste lugar e fazem meus olhos arderem por horas a fio.
Meu nome é Trebba Affaroth. Eu sou a última matriarca do povo elefante. Costumávamos ser uma civilização de milhões de indivíduos, divididos em três nações no planeta Shuokarann, até que tudo deu errado…
Minhas pernas sempre doem quando me sento neste banquinho. Eu mesma o montei, sabia? Ainda criança. Quanto à mesa, dela… eu não me lembro. Assim como não tenho recordação de ter feito chá. A xícara está cheia, mas já fria. Um pouco do líquido escuro escorreu e manchou o tampo de ripas. Há quanto tempo a deixei aqui?
Sabe esta madeira? A que usamos nesta mesa, neste banquinho, na casa toda? Nós a tiramos daquelas árvores crescendo nas montanhas que se erguem daquele lado. Lá, está vendo? Elas crescem retorcidas, deformadas como se fossem um tumor maligno sobre o solo, cobertas de uma camada muito escura de pele morta. Tudo aqui tem essa aparência de carne e morte.
Quando os relâmpagos se acalmam e o céu vermelho volta a enegrecer, o máximo de luz que eu posso ter limita-se ao brilho âmbar das lamparinas dançando com vergonha sobre os móveis. Sua iluminação é tão fraca que deixa os cantos dos armários imersos em noite. Sob a sombra, minha mão não passa de uma massa cinzenta de rugas e vincos.
Nosso povo, há muito tempo, encontrou refúgio aqui após a grande catástrofe que quase acabou com o mundo. Sabe, antes de tudo havia e sempre haverá as Duas Árvores
. Elas são a profunda tristeza e a ilimitada alegria. Eu podia contar-lhe sobre nossas histórias de criação, sobre como Elas existem no centro do Universo e são a raiz do Multiverso… Mas isso levaria tempo demais. Vou limitar-me a dizer que é do âmago d’Elas que vieram todas as coisas. No começo, Elas deram vida aos Dragões e aos Espíritos.
Já deve ser madrugada, mas para mim o sono não vem. Quando o tempo fica assim, o som do vento cantando através das paredes finas me traz pesadelos. Quando o ar abafado se esfria, é o sinal da tempestade que finalmente limpará o ar sujo. Não temos como sair lá fora sem cobrir a boca e a tromba. Mesmo assim, eu sempre sinto cada músculo de meu corpo doer após estas chuvas amaldiçoadas. E, a cada tempestade, a dor parece aumentar. Esta dor que me persegue desde… nem me recordo mais.
Os povos elefantes viviam em três nações no extremo norte do Planeta Shuokarann. Nós dividíamos aquele mundo com outro povo; eles chamavam a si mesmos de Vaasutri. Criaturas aquáticas, que se desenvolveram nas profundezas dos nove oceanos do planeta. Foram uma civilização grandiosa. Suas torres de vidro e aço cresciam até perfurar a superfície das águas; suas máquinas venciam a violência das ondas e conquistavam tsunamis; seus feitos redesenharam montanhas. Chegaram a criar colônias nos litorais de todos os continentes, diziam meus pais.
Mas os Vaasutri foram tomados por um orgulho e sede de poder que enfureceu as Duas Árvores. O povo aquático queria para si o poder d’Elas. E essa foi sua ruína. Meus pais me contavam, quando eu era ainda bem pequena, como o planeta todo foi tomado por um fogo amarelo, quando o céu derreteu e as montanhas arderam. Dizem que o céu nunca mais foi azul depois da punição das Árvores.
Os Vaasutri sumiram sob a vaporização dos oceanos. Meu povo, mediante um aviso dos Espíritos que são mensageiros das Árvores, conseguiu escapar da destruição; nosso poder májiko, no entanto, que é a capacidade de manipular as forças ancestrais do Universo, não bastaram para garantir refúgio aos milhões de Elefantes das três nações. Desde então os sobreviventes daquela catástrofe vivem aqui, neste Mundo de Pesadelo que existe além do mundo real de Shuokarann. Meus pais nunca souberam explicar o motivo de termos vindo para cá e o porquê de ainda não ser possível voltarmos para casa. Mas sei que algum dia seremos libertados, que algum dia poderemos abrir uma porta e voltar ao nosso planeta natal. Algum dia…
Viver aqui já poderia ser punição suficiente por um crime que nenhum de nós cometeu, mas ainda há mais. Eu tenho sonhos… Não sei se poderia chamá-los proféticos
, mas eu vi muito neles que me assusta e surpreende. Tentei falar deles com minhas colegas, mas tive medo. Poderia revelar à minha filha — praticamente minha única confidente — mas não quero causar-lhe ainda mais preocupação. Afinal, viver aqui e ainda cuidar de mim já é um grande fardo, não?
Para você, contudo, eu poderia contar. Esta será minha crônica; um diário dos meus delírios, por assim dizer… O Povo Elefante no Exílio terá alguém para relembrar nossas histórias se finalmente formos extintos. Que as Árvores me perdoem.
Sim, meu coração acelera só por imaginá-la. A Luz Escura
. Eu a vejo desde quando o Tempo Circular começou… Ainda que não seja possível a um círculo ter um início, eu sei que foi a partir do momento em que me vi presa neste pesadelo de sons e memórias que sinto a presença nefasta deste fenômeno que só consigo descrever como uma Luz Escura
.
Antes de aprender a usar minha tromba com destreza — antes ainda de ser capaz de entender as coisas da vida — eu notei que, toda noite, perdia minha individualidade ao mergulhar num oceano de centenas de vidas a se repetirem, presas em um círculo de tempo. Suas dores, alegrias e mais íntimas memórias abrindo-se para mim como flores beijadas pelo sol. Um Círculo de Tempo
que começou na minha infância e que segue até minha morte. Mas eu não consigo lembrar o futuro. Só vejo manchas e sombras de um destino que surge no canto do olho, um espectro fugaz. Esse círculo me confunde há tanto tempo que, mesmo agora, tenho a impressão de que cada palavra que eu digo vem de outra existência, outra repetição de um momento futuro em que minhas ações serão ligeiramente diferentes. Só a tempestade se mantém constante.
Não aguento mais rever todos os enganos e fracassos de povos distantes somados aos meus próprios. Minha vida se repete à deles, e isso é insuportável. Elefantes e azzkapéls que não percebem um inevitável fim que sempre chega, de horror e Inconstância
.
Peço paciência, meu amigo. Sou uma velha Matriarca, a última ainda viva. E minha filha tem muito o que aprender antes de me suceder; temo que ela não esteja pronta.
Os homens estão exaltados. Sinto que percebem os ventos horrendos deste Mundo de Pesadelo em que nos exilamos, trazendo conosco as mágoas do outro lado
… O Mundo Acordado dos azzkapéls, corrompido pela Luz Escura que alcança cada vez mais longe no Multiverso.
Eu sei, é confuso. Mas tudo vai ser explicado. Ao menos eu assim espero. Minhas memórias se confundem por conterem tantas vidas e pontos de vista diferentes. Tentarei ser o mais lógica possível, mantendo a trama coerente e cronologicamente compreensível, mas não tenho como garantir isso. Espero que, ao final desta crônica sobre eventos futuros, ao menos lhe ocorra alguma solução para evitar um fim que, a mim, parece petrificado em uma realidade imutável. Eu sei que o Tempo Circular pede um termo, um final que garanta a continuidade do futuro. Os Espíritos não compreenderam ainda que até eles precisam obedecer às leis naturais das Duas Árvores, Al-Anuur e Al-Derith — ou, no idioma dos azzkapéls, Adara e Adamara —, para todo o sempre.
Elas dormem. Elas estão dormindo há milênios e ninguém sabe quando despertarão. A decepção delas com os Vaasutri, seus filhos preferidos, foi tão grande que elas desistiram de tudo e deixaram o mundo aos cuidados dos Espíritos, sob o testemunho do último Dragão ainda vivo.
Desculpe-me, novamente embaralhei os eventos.
Um relâmpago novo corta os céus negros em veias de prata correndo para todos os lados; por um segundo, parece dia. A luz avança como um sol branco janela adentro. O estrondo subsequente parece urgir-me a contar a minha história. Agarro a xícara. O vapor quente do chá me deixa confusa. Eu não tinha bebido agora há pouco todo o chá que já estava frio? Deve ser minha memória conturbada. Ou o tempo se repetiu e nem notei. Espero que você permaneça aqui até antes de tudo recomeçar.
Que susto. O som reverberou até morrer em um suspiro tenso. A tormenta trouxe consigo um cheiro de ferro quente.
Nos meus sonhos, vivenciando sempre a existência de criaturas diversas, aprendi tudo sobre o que aconteceu após o genocídio dos Vaasutri e o exílio dos Elefantes. Os povos primitivos que habitavam o sul e o centro do continente úmido receberam as bênçãos dos Espíritos e Dragões, sempre obedientes às Duas Árvores. Quando as águas voltaram a chover e os oceanos retornaram, elas uniram essas tribos sob nações e por séculos uma nova civilização floresceu. Essa civilização autodenominou-se azzkapél.
Em centenas, milhares de vidas e de repetições de destinos que vi, percebi que os azzkapéls estão seguindo pelo mesmo caminho que trouxe ruína aos Vaasutri. Eles já sabem usar májika para facilitar a vida e possuem tecnologias que nós, Elefantes, nunca imaginamos. Ademais, estão unindo essas duas técnicas para abrir portas para mundos que não deveriam ver. O resultado desse crime é um rasgo no tecido da existência, uma Luz Escura
rompendo as páginas do livro da realidade. É como se tudo o que existe no Universo se apagasse aos poucos. Esse apagamento deixa um rastro totalmente escuro; em volta dele uma forte luz, a luz da existência, estaria sendo tragada, sumindo para dentro da escuridão. Essa luz escura brilha mais forte e mais longe a cada pesadelo, a cada vida revivida por mim. E ela atravessa não só o Universo, mas toda uma gama de realidades dentro do Multiverso intocado.
O ar gelado, enquanto eu aqui pondero, parece carregar para longe de mim os últimos resquícios de vitalidade. A cabeça me pesa. A mão treme quando tento agarrar o copo de leite, tão perto de mim. Sim, agora já é um copo. Agora já é leite. Aquilo que antes foi uma xícara de chá. Eu estou repetindo novamente meu destino. Toda vez que eu percebo estas mudanças, algo em mim morre de tristeza. Será que haverá tempo? Eu rezo para que você possa me ouvir até o final.
Este casaco de lã não me aquece. Vou precisar colocar outra roupa. Oitenta e sete anos. Quase dois terços deles como Matriarca do Povo Elefante no Exílio… Somos apenas cinquenta e quatro… apenas uma tribo restante. Que frio.
Não. Não vou chorar. Já derramei lágrimas demais. Eu antes rio, porque você está comigo. É uma sensação boa, sabe? Não estou sozinha. Pelo menos neste momento, ainda que longe de minha filha, que há dias está procurando suprimentos junto com os homens. Eles precisam ir cada vez mais longe neste terreno hostil e, a cada vez que fazem isso, sinto-me mais sozinha. Só de pensar, percebo a dor voltar. Esta dor que me persegue desde…
Você precisa saber que eu aguardo – sempre aguardei – a visita de dois azzkapéls. Eu falarei sobre eles mais adiante. Seus rostos permanecem gravados nas minhas retinas desde sempre.
Você pode achar engraçado eu sacudir assim a cabeça, mas é alentador. Eu sei quem eles são; para mim se mostram nítidos como minha mão agora, sob a luz dos relâmpagos. Vê estes calos, estas rugas? Em cada poro desta mão há mais história que gotas de água ácida na tempestade lá fora. Ao menos posso sentir ainda o sabor do chá frio. A xícara tem uma rachadura, você vê? Ela caiu tantas vezes que não sei como ainda pode estar inteira.
O vento invade a casa trazendo gotas geladas que molham meu rosto. Esse vento parece pedir para eu olhar este mundo vermelho de carne e opressão. O ar acompanha um cheiro de sangue seco. A chuva só faz piorar. A luz da lamparina treme e quase some quando entram as lufadas a trazerem consigo mais sombra e borriscos.
A tempestade tem pressa, meu amigo. Eu rio dela, porque não existe motivo para tanto. Ora, tudo isto já aconteceu antes, e acontecerá de novo. Essa tempestade sempre veio e sempre virá. Ela sempre vem no dia de hoje. Forte como se quisesse trazer os dois azzkapéls até mim numa ansiedade infantil. Mas, ao mesmo tempo, eu suspeito que ela esteja certa. Eu também sinto uma ansiedade incômoda no fundo da mente… Eu tampouco quero voltar a vê-la, mas não há escapatória enquanto o círculo não for quebrado.
Sabe quem seriam esses dois azzkapéls? Claro que não. Claro que não. Nem eles o sabem, mas meu coração confia que só depois que nos encontrarmos é que haverá chance de paz. Chance de apagar a Luz Escura e, finalmente, voltar para casa.
Meus pés ficaram gelados. O peito começou a doer. A cabeça lateja sem parar. Peço paciência.
Esses dois azzkapéls esperam por mim e ainda não sabem. Mesmo assim, pelo olho do espírito eu já consegui testemunhar o fracasso deles no exato ponto em que o agora
volta ao início; quando o brilho assustador da Luz Escura envolve o mundo em sombra reluzente. Sim, eu me lembro disso apesar de ainda não ter acontecido; afinal, ao mesmo tempo, já aconteceu tantas vezes que posso ver as cenas se desenrolando sob meus olhos fechados. Quando, você pergunta? Ainda é muito cedo para você saber.
Escute! A chuva aumentou. Isso quer dizer que logo, logo será ontem e tudo vai recomeçar. Eu ainda tenho esperança; preciso acreditar nisso ou ficaria louca. O Destino dança e se esconde atrás dos meus olhos, e eu só consigo ver além da sombra quando ele se apresenta a mim por inteiro, quando o futuro vira passado. Entende?
Já posso sentir as batidas na porta reverberarem em meus ouvidos. O estrondo seco fará meu coração acelerar. Engasgo-me com o café quente e começo a tossir. Sim, eu consigo ver com meu coração os próximos passos que tomarei quando eles vierem.
Nada me impedirá de pular da cadeira e ir atendê-los. Finalmente terá chegado a hora de nos encontrarmos. Pegarei a lamparina alaranjada e iluminarei seus rostos, sujos com o sangue e a pestilência deste Mundo de Pesadelo.
Mas essa história diz respeito a eles. A sua história deverá ser diferente. Preciso começar do princípio para que você entenda o que se passa. E o princípio é muito anterior ao agora
. Não havia ainda tempestade, embora algo que viria a se transformar nela já se desenhasse em sangue e podridão. Não chovia lá fora. Nem sequer era noite ainda. Eu dormia? Não. Eu planejava.
O maior erro a se fazer neste lugar é suspirar fundo. As memórias de antes e depois me mostram que eu nunca me acostumarei com o ar pútrido. O coração ainda dói, pois sei o que vem depois.
A tosse se aplaca. Respiro fundo e observo a saleta como se tudo me fosse estranho. A xícara negra está vazia. Eu não me lembro de ter bebido nada. Acaricio a rachadura na cerâmica como quem acaricia uma ferida para ver se a dor passa. Isso me faz perceber que terei que contar à minha visita sobre como o mundo termina.
Será que hoje é o dia em que a dor vai embora? Esta dor que me persegue desde…
Esqueci.
— Trebba-Affaroth, Grã-Matriarca do Povo Elefante no Exílio.
2: Olhos Vermelhos
O musgo na parede foi a primeira coisa que chamou a atenção de Irianor. O jovem encarava os azulejos esbranquiçados com uma desconfortável sensação de que já havia estado ali. Um banheiro antigo, com pia de metal e lustres cromados em forma de tulipa. Pó e teias de aranha se acumulavam nos cantos. O ar em volta gelava os dedos.
Aproximando-se, viu a si mesmo como um fantasma sem forma definida ao passar pelo espelho embaçado. Aproximou o rosto, mas a imagem refletida era apenas um amontoado de manchas. Abriu e fechou as mãos por um momento para então esfregar uma das palmas no espelho. Não tinha nojo ou qualquer sensação dessa sorte quanto à sujeira do banheiro. Os azulejos envoltos em sombra não refletiam nada, opacos pelo musgo. Estendeu dois dedos da mão esquerda e sentiu-lhes a superfície. Não era fria, nem quente.
Que sujeira…
, esfregou o indicador no polegar. Olhou para o lado e viu o chão do box do chuveiro cheio de insetos mortos. A água estava parada desde dias atrás; o ralo entupido se via negro devido aos cabelos longos impedindo o escoamento. Pairava um odor de mofo como em um porão mal arejado. A umidade e o frio arrepiavam sua pele.
Ele pôs o pé descalço na água turva e foi até o interruptor bórico na parede. Devia ser madrugada, motivo pelo qual estranhou a luz estar apagada. A imagem do banheiro no escuro era uma pintura feita sobre carvão. Seus olhos de gato, característica do povo azzkapél, davam-lhe a capacidade de enxergar sob pouca luz. Fortes linhas negras exaltavam os contornos, ao passo que borrões em um branco escurecido serviam de limite entre as paredes e o chão. Os vermes por todo lado jaziam imóveis entre insetos sem asas. Ele tiritava, com a pele arrepiada.
Não posso tomar banho assim
, pensou. O coração batia forte. Algo estava prestes a chegar.
A placa bórica deveria ativar a água do chuveiro metálico cheio de orifícios negros de sujeira, mas nada aconteceu quando a palma estendida tocou no painel májiko. Olhou para cima, depois para o painel. Novamente tocou a mão espalmada na placa de bronze. Nada. Suspirou em uma decepção resignada; ele sabia que havia algo errado:
— Ele vem… — baixou a cabeça.
O ambiente ermo apagou-se em um pretume completo com um estalo grave. Não havia mais banheiro. Cessara a comichão nas pernas e pés, resultante do contato com a água suja. Que frio. O coração acelerado batia tão forte que se podia ver a vibração em seu peito magro.
Ele fechou as mãos em punho e respirou fundo ao ver, a uma distância que não podia calcular naquela escuridão total, dois pontos vermelhos piscando. Hipnotizado, o jovem Irianor não conseguia se mover. As pernas doeram quando ele tentou fugir. Os pontos vermelhos cresceram. Ele se encolheu e começou a chorar, amedrontado porque sabia de que se tratava.
Era uma criatura enorme, de ao menos dez metros de altura. Irianor já a conhecia e já a vira antes. A boca dentada da besta salivava com fome. Seus olhos de luz vermelha desenhavam rastros que pairavam no ar a cada movimento. Irianor sentia o pavor de uma presa prestes a ser atacada por um predador invencível, sentindo também que havia malícia naquele monstro. Ele não queria apenas comer, mas queria deixar o rapaz indefeso sofrer e sentir dor.
Em dois, três pulos ela abocanhou Irianor com centenas de dentes brancos e o reduziu a carne moída. O corpo desmembrou-se a cada mastigar. O rapaz gritou até sua voz sumir.
Acordou. Era um dia de festa, mas ele não estava feliz. Perturbado pelo pesadelo, respirava com aflição. Cobriu o rosto e chorou. Chorava soluçando, como fizera tantas outras vezes.
Sentando-se na borda da enorme cama, observou em volta as paredes e a porta do quarto. Sentia que algo não estava certo ali. Esse raciocínio se perdeu quando algo lhe veio à memória:
— Estou atrasado! — desesperou-se, pulando da cama adornada com figuras de animais esculpidos em metal e cujas grandes dimensões não condiziam com o tamanho dele. As cobertas pesadas voaram para o lado ao que ele saiu em disparada, ainda trajando a calça curta e a camiseta com gola em V que lhe serviam de pijamas. Sequer calçou os chinelos.
Ao deixar o quarto, percebeu que era difícil mover-se. As pernas faziam o movimento da corrida, mas era como se tentasse atravessar o mar a passadas. O corredor que levava ao Salão Cerimonial do Palácio Sacro estendia-se tão comprido que não se podia ver-lhe o fim. Uma parte da mente de Irianor já percebia que ele estava tendo um sonho dentro de outro sonho mas, em um lapso de segundos, esqueceu-se disso e resmungou sob a respiração acelerada:
— O pai vai brigar comigo de novo… Estou atrasado… — chorava de forma exagerada, com lágrimas escorrendo pelo pescoço e uma sensação de tristeza que o deixava sem forças para andar. O peso das pernas era tal que o forçou a cair de mãos e pés ao chão. Até mesmo engatinhar exigia esforço absurdo.
— Venha comigo — a voz surgiu do nada ao lado dele. Era a irmã mais nova, Prena. A moça de cabelos trançados sorria. Ela puxou o irmão para que se endireitasse e, de mãos dadas, levantaram voo em disparada pelo corredor, uma passagem repleta de quadros com pinturas representando todos os governantes passados do planeta Shuokarann nos quase três mil anos de Monarquia Absolutista Global. Irianor e Prena eram filhos do atual líder planetário, cujo título Concorde
causava mais medo do que respeito nos dois adolescentes. Os dois pararam bem em frente à porta de mogno, toda talhada com figuras mitológicas que pareciam mover-se pelos cantos de seus olhos. Prena não disse nada, esperando que o irmão tomasse a iniciativa.
— Estou atrasado. O pai vai brigar comigo! — ele repetiu como uma criança, largando a mão da irmã e colocando os dedos sobre a maçaneta. Ele não queria ver o outro lado e hesitou por uma eternidade para abrir a porta. Atrás dele já não havia nem corredor, nem nada mais. Somente uma antiquíssima porta de madeira envernizada flutuava no ar. Mesmo assim ele ainda não se convencia de que se tratava de mais um sonho. Em sua mente havia apenas o pavor em descobrir o que o aguardava do outro lado.
Ao olhar para onde a irmã deveria estar, descobriu-se já sozinho. Decepcionado, girou a maçaneta. A porta se desfez em um pó que pairou no ar de forma pouco natural. Ao atravessar as partículas, ele percebeu-se envolto em luz e música.
O Salão estava cheio. Todos olhavam para ele. Sentia-se diminuto, envergonhado por estar somente de pijamas. Nos rostos dos nobres não havia admiração. Dentre aqueles olhares severos, o mais gritante vinha do homem no trono. O Concorde Kardess VII lembrava o monstro do banheiro, porém cujos olhos ardiam não de avidez, mas de impaciência.
— Eu me atrasei… Desculpe — cabisbaixo, sua voz era como um miado.
A voz de barítono um tanto rouca veio como um soco contra seus tímpanos:
— Você viu o que fez? — gritou o pai do alto de seu trono. Irianor caiu de joelhos e chorou ante uma plateia que desatou a rir:
— Desculpe, pai… Eu não tinha como saber… Eu não queria…
— Agora é tarde. Você sempre me decepciona — disse o homem vestido de negro e vermelho, usando na cabeça a coroa prateada dos concordes, enfeitada de rubis e esmeraldas e com uma enorme pedra azul no meio. O brilho da joia central se refletia nos olhos do filho. Irianor não era capaz de divisar o rosto do pai, pois este parecia envolto em pura luz.
— Fique de pé, filho. Você é o meu herdeiro — o Concorde finalmente falou quando o público de nobres com feições de desprezo parou de rir.
O jovem assim fez. Aproximou-se do trono e viu, entre ele e o pai, uma mesinha de mármore que surgiu do nada. Em volta, o público desaparecera.
— Esta é sua Esfera de Sonho.
— A Primeira Esfera? — gaguejou, sentindo dor no estômago. Isso já havia acontecido antes, ele sentia. Seria um sonho? Começava a solidificar-se a suspeita.
— Entre em sua Primeira Esfera — ordenou o pai, cujo comando já continha a resposta à pergunta do filho.
Irianor encolheu-se de horror. A mera imagem da gigantesca bolha transparente causava-lhe asco. A refração dos raios de luz dançando em sua superfície parecia chamá-lo.
Rostos conhecidos apareceram em volta do filho do Concorde. Prena sorria do lado esquerdo do trono, vestida com um uniforme branco. Do lado direito, o bispo Shutram acenou-lhe com palavras de amizade:
— Querido Irianor, este é seu destino. Eu e sua irmã estaremos com você.
O rapaz tentou aprumar-se, mas era difícil. Tremia de medo e nervosismo. Filetes de suor escorriam de sua testa. Sem confiança, respirou fundo e acenou com a cabeça, concordando com o velho de cabelos brancos. Estendeu o rosto para perto da bolha, como pedia a tradição. Em um segundo, um ar frio tocou-lhe os pelos atrás do pescoço. Ele virou os olhos para a frente sem completar o movimento. Petrificado, fez uma careta de nojo.
A Esfera de Sonho, a meros centímetros de seu rosto, apodreceu tal qual uma fruta, tornando-se opaca e diminuindo de tamanho sob um chiar agudo e incômodo. Irianor se afastou com passos largos para trás, pronto para protestar contra o pai, mas o trono já estava vazio, coberto de vinhas e sujeira como se centenas de anos tivessem passado num ritmo veloz. O rapaz estava novamente sozinho em um salão abandonado. As paredes estavam descascando, havia pilares desabados, detritos de rocha e lixo por toda parte. Aquilo que fora uma Esfera agora não passava de um bloco esponjoso e enegrecido flutuando sobre a mesinha cerimonial coberta de sujeira e pó.
Atônito, Irianor sentou-se no trono vazio para pensar. Uma brisa tênue soprou contra ele trazendo os ares antigos do lugar abandonado. Por um momento, a sensação vívida de que tudo era um sonho quase o fez acordar de verdade, mas ele foi novamente tragado para dentro da ilusão quando a voz de Prena chegou até ele forte como a maresia que sopra direto desde a praia:
— Você precisa entrar na Esfera! — a irmã estendeu-lhe a mão, materializando-se do nada justo em frente a ele. Irianor pegou sua mão e ambos seguiram até a mesinha logo adiante.
— Mas isso é nojento! — disse, apontando para aquela aberração escura e apodrecida flutuando lentamente. Gotas de lodo escorriam da esponja negra. A irmã apenas encarava a Esfera morta:
— Algo está errado… — ela respondeu com um tom surpreso, acrescentando: — Isto não devia estar acontecendo!
Ao virar os olhos para o irmão, Prena parecia ter envelhecido 20, 40, não, já 60 anos em poucos segundos. Lágrimas escorreram sobre sua pele cada vez mais enrugada. As roupas rasgadas perdiam cor e textura como se o tempo corresse acelerado. Irianor, amedrontado e confuso, largou a mão dela, deu alguns passos para trás e tropeçou caindo de costas. Os cabelos cresceram até o chão. Os olhos se fecharam e ela pôs a mão na Primeira Esfera envelhecida.
— Prena! Não faz isso — extremamente ofendido por ver sua Esfera ser tocada por outra pessoa, ele gritou com uma careta.
— Não é sua hora — ela suspirou com profunda decepção. A Esfera tocada indevidamente pareceu engordar, e uma abundância ainda maior de óleo viscoso escorreu até que ela secasse, endurecendo em um aglomerado de carvão poroso. Logo caiu em cacos que se desmancharam em um pó finíssimo. A garota, envelhecida além do possível, baixou a cabeça. Imóvel, o tempo manteve seu ritmo acelerado até que Prena também se desfez em poeira, cobrindo o chão.
Irianor acordou com os olhos encharcados. Esfregou o rosto com ambas as mãos e secou as lágrimas com as mangas do pijama. Desta vez ele sabia ter acordado de verdade. Ficou petrificado por um tempo, encarando o teto do quarto, esperando o medo sumir. O coração batia com força. Suor escorria pelo peito e pelos braços.
As pinturas clássicas no gesso sobre sua cabeça não se moveram. A cena de deuses e dragões pintada séculos atrás não parecia se importar com o jovem que hoje fazia dezessete anos.
Cobriu o rosto com o braço e pensou na vida. Esses pesadelos eram corriqueiros, mas ele nunca se acostumaria. Sentia o rosto inchado. Devia ter chorado muito enquanto dormia.
Era de manhã. Virou a cabeça para o lado e viu o brilho vindo da janela. As cortinas estavam retraídas e, lá de fora, entrava a claridade junto com uma brisa de verão. O vento cantava trazendo o perfume de laranjas e pêssegos das árvores lá embaixo.
— Era para eu falar com o pai hoje de manhã! — lembrou-se em voz alta. Grunhiu sob olhos semicerrados. Percebeu que as cobertas foram jogadas para um dos lados, pois ora cobria-se apenas com o lençol. Sentiu frio. Testando a realidade, apertou os dedos da mão direita, e em seguida prendeu a respiração. Sim, estava acordado.
Demorou para sentar-se, mas enfim apoiou as costas na cabeceira da cama e, consternado, começou a imaginar o tipo de desculpas que daria pelo atraso em ir ver o Concorde. Foi quando sua irmã chegou como um furacão:
— Irianor! O que você está fazendo? — a porta abriu escancarada e Prena irrompeu dela com o rosto enfurecido. — O pai está reclamando já faz um bom tempo, e você sabe como ele fica chato quando… — interrompeu-se ao perceber o irmão encolhido na cama tal qual o filhote desamparado de algum animal, com ombros caídos e olhos molhados. Suas mãos estavam unidas sobre o travesseiro que lhe cobria as pernas.
— O que foi? — a voz da jovem dois anos mais nova adocicou-se em uma mistura de cansaço e pena desmedida. As orelhas longas e esbeltas, cobertas de pelugem azulada, deixaram-se murchar para os lados ao sentar-se perto de Irianor depois de ele encolher as pernas para dar-lhe espaço.
— De novo… — disse ele baixinho, em um tom que a irmã já conhecia. Suas orelhas encolheram-se para trás; eram como duas pranchas roliças de tom malhado, quase sumindo dentro de sua cabeleira cacheada, negra e volumosa. Assim que começou a falar, coçou um dos olhos com o indicador e grunhiu baixinho, deixando de lado o travesseiro e sentando-se no colchão com as pernas para fora das cobertas e os pés descalços quase a tocar o carpete felpudo.
Permanecendo ao lado dele, Prena passou a mão sobre o ombro ossudo do irmão e suspirou em uma sensação de impotência. Ela era a irmã mais nova, incapaz de mudar muita coisa. Como filhos do Concorde, possuíam o título de convalários
, um termo baseado no lírio-do-vale e com origens em lendas dos primeiros Evangelhos, escritos ainda antes do início do regime global do Concordato. Irianor, por ser o filho mais velho, era o convalário-herdeiro
e sucessor direto do pai.
O sol da manhã, com seu forte brilho de estrela azul, iluminava o quarto através das duas gigantescas janelas que cobriam todo o lado leste. Para além delas se estendia o cenário bucólico da cidade de Liderna. Tanto o quarto de Irianor quanto o de Prena ficavam quase no topo do Palácio Sacro, sede do governo global, e, da altura que estavam, era possível ver sem impedimentos até o horizonte campos e florestas ponteadas por casarões seculares e esparsos prédios de poucos andares. Tudo era observado silenciosamente pelo fulgurante céu amarelo-esverdeado, uma tonalidade que restara como herança da punição das Duas Árvores contra a extinta civilização Vaasutri, executada em um passado tão remoto que a maioria dos azzkapéls sequer acreditava haver de fato uma vasta abóbada azul acima dessa camada de poeira májika com as cores de uma antiga joia.
Sombras dançavam sobre os móveis de madeira nobre. As paredes repletas de pinturas delicadas, ilustrando cenas clássicas da história do mundo em estilo pitoresco, pareciam tomar vida sob os raios de luz que bruxuleavam devido ao movimento das nuvens lá no alto.
Uma brisa soprou, remexendo os galhos das árvores abaixo do palácio. Pássaros em revoada cruzaram pelo campo de visão de ambos e subiram ao firmamento cantando alto. Irianor encolheu ainda mais os ombros, apertou as mãos uma contra a outra e baixou a cabeça. O suor do pescoço umedecia a gola de seu pijama, algo que foi percebido por Prena.
— O mesmo pesadelo? — ela o encarava com suas pupilas em forma de delgada elipse, uma das características de seu povo.
Irianor demorou a virar o rosto para ela, e ateve-se a responder apenas em um fio de voz. Seus olhos eram tão pretos que as pupilas de aspecto felino, tão aparentes na irmã, nele não eram discerníveis.
— É sempre a mesma coisa… O monstro de olhos vermelhos me devora. Eu apareço no dia da Cerimônia atrasado… Tudo dá errado e eu sei que não viro Concorde.
Visivelmente contrariada, a irmã coçava a testa com a ponta dos dedos pensando em como responder sem ser hostil. Os cabelos longos e trançados sacudiam às suas costas.
— A gente já falou tantas vezes… — ela suspirou em uma preocupação condoída.
Irianor assentiu quase com vergonha:
— Sim, e os magos falaram tantas vezes, os médicos falaram tantas vezes… — adicionou. Ficou mudo por um tempo e prosseguiu: — Deve ser uma maldição májika. Eu não sei — gaguejou, segurando o choro. — Sempre volta. Esse pesadelo sempre volta. Eu sei que não vou ser Concorde…
— Mas todos passam por esse dia; todos precisam entrar numa Esfera de Sonho um dia — ela repetia pela milésima vez o mesmo enunciado corriqueiro, em tom condescendente. Já deviam fazer o quê? Cinco anos? Dez? A fala vinha decorada, mas ainda parecia funcionar: — Não é májika, seu bobo… Esses pesadelos são coisas da sua cabeça. Eu também tenho pesadelos às vezes; com isso, com a mãe… É normal…
E, como em um ensaio eterno, Irianor também se repetia à imagem de outras tantas vezes:
— Mas eu os tenho a toda hora. Toda hora eu sonho que dá errado. Desta vez você virou um esqueleto e o pai sumiu no trono… É sempre a mesma história, com uma trama diferente — a voz baixinha teimava na mesma angústia. Prena não entendia como conseguia ter tanta paciência com o irmão.
— Eu nunca entro na minha Primeira Esfera… ela sempre apodrece antes. Ou você toca nela… — disse com nojo e um leve arrepio de pavor. — Ou o bispo Shutram a tira de mim antes de apodrecer…
— É o trauma — ela o interrompeu. — Você é mais velho e se lembra melhor do dia em que a mãe morreu, por isso tem mais pesadelos… Eu nem lembro direito… — inclinou a cabeça como se estivesse tentando convencer a si mesma disso. Acariciou de leve o antebraço do irmão.
— Está bem — disse Irianor, espreguiçando-se. — Eu não quero dar mais motivos para o pai reclamar de mim… Espero conseguir ativar um modo automático
e apenas seguir o roteiro da cerimônia… Que o meu Invisível me guie! — rosnou em um desabafo. Prena quase sorriu:
— Seu Invisível deve estar tão nervoso quanto você.
— Isso não é motivo para ele não me guiar direito. De que adianta a gente ter um espírito guia
que não trabalha?
— Pois eu estou bem satisfeita com o meu — ela riu, cruzando os braços.
— Claro, porque ele não precisa fazer nada por você! — Irianor bufou, quase ofendido.
Prena passou o braço por trás do irmão, agarrou o travesseiro do outro lado e deu-lhe um golpe com força.
— Ai! Por que isso? — o rapaz cobriu o rosto com os braços e se jogou para perto da cabeceira. Ambos riram até Prena falar:
— A gente ensaiou a cerimônia do Acordar e Dormir tantas vezes que dá para fazer tudo dormindo! — ela balançou a cabeça lentamente em assentimento às próprias palavras e por fim fez uma careta, largando o travesseiro que ainda segurava. — Seu Invisível vai carregar você nas costas, não duvido.
Irianor concordou com um gesto e então coçou uma das sobrancelhas durante um longo bocejo:
— Quem dera que se pudesse fazer isso dormindo! — ele ficou algum tempo parado, com o rosto apático e sem expressão depois que seu breve sorriso se derreteu. A boca de lábios carnudos apertava-se em um filete de apreensões ao passo que os olhos grandes e redondos lhe pesavam, voltados para baixo em uma introversão assustadora. Ele era alguém que deveria comandar bilhões de civis e ordenar centenas de exércitos, mas se via derrotado por sonhos vindos de sua cabeça.
A irmã pôs a mão no pescoço e remexeu as tranças com os dedos, sem saber o que fazer. Ficou de pé e deu alguns passos para perto da saída. Manteve as orelhas altas e atentas. Por fim, voltou-se ao jovem sentado na cama e arrematou secamente:
— Você tem meia hora. O pai está esperando no Salão Coronal e ameaçou vir aqui em pessoa… — bufou, cabisbaixa, dirigindo-se até a saída poucos metros à direita da única cama que havia no quarto. Seus passos rumo à saída soavam alto devido às botas grandes e negras que lhe chegavam até os joelhos. Não pareciam ser do tamanho certo.
Em menos de vinte segundos, Irianor encontrou-se mais uma vez sozinho. Por um momento as nuvens cobriram o sol por inteiro, e as sombras que o astro projetava até então desapareceram. Suspirando, o rapaz passou os dedos pelo antebraço, remoendo as memórias dos pesadelos. Eram todos uma representação da mesma história, para sempre repetida com roteiros diversos, porém levando ao mesmo fim.
Tudo por causa do dia de hoje… Tudo por causa dessas ‘bolhas’…
, murmurou ao cobrir as bochechas quentes com as mãos. Ele passeava com o pé direito pelo chão carpetado, refletindo sobre a própria vida. Já havia perdido a conta de quantas vezes sua irmã o consolara, quantas vezes ele falara com médicos e psicólogos a mando do pai para se livrar dessas sensações ruins. Ninguém em sã consciência temia o dia da maturidade. Entrar na Primeira Esfera era o sonho de qualquer criança, pois a vida real só existia dentro dos Mundos de Sonho lá contidos. O Acordar e o Dormir, as duas faces do ritual que abriria sua mente para o chamado Oniricosmo
. Mas ele queria apenas esquecer tudo e voltar a dormir, sem sonhos e sem lembranças.
Não, isso ele não podia fazer; ele era o primogênito do governante do mundo, e somente ele poderia sucedê-lo para assumir o título que, por extenso, era denominado como Supremo Líder Global, Sagrado e Celeste Concorde do Mundo Acordado e dos Mundos de Sonho do planeta Shuokarann por toda a Eternidade, Supremo Imperador Májiko da Elite Májika, Supremo Patriarca da Elite Religiosa, Defensor Perpétuo e Senhor dos Nove Mares, Sete Continentes e Infindos Céus em toda sua glória por honra e dádiva outorgada sob o júbilo das Duas Árvores que Eternamente Dormem; sombra dos Deuses Adól e Adãma que se dobra por toda a terra de Shuokarann, voz das Duas Árvores entre os mortais
.
Ele voltou os olhos para as duas portas na parede à frente. Uma levava ao banheiro e a outra ao armário embutido. Ao lado delas, duas muralhas de madeira nobre marrom guardavam seus livros, brinquedos de criança, troféus diversos e condecorações, além de mais bugigangas bem arrumadas e espanadas pelas mãos da criadagem. Após a luta para ficar de pé, seguiu sem vontade até o quarto de banho. As luzes bóricas que se acenderam com a presença dele davam uma sensação de impessoalidade e limpeza. Elas formavam vários focos de luz que espantavam o escuro para baixo dos móveis.
Escovou os dentes e foi tomar banho. Não havia vermes no box, tampouco musgo nas paredes. Sem muita pressa ou vontade, ainda enrolado na toalha ele foi até o armário embutido e pegou as primeiras vestes que encontrou. Uma blusa de mangas curtas e uma bermuda marrom.
Deixando o quarto, passou pelos soldados em prontidão, estátuas vivas que ele olhava sem ver. Essas pessoas cobertas por armaduras se confundiam à decoração de vasos com folhagens altas e imponentes, bem como de quadros e pinturas diversas a retratarem bustos dos Concordes pertencentes à dinastia Drann, que governaram antes de seu pai, Kardess VII, nestes quase 500 anos de domínio de sua família sobre o Concordato.
Esse era exatamente o mesmo caminho do pesadelo que tantas vezes o fizera acordar exasperado. O longo corredor terminava naquela porta imponente de madeira envernizada. Aos dois lados dessa porta, membros da guarda encaravam o vazio. O herdeiro ao trono respirou fundo e se preparou mentalmente antes de girar a maçaneta. Ao encontrar-se no salão, seu olhar foi direto até o pai, quem desferia socos leves contra uma das mesinhas preparadas para o almoço que daria início às festividades de aniversário e ao subsequente ritual do Dormir e Acordar
para conduzir Irianor ao mundo adulto.
— Eu não estou gostando desta organização… — o Concorde comentava entre dentes a Shutram, bispo primaz da cidade de Liderna e amigo pessoal da família desde quando o avô de Irianor ainda governava.
— Avisarei à criadagem, Santidade — o religioso suspirou, acenando com respeito. Com o canto dos olhos, viu o jovem entrando. Fez um sinal ao Concorde, quem imediatamente se voltou para a entrada do Salão e começou a andar até lá. Seus passos eram ruidosos.
— Você está atrasado — repreendeu o filho com olhar severo. Irianor mal teve tempo de responder antes que a porta atrás dele fosse fechada por um dos guardas a postos do outro lado.
— Eu sei… eu tive o sonh… — balbuciou como uma criança.
— Não — Kardess VII negou as palavras do filho com um aceno de cabeça e estendeu-lhe a mão espalmada. O rapaz se encolheu. — Não quero ouvir falar do pesadelo. Eu já cansei disso.
Ele falava em tom baixo, mas sua raiva era visível no rosto marcado por rugas leves nos olhos e na boca. Governar o mundo era algo oneroso para esse homem de 44 anos. A testa vincada crescia um pouco para os lados nas incipientes entradas de calvície, apesar do cabelo curto ainda bastante preto. Diferentemente do filho, ele mantinha um penteado conservador, com os fios escorridos para o lado. Com quase dois metros de altura, encarava Irianor como se este ainda fosse criança pequena. Apoiou as mãos pesadas sobre os ombros encolhidos do jovem e continuou:
— Filho… — falou depois de observá-lo longamente, amainando a própria voz e forçando-se a falar com mais calma. Suas orelhas, grossas e curtas, dobraram-se de leve para trás. — Hoje é um dia muito importante. Mais até do que o dia de sua coroação como meu sucessor… — Irianor quis protestar, mas foi imediatamente censurado pelo pai, que pôs o dedo em riste sobre a própria boca.
— Não. Não quero ouvir isso. Você me sucederá e nenhum sonho ou presságio vai impedir este dia. Você sabe muito bem que eu não me dobro e nem me dobrarei a crendices. Eu preciso manter as regras. É isso que esperam os generais dos Mundos de Sonho. É isso que esperam os arcebispos do Mundo de Sonho de Ailara. Ademais, isso vai garantir o apoio adicional do Ultimaji do Mundo de Sonho de Hauta. Eu já falei várias vezes que agradar a cúpula do governo de Hauta é algo crítico para a nossa estabilidade, e o novo Ultimaji de lá está conversando demais com os militares, algo bem desconfortável, de acordo com os informes que recebi — o Concorde e Shutram trocaram olhares tensos.
Irianor não queria saber dessas coisas. Sentia-se menosprezado. Seu pai sempre dava mais importância para qualquer outro assunto que para ele. Quer fosse sobre o governo, a organização de festas ou alguma ordem para plantação de árvores no pátio do palácio. Já o próprio filho sequer era considerado por ele. Não passava de uma pequena, rara e delicada flor que só servia para ser exibida aos outros nobres como prova de virilidade do Concorde.
— … Eu sei como a política é importante, mas é que esses sonhos… — o jovem miou em uma tentativa de se fazer ouvir.
— Não — o pai voltou a refutá-lo em um tom de voz mais elevado, que mal conseguia disfarçar a frustração. Respirou fundo e apertou os ombros de Irianor, aproximando dele o seu rosto. O rapaz sentiu o hálito de bebida. Enojou-se e virou levemente a cabeça quando o pai continuou:
— Não é só uma questão de política. Trata-se de nossa sobrevivência. Há coisas horríveis acontecendo, e o que eu menos preciso agora é mudar as regras de sucessão. Já tenho que me preocupar com o idiota do general Zuaross, que não me deixa em paz… — exalou ar com força pelo nariz, extravasando sua fúria. Ele não entendia como o filho não conseguia ver o peso que um Concorde carrega nas costas. Queria gritar ainda mais alto se possível, para que seus argumentos entrassem naquela cabeça dura. — Não me interessa se você não se sente disposto a me suceder. Você vai. De qualquer forma.
O convalário-herdeiro ouviu essas palavras com uma vontade gigantesca de reagir, mas ali, em meio àquela gente, não teve coragem. Seus olhos se embaciaram em um só instante. O pai percebeu e se afastou:
— Venham comigo — disse, chamando também o bispo Shutram com um olhar de fogo. O velho sacerdote estava de costas conversando com o chefe da criadagem e, como que por májika, pareceu pressentir a convocação. Sem nem pensar, andou em direção ao Concorde, quem se dirigiu à janela junto com o filho. A lâmina de vidro moldada em semicírculo era tão resistente que sequer vibrava com os ventos. Kardess VII apoiou os braços na base de pedra com olhos fixos no horizonte:
— Em breve você ouvirá rumores, Irianor. Por isso já quero deixá-lo a par de tudo.
O bispo assentiu com o semblante sério, sabendo que cabia a ele continuar a conversa. O jovem contraiu as sobrancelhas sem nada entender e encarou o velho religioso, cujo rosto afável parecia tenso por baixo da mitra azul.
— Querido convalário — o velho falava docemente, — há notícias do extremo norte de que Triste Dragão do Gelo Eterno acordou e está se comportando de forma violenta… — um pouco mais baixo que o rapaz, Shutram preferiu aproximar-se bem para contar a horrível notícia olho a olho. À distância, os criados mudavam as mesinhas e cadeiras de lugar em silêncio; para eles era como se os três que conversavam junto à janela fossem invisíveis.
Arrepiado, Irianor arregalou os olhos atônito:
— Como assim? Quando? — balbuciou, olhando para os outros dois sem saber em quem se fixar.
— Acalme-se, convalário — rogou Shutram, passando a mão sobre os cabelos desgrenhados do jovem. — As providências estão sendo tomadas. Logo teremos respostas.
— Sim — assentiu o pai com um tom preocupado. — Essa é oficialmente sua primeira crise. Agora que se tornará adulto, não poderá mais ficar escondido do mundo. Preferiria que fosse algo mais ameno, mas o destino não ouve ninguém — ele apertava a base do nariz com os dedos enluvados por tecido branco.
— Não sabemos quando o Dragão de Gelo acordou… temos só suspeitas — voltou a falar o bispo. — O ministro Serdanier e o Chantecler Assiraz estão perto do Polo Norte neste momento e logo voltarão com mais informações. As imagens de satélite não ajudam muito e…
Kardess VII fez um sinal com a mão:
— Não precisa mencionar os detalhes técnicos, Shutram — censurou-o antes de encarar o filho. — Triste destruiu vários povoados isolados, matando centenas de pessoas. Esperamos poder comunicar-nos com ele através de májika… Por isso mandamos dez de nossos melhores magos.
Irianor sentia o coração pesado de pavor:
— Se foi necessário mandar o Chantecler Assiraz… — cobriu a boca.
— Exatamente – respondeu o pai. — Mandar o chefe de todos os exércitos em pessoa para encarar algo assim significa que estamos com um problema gigantesco.
— E como ficaram as coisas por lá? — Irianor perguntou.
— Não temos como saber ainda. Eu não autorizei comunicações sem fio — o Concorde cruzou os braços, pensativo. A capa negra, toda bordada em vermelho, caiu sobre o ombro e cobriu-lhe parte do peito. O símbolo do Cubo Escuro — força motriz da májika que mantém os oito Mundos de Sonho sob o poder da Mãna do Universo — reluzia na cor do ônix, inserido no medalhão de prata pura suspenso desde o pescoço.
— Filho — prosseguiu, — não quero que isso atrapalhe a cerimônia. Você faz hoje 17 anos; seu Dormir e Acordar devem ser um exemplo de nossa Casa para o mundo. As outras famílias precisam ver como tudo está sob controle. Por culpa de Zuaross, eu não posso garantir a obediência plena dos Três Exércitos — passou o dedo sobre o buço levemente coberto de suor. Em seguida olhou de soslaio para Shutram, que acrescentou:
— Discutimos isso ontem à noite, convalário… — interrompeu-se para fazer uma mesura — …e seu pai e eu concordamos que seria melhor você saber de tudo ainda hoje. Seus amigos e colegas virão para cá, e você sabe como adolescentes fofocam… Sem dúvida você ficará nervoso, algo compreensível dada a magnitude do que está acontecendo, mas rezo para que seu treinamento seja mais forte que sua emoção.
Irianor baixou a cabeça, atordoado com tantas novidades. Demorou uma eternidade para manifestar-se. Da rua, uma brisa forte entrou pelas aberturas no topo da janela e fez suas roupas bailarem. Shutram tentava amparar a mitra sobre a cabeça quando o jovem finalmente disse:
— Eu sei o que é esperado de mim… E vocês sabem o que eu penso disto tudo… — engoliu com profunda tristeza. — Espero que o destino que eu sempre vejo em sonho permaneça como um devaneio, então… Espero que eu possa… — passou a mão sobre o lado direito do rosto, confortando a si mesmo em uma tentativa vã de fazer o medo ir embora. — Espero que eu possa chegar até o fim do Dormir e do Acordar…
— Você vai, meu querido — Shutram sorriu, ainda que com consternação. — Estamos há meses preparando tudo. Consultamos os melhores magos com poderes de divinação. Todos garantiram que você atravessará a Primeira Esfera e, lá dentro, viverá seu Primeiro Sonho. As experiências inesquecíveis de seu Primeiro Sonho ficarão para sempre com você, assim como ocorreu com seus antepassados e com todos nós — sorriu com uma mescla de pena e carinho.
— Eu irei com você, meu filho. Estarei ao seu lado — o concorde falou com serenidade, mas Irianor percebeu que isso era uma farsa. Um discurso pronto e gélido que Kardess VII, ou Letrós, como era seu nome de nascimento, poderia declamar a qualquer cidadão minimamente respeitável. Havia uma aura de desaprovação que emanava do pai mesmo quando este lhe sorria, mesmo quando bebia a ponto de rir alto e cantar, sem medo de mostrar como realmente era ao festejar com suas concubinas. — Eu o guiarei até o momento único em que você deverá tomar a decisão de permitir que a Esfera de Sonho, sua Primeira Esfera, aproprie-se de você. Vocês se tornarão um só e você terá seu Primeiro Sonho. Depois disso, finalmente você será uma pessoa completa. Alguém com trânsito livre pelo oniricosmo. Será o começo de algo glorioso.
Irianor esforçou-se para dar um sorriso, como tantas vezes fizera para terminar uma conversa dessas.
— Ótimo — o Concorde fez um movimento rápido com a mão, satisfeito. Seguiu até metade do caminho e estacou de repente. — Volte ao seu quarto e se prepare — ordenou ao jovem em um tom monótono. — Uma das criadas provavelmente já separou seu uniforme do Dormir — acrescentou antes de gritar com um dos organizadores do cenário festivo por uma razão qualquer.
Shutram, por fim, pôs a mão no topo da cabeça do rapaz:
— Não deixe que a notícia sobre Triste estrague seu dia. Eu pedi a Truoss que explicasse para você e sua irmã o que se passa…
— Mas eu não preciso de explicação; a gente já leu os Evangelhos tantas vezes que…
— Não, meu querido convalário — o velho riu com apreensão, interrompendo o raciocínio de Irianor. — Isso vai além dos Evangelhos.
Irianor não soube o que dizer, portanto apenas assentiu desajeitadamente. Em uma despedida rápida, deixou os dois adultos com seus afazeres e voltou pelo corredor. Coçava a testa lentamente enquanto sua mente se ocupava com turbilhões de conjecturas e medos; revivia cada pesadelo que podia lembrar em seus dezessete anos de vida. Em todos, uma constante: o monstro de olhos vermelhos.
Ele se indagava sobre o que o tutor Truoss, o velho professor que dava aulas de reforço para os dois irmãos sempre que entravam em férias, poderia dizer sobre a estranha loucura de Triste, o único dos Sete Grandes Dragões de Outrora
ainda vivo.
Ao voltar para seu quarto, não ficou surpreso ao encontrar a cama feita e várias roupas estendidas sobre as cobertas alisadas. A criada Pramaliya, assistente pessoal dos dois convalários, havia arrumado o quarto e escolhido três opções de uniforme para o almoço de gala.
O convalário manteve-se petrificado olhando para os diferentes uniformes. Isso realmente estava acontecendo; não havia chance de acordar desse pesadelo. Queria berrar.
— Irianor? — a voz da irmã puxou-o do abismo em que caía. — Você deixou a porta aberta… e… — ela falava com um sorriso confuso, apontando para a porta atrás de si. Sua voz abandonou a alegria aos poucos ao perceber aquele olhar distante do irmão. — O que foi? O que o pai disse? — aproximou-se e acariciou o braço dele.
Irianor gaguejou:
— Não sei se eu posso contar para você… — olhou para o lado, pensativo. — O pai estava com Shutram…
— Ah. Eu já sei — voltou a cabeça de súbito, aproximando-se. Seu tom era de preocupação. — Eles me contaram ontem. Deixaram para contar para você por último… Tinham medo da sua reação.
Em um arfar cínico, Irianor afastou-se lentamente:
— Então… — pausou, furioso. — e então, como eles sabiam que eu não iria fazer escândalo no meio da criadagem… Foi por isso me chamaram justo quando tinha gente preparando tudo.
— Sim — disse a irmã. — Foi ideia do Shutram. Eles chegaram a pensar em avisá-lo ontem, quando vieram até o meu quarto. Mas eu lembrei a eles que você sempre tem aqueles pesadelos, que seria pior se o fizessem antes de você dormir…
— Mas por que não amanhã? Amanhã não seria melhor?! — explodiu em um grito desajeitado. Fechou as mãos em punho, com o rosto vermelho, mas deixou os ombros caírem quando viu o olhar calmo da irmã. — Desculpe… — falou com a voz débil.
— Eu entendo você… — ela suspirou. — Mas que escolha eles tinham? Você precisa passar pela cerimônia, mas foi um azar Triste ter ensandecido logo agora; além de que…
— Não é azar — lamentou Irianor, sentando-se na cama com as mãos sobre o rosto, quase chorando. — Não é azar. Eu sabia que isso iria acontecer…
— Ah, tá! — a moça não aguentou e cruzou os