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Variações Rítmicas Vivas na Atuação Cênica
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Variações Rítmicas Vivas na Atuação Cênica
E-book404 páginas5 horas

Variações Rítmicas Vivas na Atuação Cênica

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Sobre este e-book

O que é ritmo? O que é vida? Quais são as conexões entre ritmo, vida e atuação cênica? Quais são os princípios da arte e da vida que podem definir o que são o ritmo vivo e a atuação viva? Este livro, fruto de uma extensa pesquisa, mergulha profundamente na relação entre ritmo, vida e atuação cênica. Busca desvendar o que caracteriza um ritmo e uma atuação genuinamente vivos no palco, explorando os seus princípios artísticos e existenciais. Partindo da conceituação geral de ritmo (nos dicionários e na música), e sua diferença para andamento, o livro amplia esse conceito e sua relação com a cena viva, introduzindo o leitor na abordagem dos mestres russos do teatro: Stanislávski (e seu "teatro vivo"), Meierhold (e a biomecânica) e Vakhtângov (com o teatro orgânico), além Jaques-Dalcroze. Em seguida, na trilha dos dramaturgos russos e de outros realizadores mais recentes, como Peter Brook, o autor analisa as formas de atuação no teatro, as relações entre ator e diretor e como a cena contemporânea visa alcançar o que ele denomina "variações rítmicas vivas". Para isso, lança mão inclusive de reflexões emprestadas das ciências (principalmente da física e da biologia) e mergulha no pensamento do realizador inglês Declan Donnellan (e seu conceito de "alvo" e da atuação como um reflexo). Indo além do debate conceitual, a obra propõe os princípios e as práticas para o trabalho do ator. De forma criativa, aqui e ali ao longo do texto, o leitor irá se deparar com recursos tipográficos, esquemas, quadros, ilustrações e imagens que o autor utiliza com o intuito de proporcionar ao leitor uma experiência que ultrapasse em parte o signo verbal.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de jan. de 2025
ISBN9786555052244
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    Variações Rítmicas Vivas na Atuação Cênica - Vinícius Albricker

    1: O Ritmo

    A vida, por si mesma, é um ritmo, ou seja, uma sucessão de múltiplas unidades, formando um todo indivisível.

    Émile Jaques-Dalcroze

    No princípio era o Ritmo. Isso significa que o Ritmo era deus? Não. É possível que o Ritmo seja anterior a tudo; ao mesmo tempo, a gênese e o fim – e tudo que está entre a gênese e o fim – e de todas as relações entre tudo que existe e existiu de forma concreta ou abstrata. Assim, podemos imaginar que o Ritmo tenha sido o princípio que criou, inclusive, os deuses e lhes soprou divindade. O Ritmo também poderia ter acionado o Big Bang. E é bom observar o seguinte: se o Ritmo criou tudo, também deu origem, contrastivamente, ao nada. Afinal, um não pode existir sem o outro. Como veremos ao longo deste livro, o contraste é um fundamento intrínseco ao ritmo e especialmente indispensável ao ator[6].

    O Ritmo é uma entidade tão metódica e didática quanto impetuosa e sublime. Seu temperamento é essencialmente polirrítmico, resultando em contrastes e contraposições, que podem ser concreta ou potencialmente perceptíveis. Por isso, este capítulo assume, na própria escrita, variações rítmicas que propõem contrastes ora súbitos ora gradativos entre construções didáticas e sublimações. Em outras palavras, vamos fazer uma viagem por um fantástico universo onde ter os pés no chão e viver no mundo da lua podem existir simultaneamente, gerando, pelo menos, uma terceira possibilidade: a de viver no mundo da lua com os pés no chão.

    Para começar, paro de falar sobre essa entidade, o Ritmo, com inicial maiúscula, para refletir sobre o fenômeno ritmo, com inicial minúscula, e suas implicações na arte de atuar. Para isso, desenvolverei a argumentação a partir das seguintes questões:

    O que é ritmo?

    O que são variações rítmicas?

    São importantes? Por quê? Para quê?

    O que as variações rítmicas representam na atuação cênica?

    Ernani Maletta logra liberar o conceito de polifonia das grades conceituais exclusivas da música[7]. Tenho o mesmo intento, mas em relação ao conceito de ritmo. Intento esse nada original, tendo em vista que tal conceito é largamente abordado em publicações de outras áreas do conhecimento que não a música, como, por exemplo, a literatura, a dança, as artes visuais, a semiologia, a arquitetura e a biologia. No âmbito prático das artes da cena, entretanto, apesar de haver alguns trabalhos sobre esse conceito, percebo uma insistente limitação que confina o ritmo nos domínios da acepção musical de andamento. Vale ressaltar que, mesmo após um século da publicação de diversos e valiosos escritos de Jaques-Dalcroze, a arte música – pelo menos na cultura do mundo ocidental – continua demasiadamente presa a convenções métricas, seguindo superficial em relação ao temperamento, princípio que, como veremos mais adiante, é indispensável para esse autor, na dimensão rítmica da música, da dança e até da vida.

    Para ampliar o conceito de ritmo e delineá-lo para além de questões métricas, aplicando-o ao universo da atuação cênica, dialogo com referências do teatro e da música que contribuem para seu entendimento. Mas para que adotar referências da área da música se acabo de dizer que pretendo liberar o ritmo das grades conceituais dela? Para poder abrir essas grades e nos surpreender com perspectivas diferentes que possam inspirar os artistas cênicos, principalmente os atores. É possível extrair da própria música considerações libertas de dogmatismos métricos, que vão me ajudar a elucidar, ao longo de todo este trabalho, aquilo que chamo de variações rítmicas vivas na atuação cênica. É importante dizer que não desprezarei a métrica. Considero indispensável compreender alguns de seus fundamentos para, então, poder ir além.

    O Que Dizem os Dicionários de Teatro Sobre Andamento e Ritmo?

    Constatei que não há definição para o termo andamento em três grandes obras de referência, apesar de apresentarem verbetes sobre o ritmo e o tempo nas artes da cena.

    Pavis parte da métrica do texto poético, considerando a prosódia e a versificação, em uma perspectiva semiológica, para afirmar que os ritmos produzidos e estabelecidos na encenação de um texto estão associados à produção e ao estabelecimento de sentidos (espetáculo → espectador). O autor também faz referência ao ritmo fisiológico, citando a respiração e a circulação sanguínea e salientando que sua gênese ocorre, basicamente, em dois tempos: inspiração/expiração, tempo forte (marcado)/tempo fraco (não marcado). O autor aplica o mesmo esquema de oposições aos ritmos da ação teatral da dramaturgia clássica: ascensão/queda da ação, nó/desenlace, paixão/catarse etc.[8]. Esse raciocínio de Pavis acerca de polos contrastantes contribui para o estudo do ritmo, como veremos mais adiante. Contudo, as ponderações desse autor focam demais as questões de dramaturgia e encenação e apenas tangenciam os aspectos rítmicos específicos da arte do ator em cena.

    O léxico organizado por Sarrazac traz um artigo sobre ritmo escrito por Geneviève Jolly. Apesar de não definir o conceito de ritmo, a autora propõe dissociá-lo de uma concepção tradicional (a ‘métrica’ dos versos ou a ‘expressividade’)[9]. Partindo de pressupostos do poeta e linguista Henri Meschonnic, Jolly aborda o ritmo na linguagem escrita e oral. Nesse sentido, a autora menciona o papel da pontuação e da tipografia no ritmo estruturado pela diagramação da linguagem escrita. Ela observa, também, a importância do branco tipográfico como recurso rítmico do drama contemporâneo, não restrito apenas a indicações de pausas e silêncios. Quanto à linguagem oral, Jolly apenas cita a relevância das consoantes e das vogais no ritmo prosódico, mas sem buscar o entendimento do ritmo na atuação cênica.

    Eugenio Barba, por sua vez, aborda o ritmo exatamente no que diz respeito à arte do ator, enfatizando o papel das pausas em sua composição: o ator torna-se ‘ritmo’ não apenas por meio de movimento, mas por meio de uma alternância de movimentos e repousos[10]. Esses movimentos e repousos do ator é que, parafraseando o autor, esculpem o tempo para o ritmo se tornar tempo-em-vida[11].

    Barba forja o termo pausa-transição para se referir às transições entre as ações consecutivas, salientando que a maestria do ator em saber quando dilatar mais ou menos esse tipo de pausa afetará diretamente a qualidade da recepção. Ele também chama a atenção para o senso cinestésico – a consciência das qualidades de tensões dos nossos corpos e dos outros – como aspecto fundamental para o desenvolvimento rítmico da atuação: o senso cinestésico leva o espectador, muitas vezes, a descobrir qual é a intenção do ator antes que ele a realize, destruindo o efeito surpresa que a ação deveria provocar[12]. Retomarei essa questão quando abordar a reação e a atuação cênica viva, mais adiante.

    O Que Dizem os Dicionários de Música Sobre Andamento e Ritmo?

    No Dicionário Grove de Música, encontrei esta sucinta definição de andamento: indicação da velocidade em que uma peça musical deve ser executada[13]. Para desenvolver a habilidade de sustentar um andamento durante a execução de uma peça musical, musicistas costumam utilizar um metrônomo. Tal dispositivo pode ser regulado para marcar sonoramente batidas constantes em uma velocidade escolhida. Hoje em dia, há diversos metrônomos digitais disponíveis em sites da internet e aplicativos de celular. Antes da invenção do metrônomo, utilizava-se como referência um pêndulo, a pulsação cardíaca, ou outros meios[14].

    No Oxford Music Online, há artigos recentes com discussões teóricas e aspectos históricos sobre o andamento. Em um desses, Justin London afirma que o andamento está entrelaçado ao nosso senso de pulso e metro, pois, sem uma série regular de pulsos, é difícil imaginar algum senso de andamento qualquer[15]. O metro remete à métrica que, para Latham, é a dimensão da arte musical que mede a música em pulsos regulares, que são organizados em pulsações que, por sua vez, formam agrupamentos chamados de compassos[16]. Para Sadie, a disposição da pulsação em grupos é a métrica de uma composição, e a velocidade das pulsações é o seu andamento[17]. Na reflexão que proponho na próxima seção, esses termos devem começar a fazer sentido ao leitor não habituado à terminologia musical.

    Apesar de a regularidade ser uma condição para o estabelecimento do andamento musical, é muito raro que as durações entre os pulsos sejam exatamente iguais. A precisão exata da música feita no computador com instrumentos virtuais pode causar grande estranheza a quem ouve, já que o cérebro humano pode captar e apreciar a regularidade de musicistas tocando ao vivo, sem trazer à consciência as mínimas inexatidões naturais do andamento estabelecido por seres humanos. A propósito, os pesquisadores Scholes, Nagley e Latham atestam que, no século XIX, a marcação do metrônomo não era tida como muito confiável[18]. Segundo esses autores, famosos compositores, como Brahms, mostravam-se avessos à rigidez imposta por esse dispositivo.

    Já para o termo ritmo, encontrei dezenas de páginas com definições e discussões sobre seus aspectos nos dicionários de música citados acima. Em uma síntese dessas referências, o ritmo é formado por uma grande variedade de possíveis padrões de duração musical [incluindo sons e pausas], tanto regulares como irregulares[19]. A relação do ritmo com a métrica é bastante complexa. Esses dicionários afirmam, por exemplo, que em toda música há ritmo, mas nem toda música é mensurável em unidades métricas. Segundo Sadie, em alguns tipos de música antiga, por exemplo, no cantochão eclesiástico, ao qual aparentemente faltava uma estrutura métrica, [o ritmo era realizado] de acordo com as convenções e conforme ditado pelo texto verbal[20].

    Em função da métrica, esses dicionários classificam o ritmo em três tipos: o ritmo métrico, com seus pulsos e compassos perceptíveis (como em Sonata ao Luar, de Beethoven); o ritmo não métrico, sem qualquer percepção de unidade de medida que pudesse estabelecer um andamento (como em Atmosphères, de György Ligeti); e o ritmo amétrico, que se forma em uma temporalidade dilatada e múltipla que transcende a métrica (como na floresta de polirritmias de Chronochromie, de Olivier Messiaen, criador do termo ritmo amétrico)[21].

    Para facilitar a compreensão dessas relações entre ritmo e métrica, apresento a seguir três ilustrações que representam, respectivamente, trechos musicais de ritmo métrico, ritmo não métrico, e ritmo amétrico. Nessas ilustrações (imagens 2, 3 e 4), os segmentos em tons de cinza representam os movimentos rítmicos dos trechos musicais escolhidos. Já o paralelogramo listrado, presente apenas nas imagens 2 e 4, representa o plano métrico da música.

    Imagem 2. Ritmo métrico

    Imagem 3 – Ritmo não métrico

    Imagem 4 – Ritmo amétrico

    Na imagem 2, da representação do ritmo métrico, percebo uma regularidade no movimento dos dois segmentos paralelos. Noto também que o movimento rítmico representado por esses segmentos coincide precisamente com as linhas diagonais do plano métrico. Já na imagem 3, do ritmo não métrico, constato a ausência do plano métrico. Dessa forma, observo que os segmentos na cor cinza sugerem um movimento rítmico esférico e rotacional: os sons giram e giram, causando uma sensação estacionária de expectativa. Por fim, na imagem 4, do ritmo amétrico, percebo que os segmentos transcendem o plano métrico e lhe provocam distorções. A movimentação intrincada desses segmentos sugere uma qualidade rítmica difícil de quantificar: o plano métrico existe, mas não persiste.

    Sadie ressalta que mesmo nos períodos em que aceitavam a ‘tirania da barra de compasso’ [absoluta conformidade com a métrica musical] os compositores usaram vários recursos para evitar estruturas rítmicas monótonas e estéreis[22]. Entre esses recursos estão, por exemplo, a síncope, que desloca os acentos sonoros em relação aos acentos métricos que demarcam os compassos. A síncope pode ocorrer de diversas formas, como pelo encurtamento da duração de um som e/ou pelo aumento da sua intensidade em um momento em que a expectativa, decorrente da regularidade métrica, era de um som mais longo e/ou menos intenso. O ritmo sincopado é muito comum em gêneros musicais como o jazz e o samba. Voltarei a falar da síncope mais adiante.

    Para complementar esse estudo, vejamos mais uma explicação de ritmo advinda da música: A palavra ritmo é usada para descrever os diferentes modos pelos quais um compositor agrupa os sons musicais; principalmente do ponto de vista da duração dos sons e de sua acentuação. No plano do fundo musical, haverá uma batida regular, a pulsação da música (ouvida ou simplesmente sentida), que serve de referência ao ouvido para medir o ritmo.[23]

    Bennett mostra que o ritmo está atrelado às durações dos sons musicais e também, implicitamente, às durações das possíveis pausas entre esses sons, sempre em relação a determinado andamento. Entendido assim, o ritmo tem sido útil há séculos para músicos de variados estilos, das tendências ditas clássicas às proclamadas populares, pelo menos na cultura ocidental. Mas e para o ator de teatro? Será que essa perspectiva métrica do ritmo lhe é tão proveitosa quanto o é para o músico? Falarei disso mais adiante.

    Em resumo, o andamento musical mede a velocidade de uma sequência de pulsos que compõem uma pulsação que divide o tempo em compassos, nos quais são distribuídas variadas combinações de diferentes durações de sons e pausas que se alternam entre curtas e longas, fortes e suaves. Essas combinações ora se repetem, ora se dissolvem, ora se desenvolvem, ora se dividem, ora se escalonam, dentre outras infinitas variações, dando origem ao ritmo musical. O ritmo se trata, portanto, de um jogo de durações e intensidades entre sons e pausas dentro de um andamento dividido em compassos (ritmo métrico). Vimos que o ritmo também pode transcender a métrica (ritmo amétrico), ou até mesmo existir sem esta (ritmo não métrico). Em todos os casos, o ritmo musical se faz de um jogo de durações e intensidades entre sons e pausas, independentemente de quão largas ou curtas sejam essas durações.

    Cronos ou Kairós?

    Quando ouvimos o início de Atmosphères, de Ligeti (ritmo não métrico), podemos ter a sensação de estarmos envoltos em sons longos e estacionários que giram infinitamente sem plano métrico. Porém, essa não é a única sensação possível, pois a nossa atenção também pode metrificar o ritmo não métrico: se focarmos a atenção na vibração do som, poderemos notar que daquela massa de sons contínuos da orquestra surgem ciclos vibratórios – alguns longos, outros curtos –, que são perceptíveis devido ao encontro das ondas sonoras dos vários instrumentos, cujos pontos coincidentes resultam em momentos de maior intensidade. Esses momentos de maior intensidade podem dar a sensação de emergir um ritmo métrico ou amétrico do ritmo não métrico, pois os ciclos vibratórios criam variadas pulsações no interior da sonoridade contínua.

    O ritmo musical se dá no tempo. Portanto, a relação do ouvinte com o tempo é que o permitirá ouvir um ritmo métrico, amétrico ou não métrico. Da mesma forma que, como argumentei no parágrafo anterior, o ouvinte pode metrificar o não métrico, ele também pode desmetrificar o ritmo métrico, apesar da intenção do compositor. A Sonata ao Luar, de Beethoven, por exemplo, apesar de entrar na categoria de ritmo métrico, pode causar em alguém a sensação de uma fluidez ininterrupta até mais nítida do que o ritmo não métrico de Atmosphères, de Ligeti. Tudo depende da relação do ouvinte com a música, da subjetividade da sua escuta. E a escuta dependerá da relação que cada um de nós tem com o tempo, se somos mais parecidos com Cronos ou com Kairós.

    Lembremos que, na mitologia grega, há dois deuses do tempo: Cronos, o ceifador do tempo, aquele que o subdivide em partes cada vez menores (os anos, os meses, os dias, as horas…), ordenando-as em sequência linear e cronológica diante de nós; e Kairós, a representação do momento fluido e indivisível, aquele que nos possibilita viver o tempo de maneira imensurável, apegando-nos não à sua passagem cronológica, mas às experiências sensoriais e emocionais que ele nos proporciona. Em outras palavras, Cronos seria aquele que controla a dimensão da quantidade supostamente mensurável do tempo, enquanto Kairós seria o guardião de sua qualidade[24]. Para melhor imaginar o tempo de Kairós, podemos tentar percebê-lo em camadas aleatórias que vão se desdobrando, como na sugestão de Novarina de que o tempo não é uma linha, muito pelo contrário! Mas se desdobra, se abre, se desenvolve, se cruza e multiplica, ele reina por desdobradura sem limite[25].

    Nesse sentido, convém abordar Henri Bergson (1859-1941), para relacionar suas ideias a essa distinção entre Cronos e Kairós, em particular, o conceito de duração que se opõe à ideia de tempo compartimentado. O tempo cronológico (de Cronos), ou o do relógio, é, para Bergson, uma mera invenção da nossa consciência analítica, para tentar domar um processo que, na realidade, não é linear nem feito de instantes iguais e sucessivos[26]. Para o filósofo, o tempo real é o tempo que dura e não pode ser analisado, mas somente sentido e vivido em sua experiência totalmente indivisível (semelhante ao tempo de Kairós). Para ele, a duração é o tempo em sua qualidade, em que cada instante é diferente um do outro, sempre imprevisível, não linear, seguindo um fluxo que implica o prolongamento ininterrupto do passado num presente que invade o futuro[27]. Entendo o conceito de duração, de Bergson, como o tempo contínuo que sentimos e intuímos internamente como um processo incalculável de constante transição e transformação. Para tentar facilitar a compreensão do complexo conceito de duração, de Bergson, transcrevo a seguir o elucidativo exemplo de Eduardo Socha:

    Você está parado no trânsito às seis da tarde. Ouve a rouquidão opaca dos motores dos ônibus, o zumbido das motos, a impaciência ocasional das buzinas. O tempo parece amordaçado como se não quisesse fluir também. Então você resolve tirar do bolso seu tocador de mp3, ajeitar bem os fones de ouvido e escolher uma faixa do álbum predileto. Sua experiência do tempo vai assumindo outra feição, e os instantes passam a se amalgamar uns aos outros com uma qualidade bastante distinta do tempo anterior. A quantidade de tempo não muda: um segundo continua um segundo, tautologia assegurada pela isocronia do ponteiro (ou display) do relógio. Mas você sente agora que os instantes se dilatam e se contraem segundo uma contingência peculiar, promovida pelo encadeamento sonoro da música.[28]

    A questão filosófica do tempo e da duração é muito interessante, mas ultrapassa os limites deste trabalho. Citei Bergson por estes dois motivos: 1. para complementar o raciocínio sobre diferentes percepções do tempo (Cronos e Kairós) e, consequentemente, problematizar a questão das três classificações de ritmo (métrico, não métrico e amétrico); e 2. advertir que utilizo a palavra duração no entendimento do senso comum: um espaço ou fatia de tempo, delimitação de duração de um ato específico (por exemplo, um som, uma pausa, um gesto, uma tarefa, uma reação, uma postura, um movimento). Não falo de uma duração necessariamente exata, ou medida com precisão, mas de reconhecer fronteiras entre eventos e, assim, diferenciá-los para compreender suas relações (em cena, por exemplo, determinado movimento do ator pode durar mais ou menos tempo, dependendo da situação dramatúrgica e dos desígnios da personagem)[29].

    Diferenças Entre Andamento e Ritmo na Atuação Cênica

    A partir de um raciocínio fundamentado nos princípios da métrica e da matemática, Ernani Maletta explica metodicamente uma diferenciação entre andamento e ritmo para contribuir com a atuação cênica.

    Na definição de Maletta, o andamento é "a velocidade média segundo a qual o evento, como um todo, é executado"[30]. Para o autor, esse conceito é análogo ao que na física é chamado de velocidade média, comumente medida em quilômetros por hora (km/h) e metros por segundo (m/s). Também podemos estender essa definição ao cinema, que mede o andamento em frames per second (fps), normalmente 24 fps, ou seja: 24 quadros por segundo de filme. Já o andamento de uma música costuma ser medido em batidas por minuto (bpm). Em um relógio, por exemplo, o ponteiro dos segundos segue o andamento de 60 bpm.

    Na métrica musical, essas batidas são chamadas de pulsos, que estão para uma obra musical assim como o minuto está para o dia. Ou seja, como vimos na seção anterior, o pulso é a unidade de medida convencionalmente padronizada para metrificar a passagem do tempo musical. O conjunto de pulsos forma uma pulsação que estabelece compassos, analogamente, os minutos do tempo de Cronos determinam as horas, os períodos dos dias, semanas, meses e por aí afora.

    Por enquanto, importa ressaltar que os pulsos, as batidas, nem sempre são audíveis. Podemos ouvi-las explicitamente, por exemplo, quando são marcadas pelo som regular de um ou mais instrumentos percussivos (como os ataques simultâneos de bumbo, surdo e chimbal em Seven Nation Army, do duo The White Stripes) ou até mesmo da melodia (como as doze primeiras notas da melodia principal de Ode à Alegria, na Nona Sinfonia de Beethoven). Mas também podemos perceber essas batidas, apesar de não serem audíveis, quando os sons musicais não coincidem por completo com os pulsos (como no início de Carry On Wayward Son, da banda Kansas, que começa com um coro de vozes entremeado por pausas no momento de algumas dessas batidas). O que nos possibilita perceber os pulsos que não são marcados por algum som é a regularidade da pulsação. Dentre as músicas mais difundidas no rádio, na TV e no cinema, são raras as que não possuem um andamento perceptível e regular: quase tudo que toca nessas mídias provoca uma reação espontânea de bater os pés, os dedos, as mãos ou até pular e se movimentar seguindo os pulsos regulares que caracterizam o andamento da música.

    Mas e no teatro? É possível medir o andamento de uma cena? Em contraste com a música, os espetáculos de teatro não costumam acontecer com um andamento perceptível, pelo menos não no nível das bpm. Sem dúvida, há exceções, por exemplo, um espetáculo todo elaborado coreograficamente a partir de trilhas musicais: nesse caso, ao mesmo tempo, atores e espectadores podem perceber o andamento do espetáculo em bpm. Porém, quando não há o recurso musical, a velocidade média dos espetáculos teatrais parece imensurável, resultando de uma complexa teia entrelaçada por diversos fatores. Nesse sentido, os atores e os espectadores podem perceber o andamento de uma peça ao acompanhar as mudanças de luz e de cenário, os deslocamentos corporais no espaço cênico, as palavras pronunciadas, os ruídos e movimentos dos objetos, enfim, a ação de tudo isso sobre eles. Nessa perspectiva, é difícil indicar esse andamento com um número absoluto, pois o andamento cênico pode ser percebido como uma polifonia de andamentos.

    Quando fala sobre a polifonia cênica, Maletta salienta que há um ponto em comum entre os discursos da imagem, do movimento, do som e da palavra: todos realizam ações que compõem a dramaturgia do espetáculo[31]. O ator domina esses discursos e compõe suas ações basicamente com movimentos, posturas, deslocamentos e pausas corporais, incluindo sons ou não. Por isso, considero que a ação é para a cena o que o pulso é para uma peça musical: sua unidade de medida – mesmo que não haja, no caso da ação, a mesma precisão que o pulso pressupõe na perspectiva da métrica musical.

    Ao estabelecer seu sistema, Stanislávski investigou profundamente o conceito de ação física[32], do qual os elementos tarefa, propósito e circunstâncias propostas nos permitem desenvolver essa reflexão sobre andamento e ritmo na atuação cênica. Adiante, apresentarei reflexões mais aprofundadas sobre esses elementos e sobre a ação física. Por enquanto, é suficiente compreender que uma ação física não é algo tão simples como arrumar a casa. Isso seria uma tarefa. Para realizar uma ação física, o ator precisa complementar essa tarefa com um propósito adequado às circunstâncias propostas. Vejamos um exemplo:

    Circunstâncias propostas: o ator interpreta o dono de uma empresa pequena que despertou o interesse de um milionário investidor estrangeiro que quer, urgentemente, visitá-lo em sua casa para uma reunião de negócios. Tudo parece conspirar positivamente para o dono da empresa, exceto pelo fato de que a sua casa está uma bagunça;

    Tarefa: arrumar a casa;

    Propósito [de arrumar a casa]: impressionar o milionário investidor estrangeiro.

    Nesse exemplo, considerando as circunstâncias propostas, temos a ação física de arrumar a casa para impressionar o milionário investidor estrangeiro. Levando em conta a perspectiva de Stanislávski de que uma ação física é mais complexa que uma tarefa, reformularei agora a afirmação anterior – de que a ação é para a cena o que o pulso é para uma peça musical; assim, sem a pretensão de fazer uma comparação absoluta, a tarefa é para a cena o que o pulso é para uma peça musical: sua unidade de medida.

    Maletta contribui na investigação dessa questão, sugerindo o exemplo de uma hipotética cena que pudesse ser dividida em uma sequência de três ações realizadas por um ator. A seguir, adapto essa sequência para três tarefas, em vez de ações:

    I. Entrar na sala;

    II. Olhar para um grupo de pessoas que está nessa sala;

    III. Sair da sala.

    Retomando a definição: andamento é a velocidade média segundo a qual o evento, como um todo, é executado[33]. Então, imaginemos que essa cena inteira – o evento, como um todo – seja executada em nove segundos. Dessa forma, o andamento dessa cena seria de uma tarefa para cada três segundos. Ou seja, teoricamente, cada uma das três tarefas duraria exatamente três segundos, dividindo o tempo em três durações idênticas. No esquema abaixo, o andamento é representado graficamente pela sequência de círculos preenchidos na cor preta, que representam o que seriam, em música, os pulsos da pulsação fundamental:

    Esquema 2 – Andamento (uma tarefa para cada três segundos).

    Se essa cena tivesse uma duração total de seis segundos em vez de nove, o seu andamento seria de uma tarefa para cada dois segundos. Esquematicamente:

    Esquema 3 – Andamento (uma tarefa para cada dois segundos).

    Podemos inferir que o esquema 3 representa um andamento mais rápido do que o esquema 2, pois a realização das mesmas três tarefas, nos dois esquemas, ocorre em menos tempo no esquema 3. Além disso, podemos imaginar que esses dois exemplos de andamentos diferentes resultariam em cenas distintas, com sensações diferentes tanto no espectador como no ator. Como constatei no estudo do texto de Maletta, os sentidos dramatúrgicos são influenciados pelos andamentos das cenas.

    Assim, no esquema 2, para que a duração de três segundos para cada tarefa seja dramaturgicamente justificada – isto é, para que o andamento "uma tarefa para cada três segundos" faça sentido –, podemos imaginar os propósitos que complementariam essas tarefas e, também, as circunstâncias propostas que deflagrariam a cena. Vejamos:

    1. O funcionário de uma empresa entra na sala para participar de uma reunião de trabalho [três segundos].

    2. Olha para as pessoas que estão lá dentro para verificar quem já está presente e percebe que o seu chefe ainda não está [três segundos].

    3. Sai da sala para tomar um café [três segundos].

    Já no segundo exemplo (esquema 3), cujas tarefas são executadas no transcorrer de dois segundos cada, podemos imaginar um contexto um pouco diferente do anterior:

    1. O funcionário de uma empresa, que está um pouco atrasado para uma reunião, entra na sala [dois segundos].

    2. Olha para as pessoas que estão lá dentro e percebe que entrou na sala errada [dois segundos].

    3. Sai da sala, antes que os presentes notem a sua presença, para procurar a sala correta [dois segundos].

    Se um ator realizasse a cena do esquema 2, com suas tarefas e propósitos específicos, utilizando o andamento do esquema 3, provavelmente, essa cena perderia conexão com suas circunstâncias propostas e não seria executada de maneira adequada. O mesmo valeria para a operação contrária: fazer a cena do esquema 3 com o andamento do esquema 2.

    Até aqui, podemos concluir que o andamento é um conceito importante no teatro, na medida em que atores e diretores podem experimentar cenas em andamentos diversos para escolher o mais adequado à proposta dramatúrgica, seja esta uma criação que parta de um texto prévio ou não – pois o texto, sendo ou não registrado por escrito, pode até mesmo ser elaborado a partir de experimentos com diversos andamentos. Entretanto, no dia a dia teatral, atores, diretores e professores costumam se limitar às mudanças de andamento, sem explorar as possibilidades rítmicas das cenas que desenvolvem. Também é muito comum ouvir a palavra ritmo ser limitada e utilizada em contextos em que andamento

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