Michael Connelly - O Eco Negro

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O ECO NEGRO Michael Connelly

Michael Connelly decidiu que seria escritor quando descobriu os livros de Raymond Chandler na Universidade da Florida. Nesse sentido, licenciou-se em jornalismo e fez um curso de escrita criativa. Depois de trs anos como jornalista, especializado em casos de polcia, comeou a escrever o seu primeiro romance O Eco Negro (The Black Echo) em que a personagem principal o detective Hieronymus Bosch. Seguiram-se mais trs livros protagonizados pelo inspector Bosch e vrios outros fora desta srie. Michael Connelly, que hoje um escritor de culto nos Estados Unidos, vive em Los Angeles, cidade onde se desenrola a aco dos seus livros.
Michael Connelly

O Eco Negro
Agradecimentos

Este livro para W. e Mary McEvoy Connelly ttulo da edio original: The Black Eibo Copyright 1992 by

Gostaria de agradecer s seguintes pessoas a ajuda e o apoio que me deram: Muito obrigado ao meu agente, Philip Spitzer e minha editora, Patrcia Mulcahy, por todo o seu imenso trabalho, entusiasmo e f neste livro. Muito obrigado tambm aos muitos agentes da polcia que, ao longo dos anos, me tm dado a conhecer os seus empregos e vidas privadas. Tambm quero exprimir o meu reconhecimento a Tom Mangold e John Pennycate, cuja obra The Tunneh of Cu Chi relata a histria verdadeira dos ratos dos tneis da Guerra do Vietname. Por ltimo, gostaria de agradecer minha famlia e aos meus amigos pelo encorajamento e apoio impossveis de qualificar. E, acima de tudo, estou em dvida para com a minha mulher, Linda, cuja f e inspirao nunca esmoreceram.

PARTE I Domingo, 20 de Maio

O rapaz no conseguia ver no escuro, mas no precisava. A experincia e uma


grande prtica disseram-lhe que estava bom. Limpo e uniforme. Traos suaves, movendo o brao inteiro enquanto rodava gentilmente o pulso. Mantendo o berlinde em movimento. Sem pingos. Lindo. Ouvia o silvo do ar a sair e conseguia sentir o rolar do berlinde. Eram sensaes que o confortavam. O cheiro recordou-lhe a pega dentro da algibeira e pensou em apanhar uma pedrada. Talvez a seguir, decidiu. No queria parar agora, no queria parar at ter acabado a alcunha com um nico trao ininterrupto. Mas, de repente, parou quando o som de um motor se sobreps ao do silvo da lata de spray. Olhou em volta, mas no viu luz nenhuma excepto a do reflexo branco prateado da lua no reservatrio e da lmpada fraca por cima da porta da casa das bombas, que ficava a meio caminho do outro lado da barragem. Mas o som no morreu. Havia um motor a aproximar-se. Ao rapaz, parecia-lhe um camio. E agora achava que conseguia ouvir o barulho dos pneus a esborrachar o cascalho da estrada de acesso que rodeava o reservatrio. Estava a aproximar-se. Quase trs da manh e havia algum a aproximar-se. Porqu? O rapaz levantou-se e atirou a lata de aerossol por cima da vedao, para a gua. Ouviu-a bater no matagal, falhando o alvo por pouco. Tirou a pega do bolso e decidiu-se por uma rpida inalao apenas para ganhar coragem. Enfiou o nariz na meia e inspirou furiosamente os vapores da tinta. Balanou para trs nos calcanhares e as plpebras piscaram involuntariamente. Atirou a meia por cima da vedao. O rapaz levantou a mota e empurrou-a para o outro lado da estrada, de volta erva alta e aos arbustos de cavalinha e aos pinheiros no sop da colina. Era um bom esconderijo, pensou ele, e poderia ver o que estava a chegar. O barulho do motor

era agora mais forte. Ele tinha a certeza de que estava apenas a uns segundos de distncia, mas no via o claro dos faris. Isto confundia-o. Mas era demasiado tarde para fugir. Deitou a mota na erva alta e castanha e parou o rodar da roda da frente com a mo. Depois, colou-se ao cho e ficou espera do que estava para chegar, de quem estava para chegar. Harry Bosch conseguia ouvir o helicptero l em cima, algures por cima da escurido, s voltas na luz. Por que que no aterrava? Por que que no trazia ajuda? Harry estava a deslocar-se por um tnel escuro e cheio de fumo e as pilhas estavam a acabar. O claro da lanterna ia ficando cada vez mais fraco em cada metro percorrido. Precisava de ajuda. Precisava de se mover mais depressa. Precisava de chegar ao fim do tnel antes da luz se acabar e ele ficar sozinho na escurido. Ouviu o helicptero dar mais uma volta. Por que que no aterrava? Onde que estava o auxlio de que ele precisava? Quando o zumbido das ps se voltou a afastar, sentiu o terror crescer e moveu-se mais depressa, rastejando sobre os joelhos esfolados e a sangrar, uma mo a levantar a luz fraca, a outra a apalpar o cho para se equilibrar. No olhou para trs, pois sabia que o inimigo estava atrs dele na escura nvoa. Invisvel, mas estava l. E a aproximar-se. Quando o telefone tocou na cozinha, Bosch acordou imediatamente. Contou os toques, perguntando-se se teria perdido o primeiro ou o segundo, perguntando-se se teria deixado o atendedor de chamadas ligado. No tinha. A chamada no foi atendida e os toques no pararam seno depois dos oito exigidos. Distraidamente, interrogou-se de onde que teria vindo aquela tradio. Por que no seis toques? Por que no dez? Esfregou os olhos e olhou em redor. Estava outra vez enfiado na cadeira da sala, a confortvel poltrona reclinvel que era a pea central do seu escasso mobilirio. Considerava-a a sua cadeira das vigias. Contudo, isto era uma denominao errnea, porque ele dormia frequentemente na cadeira, mesmo quando no estava de servio. A luz matinal atravessava a abertura nas cortinas e recortava a sua marca no cho de pinho claro. Ele observou as partculas de p que flutuavam preguiosamente na luz junto da porta de vidro de correr. A lmpada do candeeiro, na mesa ao lado dele, estava acesa e a televiso encostada parede, com o som muito baixo, transmitia um daqueles programas de Jesus das manhs de domingo. Na mesa ao lado da cadeira, estavam os companheiros da insnia: cartas de jogar, revistas e romances policiais - estes apenas rapidamente folheados e logo abandonados. Havia um mao de cigarros amachucado em cima da mesa e trs garrafas de cerveja vazias de marcas variadas que outrora tinham feito parte de pacotes de seis da mesma tribo. Bosch estava completamente vestido, incluindo uma gravata amarrotada presa camisa branca com um alfinete de prata do 187. Levou a mo ao cinto e depois para trs, para a zona por baixo dos rins. Esperou. Quando o pager electrnico tocou, desligou o apito irritante num segundo. Tirou o aparelho do cinto e olhou para o nmero. No se surpreendeu. Levantou-se da cadeira, espreguiou-se e descontraiu as articulaes do pescoo e da nuca. Dirigiuse para a cozinha onde estava o telefone em cima do balco. Escreveu: Domingo, 8:53 A.M. num bloco de notas que tirou do bolso do casaco antes de marcar o nmero. Ao segundo toque, uma voz disse: - Departamento da Polcia de Los Angeles, Diviso de Hollywood. Daqui o agente Pelch, em que que o posso ajudar? Bosch disse: - Uma pessoa pode morrer no tempo que demoras a deitar isso tudo c para fora. Deixa-me falar com o sargento de servio. Bosch descobriu um mao de cigarros ainda fechado no armrio da cozinha e acendeu o primeiro cigarro do dia. Limpou o p a um copo e encheu-o com gua da torneira, depois tirou duas aspirinas de um frasco de plstico que tambm estava no armrio. Estava a engolir a segunda quando, finalmente, um sargento chamado Crowley atendeu a chamada. - O qu, apanhei-te na igreja? Telefonei para tua casa. Ningum atendeu. - Crowley, o que que tens para mim? - Bem, eu sei que te fizemos sair ontem noite naquela coisa da TV. Mas continuas

de servio. Tu e o teu parceiro. Todo o fim-de-semana. Portanto, isso quer dizer que ficas com o DB1 do Lago Hollywood. Dentro de um cano l em cima. Fica na estrada de acesso Barragem Mulholland. Sabes onde ? - Conheo o stio. Mais alguma coisa?
DB em ingls Dead Body: cadver. (N. T.)

- A patrulha j saiu. O ME e o SID j foram notificados. A minha gente no sabe o que que l tem, excepto que um DB. O corpo est uns nove metros dentro do cano. No querem entrar l dentro, lixar uma possvel - cena de crime, percebes? Mandei-os contactar o teu parceiro pelo pager, mas ele ainda no telefonou para c. Tambm no responde de casa. Pensei que se calhar vocs os dois estavam juntos ou qualquer coisa dessas. Mas depois pensei, no, ele no o teu estilo. E tu no s o dele. - Eu contacto-o. Se eles ainda no entraram l, como que sabem que um DB e no apenas um tipo qualquer a dormir? - Oh, eles entraram um bocadinho, sabes, e levaram um pau, ou qualquer coisa do gnero, e espetaram o tipo um bom bocado. Teso como um carapau. - Eles no queriam lixar a cena de um crime, mas foram pr-se a espetar o corpo com um pau? Que maravilha. Estes tipos entram para isto mal saem da faculdade ou qu? - Ei, Bosch, recebemos uma chamada, temos de ir ver. OK? Queres que a gente passe todas as nossas chamadas sobre cadveres directamente para os homicdios sem verificarmos? Vocs ficavam malucos ao fim de uma semana. Bosch esborrachou a ponta do cigarro no lava-louas de ao inoxidvel e olhou para fora pela janela da cozinha. Olhando para o fundo da colina, conseguia ver um dos carros elctricos de turistas a passar pelo meio dos enormes estdios de som de cor beige da Universal City. Um lado de um dos edifcios do tamanho de um quarteiro estava pintado de azul celeste, com uns farrapinhos de nuvens brancas; para filmar os exteriores quando o exterior natural de L.A. ficava castanho como trigo. Bosch perguntou: - Como que recebemos a chamada? - Annima para o nove um um. Um pouco depois das quatro da manh. A operadora disse que veio de uma cabine pblica no Boulevard. Algum que andava por l na brincadeira, descobriu a coisa dentro do cano. No quis dar o nome. Disse que era um cadver no cano, mais nada. Tm a gravao no centro de comunicaes. Bosch sentiu que estava a ficar zangado. Tirou o frasco das aspirinas de dentro do armrio e meteu-o no bolso. Enquanto pensava na chamada das 04.00, abriu o frigorfico e inclinou-se l para dentro. No viu nada que o interessasse. Olhou para o relgio. - Crowley, se a informao chegou s quatro da manh, por que que s agora que me esto a chamar, quase cinco horas depois? - Olha, Bosch, tudo o que tnhamos era uma chamada annima, mais nada. A telefonista disse que era um mido, ainda por cima. Eu no ia mandar um dos meus homens meter-se naquele cano no meio da noite por causa de uma informao destas. Podia ter sido uma brincadeira. Podia ter sido uma emboscada. Podia ter sido qualquer coisa, por amor de Deus. Esperei at haver luz e as coisas acalmarem um bocado por aqui. Mandei l alguns dos meus homens no fim do turno. Por falar em turnos, estou de sada. Tenho estado espera de ter notcias deles e de falar contigo. Mais alguma coisa? Bosch teve vontade de lhe perguntar se lhe teria ocorrido que estaria escuro dentro do cano quer l fossem escarafunchar s quatro da manh ou s oito, mas deixou passar. De que que serviria? - Mais alguma coisa? voltou a perguntar Crowley. Bosch no conseguia lembrar-se de mais nada, mas Crowley preencheu o espao vazio. - Provavelmente, no passa de um agarrado que se matou, Harry. No nenhum caso um oitenta e sete importante. Est sempre a acontecer. Raios, lembras-te que tirmos um de l, do mesmo cano, no ano passado...? Ei, bem, isso foi antes de vires para Hollywood... por isso, ests a ver, o que eu estou a dizer que um tipo qualquer enfia-se neste mesmo cano - estes vagabundos, eles esto sempre a ir dormir para ali - e ele um espertalho, mas injecta-se com uma carga valente e

pronto. L vai ele. S que ns no demos com ele to depressa dessa vez e, com aquele sol todo a bater no cano durante um par de dias, o tipo fica assado l dentro. To assadinho como um peru no Natal. Mas no cheirava to bem. Crowley soltou uma gargalhada com a sua prpria piada. Bosch no se riu. O sargento de servio continuou: - Quando tirmos este tipo c para fora, ainda tinha a agulha espetada no brao. Agora a mesma coisa. No passa de uma merda vulgar, de um caso sem importncia. Vais at l e ao meio-dia j ests outra vez em casa, dormes uma sesta e se calhar ainda vais a tempo de apanhar os Dodgers. E no prximo fim-desemana? a vez de outro tipo qualquer aparecer no cano. Tu estars de folga. E vo ser trs dias de descanso. Na prxima semana, temos o Memorial Day1. Por isso, faz-me um favor. Vai l ver o que que eles l tm.
Memorial Day feriado americano em honra dos americanos mortos em combate. comemorado na ltima segunda-feira de Maio, embora alguns estados o comemorem no dia 30de Maio. (N. T.)

14 Bosch meditou uns segundos e estava prestes a desligar, mas de repente perguntou: - Crowley, o que que querias dizer com essa de no terem descoberto esse outro to depressa? O que que te faz pensar que encontrmos este depressa? - Os meus homens, que l esto, dizem que este cadver no tem mais cheiro de que uma poa de mijo. Deve ser recente. - Diz aos teus homens que eu estou l daqui a quinze minutos. Diz-lhes para no mexerem em mais nada da porra da minha cena. - Eles... Bosch sabia que Crowley ia recomear a defender os seus homens, mas desligou antes que tivesse de o gramar. Acendeu outro cigarro enquanto se dirigia porta da rua para trazer o Times que estava no degrau. Abriu os quatro quilos do jornal de domingo em cima do balco da cozinha, perguntando para consigo quantas rvores teriam morrido. Encontrou o suplemento do imobilirio e folheou-o rapidamente at descobrir um grande anncio das Valey Pride Properties1. Percorreu com o dedo a lista das Casas Em Exposio at encontrar uma morada e uma descrio com a indicao TELEFONAR JERRY. Marcou o nmero. - Valley Pride Properties, em que que lhe podemos ser teis? - Jerry Edgar, se faz favor. Passaram-se uns segundos e Bosch ouviu uns dois estalidos indicativos da transferncia da chamada antes do seu colega aparecer na linha. - Daqui o Jerry, em que que lhe posso ser til? - Jed, acabmos de receber outra chamada. Na Barragem Mulholland. E tu nem sequer tens o teu pager a funcionar. - Merda! - disse Edgar e seguiu-se um silncio. Bosch quase o conseguia ouvir a pensar, tenho trs casas para mostrar hoje. O silncio continuou e Bosch imaginou o colega no outro lado da linha com o seu fato de 900 dlares e a testa toda franzida. - Que chamada? Bosch contou-lhe o pouco que sabia. - Se quiseres que tome conta disto sozinho, no me importo - disse Bosch. - Se houver alguma coisa com o Noventa e Oito, eu posso justificar. Digo que ficaste a tratar daquela coisa da TV e que eu estou a tratar do cadver no cano. - Sim, eu sei que me fazias isso, mas est tudo bem, vou j a caminho. s arranjar algum que me substitua aqui.
00 Valley Pride Properties Propriedades Orgulho do Vale. (N. T.)

Combinaram encontrar-se no local onde estava o corpo e Bosch desligou. Ligou o atendedor de chamadas, foi buscar dois maos de cigarros ao armrio e meteu-os na algibeira. Abriu outro armrio e tirou o coldre de nylon que tinha a sua arma, uma Smith & Wesson de 9 mm com um acabamento acetinado, de ao inoxidvel e carregada com oito balas XTPs1. Bosch lembrou-se do anncio que tinha visto uma vez numa revista da polcia. Actuao Terminal Extrema. Uma bala que expande ao impacto at 1,5 vezes a sua largura, atingindo profundidade terminal no corpo e deixando um mximo de canais de feridas. Quem quer que tinha escrito aquilo estava coberto de razo. Bosch tinha matado um homem um ano antes com um tiro

de uma distncia de seis metros. Entrara por baixo do sovaco direito, sara pelo mamilo esquerdo, desfazendo o corao e os pulmes no caminho. XTP. Mximo de canais de feridas. Prendeu o coldre no cinto, no lado direito para poder esticar a mo pela frente do corpo e sacar a arma com a mo esquerda. Entrou na casa de banho e lavou os dentes sem usar pasta. Passou um pente pelo cabelo e olhou durante um bom bocado para aqueles seus olhos de quarenta anos, raiados de vermelho. Depois estudou os cabelos grisalhos que iam suplantando firmemente os castanhos da cabeleira encaracolada. At o bigode estava a ficar cinzento. Tinha comeado a ver bocadinhos grisalhos no lavatrio quando se barbeava. Levou a mo ao queixo, mas decidiu que no ia fazer a barba. E saiu de casa sem mudar sequer de gravata. Sabia que o seu cliente no se ia ralar. Bosch descobriu um espao onde no havia cagadelas de pombos e apoiou os braos no parapeito do gradeamento que corria ao longo da parte de cima da Barragem Mulholland. Com um cigarro pendurado nos lbios, olhou pela fenda entre as colinas para a cidade l em baixo. O cu era de um cinzento carregado e a nvoa da poluio era uma mortalha perfeitamente moldada por cima de Hollywood. Algumas das torres distantes da baixa da cidade atravessavam o veneno, mas o resto da cidade estava debaixo do manto. Parecia uma cidade fantasma. Havia um ligeiro cheiro a qualquer produto qumico na brisa quente e, passado um bocado, ele identificou-o. Malathion. Tinha ouvido na rdio que os helicpteros da mosca da fruta tinham andado na noite anterior a pulverizar Hollywood Norte at ao Desfiladeiro Cahuenga. Pensou no sonho que tinha tido e lembrou-se do helicptero que no aterrava.
N.Y.: XTP Extreme Terminal Performance. (N. T.)

Atrs de si, estava a extenso azul esverdeada do reservatrio de Hollywood, 228 milhes de litros da gua potvel da cidade presa na velha e veneranda barragem num desfiladeiro entre duas das colinas de Hollywood. Uma faixa de argila seca com cerca de dois metros corria ao longo de toda a margem, lembrando que L.A. j ia no quarto ano de seca. Mais ao longe, na margem do reservatrio, erguia-se uma vedao de elos de corrente, com trs metros de altura, que rodeava toda a borda da gua. Bosch tinha estudado esta barreira logo que chegara e tinha-se perguntado se a proteco era para as pessoas num dos lados da vedao ou para a gua no outro. Bosch vestia um macaco azul por cima do fato amarrotado. O suor debaixo dos braos e nas costas tinha atravessado as duas camadas de roupa. Tinha o cabelo hmido e o bigode escorrido. Tinha estado dentro do cano. Conseguia sentir as ccegas leves e quentes dos ventos de Santa Ana a secar-lhe o suor da nuca. Este ano tinham chegado cedo. Harry no era um homem de grande estatura. Faltavam-lhe uns escassos centmetros para o metro e oitenta e era magro. Os jornais, quando o descreviam, chamavam-lhe rijo. Por baixo do fato macaco, os msculos eram como cordas de nylon, fora escondida pela economia do tamanho. O cinzento que lhe salpicava o cabelo era mais parcial em relao ao lado esquerdo. Os olhos eram pretosacastanhados e raramente traam qualquer emoo ou inteno. O cano estava em cima do cho e estendia-se cerca de cinquenta metros ao longo da estrada de acesso ao reservatrio. Estava todo enferrujado, por dentro e por fora, estava vazio e no era utilizado a no ser por aqueles que usavam o seu interior como abrigo ou o exterior como tela para tinta de spray. Bosch no fazia a menor ideia da sua utilidade at o guarda lhe ter fornecido voluntariamente a informao. O cano era uma proteco contra a lama. As chuvas fortes, dissera o guarda, conseguiam soltar a terra e fazer com que a lama deslizasse pelas encostas para dentro do reservatrio. O cano de noventa centmetros de largura, ali abandonado por qualquer projecto desconhecido apadrinhado pelo distrito ou pelo governo, tinha sido colocado numa rea de deslizamento de terras como a primeira e nica defesa do reservatrio. O cano estava seguro por uma barra de ferro com cerca de dois centmetros de espessura que passava por cima dele e estava cravada no cimento por baixo dele. Bosch tinha enfiado o fato macaco antes de entrar no cano. As letras LAPD 1 estavam impressas nas costas. Depois de o tirar da mala do carro

LAPD Los Angeles Police Department. (N. T.)

e de o ter enfiado, deu-se conta de que, provavelmente, estava mais limpo do que o fato que estava a tentar proteger. Mas vestiu-o mesma porque sempre o tinha feito. Era um detective metdico, supersticioso e tradicional. Enquanto rastejara de lanterna na mo pelo cilindro claustrofbico que tresandava a humidade, tinha sentido a garganta a apertar-se e o bater do corao acelerar. Um vazio familiar nas entranhas dominara-o. Medo. Mas tinha acendido a lanterna e a escurido desaparecera juntamente com aquela sensao assustadora e ele metera-se ao trabalho. Agora, estava de p, junto da barragem, a fumar e a pensar nas coisas. Crowley, o sargento de servio, tinha tido razo, no havia dvida que o homem dentro do cano estava morto. Mas tambm se tinha enganado. Isto no ia ser um caso fcil. Harry no ia voltar a casa a tempo para dormir uma sesta ou para ouvir o relato dos Dodgers na KABC. As coisas no estavam certas. Harry ainda no tinha percorrido trs metros dentro do cano quando ficara com a certeza disso mesmo. No havia rastos dentro do cano. Ou melhor, no havia rastos que servissem fosse para o que fosse. O fundo do cano estava sujo, cheio de lama seca cor de laranja e coberto de sacos de papel, garrafas de vinho vazias, bolas de algodo, seringas usadas, camas de jornais - o lixo dos sem-abrigo e dos drogados. Bosch tinha estudado tudo aquilo luz da lanterna enquanto avanava lentamente at ao corpo. E no tinha encontrado nenhum rasto claro deixado pelo morto, que estava deitado dentro do cano com a cabea virada para a frente. Isto no fazia sentido. Se o morto se tivesse arrastado de moto prprio, teria havido qualquer indicao disso. Se tivesse sido arrastado l para dentro, tambm teria havido qualquer indicao. Mas no havia nada e esta falta foi apenas a primeira das coisas que preocuparam Bosch. Quando chegou junto do cadver, descobriu que a camisa do morto - uma camisa preta de gola rente ao pescoo - estava puxada para cima da cabea do homem com os braos l metidos dentro. Bosch j tinha visto bastantes pessoas mortas para saber que nada era literalmente impossvel durante os ltimos suspiros. Tinha trabalhado num caso de suicdio em que um homem que tinha dado um tiro na cabea tinha mudado de calas antes de morrer, aparentemente por no ter querido que o seu corpo fosse encontrado coberto de dejectos humanos. Mas a camisa e os braos do homem morto dentro do cano no pareciam aceitveis a Harry. Para Bosch, o corpo parecia ter sido arrastado para dentro do cano por algum que o puxava pelo colarinho. Bosch no tinha mexido no corpo nem tirado a camisa da cara. Viu que era um homem branco. No detectou nenhuma indicao imediata do ferimento fatal. Depois de ter acabado o exame do corpo, Bosch passou com todo o cuidado por cima do cadver, a cara chegando a ficar a quinze centmetros dele, e continuara a percorrer os restantes quarenta metros do tubo. No encontrou nenhuns rastos nem nada que tivesse qualquer valor como prova. Vinte minutos depois, estava outra vez luz do sol. Depois mandou entrar um tcnico de indcios chamado Donovan para fazer um mapa do lixo no interior do cano e fazer um vdeo do corpo no local. A cara de Donovan traiu a sua surpresa por ter de entrar no cano para um caso que ele j tinha despachado como um OD1. Tinha bilhetes para os Dodgers, calculou Bosch. Depois de ter deixado o cano ao cuidado de Donovan, Bosch acendera um cigarro e encaminhara-se para o gradeamento da barragem para contemplar a cidade poluda e meditar. No gradeamento, conseguia ouvir o rudo do trnsito, filtrando-se da Hollywood Freeway l em baixo. At parecia suave quela distncia. Como um oceano calmo. Atravs da abertura do desfiladeiro, via piscinas azuis e telhados de telha espanhola. Uma mulher com um top de alas branco e uns cales verde-lima passou por ele a correr em redor da barragem. Tinha um pequeno rdio preso no cinto e um fiozinho amarelo levava o som at aos auscultadores presos cabea. Parecia estar num mundo s seu, sem se dar conta do grupo de polcias frente dela at chegar fita amarela da cena do crime esticada de um lado ao outro na ponta final da barragem. Ficou uns momentos a correr no mesmo stio, o comprido cabelo louro colado aos

ombros com o suor, e observou os polcias que, por sua vez, estavam quase todos a olhar para ela. Depois, deu meia volta e voltou para trs passando de novo por Bosch. Os olhos dele seguiram-na e viram-na desviar-se do caminho para evitar qualquer coisa. Bosch dirigiu-se para o stio e descobriu vidro no pavimento. Olhou para cima e viu a lmpada partida no suporte por cima da porta da casa das bombas. Mentalmente, tomou nota para perguntar ao guarda se a lmpada tinha sido verificada nos ltimos tempos. Quando Bosch voltou para o seu poiso no gradeamento, a sombra de um movimento chamou-lhe a ateno. Olhou para baixo e viu um coiote a farejar pelo meio das agulhas dos pinheiros e do lixo que cobria a terra por baixo das rvores frente da barragem. O animal era pequeno e o plo feio e com grandes peladas. J s havia um pequeno nmero deles nas reas protegidas da cidade, reduzidos a alimentarem-se dos restos deixados pelos humanos. - Esto a tir-lo c para fora - disse uma voz atrs dele. Bosch voltou-se e viu um dos polcias fardados que tinha sido destacado para a cena do crime. Assentiu com a cabea e seguiu atrs dele, afastando-se da barragem, passando por baixo da fita amarela, de regresso ao cano.
1

OD Over Dose. (N. T.)

Uma cacofonia de resmungos e arquejos ecoava para fora da boca do cano coberto de graffiti. Um homem sem camisa, com as costas fortemente musculadas arranhadas e sujas, emergiu de l de dentro, s arrecuas, arrastando uma folha de plstico preto grosso em cima da qual estava o corpo. O morto continuava com a cara voltada para cima com a cabea e os braos escondidos pela camisa preta em volta deles. Bosch olhou em volta procura de Donovan e viu-o a guardar uma cmara de vdeo na parte de trs da carrinha azul das peritagens. Harry foi ter com ele. - Agora vou precisar que voltes l dentro. Todo o lixo que l est, jornais, latas, sacos, vi umas agulhas, algodo, garrafas, preciso disso tudo metido em sacos. - para j - respondeu Donovan. Esperou uma fraco de segundo e acrescentou: No estou a dizer nada, mas, Harry, quero dizer, ests mesmo convencido que isto um caso a srio? Que vale a pena estarmos a ter todo este trabalho? - Acho que no vamos saber at o cortarem. - Comeou a afastar-se, mas parou. - Olha, Donnie, eu sei que domingo e... ah... obrigado por voltares l. - No h problema. So mais umas horas extraordinrias para mim. O homem sem camisa e um tcnico do gabinete do mdico legista estavam de ccoras inclinados sobre o cadver. Ambos calavam luvas brancas de borracha. O tcnico era Larry Sakai, um tipo que Bosch conhecia h muitos anos, mas de quem nunca gostara. Tinha uma caixa de apetrechos de pesca aberta no cho, ao lado dele. Tirou um bisturi de dentro da caixa e fez um corte de dois centmetros e meio no lado do corpo, logo acima da coxa esquerda. No saiu sangue do golpe. Ento, tirou da caixa um termmetro e prendeu-o na extremidade de uma sonda curva. Enfiou-a na inciso, e de forma precisa, mas bruta girou-a e f-la subir at ao fgado. O homem sem camisa fez uma careta e Bosch reparou que ele tinha uma lgrima azul tatuada no canto exterior do olho direito. Pareceu a Bosch que, de certo modo, era apropriado. Era o mximo de simpatia que o morto iria receber. - A hora da morte vai ser uma chatice - disse Sakai. No levantou os olhos do trabalho. - Aquele cano, ests a ver, com o calor a subir, vai distorcer a perda de temperatura no fgado. O Osito fez uma leitura l dentro e era de trinta graus. Dez minutos depois j era trinta e um. No temos uma temperatura fixa nem no corpo nem no cano. - E da? - perguntou Boch. - E da, quer dizer que no te vou dar nada aqui. Tenho de o levar e fazer uns clculos. - O que queres dizer que vais entreg-lo a algum que saiba fazer os clculos? perguntou Bosch. - Vais ter quando fores buscar a autpsia, no te preocupes, p. - J agora, quem que se vai dedicar ao corte hoje? Sakai no respondeu. Estava ocupado com as pernas do morto. Agarrou em cada um dos sapatos e manipulou os tornozelos. Moveu as mos pelas pernas acima e

meteu-as por baixo das coxas, levantando uma perna de cada vez e observando quando se dobraram pelo joelho. Depois carregou com as duas mos no abdmen como se estivesse a tentar detectar contrabando. Por fim, meteu a mo por baixo da camisa e tentou virar a cabea do morto. No se mexeu. Bosch sabia que o rigor mortis comeava pela cabea, espalhando-se pelo resto do corpo at chegar s extremidades. - O pescoo deste tipo est completamente preso - disse Sakai. - O estmago est a ficar na mesma. Mas as extremidades ainda tm bastante movimento. Tirou um lpis de trs da orelha e carregou com a ponta da borracha na pele da parte lateral do torso. Havia umas manchas cor de prpura na metade do corpo mais perto do cho, como se o corpo estivesse meio cheio de vinho tinto. Era a lividez post mortem. Quando o corao pra de bombear, o sangue procura o nvel do cho. Quando Sakai carregou com o lpis na pele escura, esta no ficou branca, sinal de que o sangue j tinha coagulado por completo. O homem estava morto h horas. - A lividez post mortem est completa - disse Sakai. - Isso e a rigidez fazem-me concluir que este tipo est morto j h seis horas, talvez mesmo oito horas. aquilo que te posso dizer, Bosch, at podermos trabalhar as temperaturas.
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Sakai no olhou para cima ao dizer isto. Ele e o outro chamado Osito comearam a virar para fora os bolsos das calas verdes do morto. Estavam vazios, tal como estavam as grandes algibeiras, tipo sacos, das coxas. Viraram o corpo para o lado para inspeccionarem os bolsos de trs. Enquanto faziam isto, Bosch inclinou-se para olhar de perto para as costas expostas do morto. A pele estava prpura da lividez e da porcaria. Mas no viu arranhes ou marcas que lhe permitissem concluir que o corpo tinha sido arrastado. - Nada nas calas, Bosch, - disse Sakai continuando a no olhar para cima. Depois comearam a puxar delicadamente a camisa preta para baixo, destapando a cara. O morto tinha cabelo hirsuto, mais cinzento do que o preto original. A barba no estava tratada e parecia andar pelos cinquenta anos, o que fez com que Bosch calculasse que devia andar pelos quarenta. Havia qualquer coisa na algibeira do peito da camisa e Sakai tirou-a para fora, olhou para ela durante uns curtos instantes e depois meteu-a num saco de plstico que o companheiro segurava aberto. - Bingo! - exclamou Sakai entregando o saco a Bosch. - O equipamento completo. Simplifica-nos imenso o trabalho. A seguir, Sakai abriu por completo as plpebras entreabertas do morto. Os olhos eram azuis com uma membrana leitosa por cima. As duas pupilas estavam to contradas que tinham o tamanho da mina de uma lapiseira. Olhavam sem verem para Bosch, cada uma das pupilas um pequeno vazio negro. Sakai escreveu umas notas numa prancheta. Tinha chegado a uma concluso a respeito daquele caso. Depois, tirou uma almofada de tinta e um carto para impresses digitais da caixa ao lado dele. Cobriu de tinta os dedos da mo esquerda e comeou a comprimi-los no carto, um de cada vez. Bosch admirou a percia e a rapidez com que ele estava a trabalhar. Mas, de repente, parou. - Ei! V l isto. Sakai moveu delicadamente o dedo indicador. Girava em todas as direces. Era evidente que a articulao estava partida, mas no havia qualquer sinal de inchao ou hemorragia. - Parece-me post mortem - disse Sakai. Bosch dobrou-se para ver melhor. Tirou a mo do morto a Sakai e apalpou-a com as mos dele, sem luvas. Olhou para Sakai e depois para Osito. 23 - Bosch, no comeces - ladrou Sakai. - No te ponhas a olhar para ele. Ele sabe como se faz. Fui eu mesmo quem o treinou. Bosch no lembrou a Sakai que tinha sido ele a guiar a carrinha da ML que largara um cadver preso a uma maca de rodas na Ventura Freeway uns meses atrs. Durante a hora de ponta. A maca rolara pela sada do Lankershim Boulevard e chocara com as traseiras de um carro numa bomba de gasolina. Por causa da divisria em fibra de vidro na cabina, Sakai s tinha percebido que perdera o

cadver quando chegara morgue. Bosch entregou a mo do morto ao tcnico da medicina legal. Sakai voltou-se para Osito e fez uma pergunta em espanhol. A pequena cara castanha de Osito ficou muito sria e ele abanou a cabea numa negativa. - Ele nem sequer tocou nas mos do tipo l dentro. Por isso, melhor esperares at o cortarmos antes de comeares a falar de uma coisa de que no tens a certeza. Sakai acabou de transferir as impresses digitais para o carto e depois entregou o carto a Bosch. - Enfia-lhe as mos num saco - disse-lhe Bosch, embora no fosse preciso diz-lo. E os ps. Endireitou-se e recuou, comeando a abanar o carto para secar a tinta. Com a outra mo, levantou o saco de plstico com a prova que Sakai lhe tinha entregado. L dentro, um elstico prendia uma agulha hipodrmica, um frasquinho meio cheio de uma coisa qualquer que parecia gua suja, um bocado de algodo e uma carteira de fsforos. Era o equipamento de um drogado e parecia razoavelmente novo. A agulha estava limpa e no tinha sinais de corroso. O algodo, calculou Bosch, s tinha sido utilizado como filtro uma ou duas vezes. Havia uns minsculos cristais castanho esbranquiados no meio das fibras. Virando o saco, conseguia ver o interior dos dois lados da carteira de fsforos e viu que s faltavam dois fsforos. Naquele momento, Donovan saa do tubo a rastejar. Trazia um capacete de mineiro equipado com uma lanterna. Numa das mos, trazia vrios sacos de plstico, cada um deles contendo ou um jornal amarelado ou o invlucro de um alimento qualquer ou uma lata de cerveja amachucada. Na outra, trazia uma prancheta onde tinha feito o diagrama indicando a posio em que cada um dos artigos tinha sido encontrado dentro do cano. Tinha teias de aranha penduradas no capacete. O suor escorria-lhe pela cara e manchava a mscara respiratria de pintor que lhe tapava a boca e o nariz. Bosch levantou o saco que continha o equipamento do drogado. Donovan parou imediatamente. 24 - Descobriste algum fogo l dentro? - perguntou Bosch. - Merda, ele um agarrado? - disse Donovan. - Eu sabia. Porra, para que que estamos a fazer isto tudo? Bosch no respondeu. Esperou que o outro lhe respondesse. - A resposta sim, encontrei uma lata de Coca-cola - disse Donovan. O tcnico passou em revista os sacos de plstico que tinha na mo e estendeu um a Bosch. Continha duas metades de uma lata de Coca-cola. A lata tinha um aspecto razoavelmente novo e tinha sido cortada ao meio com uma faca. A parte de baixo tinha sido invertida e a superfcie cncava tinha sido utilizada como recipiente para aquecer herona e gua. Um fogo. A maior parte dos drogados j no usavam seringas. Trazer uma colher era um motivo para se ser preso. As latas eram fceis de arranjar, fceis de utilizar e de deitar fora. - Precisamos que tirem as impresses digitais ao kit e ao fogo o mais depressa possvel - disse Bosch. Donovan assentiu com cabea e levou o seu carrego de sacos de plstico para a carrinha da polcia. Bosch voltou a concentrar a sua ateno nos homens da ML. - Ele no tinha nenhuma faca, pois no?- perguntou Bosch. - Exactamente - respondeu Sakai. - Porqu? - Preciso de uma faca. A cena fica incompleta se no houver uma faca. - E depois? O tipo um agarrado. Os agarrados roubam os agarrados. Provavelmente, os amigalhaos dele levaram-na. As mos enluvadas de Sakai enrolaram as mangas da camisa do morto. Isto revelou uma rede de cicatrizes em ambos os braos. Marcas antigas de agulhas, crateras deixadas pelos abcessos e infeces. Na dobra do cotovelo esquerdo, havia uma marca recente de agulha e uma enorme hemorragia amarelada e encarniada por baixo da pele. - Bingo! - exclamou Sakai. - Eu diria que este tipo enfiou uma dose valente no brao e, pssst, foi-se. Como j disse, tens um caso de droga, Bosch. Vais poder ir cedo para casa. Vai ouvir os Dodgers. - o que toda a gente no pra de me dizer - respondeu Bosch. E, provavelmente, Sakai tinha razo, pensou ele. Mas no queria dar aquilo j por encerrado. Havia

demasiadas coisas que no encaixavam. Os rastos que no existiam dentro do cano. A camisa puxada para cima da cara. O dedo partido. No haver faca. - Por que que todas as marcas so antigas excepto uma? - perguntou mais para si prprio do que para Sakai. - Quem sabe? - respondeu Sakai. - Se calhar tinha-se deixado disso durante uns tempos e depois decidiu voltar a meter-se. Um agarrado um agarrado. No h razes. Ao olhar fixamente para as marcas nos braos do morto, Bosch reparou numa tinta azul na pele logo abaixo da manga que estava enrolada e presa no bceps esquerdo. No conseguia ver o suficiente para perceber o que l estava escrito. - Puxa isso para cima - disse ele apontando. Sakai puxou a manga at ao ombro, revelando uma tatuagem a azul e vermelho. Era o desenho, tipo caricatura, de um rato em p nas patas traseiras, com um enorme e desagradvel sorriso, cheio de dentes. Numa das mos, o rato segurava uma pistola e na outra uma garrafa de qualquer coisa alcolica com o rtulo xxx. As palavras a azul por cima e por baixo do desenho estava esborratada pela idade e pelo esticar da pele. Sakai tentou ler: - Diz Fora... no, Primeiro. Diz Primeiro de Infantaria 1. Este tipo esteve na tropa. A parte de baixo no faz... outra lngua. Non... Gratum... Anum... Ro... No consigo decifrar esta parte. - Rodendum - disse Bosch. Sakai olhou para ele. - Latim de sacristo - disse-lhe Bosch. - No presta para nada. Ele era um rato dos tneis. Vietname. - Tanto faz - disse Sakai. Deitou um olhar avaliador ao cadver e ao cano e continuou: - Bem, ele acabou num tnel, no verdade? Uma espcie de tnel. Bosch estendeu a mo nua para a cara do homem e afastou o desgrenhado cabelo preto e cinzento da testa e dos olhos vazios. O facto de ele estar a fazer isto sem luvas fez com que os outros parassem o que estavam a fazer para observarem este comportamento invulgar e, at mesmo pouco higinico. Bosch no lhes prestou ateno. Olhou para a cara durante um bom bocado, sem dizer nada, sem ouvir uma nica palavra que pudesse ter sido dita. No instante em que percebeu que conhecia a cara, tal como conhecia a tatuagem, a imagem de um jovem passou-lhe pela cabea. Esqueltico e bronzeado, o cabelo cortado escovinha. Vivo, no morto. Levantou-se e afastou-se rapidamente do corpo. Ao fazer aquele movimento repentino e inesperado, chocou violentamente contra Jerry Edgar, que, tendo finalmente chegado, se tinha
00 No original Force, First, First Infantry. (N. T.)

aproximado do grupo volta do cadver. Deram ambos um passo para trs, momentaneamente estonteados. Bosch levou a mo testa. Edgar, que era muito mais alto, levou a dele ao queixo. - Merda, Harry! - exclamou Edgar. - Ests bem? - Sim. E tu? Edgar olhou para a mo para ver se havia sangue. - Sim. Desculpa l. Por que que te lembraste de saltar desta maneira? - No sei. Edgar olhou por cima do ombro de Bosch para o cadver e depois foi atrs do colega que se afastava. - Desculpa, Harry - disse Edgar. - Fiquei uma hora l sentado espera que aparecesse uma pessoa para me substituir. V, conta-me, o que que temos aqui? Edgar continuava a esfregar o queixo enquanto falava. - Ainda no tenho a certeza - respondeu-lhe Bosch. - Quero que te metas num destes carros patrulhas que tenha um TCM. Um que funcione. V se consegues a ficha de um Meadows, Billy,... ah, .. . melhor usares William. A DN deve ser 1950. Precisamos de arranjar uma morada da DGV. - o morto? Bosch fez que sim com a cabea. - Nada, nenhum endereo no BI dele? - No h BI. Eu que o reconheci. Por isso verifica na caixa. Deve haver um contacto qualquer nestes ltimos anos. Pelo menos, qualquer coisa relacionada com a droga na Diviso de Van Nuys.

Edgar afastou-se em direco fila dos carros pretos e brancos estacionados, procura de um com um terminal de computador mvel montado no painel de instrumentos. Como era um homem possante, parecia que se deslocava devagar, mas Bosch sabia, por experincia, que Edgar era um homem difcil de acompanhar. Edgar estava impecavelmente vestido com um fato castanho com uma fina risca branca. O cabelo estava cortado rente e a pele era quase to suave e to preta como a da casca de uma beringela. Bosch observou Edgar a afastar-se sem conseguir evitar perguntar para com os seus botes se ele no teria cronometrado a sua chegada de forma a estar suficientemente atrasado para evitar ter de amarrotar o fato enfiando um fato macaco e rastejando dentro do tubo. Bosch foi at ao porta bagagens do carro e tirou a mquina fotogrfica Polaroid. Voltou para junto do cadver, ps um p de cada lado do corpo e dobrou-se para tirar umas fotografias cara. Trs deviam chegar, decidiu ele e meteu os trs cartes sados da mquina em cima do cano enquanto as fotografias se iam revelando. No conseguia deixar de olhar para a cara, para as mudanas que o tempo tinha feito. Pensou naquela cara e no sorriso inebriado que a franzia na noite em que todos os ratos do Primeiro de Infantaria saam da casa das tatuagens em Saigo. Os esgotados americanos tinham levado naquilo quatro horas, mas todos se tinham tornado irmos de sangue ao porem a mesma divisa nos ombros. Bosch lembrava-se da alegria de Meadows com os camaradas e o medo que todos partilhavam. Harry afastou-se do corpo enquanto Sakai e Osito desdobravam um grande e pesado saco de plstico preto com um fecho de correr a todo o comprimento. Quando o saco estava desdobrado e aberto, os homens da Medicina Legal ergueram Meadows e colocaram-no l dentro. - Parece a porra do Rip Van-Winkle - comentou Edgar ao aproximar-se. Sakai correu o fecho e Bosch viu que alguns dos cabelos encaracolados de Meadows tinham ficado presos no fecho. Meadows no se importaria. Uma vez, tinha dito a Bosch que estava destinado ao interior de um saco para cadveres. Toda a gente estava, dissera ele. Edgar segurava um pequeno bloco de notas numa mo e uma caneta Cross de ouro na outra. - William Joseph Meadows, 21-7-50. Parece-te ele, Harry? - Sim, ele. - Bem, tinhas razo, temos mltiplos contactos. Mas no s relacionados com a merda da droga. Temos assalto a um banco, tentativa de assalto, posse de herona. Uma deteno por vagabundagem aqui mesmo, na barragem, h cerca de um ano e tal. E ele tinha mesmo umas quantas queixas relacionadas com a droga. A da Van Nuys a que te referiste. O que que ele era a ti, o teu informador? - No. Conseguiste a morada? - Vive no Valley. Sepulveda, ao p da destilaria. Um bairro muito mau para se vender uma casa. Ento, se ele no era o teu informador, como que conheces este tipo? - No o conhecia... pelo menos, ultimamente. Conheci-o numa vida diferente. - O que que queres dizer com isso? Quando que conheceste este gajo? - A ltima vez que vi o Billy Meadows foi h vinte anos, ou qualquer coisa do gnero. Ele era... foi em Saigo. - Sim, isso deve ter sido h vinte anos. Edgar aproximou-se das Polaroids e olhou para as trs caras de Billy Meadows. - Conhecia-lo bem? - perguntou. - No l muito bem. Quase to bem como conseguimos conhecer algum naquele stio. Aprendes a confiar a tua vida a pessoas que, depois, quando tudo acaba, descobres que nem sequer conheces a maior parte delas. Nunca mais o vi desde que voltei. Falei uma vez com ele ao telefone, no ano passado, mais nada. - Como que o reconheceste? - Ao princpio no o reconheci. Depois vi a tatuagem no brao. Isso fez-me lembrar da cara. Acho que uma pessoa se lembra de tipos como ele. Pelo menos, eu lembrome... - Tambm acho... Deixaram que o silncio se instalasse durante um bocado. Bosch estava a tentar

decidir o que fazer, mas s conseguia pensar na coincidncia de ter sido chamado para a cena de um crime e vir a descobrir Meadows. Edgar interrompeu o devaneio. - Ento, queres dizer-me o que que descobriste que parece esquisito nisto? Ali o Donovan parece apavorado com todo o trabalho que lhe ests a dar. Bosch explicou a Edgar todos os problemas, a ausncia de rastos visveis no interior do cano, a camisa puxada para cima da cabea, o dedo partido e o facto de no haver nenhuma faca. - Nenhuma faca? - perguntou o companheiro. - Precisava de qualquer coisa para cortar a lata ao meio e fazer um fogo... se o fogo era dele. - Podia ter trazido o fogo com ele. Podia algum ter l entrado e ter levado a faca depois do tipo ter morrido. Se que havia alguma faca. - Sim, pode ter sido isso. No h rastos que nos digam seja o que for. - Bem, sabemos pelo cadastro dele que era um agarrado. Era assim quando o conheceste? - At certo ponto. Utilizador e passador. - Ora a tens, um drogado desde h muito tempo, no consegues predizer o que que eles vo fazer, quando que esto pedrados ou no. So casos perdidos, Harry. - Mas ele tinha largado... pelo menos, eu julgava que sim. S tem uma picada recente no brao. - Harry, tu disseste que no vias o tipo desde Saigo. Como que sabes que ele tinha largado ou no? - No o vi, mas falei com ele. Ele telefonou-me uma vez, no ano passado. Em Julho ou Agosto, penso eu. Tinha sido apanhado numa rusga pelo carro dos narcticos em Van Nuys. No sei como, talvez por ter lido nos jornais, ou qualquer coisa assim, sabia que eu era polcia e telefonou-me para o Departamento dos Assaltos e Homicdios. Telefona da cadeia de Van Nuys e pergunta-me se o posso ajudar. Ele teria de cumprir, o qu, uns trinta dias na choa, mas estava de rastos, disse ele. E ele, ah..., disse s que no podia cumprir pena desta vez, no era capaz de largar aquilo assim, sozinho... Bosch calou-se sem completar a histria. Passado um bocado, Edgar incitou-o a continuar. - E?... V l, Harry, o que que fizeste? - E eu acreditei nele. Falei com o polcia. Lembro-me que o apelido dele era Nuckles. Um bom nome para um polcia de giro, pensei eu. E depois telefonei para a VA1 l em Sepulveda e meti-o num programa. O Nuckles concordou. Tambm um veterano. Conseguiu que o promotor pedisse ao juiz para ser brando. Bem, o certo que a clnica da VA para doentes ambulatrios o aceitou. Umas seis semanas depois, telefonei para saber como que iam as coisas e disseram-me que ele tinha conseguido, tinha feito a desintoxicao e estava tudo a correr bem. Quero dizer, foi o que eles me disseram. Disseram que estava no segundo nvel da manuteno. A falar com um psiquiatra, terapia de grupo... No voltei a falar com o Meadows depois daquele primeiro telefonema. Ele nunca mais telefonou e eu no tentei entrar em contacto com ele. Edgar consultou o bloco de notas. Bosch conseguia ver que a pgina para onde ele estava a olhar estava em branco. - Olha, Harry - disse Edgar -, isso continua a ser h um ano. E isso uma data de tempo para um drogado, no ? Quem sabe? Ele j pode ter descarrilado e voltado desintoxicao umas trs vezes desde essa altura. No isso que nos interessa agora. A pergunta : O que que queres fazer em relao a hoje? - Acreditas em coincidncias? - perguntou Bosch. - No sei. Eu... - No h coincidncias. - Harry, no sei de que que ests a falar. Mas sabes o que eu penso? No estou a ver nada que me chame a ateno. Um tipo rasteja para dentro dum tubo s escuras, se calhar no consegue ver o que est a fazer, mete demasiado sumo no brao e pifa. Mais nada. Se calhar estava outra pessoa qualquer com ele que apagou os rastos quando saiu. Tambm levou a faca. Podem ter sido cem coisas... - s vezes, elas no chamam a ateno, Jerry. Aqui, o problema esse. domingo.

Toda a gente quer ir para casa. Jogar golfe. Vender casas. Ver o jogo. Ningum se rala. Esto s a fingir. No vs que com isso que eles esto a contar? - Quem so eles, Harry? - Quem quer que seja que fez o trabalhinho. Calou-se durante um minuto. No estava a convencer ningum e quase se podia incluir a ele prprio. Apelar ao sentido de dedicao de Edgar era um erro. Ele ia largar o emprego mal fizesse os vinte anos. Depois ia pr um anncio do tamanho de um carto de visita no jornal do sindicato reformado do LAPD faz descontos para os seus camaradas e ganhar um quarto de um milho de dlares a vender casas a polcias ou dos polcias no Vale de San Fernando ou no Vale de Santa Clarita ou no Vale do Antlope, ou em qualquer outro vale que estivesse a ser o alvo das bulldozers nessa altura. - Para qu entrar no cano? - perguntou Bosch por fim. - Disseste que ele vivia l em cima, no Vale. Em Sepulveda. Para que que havia de descer at aqui? - Harry, quem sabe? O tipo era um agarrado. Se calhar a mulher expulsou-o de casa. Se calhar, matou-se l e os amigos arrastaram o corpo at aqui porque no queriam ter a chatice de explicar o que tinha acontecido. - Isso tambm um crime. - Sim, um crime, mas no te esqueas de me informar quando descobrires um DA 1 que abra um processo por causa disso. - O equipamento dele parecia limpo. Novo. As outras marcas do brao pareciam antigas. No me parece que ele andasse outra vez a injectar-se. Pelo menos, regularmente. H qualquer coisa que no est certa nisto tudo.
VA Veterans Administration. (N. T.) DA Distnct Attorney representante do Ministrio Pblico. (N. T.)

30 - Bem, no sei se sabes, com a SIDA e essas coisas todas, eles devem manter o equipamento limpo. Bosch olhou para o colega como se no o conhecesse. - Harry, ouve aquilo que te estou a dizer. Aquilo que te estou a dizer que ele pode ter sido o teu camarada l nos tneis h vinte anos, mas, este ano, era um agarrado. Nunca irs conseguir explicar todas as coisas que ele fez. No sei nada acerca do equipamento ou dos rastos, mas sei que isto no parece ser um daqueles casos em que devemos matar-nos a trabalhar. Isto um caso das nove-s-cinco, fins-de-semana e feriados excludos. Bosch desistiu pelo menos, naquela altura. - Vou at Sepulveda - disse ele. - Vens ou vais voltar para a tua venda de casas? - Eu fao o meu trabalho, Harry - respondeu Edgar num tom suave. - S porque no estamos de acordo no quer dizer que eu no v fazer aquilo para que me pagam. Nunca foi assim e nunca ser. Mas se no gostas da maneira como eu trato das coisas, vamos ao Noventa e Oito amanh de manh e tentamos arranjar uma troca. Bosch ficou imediatamente arrependido daquele golpe baixo, mas no o manifestou. Disse: - OK. Vai andando para l, v se est algum em casa. Vou ter contigo mal acabe de tratar das coisas aqui. Edgar dirigiu-se para o cano e agarrou numa das fotografias de Meadows. Enfiou-a no bolso do casaco e depois desceu a estrada em direco ao carro sem voltar a dirigir a palavra a Bosch. Depois de Bosch ter despido o fato macaco e o ter dobrado e arrumado na mala do carro, ficou a ver Sakai e Osito a pr o cadver em cima de uma maca e a lev-la para as traseiras da carrinha azul. Comeou a andar, pensando em qual seria a melhor forma de conseguir que a autpsia fosse considerada prioritria, o que queria dizer, que estivesse feita pelo menos no dia seguinte e no quatro ou cinco dias depois. Apanhou o tcnico da medicina legal quando este estava a abrir a porta do motorista. - Vamo-nos embora, Bosch. Bosch ps a mo na porta, segurando-a de forma a que esta no se abrisse o suficiente para Sakai conseguir entrar. - Quem que est a cortar hoje? - Neste? Ningum.

52 - V l, Sakai. Quem que est de servio? - O Sally. Mas ele nem se vai aproximar deste, Bosch. - Olha, j estive a discutir com o meu parceiro. Agora, no comeces tu tambm, OK? - Bosch, tu olha. Tu ouve. Estou a trabalhar desde as seis da noite passada e esta a stima cena onde j estive. Tivemos atropelados, afogados, um caso de sexo. As pessoas esto a morrer por se encontrarem connosco, Bosch. No h descanso para ningum e isso quer dizer que no h tempo para aquilo que tu pensas que pode ser um caso. Por uma vez, ouve o que te diz o teu parceiro. Este vai ser um caso de rotina. Isto quer dizer que vamos pegar-lhe na quarta-feira, talvez quinta. Prometo que no passar de sexta-feira. E, de qualquer das maneiras, os resultados dos txicos implica dez dias de espera, pelo menos. Sabes isso. Por isso, para que essa pressa toda, porra? - Implicam. Os resultados dos txicos implicam dez dias de espera, pelo menos. - Vai merda! - Diz ao Sally que preciso dos preliminares hoje. Passo por l mais logo. - Meu Deus, Bosch, ouve o que te estou a dizer. Temos cadveres nas mesas amontoadas no corredor, que j sabemos que so oitenta e sete e vo ser os prximos a serem cortados. O Salazar no vai ter tempo para aquilo que parece ser, a mim e a todas as outras pessoas que aqui esto, excepto tu, um caso de um agarrado. Sem margens para dvidas. O que que lhe vou dizer para o convencer a fazer o corte hoje? - Mostra-lhe o dedo. Diz-lhe que no havia rastos dentro do cano. Pensa em qualquer coisa. Diz-lhe que pela BD ele era um tipo que sabia muito bem o que eram as agulhas para ter tomado uma overdose. Sakai encostou a cabea ao painel lateral da carrinha e desatou s gargalhadas. Depois abanou a cabea como se uma criana tivesse dito uma piada. - E sabes o que que ele me ia dizer? Ia dizer que no interessa nada h quanto tempo que eles andam a injectar-se. Todos eles acabam por fazer borrada. Bosch, quantos agarrados com sessenta e cinco anos que vs por a? Nenhum chega a essa idade. No fim, a agulha lixa todos. Tal como esse gajo dentro do cano. Bosch voltou-se para trs e olhou em volta para se certificar que nenhum dos polcias uniformizados os estava a ver e a ouvir. Depois, fitou o rosto de Sakai. - Limita-te a dizer-lhe que passo por l mais tarde - disse numa voz muito calma. Se ele no encontrar nada nos preliminares, ento, tudo bem, podem enfiar o corpo dele no fim da bicha do corredor ou podem ir estacion-lo na bomba de gasolina em Lankershim. Nessa altura, j no me rala, Larry. Mas vais dizer-lhe. A deciso dele, no tua. Bosch tirou a mo da porta e recuou. Sakai entrou na carrinha e bateu com a porta. Ligou o motor e olhou para Bosch atravs da janela durante um bom bocado antes de a abrir. - Bosch, tu s uma porra dum chato. Amanh de manh. o melhor que consigo fazer. Hoje impossvel. - O primeiro do dia? - Mas deixa-nos em paz hoje, OK? - O primeiro? - Sim. Sim. O primeiro. - Claro, vou deixar-vos em paz. Ento, vemo-nos amanh. - Nem pensar, p. Amanh vou estar a dormir. Sakai voltou a fechar a janela e arrancou. Bosch recuou para o deixar passar e, quando o carro desapareceu, ficou sozinho a olhar para o cano. E foi a primeira vez que reparou nos graffitis. No que no tivesse reparado que o exterior do tubo estava literalmente coberto de mensagens pintadas, mas, desta vez, olhou para os rabiscos um a um. Muitos eram velhos, desbotados um quadro de letras que compunham ameaas que ou j tinham sido esquecidas h muito ou j tinham sido concretizadas. Havia slogans: Abandonem LA. Havia nomes: Ozone, Bomber, Stryker, muitos outros. Uma das palavras mais recentes chamou-lhe a ateno. Eram s trs letras, a uns trs metros e meio do final do tubo - Sha. As trs letras tinham sido pintadas num nico movimento fludo. A parte de cima do 00 estava dentada e depois contornada, dando a impresso de uma boca. Uma bocarra

aberta. No tinha dentes, mas Bosch conseguia senti-los. Dava a ideia de que a obra no tinha sido acabada. Mesmo assim, era um bom trabalho, original e limpo. Apontou-lhe a Polaroid e tirou uma fotografia. Bosch encaminhou-se para a carrinha da polcia, enfiando a pelcula no bolso. Donovan estava a arrumar o seu equipamento numas prateleiras e os sacos com as provas numas caixas de madeira de vinho do Napa Valley. - Encontraste fsforos queimados l dentro? - Sim, um recente - respondeu Donovan. - Ardido at ao fim. Estava a uns trs metros da entrada. Est ali, no diagrama.

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Bosch agarrou numa prancheta onde estava um papel com um diagrama do tubo, mostrando a localizao do corpo e onde tinham estado os outros materiais tirados do interior do cano. Bosch reparou que o fsforo tinha sido encontrado a uns quatro metros e meio do corpo. Donovan mostrou-lhe ento o fsforo, metido dentro do seu prprio saco de plstico. - Eu depois digo-te se condiz com a carteira de fsforos no equipamento do tipo disse-lhe ele. - Se que era nisso que estavas a pensar. - E as fardas? O que que eles encontraram? - perguntou-lhe Bosch. - Est tudo ali - respondeu Donovan apontando para um caixote de lixo de madeira onde estavam mais sacos de plstico. Estes continham o lixo apanhado pelos polcias da patrulha que tinham feito a busca rea num raio de cinquenta metros do tubo. Cada um dos sacos continha a descrio do local onde o objecto tinha sido encontrado. Bosch tirou os sacos um a um e examinou o contedo de cada um. A maior parte eram porcarias que no deveriam ter nada a ver com o cadver dentro do cano. Havia jornais, farrapos de pano, um salto alto, uma meia branca com tinta azul seca l dentro. Um trapo para snifar. Bosch agarrou num saco que continha a tampa de uma lata de tinta spray. O saco seguinte tinha a lata de spray. O rtulo dizia que era Azul Oceano. Bosch sopesou o saco e percebeu que a lata ainda tinha tinta. Levou o saco para junto do cano, abriu-o e, carregando com a ponta de uma caneta no boto, esguichou uma linha azul ao lado da palavra Sha. Carregou demasiado. A tinta escorreu pela superfcie curva do cano e pingou para o cascalho. Mas Bosch conseguiu ver que as cores condiziam. Pensou naquilo durante uns instantes. Por que que um pintor de graffitis havia de deitar fora uma lata ainda meia de tinta? Olhou para o que estava escrito no saco da prova. Tinha sido encontrada perto da borda do reservatrio. Algum tinha tentado atirar a lata para o lago, mas tinha falhado. Mais uma vez, voltou a perguntar: Porqu? Acocorou-se ao p do cano e olhou atentamente para as letras. Concluiu que, fosse qual fosse a mensagem ou o nome, no tinha sido acabado. Tinha acontecido qualquer coisa que fizera com que o artista interrompesse o que estava a fazer e deitasse fora a lata, a tampa e a meia para snifar por cima da vedao. Teria sido a polcia? Bosch puxou do bloco de notas e escreveu uma nota para se lembrar de telefonar a Crowley depois da meia-noite para saber se algum dos homens dele tinha andado a patrulhar o reservatrio durante o turno da madrugada.

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Mas se no tivesse sido um chui a fazer com que o tipo atirasse a tinta por cima da vedao? E se o pintor tivesse visto o cadver a ser metido no cano? Bosch pensou no que Crowley lhe tinha dito sobre a chamada annima a informar do cadver. Um mido, nada menos. Teria sido o pintor que telefonara? Bosch levou outra vez a lata para a carrinha da polcia e entregou-a a Donovan. - Tira as impresses digitais a isto a seguir ao equipamento e ao fogo - disse-lhe. Penso que capaz de pertencer a uma testemunha. - Certo - respondeu Donovan. Bosch desceu as colinas e apanhou a rampa do Barham Boulevard para entrar na auto-estrada de Hollywood em direco ao norte. Depois de ter subido ao longo do Desfiladeiro Cahuenga, seguiu para oeste pela auto-estrada de Ventura e depois outra vez para norte pela auto-estrada de San Diego. Levou cerca de vinte minutos

a percorrer os dezassete quilmetros. Era domingo e havia pouco trnsito. Saiu em Roscoe, percorreu uns dois quarteires para este, entrando no bairro de Meadows em Langdon. Sepulveda, tal como a maior parte das comunidades suburbanas de Los Angeles, tinha bairros bons e maus. Bosch no estava espera de relvados bem cuidados e passeios cheios de Mercedes e Volvos na rua de Meadows e no ficou desapontado. Os apartamentos j tinham deixado de ser atraentes h mais de dez anos. Havia grades em todas as janelas do rs-do-cho e graffitis em todas as portas de garagens. O cheiro penetrante da destilaria em Roscoe impregnava toda a zona. Tudo aquilo cheirava como um bar s quatro da manh. Meadows tinha vivido num bloco de apartamentos com a forma de um 00 que fora construdo nos anos cinquenta, quando o cheiro das flores secas dos lpulos ainda no se sentia e ainda existia esperana no bairro. Havia uma piscina no meio do ptio, mas h muito que estava cheia de areia e de terra. Agora, o ptio consistia num terreno com a forma de um rim cheio de erva castanha rodeado por cimento sujo. Meadows tinha vivido num apartamento de esquina no cimo das escadas. Bosch conseguia ouvir o permanente rugido da auto-estrada enquanto subia as escadas e percorria a passagem em frente dos apartamentos. A porta do 7B no estava fechada chave e abria para uma pequena diviso que era simultaneamente sala, casa de jantar e cozinha. Edgar estava encostado ao balco a escrever no bloco de notas. - Um stio agradvel, no ? - comentou ele. - Pois - respondeu Bosch, olhando em volta. - No est ningum em casa? - No. Falei com a vizinha da porta ao lado e ela disse-me que no via ningum por aqui desde anteontem. Disse que o tipo que morava aqui lhe tinha dito que se chamava Fields e no Meadows. Giro, hem? Ela disse que ele vivia sozinho. Estava c h cerca de um ano, no se dava com ningum. Era tudo o que sabia. - Mostraste-lhe a fotografia? - Sim, ela reconheceu-o. Mas no gostou de ter de olhar para a fotografia de um morto. Bosch dirigiu-se para um pequeno corredor que levava casa de banho e a um quarto de dormir. Perguntou: - Foraste a fechadura? - No... estava aberta. Palavra. Bati umas duas vezes e, quando estava a prepararme para ir buscar a bolsa ao carro para tratar da porta, resolvo experimentar a porta, s por tentar. - E ela abriu-se. - Abriu-se. - Falaste com o senhorio? - A senhoria no est. Era suposto estar, mas se calhar saiu para almoar ou para se injectar. Acho que toda a malta que vi por aqui agarrada. Bosch voltou para a sala e olhou em volta. No havia muito que ver. Um sof forrado de vinyl verde estava encostado a uma parede, uma cadeira estofada estava encostada parede contrria com um pequeno televisor a cores ao lado, em cima da carpete. Na casa de jantar, havia uma mesa com tampo de frmica e trs cadeiras em volta. A quarta cadeira estava sozinha, encostada parede. Bosch olhou para uma velha mesa de caf cheia de queimaduras de cigarros em frente do sof. Em cima dela, havia um cinzeiro a transbordar e um livro de palavras cruzadas. Havia cartas de jogar dispostas num jogo do solitrio que no tinha sido acabado. Havia um Tv Guide. Bosch no fazia a menor ideia se Meadows fumava, mas sabia que no se tinham encontrado cigarros no cadver. Tomou nota mentalmente para verificar depois. Edgar disse: - Harry, esta casa foi revistada. No s por a porta no estar fechada chave e isso, quero dizer, h outras coisas. Foi tudo revistado. Fizeram um trabalho meio decente, mas percebe-se. Foi pressa. Vai ver a cama e o armrio, percebes logo o que eu quero dizer. Vou tentar outra vez a senhoria.

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Edgar saiu e Bosch atravessou outra vez a sala em direco ao quarto. No caminho,

sentiu o cheiro a urina. No quarto, deparou-se com uma cama de casal sem cabeceira, encostada a uma parede. Havia uma descolorao gordurosa na parede branca no stio onde Meadows devia costumar apoiar a cabea quando estava sentado na cama. Em frente da cama, encostada parede havia uma cmoda velha com seis gavetas. Ao lado da cama, estava uma mesinha de cabeceira barata de rotim, com um candeeiro em cima. No havia mais nada no quarto, nem sequer um espelho. Bosch estudou primeiro a cama. No estava feita e as almofadas e os lenis estavam amontoados no meio. Bosch reparou que o canto de um dos lenis estava metido entre o colcho e o estrado de molas. Era bvio que a cama no tinha sido feita assim. Bosch puxou o canto para fora do colcho e deixou-o solto e cado do lado da cama. Levantou o colcho como se quisesse espreitar para baixo dele e depois baixou-o outra vez. O canto do lenol ficou outra vez entalado entre o colcho e o estrado das molas. Edgar tinha razo. A seguir, abriu as seis gavetas da cmoda. A roupa que l havia - roupa interior, meias brancas e escuras e vrias T-shirts - estava toda muito bem dobrada e no parecia ter sido mexida. Quando fechou a gaveta esquerda do fundo, reparou que ela no deslizava com facilidade e no fechava at ao fim. Puxou-a toda para fora da cmoda. Depois tirou outra gaveta. A seguir, tirou as outras todas. Quando tinha todas as gavetas tiradas, inspeccionou a parte de baixo de cada uma delas para ver se estava ou tinha estado alguma coisa l presa com fita adesiva. No encontrou nada. Voltou a coloc-las, mas foi mudando a ordem at conseguir que todas deslizassem facilmente e fechassem por completo. Quando terminou, as gavetas estavam todas numa ordem diferente. Na ordem certa. Concluiu que algum tinha tirado as gavetas para fora para procurar por baixo e atrs delas e as tinha voltado a enfiar numa ordem errada. Entrou no armrio-arrumao. S um quarto do espao disponvel que estava utilizado. No cho, havia dois pares de sapatos, um par de Reeboks para correr que estavam sujos de terra e de p cinzento e um par de botas de atacadores que pareciam ter sido limpas e engraxadas recentemente. Havia mais p cinzento na carpete. Baixou-se e agarrou um bocadinho com as pontas dos dedos. Parecia p de cimento. Tirou um saquinho para guardar provas do bolso e meteu um bocadinho do granulado l dentro. Depois, voltou a guardar o saco e levantou-se. Havia cinco camisas penduradas em cabides, uma branca com colarinho e quatro

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pretas de mangas compridas e sem colarinho, iguais que Meadows tinha vestida. Em cabides ao lado dos das camisas, estavam pendurados dois pares de jeans muito desbotados e dois pares de calas largas estilo Karate. Os bolsos dos quatro pares de calas tinham sido virados do avesso. No cho, um cesto de plstico para a roupa suja continha um par de calas pretas, T-shirts, meias e um par de boxers. Bosch saiu do armrio e deixou o quarto. Parou na casa de banho do corredor e abriu o armrio dos remdios. L dentro, havia um tubo de pasta de dentes quase gasto, um frasco de aspirinas e uma caixa vazia de seringas para insulina. Quando fechou o armrio, olhou para a sua prpria cara e viu o cansao nos olhos. Alisou o cabelo com a mo. Harry voltou para a sala e sentou-se no sof, frente do jogo do solitrio por acabar. Edgar entrou. - O Meadows alugou esta casa no dia um de Julho ltimo - disse ele. - A senhoria j voltou. Era um aluguer de pagamento mensal, mas ele pagou onze meses de entrada. Quatrocentos dlares por ms. Isso quer dizer que ele pagou quase cinco mil a pronto. Ela disse que no lhe tinha pedido referncias. Limitou-se a receber o dinheiro. Ele vivia... - Ela disse que ele pagou onze meses? - interrompeu Bosch. - Foi um acordo, tipo, pagas onze e ficas com o dcimo segundo borla? - No, eu perguntei-lhe isso e ela disse que no, que tinha sido ele. Era exactamente assim que ele queria pagar. Disse que ia deixar a casa no dia um de Junho, deste ano. Isso ... o qu... daqui a dez dias? Ela disse que ele tinha vindo para c por causa de um trabalho qualquer, est convencida que ele veio de Phoenix. Ela disse que ele era uma espcie de supervisor de turno na escavao do

tnel do projecto para o metro da baixa. Ficou com a impresso que era s isso que o trabalho ia demorar e que, depois, ele iria voltar para Phoenix. Edgar estava a olhar para as notas do caderno, revendo a conversa com a senhoria. - praticamente tudo. Ela tambm o identificou pela fotografia. Tambm o conhecia como Fields. Bill Fields. Disse que ele tinha um horrio muito esquisito, como se estivesse no turno da noite, ou qualquer coisa dessas. Disse que, na semana passada, o viu chegar a casa de manh, a ser despejado de um jipe beige ou castanho-claro. No temos o nmero da matrcula, porque ela no estava a olhar. Mas disse que ele estava todo sujo e foi assim que ela ficou a saber que ele estava a voltar do trabalho. Ficaram calados durante alguns instantes. A pensar.
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Por fim, Bosch disse: - J. Edgar, tenho negcio para te propor. - Tens um negcio para mim? Est bem, vamos l ouvir isso. - Vais para casa ou voltas para a tua demonstrao de casas, ou outra coisa qualquer. Eu encarrego-me disto a partir daqui. Vou buscar a cassete ao centro de comunicaes e voltar para o gabinete para comear a dar andamento papelada. Vou ver se o Sakai conseguiu a identificao atravs do familiar mais prximo. Julgo, se me estou a lembrar bem, que o Meadows era da Louisiana. De qualquer das maneiras, tenho a autpsia marcada para as oito horas de amanh. Tambm a posso ir buscar quando for para a esquadra. Agora, a tua parte: amanh acabas aquela coisa da TV da noite passada e vais entregar tudo ao DA. No deve haver problemas com isso. - Quer dizer que ficas com a parte que est mergulhada na merda e me deixas ir passear. O caso travesti-mata-travesti do mais claro e chato que h. - Pois . Mas h uma coisa que eu tambm quero. Amanh, quando vieres do Valley para o servio, pra na VA de Sepulveda e v se os consegues convencer a deixarte ver o processo do Meadows. Pode ser que l haja alguns nomes que nos possam ser teis. Como j disse, supostamente, ele andava a falar com um psiquiatra na unidade para pacientes ambulatrios e a frequentar um desses grupos idiotas. Talvez um desses tipos andasse a injectar-se com ele e saiba o que que aconteceu aqui. muito improvvel, eu sei. Se eles te chatearem, telefona-me que eu vou tratar de um mandado de busca. - Parece-me um bom negcio. Mas estou preocupado contigo, Harry. Quero dizer, tu e eu no somos parceiros h muito tempo e eu sei que, provavelmente, queres trabalhar de forma a conseguires voltar para o Departamento dos Assaltos e Homicdios na baixa, mas eu no vejo onde est o ganho em estarmos a esfalfarmonos com isto. Sim, esta casa foi virada do avesso, mas a questo no essa. A questo porqu. E perante o aspecto das coisas, nada me parece muito interessante. O que parece que algum despejou o Meadows l no cano da barragem depois de ele ter batido as botas e revistou a casa procura do fornecimento dele. Se que ele tinha. - Provavelmente, foi isso mesmo que aconteceu - disse Bosch passados uns instantes. - Mas h um par de coisas que continuam a aborrecer-me. Quero pensar nelas mais um bocadinho at me sentir seguro. - Bem, como j disse, por mim, no h problema nenhum. Ests a dar-me a parte limpa do negcio. - Acho que vou dar mais uma vista de olhos. Vai andando. Encontro-me contigo amanh quando voltar da autpsia. - Tudo bem, companheiro. - E... Jed? - Sim? - Isto no tem nada a ver com eu querer voltar para a baixa. Sozinho, Bosch sentou-se a pensar e a examinar a sala procura de segredos. Os olhos acabaram por pousar nas cartas de jogar espalhadas frente dele em cima da mesinha de apoio. O Solitrio. Viu que os quatro ases j estavam todos de fora. Pegou no monte das cartas restantes e comeou a percorr-lo, tirando trs cartas de uma vez. Enquanto o fazia, deparou-se com o dois e o trs de espadas e o dois de copas. O jogo no tinha chegado a um empate. Tinha sido interrompido. E nunca

fora acabado. Comeou a ficar agitado. Olhou para dentro do cinzeiro de vidro verde e viu que todas as pontas de cigarro eram de Camel sem filtro. Era a marca de Meadows ou do assassino? Levantou-se e comeou a andar pela sala. Voltou a sentir o leve cheiro a urina. Voltou para o quarto. Abriu as gavetas da cmoda e tornou a olhar para o contedo delas. No lhe ocorreu nada. Dirigiu-se para a janela e olhou para fora, para as traseiras de um dos prdios do outro lado do beco. Havia um homem com um carrinho de supermercado no beco. Estava a revolver com um pau o interior de um caixote de lixo. O carrinho estava meio cheio de latas de alumnio. Bosch afastou-se da janela e sentou-se na cama, encostando a cabea parede no stio en que devia ter estado a cabeceira e onde a tinta branca era de um cinzento sujo. A parede estava fria. - Diz-me qualquer coisa - sussurrou ele para ningum. Qualquer coisa tinha interrompido o jogo de cartas e Meadows tinha morrido ali, era o que ele pensava. Depois, Meadows tinha sido levado para o cano. Porqu? Porque que no o tinham deixado ali? Bosch encostou a cabea parede e olhou directamente para o outro lado do quarto. Foi nesse momento que reparou num prego enfiado na parede. O prego estava a uns noventa centmetros acima da cmoda e tinha sido pintado de branco juntamente com a parede, h j muito tempo. Fora por isso que no o tinha visto anteriormente. Levantou-se e foi espreitar atrs da cmoda. No espao de sete centmetros entre ela

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e a parede, viu o canto de uma moldura cada. Afastou com o ombro a cmoda pesada da parede e agarrou na moldura. Deu uns passos atrs e sentou-se na borda da cama a estud-la. O vidro estava partido numa intrincada teia de aranha, provavelmente originada pela queda. O vidro partido obscurecia parcialmente uma fotografia a preto e branco de vinte por vinte e cinco centmetros. Tinha bastante gro e estava a comear a ficar amarelo-acastanhado em volta das margens. A fotografia tinha mais de vinte anos. Bosch sabia disso pois, entre duas rachas do vidro, viu a sua prpria cara juvenil, a olhar em frente, sorrindo. Bosch virou a moldura ao contrrio e, com todo o cuidado, dobrou para trs os pregos que mantinham o carto das costas no stio. Quando estava a puxar a fotografia amarelada para fora, o vidro deu finalmente de si e caiu no cho aos estilhaos. Ele afastou os ps dos vidros, mas no se levantou. Estudou a fotografia. No havia nenhuma marca nem frente nem atrs que dissesse onde ou quando tinha sido tirada. Mas ele sabia que devia ter sido por volta do final de 1969 ou do princpio de 1970, porque alguns dos homens na fotografia tinham morrido depois disso. Eram sete na fotografia. Todos ratos dos tneis. Todos sem camisa, exibindo orgulhosamente as marcas das T-shirts e as tatuagens, as chapas identificadoras de cada um deles presas umas s outras com fita cola para no tilintarem quando rastejavam pelos tneis. Tinham de estar no Sector do Eco do Distrito de Cu Chi, mas Bosch no conseguia perceber nem lembrar-se de qual era a aldeia. Os soldados estavam em p numa trincheira, colocados de ambos os lados da entrada de um tnel que no era maior do que do cano onde mais tarde Meadows viria ser encontrado morto. Bosch olhou para si prprio e achou que o seu sorriso na fotografia era idiota. Agora, luz do que estava ainda por vir depois daquele momento ter sido captado, aquele sorriso envergonhava-o. Depois olhou para Meadows na fotografia e viu o sorriso fino e o olhar vazio. Bosch olhou para os estilhaos dos vidros entre os ps e viu um papel cor-de-rosa, com o tamanho aproximado de um bilhete de basebol. Levantou-o pelos cantos e examinou-o. Era uma cautela de uma loja de penhores na baixa. O nome do cliente que l estava escrito era William Fields. O artigo penhorado estava descrito como uma pulseira antiga, de ouro com incrustaes de jade. A cautela tinha a data de seis semanas atrs. Fields tinha conseguido 800 dlares pela pulseira. Bosch enfiou a cautela num saco para provas que trazia no bolso e levantou-se. A viagem at baixa levou uma hora por causa do trnsito que se dirigia para o estdio dos Dodgers. Bosch ocupou o tempo a pensar no apartamento. Tinha sido

revistado, mas Edgar tinha tido razo. Tinha sido um trabalho feito pressa. Os bolsos das calas eram uma indicao bvia. Mas as gavetas da cmoda deviam ter sido voltadas a meter como deviam ser e a fotografia e a cautela escondida da loja de penhores no deviam ter passado despercebidos. Qual teria sido a pressa? Concluiu que tinha sido o facto do corpo de Meadows se encontrar no apartamento. Tinha de ser removido. Bosch saiu na Broadway e seguiu para sul, passando pela Times Square, em direco casa de penhores situada no Bradbury Building. A Baixa de L.A. estava to sossegada como Forest Lawn na maior parte dos fins-de-semana e ele no estava espera de encontrar a Happy Hocker aberta. Estava apenas curioso e s queria passar por l e deitar uma olhadela loja antes de se dirigir para o centro de comunicaes. Mas, quando ia a passar em frente da fachada da loja, viu um homem l fora com uma lata de spray a pintar a preto a palavra ABERTO numa placa de contra-placado. Bosch conseguiu ver os fragmentos de vidro no passeio sujo por baixo do contraplacado. Encostou berma do passeio. O pintor da lata de spray j estava l dentro quando ele chegou porta. Entrou passando em frente do raio de um olho elctrico que fez soar uma campainha algures por cima de todos os instrumentos musicais pendurados do tecto. - No estou aberto, aos domingos no - gritou um homem do fundo da loja. Estava de p atrs de uma caixa registadora cromada que estava em cima de um balco de vidro. - No isso que diz o letreiro que acabou de pintar. - Sim, mas isso para amanh. As pessoas vem as tbuas nas montras e julgam que estamos fechados. Eu no estou fechado. Estou aberto para fazer negcio, excepto aos fins-de-semana. S ali vou ter a tbua durante uns dias. Pintei ABERTO para as pessoas ficarem a saber, est a ver? Recomeo amanh. - E o dono do negcio? - perguntou Bosch enquanto puxava da carteira e mostrava o distintivo. - Isto s lhe vai tomar uns minutos. - Oh, polcia. Por que que no disse logo? Passei o dia todo espera da polcia. Bosch olhou em volta, confuso, mas depois percebeu. - Est a falar da montra? Eu no vim por causa disso. - O que que quer dizer? O polcia da patrulha disse-me para esperar por um detective da polcia. Estou aqui desde as cinco da manh. Bosch olhou em redor da loja. Estava cheia da coleco habitual de instrumentos de sopro, velharias electrnicas, jias e artigos para coleces. - Olhe, Mr... - Obinna. Oscar Obinna das casas de penhores de Los Angeles e Culver City. - Mr Obinna, os detectives no tratam de casos de vandalismo aos fins-de-semana. Quero dizer, se calhar at j nem tratam durante a semana. - Qual vandalismo? Isto foi uma penetrao. Roubo qualificado. - Quer dizer um arrombamento? O que que levaram? Obinna apontou para dois balces expositores de vidro que flanqueavam a caixa registadora. A placa de cima de cada um dos balces tinha sido desfeita em mil bocados. Bosch aproximou-se e conseguiu ver pequenos artigos de joalharia, anis e brincos com ar de baratos, no meio dos estilhaos. Mas tambm viu pedestais para jias revestidos de veludo, placas em espelho e suportes de madeira para anis onde deviam estar peas, mas no estavam. Olhou em volta, mas no viu outros estragos na loja. - Mr Obinna, posso telefonar ao detective de servio e ver se ainda c mandam algum hoje, e se assim for, a que horas que vm. Mas eu no vim por causa disto. Bosch puxou do envelope de plstico transparente com a cautela l dentro. Levantou-o para Obinna poder ver. - Pode mostrar-me esta pulseira, se faz favor? Mal tinha acabado de dizer aquilo, sentiu-se invadido por um mau pressentimento. O penhorista, um homem pequeno, redondo, com pele escura e cabelo preto em farripas coladas no crnio calvo, olhou incredulamente para Bosch, com as espessas sobrancelhas escuras muito franzidas. - No vai fazer o relatrio das minhas vitrinas? - No, senhor, no vou. Estou a investigar um homicdio. Mostre-me por favor a pulseira que foi penhorada correspondente a esta cautela. Depois, telefono para o

departamento e fico a saber se vai vir c algum hoje por causa do seu assalto. Agradeo-lhe a sua cooperao. - Arre! Mas que gente! Eu coopero. Mando as minhas listas todas as semanas, at tiro fotografias para os vossos homens das penhoras. E quando a nica coisa que peo um detective para investigar um roubo, aparece-me um que diz que o seu trabalho so os homicdios. J aqui estou espera desde as cinco da manh! - D-me o telefone. Vou mandar c vir algum. Obinna tirou o auscultador de um telefone da parede por trs de uma das vitrinas partidas e entregou-lho. Bosch ditou-lhe o nmero para ele marcar. Enquanto Bosch falava com o detective de servio em Parker Center, o prestamista procurou a cautela no livro de registos. A detective de servio, uma mulher que Bosch sabia nunca ter estado envolvida em nenhuma investigao de campo com a Diviso de Assaltos e Homicdios em toda a sua carreira, perguntou a Bosch como que ele estava e depois disse-lhe que tinha encaminhado o arrombamento da casa de penhores para a esquadra da zona, embora soubesse que no havia l nenhum detective nesse dia. A esquadra da zona era a Diviso Central. Mesmo assim, Bosch deu a volta ao balco-expositor e marcou o nmero da Diviso Central. No houve resposta. Enquanto o telefone continuava a tocar sem ser atendido, Bosch iniciou uma conversa s de um lado. - Sim, fala o Harry Bosch, dos detectives de Hollywood. Queria saber em que p est o arrombamento da Happy Hocker na Broadway... Sim, ele est aqui. Sabem quando?... hum, hum, hum... Exactamente, Obinna, OBI-NNA. Olhou para Obinna que assentiu ao ouvi-lo soletrar o nome correctamente. - Sim, ele est aqui espera... Certo... Eu digo-lhe. Obrigado. - Desligou o telefone. Obinna olhou para ele com as sobrancelhas espessas levantadas em arco. - Tem sido um dia muito ocupado, Mr Obinna - disse-lhe Bosch. - Os detectives saram, mas viro c. J no devem demorar muito. Dei o seu nome ao polcia de servio e disse-lhe para os mandar c o mais depressa possvel. Bem, e agora posso ver a pulseira? - No. Bosch pescou um cigarro do mao que tirou do bolso do casaco. Sabia o que estava para vir ainda antes de Obinna ter esticado o brao para uma das vitrinas partidas. - A sua pulseira... desapareceu - disse o dono da casa de penhores. - Estive a ver no meu registo. Tinha-a aqui na vitrina porque era uma pea muito bonita, muito valiosa para mim. Agora, desapareceu. Somos ambos vtimas do ladro, no ? Obinna sorriu, aparentemente feliz por partilhar a sua desdita. Bosch olhou para o brilho dos estilhaos do vidro no fundo da vitrina. Concordou com a cabea dizendo: - verdade. - Est um dia atrasado, detective. Uma pena. - Disse que s estas duas vitrinas que tinham sido roubadas? - Sim. Partiram e agarraram. Rpido. Muito rpido. - A que horas? - A polcia telefonou-me s quatro e meia da manh. a hora que est no alarme. Vim logo. O alarme, quando a janela foi arrombada, o alarme disparou. Os polcias no encontraram ningum. Esperaram at eu chegar. Depois, fiquei espera dos detectives que no vm. No posso limpar as vitrinas at eles chegarem para investigarem o crime. Bosch estava pensar nas horas. O cadver largado no cano em qualquer momento antes do telefonema annimo para o 911 das quatro da manh. A casa de penhores assaltada por volta da mesma hora. Uma pulseira posta no prego pelo morto fora levada. No existem coincidncias, disse para consigo. - O senhor disse-me qualquer coisa sobre umas fotografias. Listas e fotografias para especificar os objectos penhorados? - Sim, LAPD, verdade. Entrego as listas de tudo o que recebo aos detectives dos penhores. a lei. Eu coopero a cem por cento. Obinna assentia com a cabea e, de sobrancelhas franzidas, olhava lugubremente para o expositor partido. - E quanto s fotografias? - insistiu Bosch. - Sim, as fotografias. Estes detectives dos penhores... eles pedem-me para tirar

fotografias das minhas melhores aquisies. Ajuda-os a identificar melhor os objectos roubados. A lei no obriga, mas eu digo, claro, coopero em tudo. Compro aquela mquina Polaroid. Guardo as fotografias se eles quiserem vir ver. Nunca vm. uma aldrabice. - Tem uma fotografia desta pulseira? As sobrancelhas de Obinna voltaram a arquear-se enquanto ele considerava aquela ideia pela primeira vez. - Acho que sim - respondeu ele e desapareceu atrs de um cortinado preto que tapava uma porta atrs do balco. Voltou uns momentos depois com uma caixa de sapatos cheia de fotografias Polaroid, cada uma delas com uma tira de papel qumico amarelo presa com um clipe. Percorreu rapidamente as fotografias, puxando de vez em quando uma para fora, erguendo as sobrancelhas e voltando a enfi-la no lugar. Por fim, descobriu aquilo que procurava. - C est. esta. Bosch agarrou na fotografia e observou-a atentamente. - Ouro antigo com jade cravado, muito bonita - disse Obinna. - Lembro-me dela, do melhor que h. No admira que o filho da me que me rebentou a montra a tenha levado. Feita nos anos trinta, Mxico... Dei ao homem oitocentos dlares. No pago muitas vezes um preo destes por uma jia. Lembro-me de um calmeiro que veio c com o anel da Super Bowl. Mil novecentos e oitenta e trs. Muito bonito. Dei-lhe mil dlares. Nunca o veio buscar. Estendeu a mo para mostrar o enorme anel de ouro que ainda parecia maior no seu dedo pequenino. - O tipo que empenhou a pulseira, tambm se lembra dele? - perguntou Bosch. Obinna pareceu intrigado. Bosch concluiu que observar as sobrancelhas dele era a mesma coisa do que observar duas lagartas a atacarem-se mutuamente. Tirou do bolso uma das Polaroids de Meadows e entregou-a ao comerciante. Ele observou-a de perto. - O homem est morto - disse Obinna passados uns momentos. As lagartas pareciam estremecer de medo. - O homem parece morto. - No preciso da sua ajuda para saber isso - respondeu Bosch. - Quero saber se foi ele que empenhou a pulseira. Obinna devolveu a fotografia, dizendo: - Acho que sim. - Alguma vez c veio penhorar qualquer coisa antes ou depois da pulseira? - No. Acho que me lembraria dele. Digo que no. - Preciso de levar isto disse Bosch, agarrando na Polaroid da pulseira. Se precisar que lha devolva, telefone-me. Ps um dos seus cartes em cima da caixa registadora. O carto era dos baratos, com o nome e o nmero do telefone escritos mo, tudo na mesma linha. Enquanto se dirigia para a porta da rua, passando por baixo de uma fila de banjos, Bosch consultou o relgio de pulso. Voltou-se para Obinna que estava outra vez a ver as Polaroids. - Mr Obinna, o agente de servio disse para eu lhe dizer que se os detectives no chegassem dentro de meia hora, o senhor devia ir para casa porque eles s viro amanh de manh. Obinna olhou para ele sem dizer palavra. As lagartas avanaram e colidiram uma contra a outra. Bosch olhou para cima e viu-se reflectido na curva de lato polido de um saxofone pendurado do tecto. Um tenor. Depois voltou-se e saiu, a caminho do centro de comunicaes para ir buscar a gravao. O sargento de servio no centro de comunicaes por baixo do City Hall deixou Bosch gravar a chamada para o 911 de uma das enormes bobinas duplas que nunca paravam de rolar e gravar os gritos da cidade.

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A voz do operador de servio era feminina e negra. A voz de quem telefonava era masculina e branca. Parecia de um rapaz. - Nove um um, emergncia. O que que est a participar? - Uh... uh... - Posso ajud-lo? O que que quer participar?

- Oh, sim, quero participar que tm um tipo morto dentro de um cano. - Disse que est a participar um cadver? - Sim, isso mesmo. - O que que quer dizer com um cano, senhor? - Ele est num cano ao p da barragem. - Que barragem essa? - Uh, sabe qual , aquela onde tm o reservatrio da gua e essas coisas todas, o letreiro de Hollywood. - Est a referir-se barragem de Mulholland, senhor? Por cima de Hollywood? - Sim, isso. Acertou. Mulholland. No me conseguia lembrar do nome. - Onde que est o corpo? - L em cima, tm um grande cano velho. Sabe, aquele onde as pessoas dormem. O tipo morto est dentro do cano. Est l. - Conhece a pessoa? - No, porra, nem pensar. - No est a dormir? - Merda, no - o rapaz riu-se nervosamente. - Est morto. - Como que tem a certeza? - Tenho a certeza. S lhe estou a dizer. Se no quiser... - Pode dizer-me o seu nome? - O que isto? Para que que precisa do meu nome? Eu s o vi. No fui eu que o matei. - Como que eu posso saber se um telefonema a srio? - V ver o cano, fica logo a saber. No sei que mais lhe posso dizer. O que que o meu nome tem a ver com isso? - Para os nossos registos, senhor. Pode dizer-me o seu nome? - Uh... No. - Senhor, vai ficar a at chegar um agente? - No, j nem l estou. No estou l, minha. Estou... - Eu sei. Tenho aqui a informao que diz que o senhor est num telefone pblico em Grower, perto do Hollywood Boulevard. Vai esperar pelo agente? - Como...? No interessa, tenho de me ir embora. Vo verificar. O corpo est l. Um tipo morto. - Senhor, ns gostaramos de falar... A chamada foi interrompida. Bosch enfiou a cassete no bolso e saiu do centro de comunicaes pelo caminho por onde tinha entrado. J h dez meses que Harry Bosch estava no terceiro andar do Parker Center. Tinha trabalhado na RHD1 - a Diviso dos Assaltos e Homicdios - durante quase dez anos, mas nunca mais l voltara depois da sua suspenso e posterior transferncia da brigada dos Homicdios Especiais para os detectives de Hollywood. No dia em que recebera a ordem, a secretria dele tinha sido limpa por dois parvalhes dos Assuntos Internos chamados Lewis e Clarke. Tinham despejado as coisas dele na mesa dos Homicdios na Esquadra de Hollywood e depois tinham-lhe deixado uma mensagem no atendedor de casa dizendo-lhe que era ali que as podia voltar a encontrar. Agora, dez meses depois, estava de volta ao andar sagrado do esquadro dos detectives de elite do departamento e estava satisfeito por ser domingo. No ia haver caras conhecidas. No haveria motivo para ter de desviar a cara. A Sala 321 estava vazia, exceptuando o detective de servio durante o fim-desemana que Bosch no conhecia. Harry apontou para o fundo da sala ao mesmo tempo que dizia: - Bosch, detectives de Hollywood. Preciso de usar a caixa. O homem de servio, um jovem com o corte de cabelo que tinha conservado desde que sara dos Fuzileiros, tinha um catlogo aberto em cima da secretria. Virou a cabea para olhar para os computadores ao longo da parede do fundo como se se quisesse certificar de que eles ainda l estavam e depois voltou-se de novo para Bosch. - suposto usar o da sua diviso - disse-lhe. Bosch passou por ele. - No tenho tempo para ir at Hollywood. Tenho uma autpsia daqui a vinte minutos - mentiu ele.

- Sabes, j ouvi falar de ti, Bosch. verdade. O espectculo da TV e isso tudo. Costumavas estar neste andar. Costumavas. A ltima frase ficou suspensa no ar como uma nuvem de poluio e Bosch tentou ignor-la. Enquanto se dirigia para os terminais dos computadores, no conseguiu evitar que os olhos se desviassem para a sua antiga secretria. Perguntou de si para consigo quem que a estaria
RHD Robbery Homicide Division. (N. X) t,S

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agora a utiliz-la. Estava a abarrotar e reparou que os cartes no Rolodex tinham os cantos muito direitos e lisos. Novos. Harry voltou-se e olhou para o detective de servio que ainda estava a olhar para ele. - Esta a tua secretria quando no ests de servio aos domingos? - O rapaz sorriu e assentiu com a cabea. - Bem a mereces, mido. Ests mesmo bem para o papel. Esse cabelo, esse sorriso estpido. Vais longe, vais. - S porque foste expulso daqui por teres a mania que sozinho s um exrcito... ah, vai-te foder, Bosch, tu j no s nada! Bosch puxou uma cadeira com rodas de uma das secretrias e empurrou-a para a frente do PC IBM em cima de uma mesa encostada parede do fundo. Carregou no boto e, segundos depois, as letras cor de mbar apareceram no cran: Homicide Information Tracking Management Automated Network. Durante uns curtos instantes, Bosch sorriu perante aquela necessidade imparvel que o departamento tinha de acrnimos. Parecia-lhe que todas as unidades, todas as tarefas, todos os ficheiros dos computadores tinham sido baptizados com nomes que davam aos seus acrnimos o ar de serem uma elite. Para o pblico, os acrnimos queriam dizer aco, grandes nmeros de efectivos militarizados aplicados nos problemas vitais. Havia HITMAN, COBRA, CRASH, BADCATS, DARE1. Uma centena de outros. Estava convencido que, algures, no Parker Center, havia algum que passava o dia todo a inventar acrnimos que despertassem a ateno. Os computadores tinham acrnimos, at as ideias tinham acrnimos. Se a tua unidade especial no tivesse um acrnimo, ento no passavas de um merdas neste departamento. Mal entrou no sistema HITMAN, apareceu no ecr um formulrio padro com vrias perguntas e ele preencheu os espaos em branco. Depois escreveu trs expresses de pesquisa: Mulholland Dam, overdose e overdose encenada. Depois carregou na tecla para executar. Meio minuto depois, o computador disse-lhe que uma pesquisa de oito mil casos o trabalho de cerca de dez anos armazenados no disco duro do computador tinha encontrado apenas seis resultados. Bosch chamou-os um a um. Os primeiros trs eram assassinatos no solucionados de mulheres jovens que tinham sido encontradas mortas na barragem, no princpio dos anos oitenta. Tinham sido estranguladas. Bosch
HITMAN Assassino Contratado; CRASH Coliso; BADCATS Gatos Maus; DARE Valentia. (N. T.)

leu-os de relance e passou frente. O quarto caso era o de um corpo que tinha sido encontrado a flutuar no reservatrio cinco anos antes. A causa da morte no tinha sido afogamento, mas continuava desconhecida. Os ltimos dois eram mortes por overdose. O primeiro ocorrera durante um piquenique no parque por cima do reservatrio. Bosch achou que parecia muito normal e passou adiante. O ltimo caso era o de um cadver encontrado no cano catorze meses atrs. A causa da morte tinha sido posteriormente atribuda a uma paragem cardaca devido a uma over-dose de herona. O falecido era conhecido por frequentar a rea da barragem e dormir no cano, dizia a informao do computador. No h mais desenvolvimentos. Era a morte a que Crowley, o sargento de servio de Hollywood, tinha mencionado quando acordara Bosch naquela manh. Bosch carregou numa tecla e imprimiu a informao sobre a ltima morte, embora no lhe parecesse que tivesse alguma coisa a ver com o seu caso. Saiu do programa, desligou o computador e ficou sentado durante uns momentos a pensar. Sem se levantar, rolou a cadeira para outro PC. Ligou-o e introduziu a sua palavra chave. Tirou a Polaroid do bolso, olhou para a pulseira e introduziu a sua descrio para uma pesquisa nos registos de propriedade roubada. Isto, por si s, j era uma arte. Teve de descrever a pulseira

da maneira como julgava que os outros polcias o fariam, polcias que eram capazes de estar a introduzir as descries de todo um inventrio das jias levadas num assalto ou num roubo. Descreveu a pulseira muito simplesmente como pulseira de ouro antiga com um desenho de golfinho embutido em jade. Carregou na tecla e trinta segundos depois, o ecr do computador disse: No foram encontrados resultados. Tentou outra vez, escrevendo pulseira de ouro e jade e voltou a carregar na tecla. Desta vez, havia 436 resultados. Demasiados. Precisava de arranjar uma rede mais apertada. Escreveu: Pulseira de ouro com peixe de jade e carregou na tecla. Seis resultados. J era melhor. O computador informou que uma pulseira de ouro com um peixe de jade gravado tinha aparecido em quatro relatrios de crimes e dois boletins do departamento que tinham sido introduzidos no sistema computadorizado desde que este tinha sido criado em 1983. Bosch sabia que, devido s imensas duplicaes de registos em todos os departamentos da polcia, todas as seis entradas podiam ser e provavelmente eram do mesmo caso ou relatrio de uma pulseira perdida ou roubada. 50 Chamou os relatrios abreviados para o ecr do computador e descobriu que a sua suspeita estava correcta. Os relatrios tinham tido como origem um nico roubo em Setembro na Sixth e Hill na baixa. A vtima era uma mulher chamada Harriet Beecham, de setenta e um anos, de Silver Lake. Bosch tentou lembrar-se daquela localizao, mas no conseguiu recordar de que edifcio ou negcio se tratava. No havia nenhum resumo do crime no computador; ia ter de ir aos registos e tirar uma cpia em papel. Mas havia uma descrio resumida da pulseira de ouro e jade roubada a Beecham. A pulseira que Harriet Beecham tinha dado como roubada podia ou no ter sido a que Meadows tinha empenhado - a descrio era demasiado vaga. Havia vrios nmeros de relatrios suplementares no relatrio do computador e Bosch anotou-os todos no caderno de notas. Enquanto o fazia, pensou que a perda de Harriet Beecham tinha gerado uma quantidade invulgar de papel. A seguir chamou as informaes nos dois boletins. Ambas tinham vindo do FBI, a primeira tinha sado duas semanas depois de Harriet Beecham ter sido assaltada. Tinha sido posteriormente reemitida trs meses mais tarde, quando as jias de Harriet Beecham ainda no tinham sido encontradas. Bosch apontou o nmero do boletim e desligou o computador. Atravessou a sala para a seco dos roubos/assaltos comerciais. Numa prateleira de ao que percorria toda a parede do fundo, havia dzias de dossiers pretos que continham os boletins e BOLOs 1 dos ltimos anos. Bosch tirou para baixo o que tinha marcado Setembro e comeou a procurar. Depressa percebeu que os boletins no estavam por ordem cronolgica e no tinham sado todos em Setembro. De facto, no havia ordem nenhuma. Ele era capaz de ter de procurar em todos os dez meses que tinham decorrido desde o assalto a Beecham at conseguir encontrar o boletim de que precisava. Tirou uma braada de pastas da prateleira e sentou-se mesa da seco dos assaltos. Momentos depois, sentiu a presena de uma pessoa do outro lado da mesa. - O que que queres? - perguntou sem olhar para cima. - O que que eu quero? - repetiu o detective de servio. - Quero saber que porra que ests a fazer, Bosch. Isto j no o teu local de trabalho. No podes entrar por aqui dentro como se fosses o chefe da banda. Pe essa merda outra vez na prateleira e, se a quiseres consultar, volta c amanh de manh e pede, diabos te carreguem. E no me venhas com histrias acerca de uma autpsia. J aqui ests h meia hora!
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BOLO Acrnimo de BE ON THE LOOK OUT, que corresponder a Ficar Atento (a qualquer pessoa ou coisa). (N. T.)

Bosch levantou a cabea para olhar para ele. Calculou que deveria andar pelos vinte e oito anos, talvez vinte e nove, ainda mais novo do que Bosch era quando tinha conseguira entrar para a Diviso de Assaltos e Homicdios. Ou os padres tinham baixado ou a RHD j no era o que era. Bosch sabia que, de facto, eram as duas coisas. Voltou a olhar para a pasta dos boletins. - Estou a falar contigo, estpido! - trovejou o detective. Bosch estendeu o p por baixo da mesa e deu um pontap cadeira sua frente. A cadeira saltou da mesa e as costas atingiram violentamente o detective nas

virilhas. Ele dobrou-se e soltou um som oomf, agarrando a cadeira para se apoiar. Bosch sabia que agora tinha a sua reputao a favor dele. Harry Bosch: um solitrio, um lutador, um assassino. V l, mido, estava ele a dizer, faz qualquer coisa. Mas o jovem detective limitou-se a olhar embasbacado para Bosch, a fria e a humilhao que sentia sob controlo. Era um polcia que era capaz de puxar da arma, mas que, se calhar, no era capaz de carregar no gatilho. E mal Bosch se apercebeu disso, soube que o rapazola se iria embora. O jovem detective sacudiu a cabea, abanou as mos como se estivesse a dizer: j chega disto, e voltou para a sua secretria. - V l, fedelho, participa de mim - gritou Bosch para as costas do rapaz. - Vai-te foder! - retorquiu o rapazote fracamente. Bosch sabia que no tinha com que se preocupar. O Departamento dos Assuntos Internos nem sequer leria uma queixa de um agente da polcia sobre outro sem ter uma testemunha ou uma gravao que a corroborasse. A palavra de um polcia contra a palavra de outro polcia era uma coisa em que nunca tocariam neste departamento. L no fundo, sabiam que a palavra de um polcia por si s no valia nada. Era por isso que os chuis dos Assuntos Internos andavam sempre aos pares. Uma hora e sete cigarros depois, Bosch descobriu-o. Uma fotocpia de outra fotografia Polaroid da pulseira de ouro e jade fazia parte de um pacote de cinquenta pginas de descries e fotografias de propriedade perdida num roubo ao WestLand National Bank na Sixth e Hill. Agora Bosch j era capaz de visualizar o endereo e lembrava-se do esfumado vidro escuro do edifcio. Nunca tinha entrado no banco. Um assalto a um banco em que tinham levado jias. No fazia muito sentido. Estudou a lista. Quase todos os artigos eram peas de joalharia e eram demasiadas para um assalto vulgar. S Harriet Beecham estava dada como tendo

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ficado sem oito anis, quatro pulseiras e quatro brincos, tudo peas antigas. Alm disso, estes artigos estavam listados como perdidos num roubo e no num assalto. Procurou um resumo do crime na folha Fiquem Atentos, mas no encontrou nenhum. Apenas o contacto no FBI: Agente Especial E. D. Wish. Depois reparou num rectngulo, na folha Fiquem Atentos, em que estavam anotadas trs datas para a data do crime. Um assalto com a durao de trs dias durante o primeiro fim-de-semana de Setembro. O fim-de-semana do Dia do Trabalhador, lembrou-se ele. Os bancos da baixa esto fechados trs dias. Tinha de ter sido um roubo aos cofres dos depsitos. Um trabalho feito por um tnel? Bosch recostou-se na cadeira e meditou naquilo. Por que que no se tinha lembrado daquilo? Um roubo daqueles devia ter estado nos meios de comunicao durante dias e dias. Tinha de ter sido discutido no departamento durante ainda mais tempo. Depois lembrou-se que estivera no Mxico no Dia do Trabalhador e que l tinha ficado durante as trs semanas seguintes. O assalto ao banco tinha ocorrido enquanto ele estava a cumprir um ms de suspenso por causa do caso Dollmaker. Inclinou-se para a frente, agarrou no telefone e marcou um nmero. - Times, Bremmer. - Fala o Bosch. Estou a ver que ainda te apanho a trabalhar aos domingos, hem? - Das duas s dez, todos os domingos, sem uma excepo. Ento, o que que se passa? No falo contigo desde... ah... o teu problema com o caso Dollmaker. Que tal achas a Diviso Hollywood? - Serve. Pelo menos, por agora. Estava a falar baixo para o detective de servio no ouvir. - Ah, com que ento assim? Bem, ouvi dizer que apanhaste com o presunto da barragem esta manh. Joel Bremmer j fazia a cobertura da seco da polcia para o Times h mais tempo do que a maioria dos polcias estavam ao servio, incluindo o prprio Bosch. No havia muita coisa que ele no ouvisse contar sobre o departamento ou no pudesse descobrir com um simples telefonema. Um ano antes tinha telefonado a Bosch para lhe pedir que comentasse os seus vinte e dois dias de suspenso. Bremmer tinha sabido disso antes do prprio Bosch. De um modo geral, o departamento da polcia odiava o Times, e o Times nunca poupava crticas ao departamento. Mas, no meio

disso tudo, havia o Bremmer em quem todos os polcias podiam confiar e muitos, como Bosch, confiavam mesmo. - Sim, esse caso meu - respondeu Bosch. - Para j, no nada de especial. Mas preciso de um favor. Se a coisa se desenrolar como neste momento me parece que vai acontecer, vai ser uma coisa que vais querer saber. Bosch sabia que no precisava de lhe deitar nenhum isco, mas queria que o reprter soubesse que poderia haver qualquer coisa mais tarde. - Do que que precisas? - perguntou Bremmer. - Como sabes, eu no estava na cidade no ltimo Dia do Trabalhador porque estava a gozar as minhas frias prolongadas, cortesia do DAI. Por isso, deixei escapar este. Mas houve... - O trabalhinho do tnel? No vais fazer-me perguntas sobre o trabalhinho do tnel, pois no? Aquele, aqui, na baixa da cidade? Todas aquelas jias? Ttulos negociveis, aces da bolsa e talvez at mesmo drogas? Bosch ouviu a voz do reprter subir uma oitava com a excitao. Ele tinha acertado, tinha sido um assalto por meio de um tnel e a histria tinha tido grande impacto. Se Bremmer estava assim to interessado, ento era porque era um caso muito importante. No entanto, Bosch estava surpreendido por no ter ouvido falar nisso quando regressara ao trabalho em Outubro. - Sim, esse mesmo - respondeu. - Eu no estava c na altura e, por isso, no o acompanhei. Foi feita alguma priso? - No, continua aberto. O FBI que est a tratar disso, segundo as ltimas informaes que obtive. - Quero ver os recortes esta noite. Pode ser? - Vou fazer cpias. Quando que vens? - Vou para a daqui a bocadinho. - Posso concluir que isto tem qualquer coisa a ver com o cadver desta manh? - o que parece. Talvez. Olha, neste preciso momento no posso falar. E sei que os tipos do FBI que tm o caso. Vou falar com eles amanh. por isso que preciso de ver os recortes esta noite. - Estarei aqui. Depois de ter desligado o telefone, Bosch olhou para a fotocpia do FBI da pulseira. No havia dvida que era a pea que tinha sido empenhada por Meadows e que estava na Polaroid de Obinna. A pulseira na fotografia do FBI estava no pulso cheio de manchas do fgado de uma mulher. Trs peixinhos encrostados a nadar numa onda de ouro. Bosch deduziu que devia ser o pulso de setenta anos de Harriet Beecham e a

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fotografia devia, muito provavelmente, ter sido tirada para efeitos do seguro. Olhou para o detective de servio que continuava a folhear o catlogo das armas. Tossiu alto, como tinha visto Nicholson fazer num filme, ao mesmo tempo que arrancava a folha BOLO do dossier. O jovem detective levantou os olhos para olhar para Bosch e depois voltou para as armas e as balas. Enquanto Bosch dobrava a folha dentro da algibeira, o seu pager electrnico apitou. Tomou nota do nmero e ligou para a Esquadra de Hollywood, espera de ouvir dizer que havia outro cadver espera dele. Quem atendeu a chamada foi um sargento de servio chamado Art Crocket, a quem toda a gente tratava por Davey. - Harry, ainda ests na rua? - Estou em Parker Center. Tinha de verificar umas coisas. - ptimo, ento j ests perto da morgue. Um tcnico de l chamado Sakai diz que precisa de falar contigo. - De falar comigo? - Ele disse para te dizer que aconteceu uma coisa qualquer e que vo fazer a autpsia hoje. Neste preciso momento, por sinal. Bosch levou cinco minutos a chegar ao County-USC Hospital e quinze a descobrir um stio para estacionar. O gabinete do mdico legista ficava atrs de um dos edifcios do centro mdico que tinham sido fechados depois do terramoto de 87. Era um pr-fabricado amarelo de dois andares sem qualquer estilo arquitectnico nem vida. Quando Bosch estava a passar as portas de vidro por onde entravam os vivos

para entrar no trio da frente, cruzou-se com um detective do gabinete do xerife com quem tinha passado algum tempo, quando estava a trabalhar na brigada especial Night Stalker nos princpios dos anos oitenta. - Ol, Bernie! - cumprimentou Bosch sorrindo-lhe. - Ora, vai-te foder, Harry! - respondeu Bernie. - Os outros tambm contam! Bosch ficou uns breves instantes parado a ver o detective dirigir-se para o parque de estacionamento. Depois entrou, virando direita para um corredor do tom verde do governo, passando por dois conjuntos de portas duplas, o cheiro a ficar cada vez pior. Era o cheiro da morte e do desinfectante industrial. A morte tinha vantagem. Bosch entrou na sala da preparao com os seus mosaicos amarelos. Larry Sakai j l estava a vestir uma bata de papel por cima do equipamento hospitalar. J tinha colocado a mscara e as botas de papel. Bosch tirou um conjunto igual de uma das caixas de carto em cima de um balco de ao inoxidvel e comeou a vestir-se. - O que que se passa com o Bernie Slaughter? - perguntou Bosch. - O que que lhe aconteceu que o ps to lixado? - Tu. O que lhe aconteceu foste tu - respondeu Sakai sem olhar para ele. - Ontem de manh recebeu uma chamada. Um tipo de dezasseis anos mata o melhor amigo dele com um tiro. L em Lancaster. Parece que foi um acidente, mas o Bernie est espera que a gente verifique o trajecto da bala e os resduos da plvora. Quer fechar o caso. Disse-lhe que amos tratar disso hoje, ao fim do dia, e por isso, ele veio para c. S que afinal no vamos mexer-lhe hoje. Porque o Sally ficou em pulgas para tratar do teu. No me perguntes porqu. Ele deu uma vista de olhos ao corpo quando o trouxe e disse que amos tratar dele hoje. Disse-lhe que teramos que passar frente de algum e ele disse-me para passarmos frente do Bernie. Mas eu no consegui contact-lo a tempo de ele no vir. por isso que o Bernie est lixado. Sabes que ele vive muito longe, l para o Diamond Bar. uma grande viagem para nada. Bosch j tinha posto a mscara, a bata e as botas e foi atrs de Sakai at sala das autpsias. - Ento, se calhar, ele devia era estar lixado com o Sally e no comigo - comentou ele. Sakai no respondeu. Aproximaram-se da primeira mesa onde se encontrava Billy Meadows, deitado de costas, nu, o pescoo preso a um bocado de madeira de cinco por dez. Havia seis mesas de ao inoxidvel na sala. Todas tinham calhas ao longo dos lados e buracos de escoamento nos cantos. Cada uma delas tinha um cadver em cima. O Dr. Jesus Salazar estava dobrado sobre o peito de Meadows, de costas voltadas para Sakai e Bosch. - Boa tarde, Harry, tenho estado tua espera - disse Salazar, continuando a no olhar para eles. - Larry, vou precisar de umas lminas disto. O mdico legista endireitou-se e voltou-se. Na palma da mo enfiada numa luva de borracha, tinha uma coisa que parecia um naco quadrado de carne e tecido muscular cor-de-rosa. Colocou-o num recipiente de ao inoxidvel, do tipo daqueles em que se cozem os Brownies e entregou-o a Sakai. - D-me verticais, uma do trajecto do furo e outras duas, uma de cada lado, para podermos comparar. Sakai agarrou no recipiente e saiu da sala a fim de ir para o laboratrio. Bosch viu que o bocado de carne tinha sido cortado do peito de Meadows, uns dois centmetros e meio por cima do mamilo esquerdo. - O que que encontrou? - perguntou Bosch. - Ainda no tenho a certeza. Vamos ver. A questo : o que que tu encontraste, Harry? O meu tcnico disse-me que estavas a exigir que fizssemos a autpsia deste caso ainda hoje. Porqu? - Eu disse-lhe que precisava dela para hoje porque a queria despachada amanh. Pensava que era isso que tnhamos combinado. - Sim, foi o que ele me disse, mas eu fiquei curioso. Adoro um bom mistrio, Harry. O que que te fez pensar que isto cheirava a esturro, como vocs, os detectives, costumam dizer? J no dizemos, pensou Bosch. Mal uma expresso comea a ser usada nos filmes e as pessoas como Salazar a passam a utilizar, passa histria. - Na altura, eram s umas coisas que no encaixavam - respondeu Bosch. - Agora j

h mais coisas. Na minha opinio, parece um homicdio. No tem nada de misterioso. - Que coisas? Bosch puxou do bloco de notas e comeou a passar as pginas enquanto falava. Fez a lista das coisas que tinha achado erradas na cena da morte: o dedo partido, a falta de rastos distintos no interior do cano, a camisa puxada para cima da cara. - Ele tinha um kit de droga no bolso e encontrmos um fogo no cano, mas no me parece certo. D-me mais a ideia que foram l plantados. Parece-me que a picada que o matou a que est ali no brao. As outras cicatrizes nos braos j so antigas. H anos que ele no andava a usar os braos. - Nisso, tens toda a razo. Para alm da picada recente no brao, a zona das virilhas o nico stio em que as picadas so recentes. No interior das coxas. Uma zona que normalmente s utilizada pelas pessoas que se do a grandes trabalhos para esconder o vcio. Mas, tambm podia ter sido a primeira vez que ele tinha voltado a usar o brao. Que mais tens, Harry? - Ele fumava, tenho a certeza disso. No havia nenhum mao de cigarros no cadver. - No pode ter havido algum que o tenha roubado do cadver? Antes de ele ter sido descoberto. Um daqueles mendigos que anda ao lixo? - verdade. Mas porqu levar os cigarros e deixar o equipamento? E ainda h o apartamento dele. Algum revistou a casa toda. - Pode ter sido algum que o conhecia. Algum que andava procura do stio onde ele escondia a droga. - Tambm pode ser verdade - Bosch folheou mais umas pginas do bloco de notas. O kit encontrado no corpo tinha cristais de um castanho esbranquiado no algodo. J vi bastante herona com alcatro para saber que torna o algodo castanho escuro, por vezes, at mesmo preto. Por isso, parece que foi um produto de boa qualidade, provavelmente estrangeiro, que foi injectado no brao. E isso no condiz com a maneira como ele estava a viver. Aquilo material da zona alta. Salazar meditou uns instantes antes de dizer: - Isso so uma data de suposies, Harry. - Mas a ltima coisa ... e eu ainda estou a comear a trabalhar nisto... que ele esteve envolvido num assalto qualquer. Bosch fez-lhe um breve resumo do que tinha descoberto sobre a pulseira, o seu furto do cofre forte do banco e depois da loja de penhores. O territrio de Salazar eram os pormenores forenses do caso. Mas Bosch sempre confiara em Salazar e descobrira que, por vezes, ajudava debater outros aspectos de um caso com ele. Tinham-se conhecido em 1974, quando Bosch era um polcia que fazia rondas e Sally era o novo assistente do mdico legista. Bosch tinha sido encarregado de fazer servio de guarda e controlo de multides na East Fifty-fourth em SouthCentral onde uma troca de tiros com o Exrcito de Libertao Symbionese tinha deixado uma casa completamente destruda pelo fogo e cinco cadveres nos escombros fumegantes. Sally tinha sido encarregado de descobrir se haveria um sexto Patty Hearst algures, no meio dos escombros. Os dois tinham passado trs dias l e, quando, finalmente, Sally desistiu, Bosch tinha ganho a aposta de que ela ainda estava viva. Algures. Quando Bosch acabou de contar a histria da puiseira, parecia que a preocupao de Sally sobre a morte de Meadows no ser um mistrio tinha sido aplacada. Dava a ideia de que tinha ficado cheio de energia. Voltou-se para um carrinho de rodas onde estavam amontoados os seus instrumentos de corte e puxou-o para o lado da mesa de autpsia. Ligou um gravador activado por voz e escolheu um escalpelo e uma vulgar tesoura de poda. Disse: - Bem, vamos l ao trabalho. Bosch recuou uns passos para evitar qualquer salpico e encostou-se a um balco onde estava um tabuleiro cheio de facas, serras e escalpelos. Reparou que um letreiro preso com fita cola num dos lados do tabuleiro dizia: Para Afiar. Salazar olhou para o corpo de Bill Meadows e comeou: - O cadver o de um caucasiano bem desenvolvido, com cerca de um metro e setenta e trs, setenta e cinco quilos de peso e um aspecto geral consistente com a idade de quarenta anos. O corpo est frio e no embalsamado, com o rigor mortis

totalmente instalado e a consequente lividez fixa. Bosch viu-o comear, mas de repente reparou no saco de plstico com a roupa de Meadows em cima do balco, ao lado do tabuleiro dos instrumentos. Puxou-o para si e abriu-o. O cheiro a urina atacou-lhe de imediato as narinas e, por instantes, pensou na sala do apartamento de Meadows. Calou um par de luvas de borracha enquanto Salazar continuava a descrever o cadver. - O indicador esquerdo mostra uma fractura palpvel sem lacerao nem contuso petequial nem hemorragia. Bosch olhou por cima do ombro e viu que Salazar estava a abanar o dedo partido com a ponta romba do escalpelo enquanto falava. Concluiu a descrio exterior do corpo referindo os furos na pele. - H feridas de perfuraes hemorrgicas, do tipo hipodrmicas, na zona superior do interior das coxas e no lado interior do brao esquerdo. A perfurao do brao exsude um fludo corporal e parece ser mais recente. Sem crostas. H outra perfurao na parte superior esquerda do peito que exsuda uma pequena quantidade de fludo corporal e parece ser ligeiramente maior do que a causada pela perfurao hipodrmica. Salazar ps a mo em cima do microfone do gravador e disse dirigindo-se a Bosch: - Vou mandar o Sakai preparar umas lminas desta perfurao no peito. Parece muito interessante. Bosch assentiu com a cabea e voltou-se outra vez para o balco, comeando a ouvir abrir as roupas de Meadows. Atrs dele, ouvia Salazar a usar a tesoura da poda para abrir o peito do morto. O detective virou todas as algibeiras do avesso e examinou os bocadinhos de fio. Virou as meias do avesso e examinou o forro das calas e da camisa. Nada. Tirou um escapelo do tabuleiro marcado Para Afiar e cortou os pontos do cinto de cabedal de Meadows, desfazendo-o todo. Mais uma vez, nada. Por cima do ombro, ouviu Salazar a dizer: - O bao pesa cento e noventa gramas. A cpsula est intacta e ligeiramente enrugada e a parnquima de um vermelho plido e trabcular. Bosch j tinha ouvido aquilo centenas de vezes. A maior parte das coisas que o patologista dizia para o seu gravador no tinha qualquer significado para o detective que estava ao p. Aquilo de que o detective estava espera era do resultado final. O que que tinha matado a pessoa estendida na fria mesa de ao inoxidvel? Como? Quem? - A vescula biliar tem paredes finas - estava Salazar a dizer. - Contm alguns centmetros cbicos de blis esverdeada e no tem pedras. Bosch voltou a enfiar as roupas dentro do saco de plstico e selou-o. A seguir, tirou de dentro de outro saco de plstico os pesados sapatos de couro para trabalho que Meadows trazia calados. Deu conta da poeira de um laranja avermelhado que caa do interior dos sapatos. Outra indicao de que o corpo tinha sido arrastado para dentro do cano. Os taces tinham raspado na lama seca no fundo do cano fazendo com que a poeira entrasse para dentro dos sapatos. Salazar disse: - A mucosa da bexiga est intacta e contm apenas sessenta mililitros de urina amarela clara. Os genitais externos e a vagina no tm nada de particular. Bosch deu meia volta. Salazar tinha a mo a tapar o microfone do gravador. - Humor de mdico legista - disse ele. - S queria ver se estavas a ouvir, Harry. Um dia podes vir a ter de testemunhar sobre isto. Para me apoiares. - Duvido - respondeu Bosch. - Eles no gostam de matar o jri de aborrecimento. Salazar ligou a pequena serra elctrica circular que era utilizada para abrir o crnio. O barulho que ela fazia era igual ao de uma broca de dentista. Bosch voltou-se outra vez para os sapatos. Estavam bem oleados e bem tratados. As solas de borracha mostravam apenas um desgaste modesto. Entalada num dos sulcos profundos da sola do sapato direito, estava uma pedrinha branca. Bosch tirou-a para fora com o escalpelo. Era um pedacinho de cimento. Lembrou-se do p branco no tapete do armrio de Meadows. Perguntou para consigo se o p ou o bocado de pedra da sola do sapato poderiam corresponder ao cimento que tinha protegido o cofre forte do WestLand Bank. Mas, se os sapatos estavam to bem tratados, poderia a pedra ter estado na sola durante os nove meses que j se tinham passado

desde que o cofre forte fora assaltado? Parecia improvvel. Talvez fosse do seu trabalho no projecto do metro.

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Se que ele realmente tinha esse emprego. Bosch enfiou o pedao de cimento num pequeno envelope de plstico e meteu-o na algibeira, juntamente com os outros que tinha vindo a coleccionar durante o dia. Salazar disse: - O exame da cabea e do contedo do crnio no revela traumatismos nem situaes patolgicas subjacentes nem anomalias congnitas. Harry, agora vou tratar do dedo. Bosch voltou a guardar os sapatos no saco de plstico correspondente e voltou para junto da mesa da autpsia quando Salazar colocava um raio-X da mo esquerda de Meadows na janela de luz instalada na parede. - Ests a ver aqui? Estes fragmentos? - perguntou ele enquanto indicava as ntidas pequenas manchas brancas no negativo. - Havia trs delas ao p da articulao partida. Se isto fosse uma fractura antiga, estas, com o tempo, ter-se-iam deslocado para a articulao. No h cicatrizes discernveis no raio-X, mas vou dar uma olhadela. Voltou para junto do corpo e utilizou um escalpelo para fazer uma inciso em00na pele por cima da articulao do dedo. A seguir, dobrou a pele para trs e foi espetando o escalpelo na carne cor-de-rosa, dizendo: - No... no... nada. Isto foi post mortem, Harry. Achas que pode ter sido feito por um dos meus homens? - No sei - respondeu Bosch. - No me parece. O Sakai disse que ele e o companheiro tinham sido muito cuidadosos. Eu sei que no fui eu. Como que explicas no haver nada na pele? - Isso uma pergunta interessante. No sei. A verdade que o dedo foi partido sem que o exterior tivesse sido atingido. No sei responder a isso. Mas no deve ter sido muito difcil faz-lo. Basta agarrar no dedo e puxar para baixo. Basta teres estmago para isso. Assim. Salazar deu a volta mesa. Levantou a mo direita de Meadows e puxou o dedo para trs. No conseguiu arranjar apoio para fazer a fora suficiente e o dedo no se partiu. - Mais difcil do que eu pensava - comentou ele. - Talvez o dedo tenha sido atingido com qualquer objecto rombo. Uma coisa que no ferisse a pele. Quando Sakai voltou com as lminas quinze minutos depois, a autpsia estava acabada e Salazar estava a coser o peito de Meadows com um grosso cordel encerado. A seguir usou uma mangueira pendurada por cima da cabea para lavar os detritos do corpo e fazer assentar o cabelo. Sakai prendeu as pernas uma outra e os braos ao corpo com

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corda, para impedir que se movesse durante os vrios estdios do rigor mortis. Bosch reparou que a corda passava por cima da tatuagem no brao de Meadows, mesmo por cima do pescoo do rato. Com o polegar e o indicador, Salazar fechou os olhos de Meadows. - Leva-o para o frigorfico - disse ele a Sakai. Depois, virando-se para Bosch, continuou: - Vamos l ver estas lminas. Isto parece-me estranho porque o buraco era maior do que o de uma agulha de droga normal e a sua localizao, no peito, era invulgar. - O furo claramente antemortem, possivelmente, perimortem - s houve uma leve hemorragia. Mas a ferida ainda no estava cicatrizada. Por isso, estamos a falar de pouqussimo tempo antes da morte, ou mesmo durante a morte. Talvez seja a causa da morte, Harry. Salazar levou as lminas para um microscpio que estava em cima da bancada ao fundo da sala. Escolheu uma das lminas e colocou-a na platina. Inclinou-se para observar e meio minuto depois comentou: - Interessante. Depois olhou rapidamente para as outras lminas. Quando acabou, voltou a colocar a primeira na platina. - OK, basicamente, o que eu fiz foi remover uma seco, com seis centmetros

quadrados, do stio onde este furo estava localizado. Entrei no peito, com o corte, a uma profundidade de quatro centmetros. A lmina uma dissecao vertical da amostra, mostrando a trajectria da perfurao. Ests a perceber? Bosch disse que sim com a cabea. - ptimo. mais ou menos como cortar uma ma de forma a expor o trajecto de uma lagarta. A lmina traa o caminho da perfurao e qualquer impacto imediato ou dano. Agora, v tu. Bosch inclinou-se para a ocular do microscpio. A lmina mostrava uma perfurao a direito, com cerca de dois centmetros e meio de profundidade que atravessava a pele e entrava no msculo, estreitando-se em largura como uma agulha. A cor rosada do msculo passava a um tom castanho escuro volta do ponto mais profundo da perfurao. - O que que isto quer dizer? - perguntou ele. - Quer dizer - respondeu Salazar - que a perfurao atravessou a pele, atravessou a faseia - quer dizer, a camada de gordura fibrosa - e depois entrou directamente no msculo peitoral. Ests a ver a cor mais escura do msculo volta da penetrao? - Sim, estou a ver. - Harry, isso quer dizer que o msculo est queimado nesse stio.

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Bosch desviou o olhar do microscpio para Salazar. Pensou que era capaz de perceber a linha de um sorrisinho por baixo da mscara do patologista. - Queimado? - Uma arma de aturdir - disse o patologista. - Procura uma que dispare o seu dardo de elctrodos bem para o fundo do tecido da pele. Uma profundidade de cerca de quatro centmetros. Embora, neste caso, seja provvel que o elctrodo tenha sido enfiado mais para dentro do peito manualmente. Bosch pensou uns instantes. Uma arma de aturdir seria virtualmente impossvel de encontrar e seguir a pista. Sakai voltou para a sala e encostou-se bancada junto da porta, a observar. Salazar foi buscar ao carrinho das ferramentas trs frascos de sangue e dois contendo um lquido amarelado. Havia tambm um pequeno recipiente de ao inoxidvel com um bocado castanho de uma substncia que Bosch reconheceu, pela experincia adquirida naquela sala, como sendo o fgado. - Larry, toma as amostras para os txicos - disse Salazar. Sakai agarrou nelas e desapareceu outra vez da sala. - Ests a falar de tortura? Choques elctricos? - perguntou Bosch. - Diria que o que me parece - respondeu Salazar. - No o suficiente para o matar, o traumatismo demasiado pequeno. Mas, possivelmente, foi o suficiente para lhe extrair informaes. Uma carga elctrica pode ser muito persuasiva. Acho que h muita documentao sobre isso. Com o elctrodo posicionado no peito do sujeito, provavelmente, ele conseguia sentir a electricidade a entrar-lhe directamente no corao. Teria ficado paralisado. Disse-lhes tudo o que eles queriam e depois, a nica coisa que pde fazer foi olhar enquanto eles lhe enfiavam no brao a dose fatal de herona. - Podemos provar alguma coisa disto? Salazar olhou para os mosaicos do cho e levou o dedo mscara, coando o lbio por baixo dela. Bosch estava a morrer por um cigarro. Estava na sala de autpsias h quase duas horas. - Provar alguma coisa? - repetiu Salazar. - Clinicamente, no. Os testes aos txicos estaro prontos daqui a uma semana. Digamos que, por hiptese, eles provam que houve uma overdose de herona. Como que vamos provar que foi outra pessoa que lha meteu no brao e no ele mesmo? Clinicamente, no podemos. Mas podemos provar que no momento da morte, ou pouco antes, houve uma agresso traumtica ao corpo na forma de um choque elctrico. Ele estava a ser torturado. - Depois da morte, h o dano inexplicvel provocado no primeiro dgito da mo esquerda. Voltou a esfregar a mscara com o dedo e concluiu: - Eu podia testemunhar que isto um homicdio. A totalidade das provas mdicas indicam morte s mos de outros. Mas, por agora, no h motivo. Vamos esperar pelos resultados dos testes e depois voltamos a debruarmo-nos os dois sobre o

assunto. Bosch escreveu uma parfrase daquilo que Salazar tinha acabado de dizer no seu bloco de notas. Ia ter de incluir aquilo tudo no seu relatrio. - Claro que - disse Salazar - provar isto a um jri de forma a no haver qualquer dvida outra histria. C para mim, Harry, vais ter de encontrar essa tal pulseira e descobrir porque que valeu a pena torturar e matar um homem por causa dela. Bosch fechou o bloco de notas e comeou a despir a bata de papel. O sol poente incendiava o cu de cor-de-rosa e laranja com as mesmas tonalidades intensas dos fatos dos surfistas. Era uma iluso maravilhosa, pensou Bosch enquanto seguia para norte, pela auto-estrada de Hollywood, a caminho de casa. Aqui, os ocasos tinham esse efeito. Faziam uma pessoa esquecer-se que era a nuvem de poluio que fazia com que as cores fossem to brilhantes, que, por trs de cada belo quadro podia haver uma histria muito feia. O Sol pairava como uma bola de cobre na janela do lado do condutor. Ele tinha o rdio do carro sintonizado numa estao de jazz e Coltrane estava a interpretar Soul Eyes. No banco ao lado dele, estava um dossier contendo os recortes dos jornais de Bremmer. O dossier estava seguro com uma embalagem de seis Henry00s. Bosch saiu em Barbam e subiu a Woodrow Wilson entrando nas calinas por cima da Studio City. A casa dele era composta por uma nica diviso em madeira, com uma estrutura metlica e pouco maior do que uma garagem em Beverly Hills. Estava pendurada da colina, por cima do precipcio, e estava apoiada em trs pilares de ao no seu ponto central. Era um stio muito assustador para se estar durante um terramoto, desafiando a Me Natureza a soltar os pilares e a fazer a casa deslizar pela colina abaixo como um tren. Mas a vista era a compensao. Da varanda de trs, Bosch conseguia olhar para nordeste para l de Burbank e Glendale. Conseguia ver as montanhas de uma tonalidade prpura para l de Pasadena e Altadena. Por vezes, conseguia ver as chamas cor de laranja e o fumo dos fogos que consumiam os arbustos das colinas. A noite, o barulho

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da auto-estrada l em baixo abrandava e os holofotes da Universal City varriam o cu. Olhar para o Valley nunca deixava de dar a Bosch uma sensao de poder que ele no era capaz de explicar a si prprio. Mas sabia que era uma razo a razo principal que o levara a comprar a casa e a no querer deix-la nunca. Bosch tinha-a comprado h oito anos atrs, antes da exploso da imobiliria se ter tornado seriamente endmica, com uma entrada de 50000 dlares. Isso deixara-o com uma hipoteca de 1400 dlares por ms, que ele podia pagar facilmente uma vez que as nicas coisas em que gastava dinheiro eram comida, lcool e jazz. O dinheiro para a entrada tinha vindo de um estdio que lhe pagara pelo direito de usar o nome dele numa mini-srie baseada numa sequncia de assassinatos dos proprietrios de sales de beleza de Los Angeles. Durante as investigaes, Bosch e o seu parceiro foram interpretados por dois actores de TV de nvel mdio. O parceiro agarrara nos seus cinquenta mil dlares e na penso e mudara-se para Enseneda. Bosch aplicara os seus numa casa que ele no tinha a certeza de conseguir resistir a um tremor de terra, mas que o fazia sentir-se o prncipe da cidade. Apesar da resoluo de Bosch de nunca se mudar, Jerry Edgar, o seu parceiro actual e agente imobilirio em part-time, disse-lhe que a casa valia agora o triplo do que ele pagara por ela. Sempre que o assunto das propriedades imobilirias vinha baila, o que era frequente, Edgar aconselhava Bosch a vend-la e a comprar outra. Edgar queria fazer negcio. Bosch s queria ficar onde estava. J estava escuro quando ele chegou casa da colina. Bebeu a primeira cerveja de p, na varanda de trs, a olhar para o manto das luzes l em baixo. Bebeu a segunda garrafa sentado na sua cadeira das vigias, o dossier fechado no colo. No tinha comido nada durante todo o dia e a cerveja fez efeito imediato. Sentia-se letrgico, mas agitado, o corpo a dizer-lhe que precisava de comida. Levantou-se, foi para a cozinha e fez uma sanduche de peru enlatado que trouxe para a cadeira com outra cerveja. Quando acabou de comer, sacudiu as migalhas da sanduche de cima do dossier e

abriu-o. Tinha havido quatro histrias sobre o assalto ao WestLand Bank no Times. Leu-as pela ordem em que tinham sido publicadas. A primeira era apenas um texto muito curto que tinha sado na pgina trs na seco de notcias locais do jornal. Aparentemente, a informao tinha sido recolhida na tera-feira em que o roubo tinha sido descoberto. Nessa altura, o LAPD e o FBI no estavam interessados em falar com a imprensa ou em deixar que o pblico soubesse o que tinha acontecido.
AUTORIDADES INVESTIGAM ASSALTO A BANCO

Uma quantidade no especificada de valores foi roubada do WestLand Bank, na baixa, durante os trs dias de feriado do fim-de-semana, disseram as autoridades na tera-feira. O assalto, a ser investigado pelo FBI e pelo Departamento da Polcia de Los Angeles, foi descoberto quando os gerentes do banco, localizado na esquina da Hill Street com a Sixth Avenue, chegaram na tera-feira e descobriram que os cofres da caixa-forte tinham sido saqueados, informou o Agente Especial do FBI John Rourke. Rourke disse que ainda no fora feita uma estimativa da perda de valores. Mas fontes prximas da investigao disseram que tinha sido levado mais de um milho de dlares em jias e outros valores depositados pelos clientes no banco. Rourke tambm se recusou a dizer como que os assaltantes entraram na caixa-forte, mas informou que o sistema de alarme no estava a funcionar como devia ser. Recusou-se a dar mais informaes. Um porta voz do WestLand recusou, na tera-feira, falar sobre o assalto. As autoridades disseram que no havia prises nem suspeitos.

Bosch escreveu o nome John Rourke no bloco de notas e passou para a histria seguinte que era muito maior. Tinha sido publicada um dia depois da primeira e tinha sido publicitada no cimo da primeira pgina da seco de notcias locais. Tinha um ttulo duplo e estava acompanhada pela fotografia de um homem e de uma mulher no interior da caixa-forte, a olhar para uma abertura do tamanho de uma tampa de um poo de inspeco. Atrs deles estava uma pilha de cofres. A maior parte das pequenas portas na parede do fundo estavam abertas. O nome de Bremmer constava como o autor da notcia.
PELO MENOS 2 MILHES DE DLARES LEVADOS NO ASSALTO AO BANCO ATRAVS DE TNEL; BANDIDOS TIVERAM FIM-DE-SEMANA DOS FERIADOS PARA ESCAVAR E ENTRAR NA CAIXA-FORTE

O artigo desenvolvia a primeira histria, incluindo o pormenor dos criminosos terem aberto um tnel at ao interior do banco, escavando cerca de cento e cinquenta metros a partir de um esgoto de escoamento
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das guas das chuvas que passava por baixo da Hill Street. A histria dizia que tinha sido utilizada uma carga explosiva para rebentar o cho do cofre-forte. Segundo o FBI, os ladres tinham provavelmente passado a maior parte do fim-desemana no interior da caixa-forte, abrindo os cofres com berbequins. Pensava-se que o tnel do esgoto at caixa-forte tinha sido escavado durante as sete ou oito semanas que antecederam o assalto. Bosch fez uma nota para perguntar ao FBI como que o tnel tinha sido aberto. Se tinha sido utilizado equipamento pesado, a maioria dos alarmes dos bancos, que mediam o som assim como as vibraes da terra, teriam captado o movimento no solo e teriam tocado. Alm disso, perguntou para consigo, por que que o explosivo no teria feito disparar os alarmes? Voltou-se ento para o terceiro artigo, publicado no dia seguinte ao segundo. Este no era escrito por Bremmer, embora ainda tivesse aparecido na primeira pgina da seco notcias locais. Era uma reportagem sobre as dzias de pessoas que faziam fila no banco para verem se os seus cofres estavam entre os que tinham sido arrombados e esvaziados. O FBI escoltava-as at caixa-forte e depois recolhia as suas declaraes. Bosch leu e releu a histria com toda a ateno, mas encontrou sempre a mesma coisa: pessoas zangadas ou perturbadas, ou ambas as coisas por terem perdido o que tinham depositado nos cofres porque acreditavam que era mais seguro do que t-los em casa. No final da histria, havia uma referncia a Harriet Beecham. Tinha sido entrevistada quando saa do banco e

contara ao reprter que tinha ficado sem uma coleco de objectos preciosos, coleccionados durante as viagens que fizera com Harry, o marido j falecido. A histria dizia que Harriet Beecham estava a limpar as lgrimas com um leno de renda. - Fiquei sem os anis que ele me comprou em Frana, uma pulseira de ouro e jade do Mxico - contara Beecham. - Quem quer que fez isto, roubou-me as minhas recordaes. Muito melodramtico. Bosch perguntou para consigo se esta ltima citao no teria sido inventada pelo reprter. A quarta histria no dossier tinha sido publicada uma semana mais tarde. Da autoria de Bremmer, era pequena e tinha sido enterrada nas ltimas pginas das notcias locais, onde eles enfiavam todas as notcias referentes ao Valley. Bremmer dizia que a investigao do assalto ao WestLand estava a ser feita exclusivamente pelo FBI. O LAPD tinha fornecido apoio inicial, mas, medida que as pistas iam arrefecendo, o caso

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ficara nas mos do FBI. O Agente Especial John Rourke era novamente citado nesta histria. Disse que os agentes ainda continuavam a trabalhar a tempo inteiro no caso, mas que no se tinham feito quaisquer progressos e que no tinham identificado nenhuns suspeitos. Nenhum dos valores roubados dos cofres, disse ele, tinha aparecido. Bosch fechou o dossier. O caso era demasiado importante para o FBI o largar como um vulgar assalto a um banco. Gostaria de saber se Rourke teria dito a verdade sobre a ausncia de suspeitos. Pensou se o nome de Meadows teria aparecido alguma vez. Duas dcadas antes, Meadows tinha combatido e, por vezes, vivido nos tneis por baixo das aldeias do Vietname do Sul. Tal como todos os combatentes dos tneis, ele sabia fazer demolies. Mas isso era para destruir um tnel com explosivos. Teria ele aprendido a rebentar com o cho de cimento e ao da caixaforte de um banco? Nessa altura, Bosch lembrou-se que Meadows no teria tido obrigatoriamente de saber. Ele tinha a certeza que o trabalho do WestLand tinha sido feito por mais de uma pessoa. Levantou-se e foi buscar outra cerveja ao frigorfico. Mas, antes de voltar para a poltrona, passou pelo quarto onde foi buscar um velho lbum de recortes gaveta de baixo da cmoda. Outra vez sentado na cadeira, bebeu metade da cerveja e abriu o lbum. Havia montes de fotografias soltas no meio das folhas. Tinha tido a inteno de as organizar, mas nunca tinha chegado a faz-lo. A verdade que raramente abria o lbum. As folhas estavam amareladas e as pontas estavam mesmo castanhas. Estavam quebradias, tal como acontecia com as recordaes que as fotografias evocavam. Pegou numa fotografia de cada vez e examinou-a, apercebendo-se a dada altura que nunca as tinha chegado a colar porque gostava da ideia de segurar cada uma das fotografias, sentindo-a na mo. * Todas as fotografias tinham sido tiradas no Vietname. Tal como a fotografia que tinha encontrado em casa de Meadows, estas eram quase todas a preto e branco. Nessa altura, em Saigo, era mais barato revelar fotografias a preto e branco. Bosch estava em algumas das fotografias, mas a maioria delas tinham sido tiradas por ele com uma velha Leica que o pai adoptivo lhe tinha dado antes de ele se ir embora. Foi um gesto de reconciliao por parte do Velho. Ele no tinha querido que Harry fosse e tinham discutido por causa disso. Fora por isso que a mquina tinha sido oferecida. E aceite. Mas Bosch no era do gnero de contar histrias quando voltou e, por isso, as fotografias tinham sido deixadas espalhadas por entre as pginas do lbum, para nunca serem coladas e raramente serem vistas.

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Se havia um tema recorrente nas fotografias, eram as caras sorridentes e os tneis. Em quase todas, havia soldados de p, numa pose desafiadora, frente da entrada de um buraco de onde, provavelmente, tinham acabado de sair depois de o terem conquistado. Para uma pessoa de fora, as fotografias pareceriam estranhas, talvez mesmo fascinantes. Mas, para Bosch, eram to assustadoras como as fotografias que ele tinha visto nos jornais de pessoas presas nos escombros de carros todos destrudos espera que os bombeiros as tirassem de l. Eram fotografias das caras

sorridentes de rapazes que tinham descido at ao inferno e tinham voltado para sorrirem para a objectiva. Da luz para a escurido, era o que eles chamavam s entradas nos tneis. Cada uma era um eco negro. L dentro no havia nada a no ser a morte. Mas, mesmo assim, eles iam. Bosch virou uma folha enrugada do lbum e deparou-se com Billy Meadows a olhar para ele. Era indubitvel que esta fotografia tinha sido tirada poucos minutos depois da que Bosch encontrara no apartamento de Meadows. O mesmo grupo de soldados. A mesma trincheira e o mesmo tnel. Sector do Echo, Distrito de Cu Chi. Mas Bosch no estava l porque tinha deixado o grupo para tirar a fotografia. A sua Leica tinha apanhado o olhar vazio e o sorriso pedrado de Meadows a pele clara parecia cera, mas retesada. Tinha captado o verdadeiro Meadows, pensou Bosch. Voltou a meter a fotografia na folha e passou para a seguinte. Esta era dele mesmo. No havia mais ningum no enquadramento. A mquina tinha disparado quando ele estava sem camisa, a tatuagem no ombro muito queimado a receber o sol poente que entrava pela janela. Atrs dele, mas desfocada, estava a entrada escura de um tnel destapado no cho de palha da cabana. O tnel estava obscurecido, escurido ameaadora, como a boca horripilante no quadro de Edvard Munch, o Grito. Era um tnel na aldeia a que eles chamavam Timbuk2, lembrou-se Bosch ao olhar para a fotografia. O seu ltimo tnel. No estava a sorrir na fotografia. Os olhos estavam afundados em olheiras sombrias. E tambm no estava a sorrir agora que olhava para ela. Segurou a fotografia com as duas mos, esfregando distraidamente os polegares nas bordas, para cima e para baixo. Ficou a olhar para a fotografia at que a fadiga e o lcool o arrastaram para um torpor pensativo. Quase como um sonho. E ele recordou aquele ltimo tnel e recordou Billy Meadows. Entraram trs. Saram dois. O tnel tinha sido descoberto durante uma rusga de rotina numa pequena aldeia do Sector E. A aldeia no tinha nome nos mapas de reconhecimento e, por isso, os soldados chamaram-lhe Timbuk2. Os tneis no paravam de aparecer por todos os lados e, por isso, no havia ratos que chegassem para todos. Quando a boca do tnel foi encontrada dentro de uma palhoa, debaixo de um cesto de arroz, o primeiro sargento no tinha querido esperar que aparecesse um helicptero com mais ratos. Queria sair dali, mas sabia que no o podia fazer sem investigar o tnel. Por isso, o primeiro-sargento tinha tomado uma deciso, como tantas outras durante a guerra. Mandara entrar trs dos seus prprios homens. Trs virgens, borrados de medo, com uns seis meses de mato, somando o tempo de todos. O sargento disse-lhes para no avanarem muito, para se limitarem a colocar os explosivos e a sair de l. Sejam rpidos e cubram-se uns aos outros. Os trs soldados inexperientes entraram obedientemente no buraco. S que, meia hora mais tarde, s dois que saram. Os dois que tinham conseguido sair disseram que os trs se tinham separado. O tnel ramificava-se em vrias direces e eles separaram-se. Estavam a contar isto ao primeiro-sargento quando se ouviu um grande estrondo e uma enorme nuvem de fumo, poeira e fragor irrompeu da boca do tnel. Os explosivos C-4 tinham detonado. O tenente da companhia apareceu nesse momento e disse que no sairiam da zona sem o homem que faltava. Toda a companhia esperou um dia que o fumo e o p assentassem no tnel e depois dois ratos dos tneis - Harry Bosch e Billy Meadows - foram largados por um helicptero. No queria saber se o soldado desaparecido estava morto, disse-lhes o tenente. Tirem-no de l. No ia deixar um dos seus homens naquele buraco. - Vo busc-lo e tragam-no c para fora para lhe podermos dar um enterro decente - disse-lhes o tenente. Meadows respondeu: - Ns tambm no deixaramos um dos nossos ali dentro. - Bosch e Meadows desceram pelo buraco e descobriram que a entrada principal dava para uma diviso onde estavam guardados cestos de arroz e de onde saam trs outras passagens. Duas tinham desabado com as exploses. A terceira continuava aberta. Era aquela onde tinha entrado o soldado desaparecido. E foi nela que os dois entraram. Rastejaram pela escurido, Meadows frente, usando as lanternas parcimoniosamente, at que chegaram a um beco sem sada. Meadows

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apalpou o cho sujo do tnel at descobrir a porta escondida. Abriu-a e dois desceram para outro nvel do labirinto. Sem dizer uma palavra, Meadows apontou para um lado e afastou-se a rastejar. Bosch sabia que ia para o outro lado. Agora, cada um deles ficaria sozinho, a no ser que os VC estivessem espera l frente. O caminho de Bosch era uma passagem serpenteante que estava to quente como um banho de vapor. O tnel cheirava a humidade e a latrina. Sentiu o cheiro do soldado desaparecido antes de o ver. Estava morto, o corpo a apodrecer, mas sentado no meio do tnel com as pernas abertas e esticadas, as pontas dos dedos viradas para cima. O corpo estava encostado a um poste preso no cho do tnel. Um bocado de arame, cravado uns dois centmetros e meio no pescoo, estava enrolado volta do poste e mantinha-o direito. Com medo de uma armadilha, Bosch no lhe tocou. Fez incidir o feixe de luz da lanterna na ferida do pescoo e seguiu o rasto de sangue seco que descia pela frente do corpo. O morto vestia uma T-shirt verde com o nome escrito a stencil branco na parte da frente. Al Crofton, dizia por baixo do sangue. Havia moscas atoladas nas crostas de sangue do peito e, por um breve instante, Bosch interrogou-se como que elas tinham conseguido chegar to l abaixo. Apontou a luz para as virilhas do soldado morto e viu que tambm essas estavam negras com o sangue seco. As calas estavam rasgadas e Crofton parecia ter sido violentamente atacado por um animal selvagem. O suor comeou a fazer arder os olhos de Bosch e a sua respirao comeou a alterar-se, mais rpida do que ele queria. Apercebeu-se disso de imediato, mas tambm se apercebeu de que no conseguia fazer nada para o impedir. A mo esquerda de Crofton, com a palma virada para cima estava pousada no cho, ao lado da coxa. Bosch virou a luz para ela e viu os testculos ensanguentados. Sufocou o impulso para vomitar, mas no conseguiu evitar que comeasse a arfar. Ps as mos em concha sobre a boca e tentou abrandar as arfadas. No resultou. Estava a perder o controlo. Estava a entrar em pnico. Tinha vinte anos de idade e estava apavorado. As paredes do tnel estavam a apertar-se sua volta. Rebolou para longe do cadver e deixou cair a lanterna, o feixe de luz ainda apontado para Crofton. Bosch deu pontaps nas paredes de barro e enrolou-se em posio fetal. O suor nos olhos foi substitudo por lgrimas. Ao princpio vieram silenciosas, mas depressa os soluos lhe sacudiam o corpo todo e o barulho que fazia parecia ecoar em todas as direces na escurido, exactamente em direco ao stio onde Charlie estava sentado espera. Em direco ao inferno. 12 PARTE II Segunda-feira, 21 de Maio Bosch acordou na sua poltrona de vigia por volta das quatro da manh. Tinha deixado aberta a porta de correr que dava para a varanda e os ventos de Santa Ana enfunavam as cortinas, como se fossem fantasmas, para dentro da sala. O vento quente e o sonho tinham-no posto a suar. Depois, o vento tinha-lhe secado a humidade da pele deixando como que uma capa de sal. Saiu para a varanda e encostou-se ao varandim de madeira a olhar l para baixo, para as luzes do Valley. Os holofotes da Universal h muito que se tinham apagado e da auto-estrada no desfiladeiro no vinha nenhum rudo de trnsito. Ao longe, talvez em Glendale, ouviu o barulho de um helicptero. Procurou e descobriu a luz vermelha que se deslocava baixinho por cima da baa. No andava aos crculos e no tinha holofotes. No era da polcia. Julgou ento que conseguia sentir um leve cheiro do pesticida Malathion, intenso e amargo, no vento vermelho. Voltou para dentro e fechou a porta de correr de vidro. Pensou em ir para a cama, mas sabia que no iria conseguir dormir mais nessa noite. Acontecia frequentemente com Bosch. O sono vinha cedo. Mas no durava. Ou no vinha at que o sol nascente recortasse delicadamente o contorno das colinas no nevoeiro matinal.

Tinha andado na clnica para as perturbaes do sono da VA, em Sepulveda, mas os psiquiatras no o conseguiram ajudar. Disseram-lhe que estava num ciclo. Iria ter perodos extensos de transes de sono profundo invadidos por sonhos tortuosos. Isto seria seguido por meses de insnia, o esprito a reagir defensivamente aos terrores que o esperavam no sono. A sua mente reprimiu a ansiedade que voc sente pela parte que desempenhou na guerra, dissera-lhe o mdico. Tem de aplacar esses sentimentos durante as horas em que est acordado para que o seu sono

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possa decorrer sem perturbaes. Mas o mdico no compreendia que o que estava feito estava feito. No se podia recuar para reparar o que tinha acontecido. No se pode tapar uma ferida da alma com um penso rpido. Tomou um duche, fez a barba e depois estudou a cara no espelho, lembrando-se de como o tempo tinha sido to pouco generoso para com Billy Meadows. O cabelo de Bosch estava a ficar grisalho, mas era espesso e encaracolado. A excepo dos crculos por baixo dos olhos, a cara era lisa e bonita. Limpou o resto do creme da barba e vestiu o fato beige de vero e uma camisa Oxford azul-clara. Num cabide dentro do armrio, descobriu uma gravata castanha com uns pequenos elmos de gladiador que no tinha ndoas nem rugas em exagero. Prendeu-a com o alfinete de gravata do 187, enfiou a arma no cinto e saiu para a escurido que j anunciava a aurora. Meteu-se no carro e seguiu para a baixa para comer uma omelete, torradas e caf no Pantry, em Figueroa. Aberto vinte e quatro horas por dia desde a Depresso. Um letreiro gabava-se de que, desde essa altura, a casa nunca tinha estado um nico minuto sem cliente nenhum. Bosch, sentado ao balco, olhou em volta e viu que, naquele momento, era ele que carregava o recorde em cima dos ombros. Estava sozinho. O caf e os cigarros fizeram com que Bosch ficasse preparado para enfrentar o dia. Voltou a apanhar a auto-estrada de volta parte alta de Hollywood, passando por um mar gelado de carros que j lutavam para chegar baixa. A Esquadra de Hollywood ficava na Wilcox, a um par de quarteires a Sul do Boulevard, de onde provinha a maior parte da sua actividade. Bosch estacionou junto do passeio da frente porque no se ia demorar e no queria ficar preso nas traseiras com o engarrafamento que se gerava com a mudana dos turnos. Enquanto atravessava o pequeno trio, viu uma mulher com um olho negro que estava a chorar e a preencher um relatrio com o agente da recepo. Mas ao fundo do trio, quando se voltava esquerda para a sala dos detectives, estava tudo sossegado. O detective de servio no turno da noite devia ter sado para responder a uma chamada ou ento estava na suite dos noivos, uma arrecadao no segundo andar onde havia dois catres, o primeiro a chegar, o primeiro a ser servido. A agitao e o barulho da sala dos detectives pareciam congelados. No estava l ningum, mas as compridas secretrias distribudas ao roubo, trnsito, juvenil, assalto e homicdio estavam todas numa confuso, inundadas de papelada. Os detectives entravam e saam da polcia. A papelada nunca mudava. Bosch dirigiu-se para o fundo da sala para ligar a mquina do caf. Olhou, atravs de uma porta nas traseiras da sala, para o fundo do corredor onde ficavam localizados os bancos de deteno e a cela. A meio do corredor que levava cela, um rapaz branco, com rastas louras, estava sentado e algemado a um banco. Um adolescente, no teria mais de dezassete anos, calculou Bosch. Era contra a lei da Califrnia met-los numa cela com adultos. O que era a mesma coisa do que dizer que era capaz de ser perigoso para os coiotes meterem-nos numa cela na companhia de dobermans. - Para onde que ests a olhar, cabro? - gritou o rapaz a Bosch do fundo do corredor . Bosch no disse nada. Deitou um pacote de caf dentro do filtro de papel. Um polcia uniformizado meteu a cabea de fora da porta do gabinete do comandante que ficava mais ao fundo do corredor. - J te disse - gritou o polcia para o mido. - Voltas a repetir e eu vou a apertar mais um furo das algemas. E depois como que vais limpar o cu na retrete? - Acho que vou ter de usar a porra da tua cara! O polcia fardado entrou no corredor e dirigiu-se para o rapaz, os duros sapatos

pretos a darem passadas compridas e maldosas. Bosch enfiou o recipiente do filtro na mquina do caf e carregou no boto. Afastou-se da porta do corredor e dirigiuse para a mesa dos homicdios. No queria ver o que ia acontecer ao mido. Arrastou a cadeira do lugar onde estava para junto de uma das mquinas de escrever comunitrias noutra mesa. Os formulrios pertinentes de que precisava estavam numas divisrias numa prateleira na parede por cima da mquina de escrever. Enfiou no rolo da mquina uma folha em branco do formulrio para o relatrio da cena do crime. Depois, tirou o caderno de notas da algibeira e abriu-o na primeira pgina. Ao fim de duas horas a dactilografar, fumar e beber mau caf, uma nuvem azulada pendurada ao p das luzes do tecto por cima da mesa dos homicdios, Bosch terminara a mirade de formulrios que acompanham a investigao de um homicdio. Levantou-se e foi fazer fotocpias na Xerox ao fundo do corredor. Reparou que o rapaz das trancinhas j l no se encontrava. A seguir, foi buscar um dossier azul novo ao armrio do material de escritrio depois de ter aberto a porta com o auxlio do seu carto de identificao do LAPD e enfiou um conjunto desses relatrios nas trs argolas. Escondeu o outro conjunto num dossier azul
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velho que conservava metido na gaveta de um ficheiro e que estava identificada com o nome de um caso no resolvido. Quando acabou, releu o que acabara de escrever. Gostou da ordem que a papelada deu ao caso. Em muitos outros casos anteriores, tinha criado o hbito de reler o livro do homicdio todas as manhs. Ajudava-o a criar teorias. O cheiro do plstico do dossier novo recordou-lhe outros casos e encheu-o de energia. Andava novamente caa. No entanto, os relatrios que tinha dactilografado e arrumado no livro do homicdio no estavam completos. No Relatrio Cronolgico do Agente Encarregado da Investigao, tinha deixado de fora vrias partes das suas tarde e noite de domingo. Omitiu a ligao que tinha feito entre Meadows e o assalto ao Banco WestLand. Tambm deixou de fora as visitas casa de penhores e ao Times para falar com Bremmer. Tambm no havia quaisquer resumos destas entrevistas. Ainda s estava na segunda-feira, o segundo dia. Queria esperar at ter contactado com o FBI antes de registar qualquer destas informaes no registo oficial. Primeiro, queria saber, exactamente, o que que se estava a passar. Era uma precauo que tomava em todos os casos. J tinha sado do departamento antes de qualquer dos outros detectives terem chegado para iniciar um novo dia de trabalho. s nove horas, Bosch j tinha seguido de carro para Westwood e estava no stimo andar do Edifcio Federal no Wilshire Boulevard. A sala de espera do FBI era austera, os habituais sofs cobertos de plstico e a habitual riscada mesa de apoio com os nmeros velhos do FBI Bulletin abertos em leque sobre o verniz do falso revestimento de madeira granulada. Bosch no se deu ao trabalho de se sentar ou de ler. Ficou em p, frente das cortinas brancas e transparentes que cobriam as janelas do tecto at ao cho, a ver o panorama. A janela virada a norte oferecia uma vista que se estendia do Pacfico para leste, cobrindo o contorno das Montanhas de Santa Monica, at Hollywood. As cortinas funcionavam como uma camada de nevoeiro por cima da camada de poluio. Estava de p, com o nariz quase a tocar no suave tecido de gaze a olhar para baixo, para o outro lado de Wilshire, para o Cemitrio da Administrao dos Veteranos. As pedras tumulares despontavam da relva bem aparada como filas a seguir a filas de dentes de bebs. Ao p da entrada do cemitrio, estava a decorrer um funeral, com uma guarda de honra em sentido. Mas no havia uma grande multido de acompanhantes. Mais a norte, no cimo de uma elevao onde no havia pedras tumulares, Bosch via vrios trabalhadores a remover torres de terra e a escavar uma comprida fatia de terra com o auxlio de uma escavadora. Enquanto apreciava a vista, ia verificando de tempos a tempos o andamento do trabalho, mas no conseguia perceber o que que estavam a fazer. O buraco era demasiado comprido e largo para uma campa. Por volta das dez e meia, o funeral do soldado terminara, mas os trabalhadores do cemitrio continuavam a trabalhar na colina. E Bosch continuava espera ao p da cortina. Finalmente, atrs dele, uma voz dirigiu-se-lhe. - Todas essas campas. Umas fileiras to perfeitas. Fao os possveis para nunca

olhar l para fora por estas janelas. Bosh voltou-se. Ela era alta e esbelta com cabelo castanho ondulado at aos ombros e madeixas louras. Um bronzeado bonito e pouca maquilhagem. Parecia rgida e talvez um pouco cansada demais para aquela hora to matutina, com aquele ar que as mulheres polcias e as prostitutas costumam ter. Vestia uma saia e casaco castanhos e uma blusa branca com um lao cor de chocolate. Ele apercebeu-se das curvas assimtricas das ancas dela por baixo do casaco. Trazia qualquer coisa pequena do lado esquerdo, talvez uma Rugar, o que no era usual. Bosch sempre tinha visto as mulheres detectives trazerem as armas nas carteiras. - o cemitrio dos Veteranos - disse-lhe ela. - Eu sei. Ele sorriu, mas no por causa daquilo. Tinha estado espera que a Agente Especial E. D. Wish fosse um homem. Por nenhuma razo especial a no ser o facto da maioria dos agentes do FBI destacados para os bancos serem homens. As mulheres faziam parte da imagem mais recente do FBI e no era habitual encontr-las nas brigadas dajiesada. Estas eram fraternidades compostas praticamente s de dinossauros e marginalizados, tipos que no conseguiam ou no queriam aguentar o enfoque dado pelo departamento ao combate cerrado s investigaes dos crimes de colarinho branco, espionagem e droga. Os dias de Melvin Purvis e dos pistoleiros, estavam praticamente acabados. Os assaltos aos bancos j no eram vistosos. A maior parte dos ladres de bancos no eram profissionais. Eram drogados que andavam procura de massa suficiente para se aguentarem durante uma semana. Claro que roubar um banco continuava a ser um crime federal. E era por essa nica razo que o departamento ainda se incomodava. - Claro - disse ela.- Voc deve saber isso. Em que que o posso ajudar, detective Bosch? Sou a agente Wish. Trocaram um aperto de mo, mas Wish no fez qualquer movimento em direco porta por onde tinha entrado. Estava fechada e a lingueta tinha encaixado. Bosch hesitou um instante e depois disse: - Bem, esperei toda a manh para falar consigo. sobre o assalto ao banco... Um dos seus casos. - Sim, foi o que disse recepcionista. Peo desculpa de o ter feito esperar, mas no tnhamos nenhuma entrevista marcada e eu tinha outro assunto urgente. Gostaria que tivesse telefonado primeiro. Bosch assentiu com a cabea, mostrando que compreendia a situao, mas, mais uma vez, no houve nenhuma indicao de que o ia convidar a entrar. Isto no est a correr bem, pensou ele. - Por acaso no tem caf l dentro? - perguntou ele. - Ah... sim, acho que temos. Mas no podamos ser breves? A verdade que estou mesmo no meio de uma coisa neste momento. Quem no est?, pensou Bosch. Ela usou uma chave-carto para abrir a porta e depois empurrou-a toda para trs, mantendo-a aberta para ele passar. L dentro, levou-o por um corredor onde havia placas nas paredes ao lado das portas. O FBI no tinha a mesma afinidade com os acrnimos que a polcia tinha. As placas estavam numeradas Grupo 1, Grupo 2 e assim por diante. Enquanto iam andando, ele foi tentando identificar a pronncia dela. Era ligeiramente nasal, mas no como a de Nova Iorque. Filadlfia, decidiu ele, talvez New Jersey. No era de certeza do Sul da Califrnia apesar do bronzeado. - Simples? - Perguntou-lhe ela. - Nata e acar, se faz favor. Ela voltou-se e entrou numa sala que estava equipada como uma pequena cozinha. Havia uma bancada e armrios, uma mquina de caf para quatro chvenas, um microondas e um frigorfico. Aquilo fez lembrar a Bosch os escritrios de advogados a que tinha ido para prestar depoimentos. Bonito, perfeito, caro. Ela entregou-lhe uma chvena de plstico com caf e indicou-lhe que se servisse da nata e do acar. Ela no ia tomar nenhum. Se era uma tentativa para o fazer sentir-se desconfortvel, deu resultado. Bosch sentia-se como se estivesse a impor-se e no como algum que trazia boas notcias, uma abertura num caso importante. Seguiua pelo corredor e entraram na porta seguinte que estava marcada como Grupo 3. Era a unidade dos assaltos aos bancos e dos raptos. A sala tinha praticamente o

tamanho de uma loja de convenincia. Era a primeira sala de uma esquadra federal em que Bosch entrava e a 78 comparao com a sua era deprimente. Aqui, a moblia no tinha nada a ver com nada do que j tinha visto numa esquadra do LAPD. At havia uma carpete no cho e uma mquina de escrever ou um computador em quase todas as secretrias. Havia trs filas de cinco secretrias e todas elas, com excepo de uma, se encontravam vazias. Um homem de fato cinzento, sentado na primeira secretria da fila do meio, segurava um telefone. No levantou a cabea quando Bosch e Wish entraram. Exceptuando o barulho de fundo de um canal tctico que provinha de um scanner em cima de um armrio de arquivos ao fundo da sala, aquilo podia ter passado pelo gabinete de uma sociedade de venda de propriedades. Wish sentou-se primeira secretria da primeira fila e fez sinal a Bosch para se sentar no lugar ao lado. Isto fez com que ele ficasse sentado entre Wish e o Fato Cinzento ao telefone. Bosch pousou o caf em cima da secretria dela e comeou logo a perceber que o Fato Cinzento no estava de facto ao telefone, embora o tipo no parasse de dizer H-h, h-h ou Hum-hum a cada instante. Wish abriu uma gaveta da secretria e tirou uma garrafa de plstico com gua, parte da qual deitou num copo de papel. - Tivemos um cdigo duzentos e onze numa caixa econmica em Santa Monica e quase toda a gente foi para l - explicou ela quando o viu observar a sala quase deserta. - Eu estava a fazer a coordenao a partir daqui. Foi por isso que voc teve de ficar espera l fora. Desculpe. - No tem importncia. Apanharam-no? - O que que o leva a dizer que foi um ele? - Bosch encolheu os ombros. - As percentagens. - Bem, eram dois. Um de cada. E, sim, apanhmo-los. Estavam num carro roubado de Reseda, cujo roubo j tinha sido participado ontem. A mulher entrou e tomou conta do negcio. O homem ficou ao volante. Apanharam a 10 para a 405 e depois entraram no Aeroporto de Los Angeles, onde deixaram o carro frente de um carregador na United. Depois meteram-se na escada rolante para o terminal das chegadas, apanharam um autocarro para a estao Flyaway em Van Nuys e depois um txi para fazerem outra vez o caminho todo de regresso a Venice. At a um banco. Tivemos sempre um helicptero do LAPD em cima deles. Nunca olharam para cima. Quando ela entrou no segundo banco, pensmos que amos assistir a outro 211, por isso, deitmos-lhe a unha quando estava na bicha para um dos caixas. A ele, apanhmo-lo no parque de 79 estacionamento. Afinal, descobrimos que ela ia depositar o que tinha gamado do primeiro banco. Uma transferncia interbancria, da forma mais complicada. Vemos pessoas muito estpidas neste trabalho, detective Bosch. O que que posso fazer por si? - Pode tratar-me por Harry. - Enquanto estou a fazer o qu por si? - Cooperao interdepartamental - disse ele.- Assim a modos como o que estava a fazer com o nosso helicptero esta manh. Bosch bebeu um pouco do caf e disse: - O seu nome apareceu-me ontem num BOLO. Um caso com um ano l na baixa. Estou interessado nele. Trabalho nos homicdios na Diviso de Holly... - Sim, eu sei - interrompeu a Agente Wish. - ...wood. - A recepcionista mostrou-me o carto que voc lhe deu. A propsito, no precisa dele? Era um golpe baixo. Bosch viu o seu triste carto de visita em cima do elegante mata-borro verde dela. Andara no bolso dele durante meses e os cantos estavam a encaracolar. Era um daqueles cartes genricos que o departamento dava aos detectives que faziam servio externo. Tinha gravado o distintivo da polcia e o nmero de telefone da Diviso de Hollywood, mas no tinha nome. Uma pessoa podia comprar uma almofada de tinta, encomendar um carimbo e sentar-se secretria no princpio de cada semana a carimbar uma dzia de cartes. Ou podia

limitar-se a escrever o nome na linha com uma caneta e a no distribuir demasiados. Bosch tinha optado por esta ltima soluo. Nada que o departamento fizesse o conseguiria voltar a envergonhar. - No, pode ficar com ele - respondeu. - A propsito, no tem um? - Num movimento rpido e impaciente, ela abriu a gaveta do meio, tirou um carto de um tabuleirinho e pousou-o no tampo da secretria ao lado do cotovelo que Bosch tinha l apoiado. Ele bebeu outro gole de caf enquanto baixava os olhos para o ler. O E era de Eleanor. - Bem, seja como for, voc sabe quem eu sou e de onde que venho - comeou ele. - E eu sei algumas coisas sobre si. Por exemplo, investigou, ou est a investigar, um assalto a um banco no ano passado em que os assaltantes entraram pelo cho. O caso do tnel. O WestLand National. Reparou que lhe tinha despertado a ateno imediatamente e achou que o Fato Cinzento tinha sustido a respirao. Tinha atirado o anzol para o stio certo. - O seu nome est nos boletins. Eu estou a investigar um homicdio. Estou convencido que est relacionado com o seu caso e quero saber... Basicamente, quero saber o que que voc sabe... Podemos falar dos suspeitos, possveis suspeitos... Acho que somos capazes de andar procura das mesmas pessoas. Acho que o meu homem pode ter sido um dos seus assaltantes. Wish ficou calada durante uns instantes a brincar com um lpis que tinha tirado do mata-borro. Fez deslizar o carto de Bosch em cima do quadrado verde com a ponta da borracha. O Fato Cinzento continuava a fingir que estava ao telefone. Bosch olhou para ele e os olhares de ambos cruzaram-se por breves instantes. Bosch baixou-lhe a cabea e o Fato Cinzento desviou o olhar. Bosch deduziu que estava a olhar para o homem cujos comentrios tinham aparecido nos artigos do jornal. O Agente Especial John Rourke. - Voc capaz de fazer melhor do que isto, no verdade, detective Bosch? perguntou Wish. - Quero dizer, voc limita-se a entrar por aqui dentro a acenar-me com a bandeira da cooperao e espera que eu lhe abra os nossos ficheiros. Bateu trs vezes com a ponta do lpis na secretria, abanando a cabea como se estivesse a ralhar com uma criana. - E se me desse um nome? - continuou ela.- E se me desse uma razo para essa ligao? Geralmente, costumamos lidar com esses pedidos atravs dos canais prprios. Temos agentes de ligao que avaliam os pedidos das outras agncias policiais para partilharmos as nossas informaes e os nossos ficheiros. Voc sabe isso. Acho que seria melhor... Bosch tirou o boletim do FBI com a fotografia da pulseira da companhia de seguros do bolso. Desdobrou-o e colocou-o em cima do mata-borro. Depois, tirou a Polaroid da loja de penhores e largou-a em cima da secretria. - WestLand National - disse ele batendo com um dedo no boletim. - A pulseira foi empenhada h seis semanas atrs numa loja da baixa. Quem a empenhou foi o meu homem. Agora, est morto. Ela olhou atentamente para a Polaroid da pulseira e Bosch percebeu que a estava a reconhecer. Ela ainda no tinha esquecido o caso. - O nome William Meadows. Encontrei-o ontem de manh, dentro de um cano na barragem de Mulholland.
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O Fato Cinzento deu o monlogo por terminado dizendo: - Agradeo a informao. Tenho que desligar. Estamos a encerrar um duzentos e onze. Hum-Hum... Obrigado... Para si tambm, obrigado. Bosch no olhou para ele. Estava a observar Wish. Sentia que ela queria olhar para o Fato Cinzento. Os olhos saltaram naquela direco, mas regressaram rapidamente fotografia. Havia qualquer coisa que no estava certa e Bosch resolveu atirar-se de cabea e quebrar o silncio. - Por que que no nos deixamos de tretas, agente Wish? Tanto quanto sei, vocs nunca recuperaram uma nica aco, um nico ttulo, uma nica moeda, uma nica jia, uma nica pulseira de ouro e jade. No tm nada. Por isso, v-se lixar com os agentes de ligao. O que eu quero saber o que isto? O meu homem ps a pulseira no prego; acabou por morrer. Porqu? Temos investigaes paralelas, no

acha? O mais provvel tratar-se at da mesma investigao. Nada. - Ora vejamos, o meu homem: ou os vossos assaltantes lhe deram a pulseira ou ele roubou-a a eles. Ou ento, muito possivelmente, era um deles. Se calhar, no era suposto que a pulseira aparecesse j. Ainda no apareceu mais nada. E ele lembrase de quebrar as regras e vai pr a dita no prego. Eles limpam-lhe o sebo, vo loja de penhores e voltam a roub-la. Qualquer coisa deste tipo. O que interessa que estamos procura das mesmas pessoas. E eu preciso que me dem uma pista para poder comear. Ela ainda permanecia calada, mas Bosch percebeu que estava a tomar uma deciso. Desta vez, resolveu esperar. - Fale-me dele - disse ela por fim. E ele falou. Contou-lhe tudo. O telefonema annimo. O cadver. O facto do apartamento ter sido revistado. O ter encontrado a cautela da loja de penhores escondida por trs da fotografia. O ter ido loja de penhores s para descobrir que a pulseira tinha voltado a ser roubada. No contou que tinha conhecido Meadows. - Levaram mais alguma coisa dessa loja de penhores, ou foi s esta pulseira? perguntou ela quando ele acabou. - Claro que sim. Mas s para esconder o que realmente queriam. A pulseira. Na minha opinio, o Meadows foi morto porque, quem quer que o tenha matado, queria a pulseira. Foi torturado antes de ser assassinado porque queriam saber onde que ela estava. Conseguiram o que queriam, mataram-no e foram buscar a pulseira. Importa-se que eu fume? - Importo-me sim. O que que poderia ser assim to importante nessa pulseira? Esta pulseira no mais do que uma gota no oceano de tudo aquilo que foi levado, de tudo aquilo que nunca apareceu. Bosch j tinha pensado nisso, mas no fazia ideia nenhuma. Respondeu: - No sei. - Se ele foi torturado, como voc diz, por que que a cautela da loja l ficou dando azo a que o encontrasse? E por que que tiveram que arrombar a loja de penhores para l conseguirem entrar? Voc est a dizer que ele lhes disse onde que estava a pulseira, mas no lhes deu a cautela? Bosch tambm tinha pensado nisso. Respondeu: - No sei. Talvez ele soubesse que eles no o iam deixar vivo. Por isso, s lhes deu metade do que eles precisavam. Guardou uma coisa para si. Era uma pista. Ele deixou a cautela como uma pista. Bosch pensou no cenrio. A primeira vez que tinha comeado a juntar as peas todas tinha sido quando relera os seus apontamentos e os relatrios que tinha escrito mquina. Decidiu que era a altura para jogar mais uma cartada. - Conheci o Meadows h vinte anos. - Conhecia a vtima, detective Bosch? - A voz dela ergueu-se, acusadora. - Por que que no disse isso logo que entrou aqui? Desde quando que o LAPD permite que os seus detectives andem por a a investigar as mortes dos seus amigos? - Eu no disse isso. Disse que o conheci. H vinte anos. E no pedi que me dessem este caso. Estava de servio e era a minha vez. Fui chamado. Foi uma... No queria dizer a palavra coincidncia. - Isto tudo muito interessante - disse Wish. - Tambm bastante irregular. Ns... Eu no sei se o podemos ajudar. Penso... - Olhe, quando o conheci, foi no Exrcito dos Estados Unidos. O Primeiro de Infantaria no Vietname. OK? Estvamos l os dois. Ele era aquilo a que se costumava chamar um rato dos tneis. Sabe o que que isso quer dizer?... E eu tambm o era. Wish no disse nada. Estava outra vez a olhar para a pulseira. Bosch tinha-se esquecido por completo do Fato Cinzento. - Os Vietnamitas tinham tneis por baixo das aldeias - disse Bosch. - Alguns j tinham cem anos. Os tneis iam de palhota a palhota, aldeia a aldeia, selva a selva. At passavam por baixo dos nossos campos. Havia-os por todo o lado. Era esse o nosso trabalho, ns os soldados dos tneis,
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enfiarmo-nos nessas coisas. Havia uma outra guerra completamente diferente por

baixo do cho. Repentinamente, Bosch apercebeu-se que, sem contar com um psiclogo e a um grupo de apoio na VA de Sepulveda, nunca tinha falado a ningum sobre os tneis e sobre aquilo que l fazia. - E o Meadows, bem, ele era bom naquilo. Por mais estranho que parecesse algum gostar de descer para toda aquela escurido s com uma lanterna e uma 45, bem, a verdade que ele gostava. Por vezes, entrvamos e levvamos horas l dentro, outras vezes, levvamos dias... - E o Meadows... Bem, o Meadows foi a nica pessoa que l conheci que no tinha medo de ir. A vida ao nvel do cho que o assustava. Ela no disse nada. Bosch olhou para o Fato Cinzento que estava a escrever num bloco amarelo que Bosch no conseguia ler. Bosch ouviu algum comunicar pelo canal tctico que estava a transportar dois prisioneiros para a cadeia. - E assim que, vinte anos depois, voc tem um crime num tnel e eu um combatente dos tneis morto. Ele foi encontrado dentro de um cano, um tnel. Estava na posse de um objecto do vosso crime. - Bosch apalpou os bolsos todos procura dos cigarros e de repente lembrou-se que ela tinha dito que no. - Temos de trabalhar juntos neste caso. E j. Sabia pela expresso da cara dela que no tinha resultado. Esvaziou a chvena de caf, preparando-se para se dirigir para a porta. No olhou para Wish. Ouviu o Fato Cinzento voltar a agarrar no telefone e marcar um nmero. Olhou para baixo, para o resduo de acar no fundo da chvena. Odiava acar no caf. - Detective Bosch -, comeou Wish - lamento que tenha esperado tanto tempo na recepo esta manh. Tenho muita pena que este soldado que voc conhecia, Meadows, tenha morrido. Quer tenha sido ou no h vinte anos, tenho mesmo. Tenho simpatia por ele, por si, por aquilo que podem ter tido de passar... Mas tambm tenho pena de, neste momento, no o poder ajudar. Vou ter de seguir os procedimentos protocolares estabelecidos e falar com o meu supervisor. Entrarei em contacto consigo. O mais depressa possvel. Por agora, tudo o que posso fazer. Bosh atirou a chvena para dentro de um cesto de papis ao lado da secretria e estendeu o brao para agarrar na Polaroid e na pgina do boletim. - Podemos ficar com a fotografia? - perguntou a agente Wish. - Preciso de a mostrar ao meu supervisor. Bosch no largou a Polaroid. Levantou-se e colocou-se em frente da secretria do Fato Cinzento. Segurou a fotografia frente da cara do homem. - Ele j a viu - disse por cima do ombro dele enquanto saa do gabinete. O subchefe Irvin Irving estava sentado secretria a ranger os dentes e a contrair os msculos dos maxilares como se fossem bolas de borracha dura. Estava perturbado. E este apertar e ranger de dentes era um hbito seu quando estava perturbado ou num estado de esprito solitrio e contemplativo. Em resultado disso, a musculatura dos maxilares tinha-se tornado a caracterstica mais pronunciada das suas feies. Quando se olhava de frente, as linhas dos maxilares de Irving eram mais largas do que as orelhas, que estavam coladas ao crnio rapado e tinham um feitio que lembrava asas. As orelhas e os maxilares davam a Irving um ar intimidante se no mesmo estranho. Parecia que era s boca e que os seus molares eram capazes de esmagar berlindes. E Irving fazia tudo o que podia para promover esta imagem do feroz co de guarda de um ferro-velho que conseguia enterrar os dentes num ombro ou numa perna e arrancar um bocado de carne do tamanho de uma bola de softball. Era uma imagem que o tinha ajudado a ultrapassar o seu nico entrave enquanto polcia de Los Angeles - o estpido do nome - e que s o poderia ajudar na sua longa e h muito planeada ascenso at ao gabinete do chefe, no sexto andar. Por isso, satisfazia o hbito, ainda que isso lhe custasse dois mil dlares num novo conjunto de implantes molares de dezoito em dezoito meses. Irving apertou com fora o n da gravata em roda do pescoo e passou a mo pela careca reluzente. Estendeu a mo para o besouro do intercomunicador. Embora pudesse ter carregado com toda a facilidade no boto do altifalante e ladrado a sua ordem, esperou que a sua nova adjunta respondesse primeiro. Era outro dos seus hbitos. - Sim, Chefe?

Ele adorava ouvir aquilo. Sorriu e depois inclinou-se para a frente at a sua enorme queixada ficar a escassos centmetros do altifalante do intercomunicador. Era um homem que no confiava que a tecnologia pudesse fazer aquilo que era suposto fazer. Tinha que pr a boca no altifalante e gritar.
Softball jogo semelhante ao basebol e jogado com uma bola mais macia; bola para esse mesmo jogo. (N. T.)

85 - Mary, arranje-me o dossier de Harry Bosch. Deve estar nos activos. - Soletrou-lhe o primeiro e o ltimo nome. - para j, Chefe. Irving recostou-se para trs, sorriu por entre os dentes cerrados, mas nessa altura achou que estava a sentir qualquer coisa desalinhada. Passou com toda a destreza a lngua por cima do ltimo molar inferior esquerdo, procura de um defeito na superfcie lisa, talvez uma ligeira fissura. Nada. Abriu a gaveta da secretria e tirou um espelhinho. Abriu a boca e examinou os dentes detrs. Voltou a arrumar o espelho e tirou um bloco Post-it azul-claro onde fez uma anotao para telefonar a marcar uma reviso aos dentes. Fechou a gaveta lembrando-se daquela vez em que tinha enfiado na boca um bolinho da sina num jantar com o vereador do Westside da cidade. O molar inferior da direita tinha-se desfeito com o bolinho duro. O co do ferro-velho preferiu engolir os bocados do dente a expor a sua fraqueza ao vereador, de cujo voto poderia vir a precisar e a ter no futuro. Durante o jantar, tinha chamado a ateno do vereador para o facto do seu sobrinho, um mecnico no LAPD, ser um homos-sexual no assumido. Irving referiu que estava apenas a fazer o melhor que podia para proteger o sobrinho e impedir que ele fosse descoberto. O departamento era to homofbico como uma igreja do Nebraska e se a notcia se espalhasse e chegasse aos ouvidos dos soldados rasos, explicou Irving ao vereador, o agente podia esquecer a hiptese de ser promovido. Tambm podia contar com uma perseguio brutal por parte da restante nata de L.A. Irving no precisava de referir as consequncias se houvesse um escndalo pblico. Mesmo no liberal Westside, no iria ser nada til s ambies de ascenso a Presidente da Cmara por parte de um vereador. Irving estava a sorrir com esta lembrana quando a agente Mary Grosso bateu porta e entrou no gabinete com um dossier de trs centmetros de grossura na mo. Pousou-o no tampo de vidro da secretria de Irving. No havia mais nada naquela superfcie cintilante, nem sequer um telefone. - Tinha razo, Chefe. Ainda estava nos ficheiros activos. O subchefe encarregado da Diviso dos Assuntos Internos inclinou-se para a frente e disse: - Pois , acho que no cheguei a mand-lo transferir para os arquivos porque tinha a sensao que ainda no nos tnhamos visto livres do detective Bosch. Ora vejamos, quer-me parecer que devem ser o Lewis e o Clarke. Abriu o dossier e leu as anotaes na parte de dentro da capa. - Exactamente. Mary, faa-me o favor de mandar chamar o Lewis e o Clarke. - Chefe, viu-os na sala da esquadra. Estavam a preparar-se para uma BOR1. No sei bem de qual caso. - Bem, Mary, eles vo ter que cancelar a audincia com a Comisso dos Direitos. E, por favor, no use siglas quando falar comigo. Sou um polcia lento e cuidadoso. No gosto de atalhos. No gosto de siglas. Vai acabar por aprender isso. Agora, v dizer ao Lewis e ao Clarke que quero que adiem a audincia e se venham apresentar imediatamente. Contraiu os msculos dos maxilares e manteve-os assim, duros como bolas de tnis. Mary Grosso precipitou-se para fora do gabinete. Irving descontraiu-se e comeou a percorrer as pginas do dossier, voltando a familiarizar-se com Harry Bosch. Reparou no registo militar de Bosch e na sua rpida subida no departamento. Das patrulhas para os detectives e da para a Diviso dos Assaltos e Homicdios em oito anos. Depois a queda: transferncia administrativa no ano anterior da Diviso dos Assaltos e Homicdios para os homicdios da esquadra de Hollywood. Devia ter sido expulso, lamentou-se Irving enquanto estudava as entradas na cronologia da carreira de Bosch. Seguidamente, Irving analisou o relatrio de avaliao de um exame psicolgico

feito a Bosch no ano anterior a fim de determinar se ele deveria ser autorizado a regressar ao servio depois de ter matado um homem desarmado. O psiclogo do departamento escrevera: - Atravs das suas experincias na guerra e na polcia, incluindo o supracitado e importante tiroteio que resultou em fatalidade, o sujeito acabou por ficar, em grande medida, dessensibilizado em relao violncia. Fala em termos de violncia ou nos aspectos da violncia como sendo uma parte aceite da sua vida quotidiana, durante toda a sua vida. Por conseguinte, improvvel que aquilo que aconteceu anteriormente venha a actuar como um impedimento psicolgico caso ele se venha a encontrar novamente em circunstncias em que tenha de actuar com fora mortal para se proteger a si ou a outros. Estou certo que ser capaz de agir sem a menor hesitao. Ser capaz de premir o gatilho. De facto, a sua conversa no revela quaisquer efeitos negativos provocados pelo tiroteio, a no ser que a sua sensao de satisfao com o resultado do incidente a morte do suspeito deva ser considerada inapropriada.
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BOR Board Of Rights. (N. T.)

Irving fechou o dossier e tamborilou em cima dele com uma unha impecavelmente tratada. A seguir, agarrou num comprido cabelo castanho da agente Mary Grosso, calculou ele que estava em cima do tampo de vidro e deitou-o para o cesto de papis ao lado da secretria. Harry Bosch era um problema, pensou ele. Um bom polcia, um bom detective de facto, Ainda que de m vontade, Irving admirava o trabalho dele nos homicdios, particularmente a sua propenso pelos assassinos em srie. Mas o subchefe estava convencido que, a longo prazo, os marginais no trabalhavam bem dentro do sistema. Harry Bosch era um marginal e iria s-lo sempre. No fazia parte da famlia do LAPD. E agora tinha chegado ao conhecimento de Irving algo muito pior. Bosch no s tinha deixado a famlia como parecia estar envolvido em actividades que iriam prejudicar a famlia, envergonhar a famlia. Irving decidiu que tinha de agir com determinao e depressa. Fez girar a cadeira e ficou a olhar pela janela para a Cmara Municipal do outro lado da Los Angeles Street. Depois, o olhar desceu, como sempre acontecia, para a fonte de mrmore em frente do Parker Center, o memorial aos agentes da polcia mortos no cumprimento do dever. Estava ali a famlia, pensou ele. Estava ali a honra. Cerrou os dentes com toda a fora sentindo-se forte e triunfante. Naquele preciso instante, a porta abriu-se. Os detectives Pierce Lewis e Don Clarke entraram no gabinete e perfilaram-se. Nenhum deles falou. Podiam ser irmos. Ambos usavam o cabelo castanho cortado escovinha, tinham a mesma amplitude de braos dos levantadores de pesos e vestiam fatos conservadores de seda cinzenta. O de Lewis tinha uma risca fininha cor de carvo, o de Clarke tinha uma castanha. Ambos eram de constituio larga e baixa. Ambos se deslocavam com uma ligeira inclinao do corpo para a frente como se estivessem a avanar pelo mar dentro, abrindo caminho pelo meio das ondas com as caras. - Meus senhores - disse Irving -, temos um problema um problema prioritrio com um agente que j cruzou o limiar da nossa porta. Um agente com quem os dois j lidaram com um certo sucesso. Lewis e Clarke olharam um para o outro e Clarke permitiu-se um sorriso um sorriso pequeno e rpido. No fazia a mnima ideia de quem pudesse ser, mas gostava da ideia de perseguir os reincidentes. Ficavam to desesperados. - Harry Bosch - disse Irving. Esperou uns instantes para que o nome lhes dissesse alguma coisa e continuou: - Vo precisar de dar um passeiozinho at Diviso de Hollywood. Quero abrir-lhe um um ponto oitenta e um imediatamente. O queixoso vai ser o Federal Bureau of Investigation. - O FBI? - exclamou Lewis. - O que que ele lhes fez? Irving repreendeu-o por usar a sigla do departamento federal e mandou os dois sentarem-se em duas cadeiras frente da secretria dele. Passou os dez minutos seguintes a contar-lhes o telefonema que recebera do FBI. - O departamento diz que demasiada coincidncia - concluiu ele. - E eu concordo. Ele pode estar sujo nesta histria e os agentes federais querem-no fora do caso Meadows. No mnimo, parece que ele interveio para ajudar este suspeito, antigo camarada de armas, a evitar passar uma temporada na priso no ano passado,

possivelmente para que ele pudesse cometer este assalto ao banco. Se o Bosch sabia disto, ou se teve mais algum envolvimento no crime, no sei. Mas vamos descobrir o que que o detective Bosch anda a fazer. Irving fez aqui uma paragem, contraindo o maxilar com toda a fora, para que a sua mensagem fosse claramente entendida. Lewis e Clarke sabiam que o melhor era no interromperem. E Irving continuou: - Esta oportunidade abre a porta para o nosso departamento fazer aquilo que no conseguiu realizar anteriormente em relao ao Bosch: elimin-lo. Os senhores informam-me directamente. Oh, e eu quero que o supervisor do Bosch, um tal tenente Pounds, receba cpias dos vossos relatrios dirios. Discretamente. Mas, comigo, vo fazer mais do que dar-me as cpias. Quero relatrios telefnicos duas vezes por dia, de manh e noite. - Vamos a caminho - disse Lewis, levantando-se. - Sejam audaciosos, mas cuidadosos - aconselhou Irving. - O detective Harry Bosch j no a celebridade que foi em tempos. Mas, seja como for, no o deixem escapar-se por entre os dedos. A vergonha que Bosch sentira por ter sido to pouco cerimoniosamente mandado embora pela agente Wish, tinha-se transformado em fria e frustrao enquanto descia no elevador. Parecia uma presena fsica no peito que lhe saltava para dentro da garganta enquanto a cela de ao inoxidvel descia. Estava sozinho e, quando o pager no cinto deu sinal, deixou-o apitar durante os quinze segundos que lhe eram concedidos em vez de o desligar. Engoliu a fria e a vergonha que sentia e 88 transformou-as numa resoluo. Quando saiu do elevador, olhou para o nmero de telefone no mostrador digital do pager. O cdigo da rea era 818, o do Valley, mas no reconheceu o nmero. Dirigiu-se para uma das cabines telefnicas no ptio em frente do Federal Building e marcou o nmero. Noventa cntimos disse uma voz electrnica. Felizmente, tinha os trocos necessrios. Meteu as moedas e a chamada foi apanhada a meio do toque por Jerry Edgar. - Harry - comeou ele logo a dizer, sem um ol sequer -, ainda aqui estou, na VA, e estou a ser empurrado de uns para os outros, meu. No tm nenhum arquivo do Meadows. Dizem que tenho que ir atravs do DC ou arranjar um mandado de busca. Digo-lhes que sei que h um processo, sabes, por causa daquilo que me contaste. Digo-lhes: Olhem, se eu for arranjar um mandado de busca, vocs so capazes de ir procurar para ficarem a saber onde que est este processo? E eles andam procura durante um bom bocado e quando voltam finalmente a aparecer para dizerem que sim, tinham tido um processo, mas tinha desaparecido, tinha sido levado. Adivinha quem que o veio buscar com uma ordem do tribunal, no ano passado? - O FBI. - Sabes alguma coisa que eu no saiba? - No tenho estado propriamente com o cu sentado. Eles disseram quando que o FBI o levou ou porqu? - No lhes disseram porqu. O agente do FBI limitou-se a aparecer l com o mandado e a lev-lo. Levantou-o em Setembro passado e ainda no o devolveu. No deu nenhuma explicao. A porra do FBI nunca tem de dar explicaes. Bosch ficou calado enquanto pensava naquilo. Eles j sabiam de tudo aquilo. Wish sabia da existncia de Meadows, dos tneis e de tudo o resto que Bosch lhe tinha acabado de contar. Tudo aquilo tinha sido uma representao. - Harry, ests a? - Sim, ouve, eles mostraram-te alguma fotocpia da papelada ou sabem o nome do agente? - No, no conseguiram encontrar a cpia do recibo da intimao e ningum se lembra do nome do agente, exceptuando o facto de ser uma mulher. - Anota este nmero onde eu estou. Volta l, aos registos, e pede para ver outro processo, s para ver se l est. O meu processo. Ditou a Edgar o nmero do telefone onde estava, a data do nascimento, o nmero do carto da segurana social e o nome completo, soletrando o seu nome prprio verdadeiro. - Jesus! Isso que o teu nome? - perguntou Edgar. - Harry um diminutivo? Como

que a tua me se lembrou de uma dessas? - Tinha uma pancada pelos pintores do sculo quinze. Tem a ver com o apelido. Vai l ver do processo e depois telefona-me. Fico aqui espera. - Nem sequer sou capaz de pronunciar isto, meu. - Rima com annimo1. - OK. Vou experimentar. A propsito, afinal onde que tu ests? - Numa cabine pblica. Em frente do FBI. Bosch desligou antes que o companheiro pudesse fazer mais perguntas. Acendeu um cigarro e encostou-se cabine telefnica enquanto observava um pequeno grupo de pessoas que se deslocava num crculo no comprido relvado verde frente do edifcio. Seguravam tabuletas e cartazes feitos em casa em protesto contra uma proposta para conceder novas licenas petrolferas na Baa de Santa Mnica. Viu cartazes que diziam: Digam No Ao Petrleo, A Baa Ainda No Est Suficientemente Poluda?, Estados Unidos de Exxon, etc, etc. Reparou que estavam duas equipas de noticirios de televiso no relvado a filmar a manifestao. A chave era exactamente isso, pensou ele. Exposio. Desde que os meios de comunicao aparecessem e a manifestao aparecesse no noticirio das seis, o protesto tinha sido bem sucedido. Bosch viu que o aparente porta-voz do grupo estava a ser filmado e entrevistado por uma mulher que ele reconheceu ser do Channel 4. Tambm estava a reconhecer o porta-voz, mas no sabia de onde. Ao fim de alguns instantes a observar o vontade do homem perante a cmara, durante a entrevista, Bosch identificou-o. O tipo era um actor de TV que costumava fazer de bbado numa popular srie de comdia que Bosch tinha visto uma ou duas vezes. Embora o tipo ainda se parecesse com um bbado, o programa j tinha acabado. Bosch ia no segundo cigarro, encostado cabine telefnica e a comear a sentir o calor do dia, quando ergueu os olhos para as portas de vidro do edifcio e viu a agente Eleanor Wish a sair. Estava a olhar para baixo, com a mo metida na carteira procura de qualquer coisa e no
Em ingls anonymous (annimo) rima com Hieronymus (Hieronymus Bosch (1450?--1516) , pintor holands). (N. T.)

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o tinha visto. Muito rapidamente e sem analisar porqu, Bosch baixou-se atrs dos telefones e, usando-os como um escudo protector, foi-se deslocando volta deles enquanto ela passava. O que ela tinha estado a procurar na carteira eram os culos. J os tinha postos quando passou pelos manifestantes sem sequer deitar um olhar na direco deles. Subiu a Veteran Avenue em direco ao Wilshire Boulevard. Bosch sabia que a garagem do FBI ficava por baixo do edifcio. Eleanor Wish estava a andar na direco oposta. Ia a qualquer stio ali perto. O telefone tocou. - Harry, eles tambm tm o teu processo. O FBI. O que que se passa? A voz de Edgar parecia aflita e confusa. Ele no gostava de ondas. No gostava de mistrios. Era o tipo de homem que cumpria o seu horrio das nove s cinco e nada mais. - No sei o que que se passa, no me quiseram dizer - replicou Bosch. - Vai andando para o gabinete. Falamos l. Se l chegares antes de mim, quero que telefones para o projecto do Metro. Pessoal. V se o Meadows l trabalhava. Experimenta tambm com o nome Fields. Depois trata da papelada relativa facada da TV. Como combinmos. Trata da tua parte da combinao. Eu vou l ter contigo. - Harry, disseste-me que conhecias este tipo, o Meadows. Se calhar devamos avisar o Noventa e oito que h um conflito, que devamos entregar o caso ao RHD ou a qualquer outra pessoa que esteja disponvel. - Jed, falamos daqui a bocadinho. No faas nada nem fales com ningum acerca disto at eu chegar a. Bosch desligou o telefone e dirigiu-se para o Wilshire Boulevard. Conseguia ver que Eleanor Wish j tinha virado para este em direco Westwood Village. Encurtou a distncia entre os dois, atravessou para o outro lado da rua e continuou atrs dela. Teve o cuidado de no se aproximar demasiado para que o seu reflexo no aparecesse nos vidros das montras para onde ela ia olhando ao passar. Quando ela

chegou ao Westwood Boulevard, virou para norte e atravessou Wilshire, para o lado da rua onde Bosch se encontrava. Este enfiou-se na entrada de um banco. Momentos depois, voltou a sair para o passeio, mas ela tinha desaparecido. Olhou para cima e para baixo, correu at esquina. Viu-a meio quarteiro mais frente, a subir a Westwood para entrar na Village. Wish abrandou frente de umas montras e parou em frente de uma loja de artigos desportivos. Bosch conseguia ver manequins femininos na montra, vestindo camisas e cales de correr verde-lima. A moda do ano passado em saldo hoje. Wish olhou para os fatos durante alguns instantes e depois continuou, s voltando a parar quando entrou na zona dos teatros. Entrou no Strattons Bar & Grill. Bosch, do outro lado da rua, passou pelo restaurante sem olhar e continuou at esquina seguinte. Parou em frente do Bruin, debaixo do toldo do velho teatro e olhou para trs. Ela no tinha sado. Perguntou para consigo se haveria uma sada pelas traseiras. Consultou o relgio de pulso. Era um bocadinho cedo para almoar, mas talvez ela gostasse de evitar as multides. Talvez gostasse de comer sozinha. Atravessou a rua para a outra esquina e meteu-se debaixo do toldo do Fox Theater. Conseguia ver atravs do vidro da janela da frente do restaurante, mas no conseguiu detect-la. Atravessou o parque de estacionamento ao lado do restaurante e entrou no beco das traseiras. Viu que havia uma porta de aceso pblico nas traseiras. Teria ela dado por ele e usado o restaurante para se escapar? J se tinha passado muito tempo desde que ele tinha andado sozinho na peugada de uma pessoa, mas no lhe parecia que ela tivesse dado por ele. Desceu a viela e entrou pela porta das traseiras. Eleanor Wish estava sentada sozinha na fila de reservados de madeira ao longo da parede da direita do restaurante. Como qualquer polcia cuidadoso, tinha-se sentado de frente para a porta, por isso, no viu Bosch seno quando ele deslizou pelo banco frente dela e agarrou no menu a que ela j tinha deitado uma olhadela e largado. - Nunca c estive - disse-lhe ele. - H alguma coisa boa? - O que isto? - Perguntou ela com a surpresa claramente estampada no rosto. - No sei, pensei que era capaz de querer companhia. - Seguiu-me? Voc seguiu-me? - Pelo menos, estou a ser muito franco a este respeito. Sabe uma coisa? Cometeu um erro l no gabinete. Mostrou-se demasiado fria. Eu entro por ali dentro com a nica pista que vocs tinham h nove meses e voc s quer falar de agentes de ligao e outras tretas. Havia qualquer coisa que no estava certa, mas eu no consegui perceber o que era. Agora, j sei. - De que que est para a a falar? No interessa, tambm no quero saber. Fez um movimento para deslizar para fora do banco, mas Bosch estendeu o brao por cima da mesa e prendeu-lhe firmemente o pulso. A pele dela estava quente e hmida depois de todo aquele passeio. Ela parou e voltou-se para Bosch dardejando-o com uns olhos castanhos to zangados e excitados que teriam sido capazes de lhe gravar o nome numa pedra tumular.
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- Largue-me! - disse ela com a voz muito controlada, mas com uma nota de tenso que sugeria que era capaz de perder a cabea por completo. Largou-a. - No se v embora. Por favor. Ela hesitou um instante e ele trabalhou depressa. Disse: - Est tudo bem. Compreendo as razes para esta coisa toda, para a recepo to fria, para tudo. Tenho de dizer que de facto foi um bom trabalho, isso que voc fez. No posso levar-lhe a mal. - Bosch, oua-me, no sei do que que est a falar. Acho... - Eu sei que voc j sabia do Meadows, dos ratos dos tneis, de tudo. Voc foi buscar os ficheiros dele da tropa, tambm levou os meus, provavelmente, levou todos os ficheiros de todos os ratos que conseguiram sair vivos daquele stio. Deve ter havido qualquer coisa no trabalhinho do WestLand que fez a ligao aos tneis daqueles tempos. Ela olhou para ele durante um longo momento e ia comear a falar quando apareceu uma criada com um bloco e um lpis.

- Para j s um caf simples e uma Evian. Obrigado - disse Bosch antes que Wish ou a empregada tivessem tempo para abrir a boca. A empregada afastou-se a escrever no bloco. - Pensava que voc era um chui de nata e acar - disse Wish. - S quando as pessoas tentam adivinhar aquilo que eu sou. Os olhos dela pareceram suavizar-se, mas apenas um bocadinho. - Detective Bosch, olhe, no sei como que sabe aquilo que julga que sabe, mas no vou discutir o caso do WestLand. exactamente como lhe disse no departamento. No posso faz-lo. Lamento. Acredite que lamento mesmo. Bosch disse: - Acho que se calhar devia sentir-me ofendido, mas no sinto. Foi um passo lgico na investigao. Eu teria feito a mesma coisa. Vocs agarram em todas as pessoas que encaixem no perfil rato de tnel e passam-nas pela peneira. - Voc no suspeito, Bosch, OK? Por isso, esquea isso. - Eu sei que no sou suspeito. - Soltou uma gargalhada forada. - Estava a cumprir a minha suspenso no Mxico e posso prov-lo. Mas voc j sabe isso. Por isso, por mim, tudo bem, vou esquecer isso. Mas preciso daquilo que voc tem sobre o Meadows. Voc foi buscar os ficheiros dele em Setembro. Deve ter feito um trabalho completo sobre

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ele. Vigilncia, associados conhecidos, antecedentes. Talvez... aposto que at o fizeram l ir e tiveram uma conversa com ele. Preciso disso tudo agora hoje, no daqui a trs, quatro semanas, quando um oficial de ligao qualquer resolver pr o carimbo. A empregada voltou com o caf e a gua. Wish puxou o copo para perto de si, mas no bebeu. - Detective Bosch, voc foi retirado do caso. Lamento. No devia ser eu a inform-lo disso. Mas retiraram-lhe o caso. Quando voltar para o seu gabinete, vai ficar a sablo. Fizemos um telefonema depois de voc ter sado. Ele estava a segurar na chvena do caf com as duas mos, os cotovelos assentes na mesa. Pousou a chvena no pires com toda a cautela, no fossem as mos comearem-lhe a tremer. - O que que fizeram? - perguntou Bosch. - Lamento - disse Eleanor Wish. - Depois de voc ter sado, o Rourke, o tipo a quem voc enfiou a fotografia debaixo do nariz, ele ligou para o nmero no seu carto e falou com um tal tenente Pounds. Contou-lhe a visita que nos tinha feito e sugeriu que havia um conflito, voc estava a investigar a morte de um amigo. Disse mais outras coisas e... - Que outras coisas? - Olhe, Bosch, eu sei quem voc . Admito que fomos buscar os seus ficheiros, que o investigmos. Raios, para fazer isso, bastava-nos ler os jornais dessa altura. Voc e aquela coisa do Dollmaker. Por isso, sei o que que teve de passar com os tipos dos Assuntos Internos e isto no vai ajudar, mas quem decidiu foi o Rourke. Ele... - Que outras coisas que ele disse? - Disse a verdade. Disse que tanto o seu nome como o do Meadows tinham aparecido na nossa investigao. Disse que vocs os dois se conheciam. Pediu para voc ser tirado do caso. Por isso, nada disto tem qualquer interesse. Bosch estava a olhar para longe, para l do reservado. - Quero ouvir a sua resposta - disse ele. - Sou suspeito? - No. Pelo menos no era at ter aparecido l esta manh. Agora, no sei. Estou a tentar ser honesta. Quero dizer, voc tem de ver isto pondo-se na nossa posio. Um tipo que investigmos o ano passado entra por ali dentro e diz que est a investigar o assassinato de um outro tipo que tambm investigmos e com grande ateno. O primeiro tipo diz: Mostrem-me os vossos dossiers. Ela no precisava de lhe dizer tudo o que j dissera. Ele sabia disso e sabia que, provavelmente, ela estava a colocar-se numa situao difcil ao dizer-lhe fosse o que fosse. Apesar de toda a merda em que tinha acabado de se meter, ou em que o tinham metido, Harry Bosch estava a comear a gostar da fria e dura Eleanor Wish. - Se no quer falar-me do Meadows, ento diga-me uma coisa a meu respeito. Disse

que me tinham investigado e que depois me tinham largado. Como que me ilibaram? Foram ao Mxico? - Isso e outras coisas. - Ela olhou para ele durante uns instantes antes de continuar. - Voc foi ilibado bastante depressa. Ao princpio, ficmos excitados. Quero dizer, fomos vasculhar os dossiers das pessoas com experincia de tneis no Vietname e, ali mesmo no cimo do monte, estava o famoso Harry Bosch, a superstar dos detectives, livros escritos sobre os seus casos. Um filme para a TV, uma srie. o tipo que, por acaso, tinha andado a encher os jornais, o tipo cuja estrela se tinha estilhaado com um ms de suspenso e uma transferncia da elite da Diviso de Assaltos e Homicdios para... - hesitou. O esgoto acabou ele por ela. Ela baixou os olhos para o copo e continuou. - Por isso, o Rourke comeou imediatamente a pensar que se calhar era assim que voc estava a ocupar o tempo, a escavar este tnel para o banco. De heri a vilo, isto era a sua forma de se vingar da sociedade, uma maluqueira destas. Mas quando analismos os seus antecedentes e fizemos umas perguntas discretas, soubemos que tinha ido passar o ms ao Mxico. Mandmos uma pessoa a Ensenada para verificar. Estava ilibado. Por essa altura, tambm tnhamos conseguido o seu processo da VA em Sepulveda ah, foi isso, foi com estes que voc contactou esta manh, no foi? Ele assentiu com a cabea. Ela continuou. - Seja como for, nos ficheiros mdicos, havia os relatrios dos psiquiatras... Desculpe. Isto parece uma invaso to grande. - Quero saber. - A terapia para o PTS. Quero dizer, voc est completamente funcional. Mas tem manifestaes de stress ps-traumtico que se revelam na insnia e, entre outras coisas, na claustrofobia. Um mdico at chegou a escrever que voc nunca mais voltaria a entrar num tnel daqueles. De qualquer das maneiras, entregmos um perfil seu no nosso laboratrio de cincias comportamentais em Quntico. Eles eliminaram-no como suspeito, disseram que era improvvel que voc cometesse um crime para obter ganhos financeiros. Calou-se uns instantes, deixando que tudo aquilo assentasse. - Aqueles ficheiros da VA so velhos - disse Bosch.- Toda a histria velha. No vou sentar-me aqui a argumentar motivos para ser considerado um suspeito. Mas essas coisas da VA so velhas. No vejo um psiquiatra, da VA ou outro, h cinco anos. E quanto a essa merda da fobia, entrei num tnel para olhar para o Meadows ainda ontem. O que que acha que os vossos psiquiatras l de Quntico escreveriam sobre isso? Bosch sentia que a cara estava a ficar vermelha de vergonha. Tinha falado demasiado. Mas quanto mais se tentava controlar e disfarar, mais sangue lhe subia cara. A empregada de ancas largas escolheu aquele momento para vir trazer mais caf. - J podem pedir? - perguntou-lhes. - No - respondeu Eleanor Wish sem despegar os olhos de Bosch. - Ainda no. - Querida, vamos ter uma enchente de gente para o almoo e vamos precisar da mesa para as pessoas que querem comer. Ganho a vida com os que tm fome. No com os que esto to zangados que no conseguem comer. Afastou-se deixando Bosch a pensar para consigo que se calhar as empregadas de mesa eram melhores observadoras do comportamento humano do que a maioria dos polcias. Eleanor Wish disse: - Lamento muito tudo isto. Devia ter-me deixado levantar quando me quis ir embora. A vergonha tinha desaparecido, mas a raiva continuava l. J no estava a olhar para fora do reservado. Estava a olh-la de frente. - Voc julga que me conhece atravs de uns papis num dossier? Voc no me conhece. Diga-me l o que sabe. - Eu no o conheo. Sei coisas a seu respeito - disse ela. Fez uma pausa para reunir as ideias. - Voc um homem institucional, detective Bosch. Toda a sua vida. Abrigos para jovens, lares adoptivos, o exrcito, depois a polcia. Nunca largou o sistema. Uma instituio social imperfeita a seguir outra.

Bebeu gua e pareceu indecisa sem saber se devia ou no continuar. Continuou: - Hieronymus Bosch... a nica coisa que a sua me lhe deu foi o nome de um pintor que morreu h quinhentos anos. Mas calculo que as coisas que voc j viu tornariam todas aquelas coisas bizarras dos sonhos que ele pintava parecerem a Disneylandia. A sua me estava sozinha. 96 97 Teve de o abandonar. Voc cresceu em lares adoptivos, casas de abrigo para jovens. Sobreviveu a isso e sobreviveu ao Vietname e sobreviveu ao departamento da polcia. Pelo menos, at agora. Mas um marginal num emprego para gente que pertence, faz parte dele. Chegou at ao RHD e trabalhou em casos muito importantes, mas continuou sempre a ser um marginal. Fazia as coisas sua maneira e eles acabaram por o pr fora, exactamente por isso. Esvaziou o copo parecendo estar a dar tempo para que Bosch pudesse impedi-la de continuar. Mas ele no o fez. - Bastou um erro - continuou ela. - Matou um homem no ano passado. Era um assassino, mas isso no teve importncia. Segundo os relatrios, voc pensou que ele estava procura de uma arma debaixo da almofada da cama. Afinal, veio-se a ver que estava procura do capachinho. Quase dava para rir, mas o Departamento dos Assuntos Internos arranjou uma testemunha que disse que ela j o tinha avisado anteriormente de que o suspeito guardava o capachinho debaixo da almofada. Uma vez que ela era uma prostituta de rua, a sua credibilidade foi posta em causa. No foi o suficiente para o pr fora da polcia, mas custou-lhe o seu posto. Agora, voc trabalha em Hollywood, o stio a que a maior parte das pessoas do departamento chama o esgoto. A voz sumiu-se. Tinha acabado. Bosch no disse nada e seguiu-se um longo perodo de silncio. A empregada passou pelo reservado, mas percebeu que o melhor era no se lhes dirigir. - Quando voltar para o seu gabinete - disse Bosch por fim - diga ao Rourke para fazer mais um telefonema. Ele tirou-me do caso, pode voltar a meter-me. - No posso fazer isso. Ele no vai fazer isso. - Oh, vai pois, e diga-lhe que tem at amanh de manh para o fazer. - Ou ento? O qu? O que que voc pode fazer? Quero dizer, sejamos honestos. Com o seu cadastro, provavelmente, amanh j estar suspenso. Mal o Pounds desligou o telefone, depois de falar com o Rourke, deve ter telefonado para o Departamento dos Assuntos Internos, se no foi o prprio Rourke a faz-lo. - No interessa. Ou amanh de manh me dizem qualquer coisa ou diga ao Rourke que vai ler uma histria no Times sobre a forma como um tipo que o FBI considerava como suspeito num importante assalto a um banco, ainda para mais, um suspeito sob vigilncia do FBI, foi assassinado debaixo do nariz do departamento, levando consigo as respostas para o clebre assalto ao WestLand por meio de um tnel. Os factos 98 podem no estar todos correctos nem na ordem exacta dos acontecimentos, mas no devem errar por muito. E, mais importante do que isso, vai proporcionar uma boa leitura. E vai fazer ondas at DC. Vai ser muito embaraoso e vai tambm servir de aviso para quem quer que matou o Meadows. E assim, nunca os iro apanhar. E o Rourke vai ser sempre conhecido como o tipo que os deixou escapar. Ela olhou para ele e abanou a cabea como se estivesse acima de toda aquela trapalhada. - No sou eu que decido. Vou ter de lhe dizer isso e deix-lo decidir o que fazer. Mas, se eu estivesse no lugar dele, obrigava-o a mostrar o jogo. E digo-lhe j, com toda a franqueza, que exactamente isso que lhe vou dizer para fazer. - No bluff nenhum. Voc andou a estudar-me, sabe que eu vou ter com os media e que os media vo gostar de me ouvir. Seja esperta. Diga-lhe que no bluff nenhum. Eu no terei nada a perder se o fizer. E ele no vai ter nada a perder por me tornar a meter no caso. Bosch comeou a deslizar no banco para sair do reservado. Parou e atirou um par de notas de dlar para cima da mesa. - Tm o meu dossier. Sabem onde que me podem contactar.

- Sim, sabemos, claro que sim - disse ela e depois chamou: - Hei, Bosch? Ele parou e voltou-se para trs para olhar para ela. - A prostituta da rua? Estava a dizer a verdade? Em relao almofada? - No o fazem sempre? Bosch estacionou o carro no parque atrs da esquadra na Wilcox, acendeu um cigarro e foi a fumar at chegar porta das traseiras. Apagou a beata no cho e entrou, deixando atrs de si o cheiro a vomitado que saa pelas janelas de rede das celas de deteno nas traseiras da esquadra. Jerry Edgar andava de um lado para o outro no trio de entrada das traseiras espera dele. - Harry, temos uma reunio urgente com o Noventa e Oito. - Sim? Sobre qu? - No sei, mas ele tem andado a entrar e a sair da porta de vidro de dez em dez minutos tua procura. Tens o beeper e o Motorola desligados. E eu vi dois fatinhos dos Assuntos Internos da baixa entrarem l para dentro com ele h um bom bocado.

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Bosch assentiu com a cabea sem dizer nada de reconfortante ao colega. - O que que se passa? - perguntou Edgar atabalhoadamente. - Se temos de contar alguma histria, era melhor acertarmos os pormenores antes de entrarmos ali. Tu que j tens experincia destas merdas, eu no. - No tenho a certeza do que que est a acontecer. Acho que nos esto a expulsar do caso. Pelo menos a mim. Parecia muito descontrado com tudo aquilo. - Harry, eles no chamam os tipos do IAD para fazerem isso. Passa-se qualquer coisa, p. E s espero que, seja l o que for que fizeste, no me tenhas lixado tambm. Edgar envergonhou-se imediatamente do que tinha dito. - Desculpa, Harry, no queria dizer isso. - Acalma-te. Vamos l ver o que que o homem quer. Bosch dirigiu-se para a sala de trabalho dos detectives. Edgar disse que ia cortar pelo gabinete do turno de servio e depois entrar pela frente para no parecer que tinham estado a combinar uma histria. Quando Bosch chegou sua secretria, a primeira coisa em que reparou foi que o livro azul do homicdio do caso Meadows tinha desaparecido. Mas tambm reparou que quem quer que o tinha tirado no se tinha apercebido da cassete com a gravao da chamada para o 911. Bosch agarrou na cassete e meteu-a no bolso do casaco no preciso instante em que a voz do Noventa e Oito trovejava do gabinete envidraado na parte da frente da sala da esquadra. Gritou uma palavra apenas: Bosch! Os outros detectives levantaram as cabeas e olharam em volta. Bosch levantou-se e dirigiu-se vagarosamente para a caixa de vidro, como chamavam ao gabinete do tenente Harvey Noventa e Oito Pounds. Atravs das janelas, viu as costas dos dois fatinhos que l estavam sentados com Pounds. Bosch reconheceu-os como sendo os dois detectives do Departamento dos Assuntos Internos que tinham tratado do caso Dollmaker. Lewis e Clarice. Edgar entrou na sala pela porta do trio da frente no preciso momento em que Bosch ia a passar e entraram os dois juntos na caixa de vidro. Pounds, com uma expresso mortia no olhar, estava sentado secretria. Os homens dos Assuntos Internos no se mexeram. - Primeiro que tudo: nada de fumar, Bosch, ests a ouvir? - disse Pounds. - Esta manh a esquadra tresanda a cinzeiro. Nem sequer vou perguntar se foste tu. A poltica do departamento e da cidade tinha proibido o fumo em todos os gabinetes partilhados por uma comunidade, como era o caso da sala da esquadra da polcia. Era permitido fumar num gabinete particular se fosse do prprio ou se o ocupante do gabinete autorizasse que os visitantes fumassem. Pounds era um fumador reformado e muito militante. A maior parte dos trinta e dois detectives que ele comandava fumavam como agarrados. Quando o Noventa e Oito no estava por perto, muitos deles iam para o gabinete dele para dar umas passas rpidas em vez de sarem para o parque de estacionamento onde perderiam os telefonemas e onde o cheiro a mijo e a vomitado migravam das janelas das traseiras das celas dos

bbados. Pounds tinha ganhado o hbito de fechar chave a porta do gabinete, mesmo para as viagenzinhas rpidas pelo corredor at ao gabinete do comandante da esquadra, mas qualquer pessoa com um abre-cartas conseguia abrir a porta em trs segundos. O tenente estava constantemente a encontrar o espao interior do seu gabinete empestado de fumo. Tinha duas ventoinhas na sala de trs metros por trs metros e uma lata de Glade em cima da secretria. Uma vez que a frequncia do empestano tinha aumentado com a transferncia de Harry Bosch do Parker Center para os detectives de Hollywood, o Noventa e Oito estava convencido de que Bosch era o maior culpado. E tinha razo, mas nunca tinha conseguido apanhar Bosch em flagrante. - Quer dizer que este o assunto? - perguntou Bosch. - Fumar no gabinete? - Senta-te - mas ladrou-lhe Pounds. Bosch levantou as duas mos para mostrar que no havia cigarros entre os dedos. Depois voltou-se para os dois homens dos Assuntos Internos. - Bem, Jed, parece que somos capazes de estar prestes a arrancar numa expedio do Lewis e do Clarke. J no via estes dois grandes exploradores em aco desde que me mandaram para umas frias no Mxico, sem ajudas de custo. Foi a que fizeram o seu melhor trabalho. Cabealhos de jornais, entrevistas, a coisa toda. As estrelas dos Assuntos Internos. As caras dos dois polcias dos Assuntos Internos ficaram imediatamente vermelhas de fria. - Desta vez, podias fazer um favor a ti prprio e manteres essa boca esperta fechada - disse Clarke. - Ests metido num belo sarilho, Bosch. Ests a perceber? 100 - Sim, percebo. Obrigado pela dica. Tambm tenho uma para vocs. Voltem aos fatos descontrados que costumavam vestir antes de se tornarem lacaios do Irving. Sabem, aquelas coisas amarelas que condiziam com os vossos dentes. O polister ficava-vos melhor do que a seda. De facto, um dos tipos ali na cela da preventiva at disse que os fundilhos desses fatos esto a ficar lustrosos com todo o trabalho que vocs fazem sentados secretria. - Est bem, est bem! - interrompeu Pounds. - Bosch, Edgar, sentem-se e calem-se por um minuto. Este... - Meu tenente, eu no disse nada! - comeou o Edgar. - Eu... - Cala-te! Toda a gente calada! Calem-se durante um minuto! - ladrou Pounds. Meu Deus! Edgar, para que fique registado, estes dois so dos Assuntos Internos, se que ainda no o sabias, os detectives Lewis e Clarke. O que ...? - Quero um advogado - disse Bosch. - Eu tambm - acrescentou Edgar. - Ora, tretas! - disse Pounds. - Vamos conversar sobre isto e esclarecer umas quantas coisas e no vamos c meter nenhuma merda da Liga para a Proteco da Polcia. Se quiserem um advogado, arranjem um depois. Para j, vo-se sentar aqui, os dois, e responder a umas perguntas. Se no o fizerem, Edgar, tu vais saltar para fora desse teu fato de oitocentos dlares e voltar ao uniforme e tu Bosch, porra, Bosch, provavelmente, desta vez, vais mesmo para a rua. Durante alguns instantes fez-se silncio na pequena sala, embora a tenso entre os cinco homens ameaasse estilhaar os vidros das janelas. Pounds olhou para a sala de trabalho e viu cerca de uma dzia de detectives que pareciam muito activos, mas que, na realidade, tentavam apanhar, atravs do vidro, tudo o que podiam do que se estava a passar. Alguns tinham estado a tentar ler os lbios do tenente. Levantou-se e baixou as persianas que cobriam as janelas. Raramente o fazia. Era uma indicao para os seus subordinados de que aquilo era muito srio. At Edgar mostrou a sua preocupao soltando um suspiro audvel. Pounds voltou a sentar-se. Tamborilou com uma unha comprida no dossier de plstico azul que estava fechado em cima da secretria. - Okay, ora vamos l ao que interessa comeou ele. Vocs os dois esto afastados do caso Meadows. Isto a primeira coisa. Nada de perguntas, esto fora. Agora, comeando do princpio, vo contar-nos tudo e mais alguma coisa. 102 Nesse momento, Lewis com um estalido do fecho abriu uma pasta e tirou de l de dentro um gravador de cassetes. Ligou-o e colocou-o em cima da secretria

imaculada de Pounds. Bosch s tinha comeado a trabalhar com Edgar h oito meses atrs. No o conhecia suficientemente bem para saber se ele aguentava este tipo de tratamento autoritrio ou at que ponto conseguiria aguentar-se contra estes filhos da me. Mas conhecia-o suficientemente bem para saber que gostava dele e que no queria que ele ficasse entalado. O nico pecado dele nesta histria toda tinha sido ter querido a tarde de sbado livre para vender casas. - Isto uma treta - disse Bosch apontando para o gravador. - Desliga isso - disse Ponds a Lewis, apontando para o gravador, que, na realidade, estava mais perto dele do que de Lewis. O detective dos Assuntos Internos levantou-se e agarrou no gravador. Desligou-o, carregou no boto de rebobinar e voltou a coloc-lo em cima da secretria. Depois de Lewis se ter voltado a sentar, Pounds disse: - Meu Deus, Bosch! O FBI telefona-me hoje para me dizer que te consideram um possvel suspeito num maldito assalto a um banco. Dizem que o Meadows era um suspeito do mesmo trabalho e que, por isso, agora tu tambm deverias ser considerado como suspeito na morte do Meadows. Achas que no te vamos fazer umas perguntas a respeito disto? Edgar estava a expirar ainda mais audivelmente. Estava a ouvir aquilo pela primeira vez. - Mantenha o gravador desligado e poderemos conversar - disse Bosch. Pounds pensou um bocadinho e respondeu: - Por agora, no h gravao. Conta-nos. - Primeiro que tudo, o Edgar no sabe peva acerca disto. Ontem fizemos uma combinao. Eu ficava com o caso do Meadows e ele ia para casa. Ele tratava do caso Spivey, o tipo da TV apunhalado na noite anterior. Esta coisa do FBI, o assalto ao banco, ele no faz a menor ideia do que que se trata. Deixe-o ir embora. Pounds parecia estar a fazer questo de no olhar nem para Lewis, nem para Clarke ou para Edgar. Tinha tomado a deciso sozinho. Isso provocou um ligeiro tremeluzir de respeito em Bosch, como uma candeia acesa mesmo no centro de um furaco de incompetncia. Pounds abriu a gaveta da secretria e tirou para fora uma velha rgua de madeira. Ps-se a brincar com ela. Finalmente, olhou para Edgar. 103 - Isso verdade? Aquilo que o Bosch est a dizer? - Edgar assentiu com a cabea. - Sabes que isso faz com que a coisa fique feia para ele, como se ele estivesse a tentar guardar o caso s para si, a esconder-te as conexes? - Ele disse-me que conhecia o Meadows. Ele foi sempre muito franco. Era domingo. No amos arranjar ningum que nos viesse substituir por causa dele o ter conhecido h vinte anos. Alm disso, a maior parte das pessoas que aparecem mortas em Hollywood, a polcia conhecia-as de uma forma ou de outra. Essa histria do banco e isso tudo, ele deve ter descoberto isso depois de eu me ter ido embora. S agora, aqui sentado, que estou a ouvir falar nisso. - OK - disse Pounds. - Tens algum dos papis sobre este caso? - Edgar abanou a cabea. - OK, acaba aquilo que tens sobre... como que lhe chamaram?... Spivey, isso, o caso Spivey. Vou arranjar-te outro parceiro. No sei quem, mas depois digo-te. OK, tudo, vai-te l embora. Edgar respirou fundo ainda mais audivelmente e levantou-se. Harvey Noventa e Oito Pounds deixou que as coisas assentassem na sala durante alguns momentos depois de Edgar se ter ido embora. Bosch estava doido por um cigarro, nem que fosse s para o ter na boca. Mas no iria mostrar-lhes uma fraqueza daquelas. - OK, Bosch - disse Pounds. - H alguma coisa que nos queiras dizer a respeito disto? - H pois. tudo uma aldrabice. Clarke esboou um sorrisinho escarninho. Bosch no lhe ligou nenhuma. Mas Pounds deitou ao detective dos Assuntos Internos um olhar fulminante que fez aumentar o respeito de Bosch. - O FBI disse-me hoje que eu no era suspeito - disse Bosch. - Investigaram-me h nove meses porque investigaram toda a gente que tinha trabalhado nos tneis no

Vietname. Nessa altura, tinham descoberto uma ligao qualquer com os tneis. To simples como isso. Foi um bom trabalho, eles tinham de investigar toda a gente. Por isso, investigaram-me e passaram adiante. Raios, eu estava no Mxico graas a estes dois imbecis quando se deu essa histria do banco. O FBI limitouse... - Supostamente - disse Clarke. - Deixa-te de merdas, Clarke. S ests a ver se arranjas um esquema para l ires passar as tuas frias, custa dos contribuintes. Podem telefonar para o FBI para confirmar e assim poupam dinheiro. 104 Bosch voltou-se ento para Pounds e ajeitou a cadeira de forma a ficar de costas para os dois homens dos Assuntos Internos. Falou baixo para tornar claro que estava a falar com Pounds e no com eles. - O FBI quer-me fora do caso porque, um, apanhei-os completamente desprevenidos quando hoje lhes apareci de rompante a fazer-lhes perguntas sobre o assalto ao banco. Quero dizer, eu era um nome do passado e eles entraram em pnico e telefonaram para si. E, dois, querem ver-me fora do caso porque, provavelmente, meteram o p na argola, quando deixaram o Meadows escapar no ano passado. Lixaram a nica oportunidade que tiveram com ele e no querem que um departamento de fora se meta e veja isso ou que descubra aquilo que eles no conseguiram descobrir durante nove meses. - No, Bosch, isso tudo que no passa de uma grande treta - disse Pounds. - Esta manh recebi um pedido formal do agente especial encarregado do caso que dirige a brigada dos bancos, um sujeito chamado... - Rourke. - Conhece-lo? Bem, ele pediu que... - Eu fosse imediatamente tirado do caso Meadows. Diz que eu conheo o Meadows, que, por acaso, at o suspeito principal no assalto ao banco. Ele acaba por ser morto e eu estou encarregado do caso. Coincidncia? O Rourke no acha. Eu tambm no estou l muito seguro. - Foi exactamente o que ele disse. Por isso, a partir daqui que vamos comear. Conta-nos l o que sabes do Meadows, como que o conheceste, quando o conheceste, no deixes nada de fora. Bosch passou a hora seguinte a contar a Pounds a histria de Meadows, dos tneis, da vez que o Meadows tinha telefonado, quase vinte anos depois, e de como ele, Bosch, tinha conseguido que ele entrasse para Outreach da VA em Sepulveda sem sequer o ter visto. Tudo feito apenas pelo telefone. Durante todo aquele tempo, Bosch nunca se dirigiu aos dois detectives dos Assuntos Internos, nem deu a entender que sabia que eles estavam na sala. - No fiz segredo de que o conhecia - rematou ele. - Disse ao Edgar. Entrei por ali dentro e disse ao FBI. Acha que eu teria feito isso se tivesse sido eu que despachei o Meadows? Nem sequer o Lewis e o Clarke so assim to estpidos. - Bem... Santo Deus, Bosch, por que que no me disseste? - trovejou Pounds. - Por que que no est nos relatrios deste livro? Por que que tenho de saber pelo FBI? Por que que os Assuntos Internos tm de saber pelo FBI? 105 Ento, no tinha sido Pounds que tinha feito o telefonema para os Assuntos Internos. Tinha sido o Rourke. Bosch perguntou para consigo se Eleanor Wish sabia disso e tinha mentido, ou se Rourke teria telefonado aos imbecis quando estava sozinho. Mal conhecia a mulher, no conhecia a mulher, mas deu por si a desejar que ela no lhe tivesse mentido. - S comecei a trabalhar nos relatrios esta manh - disse Bosch. - Ia complet-los depois de ter falado com o FBI. Obviamente, no tive oportunidade. - Bem, vou poupar-te a esse trabalho - disse Pounds. - Foi entregue ao FBI. - O que que foi entregue? - perguntou Bosch. - O FBI no tem jurisdio sobre isto. Isto um homicdio. - O Rourke disse que eles esto convencidos de que o assassinato est directamente ligado com a investigao em curso sobre o assalto ao banco. Vo incluir isto nas investigaes deles. Ns vamos nomear o nosso prprio agente para o caso atravs de um contacto interdepartamental. Se e quando chegar a altura de

acusar algum de homicdio, o agente nomeado levar a acusao ao DA para que este actue. - Meu Deus, Pounds! Passa-se qualquer coisa. No est a ver? - Pounds voltou a meter a rgua na gaveta e fechou-a. - Sim, passa-se qualquer coisa . Mas no a interpreto como tu disse ele. tudo, Bosch. Isto uma ordem. Ests fora. Estes dois homens querem falar contigo e tu ficas a fazer servio de secretria at que os Assuntos Internos concluam a investigao. Calou-se uns segundos antes de recomear com um tom solene. Um homem infeliz com o que tinha de dizer. - Sabes, mandaram-te para aqui no ano passado e eu podia ter-te posto em qualquer stio. Podia ter-te metido na merda da seco dos roubos, s voltas com cinquenta relatrios por semana, completamente enterrado em papelada. Mas no o fiz. Apercebi-me das tuas qualidades e pus-te nos homicdios, coisa que julguei que querias. No ano passado, disseram-me que eras bom, mas que no te mantinhas dentro das linhas. Agora vejo que tinham razo. At que ponto isto me vai prejudicar, no sei. Mas j no me vou ralar com aquilo que poder ser melhor para ti. Agora, podes falar com esses gajos ou no. A verdade que me estou nas tintas. Mas o fim. Est tudo acabado entre ns. Se, no sei como, conseguires safar-te desta, melhor tentares arranjar uma transferncia porque nunca mais vais fazer parte da minha seco de homicdios. Pounds agarrou na pasta azul que estava em cima da secretria e levantou-se. Enquanto se dirigia para a porta, disse: - Tenho de dar isto a algum que o v entregar ao FBI. Vocs, rapazes, podem ficar com o gabinete durante todo o tempo que precisarem. Fechou a porta e foi-se embora. Bosch pensou um pouco e concluiu que, na verdade, no podia censurar Pounds por aquilo que ele tinha dito ou feito. Tirou um cigarro e acendeu-o. - Ei! No se pode fumar, ouviste o homem - protestou Lewis. - Vai-te foder - respondeu Bosch. - Bosch, s um homem morto - disse Clarke. - Desta vez, vamos queimar-te na fogueira. J no s o heri que foste noutros tempos. Desta vez, no h problemas de RP. Ningum se vai ralar com o que te acontece. Levantou-se e voltou a ligar o gravador. Recitou a data, os nomes dos trs homens presentes e o nmero que os Assuntos Internos tinham atribudo ao caso sob investigao. Bosch reparou que o nmero do caso j ultrapassava em cerca de setecentos o do caso da investigao interna que o tinha mandado para Hollywood, nove meses antes. Nove meses, e setecentos outros polcias tinham passado pela mesma tortura idiota. Ia chegar o dia em que j no restaria ningum para fazer aquilo que estava escrito em todos os carros patrulha: servir e proteger. - Detective Bosch - Lewis tomou o comando das operaes num tom calmo e com uma articulao cuidada - gostaramos de lhe fazer algumas perguntas relacionadas com a morte de William Meadows. Queira informar-nos de qualquer associao ou conhecimento anterior que tenha tido com o falecido. - Recuso-me a responder a todas as perguntas sem a presena do meu advogado disse Bosch. - Cito o meu direito a ser representado, consagrado na Declarao dos Direitos dos Polcias da Califrnia. - Detective Bosch, a administrao do departamento no reconhece esse aspecto da Declarao dos Direitos dos polcias. Est obrigado a responder a estas perguntas e, se no o fizer, incorrer numa pena de suspenso ou at mesmo de expulso. O... - So capazes de me fazer o favor de alargar um pouco estas algemas? - disse Bosch. - O qu? - berrou Lewis perdendo o tom calmo e confiante. Clarke levantou-se e aproximou-se do gravador de cassetes dobrando-se por cima dele. 106 107 - O Detective Bosch no est algemado e h duas testemunhas presentes que podem atestar este facto - disse ele. - So apenas os dois que me algemaram - disse Bosch. - E me bateram. Isto uma

violao completa dos meus direitos. Exijo que estejam presentes um representante do sindicato e o meu advogado para podermos continuar. Clarke rebobinou a fita e desligou o gravador. Tinha a cara quase roxa de fria e voltou a enfiar o gravador na pasta do colega. Foram precisos alguns instantes para que qualquer deles conseguisse articular uma palavra. Clarke disse: - Vai ser um prazer dar cabo de ti, Bosch. Vamos pr os papis da suspenso em cima da secretria do chefe at ao final do dia. Vais ficar amarrado a uma secretria nos Assuntos Internos onde podemos manter-te debaixo de olho. Vamos comear com CUBO1 e avanar a partir da, se calhar vamos mesmo at ao homicdio. Seja como for, j ests arrumado no departamento. Passaste histria. Bosch levantou-se e os dois detectives dos AI fizeram o mesmo. Bosch deu uma ltima passa no cigarro, atirou-o para o cho, em frente de Clarke, e pisou-o, esfregando-o no linleo polido. Sabia que eles preferiam limpar aquilo a deixarem que Pounds descobrisse que no tinham conseguido controlar a entrevista, nem o entrevistado. Passou pelo meio deles, expirou o fumo e saiu do gabinete sem dizer uma palavra. L fora, ouviu a voz quase descontrolada do Clarke a gritar-lhe: - Mantm-te longe deste caso, Bosch! Evitando os olhares que o seguiam, Bosch atravessou a sala de trabalho e deixou-se cair na cadeira da sua secretria. Olhou para Edgar que estava sentado no seu lugar. - Portaste-te bem - disse Bosch. - Deves safar-te sem problemas. - E tu? - Estou fora do caso e esses dois cretinos vo apresentar uma queixa escrita de mim. Tenho esta tarde e pouco mais antes de receber uma ROD2. - Que grande porra! O subchefe em exerccio nos Assuntos Internos tinha de assinar todas as ordens de Suspenso do Servio e as suspenses temporrias.
00 CUBO Conduct unbecoming an Officer. (N. T.) 00 ROD Relieved of Duty Suspenso do Servio. (N. T.)

108 Penalizaes mais duras tinham de ser levadas a uma subcomisso da direco da polcia para serem aprovadas. Lewis e Clarke iriam comear por tentar uma ROD por conduta imprpria de um agente, ou CUBO, como era conhecida. Depois iriam trabalhar numa coisa mais grave para levarem comisso. Se o subchefe assinasse uma ROD contra Bosch, este teria de ser notificado segundo os regulamentos do sindicato. Isso queria dizer em pessoa ou atravs de conversa telefnica gravada. Mal a notificao fosse feita, Bosch podia ser destacado para uma secretria nos Assuntos Internos no Parker Center ou mandado ficar em casa at concluso da investigao. Mas, como tinham acabado de prometer, Lewis e Clarke iriam pedir a transferncia para os AI. Assim poderiam exibi-lo como um trofeu. - Precisas de alguma coisa minha para o caso Spivey? - perguntou a Edgar. - No. Tenho tudo pronto. Vou comear a dactilografar mal consiga arranjar uma mquina. - Chegaste a verificar, como te pedi, o emprego do Meadows no projecto do metro? - Harry, tu... - Edgar devia ter-se arrependido do que ia dizer. - Sim, verifiquei. No sei se interessa para alguma coisa, mas eles disseram que nunca tiveram ningum chamado Meadows nesse projecto. H um Fields, mas preto e hoje estava a trabalhar. E o Meadows provavelmente no andava a trabalhar sob outro nome qualquer porque eles no tm nenhum turno da meia-noite. O projecto est adiantado, se s capaz de acreditar nessa merda. - Nessa altura, Edgar gritou: - Tenho prioridade na Selectric. - Nem pensar - gritou um detective dos carros roubados chamado Minkly. - Sou eu a seguir para essa. Edgar comeou a olhar em volta procura de outro candidato. Ao fim do dia, as mquinas de escrever da sala valiam ouro. Havia uma dzia de mquinas para trinta e dois detectives, isto se se inclussem as manuais e as elctricas com tiques nervosos como no respeitar margens ou no marcar os espaos. - Est bem - gritou Edgar. - Ento sou depois de ti, Mink. A seguir, Edgar baixou a voz, voltou-se para Bosch e perguntou:

- Com quem que achas que ele me vai pr? - O Pounds? No sei. Era a mesma coisa do que adivinhar com quem que a tua mulher vai casar depois de teres carregado no boto do cronmetro. Bosch no estava nada interessado em especular sobre quem que iria ser o novo scio de Edgar. Disse: - Olha, tenho de tratar de umas coisas. - Claro, Harry. Precisas de alguma ajuda? Qualquer coisa minha? Bosch abanou a cabea e agarrou no telefone. Ligou para o advogado e deixou uma mensagem. Era habitual serem precisas trs mensagens at o tipo retribuir a chamada e Bosch tomou nota para no se esquecer de voltar a ligar. Depois, voltou-se para a sua agenda da secretria, descobriu o nmero que queria e ligou para o Arquivo dos Registos das Foras Armadas dos EU em St. Louis. Pediu para falar com um funcionrio da polcia e apanhou uma mulher chamada Jessie St. John. Fez um pedido prioritrio de cpias de todos os registos militares de Billy Meadows. Trs dias, disse St. John. Desligou a pensar que nunca veria os registos. Eles iam chegar, mas ele no estaria nesta repartio, na sua secretria, a trabalhar naquele caso. A seguir ligou para Donovan no SID e ficou a saber que no havia impresses digitais latentes no kit encontrado no bolso de Meadows e apenas umas manchas na lata de tinta spray. Os cristais castanhos claros encontrados no algodo do kit eram de herona com 55% de pureza, mistura asitica. Bosch sabia que a maior parte da herona vendida nas ruas e injectada nas veias tinha uma pureza de cerca de 15%. A maior parte era herona de alcatro feita por mexicanos. Algum tinha dado a Meadows uma injeco muito forte. Na opinio de Harry, isso tornava os testes txicos de que estava espera uma mera formalidade. Meadows tinha sido assassinado. Nada mais da cena do crime tinha grande utilidade, exceptuando Donovan referir que o fsforo recentemente utilizado encontrado no cano no ter sido tirado da carteira de fsforos do kit de Meadows. Bosch deu a Donovan a morada do apartamento de Meadows e pediu-lhe para mandar uma equipa para o analisar. Disse-lhe para comparar os fsforos no cinzeiro na mesa de apoio com o da carteira do kit. Depois desligou perguntando para consigo se Donovan iria mandar algum antes que a notcia de que Bosch estava fora do caso ou suspenso se espalhasse. O ltimo telefonema que fez foi para o gabinete da Medicina Legal. Sakai disse que tinham conseguido uma identificao do parente mais prximo. A me de Meadows ainda estava viva e tinha sido contactada em New Ibria, Louisiana. Ela no tinha dinheiro para o mandar ir nem para o enterrar. No o via h dezoito anos. Billy Meadows no iria voltar para casa. O condado de L. A. iria ter de o enterrar. 110 - E a VA?- perguntou Bosch. - Ele era um veterano. - Certo. Vou ver isso - disse Sakai e desligou. Bosch levantou-se e foi buscar um pequeno gravador porttil a uma das gavetas do armrio dos arquivos. O banco de dossiers corria ao longo da parede por trs da seco de homicdios. Enfiou subrepticiamente o gravador no bolso do casaco onde j tinha a gravao da chamada para o 911 e saiu da sala pelo corredor das traseiras. Passou pelos bancos das detenes e pelos calabouos e seguiu at ao gabinete do CRASH. O gabinete minsculo estava ainda mais cheio de gente do que o departamento dos detectives. Secretrias e arquivos para os cinco homens e uma mulher estavam enfiadas numa sala que no era maior do que o segundo quarto num apartamento em Venice. Ao longo de uma das paredes havia uma enfiada de armrios para arquivos com quatro gavetas cada um. Na parede oposta, havia um computador e uma impressora. No meio havia trs conjuntos de duas secretrias encostadas umas s outras. A parede do fundo tinha o habitual mapa da cidade com linhas pretas a indicar as dezoito divises da polcia. Por cima do mapa estava o Top 10: fotografias coloridas dos dez maiores idiotas na Diviso de Hollywood de momento. Bosch reparou que uma era uma fotografia da morgue. O rapazola estava morto, mas ainda continuava na lista. Ora, isto que um idiota a srio, pensou ele. Por cima das fotografias, letras em plstico preto diziam: Recursos Comunitrios Contra Os Rufias da Rua. A nica pessoa presente era Thelia King, sentada em frente do computador. Era exactamente isso que Bosch queria. Tambm conhecida por O Rei, que ela

detestava, e Elvis, com que no se importava, Thelia King era a perita do computador no CRASH. Quando algum queria traar a linhagem de um bando ou apenas encontrar um delinquente juvenil solta por Hollywood, Elvis era a pessoa com quem se devia contactar. Mas Bosch estava surpreendido por ela estar sozinha. Olhou para o relgio. Passava pouco das duas horas, demasiado cedo para as tropas dos bandos j estarem na rua. - Onde que foi toda a gente? - Ei, Bosch! - disse ela, desviando os olhos do ecr. - Funerais. Temos dois bandos diferentes, e estou a falar de tribos em guerra, a enterrarem os seus rapazes no mesmo cemitrio no Valley. Mandaram toda a gente para l para garantirem que no h chatices.
CRASH (Community Resources Against Street Hoodlums) Recursos Comunitrios Contra Os Rufias da Rua. (N. T.)

111 - E por que que no foste com a rapaziada? - Voltei agora mesmo do tribunal. Por isso, antes que me digas porque que ests aqui, Harry, porque que no me contas o que que aconteceu hoje no gabinete do Noventa e Oito Pounds? Bosch sorriu. As notcias espalhavam-se mais depressa numa esquadra da polcia do que nas ruas. Fez-lhe um breve resumo do tempo que passara na caixa de vidro e da batalha que o esperava com os Assuntos Internos. - Bosch, tu levas as coisas demasiado a srio disse ela. Por que que no arranjas qualquer actividade l fora. Qualquer coisa que te mantenha so. Como o teu parceiro. uma pena que esse filho da me seja casado. Ele ganha trs vezes mais a vender casas do que ns conseguimos a darmos o corpo ao manifesto durante vinte e quatro horas por dia. Preciso de uma actividadezinha como a dele. Bosch assentiu com a cabea. Mas deixarmo-nos levar demasiado pela corrente est a levar-nos para o esgoto, pensou ele, mas no o disse. s vezes, acreditava que ele levava as coisas na conta certa e que todas as outras pessoas no as levavam suficientemente a srio. Esse que era o problema. Toda a gente tinha uma actividade extra. - De que que precisas? - perguntou ela. - melhor fazer isso j antes que eles divulguem a tua situao. Depois disso, passas a ser um leproso aqui. - Fica onde ests - disse ele e, puxando uma cadeira para o lado dela, explicou-lhe o que precisava do computador. O computador do CRASH tinha um programa chamado GRIT, um acrnimo dentro de um acrnimo, este para Gang-Related Information Tracking1. Os ficheiros do programa continham os elementos vitais sobre 55000 membros de bandos identificados e delinquentes juvenis na cidade. O computador tambm fazia a ligao com o computador no gabinete do xerife, que tinha cerca de 30000 dos seus prprios membros de bandos nos ficheiros. Uma parte do programa GRIT era o ficheiro das alcunhas. Este armazenava referncias a delinquentes por nomes de ruas e conseguia relacion-los com os nomes verdadeiros, datas de nascimento, moradas, etc. Todas as alcunhas que despertavam a ateno da polcia atravs das fichas das detenes ou dos abanes relatrios dos interrogatrios de campo eram introduzidas no programa do
Gang-Related Information Tracking Busca de Informaes Relativas a Bandos, (N. T.)

computador. Dizia-se que o ficheiro GRIT tinha mais de 90000 alcunhas l introduzidas. Bastava uma pessoa saber que teclas usar. E Elvis sabia. Bosch deulhe as trs letras que tinha. - No sei se isto a coisa toda ou s parte disse ele. Penso que s parte. Ela carregou nas teclas dos comandos para abrir os ficheiros GRIT, introduziu as letras S-H-A e carregou na tecla para iniciar. Levou cerca de treze segundos. Uma expresso carrancuda enrugou a cara cor de bano de Thelia King. - Trezentos e quarenta e trs resultados - anunciou ela. - s capaz de j estar a escondido h algum tempo, amor. Bosch disse-lhe para eliminar os negros e os latinos. O tipo da gravao da chamada para o 911 parecia-lhe branco. Ela carregou em mais teclas e as letras amarelas do ecr do computador refizeram a lista. - Assim j melhor, dezanove resultados - comentou Thelia King. No havia

nenhuma alcunha apenas com as trs letras. Sha. Havia cinco Shadows, quatro Shahs, dois Sharkeys, dois Sharkies e um para cada um dos nomes seguintes Shark, Shabby, Shallow, Shank, Shabot e Shame. Bosch recordou rapidamente o graffito que tinha visto no cano da barragem. O dentado, quase como uma boca aberta. A boca de um tubaro (Shark)? - Pede as variaes para Shark - disse a Thelia King. Ela voltou a carregar numas quantas teclas e o tero superior do ecr encheu-se com outras letras amarelas. Shark era um rapaz do Valley. Contacto limitado com a polcia; tinha ficado em liberdade condicional e fora obrigado a limpar graffitis depois de ter sido apanhado a pintar os bancos dos autocarros ao longo do Ventura Boulevard em Tarzana. Tinha quinze anos. No era provvel que tivesse estado l em cima, na barragem, s trs da manh de um domingo, pensou Bosch. King foi buscar o primeiro Sharkie no ecr. Estava presentemente num acampamento em Malibu para delinquentes juvenis. O segundo Sharkie estava morto, tinha morrido numa guerra de bandos entre os KGB Kids Gone Bad e os Vineland Boyz em 1989. O nome dele ainda no tinha sido limpo dos registos do computador. Quando Thelia King chamou o primeiro Sharkey, o ecr encheu-se de informaes e uma palavra a piscar no fundo do ecr dizia Mais. - Ora aqui temos um causador de problemas habitual - disse ela. O relatrio do computador descrevia Edward Niese, um branco de dezassete anos de idade, conhecido por conduzir uma moto amarela com a matrcula JVN138, e que no tinha nenhuma ligao com bandos mas que usava Sharkey como identificao nos graffitis. Um fugitivo frequente de casa da me em Chatsworth. Seguiram-se dois ecrs de contactos da polcia com Sharkey. Bosch concluiu, pela localizao de cada deteno, que este Sharkey tinha preferncia por Hollywood e West Hollywood quando fugia. Leu rapidamente at ao fim do segundo ecr, onde encontrou uma deteno por vagabundagem no reservatrio de Hollywood trs meses antes. - ele - disse. - Esquece o ltimo mido. Cpia em papel? Ela carregou nas teclas para imprimir o ficheiro do computador e apontou para a parede com os arquivos. Bosch foi at l e abriu a gaveta do N. Encontrou um ficheiro de Edward Niese e tirou-o para fora. L dentro havia uma fotografia a cores. Sharkey era louro e parecia pequeno na fotografia. Tinha aquela expresso dorida e desafiadora que era to comum como a acne nas caras dos adolescentes de hoje em dia. Bosch apercebeu-se de que aquela cara tinha qualquer coisa de familiar. Mas no a conseguia localizar. Voltou a fotografia. Estava datada de dois anos antes. Thelia King entregou-lhe o relatrio impresso e ele sentou-se a uma das mesas vazias a estud-lo assim como ao contedo do ficheiro. Os crimes mais graves que o rapaz que chamava a si prprio Sharkey tinha cometido e em que tinha sido apanhado eram roubos em lojas, vandalismo, vagabundagem e posse de marijuana e speeds. Uma vez tinha ficado detido vinte dias no Sylmar Juvenile Hall, na sequncia de uma das detenes por posse de droga, mas tinha sado em liberdade condicional, com a obrigatoriedade de ficar em casa. Todas as outras vezes que tinha sido apanhado tinha sido imediatamente libertado guarda da me. Era um fugitivo de casa crnico e um rejeitado pelo sistema. No ficheiro no havia muito mais informaes do que as que constavam no computador. Uma pequena elaborao nos relatrios das detenes e mais nada. Bosch foi virando as folhas at descobrir o relatrio da acusao de vagabundagem. Tinha seguido para interveno preliminar e tinha sido retirada quando Sharkey concordara em voltar para casa, para a me, e ficar l. Aparentemente, aquilo no tinha durado muito tempo. Havia uma informao de que a me o tinha dado como desaparecido ao agente da liberdade condicional duas semanas mais tarde. Segundo estes relatrios, ainda no tinha sido apanhado outra vez. Bosch leu o resumo da deteno por vagabundagem feito pelo agente encarregado da investigao. Dizia:
O A/I entrevistou Donald Smiley, um guarda do Mulholland Dam, que disse que s 7 A.M. desta data entrou no cano situado ao longo da estrada de acesso do reservatrio para o limpar do lixo acumulado. Smiley descobriu o rapaz a dormir numa cama feita de jornais. O rapaz estava sujo e incoerente quando acordou. O sujeito parecia estar sob o efeito de

narcticos. A polcia foi chamada e o A/I respondeu. O detido disse ao A/I que andava a dormir ali h algum tempo porque a me no o queria em casa. O A/I concluiu que o sujeito era um fugitivo procurado e prendeu-o nesta data por suspeita de vagabundagem.

Sharkey era uma criatura de hbitos, pensou Bosch. Tinha sido preso no reservatrio dois meses antes, mas tinha voltado l para dormir na manh de domingo. Leu os restantes papis procura de indicaes de outros hbitos que o pudessem ajudar a localiz-lo. Por uma ficha de 7,5 por 12,5 de um abano, Bosch ficou a saber que Sharkey tinha sido detido e interrogado, mas no preso, no Santa Monica Boulevard, perto de West Hollywood, em Janeiro. Sharkey estava a atar os atacadores de uns Reeboks novos e o agente, pensando que provavelmente ele os tinha acabado de roubar, pediu a Sharkey que lhe mostrasse o recibo. Ele mostroulho e as coisas poderiam ter ficado por ali. Mas quando o rapaz tirou o recibo de uma bolsa de cabedal na motorizada, o polcia reparou num saco de plstico que estava l dentro e pediu para o ver tambm. O saco continha dez fotografias de Sharkey. Estava nu em todas, em diversas poses, numas acariciava-se, noutras tinha o pnis erecto. O polcia tirou-lhe as fotografias e destruiu-as, mas anotou na ficha que ia alertar o gabinete do xerife em West Hollywood para o facto de Sharkey andar a distribuir fotografias aos homossexuais no Santa Monica Boulevard. E era tudo. Bosch fechou o dossier, mas guardou a fotografia de Sharkey. Agradeceu a Thelia King e saiu do pequeno gabinete. Estava a andar pelo corredor das traseiras da esquadra, passando pelos bancos de deteno, quando localizou a familiaridade da fotografia. Agora o cabelo estava mais comprido e em trancinhas, o desafio a encobrir a expresso dorida da cara, mas Sharkey tinha sido o mido que estava algemado ao banco dos delinquentes juvenis no princpio da manh daquele prprio dia. Bosch tinha a certeza absoluta. Thelia no tinha encontrado nenhuma referncia na pesquisa computadorizada porque a deteno ainda no 114 115 tinha sido introduzida. Bosch entrou no gabinete do comandante do servio nocturno, explicou ao tenente o que procurava e foi-lhe indicada uma caixa com uma etiqueta que dizia Servio A. M. Bosch procurou nos relatrios empilhados na caixa at encontrar os papis referentes a Edward Niese. Sharkey tinha sido apanhado s 4 A.M., a vaguear perto de um quiosque de jornais em Venice. Um agente da patrulha pensou que ele andava no engate. Depois de o ter prendido, foi ao computador e descobriu que era um fugitivo. Bosch leu a folha das prises relativas aquele dia e viu que o rapaz tinha ficado detido at s 9 da manh, quando o funcionrio da liberdade condicional o tinha vindo buscar. Bosch telefonou para o funcionrio da liberdade condicional em Sylmar Juvenile Hall, mas foi informado que Sharkey j tinha sido apresentado a um mediador do tribunal juvenil e entregue custdia da me. - E esse que o maior problema dele - disse o funcionrio. - Esta noite volta a fugir e vai andar por a, pelas ruas. Garanto-lhe. Foi o que eu disse ao mediador, mas ele no estava disposto a meter o mido numa casa de delinquentes s porque ele tinha sido apanhado na vadiagem e a me uma pega por telefone. - Uma qu? - perguntou Bosch. - Devia estar no ficheiro. Pois , enquanto o Sharkey anda na rua, a querida e velha mam est em casa ao telefone, a dizer aos gajos que lhes vai mijar dentro da boca e pr-lhes elsticos nas pichas. Tem anncios nas revistas porno. Leva quarenta dlares por quinze minutos. Aceita MasterCard, Visa, pe-os espera enquanto verifica noutro telefone se o nmero vlido e eles tm crdito. Bem, seja como for, ela anda a fazer isto, tanto quanto sei, h cinco anos. Os anos de formao do Edward foram passados a ouvir estas merdas. No admira que o mido tenha dado em safardana e fugitivo. O que que se esperava? - H quanto tempo que ele se foi embora com ela? - Por volta do meio-dia. Se o queres apanhar l, melhor ires j. Tens a morada? - Tenho. - E, Bosch, s uma coisa. No estejas espera de uma prostituta quando l chegares. A me dele... no tem o ar do papel que faz ao telefone, se que me entendes. A voz dela pode dar conta do recado, mas a cara at assusta um cego.

Bosch agradeceu-lhe o aviso e desligou. 116 Apanhou a 101 em direco ao Valley e depois a 405 norte para a 118 e seguiu para ocidente. Saiu em Chatsworth e seguiu para as colinas rochosas e ngremes no canto superior do Valley. Havia um condomnio comunitrio construdo naquilo que ele sabia ter sido noutros tempos um rancho do cinema. Tinha sido um dos stios que Charlie Manson e o seu grupo tinham usado para se esconderem. Dizia-se que partes do corpo de um dos membros desse grupo ainda continuavam desaparecidos e enterrados algures, por ali. A noite estava quase a cair quando Bosch l chegou. As pessoas tinham sado dos empregos e dirigiam-se a casa. Havia muito trnsito nas ruas estreitas do bairro. Muitas portas a fecharem-se. Uma data de telefonemas para casa da me do Sharkey. Bosch tinha chegado demasiado tarde. - No tenho tempo para falar com mais polcias - disse Vernica Niese quando abriu a porta e olhou para o crach. - Mal o trago para casa, j ele est a sair outra vez. No sei para onde que ele vai. Diga-me o senhor. o seu trabalho. Tenho trs chamadas espera, uma delas de longa distncia. Tenho de ir. Andava nos quarenta e muitos, gorda e cheia de rugas. Era bvio que usava uma peruca e a dilatao dos olhos no era idntica. Tinha o cheiro a meias sujas dos viciados em speed. Os clientes ficavam muito melhor servidos s com uma voz com que podiam construir um corpo e uma cara. - Mrs Niese, no ando procura do seu filho por nada que ele tenha feito. Preciso de falar com ele por causa de uma coisa que ele viu. muito possvel que esteja em perigo. - Ora, tretas! J ouvi essa muitas vezes. Ela fechou-lhe a porta na cara e ele deixou-se ficar ali parado. Passados uns instantes, conseguiu ouvi-la ao telefone e pensou que era uma pronncia francesa, mas no tinha a certeza. S conseguia perceber algumas das frases que o fizeram corar. Pensou em Sharkey e concluiu que, na realidade, ele no era um fugitivo, porque ali no havia nada de que fugir. Saiu da porta e dirigiu-se para o carro. Tinha chegado a altura de dar o dia por terminado. E estava a ficar sem tempo. Clarke e Lewis j deviam ter entregue a queixa contra ele. Ia ser mandado para uma secretria na Diviso dos Assuntos Internos logo de manh. Voltou esquadra e assinou a hora de sada. J toda a gente se tinha ido embora e no havia nenhum recado na secretria, nem sequer do advogado. A caminho de casa, parou no Lucky e comprou quatro latas de cerveja, duas do Mxico, uma lager de Inglaterra, chamada Old Nick e uma Henrys. 117 Estava espera de ter uma mensagem de Lewis e Clarke no atendedor de chamadas quando chegasse a casa. No se enganou, mas a mensagem no era a que esperava. - Sei que ests a, por isso ouve - disse uma voz que Bosch reconheceu como sendo a de Clarke. - Eles podem mudar de opinio, mas no podem mudar a nossa. Vamos ver-nos por a. No havia mais mensagens. Ouviu a mensagem de Clarke trs vezes. Alguma coisa lhes tinha sado furada. Seria possvel que aquela sua fraca ameaa ao FBI de ir para os media tivesse dado resultado? Mas mesmo enquanto fazia a pergunta, duvidava que a resposta fosse um sim. Por isso, o que que teria acontecido? Sentou-se na sua poltrona e comeou a beber as cervejas, as mexicanas primeiro, ao mesmo tempo que folheava o lbum da guerra que se tinha esquecido de guardar. Quando o abrira no sbado noite, tinha aberto uma recordao muito sombria. Deu por si completamente hipnotizado por ela, a passagem do tempo tinha esbatido a ameaa tal como esbatera as fotografias. A determinada altura, depois de ter ficado escuro, o telefone tocou e Harry atendeu antes que o gravador de chamadas o fizesse. - Bem - disse o tenente Harvey Pounds -, o FBI agora acha que so capazes de ter sido demasiado severos. Reavaliaram a situao e querem-te de volta. Vais passar a ajudar na investigao em tudo o que eles pedirem. Isto vem da administrao, Parker Center. A voz de Pounds traa a sua surpresa com aquele volte face. - E os Assuntos Internos? - perguntou Bosch.

- No fizeram nenhuma queixa. Como j disse, o FBI voltou atrs e o mesmo acontece com os Assuntos Internos. Por agora. - Quer dizer que voltei. - Voltaste. No por deciso minha. S para que saibas, passaram por cima de mim porque eu lhes disse que se fossem todos lixar. H qualquer coisa nisto que cheira mal, mas acho que vai ter de ficar para mais tarde. Por agora, ests destacado. Vais trabalhar com eles at novas ordens. - E o Edgar? - No te preocupes com o Edgar. J no te diz respeito. - Pounds, voc age como se me tivesse feito um favor em me ter posto na seco dos homicdios quando me expulsaram do Parker Center. Eu que lhe fiz o favor, homem. Por isso, se est espera que eu lhe pea desculpa, no conte com isso. - Bosch, no estou espera de nada da tua parte. Tu que te lixaste. O nico problema que podes ter feito com que eu tambm me lixasse. 118 Se dependesse de mim, no terias nada a ver com este caso. Estarias era a verificar as listas das casas de penhores. - Mas no depende de si, pois no? Desligou antes que Pounds pudesse replicar. Ficou ali parado a pensar durante alguns momentos e ainda tinha a mo em cima do auscultador quando o telefone voltou a tocar. - O que ? - Um dia tramado, hem? - disse a voz de Eleanor Wish. - Pensei que era outra pessoa. - Bem, calculo que j foi informado.

- J -Vai trabalhar comigo.


- Por que que mandou retirar os ces? - Simples, queremos manter esta investigao fora dos jornais. - H mais do que isso. Ela no disse nada, mas no desligou. Por fim, ele lembrou-se de qualquer coisa para dizer. - Amanh, o que que eu fao? - Venha ter comigo de manh. Logo veremos. Bosch desligou. Pensou nela e no facto de no saber o que que se estava a passar. No estava a gostar daquilo, mas agora no podia afas-tar-se. Foi para a cozinha e tirou a garrafa de Old Nick do frigorfico. Lewis estava de costas para o trnsito, usando o corpo enorme para bloquear o barulho, impedindo-o de entrar na cabine pblica. - Ele comea a trabalhar com o FBI... ah... o departamento, amanh de manh. O que que quer que a gente faa? - perguntou Lewis. Irving no respondeu logo. Lewis imaginou-o no outro lado da linha, as mandbulas completamente cerradas. Cara de Popeye, pensou Lewis com um sorriso trocista. Clarke aproximou-se, vindo do carro e sussurrou: - Qual a piada? O que que ele disse? Lewis mandou-o embora fazendo uma careta que queria dizer no me chateies. - Quem era esse? - perguntou Irving. - Era o Clarke, senhor. Est ansioso por saber qual a nossa misso. - O tenente Pounds falou com o sujeito em causa? - Sim, falou - respondeu Lewis, perguntando para consigo se Irving optaria a gravar a conversa. - O tenente disse que o... ah... sujeito tinha do informado que ia trabalhar com o FBI... o departamento. Esto a 119 juntar o homicdio ao assalto ao banco. Ele vai trabalhar com a Agente Especial Eleanor Wish. - Que tramia ser a dele? - perguntou Irving, embora no estivesse espera de nenhuma resposta e de nenhuma ter sido dada por Lewis. Seguiu-se um silncio na linha durante um bocado porque Lewis sabia muito bem

que no podia interromper os pensamentos de Irving. Viu que Clarice se estava outra vez a aproximar da cabina e mandou-o embora com um gesto ao mesmo tempo que abanava a cabea como se estivesse a tratar com uma criana impetuosa. A cabina telefnica sem porta ficava ao fundo do Woodrow Wilson Drive, ao lado do Barham Boulevard atravessando a Hollywood Freeway. Lewis ouviu o barulho de um reboque a passar na auto-estrada e sentiu ar quente a entrar na cabina. Olhou para as luzes das casas na encosta da colina e tentou descobrir qual vinha da casa de Bosch. Era impossvel dizer. A colina parecia uma gigantesca rvore de Natal com demasiadas luzes. - Ele deve ter qualquer poder sobre eles - disse Irving por fim. - Ele forou a entrada. Vou-te dizer qual vai ser a vossa misso. Vocs os dois vo andar em cima dele. De forma que ele no saiba. Mas fiquem com ele. Est a tramar alguma. Descubram o qu. E vo construindo o vosso caso um ponto oitenta e um. O Departamento Federal de Investigaes pode ter retirado a queixa, mas ns no vamos recuar. - E quanto ao Pounds, quer que ele seja informado? - Para si tenente Pounds, detective Lewis. E sim, vo-lhe dando o vosso relatrio dirio da vigilncia. Deve ser suficiente. Irving desligou sem dizer mais nada. - Muito bem, senhor - disse Lewis para o telefone desligado. No queria que Clarke soubesse que tinha sido desconsiderado. - Vamos manter-nos em cima dele. Obrigado, senhor. Boa-noite. E desligou por sua vez sentindo-se envergonhado por o comandante no ter considerado necessrio dar-lhe as boas noites. Clarke aproximou-se rapidamente. - Ento? - Ento, vamos voltar a apanh-lo amanh de manh. Traz a tua garrafa para o chichi. - S isso? S temos que o vigiar? - Para j. - Merda. Quero revistar a casa desse filho da puta. Partir umas coisas. Provavelmente, ele tem as merdas do assalto l em casa. 120 - Se esteve envolvido, duvido que seja assim to estpido. Para j, ficamos na retaguarda. Se ele estiver sujo, logo veremos. - Oh, est sujo pois. No te preocupes. - Veremos. Sharkey estava sentado no muro de cimento na parte da frente do parque de estacionamento no Santa Monica Boulevard. Observava atentamente a entrada iluminada do 7-Eleven do outro lado da rua, analisando quem entrava e quem saa. A maior parte eram turistas e casais. Ainda no havia ningum sozinho. Ningum que servisse. O rapaz chamado Arson aproximou-se e disse: - Isto no vai dar nada, meu. O cabelo de Arson era vermelho e estava moldado com gel numas chamazinhas espetadas. Vestia jeans pretos e uma T-shirt preta e suja. Estava a fumar um Salem. No estava pedrado, mas tinha fome. Sharkey olhou para ele e depois para o stio onde o terceiro rapaz, conhecido por Mojo, estava sentado no cho ao lado das motorizadas. Mojo era mais baixo e mais largo, com o cabelo preto colado cabea e preso num rabicho na nuca. As cicatrizes da acne faziam com que a cara dele tivesse sempre um ar soturno. - Vamos esperar mais uns minutos - disse Sharkey. - Eu quero comer, meu - protestou Arson. - Bem, o que que achas que eu estou a tentar fazer? Todos queremos comer. - Se calhar devamos ir ver como que a Bettijane se est a sair - disse Mojo. - J deve ter feito dinheiro suficiente para ns podermos comer. Sharkey olhou para ele e disse: - Vocs os dois podem ir indo. Eu vou ficar at conseguir. Quero comer. Enquanto dizia isto, observava um Jaguar XJ6 castanho que estava a estacionar no parque da loja de convenincia. - o tipo do cano? - perguntou Arson. - Achas que j o encontraram? Podamos l ir

e revist-lo, ver se havia algum cacau. No sei porque que no tiveste tomates para fazeres isso ontem noite, Shark. - Ei! Vai tu l acima sozinho e revista-o se quiseres - respondeu Sharkey. - Logo vemos quem que tem tomates. No lhes tinha dito que telefonara para o 911 por causa do cadver. Isso ainda lhes seria mais difcil de perdoar do que o medo que tinha tido em entrar dentro do cano. Um homem sozinho saiu do Jaguar. 121 Devia andar pelos trinta e muitos, cabelo cortado escovinha, calas brancas largas e camisa, camisola enrolada volta dos ombros. Sharkey no viu ningum espera no carro. - Hei, olhem para o Jag - disse ele. Os outros dois olharam para a loja. - Desta vez que . Vou-me embora. Sharkey desceu do muro e atravessou o boulevard. Observou o dono do Jaguar atravs das janelas da loja. Tinha um gelado na mo e estava a olhar para o escaparate das revistas. Os olhos a rondar constantemente enquanto observava os outros homens na loja. Sharkey sentiu-se encorajado quando viu o homem dirigir-se para a caixa registadora para pagar o gelado. Agachou-se em frente da loja, a grelha do Jaguar a um metro e pouco de distncia. Quando o homem saiu, Sharkey esperou que os olhos de ambos se cruzassem e que o homem sorrisse antes de falar. - Hei, senhor? - disse ele enquanto se punha em p. - Estava c a pensar se me podia fazer um favor? O homem olhou em redor do parque de estacionamento antes de responder. - Claro. De que que precisas? - Bem, estava a pensar se podia ir l dentro e trazer-me uma cerveja. Eu dou-lhe o dinheiro e isso tudo. S quero uma cerveja. Para descontrair, percebe? O homem hesitou. - No sei... isso seria ilegal, no seria? No tens vinte um anos. Podia meter-me em sarilhos. - Bem -, disse Sharkey com um sorriso -, tem cerveja em casa? Assim j no tinha de a comprar. Dar uma cerveja a uma pessoa no nenhum crime. - Bem... - Eu no ficava muito tempo. Se calhar podamos relaxarmo-nos um bocadinho um ao outro, est a ver? O homem voltou a olhar em volta do parque de estacionamento. No estava ningum a ver. Sharkey pensou que j o tinha agarrado. - Est bem - disse o homem. - Depois, posso voltar a trazer-te para aqui se quiseres. - Claro. Isso era bestial. Seguiram para este na Santa Monica at Flores e depois viraram para sul e percorreram uns dois quarteires at chegar a uma urbanizao. Sharkey nunca olhou em volta ou tentou espreitar para trs pelos espelhos. Eles estavam l atrs. Sabia que estavam. Havia um porto de acesso propriedade de que o homem tinha a chave e que fechou atrs deles. Depois entraram em casa dele. - Chamo-me Jack - disse o homem. - O que que queres que te traga? - Sou o Phil. Tem alguma coisa que se coma? Tambm tenho uma certa fome. Sharkey olhou em volta procura do intercomunicador de segurana e do boto que abria o porto. A maior parte da moblia do apartamento era de cor clara com uma espessa carpete num tom branco sujo. Linda casa. - Obrigado. Deixa-me ver o que que tenho. Se quiseres lavar a roupa, tambm podes faz-lo enquanto c ests. No fao isto muitas vezes, sabes. Mas quando posso ajudar algum, fao por isso. Sharkey seguiu-o at cozinha. A consola da segurana ficava na parede ao lado do telefone. Quando Jack abriu o frigorfico e se dobrou para olhar l para dentro, Sharkey carregou no boto que abria o porto l fora. Jack no reparou. - Tenho atum. E posso fazer uma salada. H quanto tempo que andas na rua? No te vou chamar Phil. Se no me quiseres dizer o teu nome verdadeiro, no faz mal. - Um, atum seria ptimo. No h muito tempo. - Ests limpo?

- Sim, claro. Estou porreiro. - Vamos tomar precaues. Tinha chegado o momento. Sharkey recuou para o hall de entrada. Jack levantou os olhos do frigorfico, uma tigela de plstico na mo, a boca ligeiramente entreaberta. Sharkey julgou ver um olhar de reconhecimento na cara dele, como se ele soubesse o que estava prestes a acontecer. Sharkey deu a volta ao puxador e abriu a porta. Arson e Mojo entraram. - Hei, o que isto? - perguntou Jack embora a voz trasse falta de confiana. Correu para o hall e Arson, que era o maior dos quatro, deu-lhe um murro na cana do nariz. Ouviu-se um estalido como o de um lpis a partir-se e a tigela de atum caiu ao cho. E depois, a carpete de um branco sujo encheu-se de sangue. 122 123 PARTE III Tera-Feira, 22 de Maio Eleanor Wish voltou a telefonar na tera-feira de manh quando Harry Bosch estava a arranjar a gravata ao espelho da casa de banho. Disse que queria encontrar-se com ele numa cafetaria em Westwood antes de o levar para o departamento. Ele j tinha tomado duas chvenas de caf, mas disse que iria l ter. Desligou, apertou o boto do colarinho da camisa branca e apertou a gravata em volta do pescoo. No se conseguia lembrar da ltima vez em que tinha prestado tanta ateno aos pormenores da sua aparncia. Quando l chegou, ela estava num dos reservados ao longo da janela da frente. Tinha as duas mos em redor do copo de gua sua frente e parecia bem disposta. Havia um prato empurrado para o lado com o invlucro de papel de um muffin. Dirigiu-lhe um sorriso delicado quando ele se sentou e chamou a empregada com a mo. - S caf - disse Bosch. - J comeu? - perguntou Eleanor Wish quando a empregada se afastou. - Uh, no. Mas estou bem assim. - Voc no come muito, j percebi. - Disse aquilo mais como uma me do que como uma detective. - Ento, quem que me vai dizer o que se passa? Voc ou o Rourke? - Eu. A empregada pousou uma chvena de caf em cima da mesa. Bosch conseguia ouvir quatro vendedores no reservado ao lado a discutir por causa da conta do pequeno-almoo. Bebeu um golo do caf quente. - Gostaria que o pedido do FBI para eu os ajudar fosse escrito num papel, assinado pelo agente especial snior responsvel pelo departamento de Los Angeles. 125 Ela hesitou uns instantes, pousou o copo e olhou directamente para ele pela primeira vez. Os olhos eram to escuros que no deixavam transparecer nada a seu respeito. Nos cantos, Bosch viu o princpio de uma leve teia de rugas na pele bronzeada. Na linha do queixo, havia uma pequena cicatriz branca em forma de crescente, muito antiga e que mal se via. Perguntou para consigo se a cicatriz e as rugas a preocupavam, como ele estava convencido que preocupariam a maior parte das mulheres. Parecia-lhe ver na cara dela uma leve tristeza, como se um mistrio guardado no interior tivesse conseguido abrir caminho at superfcie. Talvez fosse cansao, pensou ele. Fosse como fosse, era uma mulher atraente. Calculou que deveria andar pelos trinta e poucos anos. - Acho que se pode conseguir isso - disse ela finalmente. - H mais alguma exigncia antes de comearmos a trabalhar? Ele sorriu-lhe e abanou a cabea. - Sabe, Bosch, recebi o seu livro do homicdio ontem e li-o todo esta noite. Por aquilo que voc l tem e para um dia de trabalho, foi uma obra bem feita. Com a maioria dos outros detectives, aquele cadver ainda estaria na bicha de espera na morgue e inscrito como uma provvel OD acidental.

Ele no disse nada. - Por onde que devemos comear hoje? - perguntou ela. - Estou a trabalhar numas coisas que ainda no estavam no livro. Por que que no me conta primeiro tudo sobre o assalto ao banco? Preciso das informaes completas. As nicas coisas que sei so as que vocs deram aos jornais e puseram nos BOLOS. Ponha-me a par e depois eu pego a partir da e conto-lhe o que sei sobre o Meadows. A empregada aproximou-se para ver como estavam a chvena dele e o copo dela. Ento Eleanor Wish contou a histria do assalto ao banco. Bosch lembrou-se de vrias perguntas enquanto ela falava, mas tentou anot-las mentalmente para perguntar depois. Apercebeu-se de que ela se sentia maravilhada com a histria, o planeamento e a execuo do golpe. Fossem eles quem fossem, os construtores do tnel, tinham o respeito dela. Deu por si a sentir-se quase invejoso. - Por baixo das ruas de L. A. - disse ela, - h mais de seiscentos quilmetros de canos de escoamento das guas pluviais que so suficientemente largos e altos para se poder l passar de carro. A seguir a esses ainda temos mais canos secundrios. Mais cento e sessenta quilmetros por onde se pode andar em p, ou pelo menos, rastejar. Isso quer dizer que qualquer pessoa pode descer at l abaixo e, se souber o caminho, aproximar-se de qualquer edifcio da cidade que queira. E no muito difcil descobrir o caminho. Os planos de toda a rede so do conhecimento pblico, esto arquivados em ficheiros no gabinete dos registos do condado. Seja como for, estes tipos utilizaram o sistema de drenagem para entrar no WestLand National. Bosch j tinha calculado isso mesmo, mas no se deu ao trabalho de o dizer. Ela disse que o FBI estava convencido que havia pelo menos trs homens debaixo do cho e um l em cima, para actuar como vigia e outras funes necessrias. O da parte de cima provavelmente comunicava com os outros atravs da rdio, excepto possivelmente j perto do fim por causa do perigo das ondas rdio poderem fazer detonar os explosivos. Os homens nos subterrneos tinham-se deslocado pelo sistema de drenagem em veculos Honda todo-o-terreno. Havia uma entrada para o sistema de esgotos pluviais num leito seco na bacia do Los Angeles River a nordeste da baixa da cidade. Entraram l para dentro, provavelmente sob a proteco da escurido e, seguindo os mapas, deslocaram-se atravs do sistema de tneis at a um ponto por baixo do Wilshire Boulevard, na baixa, a uns nove metros de profundidade e a uns 150 metros para oeste do WestLand National. Era uma viagem de cerca de trs quilmetros e meio. Uma mquina de furar industrial, com uma broca circular de sessenta centmetros de dimetro, provavelmente de ponta de diamante, ligada a um gerador num dos ATVs1, foi utilizada para abrir um buraco na parede de cimento, com quinze centmetros de espessura, do tnel de escoamento de guas. A partir dali, os homens no subterrneo comearam a escavar. - A entrada no cofre forte ocorreu no fim-de-semana do Dia do Trabalhador - disse Eleanor Wish. - Pensamos que eles devem ter comeado a fazer o tnel trs ou quatro semanas antes. S deviam trabalhar noite. Entrar, escavar um bocado e sair ao amanhecer. O DWP tem inspectores que passam revista, rotineiramente, ao sistema procura de rachas e outros problemas. Trabalham de dia, por isso, os criminosos provavelmente no se arriscaram. - E o buraco que abriram de lado? Os tipos da gua e da electricidade no dariam por isso? - perguntou Bosch, sentindo-se imediatamente
(AU-terrain Vehicle) Veculo de todo-o-terreno. (N. T.)

126 127 aborrecido consigo mesmo por ter feito uma pergunta antes de ela ter acabado. - No - respondeu ela. - Estes tipos pensaram em tudo. Tinham um bocado de contraplacado cortado num crculo de sessenta centmetros de dimetro. Cobriramno de cimento - encontrmo-lo l depois. Pensamos que quando saam de manh, tapavam o buraco com isto e punham mais cimento em volta das bordas que calcavam cuidadosamente. Ia parecer que era um cano de drenagem das chuvas que tinha sido aberto e fechado. Isso uma coisa muito comum l em baixo. Estive

l. Vemos destes canos abertos por todo o lado. Os sessenta centmetros so a medida padro. Por isso, isto teria parecido normal. No dava nas vistas e os criminosos limitavam-se a voltar na noite seguinte, entravam e cavavam mais um bocadinho em direco ao banco. Ela disse que o tnel tinha sido escavado principalmente com ferramentas manuais ps, picaretas, brocas alimentadas pelo gerador no ATV. Provavelmente, os homens utilizavam lanternas, mas tambm tinham utilizado velas. Algumas ainda estavam acesas no tnel depois do roubo ter sido descoberto. Estavam apoiadas em pequenos entalhes feitos nas paredes. - Isso faz-lhe lembrar alguma coisa? - perguntou Eleanor Wish. Ele assentiu com a cabea. - Calculmos que eles avanavam de trs a seis metros por noite - continuou ela. Encontrmos dois carrinhos de mo no tnel. Tinham sido divididos ao meio e desmontados para caberem pelo buraco de sessenta centmetros e depois tinham sido montados outra vez para poderem ser usados durante a escavao. Um ou dois deles deviam ter como funo fazer corridas para fora do tnel e despejar a terra e o lixo da escavao para a linha de drenagem principal. H uma corrente de gua regular no cho do cano que teria acabado por arrastar a terra para a corrente do rio. Calculamos que, em certas noites, o parceiro no exterior deve ter aberto as bocas de incndio na Hill para conseguirem que a gua corresse l em baixo. - Quer dizer que tinham gua l em baixo mesmo durante uma seca. - Mesmo durante uma seca... Eleanor Wish disse que quando os ladres chegaram finalmente por baixo do banco, tinham utilizado os sistemas elctricos e as linhas telefnicas do prprio banco. Com a baixa transformada numa cidade fantasma aos fins-de-semana, a sucursal do banco estava fechada aos sbados. 128 Por isso, na sexta-feira, depois das horas de expediente, os ladres tinham desligado os alarmes. Um deles tinha de ser o homem das campainhas. No o Meadows, este devia ser o homem dos explosivos. - O engraado que eles no precisavam de um homem das campainhas continuou ela. - O alarme de sensor da caixa-forte tinha passado toda a semana a disparar. Estes tipos, com as escavaes e brocas deviam ter estado a accionar os alarmes. Durante quatro noites seguidas, a polcia e o gerente foram chamados l. Chegou a acontecer, trs vezes na mesma noite. No encontraram nada e comearam a pensar que o problema devia estar no alarme. O sensor de movimento e som estava desequilibrado. Por isso, o gerente chama a companhia do alarme e eles no podem mandar l ningum antes do final do fim-de-semana, sabe, Dia do Trabalhador. Por isso, este tipo, o gerente... - Desliga o alarme - acabou Bosch por ela. - Exactamente. Ele resolve que no vai passar todas as noites do fim-de-semana prolongado a ser chamado ao banco. Tinha tudo combinado para ir para Springs, para o seu condomnio timeshare, jogar golfe. Desliga os alarmes. Claro que j no trabalha para o WestLand National. Por baixo da caixa forte, os bandidos usaram uma broca industrial arrefecida a gua, que estava presa, virada para baixo, parte de baixo da placa da caixa-forte, para abrir um buraco de cinco centmetros e meio atravs do metro e meio de cimento e ao. Os analistas da cena do crime do FBI calcularam que tinham levado cinco horas e s se a broca no tivesse aquecido demasiado. A gua para a arrefecer vinha de uma torneira de uma conduta de gua subterrnea. Utilizaram a gua do banco. - Depois de terem aberto o buraco, encheram-no de C-4 - disse ela. - Estenderam o fio pelo tnel que tinham aberto at ao tnel de drenagem. E foi da que o fizeram explodir. Eleanor disse que os registos das respostas de emergncia do Departamento da Polcia de Los Angeles mostravam que s 9 e 14 dessa manh de sbado, os alarmes tinham soado num banco do outro lado da rua, em frente do WestLand National e numa joalharia a meio quarteiro de distncia. - Calculamos que tenha sido a hora da detonao - disse Eleanor Wish. - Mandaram uma patrulha que revistou tudo, no descobriu nada, concluiu que os alarmes

deviam ter sido activados por um tremor de terra e foi-se embora. Ningum se deu ao trabalho de verificar o WestLand National. Os alarmes dele no tinham soltado nem um pio. No sabiam que tinham sido desligados. 129 - Uma vez dentro da caixa-forte, - continuou ela - eles no se foram embora. Trabalharam durante todos os trs dias do fim-de-semana, perfurando as fechaduras dos cofres, abrindo as gavetas e esvaziando-as. - Encontrmos latas vazias de comida, pacotes vazios de batatas fritas, embalagens de comida congelada, est a ver, mantimentos de sobrevivncia - contou Eleanor Wish. - D a ideia que eles ficaram l, dormiram por turnos, talvez. No tnel havia uma parte mais larga que parecia uma diviso pequena. Parecia uma diviso para dormir, achei eu. Encontrmos o padro de um saco-cama impresso na terra do cho. Tambm encontrmos na areia as marcas feitas pelas coronhas das M-l6s traziam com eles armas automticas. No estavam a pensar renderem-se se as coisas dessem para o torto. Deixou-o pensar naquilo durante uns momentos e depois continuou: - Calculamos que estiveram na caixa-forte umas sessenta horas, talvez mesmo um bocadinho mais. Abriram quatrocentos e sessenta e quatro cofres. De setecentos e cinquenta. Se eram trs, isso d cerca de cento e cinquenta e cinco cofres para cada um. Subtraindo cerca de quinze horas para descansarem e comerem durante os trs dias que l estiveram, temos cada homem a furar trs, quatro cofres por hora. - Deviam ter um limite de tempo - disse ela. - Talvez as trs horas ou qualquer coisa parecida. Tera-feira de manh. Se desistiram de furar nessa altura, deu-lhes tempo suficiente para arrumarem tudo e sarem. Agarraram no saque e nas ferramentas e puseram-se a andar. O gerente do banco, com um recente bronzeado de Palm Springs, descobriu o assalto quando abriu a caixa-forte para mais um dia de actividade. Tera-feira de manh. - E tudo - concluiu ela. - A melhor coisa que j vi ou ouvi falar desde que estou nesta profisso. Muito poucos erros. Descobrimos muita coisa sobre a maneira como o fizeram, mas muito pouco sobre quem o fez. O Meadows foi o mais perto que conseguimos chegar e agora est morto. Aquela fotografia que voc me mostrou ontem. - Da pulseira? - Voc tinha razo, a primeira coisa que apareceu desses cofres, que a gente saiba. - Mas agora desapareceu. Bosch ficou espera que ela dissesse alguma coisa, mas ela no disse. - Como que escolheram as caixas que brocaram? - perguntou ele. - Parece que foi ao acaso. Tenho um vdeo no gabinete para lhe mostrar. Mas d a ideia que disseram: tu ficas com aquela parede, tu ficas com aquela e assim por diante. Algumas das caixas ao lado das 130 que foram arrombadas no foram tocadas. Porqu? No sei. No parece ter havido um padro. No entanto, recebemos a informao de que noventa por cento das caixas que eles abriram tinham coisas l dentro. A maior parte so coisas de que no podemos seguir a pista. Eles escolheram bem. - Como que concluram que eram trs? - Calculmos que seriam precisos pelo menos esses para arrombarem tantos cofres utilizando uma broca. Alm disso, era o nmero de ATVs que havia. Ela sorriu e ele mordeu o isco. - OK, como que sabem isso dos ATVs? - Bem, havia marcas na lama do cano de drenagem e identificmo-los pelos pneus. Tambm encontrmos tinta, tinta azul, na parede de uma das curvas do tubo de drenagem. Um deles tinha derrapado e batido na parede. O laboratrio que analisou a tinta em Quntico descobriu o ano, o modelo e a marca. Corremos todos os vendedores de Hondas do Sul da Califrnia e descobrimos uma venda de trs ATVs num stand em Tustin, quatro semanas antes do Dia do Trabalhador. O tipo pagou em dinheiro e carregou-os num atrelado. Deu um nome e uma morada falsos.

- Quais? - O nome Frederic B. Isley. Ia aparecer outra vez. Mostrmos ao vendedor algumas fotografias, incluindo a de Meadows, a sua e as de outras pessoas, mas ele no conseguiu identificar ningum como sendo o Isley. Limpou a boca com o guardanapo e largou-o em cima da mesa. Ele no conseguiu ver baton nenhum nele. - Bem - disse ela. - J bebi gua para uma semana. V ter comigo ao departamento e vamos rever tudo o que ns temos e o que voc tem sobre essa coisa do Meadows. O Rourke e eu achamos que a melhor maneira de comearmos. Esgotmos todas as pistas do assalto ao banco, temos andado a bater com a cabea nas paredes. Talvez o caso Meadows nos d a oportunidade de que precisamos. Eleanor Wish pagou a conta, Bosch deu a gorjeta. Foram nos respectivos carros para o Federal Building. Enquanto guiava, Bosch pensou nela e no no caso. Queria perguntar-lhe como tinha arranjado a cicatrizinha no queixo e no como que ela tinha relacionado os sapadores do tnel do WestLand com os ratos dos tneis do Vietname. Queria saber o que que lhe tinha dado aquela expresso doce 131 e triste ao rosto. Seguiu o carro dela atravs de um bairro de apartamentos para estudantes ao p da UCLA e depois pelo Wishire Boulevard. Encontraram-se no elevador na garagem do Federal Building. - Acho que o melhor que voc trate principalmente comigo - disse ela enquanto subiam sozinhos no elevador. - O Rourke... voc e o Rourke no comearam bem e... - Nem sequer comemos - disse Bosch. - Bem, se lhe der uma oportunidade, ver que ele bom homem. Fez aquilo que pensou ser o melhor para o caso. As portas do elevador abriram-se no dcimo stimo andar e ali estava Rourke. - Ora, aqui esto vocs os dois - disse ele. Estendeu a mo a Bosch que a apertou sem muita convico. Rourke apresentou-se. - Ia agora mesmo descer para tomar um caf e comer um pozinho - disse ele. Querem fazer-me companhia? - Oh, John, viemos agora mesmo de uma cafetaria - disse Eleanor Wish. Encontramo-nos contigo aqui. Bosch e Eleanor Wish estavam agora fora do elevador e Rourke estava l dentro. O agente especial limitou-se a concordar com um aceno de cabea e as portas fecharam-se. Bosch e Eleanor Wish dirigiram-se para o gabinete. - De certa forma, ele um bocado parecido consigo... esteve na guerra e isso tudo disse ela. D-lhe uma chance. Voc no vai tornar as coisas mais fceis se no descongelar um bocadinho. Ele deixou passar aquilo. Desceram o corredor para a sala do Grupo 3 e Eleanor Wish apontou para uma secretria atrs da dela. Disse que estava vazia uma vez que o agente que a ocupava tinha sido transferido para o Grupo 2, a diviso da pornografia. Bosch pousou a pasta em cima da secretria e sentou-se. Olhou em volta da sala. Tinha muito mais gente do que no dia anterior. Cerca de meia dzia de agentes estavam sentados s secretrias e trs outros estavam de p ao fundo da sala junto de um armrio de ficheiros onde estava uma caixa de donuts. Reparou que havia uma televiso e um VCR numa prateleira ao fundo da sala. No estava l no dia anterior. - Voc disse qualquer coisa acerca de um vdeo - disse ele a Eleanor Wish. - Oh, sim. Vou preparar tudo e voc pode ver enquanto eu respondo a uns telefonemas. Tirou uma cassete vdeo de uma gaveta da secretria e dirigiram-se ambos para o fundo da sala. O grupo dos trs afastaram-se silenciosamente com os seus donuts, alarmados com a presena de um estranho. Ela enfiou a cassete e deixou-o a ver sozinho. O vdeo, obviamente gravado com uma cmara porttil, era uma viagem aos solavancos e nada profissional pelo rasto dos ladres. Comeava por aquilo que Bosch deduziu ser o esgoto de drenagem pluvial, um tnel quadrado que se

afastava numa curva para uma escurido que o foco da cmara no conseguia alcanar. Eleanor Wish tinha razo, era enorme. Um camio podia passar por ali. Uma pequena corrente de gua movia-se vagarosamente pelo centro do cho de cimento. Havia limo e algas no cho e nas partes inferiores das paredes e Bosch quase conseguiu cheirar a humidade. A cmara incidiu no cho verde-acinzentado. Havia rastos de pneus no limo. A cena seguinte era a entrada para o tnel dos ladres, um buraco ntido aberto na parede do esgoto. Um par de mos entraram na imagem segurando o crculo de contraplacado que Eleanor Wish dissera que tinha sido usado para tapar o buraco durante o dia. As mos avanaram mais para dentro da imagem e depois apareceu uma cabea de cabelos escuros. Era Rourke. Vestia um fato macaco escuro com letras brancas nas costas. FBI. Levantou o contraplacado e encostou-o ao buraco. Encaixava perfeitamente. O vdeo deu um salto e a cena agora era o interior do tnel dos ladres. Bosch sentiu-se esquisito ao ver aquilo que lhe trazia recordaes dos tneis escavados mo por onde tinha andado a rastejar no Vietname. Uma luz surreal tremeluzia das velas colocadas de seis em seis metros em nichos escavados na parede. Depois de se curvar durante uns dezoito metros, segundo os seus clculos, o tnel virava abruptamente para a esquerda. Depois seguia praticamente a direito durante uns trinta metros, com as velas ainda a tremeluzir nas paredes. Por fim, a cmara chegou a um beco sem sada onde havia uma pilha de entulho, bocados de barras e placas de ao torcidas. A cmara subiu at a um buraco enorme no tecto do tnel. A luz jorrava da caixa-forte por cima. Rourke estava l em p, com o seu fato macaco, a olhar para baixo, na direco da cmara. Passou um dedo pela garganta e a imagem foi outra vez cortada. Desta vez, a cmara estava dentro da caixa-forte, um plano da sala toda. Tal como na fotografia do jornal que Bosch vira, havia centenas de portas de cofres abertas. Havia caixas vazias empilhadas no cho. Dois tcnicos da cena do crime estavam procura de impresses digitais nas portas. Eleanor Wish e outro agente olhavam para cima, para a 132 parede de ao das portas dos cofres e tiravam notas. A cmara desceu para o cho e para o buraco para o tnel em baixo. A seguir, a fita ficou preta. Rebobinou-a, tirou-a e colocou-a em cima da mesa dela. - Interessante - disse ele. - Vi algumas coisas que j tinha visto. Nos tneis de l. Mas nada que me tivesse feito comear a procurar ratos dos tneis em especial. Qual foi a pista para o Meadows, para as pessoas como eu? - Primeiro que tudo, havia o C-4 - respondeu ela. - A Diviso do lcool, Tabaco e Armas de Fogo mandaram uma equipa inspeccionar o cimento e o ao do buraco. Havia vestgios do explosivo. Os tipos da ATF fizeram uns testes e descobriram o C4. Tenho a certeza que conhece. Foi usado no Vietname. Os ratos dos tneis usavam-no para fazer implodir os tneis. A questo que agora se pode arranjar coisas muito melhores, com mais rea de impacto comprimido, mais fceis de manusear e de detonar. At mais barato. Tambm menos perigoso de manusear e mais fcil de obter. Por isso, deduzimos quer dizer, o tipo do laboratrio ATF deduziu que a razo do C4 ter sido utilizado foi a do manuseador se sentir mais vontade com ele, por j o ter utilizado antes. Da, conclumos que deveria ser um veterano do Vietname. Outro corolrio para o Vietname foram as armadilhas. Pensamos que antes de subirem para a caixa-forte para comearem a arrombar os cofres, armadilharam o tnel para protegerem a retaguarda. Mandmos um co ATF por precauo, est a ver, para termos a certeza que no havia mais C-4 por ali. O animal obteve uma leitura indicadora de explosivos em dois stios do tnel. A meio e entrada aberta na parede do tnel de drenagem. Mas j no havia l nada. Os ladres tinham levado tudo com eles. Mas descobrimos buracos de estacas no cho do tnel e bocadinhos de fio nos dois stios como aquelas coisinhas que ficam quando se est a cortar metros de fio com um alicate. - Arames de disparo - disse Bosch. - Exactamente. Pensamos que eles armadilharam o tnel para evitarem intrusos. Se tivesse aparecido algum por trs deles, o tnel teria ido ao ar. Teriam ficado soterrados debaixo da Hill Street. Pelo menos, os construtores do tnel levaram com eles os explosivos quando se foram embora. Evitaram que tropessemos

neles. - Mas, provavelmente, uma exploso dessas teria rebentado com os ladres e com os intrusos - comentou Bosch. - Ns sabemos. Estes tipos no estavam dispostos a correr riscos. Estavam fortemente armados, fortificados e prontos para morrer. Vitria ou suicdio... Bem, seja como for, ns no nos lembrmos do possvel envolvimento dos ratos do tnel at algum ter apanhado qualquer coisa quando amos a seguir os rastos dos pneus no esgoto principal. Os rastos estavam aqui e ali, no eram contnuos. Por isso, levmos uns dois dias a completar o traado desde o tnel at entrada junto do rio. No era a direito. Aquilo l em baixo um labirinto. Tinha que se conhecer o caminho. Calculmos que os tipos no estavam sentados nos ATVs com uma lanterna e um mapa todas as noites. - O Hans e a Gretel? Deixaram migalhas ao longo do caminho? - Mais ou menos. As paredes l em baixo tm uma data de tinta. Est a ver, marcas DWP, para saberem onde que esto, que cano vai dar aonde, datas de inspeco, etc. Em algumas, a tinta tanta que parecem a parede lateral de um 7-Eleven num barrio1 de L.A. oriental. Por isso, calculmos que os criminosos tinham marcado o caminho. Percorremos todo o caminho procura de marcas recorrentes. S havia uma. Uma espcie de smbolo da paz sem o crculo. Apenas trs traos rpidos. Ele conhecia a marca. Tinha-a usado nos tneis vinte anos antes. Trs cortes rpidos na parede de um tnel feitos com uma faca. Era o smbolo que eles tinham usado para marcarem o caminho, para poderem voltar a encontrar o caminho de sada. Eleanor Wish continuou: - Um dos polcias que l estava nesse dia - isto foi antes do Departamento da Polcia de Los Angeles nos ter entregado o caso - um dos tipos dos assaltos disse que o reconhecia do Vietname. Ele no era um rato do tnel. Mas falou-nos deles. Foi assim que fizemos a ligao. A partir da, fomos ao Departamento da Defesa e VA e conseguimos os nomes. Conseguimos o do Meadows. O seu. Outros. - Quantos dos outros? Ela empurrou uma pilha com uns dez centmetros de espessura de ficheiros, que estava em cima da secretria, na direco dele. - Esto todos aqui. Se quiser, pode ver. - Rourke chegou naquele instante. - A agente Wish j me falou da carta que voc pediu - disse ele. - No vejo nenhum problema. Vou escrever qualquer coisa e vamos tentar que o Agente Especial Snior Whitcomb a assine ainda hoje. Como Bosch no disse nada, Rourke continuou.
Em espanhol, no original. (N. T.)

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- Podemos ter reagido de forma exagerada ontem, mas espero ter conseguido esclarecer tudo com o vosso tenente e a vossa gente dos Assuntos Internos. Esboou um sorriso que teria feito inveja a um poltico. - A propsito, queria dizerlhe que admiro o seu registo. O seu registo militar. Quanto a mim, tambm l estive, trs vezes. Mas nunca entrei nesses tenebrosos tneis. Mas estive l, at ao fim. Uma pena. - Qual pena? Que tivesse acabado? Rourke olhou para ele durante um longo momento e Bosch viu a vermelhido espalhar-se-lhe pela cara desde o ponto em que as sobrancelhas escuras se encontravam. Rourke era um homem muito plido com uma cara encovada que dava a ideia de que ele estava a chupar qualquer coisa amarga. Era alguns anos, no muitos, mais velho do que Bosch. Eram da mesma altura, mas Rourke tinha mais peso. Ao tradicional uniforme do FBI, blazer azul escuro e camisa azul clara, ele tinha acrescentado uma gravata vermelho vivo. - Olhe, detective, no obrigado a gostar de mim, tudo bem - disse Rourke. - Mas, por favor, trabalhe comigo nisto. Ambos queremos a mesma coisa. Bosch resolveu ceder para ver o que iria dar. - O que que querem que eu faa? Expliquem-me exactamente o qu. Vou andar vossa boleia ou querem mesmo que eu trabalhe?

- Bosch, voc considerado um detective de primeira. Mostre-nos isso. Limite-se a continuar com o seu caso. Como nos disse ontem, voc descobre quem matou o Meadows e ns descobrimos quem assaltou o WestLand National. Por isso, sim, ns queremos o seu melhor. Proceda como faria normalmente, mas com a Agente Especial Wish como sua parceira. Rourke afastou-se, saindo da sala. Bosch calculou que ele deveria ter o seu prprio gabinete algures no sossego do corredor. Bosch voltou-se para a secretria de Eleanor Wish e agarrou no monte dos ficheiros. - OK, vamos l ento a isto - disse-lhe. Eleanor Wish requisitou um carro do departamento e conduziu enquanto Bosch analisava a pilha de relatrios militares que tinha no colo. Reparou que o seu era o primeiro. Deu uma olhadela pelos outros, mas s reconheceu o nome de Meadows. - Para onde? - perguntou Eleanor Wish quando saiu da garagem e entrou na Veteran Avenue para apanhar a Wilshire. - Hollywood - respondeu-lhe ele. - O Rourke sempre assim to formal ? Ela virou para leste e sorriu com um daqueles seus sorrisos que fazia Bosch interrogar-se se haveria alguma coisa entre ela e Rourke. - Quando quer - respondeu ela. - Mas um bom administrador. Dirige bem a equipa. Teve sempre o tipo de chefe, acho eu. Penso que ele disse que esteve a comandar uma unidade ou qualquer coisa dessas quando esteve na tropa. L em Saigo. Era impossvel que houvesse qualquer coisa entre os dois, pensou ele. Uma pessoa no defende o amante dizendo que ele um bom administrador. No havia nada entre eles. - Est no ramo errado para ser administrador - disse Bosch. - Suba o Hollywood Boulevard, a zona a sul do teatro chins. Iam levar quinze minutos a chegar l. Abriu o registo no cimo de todos - era o dele e comeou a dar uma vista de olhos pela papelada. No meio de uns relatrios psiquitricos de avaliao, descobriu uma fotografia a preto e branco, quase igual a uma fotografia tirada pela polcia, de um jovem fardado, a cara sem marcas da idade ou da experincia. - Ficava bem de cabelo escovinha - disse Eleanor Wish interrompendo-lhe os pensamentos. - Lembrou-me o meu irmo, quando vi essa fotografia pela primeira vez. Bosch olhou para ela, mas no disse nada. Arrumou a fotografia e voltou a passar os olhos pelo dossier, lendo bocados de informao sobre um estranho que era ele prprio. Eleanor Wish disse: - Conseguimos encontrar nove homens com experincia dos tneis do Vietname que viviam no Sul da Califrnia. Investigmo-los todos. Meadows foi o nico que elevmos categoria de suspeito. Era um drogado, tinha registo criminal. Tambm tinha uma histria de trabalhar em tneis mesmo depois de ter voltado da guerra. Conduziu em silncio durante alguns minutos enquanto Bosch lia. Depois disse: - Vigimo-lo durante um ms inteiro. Depois do assalto. - O que que ele andava a fazer? - Nada que pudssemos ver. Era capaz de andar a traficar droga. Nunca tivemos a certeza. Ia at Venice comprar herona de trs em trs dias. Mas parecia que era apenas para consumo pessoal. Se andava a vender, nunca apareceram clientes. Nunca teve visitas durante todo o ms em que o andmos a vigiar. Raios, se tivssemos conseguido provar que ele andava a traficar, podamos ter-lhe deitado a mo e depois j tnhamos qualquer coisa decente com que o pressionar quando lhe falssemos do assalto ao banco. Voltou a calar-se durante alguns momentos e depois, num tom que Bosch achou que era mais para se convencer a ela prpria do que a ele, acrescentou: - No andava a vender. - Acredito em si - disse-lhe ele. - Vai dizer-me o que que vamos procurar em Hollywood? - Vamos procurar uma testemunha. Uma possvel testemunha. Como que o Meadows vivia durante o ms em que o vigiaram? Quero dizer, em relao a dinheiro. Como que ele arranjava dinheiro para ir a Venice? - Tanto quanto percebemos, vivia da segurana social e recebia um cheque de

incapacidade da VA. Mais nada. - Por que que desistiram ao fim de um ms? - No tnhamos nada, e nem sequer tnhamos a certeza que ele tivesse alguma coisa a ver com o caso. Ns... - Quem que mandou parar? - Foi o Rourke. Ele no podia... - O administrador. - Deixe-me acabar. Ele no podia justificar o custo de uma vigilncia continuada sem quaisquer resultados. Estvamos a actuar baseados num palpite, nada mais. Voc est a olhar para o assunto retrospectivamente. Mas j tinham passado quase dois meses aps o assalto. No havia nada ali que apontasse para ele. Na realidade, passado algum tempo, camos na rotina. Pensmos que, fossem eles quem fossem, j deviam estar no Mnaco ou na Argentina. E no a comprar herona de segunda categoria na praia de Venice e a viver num apartamento manhoso no Valley. Naquela altura, o Meadows no fazia sentido. O Rourke cancelou a vigilncia. Mas eu concordei. Acho que agora sabemos que metemos gua. Satisfeito? Bosch no respondeu. Sabia que Rourke tivera razo em parar com a vigilncia. No h stio nenhum em que a viso retrospectiva funcione melhor do que na actividade policial. Mudou de assunto. - Porqu aquele banco? Alguma vez pensaram isso? Porqu o WestLand National? Porque no o Wells Fargo ou uma caixa-forte em Beverly Hills? De qualquer das maneiras provvel que haja mais dinheiro nos bancos de Beverly Hills. Voc disse que estes tneis subterrneos vo ter a todo o lado. - E vo. No sei responder a isso. Talvez eles tenham escolhido um banco da baixa porque queriam trs dias completos para abrir os cofres e sabiam que os bancos da baixa no abrem aos sbados. Se calhar, s o Meadows e os amigos que sabem a resposta. De que que andamos procura neste bairro? No havia nada no seu relatrio sobre uma possvel testemunha. Testemunha de qu? Tinham chegado ao bairro. A rua estava ladeada de motis em runas que j tinham aquele ar deprimente no dia em que acabaram de ser construdos. Bosch apontou para um deles, o Blue Chateau, e disse-lhe para estacionar. Era to deprimente como todos os outros dessa rua. Cimento, design dos princpios dos anos cinquenta. Pintado de azul-claro com uma faixa de um azul mais claro que j estava a descascar. Era um edifcio de dois andares, com um ptio no meio e toalhas e roupas penduradas em quase todas as janelas abertas. Era um stio onde o interior rivalizaria com o exterior na sua desolao, sabia Bosch. Onde os fugitivos se amontoavam, oito ou dez num quarto, os mais fortes a conseguirem a cama e os outros a dormirem no cho ou dentro da banheira. Havia stios como este em muitos dos quarteires ao p do Boulevard. Sempre tinha havido e sempre haveria. Ainda sentados no carro do departamento a olhar para o motel, Bosch contou-lhe a histria do rabisco de tinta por acabar que tinha encontrado no cano do reservatrio de gua e do telefonema annimo para o 911. Disse-lhe que estava convencido que a voz condizia com a tinta. Edward Niese, alcunha, Sharkey. - Estes midos, estes fugitivos, formam umas cliques de rua - disse Bosch enquanto saa do carro. - No so exactamente bandos. No uma questo de territrio. para proteco e negcio. Segundo os ficheiros do CRASH, a malta do Sharkey tem andado a vadiar por aqui, no Chateau, nestes dois ltimos meses. Quando Bosch fechou a porta do carro, reparou num carro que encostava ao passeio a meio quarteiro mais acima da rua. Deitou-lhe uma olhadela rpida, mas no reconheceu o carro. Julgou que conseguia distinguir duas pessoas l dentro, mas estava demasiado longe para ter a certeza ou para dizer se eram Lewis e Clarke. Subiu um caminho de lajes at ao trio de entrada por baixo de um letreiro de non partido que indicava o escritrio do motel. No escritrio, Bosch viu um velho sentado por trs de uma janela de vidro com um tabuleiro giratrio na base. O homem estava a ler as notcias locais de Santa Anita. No levantou os olhos at Bosch e Eleanor Wish estarem junto da janela. 138 139 - Sim, senhores agentes, em que que lhes posso ser til? Era um velho gasto cujos olhos tinham desistido de se preocupar com tudo o que

fosse. Sabia reconhecer os polcias ainda antes de eles mostrarem os distintivos. E sabia que o melhor era dar-lhes o que eles queriam sem fazer grandes ondas. - Um mido chamado Sharkey - disse Bosch. - Qual o quarto? - Sete, mas ele j se foi embora. Acho. A mota dele costuma estar ali na entrada quando ele anda por aqui. No est l mota nenhuma. Foi-se. Muito provavelmente. - Muito provavelmente. H mais algum no sete? - Claro. H sempre algum. - Primeiro andar? - Sim. - Porta traseira ou janela? - As duas coisas. Porta deslizante nas traseiras. Muito cara para se substituir. O velho esticou a mo para o chaveiro e tirou uma chave de um gancho marcado 7. P-la no tabuleiro por baixo da janela, entre ele e Bosch. O detective Pierce Lewis descobriu um recibo de uma caixa automtica na carteira e usou-o para palitar os dentes. A boca tinha um sabor qualquer como se ainda tivesse um bocado das salsichas do pequeno--almoo metido em qualquer stio. Passou o papel por entre os dentes, um a um, at os sentir completamente limpos. Deu um estalido de desagrado com a boca. - O que ? - perguntou o detective Don Clarke. Conhecia as nuances comportamentais do companheiro. Limpar os dentes e fazer estalar os lbios queria dizer que havia qualquer coisa a aborrec-lo. - Acho que ele nos topou, mais nada - disse Lewis depois de ter atirado o papel para a rua pela janela do carro. - Aquela olhadelazinha que ele deitou para o fundo da rua quando saiu do carro. Foi muito rpido, mas acho que nos topou. - No topou nada. Se tivesse topado tinha vindo disparado at aqui para armar uma zaragata ou qualquer coisa dessas. isso que eles fazem. Armam uma data de barulho, apresentam queixa. J nos tinha atirado com a Liga de Proteco da Polcia aos calcanhares. Estou-te a dizer, os chuis so os ltimos a aperceberem-se que esto a ser seguidos. - Bem... talvez - respondeu Lewis. Deixou as coisas ficarem assim para j. Mas continuou preocupado. No queria lixar esta misso. J tinha tido Bosch agarrado pelos tomates uma vez e o tipo tinha-se escapado porque Irving, aquele desbocado, tinha mandado que Lewis e Clarke se retirassem. Mas desta vez no ia ser assim, prometeu Lewis a si prprio. Desta vez, ele vai ao fundo. - Ests a tomar notas? - perguntou ao colega. - O que que achas que eles esto a fazer naquele pardieiro? - A procura de qualquer coisa. - Ests a gozar comigo. Achas mesmo? - Chia, acordaste com os ps de fora hoje? Lewis desviou os olhos do Chateau para Clarke, que tinha as mos cruzadas no colo e o assento inclinado para trs num ngulo de sessenta graus. Com os culos espelhados a taparem-lhe os olhos, era impossvel saber se estava acordado ou no. - Ests a tirar notas ou qu? - perguntou Lewis em voz alta. - Se queres notas, por que que no as tiras tu? - Porque estou a guiar. A combinao foi sempre essa. Tu no queres guiar, por isso escreves e tiras as fotografias. V, escreve qualquer coisa para podermos mostrar trabalho ao Irving. Caso contrrio ele escreve um um oitenta e um sobre ns e esquece o Bosch. - Diz-se um ponto oitenta e um. No vamos comear com atalhos, nem mesmo com a nossa linguagem. - Vai-te foder! Clarke soltou um risinho trocista e tirou um bloco de notas do bolso de dentro do casaco e uma caneta Cross de ouro do bolso da camisa. Quando Lewis se certificou de que estavam a ser tiradas notas e voltou a olhar para o motel, viu um adolescente com rastas louras passar duas vezes pela rua numa mota amarela. O rapaz parou ao lado do carro de onde Lewis tinha acabado de ver Bosch e a mulher do FBI sarem. O rapaz fez uma pala com a mo por cima dos olhos e espreitou para

dentro do carro pela janela do lado do condutor. - O que isto? - perguntou Lewis. - Um fedelho qualquer - respondeu Clarke levantando os olhos dos apontamentos. Anda procura de um rdio para fanar. Se ele avanar, o que que fazemos? Damos cabo da vigilncia para salvar a porcaria de um gravador do idiota? - No vamos fazer nada. E ele no vai avanar. V o rdio Motorola. Sabe que um carro da polcia. J se est a afastar. 140
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O rapaz acelerou a mota e deu mais duas voltas completas no meio da rua. Enquanto a mota girava, manteve os olhos fixos na porta de entrada do motel. Depois atravessou lentamente o parque de estacionamento e recuou outra vez para a rua. Parou atrs de um velho autocarro Volkswagen que estava estacionado no passeio e o escondia do motel. Parecia estar a observar a entrada do Chateau pelas janelas do velho auto-carro. No reparou nos dois homens do Departamento dos Assuntos Internos no carro estacionado atrs dele, a meio quarteiro de distncia. - V l, mido, pe-te a andar - disse Clarice. - No quero ver-me obrigado a chamar a patrulha por tua causa. O filho da puta do delinquente! - Pega na Nikon e tira-lhe uma fotografia - disse Lewis. - Nunca se sabe. Pode acontecer qualquer coisa e iremos precisar dela. E j agora, quando estiveres a fazer isso, tira o nmero do letreiro do motel. Vamos ter de telefonar para c depois para saber o que que o Bosch e a rapariga do FBI estiveram a fazer. Lewis podia ter agarrado com toda a facilidade na mquina fotogrfica que estava no assento e tirado as fotografias, mas isso seria abrir um precedente perigoso que podia prejudicar o equilbrio delicado das regras da vigilncia. O condutor guia. O pendura escreve e faz todo o outro trabalho relacionado com isso. Clarke agarrou obedientemente na mquina fotogrfica, que estava equipada com zoom, e tirou fotografias ao rapaz da mota. - Tira uma com a matrcula da mota - disse Lewis. - Eu sei o que que estou a fazer - respondeu Clarke, pousando a mquina. - Apanhaste o nmero do motel? Vamos ter de telefonar. - Apanhei. Estou a apont-lo. Ests a ver? Qual o problema? Provavelmente, o Bosch est a comer a gaja. Uma bela gaja federal. Se calhar, quando telefonarmos, descobrimos que eles alugaram um quarto. Lewis olhou para ter a certeza que Clarke escrevia o nmero no registo da vigilncia. - E talvez no - disse ele. - Acabaram de se conhecer. E, de qualquer das maneiras, ele no assim to estpido. Tm de l estar procura de algum. Uma testemunha. - Mas no havia nada a respeito de uma testemunha no livro do assassnio. - Ele guardou-a para si. O Bosch mesmo assim. assim que ele trabalha. Clarke no disse nada. Lewis voltou a olhar para o Chateau. Foi ento que reparou que o rapaz tinha desaparecido. No havia sinal da motorizada. Bosch esperou um minuto para dar tempo a que Eleanor Wish chegasse s traseiras do Chateau para observar a porta deslizante do quarto nmero 7. Inclinou-se, encostou a orelha porta e julgou ouvir uns sussurros e uma ou outra palavra murmurada. Havia algum no quarto. Quando chegou a altura, bateu com fora porta. Ouviu o barulho de movimento do outro lado da porta, passos rpidos na carpete mas ningum respondeu. Voltou a bater, esperou e depois ouviu a voz de uma rapariga. - Quem ? - Polcia - respondeu Bosch. - Queremos falar com o Sharkey. - No est c. - Ento acho que vamos falar consigo. - No sei onde que ele est. - Abra a porta, se faz favor. Ouviu mais barulho, como se algum andasse aos encontres moblia. Mas ningum abriu a porta. Depois ouviu qualquer coisa a rolar, uma porta de vidro a deslizar e a abrir. Meteu a chave na fechadura do puxador a tempo de apanhar um

vislumbre de um homem a sair pela porta de trs e a saltar da varanda para o cho. No era Sharkey. Ouviu a voz de Eleanor Wish l fora, a mandar o homem parar. Bosch fez um inventrio rpido do quarto. Um corredor de entrada com um armrio esquerda, casa de banho direita, ambos vazios, exceptuando algumas peas de roupa no cho do armrio. Duas camas duplas encostadas s paredes opostas, uma cmoda com um espelho pendurado na parede, uma carpete amarelo acastanhada muito gasta em volta das camas e no caminho para a casa de banho. A rapariga, de cabelo louro, pequena, com cerca de dezassete anos, estava sentada na borda de uma das camas com um lenol enrolado volta dela. Bosch conseguiu ver o contorno de um mamilo comprimido contra o lenol encardido que, outrora, tinha sido branco. O quarto cheirava a perfume doce e barato. - Bosch, est tudo bem a dentro? - gritou Eleanor Wish do lado de fora.

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Ele no a conseguia ver por causa de um lenol pendurado como uma cortina na porta deslizante. - Tudo bem. E voc? - OK. O que que temos? Bosch dirigiu-se para a porta da varanda e olhou para fora. Eleanor Wish estava de p, atrs de um homem que tinha os braos estendidos e as mos na parede das traseiras do motel. Devia andar pelos trinta anos, com a pele amarelada de um homem que tinha acabado de cumprir um ms numa priso do condado. As calas estavam abertas frente. A camisa de xadrez estava mal abotoada. E olhava fixamente para o cho com o olhar esbugalhado de um homem que no tinha nenhuma explicao, mas que precisava desesperadamente de uma. Bosch ficou momentaneamente espantado pela escolha que o homem aparentemente tinha feito de apertar a camisa primeiro do que as calas. - Ele est limpo - disse ela. - Mas parece um bocadinho nervoso. - Parece que temos aliciamento e sexo com uma menor se quiser perder tempo com isso. Caso contrrio, solte-o. Voltou-se para a rapariga sentada na cama. - Nada de aldrabices, quantos anos tens e quanto que ele te pagou? No estou aqui para te prender. - Quase dezassete - respondeu ela num tom montono, carregado de aborrecimento. - No me pagou nada. Ele disse que pagava, mas ainda no tinha chegado a isso. - Quem que toma conta do vosso bando? O Sharkey? Ele nunca te disse para primeiro receberes o dinheiro? - O Sharkey no est sempre por perto. E como que soube o nome dele? - Ouvi-o por a. Onde que ele pra hoje? - J lhe disse, no sei. O homem da camisa de xadrez entrou pela porta da frente seguido por Eleanor Wish. Tinha as mos algemadas atrs das costas. - Vou prend-lo. Quero faz-lo. Isto nojento. Ela parece... - Ela disse-me que tinha dezoito - disse o Camisa de Xadrez. Bosch aproximou-se dele e abriu-lhe a camisa com um dedo. Tinha uma guia de asas abertas no peito. Nas garras trazia um punhal e uma cruz sustica. Por baixo dizia Uma Nao. Bosch sabia que aquilo queria dizer a Nao Ariana, o bando da supremacia branca das prises. Soltou a camisa deixando-a voltar ao stio. - Ei, h quanto tempo que saste? - perguntou.

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- Ei, v l, meu - disse o Camisa de Xadrez. - Isto uma treta. Ela apanhou-me na rua. Deixe-me ao menos apertar as calas. Isto uma treta. - D-me o meu dinheiro, filho da puta - disse a rapariga. Saltou da cama, o lenol caiu para o cho, e atirou-se, nua, para os bolsos das calas do homem. - Tirem-na de cima de mim! Tirem-na de cima de mim! - gritou o homem contorcendo-se para evitar as mos dela. - Esto a ver? Esto a ver? Ela que devia ir dentro e no eu. Bosch avanou, separou os dois e empurrou a rapariga para a cama. Colocou-se

atrs do homem e disse para Eleanor Wish: - D-me as suas chaves. Ela no se mexeu, por isso, ele meteu a mo no bolso e tirou a chave dele. Uma serve para todas. Abriu as algemas e empurrou o Camisa de Xadrez at porta da frente. Abriu-a e empurrou-o para fora. O homem parou no corredor para abotoar as calas o que deu a Bosch a oportunidade de lhe pr um p no rabo e empurrar. - Pe-te a andar daqui para fora, cegueta - disse ele enquanto o homem tropeava pelo corredor fora. - Este foi o teu dia de sorte! A rapariga estava outra vez enrolada no lenol sujo quando Bosch voltou a entrar no quarto. Ele olhou para Eleanor Wish e viu a raiva nos olhos dela. Sabia que no era s por causa do homem da camisa de xadrez. Bosch olhou para a rapariga e disse: - Agarra na tua roupa, vai para a casa de banho e veste-te! - Quando ela no se mexeu, disse: - V, v, toca a mexer! Ela agarrou numas peas de roupa espalhadas pelo cho ao p da cama e dirigiu-se para a casa de banho, deixando o lenol cair no cho. Bosch virou-se para Eleanor Wish. - Temos muitas coisas para fazer - comeou ele. - Voc ia perder o resto da tarde a recolher o testemunho dela e a prender o tipo. A verdade que uma ofensa comum e eu que tinha de o prender. E era uma barraca; pode ser crime ou contraveno. E bastava uma olhadela para a cara daquela rapariga e o DA iria para a contraveno, se que chegava mesmo a levar a coisa para a frente. No valia a pena ter tanto trabalho. Aqui, a vida assim, Agente Wish. Ela olhou para ele com os olhos a ferver de raiva, os mesmos olhos que ele tinha visto quando lhe tinha agarrado no pulso para a impedir de se ir embora do restaurante. 145 - Bosch, eu tinha decidido que valia a pena. Nunca mais me faa outra igual. Ficaram ali parados, a olhar fixamente um para o outro, tentando no dar parte de fracos at a rapariga sair da casa de banho. Vestia uns jeans desbotados e rasgados nos joelhos e um top preto. Estava descala e Bosch reparou que tinha as unhas pintadas de vermelho. Sentou-se na cama sem dizer uma palavra. - Temos de encontrar o Sharkey - disse-lhe Bosch. - Porqu? Tem um cigarro? Ele puxou do mao de cigarros e sacudiu-o para ela tirar um. Deu-lhe um fsforo e ela acendeu o cigarro sozinha. - Porqu? - perguntou ela outra vez. - Por causa de sbado noite - disse Eleanor Wish desabridamente. - No o queremos prender. No queremos chate-lo. S queremos fazer-lhe umas perguntas. - E eu? - perguntou a rapariga. - E tu o qu? - replicou Eleanor. - Vo-me arranjar chatices? - Queres saber se te vamos entregar Diviso dos Servios da Juventude, no ? disse Bosch. Olhou para Eleanor Wish tentando avaliar a reaco dela. No conseguiu. Disse: - No, no vamos chamar a DYS se nos ajudares. Como que te chamas? O teu nome verdadeiro. - Bettijane Felker. - Muito bem, Belttijane, no sabes onde que est o Sharkey? A nica coisa que queremos falar com ele. - S sei que ele est a trabalhar. - O que que queres dizer? Onde? - Boytown. Provavelmente, est a tratar de negcios com o Arson e o Mojo. - Esses so os outros tipos do bando? - Certo. - A que stio da Boytown que eles disseram que iam? - No disseram. Eles costumam ir para os stios onde h paneleiros, acho eu. Est a perceber? A rapariga no podia ou no queria ser mais explcita. Bosch sabia que no interessava. Tinha as moradas dos cartes dos interrogatrios e sabia que iria

encontrar Sharkey num stio qualquer de Santa Monica Boulevard. - Obrigado - disse ele rapariga e comeou a dirigir-se para a porta.

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Estava a meio do corredor quando Eleanor Wish saiu e passou por ele com um passo acelerado e zangado. Antes que ela dissesse qualquer coisa, ele parou num telefone pblico no corredor que levava ao escritrio. Agarrou numa pequena agenda de telefones que trazia sempre consigo, procurou o nmero da DYS e marcou-o. Puseram-no espera durante dois minutos enquanto uma telefonista transferia a chamada para uma linha de gravao automtica para onde ele ditou a data, a hora e a localizao de Bettijane Felker, suspeita de ser uma fugitiva. Desligou perguntando para consigo dali a quantos dias que eles iriam receber a mensagem e quantos dias depois disso que iriam apanhar Bettijane. J tinham entrado em West Hollywood no Santa Monica Boulevard e ela ainda continuava furiosa. Bosch tinha tentado defender-se, mas compreendera que no havia maneira de o conseguir. Por isso, deixou-se ficar sentado em silncio a ouvir. - uma questo de confiana - disse Eleanor Wish. - No me interessa se vamos trabalhar juntos durante muito ou pouco tempo. Se voc vai continuar com essa atitude de ser voc a fazer e a decidir tudo, nunca ir haver a confiana de que precisamos para sermos bem sucedidos. Ele olhava fixamente para o espelho do lado do passageiro, que tinha ajeitado de forma a poder ver o carro que arrancara atrs deles e os vinha a seguir desde o Blue Chateau. Tinha a certeza que eram Lewis e Clarke. Tinha visto o pescoo enorme e o cabelo escovinha de Lewis atrs do volante quando o carro tinha parado a trs carros de distncia num semforo. No disse a Wish que estavam a ser seguidos. E se ela se tinha apercebido da perseguio, no tinha dito nada. Estava demasiado envolvida noutras coisas. Deixou-se ir ali sentado, a observar o carro e a ouvir as queixas dela sobre a maneira pssima como ele tinha tratado das coisas. Por fim, disse-lhe: - O Meadows foi encontrado no domingo. Hoje j tera-feira. um facto da vida nos homicdios que as probabilidades, as hipteses, de resolver um homicdio se vo tornando cada vez mais pequenas medida que os dias vo passando. Por isso, peo desculpa. No achei que nos iria ajudar perder um dia a prender um idiota que provavelmente foi aliciado a ir para um quarto de motel por uma prostituta de dezasseis anos com a experincia de trinta. Tambm no achei que valesse a pena esperar que a DYS viesse buscar a rapariga porque era capaz de apostar o meu 147 ordenado em como a DYS j sabe quem a rapariga e sabe onde que ela est, se a quiserem apanhar. Em resumo, queria continuar com isto, deixar as outras pessoas fazerem o trabalho delas e fazer eu o meu. E isso queria dizer fazer o que estamos a fazer agora. Abrande aqui, no Rag-time. um dos stios que estava nos cartes. - Ambos queremos resolver isto, Bosch. Por isso, raios o partam, no seja to estupidamente condescendente como se voc tivesse esta nobre misso e eu estivesse aqui s pelo passeio. Estamos os dois metidos nisto. No se esquea. Abrandou frente da esplanada do caf onde homens aos pares estavam sentados nas cadeiras brancas de ferro forjado das mesas de tampo de vidro, bebendo ch gelado com rodelas de laranja presas na borda dos copos biselados. Alguns dos homens olharam para Bosch e depois desviaram o olhar, desinteressados. Este varreu com o olhar a rea da sala de jantar, mas no viu Sharkey. Enquanto o carro passava devagarinho, olhou para a rua lateral onde viu uns quantos jovens que passarinhavam por ali, sem fazerem nada, mas eram demasiado velhos para serem o Sharkey. Passaram os vinte minutos seguintes s voltas pelos bares e restaurantes gays, mantendo-se quase sempre em Santa Monica Boulevard, mas no viram o rapaz. Bosch ia observando, reparando que os tipos dos Assuntos Internos se mantinham no seu posto, nunca se distanciando mais do que um quarteiro. Wish nunca disse uma palavra a respeito deles, mas Bosch sabia que os agentes da autoridade eram geralmente os ltimos a aperceberem-se de que estavam a ser seguidos, porque

eram os ltimos a pensar que poderiam estar a ser vigiados. Eles eram os caadores e no as presas. Bosch tinha curiosidade em saber o que que Lewis e Clarke estavam a fazer. Estariam espera que ele infringisse alguma lei ou alguma regra da polcia com uma agente do FBI atrs? Comeava a desconfiar que os dois detectives dos Assuntos Internos estavam apenas a exibir-se por conta prpria. Se calhar, queriam que ele os visse. Uma espcie de susto psicolgico. Disse a Eleanor Wish para encostar ao passeio frente do Barneyos Beanery e saltou para fora do carro para ir usar o telefone pblico ao p da porta do velho bar. Marcou o nmero da Diviso dos Assuntos Internos que conhecia de cor, uma vez que, no ano anterior, tinha tido de telefonar para l duas vezes por dia, quando o tinham obrigado a ficar em casa enquanto decorriam as investigaes. Uma mulher, a agente da recepo, atendeu o telefone.
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- O Lewis ou o Clarke andam por a? - No, senhor, no andam. Posso ficar com algum recado? - No, obrigado. Uh... daqui o tenente Pounds, detectives de Hollywood. Voltam j para o gabinete ou demoram-se? Preciso de confirmar uma coisa com eles. - Penso que eles esto em cdigo sete at terminar o turno da tarde. - Desligou. No estavam de servio at s quatro. Andavam a fazer trafulhice, ou ento, desta vez, Bosch tinha-lhes dado um pontap com demasiada fora nos tomates e eles andavam atrs dele no tempo livre. Voltou para o carro e disse a Eleanor Wish que tinha ido telefonar para o gabinete dele para saber se tinha mensagens. No momento em que estavam a meter outra vez o carro no meio do trnsito, viu a motorizada amarela encostada a um parqumetro a cerca de meio quarteiro de distncia do Barnieos. Estava estacionada em frente de um restaurante de panquecas. - Ali - disse ele apontando. - Passe devagarinho para eu tirar o nmero. Era a motorizada de Sharkey. Bosch comparou a matrcula com os apontamentos que tinha tirado do ficheiro do CRASH. Mas no havia sinal do rapaz. Eleanor deu a volta ao quarteiro e estacionou no mesmo stio em frente do Barnieos onde tinham estado antes. - Ento, ficamos espera - disse ela. - Deste mido que voc acha que pode ser uma testemunha. - Exactamente. isso que eu penso. Mas no precisamos de perder tempo os dois. Pode deixar-me aqui se lhe apetecer. Eu vou para o restaurante e peo uma caneca de Henryos e uma tigela de chili e controlo a coisa pela janela. - Est tudo bem. Eu fico. Bosch recostou-se preparando-se para a espera. Puxou dos cigarros, mas ela atacou-o ainda antes de ele ter tirado o cigarro do mao. - J ouviu falar na avaliao do risco da inalao? - Perguntou ela. - Na qu? - O fumo do cigarro em segunda mo. mortal, Bosch. A EPA publicou isso no ms passado, oficialmente. Disse que era cancergeno. Trs mil pessoas por ano contraem cancro do pulmo do fumo passivo, como eles lhe chamam. Voc est a matar-se a si prprio e a mim. Por favor, no fume. Bosch voltou a enfiar o mao de cigarros na algibeira do casaco. Ficaram calados enquanto observavam a motorizada, que estava presa com uma corrente ao parqumetro. Bosch espreitou umas quantas vezes 149 para o espelho retrovisor, mas no viu o carro da Diviso dos Assuntos Internos. Tambm foi olhando para Eleanor Wish sempre que pensava que ela no estava a olhar. O Santa Monica Boulevard foi-se enchendo de carros medida que a hora de ponta se aproximava. Wish tinha a janela dela fechada para reduzir a entrada do monxido de carbono, o que fazia com que o carro estivesse muito quente. - Por que que est sempre a olhar para mim? - perguntou ela depois de uma hora de vigilncia. - Para si? No sabia que estava a fazer isso. - Estava. Est. J alguma vez tinha tido uma mulher como parceira? - No. Mas no era isso que me faria olhar para si. Se que estava a faz-lo.

- Ento o que ? Se estava. - Estaria a tentar compreend-la. Est a ver, porque que est aqui, a fazer isto. Sempre pensei, quero dizer, pelo menos foi o que sempre ouvi, que a brigada dos bancos no FBI era para os dinossauros e os falhados, os agentes demasiado velhos ou demasiado estpidos para usarem um computador ou conseguirem investigar os bens da escumalha de colarinho branco atravs da papelada. Pronto, a tem. A diviso dos pesos mortos. Voc no um dinossauro e alguma coisa me diz que no uma falhada. Alguma coisa me diz que voc uma barra, Eleanor. Ela ficou calada durante uns momentos e Bosch julgou ver um leve sorriso brincarlhe nos lbios. Depois desapareceu, se que l tinha estado. - Calculo que isso seja um cumprimento disfarado. Se , muito obrigada. Tenho as minhas razes para escolher o stio onde estou no departamento. E, acredite, posso escolher mesmo. Quanto aos outros na diviso, no os caracterizaria como voc fez. Acho que essa atitude, que, a propsito, parece partilhada por muitos dos seus colegas... - Ali est o Sharkey - disse ele. Um rapaz de trancinhas louras tinha sado de um beco lateral entre a loja de panquecas e um pequeno centro comercial. Estava acompanhado por um homem mais velho. Este trazia uma T-shirt que dizia Os Maricas Esto de Volta! Bosch e Eleanor Wish ficaram no carro a observar. Sharkey e o homem trocaram algumas palavras e depois Sharkey tirou qualquer coisa do bolso que entregou ao homem. O homem abriu o que parecia ser um baralho de cartas de jogar. Tirou umas quantas e devolveu as restantes. Depois deu a Sharkey uma nota verde. - O que que ele est a fazer? - perguntou Eleanor. - A comprar fotografias de bebs. - O qu? - Um pedfilo. O homem mais velho continuou pelo passeio abaixo e Sharkey dirigiu-se para a motorizada. Dobrou-se para a corrente e o cadeado. - OK, vamos l - disse Bosch e saram os dois do carro. Aquilo j chegava para aquele dia, pensou Sharkey. Eram horas de recolher. Acendeu um cigarro e inclinou-se por cima do assento da motorizada para accionar a combinao de segurana do cadeado Master. As tranas caram-lhe por cima dos olhos e sentiu o cheiro do produto de leo de coco que tinha posto no cabelo na noite anterior em casa do tipo do Jaguar. Tinha sido depois de Arson ter partido o nariz do homem e o sangue se ter espalhado por todo o lado. Endireitou-se e ia comear a enrolar a corrente em volta da cintura quando os viu aproximar. Chuis. Estavam demasiado perto. Demasiado tarde para fugir. Tentando agir como se no os tivesse visto, fez uma lista mental de tudo o que trazia nas algibeiras. Os cartes de crdito j tinham marchado, vendidos, o dinheiro podia ter vindo de qualquer stio, algum at tinha. Estava limpo. A nica coisa que eles poderiam conseguir era a identificao feita pelo maricas se o pusessem numa fila de identificao. Sharkey estava espantado por o tipo ter feito queixa. Nunca ningum o tinha feito. Sharkey sorriu aos dois chuis que se aproximavam e o homem mostrou-lhe um gravador de cassetes. Um gravador de cassetes? O que era isto? O homem carregou num boto e, segundos depois, Sharkey reconheceu a sua voz. De repente, percebeu do que que se tratava. Aquilo no tinha a ver com o gajo do Jaguar. Era por causa do cano. - E ento? - perguntou Sharkey. - Ento, - disse o homem com o gravador - queremos falar contigo a este respeito. - Meu, no tive nada a ver com isso. No vai atirar-me com nada... Hei, voc o tipo da esquadra. Sim, vi-o l, na noite passada. Bem, no vai conseguir que eu diga que fiz aquela merda l em cima. - Acalma-te, Sharkey - disse o homem. - Sabemos que no foste tu. S queremos saber o que que viste, mais nada. Volta a prender a mota. Ns trazemos-te outra vez para aqui. O homem deu-lhe o nome dele e o da mulher. Bosch e Wish. Disse que ela era do FBI, o que tornava tudo muito confuso. O rapaz hesitou, depois baixou-se e voltou a prender a motorizada. 150

151 Bosch disse: - S queremos dar um passeiozinho at Wilcox para te fazer umas perguntas e se calhar, para fazer um desenho. - De qu? - perguntou Sharkey. Bosch no respondeu; limitou-se a fazer um gesto com a mo, indicando que o acompanhasse e depois apontou para um Caprice cinzento um pouco mais acima da rua. Era o carro que Sharkey tinha visto porta do Chateau. Enquanto iam andando, Bosch manteve a mo no ombro de Sharkey. Sharkey ainda no era to alto como Bosch, mas tinha a mesma constituio magra e rija. O rapaz vestia uma camisa s manchas vermelhas e amarelas. Tinha uns culos escuros pendurados ao pescoo por um fio cor de laranja. P-los enquanto se dirigiam para o Caprice. - OK, Sharkey - disse Bosch quando chegaram ao p do carro. - Sabes como a norma. Temos de te revistar antes de entrares para o carro. Assim no vais ter de ir algemado durante a viagem. Pe tudo em cima do capot. - Porra, voc disse que eu no era suspeito - protestou Sharkey. - No sou obrigado a fazer isto. - J te disse, so as normas. Devolvemos-te tudo. Excepto as fotografias. Isso que no podemos fazer. Sharkey olhou primeiro para Bosch, depois para Wish e depois comeou a meter as mos nos bolsos dos jeans pudos. - Sim, sabemos das fotografias - disse Bosch. O rapaz ps 46 dlares e 55 cntimos em cima do capot, juntamente com um mao de cigarros, uma carteira de fsforos, um canivete pequeno preso numa corrente e um conjunto de fotografias Polaroid. Eram fotografias de Sharkey e dos outros membros do bando. Em todas elas, os modelos estavam nus e em vrios estdios de excitao sexual. Enquanto Bosch as ia virando uma a uma, Elenor Wish espreitou por cima do ombro dele, mas desviou rapidamente os olhos. Agarrou no mao de cigarros e inspeccionou-o, descobrindo um charro no meio dos Kools. - Acho que tambm vamos ter de ficar com isso - disse Bosch. Seguiram para a esquadra da polcia em Wilcox porque era hora de ponta e teriam levado uma hora para chegar ao Edifcio do FBI em Westwood. Passava das seis quando chegaram sala dos detectives que estava deserta, visto que toda a gente j tinha ido para casa. Bosch levou Sharkey para uma das salas de interrogatrio de dois metros e meio por dois metros e meio. Havia uma mesa pequena cheia de queimadelas de cigarro e trs cadeiras na sala. Um letreiro escrito mo numa das paredes dizia: Nada de Choradeiras! Sentou Sharkey no Escorrega - uma cadeira de madeira com o assento muito encerado e cerca de meio centmetro de madeira cortado em cada uma das pernas da frente. A inclinao no era suficiente para se notar vista desarmada, mas era o suficiente para a pessoa que se sentasse na cadeira se sentir desconfortvel. Sentar-se-ia para trs como acontecia com a maioria dos casos difceis e iria escorregando devagarinho para a frente. A nica coisa que poderia fazer era inclinar-se para a frente, ficando com a cara quase colada do seu inquisidor. Bosch disse ao rapaz para no se mexer dali e saiu da sala para combinar uma estratgia com Eleanor Wish, fechando a porta atrs de si. Ela abriu a porta a seguir a ele a ter fechado. - ilegal deixar um menor numa sala fechada sem companhia - disse ela. Bosch fechou outra vez a porta. - Ele no se est a queixar - disse ele. - Temos de falar. O que que acha dele? Quer ser voc a tratar do assunto ou quer que seja eu? - No sei - respondeu ela. Aquilo resolvia a questo. Era um no. Uma entrevista inicial com uma testemunha, uma testemunha relutante ainda por cima, exigia uma mistura habilidosa de sacanice, lisonja, exigncia. Se ela no sabia, ento no ia. - Voc que tem fama de ser o perito dos interrogatrios - disse ela num tom de voz que Bosch achou trocista. - o que diz no seu processo. No sei se isso quer dizer usar os miolos ou a fora. Mas gostava de ver como que se faz. Ele assentiu com a cabea, ignorando a alfinetada. Meteu a mo no bolso e tirou os cigarros e os fsforos do rapaz. - Entre e d-lhe isto. Quero ir minha secretria ver as minhas mensagens e

preparar uma gravao. - Quando viu a expresso da cara dela ao ver os cigarros, acrescentou: - Primeira regra dos interrogatrios: fazer com que o sujeito se sinta confortvel. D-lhe os cigarros. Contenha a respirao se no gostar. Comeou a afastar-se, mas ela perguntou: - Bosch, o que que ele estava a fazer com aquelas fotografias? - Ento era aquilo que a estava a incomodar, pensou ele. - Olhe. H cinco anos atrs, um mido como ele teria ido com aquele homem e teria feito sabe-se l o qu. Hoje em dia, em vez disso,
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vende-lhe umas fotografias. H tantos assassinos, doenas e coisas dessas que estes garotos esto a ficar mais espertos. mais seguro vender as tuas fotografias do que vender a tua carne. Ela abriu a porta da sala dos interrogatrios e entrou. Bosch atravessou a sala da esquadra e foi ver o espigo cromado em cima da secretria onde estavam espetados os recados. O advogado tinha finalmente retribudo a chamada. O mesmo tinha acontecido com Bremmer do Times, embora tivesse deixado o pseudnimo que tinham combinado antes. Bosch no queria que ningum que fosse meter o nariz na sua secretria ficasse a saber que a imprensa tinha telefonado. Bosch deixou as mensagens no espigo, agarrou no seu carto de identificao, dirigiu-se para o armrio do equipamento e abriu a fechadura. Abriu uma cassete de noventa minutos nova e meteu-a no gravador na prateleira de baixo do armrio. Ligou o aparelho para se certificar que a cassete de backup estava a funcionar. Carregou no boto de gravar e verificou se as duas cassetes estavam a girar. Depois voltou a atravessar a sala at entrada e disse a um estafeta gordo que l estava sentado para encomendar uma pizza para ser entregue na esquadra. Deu ao mido uma nota de dez dlares e disse-lhe para a levar sala dos interrogatrios com trs Coca-colas quando chegasse. - O que que quer nela? - perguntou o rapaz. - De que que tu gostas? - Salsicha e peperoni. Odeio anchovas. - Pois pede anchovas. Bosch voltou para a sala dos detectives. Eleanor Wish e Sharkey estavam calados quando ele entrou na pequena sala de entrevistas e ele teve a sensao de que no deviam ter conversado muito. Eleanor Wish no gostava do rapaz. Estava sentada direita de Sharkey. Bosch sentou-se do lado esquerdo. A nica janela da sala era um vidro espelhado na porta. Podia-se olhar l para dentro, mas no se podia olhar para fora. Bosch decidiu ser frontal com o rapaz logo de incio. Ele era um garoto, mas provavelmente era mais sensato do que a maioria dos homens que se tinham sentado no Escorrega antes dele. Se se apercebesse que estava a ser enganado, comearia a responder s perguntas com monosslabos. - Sharkey, vamos gravar isto porque nos poder vir a ser til voltar a ouvir o que foi dito - disse Bosch. - Como j te disse, no s suspeito, por isso, no tens de te preocupar com o que disseres a no ser, claro, que vs dizer que foste tu que o fizeste. - Est a ver o que que eu queria dizer? - protestou o rapaz - Eu sabia que ia acabar por dizer isso e que ia ficar na fita. Merda, j estive numa sala destas, sabe? - por isso que no te vamos aldrabar. Ora vamos l dizer isto uma vez para ficar registado. Sou Harry Bosch, Departamento da Polcia de L. A., esta Eleanor Wish, FBI, e tu s Edward Niese, tambm conhecido por Sharkey. Quero comear por... - Que merda esta? Foi o presidente que foi arrastado para dentro daquele cano? O que que o FBI est aqui a fazer? - Sharkey! - gritou Bosch. - Acalma-te. s um programa de intercmbio. Como quando andavas na escola e vinham uns midos de Frana ou qualquer coisa parecida. Pensa que ela veio de Frana. Est s a ver e a aprender com os profissionais. - Sorriu e piscou o olho a Eleanor. Sharkey olhou para ela e tambm sorriu ao de leve. - Primeira pergunta, Sharkey, vamos l arrumar isto de uma vez para podermos passar ao que interessa. Foste tu que mataste o tipo no reservatrio? - Foda-se, no! Eu... - Esperem um minuto, esperem um minuto - interrompeu Eleanor Wish. Olhou para

Bosch. - Podemos ir l fora s por um momento? Bosch levantou-se e saiu. Ela foi atrs dele e, desta vez, fechou a porta da sala atrs de si. - O que que est a fazer? perguntou Bosch. - O que que voc est a fazer? Vai ler os direitos ao mido, ou quer lixar esta entrevista logo do princpio? - O que que est para a a dizer? No foi ele. Ele no um suspeito. S estou a fazer-lhe perguntas porque estou a tentar criar um padro de entrevista. - No sabemos que ele no o assassino. Acho que lhe devamos dizer quais so os seus direitos. - Dizemos-lhe quais so os direitos e ele vai pensar que julgamos que ele um suspeito e no uma testemunha. Fazemos isso e bem podemos ir falar para as paredes. Ele no se vai lembrar de nada. Ela voltou para a sala de interrogatrios sem dizer mais uma palavra. Bosch seguiua e recomeou onde tinha parado, sem dizer nada sobre os direitos do rapaz. - Mataste o tipo no cano, Sharkey? - No, meu, nem pensar. S o vi, mais nada. J estava morto. O rapaz olhou para a direita, para Wish ao dizer aquilo. Depois endireitou-se na cadeira. 154 - OK, Sharkey - disse Bosch. - A propsito, quantos anos tens? De onde que s? Diz-me l umas coisas destas. - Quase dezoito, meu, depois fico livre - respondeu o rapaz a olhar para Bosch. - A minha me vive em Chatsworth, mas eu tento no viver com... Porra, j tem isso tudo num dos seus livrinhos de apontamentos. - s maricas, Sharkey? - Nem pensar, meu - respondeu o rapaz, olhando duramente para Bosch. - Vendolhes fotografias, que grande coisa, porra! Mas no sou um deles. - Fazes mais alguma coisa alm de lhes venderes fotografias? Roubas uns quantos quando tens oportunidade? Arreias-lhes e ficas-lhes com a massa? Quem que vai apresentar queixa? Certo? Agora, Sharkey voltou a olhar para Eleanor Wish e levantou uma mo aberta. - No fao essas merdas. Pensei que amos falar do gajo morto. - E vamos, Sharkey - disse Bosch. - S quero ter uma ideia de com quem que estamos a lidar, mais nada. Vamos comear pelo princpio. Conta-nos a histria. Mandei vir uma pizza e h mais cigarros. Temos tempo. - No vai levar tempo nenhum. No vi nada, s vi que o corpo l estava. Espero que no haja anchovas. Disse tudo aquilo a olhar para Wish enquanto se endireitava na cadeira. Tinha estabelecido um padro em que olhava para Bosch quando estava a falar verdade e para Wish quando estava a disfarar ou a mentir descaradamente. Os trapaceiros representavam sempre para as mulheres, pensou Bosch. - Sharkey, - disse Bosch - se quiseres podemos levar-te para Sylmar e passas l a noite. Podemos recomear de manh, talvez a tua memria j esteja um bocadinho... - Estou preocupado com a minha mota. Podem roub-la. - Esquece a mota - disse Bosch inclinando-se para a frente de forma a invadir o espao pessoal do rapaz. - No te vamos apaparicar, Sharkey, ainda no nos contaste nada. Comea com a histria e depois logo pensamos na mota. - OK, OK. Vou contar-vos tudo. O rapaz estendeu a mo para os seus cigarros em cima da mesa e Bosch afastou-se e tirou um dos seus. Inclinar-se para a cara dele e depois afastar-se era uma tcnica que Bosch tinha aprendido durante aquilo que 156 lhe tinha parecido umas mil horas nestas pequenas divises. Inclina-te para a frente, invade aqueles cinquenta centmetros que todo deles, o espao deles. Afasta-te quando consegues aquilo que querias. subliminal. A maior parte do que se passa num interrogatrio da polcia no tem nada a ver com o que dito. a interpretao, as nuances. E, por vezes, aquilo que no dito. Acendeu primeiro o cigarro de Sharkey. Eleanor Wish encostou-se para trs na cadeira quando eles

soltaram o fumo azul. - Quer um cigarro, agente Wish? - perguntou Bosch. Abanou a cabea numa negativa. Bosch olhou para Sharkey e trocaram um olhar cmplice. Dizia: Eu e tu, p. O rapaz sorriu. Bosch fez-lhe um gesto com a cabea para comear a contar a sua histria e ele f-lo. E que histria. - As vezes vou at l acima para dormir - disse Sharkey. - Esto a ver? Quando no arranjo ningum que me d algum dinheiro para pagar o quarto do motel, ou assim. s vezes, o quarto do motel do meu bando est demasiado cheio. Tenho de sair de l. Por isso vou at l acima, durmo dentro do cano. Na maior parte das noites, continua quente. No mau. Bom, seja como for, era uma dessas noites. Por isso fui at l... - Que horas eram? - perguntou Eleanor Wish. Bosch deitou-lhe um olhar que dizia: Calma, faa as perguntas depois da histria ter terminado. O rapaz estava a portar-se bastante bem. - Devia ser muito tarde - respondeu Sharkey. - Trs, quatro da manh. No tenho relgio. Bem, fui at l. E entrei no cano e vi o tipo que estava morto. Estava para ali deitado. Sa c para fora e pus-me ao fresco. No ia ficar ali com um morto. Quando cheguei c abaixo, telefonei para vocs, nove um um. Desviou o olhar de Wish para Bosch. - E tudo - disse ele. - Do-me uma boleia at minha mota? - Ningum respondeu, por isso, Sharkey acendeu outro cigarro e endireitou-se na cadeira. - Isso foi uma linda histria, Edward, mas ns precisamos da histria completa disse Bosch. - E tambm precisamos dela certa. - O que que quer dizer? - Quero dizer que parece feita por um atrasado mental, isso que quero dizer. Como que viste o corpo l dentro? - Tinha uma lanterna - explicou ele a Wish. 157 - No, no tinhas. Tinhas fsforos, encontrmos um. - Bosch inclinou-se para a frente at ficar com a cara a trinta centmetros da do rapaz. - Sharkey, como que julgas que soubemos que eras tu que tinhas telefonado? Achas que a telefonista reconheceu a tua voz? Oh, o velho Sharkey. um bom rapazinho, a telefonar-nos por causa de um cadver. Pensa, Sharkey. Tu assinaste o teu nome... ou pelo menos, metade, no cano l em cima. Tirmos as tuas impresses digitais de uma lata de tinta. E sabemos que s rastejaste at meio do cano. Foi a que te assustaste e fugiste. Deixaste um rasto atrs de ti. Sharkey olhava em frente, os olhos ligeiramente levantados para a janela espelho na porta. - Sabias que o corpo l estava antes de entrares. Viste algum arrast-lo para dentro do cano, Sharkey. Agora olha para mim e conta-me a histria verdadeira. - Olhe, eu no vi a cara de ningum. Estava escuro, meu - disse o rapaz a Bosch. Eleanor soltou um suspiro. Bosch teve vontade de lhe dizer que, se ela achava que o rapaz era uma perda de tempo, se podia ir embora. - Eu estava escondido - disse Sharkey. - Porque, t a ver, ao princpio pensei que eles andavam atrs de mim ou qualquer coisa. No tive nada a ver com isto. Por que que me est a arrastar para isto? - Temos um homem morto, Edward. Temos de descobrir porqu. No estamos interessados em caras. Isso no interessa agora. Conta-nos o que viste mesmo e depois deixas de estar metido nisto. - Acaba-se mesmo? - Acaba-se mesmo. Bosch voltou a recostar-se e acendeu o seu segundo cigarro. - Bem, sim, eu estava l em cima e ainda no estava muito cansado, por isso estava a fazer as minhas pinturas e ouvi um carro a aproximar-se. Uma merda. E o que era esquisito era que o estava a ouvir antes de o ver. Porque o gajo no tinha as luzes acesas. Por isso, meu, dei de frosques e escondi-me nos arbustos da colina ali ao lado, sabe, mesmo ao lado do cano, mesmo no stio onde eu escondo a moto enquanto estou a dormir. O rapaz estava a ficar mais animado, usando as mos, abanando a cabea e

olhando quase s para Bosch. - Merda, pensei que aqueles gajos vinham minha procura, como se algum tivesse chamado os chuis por eu estar a pintar as minhas letras, ou qualquer coisa assim. Por isso, escondi-me. De facto, quando chegam l um dos gajos sai do carro e diz ao outro que lhe cheira a tinta. Mas 158 afinal nem sequer me viram. S pararam ao p do cano por causa do cadver. E tambm no era um carro. Era um jipe. - Ficaste com a matrcula? - perguntou Eleanor. - No, porra, no tirei a matrcula. Merda, tinham as luzes apagadas e estava muito escuro. Bom, de qualquer das maneiras, eles eram trs, se contarmos com o morto. Um dos tipos sai do carro, era o condutor, e puxa o tipo morto para fora da parte de trs do carro, tira-o debaixo de um cobertor ou qualquer coisa assim. Abriu uma portinha nas traseiras que esses jipes tm e arrastou o gajo para o cho. Era um pavor, p. Eu vi perfeitamente que era verdadeiro, sabe, um tipo morto a srio. Caiu ao cho ao p da parede. Como um morto. Fez um barulho como um corpo. No foi como na TV. Como quando eles dizem qualquer coisa como: Oh, no, um cadver que ele est a arrastar para fora. Depois ele arrastou-o para dentro do cano. O outro gajo no o ajudou. Ficou no jipe. Por isso, o primeiro tipo, ele fez tudo sozinho. Sharkey deu uma grande passa no cigarro e depois apagou-o no cinzeiro de lata, que j estava cheio de cinza e de beatas velhas. Deitou o fumo pelo nariz e olhou para Bosch que lhe fez sinal com a cabea para continuar. O rapaz endireitou-se na cadeira. - Uhm, eu continuei ali e o tipo saiu do cano um minuto depois. No foi mais do que isso. Olhou em volta quando saiu, mas no me viu. Foi at a um arbusto ao p do stio onde eu estava escondido e arrancou um ramo. E depois voltou para dentro do tubo durante um bocado. Conseguia ouvi-lo l dentro a varrer ou qualquer coisa assim com o ramo. Depois ele voltou a sair e foram-se embora. Oh, uhm, ele comeou a andar para trs e a luz da marcha atrs acendeu-se, t a ver. Ele mudou logo de mudana, muito depressa. Ento ouvi-o dizer qualquer coisa sobre no poderem ir em marcha atrs por causa da luz. Podiam ser vistos. Por isso, avanaram, para a frente, t a ver, sem luzes. Desceram a estrada, passaram o reservatrio e deram a volta ao outro lado do lago. Quando passaram por aquela casinha ao p do reservatrio, partiram a lmpada. Vi-a apagar-se. Continuei escondido at deixar de ouvir o motor por completo. Depois sa. Sharkey interrompeu a histria por uns instantes e Eleanor disse: - Desculpem, podemos abrir a porta um bocadinho, para fazer sair um bocado do fumo? Bosch estendeu o brao e abriu a porta sem se levantar ou tentar esconder o aborrecimento. - V, Sharkey, continua - foi tudo o que disse. 159 - Ento, depois de eles se terem ido embora fui at ao p do cano e chamei pelo tipo. Sabe, do gnero: Ei, a dentro e Est bem?, coisas dessas. Mas ningum respondeu. Por isso, deitei a mota no cho de forma luz entrar l dentro e rastejei l para dentro um bocadinho. Tambm acendi um fsforo, como disseram. E consegui v-lo l dentro e ele pareceu-me morto e tudo. Eu ia verificar, mas era demasiado arrepiante. Sa. Desci a colina e telefonei para os chuis. Foi tudo o que fiz, e no h mais nada. Bosch calculou que o rapaz ia roubar o cadver, mas se tinha assustado a meio do caminho. Mas no tinha importncia. O rapaz podia guardar esse segredo. Depois pensou no ramo arrancado do arbusto e utilizado pelo homem para limpar os rastos e todos os vestgios dentro do cano. Perguntou para consigo porque que os polcias fardados no tinham reparado nem no ramo, nem no arbusto partido durante a busca na cena do crime. Mas no por muito tempo porque j sabia a resposta. Desmazelo. Preguia. No era a primeira vez que havia coisas que escapavam e no ia ser a ltima. - Vamos saber da pizza - disse Bosch, pondo-se de p. - S demoramos uns minutos.

Fora da sala dos interrogatrios, Bosch controlou a fria que sentia e disse: - A culpa foi minha. Devamos ter conversado mais sobre a maneira como queramos fazer isto antes de ouvirmos a histria dele. Eu gosto de primeiro ouvir o que que eles tm para dizer e s depois fazer perguntas. A culpa foi minha. - No h problema - disse Eleanor secamente. - De qualquer maneira, ele no parece ser assim to valioso. - Talvez. - Pensou um bocadinho. - Estava a pensar em voltar l para dentro e falar mais um bocado com ele, talvez at em ir buscar um livro de fotografias para identificao. E se ele no comear a ficar melhor da memria, podamos hipnotizlo. Bosch no tinha maneira de saber qual iria ser a reaco dela ltima sugesto. F-la de uma forma descontrada, com alguma esperana de que passasse despercebida. Os tribunais da Califrnia tinham deliberado que hipnotizar uma testemunha invalida o testemunho posterior dessa testemunha em tribunal. Se hipnotizassem Sharkey, ele nunca poderia ser testemunha em qualquer processo que pudesse resultar da investigao Meadows. Eleanor Wish franziu o sobrolho. - Eu sei - disse Bosch. - Perdamo-lo para o tribunal. Mas podemos nunca conseguir chegar a tribunal com o que ele nos deu agora. Como a Eleanor acabou de dizer, ele no assim to valioso. - S no sei se devemos prescindir j da sua utilidade. Afinal, ainda estamos no incio da investigao. Bosch aproximou-se da porta da sala dos interrogatrios e olhou para o rapaz atravs do vidro que s funcionava para um lado. O rapaz estava a fumar outro cigarro. Pousou-o no cinzeiro e levantou-se. Olhou para a janela da porta, mas Bosch sabia que ele no podia ver para fora. Muito rpida e silenciosamente, o rapaz trocou a sua cadeira com a que Wish tinha estado a utilizar. Bosch sorriu e disse: - um mido esperto. capaz de haver ali mais coisas que no vamos conseguir apanhar se no o hipnotizarmos. Acho que vale a pena correr o risco. - No sabia que voc era um dos hipnotizadores do Departamento da Polcia de Los Angeles. Deve-me ter escapado isso no seu processo. - Tenho a certeza que deve ter havido muita coisa que lhe escapou - replicou Bosch. Passados uns instantes, acrescentou: - Suponho que sou um dos ltimos que ainda por c anda. Depois do Supremo Tribunal ter fechado essa porta, o departamento desistiu de treinar gente. S havia uma turma. Eu era dos mais novos. A maior parte dos outros j se reformou. - Seja como for - disse ela -, no me parece que o devamos fazer j. Vamos conversar com ele mais um bocado, esperar uns dois dias, antes de o desperdiarmos como testemunha. - Muito bem. Mas daqui a uns dois dias, quem sabe onde que para um garoto como o Sharkey? - Oh, mas voc est cheio de recursos. Descobriu-o desta vez. Pode tornar a faz-lo. - Quer fazer alguma pergunta l dentro? - No, voc est a sair-se muito bem. Desde que eu possa intrometer-me sempre que me lembrar de qualquer coisa... Ela sorriu, ele sorriu e voltaram para a sala dos interrogatrios que cheirava a suor e a cigarros. Bosch deixou a porta aberta para arejar. No foi preciso ela pedir. - No h comida? - perguntou Sharkey. - Ainda vem a caminho - respondeu-lhe Bosch. 160 161 Bosch e Wish fizeram Sharkey repetir a histria mais duas vezes, apanhando, aqui e ali, mais uns pormenores insignificantes. Fizeram-no em equipa. Parceiros, trocando olhares entendidos, acenos sub-reptcios, e at mesmo sorrisos. Bosch reparou que Wish escorregava algumas vezes na cadeira e pensou ver um sorriso na cara infantil de Sharkey. Quando a pizza chegou, Sharkey protestou por causa das anchovas, mas, mesmo assim, comeu trs quartos da pizza e emborcou duas cocacolas. Bosch e Eleanor Wish abstiveram-se. Sharkey disse-lhes que o jipe em que o corpo de Meadows tinha sido transportado

era branco sujo ou beige. Disse que havia um distintivo na porta de lado, mas no o conseguiu descrever. Talvez aquilo fosse para parecer um veculo da DWP, pensou Bosch. Talvez fosse um veculo da DWP. Agora que ele estava mesmo convencido que queria hipnotizar o rapaz, mas decidiu no voltar a mencionar o assunto. Esperaria que Eleanor visse por si prpria que tinham de o fazer. Sharkey disse que quem tinha ficado no jipe enquanto o corpo era arrastado para dentro do cano, no dissera uma palavra durante todo o tempo em que ele os tinha estado a vigiar. Esta pessoa era mais pequena do que o condutor. Sharkey descreveu ter visto apenas um vulto pouco corpulento, uma silhueta vaga recortada pelo tnue luar que pairava por cima do denso pinhalzinho do permetro do reservatrio. - O que que esse outro tipo fez? - perguntou Eleanor Wish. - S olhou, acho eu. Como um vigia. Nem sequer guiava. Acho que devia ser quem mandava ou assim. O rapaz tinha conseguido ver melhor o condutor, mas no o suficiente para lhe descrever a cara ou fazer um desenho com os modelos de rostos do kit de identificao que Bosch tinha trazido para a sala. O condutor tinha cabelo escuro e era branco. Sharkey no conseguia, ou no queria, ser mais exacto na descrio. Vestia calas e casaco da mesma cor, talvez um fato macaco. Sharkey disse que ele tambm trazia uma espcie de cinto de equipamento ou avental de sapateiro. Os bolsos escuros para as ferramentas pendiam vazios nas ancas e agitavam-se como um avental na cintura. Bosch achou aquilo curioso e fez vrias perguntas a Sharkey, partindo de ngulos diferentes, mas sem conseguir uma descrio melhor. Uma hora depois tinham terminado. Deixaram Sharkey na sala cheia de fumo enquanto conferenciavam l fora. Eleanor Wish disse: - Agora a nica coisa que temos de fazer descobrir um jipe com um cobertor na parte de trs. Fazer uma microanlise e comparar os cabelos. O problema que deve haver uns dois milhes de jipes brancos ou beiges neste estado. Quer que eu ponha um BOLO ou quer ser voc a tratar disso? - Olhe, h duas horas no tnhamos nada. Agora j temos muita coisa. Se quiser, deixe-me hipnotizar o rapaz. Quem sabe, pode ser que consigamos um nmero de matrcula, uma descrio melhor do condutor. Talvez ele se lembre de um nome que tenha sido dito, ou seja capaz de descrever o emblema da porta. Bosch estendeu as mos com as palmas voltadas para cima. A sua oferta estava disposio, mas ela j a tinha recusado anteriormente. E voltou a faz-lo. - Ainda no, Bosch. Deixe-me falar com o Rourke. Talvez amanh. No me quero precipitar para uma coisa que pode vir a mostrar-se um erro. OK? Ele assentiu e deixou cair as mos. - E agora? - perguntou ela. - Bem, o mido j comeu. Por que que no o levamos e depois voc e eu vamos comer qualquer coisa. H um stio... - No posso - disse ela. - .. .em Overland que eu conheo. - J tenho planos para esta noite. Tenho pena. Talvez possa ficar para outra noite. - Claro. Dirigiu-se para a porta da sala dos interrogatrios e espreitou pelo vidro. Tudo para evitar mostrar-lhe a cara. Sentia-se estpido por ter avanado to depressa com ela. Disse: - Se tiver de se ir embora, v. Eu levo-o para um abrigo ou qualquer coisa dessas para l passar a noite. No preciso perdermos os dois o nosso tempo com isto. - Tem a certeza? - Sim, eu tomo conta dele. Arranjo um carro patrulha que nos leve. De caminho, vamos buscar a mota. Depois, eles levam-me ao meu carro. - Isso simptico. Quero dizer, ir buscar a mota e tomar conta dele. - Bem, fizemos uma combinao com ele, lembra-se? - Lembro-me. Mas voc interessa-se por ele. Vi como o tratava. V nele alguma coisa de si? Ele virou a cara para olhar para ela. - No, no especialmente - disse ele. - Ele no passa de mais uma testemunha que tem de ser entrevistada. Voc acha que agora ele um

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sacaninha de um filho da me. Espere at ele ter dezoito ou dezanove, se l chegar, nessa altura vai ser um monstro. A viver custa das pessoas. Esta no vai ser a ltima vez que ele vai estar sentado naquela sala. Vai passar a vida toda a entrar e a sair daqui at que mate algum ou algum o mate ele. a lei de Darwin: a sobrevivncia dos mais aptos. E ele est apto a sobreviver. Por isso, no, no me interesso por ele. Vou met-lo num abrigo porque quero saber onde que ele est no v dar-se o caso de precisarmos dele. Mais nada. - Um belo discurso, mas no acredito. J o conheo um bocadinho, Bosch. Voc interessa-se, interessa-se mesmo. A maneira como lhe arranjou jantar e lhe perguntou... - Olhe, no me interessa quantas vezes que leu o meu processo. Voc acha que isso quer dizer que me conhece? J lhe disse, so tudo tretas. Tinha-se aproximado dela, at a cara estar apenas a trinta centmetros da dela. Mas ela desviou os olhos dele, baixando-os para o caderno de notas, como se o que ela tinha l escrito tivesse alguma coisa a ver com o que ele estava a dizer. - Olhe - continuou ele -, ns podemos trabalhar nisto juntos, se calhar at conseguimos descobrir quem que matou o Meadows, se tivermos mais abertas como esta com o mido hoje. Mas nunca seremos parceiros a srio e nunca nos conheceremos um ao outro. Por isso, se calhar, no devemos agir como se fssemos. No me fale do seu irmozinho mais novo com o cabelo escovinha e de como ele se parece comigo noutros tempos, porque no sabe como eu era. Um monte de papis e de fotografias de um arquivo no dizem nada sobre mim. Ela fechou o caderno de notas e meteu-o na carteira. Finalmente, levantou os olhos para o fitar. Ouviu-se bater porta do lado de dentro da sala de interrogatrios. Sharkey estava a olhar para si prprio na janela espelhada da porta. Mas ambos o ignoraram e Eleanor Wish limitou-se a perscrutar Bosch com o olhar. - Voc fica sempre assim quando uma mulher recusa jantar consigo? - perguntou calmamente. - No tem nada a ver uma coisa com a outra e voc sabe-o muito bem. - Claro. Eu sei. Comeou a afastar-se e depois disse: - Ficamos assim, ento. Amanh s nove, encontramo-nos no departamento? Ele no respondeu e ela foi-se embora em direco sala da esquadra. Sharkey voltou a bater na porta, Bosch olhou l para dentro e viu o rapaz a espremer as borbulhas de acne no espelho da porta. Eleanor voltou-se para trs mais uma vez antes de sair. - No estava a falar do meu irmozinho mais novo - disse ela. - Ele era o meu irmo mais velho. E eu estava a falar de h muito tempo. Do ar dele quando eu era pequena e ele se ia embora por algum tempo, para o Vietname. Bosch no olhou para ela. No foi capaz. Percebeu o que vinha a seguir. - Lembro-me da cara dele nessa altura - continuou ela -, porque foi a ltima vez que o vi. uma coisa que fica connosco. Ele foi um dos que no voltou. Saiu. Harry comeu a ltima fatia de pizza. Estava fria e ele detestava anchovas e achou que era aquilo mesmo que merecia. A mesma coisa com a coca-cola que estava quente. A seguir, sentou-se secretria na seco dos homicdios e fez vrios telefonemas at descobrir uma cama vazia, ou melhor, um espao vazio, num dos abrigos onde no se faziam perguntas prximo do Boulevard. No Home Street Home no tentavam mandar os fugitivos para o stio de onde tinham vindo. Sabiam que, na maior parte dos casos, a casa era um pesadelo pior do que as ruas. Davam s crianas um lugar seguro para dormir e depois tentavam mand-las para qualquer stio que no fosse em Hollywood. Requisitou um carro sem identificao e levou Sharkey at motorizada. No cabia na bagageira, por isso, Bosch fez uma combinao com o rapaz. Sharkey ia na mota at ao abrigo e Bosch seguia-o no carro. Quando o rapaz l chegasse e se inscrevesse, Bosch dava-lhe o dinheiro, a carteira e os cigarros. Mas no as Polaroid nem o charro. Esses iam para o lixo. Sharkey no gostou mas obedeceu. Bosch

disse-lhe para se deixar ficar no abrigo durante uns dias, embora soubesse que, provavelmente, o rapaz se ia pr a andar logo de manh. - Encontrei-te uma vez. Se precisar, posso voltar a faz-lo - disse ele enquanto o rapaz prendia a mota do lado de fora da casa. - Eu sei, eu sei - respondeu Sharkey. Era uma ameaa v. Bosch sabia que tinha encontrado o rapaz quando ele no sabia que andavam procura dele. Seria uma histria muito diferente se ele se quisesse esconder. Bosch entregou-lhe um dos seus 164 165 cartes baratos e disse-lhe para telefonar se se lembrasse de alguma coisa que pudesse ajudar. - Que possa ajudar quem? A mim ou a si?- perguntou Sharkey. Bosch no respondeu. Voltou a meter-se no carro e voltou para a esquadra em Wilcox, prestando ateno ao retrovisor para ver se era seguido. No viu ningum. Depois de ter entregue o carro, foi sua secretria e agarrou nos arquivos do FBI. Dirigiu-se ao gabinete do oficial de servio onde o tenente chamou uma das suas patrulhas para dar uma boleia a Bosch at ao Federal Building. O agente da patrulha era um jovem polcia com um corte de cabelo curtssimo. Asitico. Bosch tinha ouvido na esquadra que se chamava Gung Ho. Seguiram em silncio durante os vinte minutos que levaram at ao Federal Building. Harry chegou a casa s nove. A luz vermelha do telefone estava a piscar, mas no havia mensagens. Ligou o rdio para ouvir o relato do jogo dos Dodgers, mas voltou a deslig-lo cansado de ouvir pessoas a falar. Em vez disso, ps uns CDs de Sonny Rollins, Frank Morgan e Branford Marsalis no leitor e preferiu ouvir saxofone. Espalhou os dossiers em cima da mesa da casa de jantar e tirou a tampa a uma garrafa de cerveja. lcool e jazz, pensou ele enquanto engolia. Dormir vestido. s mesmo o clich do chui, Bosch. Um livro aberto. igualzinho a todos os outros parvos que se devem atirar a ela todos os dias. Dedica-te apenas ao assunto que tens tua frente. E no esperes mais nada. Abriu o dossier sobre Meadows, lendo atentamente todas as pginas, ao passo que, no carro com Wish, se tinha limitado a dar uma vista de olhos. Meadows era um enigma para Bosch. Um viciado em comprimidos, um consumidor de herona, mas um soldado que se tinha voltado a alistar para continuar no Vietname. Mesmo depois de o terem tirado dos tneis, ele ficou. Em 1970, depois de dois anos de tneis, tinha sido colocado numa unidade da polcia militar ligada Embaixada Americana em Saigo. Nunca mais tinha visto o inimigo em aco, mas tinha ficado at ao fim. Depois do tratado e da retirada, em 1973, tinha sido desmobilizado e voltara a ficar, desta vez como um dos conselheiros civis ligados embaixada. Toda a gente estava a voltar para casa, excepto Meadows. S partiu a 30 de Abril de 1975, o dia da queda de Saigo. Estava num helicptero e depois num avio a transportar refugiados para fora do pas, a caminho dos Estados Unidos. Foi a sua ltima misso governamental: segurana no transporte em massa dos refugiados para as Filipinas e depois para os Estados Unidos. De acordo com os registos, Meadows ficou na Califrnia do Sul depois de ter voltado. Mas as suas aptides estavam limitadas polcia militar, assassino dos tneis e traficante de droga. Havia uma candidatura polcia de Los Angeles no dossier, mas estava assinalada como recusada. Tinha falhado nos testes de droga. A seguir, constava uma folha do Computador das Informaes Criminais Nacionais com todo o registo de Meadows. A primeira vez que fora preso, por posse de herona, tinha sido em 1978. Liberdade condicional. No ano seguinte, foi outra vez preso, desta vez por posse com inteno de vender. Confessou-se culpado de posse apenas e apanhou dezoito meses em Wayside Honor Rancho. Cumpriu dez. Os dois anos seguintes foram marcados por detenes frequentes por acusaes de abuso sendo marcas frescas de agulhas um delito para sessenta dias na cadeia. Parecia que Meadows no saa da porta giratria da cadeia do condado at 1981, quando foi dentro por um perodo de tempo mais substancial. Por tentativa de assalto, um crime federal. A folha do NCIC no dizia se tinha sido por assalto a um banco, mas Bosch calculou que devia ter sido para envolver os federais. A folha dizia que Meadows tinha sido condenado a quatro anos em Lompoc e tinha cumprido dois.

Tinha sado h poucos meses quando foi outra vez apanhado por assalto a um banco. Deviam t-lo assustado. Confessou-se culpado e voltou mais cinco anos para Lompoc. Teria sado passado trs anos, mas dois anos depois da sentena tinha sido apanhado numa tentativa de evaso. Apanhou mais cinco anos e foi transferido para Terminal Island. Meadows saiu de TI em liberdade condicional em 1988. Todos aqueles anos na choldra, pensou Bosch. Nunca soubera, nunca tinha sabido dele. O que que teria feito se tivesse sabido? Pensou naquilo durante um bocado. Provavelmente, aquilo tinha mudado Meadows mais do que a prpria guerra. Tinha sado em liberdade condicional para uma casa de apoio para veteranos do Vietname. Era um stio chamado Charlie Company e ficava numa quinta a norte de Ventura, a cerca de sessenta e cinco quilmetros de Los Angeles. Ficou l quase um ano. Depois disso, no havia registos de mais contactos, segundo a folha. As acusaes de posse de droga que tinham feito com que Meadows tivesse telefonado a Bosch um ano antes, no estavam registadas. No havia mais nenhuma folha. No havia mais nenhum contacto conhecido com a polcia desde que sara da priso. Havia mais uma folha no processo. Esta estava escrita mo e Bosch calculou que devia ser a letra clara e legvel de Wish. Era uma histria dos empregos e moradas. Coligidas das pesquisas dos registos da
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segurana Social e dos registos da DGV, as entradas desciam verticalmente do lado esquerdo do papel. Mas havia espaos em branco. Perodos de tempo no justificados. Meadows tinha trabalhado para os servios de abastecimento de gua da Califrnia do Sul quando voltara do Vietname. Era inspector das condutas. Perdeu o emprego seis meses depois por atrasos excessivos e demasiadas faltas por doena. Depois disso, deve ter tentado traficar herona porque a emprego legal seguinte s estava registado depois de ele ter sado de Wayside em 1979. Foi trabalhar para a DWP como inspector dos subterrneos na diviso das condutas de recolha das guas pluviais. Perdeu o emprego seis meses depois pelas mesmas razes do da companhia das guas. Seguiam-se alguns outros empregos espordicos. Depois de ter sado da Charlie Company tinha ido trabalhar para uma companhia de minas de ouro no Santa Clarita Valley durante alguns meses. E nada mais. Havia cerca de uma dzia de moradas registadas. A maior parte era de apartamentos em Hollywood. Havia uma casa em San Pedro antes de ter sido preso em 1979. Se estava a traficar nessa altura, provavelmente obtinha a droga no porto de Long Beach, pensou Bosch. A morada de San Pedro teria sido til. Bosch tambm ficou a saber que ele tinha vivido no apartamento de Sepulveda desde que tinha sado da Charlie Company. No havia nada no ficheiro sobre a casa de apoio ou sobre o que Meadows l tinha feito. Bosch descobriu o nome do agente da liberdade condicional de Meadows na cpia dos seus relatrios de avaliao no final dos seis meses. Daryl Slater, trabalhava em Van Nuys. Bosch tomou nota no caderno de apontamentos. Tambm escreveu a morada da Charlie Company. Depois espalhou a folha das prises, a histria dos empregos e das moradas e os relatrios da liberdade condicional frente dele. Numa folha de papel, comeou a escrever uma cronologia, comeando com Meadows a ser enviado para a priso federal em 1981. Quando acabou, muitos dos espaos em branco estavam preenchidos. Meadows tinha cumprido um total de seis anos e meio na priso federal. Tinha sado em liberdade condicional no princpio de 1988, quando tinha entrado para o programa da Charlie Company. Passara dez meses no programa antes de se mudar para o apartamento em Sepulveda. Os relatrios da condicional mostravam que ele tinha arranjado emprego na mina de ouro do Santa Clarita Valley. Terminara a condicional em 1989 e tinha largado o emprego no dia seguinte ao responsvel pela liberdade condicional ter assinado os papis. No voltara a ter nenhum emprego conhecido desde essa data, de acordo com a Administrao da Segurana Social. O IRS dizia que Meadows no tinha entregado nenhuma declarao desde 1988. Bosch foi cozinha, tirou uma cerveja do frigorfico e fez uma sanduche de fiambre e queijo. Ficou em p, junto ao lava-loua, a comer e a beber, tentando organizar mentalmente as coisas relativas ao caso. Estava convencido que Meadows tinha

andado a planear o golpe desde que sara de TI ou, pelo menos, desde que sara da Charlie Company. Tinha um plano. Trabalhou em empregos legtimos at acabar o perodo de liberdade condicional. Depois, despediu-se e o plano entrou em aco. Bosch tinha a certeza disso. E achava que era, por conseguinte, provvel, que tivesse sido ou na priso ou na casa de apoio que Meadows se tinha juntado aos homens que tinham assaltado o banco com ele. E que o tinham matado. Tocaram campainha. Bosch olhou para o relgio e viu que eram onze horas. Dirigiu-se porta e espreitou pelo culo e viu Eleanor Wish a olhar para ele. Recuou, deitou uma olhadela ao espelho no hall de entrada e viu um homem com cabelo escuro e olhos cansados a olhar para ele. Passou a mo pelo cabelo e abriu a porta. - Ol - disse ela. - Trguas? - Trguas. Como que sabia onde... no interessa. Entre. Ela vestia a mesma roupa, ainda no tinha ido a casa. Bosch percebeu que ela tinha dado conta dos ficheiros e papis espalhados na mesa. - Estava a fazer sero - disse ele. - A verificar umas coisas no dossier do Meadows. - ptimo. Um... Calhou estar aqui perto e s queria, s c vim para dizer que... Bem, tem sido uma semana terrvel at agora. Para os dois. Talvez amanh possamos recomear esta parceria. - Sim - disse ele. - E, escute, peo desculpa pelo que lhe disse h bocado... e lamento muito o que aconteceu ao seu irmo. Voc estava a tentar dizer uma coisa simptica e eu... Pode ficar um bocadinho, beber uma cerveja? Dirigiu-se cozinha e foi buscar duas garrafas frescas. Entregou-lhe uma e f-la passar pela porta de correr at varanda. Estava fresco, mas de vez em quando soprava um vento quente que vinha do lado escuro do desfiladeiro. Eleanor Wish olhou para as luzes do Valley. Os holofotes da Universal City varriam o cu num padro repetitivo. 168 169 - Isto muito bonito - disse ela.- Nunca tinha estado numa casa destas antes. a isto que chamam um cantilver? - Sim. - Deve ser assustador durante um tremor de terra. - assustador quando passa o camio do lixo. - Ento como que veio parar a um stio destes? - Umas pessoas, aquelas ali em baixo com os holofotes, deram-me uma data de dinheiro para usarem o meu nome e aquilo a que chamaram os meus conselhos tcnicos para um programa de televiso. E eu no tinha mais nada a fazer com ele. Quando era mido e vivia no Valley, estava sempre a pensar no que seria viver numa casa destas. Por isso, comprei-a. Pertencia a um argumentista de cinema. Era aqui que ele trabalhava. muito pequena. S tem um quarto cama. Mas acho que nunca irei precisar de mais. Ela encostou-se balaustrada e, percorrendo a encosta com o olhar, fixou-o no arroyo. Na escurido, s havia o contorno esbatido do bosque de carvalhos l em baixo. Ele tambm se encostou e, distraidamente, comeou a descascar bocadinhos da prata dourada do rtulo da cerveja e a atir-los fora. O ouro cintilava na escurido ao flutuar para longe da vista. - Tenho perguntas a fazer - disse ele. - Quero ir a Ventura. - Podemos falar disso amanh? No vim c para trabalhar nos ficheiros. Ando a ler esses ficheiros h quase um ano. Ele assentiu e ficou calado, decidindo deix-la chegar ao que a tinha trazido ali. Passado algum tempo, ela disse: - Deve estar muito zangado com o que lhe fizemos, a investigao, ns a investiglo. Depois o que aconteceu ontem. Lamento imenso. Bebeu um pequeno gole de cerveja e Bosch deu conta de que nem sequer lhe tinha perguntado se ela queria um copo. Deixou as palavras dela pairarem na escurido durante uns longos instantes. - No - disse, por fim. - No estou zangado. A verdade que no sei o que que estou. Ela voltou-se e olhou para ele.

- Ns pensmos que voc desistiria quando o Rourke lhe arranjou aquela chatice com o seu tenente. Claro, voc conhecia o Meadows, mas isso j tinha sido h muito tempo. isso que eu no entendo. Para si, isto no mais um caso qualquer. Mas porqu? Deve haver mais alguma coisa. L no Vietname? Porque que isto tem tanta importncia para si?
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- Calculo que tenho razes. Razes que no tm nada a ver com o caso. - Acredito. Mas quer acredite quer no, isso no o que me interessa. Estou a tentar perceber o que se passa. Preciso de saber. - Que tal est a cerveja? - ptima. Diga-me qualquer coisa, detective Bosch. Ele olhou para baixo e viu um bocadinho do letreiro dourado desaparecer na escurido. - No sei - disse ele. - Ou melhor, a verdade que sei e no sei. Acho que tem a ver com os tneis. Uma experincia partilhada. No nada do gnero de ele me ter salvado a vida ou eu ter salvado a dele. No assim to fcil. Mas sinto que h qualquer coisa que lhe devida. No interessa o que que ele fez ou em que tipo de falhado se tornou depois. Talvez devesse ter feito mais alguma coisa do que uns quantos telefonemas a seu favor no ano passado. No sei. - No seja tonto - disse ela. - Quando ele lhe telefonou no ano passado, j estava bem envolvido nesta tramia. Estava a us-lo nessa altura. At parece que tambm o est a usar agora, apesar de morto. J no tinha rtulo para descascar. Deu meia volta e encostou as costas ao parapeito. Com uma das mos, rebuscou na algibeira e tirou um cigarro. Meteu-o na boca, mas no o acendeu. - O Meadows - disse ele e abanou a cabea ao lembrar-se do homem -, O Meadows era especial... Naquela altura, ns todos no passvamos de um bando de garotos com medo do escuro. E aqueles tneis eram to horrivelmente escuros... Mas o Meadows, ele no tinha medo. Oferecia-se, oferecia-se de novo, voltava a oferecerse outra vez. Da luz para a escurido. Foi o que ele disse que era uma misso num tnel. Ns chamvamos-lhe eco negro. Era como descer ao inferno. Uma pessoa est l em baixo e consegue cheirar o prprio medo. Era como se estivssemos mortos quando l estvamos em baixo. Tinham-se ido virando gradualmente e agora estavam de frente um para o outro. Ele estudou-lhe a cara e viu aquilo que julgou ser simpatia. No sabia se era o que queria. J se tinha deixado disso h muito tempo. Mas no sabia o que queria. - Por isso, todos ns, esses garotos assustados, fizemos uma promessa. Sempre que algum descia para um desses tneis, fazamos uma promessa. A promessa era que, acontecesse o que acontecesse l em baixo, ningum seria deixado ficar para trs. No interessava se morrias l em baixo, no serias deixado ficar. Porque nos faziam coisas, sabe. Como os 171 nossos prprios operacionais de psicologia. E funcionava. Ningum queria ser deixado para trs, vivo ou morto. Uma vez, li num livro que no interessa se ests deitado debaixo de uma pedra tumular de mrmore numa colina ou no fundo de uma fossa de petrleo, quando ests morto, ests morto. Mas quem quer que escreveu isso no esteve l. Quando se est vivo, mas assim to perto da morte, pensa-se nestas coisas. E nessa altura interessa... e por isso, ns fizemos a promessa. Bosch sabia que no tinha explicado nada. Disse-lhe que ia buscar mais uma cerveja. Ela disse-lhe que estava bem assim. Quando ele voltou, ela sorriu-lhe, mas no disse nada. - Deixe-me contar-lhe uma histria acerca do Meadows - disse ele. - Est a ver, a maneira como eles resolviam as coisas era: destacavam uns quantos, talvez uns trs de ns, ratos dos tneis, para sairmos com uma companhia. Por isso, quando eles davam com um tnel, ns descamos, fazamos o reconhecimento, pnhamos as minas, o que fosse preciso. Bebeu um grande gole de cerveja fresca. - E, por isso, uma vez, isto devia ter sido em 1969, o Meadows e eu amos na retaguarda de uma patrulha. Estvamos num baluarte VC e, p, estava todo minado

de tneis. Seja como for, estvamos a uns quatro, cinco quilmetros de uma aldeia chamada Nhuan Luc quando perdemos um dos homens da frente. Ele foi... desculpe, provavelmente, no quer ouvir isto. Com o que aconteceu ao seu irmo e isso tudo. - Quero ouvir. Por favor. - Pois este batedor foi morto por um sapa que estava num buraco de aranha. Era o que chamvamos s pequenas entradas numa rede de tneis. Por isso, algum matou o sapa e eu e o Meadows tivemos que descer ao tnel para o inspeccionar. Descemos e tivemos imediatamente que nos separar. Era uma rede enorme. Eu fui por um dos tneis e ele por outro. Dissemos que amos avanar durante quinze minutos e depois colocvamos os explosivos com um tempo de espera de vinte minutos, depois voltvamos para trs e amos colocando mais ao longo do caminho... Lembro-me de ter encontrado um hospital l em baixo. Quatro esteiras vazias, um armrio de medicamentos, tudo ali, no meio do tnel. Lembro-me de ter pensado: Meu Deus, o que que vai estar ali ao virar da esquina, um cinema drivein ou qualquer coisa parecida? Quero dizer, aquela gente tinha-se enterrado ali dentro... Bem, de qualquer
VC-Vietcong. (N. T.)

das maneiras, havia um altarzinho e incenso a arder. Ainda a arder. Nessa altura, soube que eles ainda ali estavam, algures, os VCs, e assustei-me. Coloquei uma carga de explosivos e escondi-a atrs do altar e depois comecei a recuar o mais depressa que conseguia. Coloquei mais duas cargas no caminho, cronometrando tudo para rebentarem ao mesmo tempo. Chego ao stio da entrada, est a ver, ao buraco original da aranha, e nada de Meadows. Esperei cinco minutos e estava a ficar apertado. Ningum quer estar l em baixo quando o C-4 explode. Alguns daqueles tneis tm cem anos. Eu no podia fazer nada, por isso trepei l para fora. Ele tambm no estava l. Parou para beber um bocado de cerveja e pensou um bocado na histria. Ela observava-o atentamente, mas no o pressionou. - Minutos depois, os meus explosivos rebentaram e o tnel, ou pelo menos a parte onde eu tinha estado, veio abaixo. Quem quer que l estivesse estava morto e enterrado. Espermos um par de horas para o fumo e a poeira assentarem. Prendemos uma ventoinha Mighty Mite e atirmos ar para dentro da entrada do poo e depois conseguimos ver o fumo a ser empurrado para fora e a sair pelos respiradouros e pelos outros buracos de aranha espalhados por toda a selva. E quando ficou limpo eu e outro tipo entrmos procura do Meadows. Pensvamos que ele tinha morrido, mas tnhamos a promessa, acontecesse o que acontecesse, amos tir-lo de l e mand-lo para casa. Mas no o encontrmos. Passmos o resto do dia l em baixo procura, mas a nica coisa que encontrmos foram VCs mortos. A maior parte deles tinham sido mortos a tiro, alguns tinham a garganta cortada. Todos tinham as orelhas cortadas. Quando voltmos para cima, o comandante disse-nos que no podamos esperar mais tempo. Tnhamos recebido ordens. Fomo-nos embora e eu tinha quebrado a promessa. Bosch estava a olhar fixamente para a noite, sem ver nada a no ser a histria que estava a contar. - Dois dias depois, outra companhia passou pela aldeia, Nhuan Luc, e algum descobriu uma entrada para um tnel numa palhota. Mandaram os ratos deles l dentro e, ainda no tinham passado cinco minutos de l estarem dentro, deram com o Meadows. Estava sentado como um Buda num dos corredores. Sem munies. A dizer disparates. Sem fazer sentido, mas estava bem. E quando tentaram traz-lo com ele, no quis ir. Por fim, tiveram que o atar, prend-lo com uma corda e mandar a patrulha i-lo para fora. luz do Sol, viram que ele trazia um colar de orelhas humanas. Presas nas chapas de identificao. Acabou a cerveja e entrou em casa. Ela seguiu-o at cozinha onde ele foi buscar outra garrafa. Ela pousou a dela meio acabada em cima da bancada. - E esta a minha histria. O Meadows era assim. Foi para Saigo para se tratar, mas voltou. No conseguia estar longe dos tneis. Contudo, depois daquele, nunca mais foi o mesmo. Disse-me que se tinha baralhado e perdido l dentro. Estava sempre a ir na direco errada, matando tudo o que lhe aparecia pela frente. Diziase que havia trinta e trs orelhas no colar. Uma vez houve algum que me

perguntou porque que o Meadows tinha deixado que um dos VCs ficasse com uma orelha. Est a perceber, por o nmero ser mpar. E eu disse que o Meadows tinha deixado que todos ficassem com uma orelha. Ela abanou a cabea. Ele assentiu com a dele. Bosch disse: - Quem me dera t-lo encontrado daquela vez que voltei para o procurar. Abandonei-o. Ficaram parados a olhar para o cho da cozinha durante um bom bocado. Bosch deitou o resto da cerveja para o lava-loua. - S mais uma pergunta sobre a folha do Meadows e depois acabou-se o trabalho disse ele. - Ele foi metido em Lompoc por causa de uma tentativa de evaso. Depois foi mandado para TI. Sabe alguma coisa disso? - Sei. E era um tnel. Tinham confiana nele e trabalhava na lavandaria. Os secadores a gs tinham ventiladores subterrneos que passavam por baixo do edifcio. Escavou por baixo de um deles. No mais do que uma hora por dia. Disseram que, provavelmente, ele tinha andado naquilo durante seis meses antes de o descobrirem, quando os aspersores que eles usam no campo de jogos durante o Vero amoleceram o cho e este cedeu. Ele assentiu com a cabea. Tinha pensado que devia ter sido um tnel. - Os outros dois metidos naquilo - continua ela. - Um traficante de droga e um ladro de bancos. Ainda esto dentro. No tm nenhuma ligao com isto. Voltou a assentir com a cabea. - Acho que melhor ir-me embora agora - disse ela. - Temos muita coisa para fazer amanh. - Sim. Eu tenho mais uma data de perguntas. Tentarei responder, se puder.

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Passou rente a ele no pequeno espao entre o frigorfico e a bancada e saiu para o corredor. Ele conseguiu sentir-lhe o perfume quando ela passou. Um cheiro a ma, pensou ele. Reparou que ela estava a olhar para o quadro pendurado na parede oposta ao espelho do corredor. Estava dividido em trs seces emolduradas separadamente e era uma reproduo de uma pintura do sculo quinze chamada o Jardim das Delcias. O pintor era holands. - Hieronymus Bosch - disse ela enquanto estudava a paisagem de pesadelo do quadro. - Quando vi que era o seu nome completo, interroguei-me se... - No h nenhuma relao - interrompeu ele. - A minha me, bem, ela gostava das coisas dele. Calculo que por causa do apelido. Mandou-me esse quadro uma vez. Disse numa nota que lhe lembrava L. A. Todas essas pessoas malucas. Os meus pais adoptivos... eles no gostavam dele, mas eu guardei-o durante muitos anos. Tenho-o aqui pendurado h tanto tempo quanto tenho a casa. - Mas gosta que lhe chamem Harry. - Sim, gosto de Harry. - Boa noite, Harry. Obrigada pela cerveja. - Boa noite, Eleanor... Obrigado pela companhia. PARTE IV Quarta-feira, 23 de Maio

10 da manh, estavam na auto-estrada de Ventura, que atravessa o fundo do Vale de San Francisco para sair da cidade. Bosch ia a guiar e seguiam na direco contrria corrente do trnsito, em direco a nordeste, para Ventura County, deixando para trs o manto de poluio que enchia o Valley como um creme sujo numa tigela. Iam para a Charlie Company. O FBI tinha feito apenas uma investigao superficial de Meadows durante um programa extensivo da priso, no ano anterior. Eleanor Wish disse que tinha pensado que era de importncia mnima visto que a estadia de Meadows tinha terminado um ano antes do crime do tnel. Disse que o FBI tinha pedido uma cpia do processo de Meadows, mas que no tinha verificado os nomes dos outros presos que faziam parte do programa na mesma altura que Meadows.

Bosch achava que tinha sido um erro. O registo dos empregos de Meadows indicava que o assalto ao banco fazia parte de um plano que levara muito tempo a preparar, disse ele a Wish. O assalto ao banco podia muito bem ter sido congeminado na Charlie Company. Antes de sair, Bosch tinha telefonado ao agente da liberdade condicional de Meadows, Daryl Slater, e tinha recebido informaes detalhadas sobre a Charlie Company. Slater disse-lhe que o stio era uma quinta de produtos hortcolas, gerida pelo proprietrio que era um coronel do exrcito que se tinha reformado e renascido. Tinha um acordo com o estado e as prises federais para receber indivduos recm sados da priso com a nica condio de serem veteranos da guerra do Vietname. Isso no era uma exigncia difcil de cumprir, disse Slater. Como em todas as outras prises do pas, as prises da Califrnia tinham uma grande populao de veteranos do Vietname. Gordon Scales, o antigo coronel, no se interessava com o tipo de crimes que os veteranos pudessem ter 177 cometido. S queria voltar a p-los no bom caminho. O pessoal da quinta compreendia trs pessoas, incluindo o prprio Scales, e no recebiam mais de vinte e quatro homens de cada vez. Trabalhavam nos campos das seis s trs, parando apenas uma hora para o almoo ao meio-dia. Depois do dia de trabalho, havia uma sesso de uma hora denominada conversa da alma, depois o jantar e a televiso. Outra hora de religio antes das luzes se apagarem. Slater disse que Scales utilizava as suas ligaes com a comunidade para arranjar empregos para os veteranos quando eles se encontravam prontos para enfrentar o mundo exterior. Em seis anos, a Charlie Company tinha uma percentagem de recidivas de apenas 11%. Um nmero to invejvel que Scales tinha recebido uma referncia favorvel num discurso do presidente durante a sua ltima campanha eleitoral pelo estado. - O homem um heri - disse Slater. - E no por causa da guerra. Por causa do que fez depois. Quando uma pessoa tem um stio como aquele, onde movimenta entre trinta a quarenta reclusos por ano, e s um em dez volta a malhar com os ossos na cadeia, ento estamos a falar de um mrito sensacional. Scales tem uma influncia enorme nas comisses da liberdade condicional estatais e federais e em metade dos directores das prises deste estado. - Quer dizer que ele escolhe quem que vai para a Charlie Company? - perguntou Bosch. - Talvez no seja exactamente escolher, mas d a aprovao final, sim - disse o agente da Liberdade Condicional. Mas o nome deste homem j se espalhou. conhecido em todos os blocos de celas onde haja um veterano a cumprir pena. Estes tipos vo ter com ele. Escrevem cartas, mandam Bblias, telefonam, pedem aos advogados que o contactem. Tudo para conseguirem que o Scales se responsabilize por eles. - Foi assim que o Meadows foi l parar? - Tanto quanto sei, foi. J ia para l quando mo entregaram. Vai ter de telefonar para a Terminal Island e pedir-lhes que consultem os arquivos. Ou falar com o Scales. Bosch informou Eleanor Wish da conversa quando j iam na estrada. Fora isso, foi uma longa viagem com grandes perodos de silncio. Bosch passou muito tempo a pensar na noite anterior. Na visita dela. Por que que ela l tinha ido? Depois de entrarem em Ventura County, voltou a concentrar-se no caso e fez-lhe algumas perguntas de que se tinha lembrado na noite anterior quando lia o processo. - Por que que eles no entraram na caixa-forte principal? No Westland h duas caixas-fortes. A dos depsitos e a do banco, para as transaces a dinheiro e para as caixas multibanco. Os relatrios da cena do crime diziam que a planta das duas caixas-fortes eram iguais. A dos cofres era maior, mas a blindagem do cho era a mesma. Por isso, d ideia que Meadows e os scios podiam ter feito o tnel at caixa-forte principal com a mesma facilidade, e depois podiam ter entrado, agarrado no que l havia e sado. No precisavam de ter corrido o risco de passar todo o fim-de-semana l dentro. Nem tinham precisado de rebentar com os cofres. - Talvez no soubessem que eram iguais. Talvez julgassem que a caixa principal seria mais difcil. - Mas ns estamos a partir do princpio que eles tinham alguns conhecimentos da

estrutura da caixa-forte antes de terem comeado a trabalhar nisto. Por que que no tinham as mesmas informaes em relao outra? - Eles no podiam fazer o reconhecimento da caixa-forte principal. No est aberta ao pblico. Mas pensamos que um deles alugou um cofre na caixa-forte e foi l dentro para a inspeccionar. Usou um nome falso, claro. Mas, est a ver, podiam inspeccionar uma das caixas-fortes, mas a outra no. Bosch assentiu com a cabea e perguntou: - Quanto que havia na caixa-forte principal? - Assim, de repente, no sei. Devia estar nos relatrios que lhe entreguei. Se no est, est nos outros que esto no Departamento. - Mas mais, certo? Havia mais dinheiro na caixa-forte principal do que os dois ou trs milhes em bens que eles tiraram dos cofres. - Acho que deve ter razo. - Est a perceber o que que lhe estou a dizer? Se eles tivessem entrado na caixaforte principal, o material teria l estado em sacos ou pilhas. Ali mesmo mo para eles o poderem levar. Teria sido mais fcil. Provavelmente, teria havido muito mais dinheiro e muito menos trabalho. Mas, Harry, ns sabemos isso posteriori. Quem sabe o que que eles sabiam quando l entraram? Se calhar, julgavam que havia muito mais nos cofres. Apostaram e perderam. - Ou talvez tenham ganhado. - Ela olhou para ele. - Talvez houvesse outra coisa nos cofres que ns nem sequer imaginamos. Que ningum declarou ter sido roubada. Qualquer coisa que fazia com que a caixa-forte dos depsitos fosse um alvo melhor. Que a fizesse valer mais do que a outra. - Se est a pensar em droga, a resposta no. Pensmos nisso. Pedimos DEAo para l ir e levar um dos ces e ele vasculhou todos os cofres abertos. Nada. Nem vestgios de droga. Depois farejou volta dos cofres que os ladres no tinham chegado a arrombar e escolheu um. Um dos mais pequenos. Riu-se por uns instantes e depois continuou: - Por isso, quando arrombmos este cofre que tinha posto o co maluco, descobrimos cinco gramas de coca num saco. O desgraado que guardava o seu fornecimento de coca no banco foi preso s porque, por puro acaso, algum se tinha lembrado de abrir um tnel para entrar l. Eleanor voltou a rir-se, mas Bosch achou que era um riso um bocado forado. A histria no tinha assim tanta graa. - Bem, seja como for, o caso contra o tipo foi anulado por um representante do Ministrio Pblico porque disse que tinha sido uma busca ilegal. Tnhamos violado a privacidade do tipo quando arrombmos o cofre sem um mandado. Bosch saiu da auto-estrada para a cidade de Ventura e continuou para norte. - Continuo a gostar da teoria da droga, apesar do co - disse ele ao fim de um quarto de hora de silncio. - Eles no so infalveis, esses ces. Se a coisa estivesse bem empacotada e os ladres a levaram, podia no ter deixado nenhum vestgio. Um par de cofres com coca l dentro e o crime comea a valer a pena. - A prxima pergunta vai ser sobre as listas dos clientes, certo? - perguntou ela. - Certo. - Bem, ns tivemos um trabalho com isso. Investigmos toda a gente, chegando mesmo a investigar as compras das coisas que eles diziam que estavam nos cofres. No descobrimos quem assaltou o banco, mas, provavelmente, poupmos s companhias de seguros do banco uns dois milhes por no terem de pagar por coisas que foram dadas como roubadas e que nunca tinham existido. Bosch parou numa bomba de gasolina para poder tirar um mapa debaixo do banco e procurar o caminho para a Charlie Company. Ela continuou a defender as investigaes do FBI.
DEA Drug Enforcement Administration. (N. T.)

- A DEA investigou todos os nomes na lista dos donos dos cofres e no descobriu nada. Ns introduzimos os nomes no NCIC. Encontrmos alguns nomes, mas nada de srio, a maior parte eram coisas antigas. - Soltou mais uma daquelas gargalhadinhas falsas. - Um dos donos de um dos cofres maiores tinha uma condenao por pornografia com crianas nos anos setenta. Tinha cumprido pena em Soledad. Bem, depois do assalto ao banco, foi contactado, mas disse que no

lhe tinham roubado nada, disse que tinha esvaziado o cofre h pouco tempo. Mas dizem que os pedfilos nunca se conseguem separar dos seus materiais, das fotografias e dos filmes, at mesmo das cartas escritas sobre os garotos. E no banco no havia nenhum registo de ele ter ido ao cofre nos dois ltimos meses antes do roubo. Por isso, calculmos que o cofre lhe servia para guardar a coleco. Mas, de qualquer maneira, aquilo no tinha nada a ver com o crime. Nada do que descobrimos tinha. Bosch descobriu o caminho no mapa e saiu da bomba de gasolina A Charlie Company ficava na zona dos pomares. Pensou na histria dela sobre o pedfilo. Havia qualquer coisa que no lhe soava bem. Revolveu-a na cabea, mas no descobriu o que era. Deixou-a ficar a pairar e passou para outra pergunta. - Por que que nunca se recuperou nada? Todas aquelas jias, aces e obrigaes e no aparece nada, excepto uma pulseira. Nem sequer nenhuma das outras coisas sem valor que foram levadas. - Esto a guard-las at se sentirem seguros - respondeu Eleanor. - Foi por isso que o Meadows foi liquidado. Saiu da linha e empenhou a pulseira antes de o poder ter feito, se calhar antes de todos concordarem que j no havia perigo. Eles descobriram que ele a tinha vendido. Ele no quis dizer aonde e eles deram-lhe choques elctricos at ele falar. E depois mataram-no. - E, por coincidncia, sou eu que sou chamado. - Acontece. - H qualquer coisa nessa histria que no est certa - disse Bosch. - Comeamos com o Meadows a ser espremido, torturado, certo? Ele diz-lhes o que eles querem, eles injectam-no no brao com uma carga valente e vo buscar a pulseira loja de penhores. Certo? - Certo. - Mas, est a ver, isso no funciona. Eu tenho a cautela. Estava escondida. Por isso, ele no a deu e eles tiveram que assaltar a loja e levar a pulseira, disfarando o que queriam levando outras coisas. Por isso, se ele no lhes deu a cautela, como que eles souberam onde que estava a pulseira? - Penso que ele lhes disse - respondeu Eleanor. - No me parece. No o vejo a dar uma coisa e a no dar a outra. No tinha nada a ganhar por guardar a cautela. Se eles conseguiram arrancar-lhe o nome da loja, tambm teriam conseguido o papel. - Ento, voc est a dizer que ele morreu antes de lhes dizer fosse o que fosse. E eles j sabiam que a pulseira tinha sido empenhada. - Certo. Eles torturaram-no para conseguirem a cautela, mas ele resistiu, no cedeu. Mataram-no. Depois livraram-se do corpo e revolveram a casa. Mas continuaram a no encontrar o papel. Por isso, assaltaram a loja de penhores como se fossem ladres de terceira categoria. A pergunta : se o Meadows no lhes disse onde que tinha empenhado a pulseira e eles no descobriram a cautela, como que sabiam onde que ela estava? - Harry, isso especulao em cima de especulao. - o que os chuis fazem. - Bem, no sei. Podem ter sido uma data de coisas. Eles podiam andar a seguir o Meadows porque no confiavam nele e viram-no entrar na loja. Podem ter sido uma data de coisas. - E pode ser que eles tivessem tido uma pessoa, um chui, por exemplo, que viu a pulseira nas folhas mensais das casas de penhores e lhes disse. As folhas vo para todos os departamentos da polcia do pas. - Acho que esse tipo de especulao irresponsvel. Tinham chegado. Bosch reduziu a velocidade numa entrada de cascalho por baixo de um letreiro de madeira com uma grande guia verde l pintada e as palavras Charlie Company. O porto estava aberto e eles seguiram por uma estrada de cascalho com valas de irrigao de ambos os lados. A estrada dividia a quinta, tomates do lado direito e aquilo que pareciam pimentos do lado esquerdo. Mais frente, havia um enorme celeiro com os lados em alumnio e uma casa baixa ao estilo dos ranchos. Atrs deles, Bosch viu um pomar de rvores de abacate. Entraram numa zona de estacionamento circular em frente da casa e Bosch desligou o motor.

Um homem com um avental branco que estava to limpo como a cabea rapada dele apareceu porta de rede da entrada da frente. - O senhor Scales est? - perguntou Bosch. - O coronel Scales? No, no est, mas so quase horas do almoo. Nessa altura, ele volta dos campos. O homem no os convidou a entrar para sarem do Sol e, por isso, Bosch e Eleanor voltaram para trs e sentaram-se no carro. Poucos minutos depois, chegou uma empoeirada carrinha pickup branca. Tinha uma guia dentro de uma grande letra pintada na porta do condutor. Saram trs homens da cabina e mais seis saltaram das traseiras. Moveram-se rapidamente para a casa. Iam dos trinta e tais aos quarenta e muitos. Vestiam calas da tropa verdes e T-shirts brancas, ensopadas de suor. Nenhum trazia bandana, culos escuros ou mangas arregaadas. Nenhum tinha o cabelo mais comprido do que meio centmetro. Os homens brancos estavam to queimados que pareciam de madeira castanha manchada. O condutor, com o mesmo uniforme, mas com pelo menos mais dez anos, parou e deixou que os outros entrassem. Enquanto ele se aproximava, Bosch deu-lhe sessenta e poucos anos, mas era um tipo quase to slido como tinha sido aos vinte. O cabelo, o que se podia ver no crnio cintilante, era branco e a pele parecia casca de noz. Calava luvas escuras. - Desejam alguma coisa? - perguntou ele. - Coronel Scales? - disse Bosch. - Exactamente. So da polcia? Bosch assentiu e fez as apresentaes. Scales no pareceu muito impressionado, mesmo com a meno do FBI. - Lembra-se que aqui h uns sete, oito meses, o FBI lhe pediu informaes sobre um William Meadows que esteve algum tempo c? - perguntou Eleanor Wish. - Claro que me lembro. Lembro-me de todas as vezes que a vossa gente telefona ou aparece por c a fazer perguntas sobre os meus rapazes. No gosto nada, por isso lembro-me. Querem informaes sobre o Billy? Ele est metido nalgum sarilho? - Agora j no est - respondeu Bosch. - O que que isso quer dizer? - perguntou Scales. - At parece que est a dizer que ele morreu. - No sabia? - perguntou Bosch. - Claro que no. Conte-me o que que lhe sucedeu. Bosch pensou que via uma expresso de genuna surpresa e depois uma breve sombra de tristeza passou pelo rosto de Scales. A notcia tinha dodo. - Foi encontrado morto h trs dias em L. A. Homicdio. Pensamos que est relacionado com um crime em que ele esteve envolvido no ano passado e de que o senhor deve ter ouvido falar quando o FBI o contactou. 182 183 - Aquela coisa do tnel? No banco de L.A.? - perguntou ele. - Sei aquilo que o FBI me contou. Mais nada. - Tudo bem - disse Eleanor Wish. - O que precisamos de si uma informao mais completa sobre quem aqui estava na altura do Meadows. J cobrimos isto anteriormente, mas estamos a fazer uma reverificao, procura de qualquer coisa que possa ajudar. Est disposto a cooperar connosco? - Eu coopero sempre com vocs. No gosto porque metade das vezes acho que vocs tm informaes erradas. A maior parte dos meus rapazes, quando eles saem daqui, no voltam a pisar o risco. Temos um bom recorde aqui. Se o Meadows fez aquilo que esto a dizer que ele fez, a excepo. - Ns compreendemos isso - disse ela. - E isto ser estritamente confidencial. - Est bem, venham para o meu gabinete e podem perguntar tudo o que quiserem. Quando entraram pela porta da frente, Bosch viu duas mesas compridas naquilo que provavelmente era a sala do rancho. Cerca de vinte homens estavam sentados frente de pratos com o que parecia serem bifes fritos de frango e montes de vegetais. Nenhum olhou para Eleanor Wish. Isto porque estavam a dar graas silenciosamente, com as cabeas baixas, olhos fechados, mos postas. Bosch viu tatuagens em quase todos os braos. Quando acabaram a orao, um coro de garfos bateu nos pratos. Uns quantos dos homens tiraram ento algum tempo para

olhar apreciadoramente para Eleanor. O homem de avental que tinha vindo porta anteriormente, estava agora parado porta da cozinha. - Coronel, o senhor vai comer com os homens hoje? - perguntou ele. Scales assentiu, dizendo: - Estou despachado dentro de poucos minutos. Percorreram um corredor e entraram pela primeira porta num gabinete que devia ter sido um quarto de dormir. Estava atravancado com uma secretria com um tampo do tamanho de uma porta. Scales apontou para duas cadeiras frente dela e Bosch e Eleanor sentaram-se enquanto ele se instalava no enorme cadeiro estofado atrs da secretria. - Ora bem, eu sei exactamente o que sou obrigado por lei a dizer-vos e aquilo de que nem sequer sou obrigado a falar-vos. Mas estou disposto a fazer mais se isso ajudar e se chegarmos a um acordo. O Meadows... Eu a modos que sabia que ele ia acabar como vocs dizem que acabou. 184 Rezei ao Bom Deus que o guiasse, mas sabia. Vou ajudar-vos. Ningum deve tirar uma vida num mundo civilizado. Absolutamente ningum. - Coronel - comeou Bosch -, agradecemos a sua ajuda. Quero que saiba, primeiro que tudo, que sabemos o tipo de trabalho que o senhor tem feito aqui. Sabemos que tem o respeito e o apoio tanto das autoridades estaduais como das autoridades federais. Mas a nossa investigao do caso Meadows leva-nos a concluir que ele estava envolvido numa conspirao com outros homens que tinham as mesmas capacidades do que ele e... - Est a dizer que eram veteranos - interrompeu Scales. Estava a encher um cachimbo com tabaco de uma caixa em cima da secretria. - Possivelmente. Ainda no os identificmos, por isso, no podemos ter a certeza. Mas se for esse o caso, parece que h a possibilidade dos conspiradores se terem encontrado aqui. Sublinho a palavra possibilidade. Por conseguinte, h duas coisas que queremos do senhor. Poder ver os registos que ainda tem do Meadows e uma lista de todos os homens que aqui estavam durante os dez meses que ele esteve c. Scales estava a calcar o cachimbo e, aparentemente, no ligou nenhuma ao que tinha sido acabado de dizer. Por fim, disse: - No h qualquer problema com os registos dele... est morto. Por outro lado, suponho que deveria telefonar ao meu advogado para ter a certeza que posso fazer isso. Temos um bom programa aqui. E vegetais e dinheiro do estado, mas o FBI no cobre nada disto. Dependemos das dzimas da comunidade, das organizaes cvicas, coisas assim. A m publicidade secar esse dinheiro mais depressa do que um vento de Santa Ana. Vou ajudar-vos, vou arriscar. O outro risco perder a confiana dos homens que vm para aqui para terem uma segunda oportunidade. Esto a ver, a maior parte desses homens que estava c quando o Meadows estava, eles criaram vidas novas. J no so criminosos. Se eu me ponho a dar os nomes deles a todos os chuis que aparecem, isso no dar uma imagem muito bonita do meu programa, pois no? - Coronel Scales, no temos tempo para pormos advogados a analisar isto disse Bosch. um caso de homicdio. Precisamos destas informaes. O senhor sabe que as podemos obter se formos para os departamentos estaduais e federais, mas isso ainda levaria mais tempo que o seu advogado. Tambm podemos conseguir tudo com uma intimao, mas pensmos que uma cooperao mtua seria o melhor. Estaremos muito mais dispostos a ser brandos se tivermos a sua cooperao. 185 Scales no se mexeu e, mais uma vez, pareceu no estar a ouvir. Um anel de fumo azul rodopiou como um fantasma do fornilho do cachimbo. - Estou a ver - disse ele, por fim. - Nesse caso, o melhor eu ir buscar esses arquivos, no verdade? Levantou-se e dirigiu-se para uma fila de armrios de arquivos beiges que forravam a parede atrs da secretria. Escolheu uma gaveta com as letras M-N-O e depois de uma curta busca tirou um ficheiro fino. Deixou-o cair em cima da secretria ao p de Bosch. - Esse o processo do Meadows - disse ele. - Agora vamos ver que mais que

podemos encontrar aqui. Foi primeira gaveta, que no tinha nada escrito no carto da ranhura. Foi correndo os processos sem tirar nenhum para fora. Por fim, escolheu um e sentouse com ele. - Podem ler esse ficheiro vontade e eu posso fazer-lhes cpias de qualquer coisa que precisem dele - disse Scales. - Este o meu organigrama principal relativo s pessoas que passam por c. Posso fazer-lhes uma lista de todas as pessoas que o Meadows c pode ter conhecido. Suponho que precisem de DNs e PINs? - Seria uma grande ajuda, obrigado - disse Eleanor. Levaram apenas quinze minutos a ler todo o processo de Meadows. Ele tinha iniciado uma correspondncia com Scales no ano anterior a ser libertado de TI. Tinha o apoio de um capelo e de um conselheiro interno que o conhecia porque ele tinha sido destacado para a manuteno do gabinete das admisses e colocaes da priso. Numa das cartas, Meadows descrevera os tneis em que tinha estado no Vietname e como se tinha sentido atrado pela sua escurido. A maior parte dos outros tipos tinham medo de descer l para dentro, escreveu ele. Eu queria ir. Nessa altura no sabia porqu, mas, agora, penso que estava a testar os meus limites. Mas a realizao pessoal que obtive disso era falsa. Eu era to oco como o cho onde estvamos a lutar. A realizao pessoal que agora tenho est em Jesus Cristo e em saber que Ele est comigo. Se me derem oportunidade e com a orientao Dele, desta vez sou capaz de fazer as escolhas certas e deixar estas grades para trs para sempre. Quero passar do cho oco para o cho consagrado. - Piroso, mas bastante sincero, acho eu - disse Eleanor. Scales levantou os olhos da secretria onde estava a escrever nomes, datas de nascimento e os nmeros de identificao da priso numa folha de papel amarelo. - Era sincero - disse ele numa voz que sugeria que no havia outra alternativa. Quando o Billy Meadows saiu daqui, eu pensava, acreditava sinceramente que ele estava preparado para o exterior e que tinha largado as antigas alianas com as drogas e o crime. bvio que voltou a cair nessas tentaes. Mas duvido que vocs os dois encontrem aqui aquilo de que andam procura. Eu dou-vos estes nomes, mas eles no os vo ajudar. - Veremos - respondeu Bosch. Scales voltou para a sua escrita e Bosch observou-o. Estava demasiado consumido pela sua f e lealdade para ver que podia ter sido usado. Bosch acreditava que Scales era bom homem, mas um homem que era talvez demasiado rpido a ver as suas crenas e esperanas noutra pessoa, numa pessoa como o Meadows, por exemplo. - Coronel, o que que o senhor ganha com isto tudo? - perguntou Bosch. Desta vez, ele pousou a caneta, ajustou o cachimbo no maxilar cerrado, cruzou as mos e respondeu: - No o que eu ganho. o que o Senhor ganha. Voltou a agarrar na caneta, mas depois ocorreu-lhe outra ideia. - Sabe, estes rapazes estavam destrudos de tantas maneiras quando regressaram. Eu sei, uma histria velha e j toda a gente a ouviu, toda a gente viu os filmes. Mas estes homens tiveram de a viver. Milhares regressaram e marcharam, literalmente, para as prises. Um dia, estava a ler sobre isso e perguntei para comigo como teria sido se no tivesse havido uma guerra e estes rapazes nunca se tivessem ido embora. Teriam ficado em Omaha, em Los Angeles, em Jacksonville, New Ibria e sei l que mais. Teriam continuado a ir parar priso? Teriam dado em desalojados, vagabundos e casos mentais? Drogados? Para a maioria deles, duvido. Foi a guerra que lhes fez isso, que os empurrou para o mau caminho. Puxou com toda a fora no cachimbo apagado. - Por isso, tudo o que eu fao, com a ajuda da terra e de alguns livros de oraes, tentar voltar a meter dentro deles aquilo que a experincia do Vietname lhes tirou. E sou bastante bom nisso. por isso que vos estou a dar esta lista, a deixar-vos ler esse dossier. Mas no estraguem o que ns aqui temos. Vocs os dois sentem uma desconfiana natural em relao se o que se passa aqui est certo. saudvel para pessoas na vossa posio. Mas tenham cuidado com o que h de bom aqui. Detective Bosch, o senhor parece-me ter a idade certa, tambm l esteve?

Bosch assentiu com a cabea e Scales disse: 186 187 - Ento sabe. Voltou a concentrar-se na lista. Sem levantar os olhos, perguntou: - Querem fazer-nos companhia para o almoo? Os vegetais mais frescos do pas na nossa mesa. Eles recusaram e levantaram-se depois de Scales ter entregue a Bosch a lista com os nomes dos vinte e quatro homens que tinha encontrado. Quando Bosch se virou para a porta, hesitou e perguntou: - Coronel, importa-se que eu lhe pergunte que outros veculos tem aqui na quinta? J vi a carrinha. - No nos importamos que pergunte porque no temos nada a esconder. Temos mais duas carrinhas de caixa aberta iguais quela, dois John Deeres e um veculo de traco s quatro rodas. - Que tipo de veculo de traco s quatro rodas? - Um jipe. - E de que cor? - Branco. Porqu? Passa-se alguma coisa? - Estou apenas a tentar clarificar umas coisas. Mas calculo que o jipe tem o emblema da Charlie Company na porta, tal como a carrinha? - Exactamente. Todos os nossos veculos esto identificados. Quando vamos a Ventura, temos orgulho no que conseguimos realizar. Queremos que as pessoas saibam de onde vm os vegetais. Bosch no olhou para os nomes da lista at estar dentro do carro. No reconheceu nenhum, mas reparou que Scales tinha escrito as letras PH a seguir a oito dos vinte e quatro nomes. - O que que isso quer dizer? - perguntou Eleanor quando se inclinou para tambm ver a lista. - Purple Heart1 - respondeu Bosch. - Mais uma maneira de dizer para termos cuidado, acho eu. - E quanto ao jipe? - perguntou ela. - Ele disse que branco e que tem um emblema na porta. - Viu como a carrinha estava suja. Um jipe branco sujo, podia ter parecido beige. Se for o jipe certo. - Ele no tem nada o tipo. O Scales. Parece-me honesto. - Se calhar . Se calhar so as pessoas a quem ele empresta o jipe. No quis insistir no assunto at sabermos mais.
Medalha atribuda a um membro das foras armadas americanas que foi ferido em combate. (N. T.)

Ps o carro a trabalhar desceram a estrada de cascalho at ao porto. Bosch abriu a janela. O cu estava da cor de jeans desbotados e o ar era invisvel e limpo e cheirava a pimentos verdes frescos. Mas no por muito tempo, pensou Bosch. Agora vamos voltar para a porcaria. No caminho de volta cidade, Bosch desviou-se da auto-estrada de Ventura e seguiu para sul pelo Malibu Canyon at ao Pacifico. Iam levar mais tempo, mas o ar limpo era como uma droga. Ele queria t-lo durante o mais tempo possvel. - Quero ver a lista das vtimas - disse ele depois de terem percorri-do o desfiladeiro sinuoso e a superfcie azul do oceano j se avistar ao longe. - Aquele pedfilo que referiu. H qualquer coisa nessa histria que me est a chatear. Por que que eles haviam de levar a coleco de garotos do tipo? - Harry, v l, no vai sugerir que foi uma razo, que estes tipos escavaram um tnel durante semanas e depois fizeram explodir o cho da caixa forte de um banco para roubar uma coleco de pornografia de midos? - Claro que no. Mas isso que me levanta a questo. Por que que eles levaram a coisa? - Bem, se calhar queriam-na. Se calhar um deles era pedfilo e gostou. Quem sabe? - Ou talvez fizesse tudo parte do disfarce. Levar tudo de todos os cofres que rebentaram para esconder o facto de que aquilo que eles realmente queriam era um cofre s. Sabe como , uma maneira de esborratar o quadro, por assim dizer,

arrombando dzias de cofres. Mas o alvo foi sempre qualquer coisa que estava num s cofre. O mesmo princpio do assalto loja de penhores: levar uma data de jias para esconder que s queriam a pulseira. - Mas com a caixa-forte, eles queriam qualquer coisa que depois no iria ser declarada como roubada. Qualquer coisa que no podia ser declarada como roubada porque iria meter o dono numa alhada grave. Como com o pedfilo. Quando lhe roubaram o material, o que que ele podia dizer? Era de uma coisa desse gnero que os ladres andavam procura, s que muito mais valiosa. Qualquer coisa que faria com que assaltar a caixa-forte dos depsitos fosse muito mais interessante do que assaltar a caixa-forte, propriamente dita. - Qualquer coisa que fez com que se tornasse necessrio matar o Meadows quando ele ps em perigo toda a operao ao empenhar a pulseira. 188 189 Ela estava calada. Bosch olhou para ela, mas por trs dos culos escuros, ela era impenetrvel. - Parece-me que est outra vez a falar de drogas - disse ela passado um bocado. - E o co disse que no havia drogas. A DEA no encontrou nenhumas ligaes na nossa lista de clientes. - Talvez sejam drogas ou talvez no. Mas por isso que devemos voltar a olhar para a lista dos donos dos cofres. Eu quero ver a lista. Quero ver se h alguma coisa que me faa ver luz. As pessoas que no declararam nada roubado. por elas que quero comear. - Eu arranjo a lista. De qualquer das maneiras, no temos mais nada que fazer. - Bem, temos de ver estes nomes que o Scales nos deu - disse Bosch. - Estava a pensar em levarmos as fotografias ao Sharkey. - Bem, acho que vale a pena tentar. Pelo menos, estamos a tentar. - No sei. Acho que o rapaz est a esconder qualquer coisa. Penso que ele capaz de ter visto uma cara naquela noite. - Deixei um memorando ao Rourke sobre a hipnose. Provavelmente, ele vai dizernos alguma coisa hoje ou amanh. Apanharam a Pacific Coast Highway que contornava a baa. A nvoa da poluio tinha sido empurrada para terra e estava suficientemente lmpido para se poder ver Catalina Island. Pararam no Aliceos Restaurante para almoar e, uma vez que j era tarde, havia uma mesa livre ao p da janela. Eleanor Wish pediu um ch gelado e Bosh uma cerveja. - Costumava vir a este cais quando era mido - contou-lhe Bosch. - Eles metiam-nos num autocarro e levavam-nos a passear. Nessa poca, havia uma loja de isco l na ponta. Eu costumava pescar olhos de boi. - Midos do DYS1? - Sim. Bem, no. Nessa altura, chamava-se DPS2. Departamento dos Servios Pblicos. H alguns anos atrs, compreenderam finalmente que precisavam de um departamento inteiro para os midos, por isso apareceram com o DYS. Ela olhou pela janela do restaurante para a ponta do cais. Sorriu com as recordaes dele e ele perguntou-lhe onde que estavam as dela. - Por todo o lado. O meu pai era militar. Nunca passei mais de dois anos no mesmo stio. Por isso, as minhas recordaes no so de lugares, mas de pessoas.
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190 - Voc e o seu irmo eram muito chegados?- perguntou-lhe Bosch. - Sim, como sempre fora com o meu pai. Ele estava sempre l. At que se alistou e foi-se embora para sempre. Trouxeram as saladas para a mesa e eles comeram um bocadinho, tagarelaram um bocadinho e depois, a determinada altura, entre a empregada ter tirado os pratos da salada e ter posto os pratos para o almoo, ela contou-lhe a histria do irmo. - Todas as semanas ele escrevia-me de l e todas as semanas me dizia que tinha medo, que queria voltar para casa - disse ela. - No era uma coisa que ele pudesse dizer ao nosso pai, ou nossa me. Mas a ndole do Michael no era para aquilo. Nunca devia ter ido. Foi por causa do nosso pai. No teve coragem para lhe dizer que no, mas teve coragem de ir para l. No faz sentido. J alguma vez ouviu uma

DYSDepartment of Youth Services. (N. T.)

DPSDepartment of Public Services. (N. T.)

coisa to estpida? Bosch no respondeu porque j tinha ouvido histrias semelhantes, incluindo a sua. E ela pareceu parar ali. Ou no sabia o que que tinha acontecido ao irmo ou no queria contar os pormenores. Passado um bocado, ela perguntou: - Por que que voc foi, Harry? Ele j estava espera da pergunta, mas em toda a sua vida nunca tinha sido capaz de lhe dar uma resposta verdadeira, nem sequer a si prprio. - No sei. No tinha escolha. A vida institucional, como voc mesma j disse. Eu no ia para a universidade. Nunca cheguei a pensar seriamente no Canad. Acho que teria sido mais difcil ir para l do que deixar-me recrutar e ir para o Vietname. E depois, em sessenta e oito, pode-se dizer que ganhei a lotaria do recrutamento. O meu nmero era to baixo que eu sabia que ia ter de ir. Por isso, achei que iria ser mais esperto do que eles alistando-me, pensei que iria escolher o que queria. - E depois? Bosch soltou uma pequena gargalhada, da mesma maneira artificial como ela tinha rido anteriormente. - Entrei, fiz a recruta e aquelas tretas todas e depois chegou a altura de tomar uma deciso e escolhi a infantaria. Ainda hoje no percebo porqu. Eles conseguem caar-nos naquela idade, sabe? Somos invencveis. Mal l cheguei, ofereci-me para a brigada dos tneis. Foi assim uma coisa do gnero da carta que o Meadows escreveu ao Scales. Uma pessoa faz coisas que nunca ir conseguir entender. Sabe o que que eu quero dizer? - Acho que sim - disse ela. - E quanto ao Meadows? Ele teve oportunidades para se ir embora e nunca o fez, continuou at mesmo ao fim. Por que que algum havia de querer ficar sem ser obrigado? 191 - Havia muitos assim - disse Bosch. - Acho que no era nem vulgar nem invulgar. Alguns simplesmente no queriam abandonar aquelas paragens. Meadows era um deles. Tambm pode ter sido uma deciso comercial. - Est a referir-se s drogas? - Bem, eu sei que ele andava a consumir herona quando l estava. Sabemos que a estava a consumir e a vender depois, quando voltou para c. Por isso, se calhar, quando l estava, envolveu-se no trfico e depois no quis abandonar uma coisa boa. H muita coisa que aponta para isso. Ele foi transferido para Saigo depois de o terem tirado dos tneis. Saigo devia ter sido o stio certo para estar, especialmente com a liberdade de movimentos dada pela embaixada que ele devia ter como PM. Saigo era a cidade do pecado. Prostitutas, haxixe, herona. Era um mercado livre. Houve uma data de gente que se meteu nisso. A herona deve-o ter feito ganhar bom dinheiro, especialmente se ele tivesse um plano, uma maneira de trazer alguma para c. Ela ia empurrando com o garfo bocados do peixe vermelho que no ia comer. - injusto - disse ela. - Ele no queria voltar. Alguns dos rapazes queriam voltar, mas nunca tiveram oportunidade. - Sim, nunca houve nada de justo naquele lugar. Bosch voltou-se e olhou pela janela para o oceano. Havia quatro surfistas com fatos de um vermelho brilhante a montar uma onda. - E a seguir guerra, voc foi para a polcia. - Bem, andei por a durante algum tempo e depois entrei para o departamento. Naquela altura, parecia que a maior parte dos veteranos que eu conhecia, tal como o Scales disse hoje, ou iam para a polcia ou para as penitencirias. - No sei, Harry. Voc parece um tipo solitrio. Um detective particular, no um homem que tem de receber ordens de homens por quem no sente respeito. - J no h operadores privados. Toda a gente recebe ordens... Mas todas estas coisas a meu respeito esto nos ficheiros. Voc sabe isto tudo. - Nem tudo sobre uma pessoa pode ser registado no papel. No isso que voc diz? Ele sorriu enquanto a empregada levantava a mesa. Perguntou: - E quanto a si? Qual a sua histria com o FBI? - Muito simples, para dizer a verdade. Justia criminal como especializao, contabilidade como sub-especializao, recrutada da Penn State. Boas

gratificaes, bons subsdios, mulheres muito procuradas e valorizadas. Nada de original. - Porqu a brigada dos bancos? Pensava que o caminho mais rpido era antiterrorismo, coisas relacionadas com a administrao, at mesmo drogas. Mas no a brigada pesada. - Fiz essa coisa da administrao durante cinco anos. Tambm estive em DC, o stio certo para se estar. O problema que o rei ia nu, era tudo muito, muito chato. Sorriu e abanou a cabea. - Percebi que a nica coisa que queria ser era polcia. Por isso, foi nisso que me tornei. Transferi-me para a primeira boa unidade de rua em que apareceu uma vaga. L.A. a capital dos assaltos aos bancos do pas. Quando apareceu uma vaga c, puxei das minhas competncias e consegui a transferncia. Pode chamar-me dinossauro, se quiser. - demasiado bonita para isso. Apesar do bronzeado intenso, Bosch percebeu que o comentrio a tinha embaraado. Tambm o embaraou a ele, ter-lhe escapado assim. - Desculpe - disse ele. - No. No, foi simptico. Obrigada. - Bem, casada, Eleanor? - perguntou ele e ficando imediatamente todo vermelho, lamentando a sua falta de subtileza. Ela sorriu com a atrapalhao dele. - Fui. Mas h muito tempo. - Bosch assentiu com a cabea. - No tem nada... e o Rourke? Vocs os dois parecem... - O qu? Est a brincar? - Desculpe. Desataram os dois a rir e depois continuaram com sorrisos e um longo e confortvel silncio. Depois do almoo, passearam pelo cais indo at ao local onde, noutros tempos, Bosch estivera parado com uma cana de pesca na mo. No havia ningum a pescar. Vrios dos edifcios no final do cais estavam abandonados. Na superfcie da gua ao p de um dos pilares via-se o brilho de um arco-ris. Bosch reparou que os surfistas se tinham ido embora. Se calhar, os midos estavam todos na escola, pensou Bosch. Ou talvez j no se pescasse ali. Se calhar os peixes recusavam-se a vir at to dentro da baa envenenada. - H muito tempo que no vinha aqui - disse ele a Eleanor. Encostou-se ao parapeito, os cotovelos na madeira rasgada por um milhar de facas para isco. - As coisas mudam. Regressaram ao Federal Building a meio da tarde. Eleanor Wish investigou os nomes e os nmeros de identificao dos presos que Scales lhes dera no NCIC e nos computadores do departamento de justia e pediu por fax fotografias da polcia de vrios prisioneiros do estado. Bosch agarrou na lista dos nomes e telefonou para os arquivos militares dos Estados Unidos em St. Louis, pedindo para falar com Jessie St. John, a mesma funcionria com quem tinha tratado na segunda-feira de manh. Ela disse-lhe que o ficheiro sobre William Meadows que Bosch lhe pedira j ia a caminho. Bosch no lhe disse que j tinha lido a cpia do FBI. Em vez disso, convenceu-a a ir buscar ao computador os nomes que ele tinha e a dar-lhe as biografias bsicas de cada homem. Reteve-a at bastante depois do final do seu turno de trabalho s cinco horas de St. Louis. Mas ela disse-lhe que queria ajudar. s cinco horas de L.A., Bosch e Eleanor tinham vinte e quatro fotografias acompanhadas de curtos resumos dos registos militares e prisionais dos homens. Nada do que ali tinham saltou da secretria de Eleanor e atingiu qualquer deles na cabea. Quinze dos homens tinham prestado servio no Vietname durante o perodo em que Meadows l tinha estado. Onze deles eram do exrcito dos Estados Unidos. Nenhum deles fora rato dos tneis, embora quatro fossem do Primeiro de Infantaria e tivessem estado com Meadows durante a primeira fase deste. Havia dois outros que tinham sido PMs em Saigo. Concentraram-se nos registos do NCIC dos seis soldados que tinham pertencido ao Primeiro de Infantaria ou que tinham sido da polcia militar. S os PMs que tinham cadastro por assaltos a bancos. Bosch procurou nas fotografias e tirou a desses dois para fora. Olhou atentamente para as caras, meio espera de obter uma confirmao da parte daqueles olhares duros e desinteressados que eles tinham

voltado para as cmaras fotogrficas. - Gosto destes dois - disse ele. Chamavam-se Art Franklin e Gene Delgado. Ambos tinham moradas de Los Angeles. No Vietname, tinham feito as duas comisses em Saigo, mas em unidades da PM diferentes. E no com a da embaixada - a que o Meadows tinha estado ligado. Mas, de qualquer das maneiras, estavam na mesma cidade. Ambos tinham sido desmobilizados em 1973 - mas, tal como Meadows, tinham continuado no Vietname como conselheiros militares civis. Ficaram l at ao fim, Abril de 1975. No havia a menor dvida na cabea de Bosch. Os trs homens Meadows, Franklin e Delgado j se conheciam antes de se terem encontrado na Charlie Company no Condado de Ventura. 194 J nos EU, a seguir a 1975, Franklin meteu-se numa srie de assaltos em San Francisco e foi posto sombra durante cinco anos. Foi condenado pelo crime federal de assalto a um banco em Oakland em 1984 e estava na TI ao mesmo tempo que Meadows. Foi em liberdade condicional para a Charlie Company dois meses antes de Meadows deixar o programa. Delgado era estritamente um criminoso estadual; trs acusaes por assalto em L.A., de que se conseguiu safar com uma pena na cadeia do condado, depois uma tentativa de assalto a um banco em Santa Ana em 1985. Declarou-se culpado perante um tribunal estadual depois de ter conseguido um acordo com as autoridades federais. Foi para Soledad, saindo em 1985 e chegando Charlie Company trs meses antes de Meadows. Saiu da Charlie Company um dia depois de Franklin chegar. - Um dia - disse Eleanor. - Isto quer dizer que eles os trs s estiveram juntos na Charlie Company durante um dia. Bosch olhou para as fotografias e para as descries que as acompanhavam. Franklin era o maior dos dois. Um metro e oitenta, oitenta e seis quilos, cabelo escuro. Delgado era magro, um metro e sessenta e cinco, sessenta e cinco quilos. Cabelo escuro, tambm. Bosch observou atentamente as caras dos dois homens ao mesmo tempo que pensava nas descries dos homens no jipe que tinham largado o cadver de Meadows. - Vamos falar com o Sharkey - disse ele passado um bocado. Telefonou para a Home Street Home e disseram-lhe o que ele j sabia que lhe iam dizer. O Sharkey tinha-se ido embora. Bosch tentou o Blue Chateau e uma voz velha e cansada disselhe que Sharkey e o seu bando tinham-se mudado ao meio-dia. A me desligou-lhe o telefone quando percebeu que ele no era um cliente. Eram quase sete horas. Bosch disse a Eleanor que tinham de voltar para as ruas para o encontrarem. Ela respondeu-lhe que iria ela a guiar. Passaram as duas horas seguintes em West Hollywood, quase sempre no corredor do Santa Monica Boulevard. Mas no havia sinais de Sharkey nem da mota acorrentada a um parqumetro. Interpelaram uns carros patrulhas do xerife e explicaram de quem andavam procura, mas nem sequer aqueles pares de olhos extra ajudaram. Pararam junto do passeio do Oki Dog e Bosch pensou que, se calhar, o rapaz tinha voltado para casa da me e ela tinha desligado o telefone para o proteger. - Quer dar um passeio at Chatsworth? - perguntou a Eleanor. - Por muito que eu gostasse de ver essa bruxa que voc me diz que o Sharkey tem como me, estava a pensar era em dar o dia por terminado. Podemos encontrar o Sharkey amanh. Que tal irmos ter aquele jantar que no tivemos a noite passada? 195 Bosch queria apanhar Sharkey, mas tambm a queria apanhar a ela. Eleanor tinha razo, havia sempre um amanh. - Parece-me bem - respondeu ele. - Onde que lhe apetece ir? - A minha casa. Eleanor Wish vivia numa casa geminada de renda controlada que ela subalugava e que ficava a dois quarteires da praia de Santa Monica. Estacionaram no passeio frente da casa e, enquanto entravam, ela disse a Bosch que, embora vivesse perto, se quisesse ver o oceano tinha de ir at varanda do quarto, inclinar-se toda e olhar para a direita at ao fundo do Ocean Parle Boulevard. Podia-se ento ver uma nesga do Pacfico entre duas torres de um condomnio que tapava a marginal. Desse ngulo, acrescentou ela, ele tambm podia ver para dentro do quarto do

vizinho da casa ao lado. O vizinho era um actor de televiso cado em desgraa que tinha dado em traficantezeco de drogas com uma procisso interminvel de mulheres a entrar-lhe pelo quarto. Acabava por dar cabo da vista, por assim dizer, comentou ela. Disse a Bosch para se sentar na sala enquanto ela tratava do jantar. - Se gosta de jazz, tenho a um CD que comprei h pouco tempo, mas que ainda no tive tempo para ouvir. Ele dirigiu-se para a aparelhagem estereofnica, que estava arrumada em prateleiras ao p de uma estante de livros fechada, e agarrou no CD novo. Era Falling in Love with Jazz, de Rollins e Harry sorriu para consigo porque tinha um igual em casa. Era um elo de ligao agradvel. Abriu a caixa, ps a msica a tocar e comeou a olhar em volta da sala. Havia pequenos tapetes em tons pastel e cobertas de cores claras na moblia. Havia livros de arquitectura e revistas sobre casas espalhados em cima de uma mesinha de tampo de vidro em frente de um sof azul-claro. Estava tudo muito arrumado e limpo. Um quadro em ponto de cruz na parede ao lado da porta dizia Bem-vindo A Esta Casa. Letras pequeninas bordadas no canto diziam EDS 1970, e Bosch perguntou para consigo o que seria a ltima letra. Sentiu outra daquelas ligaes psquicas com Eleanor Wish quando se voltou e olhou para a parede por cima do sof. Emoldurada em madeira preta, estava uma reproduo de Nighthawkso de Edward Hopper. Bosch no tinha o quadro em casa, mas estava familiarizado com a pintura e de vez em quando chegava mesmo a pensar nela quando estava
Nighthawk noitib. (N. T.)

196 concentrado num caso ou numa vigilncia. Uma vez tinha visto o original em Chicago e tinha ficado plantado sua frente, a estud-lo durante uma hora. Um homem calado e sombrio est sentado sozinho ao balco de um diner voltado para a rua. Olha para outro cliente sua frente, um homem muito parecido com ele, s que o segundo homem est com uma mulher. De certa forma, Bosch identificou-se com ele, com o primeiro homem. Eu sou o solitrio, pensou Bosch. Sou o noitib. O quadro, com as suas tonalidades escuras e sombras no se integrava naquela casa, percebeu Bosch. Por que que Eleanor o tinha? O que que ela via nele? Observou o resto da sala. No havia televiso. S havia msica na aparelhagem e os livros na estante de advogado encostada parede em frente do sof. Aproximou-se e deu uma vista de olhos coleco atravs das portas de vidro. As duas prateleiras superiores eram quase todos livros eruditos das sries livros do ms que passavam depois a livros policiais de escritores como Crumley e Willeford, entre outros. Tinha lido alguns deles. Abriu a porta de vidro e puxou para fora um livro intitulado The Locked Door. Tinha ouvido falar do livro, mas nunca o tinha visto para o comprar. Abriu-o para ver quantos anos tinha e resolveu o mistrio da ltima letra no quadro a ponto de cruz. Na primeira pgina, escrito a tinta, estava Eleanor D. Scarletti 1979. Ela devia ter ficado com o nome do marido depois do divrcio, pensou Bosch. Arrumou o livro e fechou a estante. Os livros nas duas ltimas prateleiras da estante iam dos relatos de crimes verdadeiros e dos estudos histricos da Guerra do Vietname at aos manuais do FBI. At havia um manual sobre a investigao de homicdios do Departamento da Polcia de L.A. Bosch lera muitos desses livros. Num deles, at aparecia. Era um livro que o jornalista do Times Bremmer tinha escrito sobre o caso conhecido como Beauty Shop Slasher1. Um tipo chamado Harvard Kendal, o retalhador, matou sete mulheres num ano em San Fernando Valley. Eram todas proprietrias ou empregadas de sales de beleza. Esperava que os sales fechassem, seguia as vtimas at casa e matava-as cortando-lhes as gargantas com uma lima de unhas muito afiada. Bosch e o seu parceiro da altura tinham chegado a Kendal atravs do nmero de uma matrcula que a stima vtima escrevera num bloco no salo na noite anterior a ser assassinada. Nunca descobriram porque que ela o tinha feito, mas os detectives suspeitavam que ela tinha visto Kendal a vigiar o salo da sua carrinha. Escreveu o
Beauty Shop Slasher O Retalhador dos Sales de Beleza. (N. T.)

197 nome da matrcula como precauo mas depois no tinha tomado a mesma

precauo ao ir para casa sozinha. Bosch e o colega chegaram at Kendal atravs da matrcula e descobriram que ele tinha passado cinco anos em Folston por uma srie de assaltos a sales de beleza nas imediaes de Oakland nos anos sessenta. Mais tarde descobriram que a me tinha trabalhado como manicure num salo de beleza quando ele era pequeno. Tinha treinado o seu ofcio nas unhas do jovem Kendal e os psiquiatras concluiram que ele nunca tinha ultrapassado aquilo. Bremmer tinha escrito um best-seller a partir daquilo. E quando a Universal fez um filme da semana a partir dele, o estdio pagou a Bosch e ao seu companheiro pela utilizao dos seus nomes e assistncia tcnica. O dinheiro duplicou quando o filme deu origem a uma srie policial. O companheiro deixou o departamento e mudou-se para Ensenada. Bosch continuou, investindo o seu dinheiro na casa alada na colina virada para o estdio de onde ele proviera. Bosch sempre achara que havia uma simbiose inexplicvel nisso. - Li esse livro muito antes do seu nome ter aparecido nisto. No fez parte da pesquisa. Eleanor tinha vindo da cozinha com dois copos de vinho tinto. Harry sorriu. - No ia acus-la de nada - disse ele. - Alm disso, no sobre mim. sobre o Kendal. De qualquer das formas, tudo aquilo foi pura sorte. Mas conseguiram fazer um livro e uma srie de televiso com isso. Seja o que for que est l dentro cheira bem. - Gosta de pasta? - Gosto de spaghetti. - o que vamos comer. Fiz um grande tacho de molho no domingo. Adoro passar um dia inteiro na cozinha, sem pensar em mais nada. Acho que uma boa terapia para o stress. E dura e dura. A nica coisa que tenho de fazer aquec-lo e cozer umas massas. Bosch bebeu um golo de vinho e continuou a observar o que o rodeava. Ainda no se tinha sentado, mas estava a sentir-se muito confortvel na presena dela. Apontou para a reproduo de Hoper. - Gosto dele. Mas porqu uma coisa to escura? Ela olhou para o quadro e franziu o sobrolho como se fosse a primeira vez que pensava no assunto. - No sei - respondeu. - Sempre gostei desse quadro. H ali qualquer coisa que me atrai. A mulher est com um homem. Por isso, no sou eu. Por isso, acho que se for algum, seria o homem sentado com o seu caf. Completamente sozinho, a observar os outros dois que esto juntos. - Vi-o uma vez em Chicago - disse Bosch. - O original. Tinha l ido por causa de uma extradio e tinha de esperar cerca de uma hora. Por isso, fui ao Art Institute e ali estava ele. Passei toda essa hora a olhar para ele. H qualquer coisa nele tal como voc disse. No me consigo lembrar do caso ou de quem que tinha ido buscar. Mas lembro-me desse quadro. Sentaram-se mesa a conversar durante quase uma hora depois da comida ter desaparecido. Ela falou-lhe mais do irmo e da dificuldade que tivera em ultrapassar a raiva e a perda. Dezoito anos depois, ainda estava a tentar resolver aquilo, disse ela. Bosch disse-lhe que ele tambm ainda estava a tentar resolver as coisas. De tempos a tempos, ainda sonhava com os tneis, mas o mais frequente era ter de lutar contra a insnia. Contou-lhe como estava baralhado quando voltara, como a linha era fina, a escolha, entre o que ele tinha feito a seguir e o que o Meadows fizera. Podia ter sido diferente, disse ele e ela assentiu com a cabea parecendo saber que era verdade. Mais tarde, ela fez-lhe perguntas sobre o caso Dollmaker e a sua queda em desgraa na Diviso dos Assaltos-Homicdios. Era mais do que curiosidade. Sentiu que havia qualquer coisa importante no que lhe contava. Ela estava a tomar uma deciso a respeito dele. - Acho que j conhece as linhas gerais - comeou ele. - Algum andava a estrangular mulheres, quase todas prostitutas, e depois pintava-lhes a cara com maquilhagem. Base, baton vermelho, muito rouge nas faces, eyeliner bem marcado. Sempre a mesma coisa de todas as vezes. Tambm dava banho aos corpos. Mas nunca dissemos que parecia que as estava a transformar em bonecas. Um idiota qualquer acho que foi um gajo chamado Sakai do gabinete do mdico

legista deixou escapar que a maquilhagem era o denominador comum. E a seguir esta histria do Dollmaker1 comeou a aparecer na imprensa. Acho que foi o Channel 4 que apareceu com o nome. E pegou. A mim, parecia-me mais o trabalho de um cangalheiro. Mas a verdade que no estvamos a ter grandes resultados. No conseguimos nada sobre o tipo at ele chegar aos dois dgitos. No havia muitas provas fsicas. As vtimas eram largadas em vrios stios, sem nenhum padro, por todo o Westside. Sabamos pelas fibras
Dollmaker palavra composta de Doll (boneca) e maker (fazedor, criador). Daria em portugus: Fazedor de bonecas. (TV. T.)

198 199 encontradas nalguns dos cadveres que o tipo provavelmente usava um capachinho ou qualquer outro tipo de disfarce com cabelos, uma barba falsa, ou qualquer coisa dessas. As mulheres que tinham sido apanhadas na rua, conseguimos isolar as horas e os locais dos seus ltimos engates. Fomos aos motis que alugam quartos hora e no descobrimos nada. Por isso, deduzimos que o tipo as apanhava de carro e depois as levava para um stio qualquer, talvez a casa dele, ou um stio seguro que ele usasse para cometer os crimes. Comemos a vigiar o Boulevard e os outros stios onde as profissionais actuam e devemos ter dado cabo de uns trezentos engates at termos aquela sorte. Esta prostituta chamada Dixie McQueen telefona para a brigada uma manh cedo, e diz que acabou de fugir ao Dollmaker e pergunta se h uma recompensa se o entregar. Bem, ns andvamos a receber chamadas como aquela durante toda a semana. Quero dizer, onze mulheres assassinadas e as pessoas comeam a aparecer de todos os lados com pistas que no so pistas de verdade. E o pnico na cidade. - Eu lembro-me - disse Eleanor. - Mas a Dixie era diferente. Eu estava a trabalhar no ltimo turno no gabinete da brigada nesse dia e recebo a chamada. Fui falar com ela. Ela contou-me que este gajo que ela apanhou na Hollywood ao p da Spa Row, sabe, ao p da manso da Cientologia, a levou para este apartamento-garagem em Silver Lake. Ela disse que enquanto o gajo se estava a despir, ela quis ir casa de banho. Por isso, entra e enquanto faz correr a gua, espreita para dentro do armrio por baixo do lavatrio, provavelmente para ver se havia qualquer coisa que valesse a pena roubar. Mas v todos estes frasquinhos, caixinhas e todas estas coisas de mulheres. Olha para aquilo tudo e associa tudo. Assim, de repente. Bingo! Este tem que ser o gajo. Por isso, fica aterrorizada e resolve pirar-se. Sai da casa de banho e o gajo est metido na cama. Ela raspa-se pela porta da frente. Bem, o que acontecia era que ns no tnhamos tornado pblicas todas aquelas informaes sobre a maquilhagem. Ou, melhor, o idiota que tinha dado a informao aos media no tinha dito tudo. Est a ver, ns sabamos que o tipo guardava as coisas das vtimas. Elas eram encontradas com as carteiras, mas no havia cosmticos sabe, baton, rouge, sombras, coisas assim. Por isso, quando a Dixie me contou o que estava dentro do armrio, despertou a minha ateno. Sabia que ela estava a dizer a verdade. E foi aqui que eu meti gua. Eram trs da manh quando acabei de falar com a Dixie. Toda a gente da brigada tinha ido para casa e eu fiquei ali a pensar que o tipo podia perceber que a Dixie o tinha topado e pr-se ao fresco. Por isso, fui l sozinho. Quer dizer, a Dixie tambm foi comigo para me mostrar o stio, mas depois ficou sempre no carro. Mal l chegmos, vi uma luz acesa por cima da garagem que ficava por trs daquela casa em runas na esquina da Hyperion. Telefonei a pedir reforos e, enquanto estou espera, vejo pela janela, a sombra do tipo a andar de um lado para o outro. Algo me diz que ele est a preparar-se para cavar e levar tudo o que estava no armrio com ele. E ns no tnhamos conseguido nenhumas provas nos onze cadveres. Precisvamos das coisas que estavam no armrio da casa de banho. A outra coisa a considerar era: e se ele tivesse algum com ele? Est a ver, uma substituta da Dixie? Por isso fui l. Sozinho. J sabe o resto. Eleanor disse: - Entrou sem mandado e disparou contra ele quando ele estava a meter a mo debaixo da almofada da cama. Mais tarde, disse equipa de atiradores que julgara que era uma situao de emergncia. Ele tinha tido tempo suficiente para ter sado

e arranjado outra prostituta. Voc disse que isso lhe dava autoridade para entrar pela porta dentro sem mandado. Disse que disparou porque julgou que o suspeito ia agarrar numa arma. Foi um s tiro, na parte superior do torso, a uma distncia de cinco, seis metros, se me lembro bem do relatrio. Mas o Dollmaker estava sozinho e debaixo da almofada estava apenas a peruca dele. - S o capachinho - disse Bosch. Abanou a cabea como um quarterback1 na manh de segunda-feira. - A equipa de atiradores ilibou-me. Ligmo-lo a dois dos corpos atravs do cabelo da peruca e conseguimos determinar que os produtos de maquilhagem da casa de banho pertenciam a oito das vtimas. No havia a menor dvida. Era ele. Eu estava ilibado, mas, nessa altura as moscas varejeiras apareceram. Uma expedio Lewis e Clarke. Deitaram a unha Dixie e conseguiram que ela assinasse um depoimento a dizer que j me tinha dito antes que ele metia a cabeleira debaixo da almofada. No sei o que que eles usaram contra ela, mas sou capaz de imaginar. Os Assuntos Internos sempre me tiveram raiva. No gostam de ningum que no seja cem por cento da famlia. Seja como for, de repente, fico a saber que vo
Quaterback jogador que ocupa a posio de defesa no futebol americano. (TV. T.)

apresentar uma queixa do departamento contra mim. Queriam despedir-me e levar a Dixie ao jri de acusao para conseguirem levar-me a tribunal. Parecia que a gua estava cheia de sangue e havia dois grandes tubares brancos. Parou ali, mas Eleanor continuou: - No entanto, Harry, os detectives dos Assuntos Internos interpretaram mal as coisas. No se aperceberam que a opinio pblica ia estar do seu lado. Voc era conhecido nos jornais como o chui que resolvera os casos do Beauty Shop Slasher e do Dollmaker. Uma personagem de um programa de televiso. No podiam dar cabo de si sem serem sujeitos a um exame pblico meticuloso e sem que o departamento ficasse mal visto. - Algum acima deles meteu-se e impediu a jogada do tribunal - disse Bosch. Tiveram de se contentar com dar-me uma suspenso e despromover-me para os Homicdios de Hollywood. Bosch segurava o copo de vinho vazio e estava a rod-lo distraidamente entre os dedos, em cima da toalha. - E que belo acordo - disse ele passado um bocado. - E aqueles dois tubares dos AI continuam a pairar por a, espera de apanharem os restos da matana. Deixaram-se ficar sentados em silncio durante um bocado. Ele estava espera que ela fizesse a pergunta que j tinha feito uma vez. A prostituta tinha mentido? Mas no a fez e, passado um bocado, limitou-se a olhar para ele sorrindo. E ele sentiu-se como se tivesse acabado de passar o teste. Ela comeou a levantar os pratos da mesa. Bosch ajudou-a na cozinha e quando o trabalho estava terminado, pararam muito perto um do outro, a secar as mos no mesmo pano da loua, e beijaram-se ao de leve. Depois, como se seguissem os mesmos sinais secretos, apertaram-se um contra o outro e beijaram-se com aquela fome que as pessoas sozinhas sentem. - Quero ficar - disse Bosch depois de se ter afastado momentaneamente. - Eu quero que fiques - disse ela. 200 201 Os olhos pedrados de Arson estavam brilhantes e reflectiam a noite de non. Deu uma longa passa no Kool e guardou o fumo precioso dentro de si. O cigarro tinha sido mergulhado em p-de-anjo. A cara rasgou-se num sorriso enquanto os jactos de fumo se escapavam pelas narinas. Disse: - s o nico tubaro que conheo que usado como isco. Ts a topar? - Soltou uma gargalhada e deu outra passa antes de passar o cigarro a Sharkey, que o afastou porque j tinha fumado o suficiente. Mojo agarrou-o. - Pois, estou a ficar farto desta merda - disse Sharkey. - Desta vez s tu. - Calma, meu. Tu s o nico que s capaz de te safar com isso, meu. O Mojo e eu, ns no fazemos o papel to bem como tu. Alm disso, ns temos a nossa parte. Tu no s suficientemente grande para dares porrada nesses pandeiros. - Bem, por que que no voltamos outra vez ao 7-Eleven? - disse Sharkey. - No gosto disto de no saber quem . Gosto mais do 7-Eleven. A ns escolhemos a nossa carne, no so eles que nos escolhem.

- Nem pensar - disse Mojo, falando pela primeira vez. - Voltamos l, no sabemos se aquele ltimo gajo fez queixa ao xerife ou no. Temos que ficar longe durante algum tempo. Provavelmente, eles esto a vigiar o stio do mesmo parque de estacionamento que ns usmos. Sharkey sabia que eles tinham razo. S achava que andar por Santa Monica no giro dos maricas estava a ficar demasiado srio. No tardava nada, pensou ele, que os dois agarrados no tivessem vontade de atacar. Iam querer que ele fizesse tudo at ao fim, que conseguisse o dinheiro assim. Sabia que seria nessa altura que lhes diria adeus. - OK - disse ele descendo o passeio. - No me fodam. - Comeou a atravessar a rua. Arson gritou atrs dele: - BMW ou melhor! Como se eu precisasse que me dissessem, pensou Sharkey. Andou meio quarteiro em direco a La Brea e encostou-se porta de uma grfica que estava fechada. Ainda estava a meio quarteiro do Hot Rods, uma livraria para adultos. Mas estava suficientemente perto para atrair o olhar de algum que de l sasse. Se o chui andasse procura. Olhou para trs, na direco contrria, e viu o claro do charro na escurido da entrada do beco onde Mojo e Arson estavam sentados nas suas motas. Sharkey ainda no estava ali h dez minutos quando um carro, um Grand Am novo, parou junto do passeio e a janela elctrica desceu. Sharkey estava disposto a ignorar este lembrando-se do BMW ou melhor at que viu o brilho do ouro e se aproximou. A adrenalina subiu-Ihe em flecha. O pulso que o condutor tinha pousado no volante estava tornado com um Rolex Presidential. Se fosse verdadeiro, Arson sabia onde poderiam conseguir 3000 dlares por ele. Mil para cada um sem falar no que o gajo poderia ter em casa ou na carteira. Sharkey examinou o homem. O tipo parecia um heterossexual, um homem de negcios. Cabelo escuro, fato escuro. Pelos quarenta e cinco anos, no muito grande. Sharkey at devia ser capaz de dar conta dele sozinho. O homem sorriu para Sharkey e disse: 202 203 - Ei, como que vai isso? - No vai mal. O que que se passa? - Oh, no sei. S vim dar uma volta. Queres dar uma volta? - Aonde? - A nenhum stio especial. Sei de um stio onde podemos ir. Para estarmos sozinhos. - Tem cem dlares consigo? - No, mas tenho cinquenta dlares para basebol nocturno. - A lanar ou a apanhar? - Sou um lanador. E trouxe a minha luva. Sharkey hesitou e deitou uma olhadela para a entrada onde tinha visto o claro do cigarro. Tinha desaparecido. Deviam estar prontos para avanar. Voltou a olhar para o relgio. - Fixe - disse ele e entrou no carro. O carro seguiu para oeste, passando pela entrada do beco. Sharkey conteve-se para no olhar mas julgou ouvir o barulho das motas deles a acelerarem. Vinham atrs. - Onde que vamos? - perguntou Sharkey. - Oh, no posso ir para casa contigo, meu amigo. Mas sei de um stio para onde podemos ir. Ningum nos incomodar. - Porreiro. Pararam no semforo em Flores o que fez com que Sharkey se lembrasse do tipo da outra noite. Estavam perto da casa dele. O Arson andava a bater com mais fora, ao que parecia. Isto ia ter de terminar em breve ou acabariam por matar algum. Esperava que o homem do Rolex o entregasse pacificamente. No havia maneira de saber o que aqueles dois seriam capazes de fazer. Carregados de p-de-anjo, estariam prontos para a guerra e para fazerem sangue. De repente, o carro lanou-se para o cruzamento. Sharkey viu que a luz continuava vermelha. - O que que se passa? - perguntou asperamente. - Nada. Fartei-me de estar espera. Mais nada. 204

Sharkey pensou que no haveria nada de suspeito em olhar para trs naquela altura. Voltou-se e s viu carros parados espera no cruzamento. No havia motorizadas. Aqueles filhos da me, pensou ele. Sentiu a humidade que se comeava a formar na cabea e as primeiras tremuras de medo. O carro virou direita a seguir ao Barnieos Bearney e subiu a colina em direco a Sunset. Depois viraram para este para Highland e o homem com o Rolex voltou a virar para norte. - J estivemos juntos alguma vez? - perguntou o homem. - Pareces-me familiar. No sei, se calhar s nos vimos por a. - No, eu nunca... no me parece. - Olha para mim. - O qu? - perguntou Sharkey espantado com a pergunta e com o tom duro da voz do homem. - Porqu? - Olha para mim. Conheces-me? J me viste antes? - O que isto? Um anncio a um carto de crdito? J disse que no, meu. O homem saiu da estrada e entrou no parque de estacionamento oriental do Hollywood Bowl. Estava deserto. Conduziu depressa e sem dizer mais nada at zona norte que estava s escuras. Sharkey pensou, se este o teu sitiozinho, ento o Rolex que tens no brao no verdadeiro, p. - Ei, o que que estamos a fazer, meu? - perguntou Sharkey. Estava a pensar numa maneira de se safar daquilo. Tinha a certeza que Arson e Mojo, pedrados como estavam, se tinham perdido. Estava sozinho com aquele gajo e queria pr-se ao fresco. - O estdio est fechado - disse o Rolex. - Mas eu tenho a chave dos vestirios, ests a ver? S temos que apanhar o tnel por baixo do Cahuenga e depois, perto do stio onde ele volta a subir, h um pequeno passadio que nos leva a toda a volta. No vai haver ningum. Trabalho aqui. Conheo isto. Por um instante, Sharkey ainda pensou em tentar atacar o homem sozinho, depois decidiu que no era capaz. A no ser que houvesse uma maneira de o apanhar de surpresa. Logo veria. O homem desligou o motor do carro e abriu a porta do seu lado. Sharkey abriu a dele, saiu e olhou para o outro lado da extenso s escuras do parque de estacionamento. Estava procura de duas luzes de motorizadas, mas no havia nenhuma. Vou tratar deste tipo do outro lado, resolveu ele. Iria fazer a sua jogada. Ou bater e correr, ou apenas correr. 205 Encaminharam-se na direco do letreiro que dizia Caminho de Pees. Havia um anexo em cimento com uma porta aberta e depois umas escadas. Enquanto desciam os degraus brancos, o homem com o Rolex ps a mo em cima do ombro de Sharkey e depois agarrou-lhe o pescoo num gesto paternal. Sharkey conseguia sentir o metal frio da pulseira do relgio. O homem disse: - Tens a certeza que no nos conhecemos, Sharkey? Que no nos vimos antes? - No, meu. J lhe disse, nunca estive consigo Estavam j a meio do tnel quando Sharkey se apercebeu de que nunca tinha dito ao homem como se chamava. PARTE V Quinta-Feira, 24 de Maio Para ele j tinha sido h muito tempo. E, no quarto de Eleanor, Harry Bosch foi desajeitado como um homem que est excessivamente consciente de si mesmo e sem prtica. Tal como acontece com as primeiras vezes, no foi bom. Ela guiou-o com as mos e com suspiros. E, depois, ele sentiu vontade de lhe pedir desculpa, mas no o fez. Abraaram-se e dormitaram, o cheiro do cabelo dela na cara dele. O mesmo aroma a mas que ele tinha sentido na sua prpria cozinha na noite anterior. Bosch estava apaixonado por ela e queria respirar o cheiro do seu cabelo a cada minuto. Passado um bocado, acordou-a com um beijo e voltaram a fazer amor. Desta vez, ele no precisou que ela o orientasse e ela no precisou das prprias mos. Quando acabaram, Eleanor perguntou-lhe num sussurro: - Achas que uma pessoa pode estar s neste mundo sem se sentir solitria?

Ele no lhe respondeu logo e ela perguntou: - Ests s ou sentes-te solitrio, Harry Bosch? Ele pensou um bocado naquilo enquanto os dedos dela desenhavam suavemente a tatuagem do brao dele. - No sei - sussurrou ele por fim. - Uma pessoa habitua-se de tal maneira s coisas tal como elas esto. E eu tenho estado sempre s. Acho que isso faz de mim um solitrio. At agora. Sorriram na escurido, beijaram-se e pouco depois ele ouviu a respirao profunda dela a dormir. Bosch levantou-se da cama. Enfiou as calas e saiu para a varanda para fumar. No Ocean Park Boulevard no havia trnsito e ele conseguia ouvir o barulho do oceano ali perto. As luzes estavam apagadas no apartamento ao lado. Estavam apagadas em todo o lado excepto na rua. Conseguia ver que os jacarands ao longo do passeio estavam a perder as flores. Elas tinham cado como neve violeta no cho e nos carros estacionados ao longo do passeio. Bosch apoiou-se no parapeito e soprou o fumo para o vento frio da noite. Quando estava no segundo cigarro, ouviu a porta atrs de si deslizar e abrir-se e depois sentiu as mos dela rodearem-lhe a cintura quando ela o abraou por trs. - H algum problema, Harry? - Nenhum, estou s a pensar. melhor teres cuidado. Alerta cancergeno. J ouviste falar da servido do risco da inalao? - Avaliao, Harry, no servido. Em que que ests a pensar? assim que so a maior parte das noites para ti? Bosch virou-se nos braos dela e beijou-lhe a testa. Ela vestia um robe curto de seda cor-de-rosa. Ele esfregou o polegar pela curva do pescoo dela. - Quase nenhuma noite como esta. No conseguia dormir, mais nada. Acho que estava a pensar numa data de coisas. - Em ns? - perguntou ela dando-lhe um beijo no queixo. - Acho que sim. - E...? Levou a mo cara dela e desenhou-lhe o maxilar com os dedos. - Estava a pensar como que arranjaste esta cicatrizinha aqui. - Oh... isso foi quando eu era pequena. Eu e o meu irmo, ns estvamos a andar de bicicleta e eu ia no guiador. E amos a descer esta colina, chamava-se Highland Avenue - isto foi quando vivamos na Pensilvnia - e ele perdeu o controlo. A bicicleta comeou a derrapar de um lado para o outro e eu fiquei cheia de medo porque sabia que amos cair. E precisamente quando ele de facto deixou por completo de a controlar e amos a cair, ele gritou: Ellie, no te vai acontecer nada! Assim, sem mais nem menos. E porque ele tinha gritado aquilo, teve razo. Cortei o queixo, mas nem sequer chorei. Sempre achei que aquilo era uma coisa especial, ele ter-se preocupado mais comigo do que com ele prprio. Mas o meu irmo era mesmo assim. Bosch largou-lhe o rosto. Disse: - Tambm estava a pensar que o que aconteceu entre ns foi bom. - Tambm acho, Harry. Bom para um par de noitibs. Agora, volta para a cama. Voltaram para dentro. Primeiro, Bosch foi casa de banho e usou o dedo como escova de dentes e depois voltou a enfiar-se por baixo do lenol com ela. O claro azul de um relgio digital na mesinha de cabeceira marcava 2:26 e Bosch fechou os olhos. Quando os voltou a abrir o relgio marcava 3:46 e havia um som chilreado irritante que vinha de algures no quarto. Percebeu que no estava no quarto dele. Depois lembrou-se que estava no quarto de Eleanor Wish. Quando finalmente se orientou, viu a sombra da figura dela dobrada ao lado da cama, as mos a vasculharem as roupas dele. - Onde que ele est? - perguntou ela. - No o consigo encontrar. Bosch agarrou nas calas, passou as mos ao longo do cinto at encontrar o pager e o desligar sem ter de andar s apalpadelas. J tinha feito aquilo muitas vezes s escuras. - Bolas! disse ela. - Que irritante! Bosch virou as pernas para fora da cama, enrolou o lenol volta da cintura e sentou-se. Bocejou e depois avisou-a que ia acender a luz. Ela disse que estava

bem e quando a luz se acendeu, atingiu-o nos olhos como o cintilar de um diamante. Quando a sua viso se recomps, ela estava de p frente dele, nua, a olhar para o ecr digital do pager na mo dele. Por fim, Bosch baixou os olhos para ver o nmero que no reconheceu. Esfregou a cara com a outra mo e passou-a pelo cabelo. Havia um telefone na mesa de cabeceira e puxou-o para o colo. Marcou o nmero e depois revolveu a roupa com as mos procura de um cigarro que ps na boca, mas no acendeu. Eleanor deu-se conta da sua nudez e dirigiu-se para uma cadeira para ir buscar o robe. Depois de o vestir, foi para a casa de banho e fechou a porta. Bosch ouviu a gua a correr. Do outro lado, atenderam ainda no tinha terminado o primeiro toque. Jerry Edgar no atendeu com nenhuma saudao, apenas com um Harry, onde que ests? - No estou em casa. O que que se passa? - Este mido de quem andavas procura, aquele do telefonema para o nove um um, encontraste-o, no foi? - Sim, mas ns andamos outra vez procura dele. - Quem o ns? Tu e a mulher do FBI? Eleanor saiu da casa de banho e sentou-se na borda da cama, ao lado dele. - Jerry, para que que me ests a telefonar? - perguntou Bosch. Estava a comear a sentir uma sensao de agonia no peito. - Qual o nome do rapaz? Bosch estava atordoado. H meses que no adormecia to profundamente para ser agora acordado daquela maneira abrupta. No se conseguia lembrar do nome verdadeiro de Sharkey e no queria perguntar 209 a Eleanor porque Edgar podia ouvir e ficava a saber que estavam os dois juntos. Harry olhou para Eleanor e quando ela abriu a boca para falar, tocou-lhe com o dedo nos lbios abanando a cabea. - Edward Niese? - perguntou Edgar perante o silncio. - assim que o mido se chama? A sensao de agonia desapareceu. Bosch sentiu um punho invisvel enfiar-se debaixo das costelas e nas dobras das entranhas e do corao. - Certo - disse ele. - esse o nome. - Deste-lhe um dos teus cartes? - Sim. - Harry, j no andam procura dele. - Conta-me. - Vem c tu ver. Estou no estdio. O Sharkey est no tnel dos pees por baixo do Cahuenga Park, no lado oriental. Logo vs os carros. O estacionamento oriental do Hollywood Bowl devia estar deserto s quatro e meia da manh. Mas quando Bosh e Eleanor Wish subiram a Highland at entrada do Cahuenga Park, viram que a ponta norte da zona de estacionamento estava cheia do grupo habitual de carros e carrinhas oficiais que indicam o fim violento, ou pelo menos, inesperado, de uma vida. A fita de plstico amarela das cenas dos crimes formava um quadrado, fechando a entrada para a escada que descia para a passagem subterrnea dos pees. Bosch exibiu o distintivo e deu o nome a um polcia uniformizado que estava a controlar a lista dos agentes que deviam estar presentes. Ele e Eleanor passaram por baixo da fita e foram recebidos pelo barulho de uma mquina que ecoava da sada do tnel. Bosch percebeu pelo som que era um gerador que alimentava as luzes da cena do crime. No primeiro degrau, antes de comearem a descer, voltou-se para Eleanor e disse: - Queres ficar aqui? No precisamos de ir os dois. - Sou polcia, por amor de Deus - respondeu ela. - J vi cadveres antes. Vais-te armar em meu protector, Bosch? Deixa-me perguntar-te uma coisa: queres ficar tu aqui e eu deso? Espantado com aquela mudana de humor repentina, Bosch no respondeu. Olhou para ela durante um longo momento, confundido. Comeou a descer uns degraus frente dela, mas parou quando viu o corpo grande de Edgar a sair do tnel e a comear a subir as escadas. Edgar viu Bosch e depois Bosch viu os olhos dele passarem por cima do ombro dele abarcando Eleanor Wish.

- Hei, Harry disse ele. a tua nova parceira? J se devem estar a dar muito bem. Bosch limitou-se a olhar fixamente para ele. Eleanor ainda estava uns degraus atrs e, provavelmente, no tinha ouvido o comentrio. - Desculpa, Harry - disse Edgar suficientemente alto para se fazer ouvir por cima do barulho do gerador. - Fui inconveniente. Tem sido uma noite pssima. Devias ver quem que eu tenho para meu novo parceiro, o intil do filho da puta que o Noventa e Oito Pounds me arranjou. - Pensava que ias ficar com... - No. Ouve-me isto: o Pounds ps-me com o Porter dos carros. O gajo um imbecil chapado. - Eu sei. Como que o conseguiste arrancar da cama para isto? - No estava na cama. Tive de o ir descobrir no Parrot em North Hollywood. um daqueles clubes privados para bbados. O Porter d-me o nmero mal nos dizem que vamos ser parceiros e diz-me que a que passa a maioria das noites. Diz-me que tem l um trabalhinho extra como segurana. Mas eu falei para o gabinete dos servios de folga no Parker Center e no h l nada registado. Sei que a nica coisa que ele l faz meter-se nos copos. Ele devia estar praticamente desmaiado quando telefonei para l. O barman disse que o pager do cinto tocou, mas ele nem o ouviu. Harry, acho que o tipo rebentava a escala se o fizssemos soprar no balo neste preciso momento. - Bosch assentiu com a cabea e franziu o sobrolho durante os trs segundos exigidos e depois esqueceu os problemas de Jerry Edgar. Sentiu Eleanor descer o degrau e ficar ao seu lado e apresentou-a a Edgar. Eles trocaram um aperto de mo, sorriram e Bosch disse: - Ento, o que que temos? - Bem, encontrmos isto no cadver - disse Edgar levantando um saco de plstico transparente. L dentro, estava um montinho de fotos Polaroid. Mais fotografias de Sharkey nu. Ele no tinha perdido tempo a refazer o fornecimento. Edgar virou o saco e l estava o carto de Bosch. - Parece que o mido era um prostituto em Boytown - disse Edgar -, mas se j o apanhaste uma vez, j sabes isso. Seja como for, vi o carto e calculei que devia ser o rapaz da chamada para o nove um um. Se quiseres descer e dar uma olhadela, est vontade. J examinmos a cena, por isso podes mexer no que quiseres. Mas no vais conseguir ouvir-te a pensar ali dentro. Houve algum que passou por ali e partiu as luzes 210 211 todas do tnel. No percebi se foi o criminoso ou se as luzes j tinham sido partidas antes. Bem, seja como for, tivemos que instalar as nossas. E os cabos no eram suficientemente compridos para podermos pr o gerador aqui em cima. Est l dentro a berrar como se tivesse cinco cavalos-vapor. Virou-se para voltar para o tnel, mas Bosch estendeu o brao e tocou-lhe no ombro. - Jed, como que receberam a chamada disto? - Annima. No foi para uma linha do nove um um, por isso, no h gravaes nem registos. Foi direita esquadra de Hollywood. Era um homem, foi a nica coisa que o merdoso, um daqueles rapazes gordos do Explorer que a recebeu, foi capaz de dizer. Edgar voltou a enfiar-se no tnel. Bosch e Eleanor seguiram atrs dele. Era uma passagem comprida que curvava para a direita. O cho era de cimento sujo, as paredes de estuque branco com vrias camadas de graffitti. Nada como uma dose da realidade urbana quando uma pessoa vai a deixar a sinfonia do estdio, pensou Bosch. O tnel estava s escuras, exceptuando a mancha de luz intensa que banhava a cena do crime mais ou menos ao meio dele. Bosch conseguia ver uma figura humana estendida de costas. Sharkey. Conseguia ver homens de p a trabalhar no meio da luz. Bosch ia a andar com os dedos da mo direita a arrastarem-se ao longo da parede. Equilibrava-o. Havia um cheiro a mofo velho no tnel que se misturava com o novo odor da gasolina e a escape do gerador. Bosch sentia as gotas de suor que se comeavam a formar na cabea e nos sovacos. A

respirao era rpida e superficial. Passaram o gerador que estava a uns nove metros da entrada e depois de outros nove metros, Sharkey estava deitado no cho do tnel sob a luz brutal dos holofotes. A cabea do rapaz estava encostada parede do tnel num ngulo invulgar. Parecia mais pequeno e mais novo do que Bosch se lembrava. Os olhos estavam meio abertos e tinham o brilho vtreo familiar dos que no vem. Vestia uma T-shirt preta com as palavras Guns N Roses manchadas de sangue. As algibeiras dos jeans desbotados estavam viradas para fora e vazias. Ao lado dele, estava uma lata de tinta spray metida num saco para as provas. Na parede por cima da cabea dele, uma inscrio pintada dizia RIP1 Sharkey. A tinta tinha sido aplicada por uma mo inexperiente e em quantidade demasiada. A tinta preta tinha escorrido pela parede abaixo em linhas finas, algumas delas apanhando o cabelo de Sharkey.
RIP Rest In Peace Descanse Em Paz. (N. T.)

Quando Edgar gritou: Queres ver isto? por cima do rudo do gerador, Bosch sabia que ele se estava a referir ferida. Como a cabea de Sharkey fazia um ngulo para a frente, a ferida da garganta no estava visvel. S o sangue. Bosch abanou a cabea, recusando. Bosch reparou nos salpicos de sangue na parede e no cho a cerca de um metro do corpo. Porter, o beberro, estava a comparar as formas das gotas com as dos cartes de salpicos de sangue presos numa argola de ao. Um tcnico das cenas de crime chamado Roberge estava tambm a fotografar as manchas. As gotas salpicadas na parede eram elpticas, no era preciso cartes de salpicos para se saber que o garoto tinha sido morto ali mesmo, no tnel. - Pelo aspecto disto - disse Porter em voz alta para ningum em particular -, algum aparece por trs dele aqui, corta-lhe o pescoo e empurra-o de encontro parede ali. - S ests meio certo, Porter - disse Edgar. - Como que algum aparece atrs de algum num tnel destes? Ele estava com outra pessoa e essa pessoa despachou-o. No foi nenhum trabalho sorrelfa, Porter. Porter meteu os cartes no bolso e disse: - Desculpa, companheiro. No disse mais nada. Era gordo e pesado com o aspecto com que muitos polcias ficam quando permanecem ao servio mais tempo do que deviam. Porter ainda conseguia usar um cinto do tamanho 34, mas por cima dele, uma barriga tremenda saltava para fora como um toldo. Vestia um casaco de tweed com os cotovelos esgarados. A cara era chupada e plida como uma tortilla de farinha, por trs de um nariz de bbado que era grande, mal feito e dolorosamente vermelho. Bosch acendeu um cigarro e meteu o fsforo queimado na algibeira. Agachou-se como um apanhador de basebol ao lado do corpo e levantou o saco com a lata de tinta, sopesando-a. Estava quase cheia e isso confirmou aquilo que ele j sabia, j temia. Tinha sido ele que tinha matado Sharkey. De certo modo, pelo menos. Bosch tinha-o procurado e encontrado, tornando-o valioso, ou potencialmente valioso, para o caso. Havia algum que no podia permitir isso. Bosch ficou ali agachado, com os cotovelos apoiados nos joelhos, com o cigarro na boca, a fumar e a estudar o corpo certificando-se de que no o iria esquecer. Meadows tinha feito parte desta coisa o crculo de acontecimentos interrelacionados que tinham levado a que o matassem. Mas Sharkey no. Era lixo da rua e a sua morte ali, provavelmente, tinha poupado a vida de outra pessoa mais tarde. Mas no merecia isto. Nesta histria, ele era um inocente. E isso significava que as coisas se tinham descontrolado e que havia regras novas para ambos os lados. Bosch apontou com a mo para o pescoo de Sharkey e um dos investigadores da Medicina Legal desencostou o corpo da parede. Bosch apoiou uma mo no cho para se equilibrar e fitou durante muito tempo o pescoo e a garganta rasgados. No se queria esquecer de um nico pormenor. A cabea de Sharkey descaiu para trs expondo a grande ferida aberta. Os olhos de Bosch nunca se desviaram nem uma fraco de segundo. Quando, finalmente, Bosch levantou os olhos do corpo, reparou que Eleanor j no estava no tnel. Levantou-se e fez sinal a Edgar para que o seguisse at l fora para conversarem. Harry no queria ter de gritar mais alto do que o barulho do gerador. Quando saram do tnel, viu que Eleanor estava sentada sozinha no primeiro

degrau do cimo das escadas. Passaram por ela e Harry pousou a mo no ombro dela ao passar. Sentiu que ele ficara rgido com o toque dele. Quando ele e o companheiro estavam razoavelmente longe do barulho, Harry perguntou: - O que que os tcnicos conseguiram? - Npia, uma porra de nada - disse Edgar. - Se foi obra de um gang, a mais limpa que j vi. No h uma nica impresso digital, nem sequer parcial. A lata de tinta de spray est limpa. No h arma. No h testemunhas. - O Sharkey tinha um bando, costumavam estar num motel ao p do Boulevard, at hoje, mas ele no tinha nada a ver com gangs - disse Bosch. - Est nos ficheiros. Era um trafulha espertalho. Sabes como , com as Polaroid, a enrolar homossexuais, coisas assim. - Ests a dizer que ele est nos ficheiros dos gangs, mas no pertencia a um gang? - Exactamente. Edgar assentiu com a cabea e disse: - Mesmo assim ele pode ter sido despachado por algum que julgasse que ele era de algum. Eleanor veio ter com eles, mas no disse nada. - Tu sabes que isto no obra de gangs, Jed - disse Bosch. - Sei? - Sim, sabes. Se fosse, no estaria ali uma lata de tinta cheia. Nenhum gajo de um gang larga uma coisa daquelas. Alm disso, quem pintou aquela parede l dentro no tinha mo para aquilo. A tinta escorreu. Quem o fez, no sabia patavina de pintura de paredes. - Anda c s por um segundo - disse Edgar. 214 Bosch olhou para Eleanor e fez-lhe sinal que estava tudo bem. Ele e Edgar afastaram-se alguns passos e pararam ao p da fita amarela. - O que que este mido te contou e como que ele andava por a solta se fazia parte de um caso? - perguntou Edgar. Bosch contou-lhe a histria em linhas gerais e disse-lhe que no sabiam se o Sharkey era importante para o caso. Mas, aparentemente, algum achava que sim ou ento no quis arriscar-se a ficar espera at saber. Enquanto falava, Bosch olhou para as colinas e viu a primeira luz da alvorada a recortar as grandes palmeiras do cimo. Edgar deu um passo para o lado e tambm ele levantou a cabea. Mas no estava a olhar para o cu. Tinha os olhos fechados. Por fim, voltouse para Bosch. - Harry, sabes que fim-de-semana este? - perguntou ele. - o fim-de-semana do Memorial Day1. o maior fim-de-semana de trs dias deste ano. O incio da estao do Vero. No ano passado, vendi quatro casas nesse fim-de-semana, ganhei quase tanto quanto ganhei num ano inteiro como polcia. Bosch ficou perplexo com a sbita reviravolta na conversa. - O que que ests para a a dizer? - O que estou a dizer ... No vou esfolar-me a trabalhar neste caso. No me vai lixar este fim-de-semana como aconteceu no ltimo. Por isso, o que eu estou a dizer que, se quiseres ficar com ele, eu vou ter com o Pounds e digo-lhe que tu e o FBI querem ficar com ele porque tem a ver com aquele em que vocs j esto a trabalhar. Caso contrrio, vou trabalhar nele simplesmente como se fosse um dos das nove s cinco. - Diz ao Pounds aquilo que te apetecer, Jed. No tenho nada com isso. Bosch comeou a andar em direco a Eleanor e Edgar disse: - S uma coisa. Quem que sabia que tinhas encontrado o mido? - Bosch parou e olhou para Eleanor. Sem se voltar para trs, respondeu: - Apanhmo-lo na rua. Entrevistmo-lo na esquadra de Wilcox. Os relatrios seguiram para o departamento. O que que queres dizer com isso, Jed? - Nada - respondeu Edgar. - Mas Harry, se calhar tu e o FBI deviam ter tomado conta da vossa testemunha um bocadinho melhor. Se calhar tinham-me poupado tempo e tinham salvo a vida do rapaz.
Memorial Day a ltima segunda-feira de Maio, feriado dos EU para recordar os membros das foras armadas mortos em combate. (N. T.)

215 Bosch e Eleanor voltaram para o carro em silncio. Mal se encontraram l dentro, Bosch perguntou: - Quem que sabia? - O que que queres dizer? - perguntou ela. - Aquilo que ele perguntou ali atrs, quem que sabia do Sharkey? - Ela pensou um bocado. Depois disse: - Do meu lado, o Rourke recebe os resumos dirios dos relatrios e recebeu o memorando sobre a hipnose. Os resumos vo para os registos e so feitas cpias para o agente especial snior. A fita da gravao da entrevista que me deste est fechada chave na minha secretria. No foi transcrita. Por isso, acho que qualquer pessoa podia ter lido aqueles resumos. Mas nem sequer penses nisso, Harry. Ningum... No pode ser. - Bem, eles sabiam que ns tnhamos o rapaz e que ele podia ser importante. O que que isso te diz? Tm que ter algum com acesso a informaes internas. - Harry, isso especulao. Podem ter acontecido uma data de coisas. Tal como tu mesmo lhe disseste, apanhmo-lo na rua. Qualquer pessoa podia estar a ver. Os prprios amigos dele, aquela rapariga, qualquer pessoa podia ter espalhado que andvamos procura do Sharkey. Bosch pensou em Lewis e Clarke. Deviam t-lo visto a caar Sharkey. Que papel que eles estavam a desempenhar? Nada fazia sentido. - O Sharkey era um filho da me teso - disse ele. - Achas que ele ia entrar assim, sem mais nem menos, com uma pessoa qualquer neste tnel? Acho que ele no teve possibilidade de recusar. E para isso, era preciso uma pessoa com um distintivo. - Ou talvez algum com dinheiro. Sabes que ele ia com qualquer pessoa desde que houvesse dinheiro metido no assunto. Ela no ps o carro a trabalhar e ficaram ali sentados a pensar. Por fim, Bosch disse: - O Sharkey foi uma mensagem. - O qu? - Uma mensagem para ns. Ests a ver? Deixaram o meu carto com ele. Foi a nica coisa que deixaram. E mataram-no num tnel. Querem que a gente saiba quem fez isto. Querem que a gente saiba que eles tm algum c dentro. Esto-se a rir de ns. Ela ligou o carro. - Para onde? - Para o FBI. - Harry, tem cuidado com essa coisa de um homem no nosso meio. Se tentares vender isso e no for verdade, podes dar aos teus inimigos aquilo de que precisam para te enterrarem. Inimigos, pensou Bosch. Quem so os meus inimigos desta vez? - Fui eu que causei a morte daquele mido. O mnimo que posso fazer descobrir quem o matou. Bosch olhou atravs das cortinas de algodo da sala de espera para o cemitrio dos veteranos, enquanto Eleanor Wish destrancava a porta para os gabinetes do departamento. O nevoeiro rasteiro ainda no se tinha dissipado e levantado do campo das lpides, e l de cima, parecia que um milhar de fantasmas se estava a erguer das suas caixas ao mesmo tempo. Bosch conseguia ver o corte escuro escavado na crista da colina do lado norte do cemitrio, mas continuava a no perceber o que aquilo era. Parecia quase uma grande vala comum, uma extensa ranhura, uma ferida enorme. A terra exposta estava tapada com folhas de plstico preto. - Queres caf? - perguntou Eleanor Wish atrs dele. - Claro - respondeu ele. Afastou-se das cortinas e entrou atrs dela. O departamento estava deserto. Entraram na cozinha do gabinete e ele ficou a ver enquanto ela despejava um pacote de caf modo para dentro do reservatrio com o filtro e ligava a mquina. Ficaram de p, em silncio, a ver o caf pingar devagarinho para dentro de um recipiente de vidro em cima da placa de aquecimento. Bosch acendeu um cigarro e

tentou pensar apenas no caf que estava a fazer. Ela afastou o fumo com a mo, mas no lhe disse para apagar o cigarro. Quando o caf ficou pronto, Bosch bebeu-o puro e sentiu-o atingir o seu sistema como um tiro. Encheu uma segunda chvena e levou as duas para a sala. Acendeu um cigarro na ponta do outro quando chegou sua secretria temporria. - o ltimo - prometeu quando a viu olhar. Eleanor encheu uma chvena com gua de uma garrafa que guardava na gaveta da secretria. - Alguma vez esgotaste essa coisa? - perguntou-lhe ele. Eleanor ignorou a pergunta. - Harry, no nos podemos culpabilizar pela morte do Sharkey. Se a culpa fosse nossa, ento teramos de oferecer proteco a todas as pessoas com quem falamos. Devamos ir buscar a me dele e met-la num programa de proteco de testemunhas? E a rapariga do quarto do motel que o conhecia? Ests a ver? Seria uma maluqueira. O Sharkey era o Skarkey. Quando se vive segundo as leis da rua, morre-se segundo as leis da rua. - Bosch no disse nada logo. Depois disse apenas: - Deixa-me ver os nomes. Eleanor puxou do dossier do caso do WestLand. Folheou-o e tirou uma cpia impressa de computador com vrias folhas dobradas como um acordeo. Atirou-a para cima da secretria dele. - Essa a cpia completa - disse ela. - Toda a gente que tinha um cofre. H umas notas escritas frente de alguns nomes, mas provavelmente no so relevantes. Bosch comeou a desdobrar a cpia e percebeu que era uma longa lista de nomes e cinco mais pequenas marcadas de A a E. Perguntou o que eram e ela deu a volta secretria para espreitar por cima do ombro de Bosch. Ele voltou a sentir o cheiro a ma do cabelo dela. - Ora bem, a lista comprida , como eu j disse, a lista de todas as pessoas que tinham cofre. uma lista geral. Depois fizemos cinco divises, de A a E. A primeira a A a dos cofres arrendados trs meses antes do assalto. Quanto B, fizemos uma diviso s com as pessoas que no declararam perdas com o assalto. A C a dos becos sem sada; os donos dos cofres que, ou estavam mesmo mortos ou que no conseguimos descobrir porque tinham mudado de endereo ou tinham dado informaes falsas quando os alugaram. A quarta e a quinta so listas resultantes da comparao com as trs primeiras. A D a das pessoas que alugaram os cofres nos trs meses anteriores e que no declaram perdas. A E a das pessoas da lista dos becos sem sada que tambm tinham alugado os cofres trs meses antes. Percebeste? Ele tinha percebido. A ideia do FBI tinha sido que a casa-forte tinha tido de ser analisada por dentro pelos ladres antes do assalto e isso, muito provavelmente, tinha sido conseguido facilmente entrando no banco e alugando um cofre. Dessa maneira, tinham acesso legtimo; o tipo que tivesse alugado o cofre podia l entrar sempre que quisesse durante as horas de expediente e observar tudo. Por isso, a lista das pessoas que tinham alugado um cofre nesses trs meses tinha boas hipteses de incluir o batedor. Segundo, era provvel que esse batedor no quisesse atrair as atenes sobre si depois do roubo e, por isso, podia no declarar nada como tendo sido roubado do seu cofre. Isso coloc-lo-ia na lista D. Mas se ele no tivesse declarado nada ou tivesse dado informaes no verificveis, o nome dele estaria na lista E. S havia sete nomes na lista A e cinco na lista E. Um dos nomes da E tinha um crculo em toda a volta. Frederic B. Isley, de Park La Brea, o nome do homem que tinha comprado os trs ATVs Honda em Tustin. Os outros nomes tinham uns V de visto frente. - Lembras-te? - perguntou Eleanor. - Eu disse que esse nome iria aparecer outra vez. Harry assentiu. - Isley - disse ela. - Pensamos que o batedor. Alugou o cofre nove semanas antes do assalto. Os registos do banco indicam que ele fez ao todo quatro visitas caixaforte durante as sete semanas seguintes. Mas, depois do assalto, nunca mais voltou, fosse l ele quem fosse. Nunca preencheu um relatrio. E quando o tentmos contactar, descobrimos que a morada era falsa. - Tm alguma descrio?

- Nenhuma que nos servisse para alguma coisa. Pequeno, moreno e talvez bonito foi o melhor que os funcionrios do caixa-forte conseguiram. Deduzimos que este tipo era o batedor ainda antes de descobrirmos a histria dos ATVs. Quando o dono de um cofre quer ver o cofre, o funcionrio leva-o l dentro, abre a portinha e depois acompanha-o at a uma das salas para esse efeito. Quando ele acaba, voltam os dois a levar a caixa para dentro e o cliente escreve as suas iniciais no carto do cofre. Mais ou menos como numa biblioteca. Por isso, quando fomos ver o carto do sujeito, deparmo-nos com as iniciais FBI. Tu s uma pessoa que no gosta de coincidncias. Ns tambm no gostmos. Achmos que havia algum que estava a fazer troa de ns. Mais tarde, isso foi confirmado quando seguimos o rasto dos ATVs at Tustin. Harry bebeu um golo de caf. - No que nos tenha servido de muito - continuou ela. - Nunca o encontrmos. No entulho da caixa-forte, depois do assalto, descobrimos o cofre dele. Procurmos impresses digitais, assim como na porta. Nada. Mostrmos aos funcionrios da caixa-forte vrias fotografias - a do Meadows tambm l estava - e eles no conseguiram reconhecer ningum. - Podamos mostrar-lhes as do Franklin e do Delgado, e ver se algum deles era o Isley. - Sim. o que vamos fazer. Venho j. Ela levantou-se e saiu e Bosch voltou ao caf e lista. Leu todos os nomes e moradas, mas nada lhe despertou a memria, exceptuando a mancheia de celebridades, polticos e outros semelhantes que tinham cofres. Bosch estava a ler a lista pela segunda vez quando Eleanor regressou. Trazia uma folha de papel que pousou na secretria dele. - Fui ao gabinete do Rourke. Ele j mandou a maior parte da papelada que eu entreguei para os registos. O memorando da hipnose ainda estava na caixa, por isso, ele ainda no o deve ter visto. Agora j no serve para nada e capaz de ser melhor que ele no o veja. Harry deitou uma olhadela ao memorando, dobrou a folha e guardou-a no bolso. - Com toda a franqueza - disse ela -, no me parece que nenhum dos papis tivesse estado visvel durante o tempo suficiente..., quero dizer, no vejo como. E o Rourke... ele um tecnocrata e no um assassino. Como disseram de ti, ele no iria passar-se para o outro lado por causa de dinheiro. Bosch olhou para ela e deu consigo a desejar fazer qualquer coisa que lhe agradasse, que a pusesse outra vez do seu lado. No conseguia lembrar-se de nada e no era capaz de compreender aquela nova frieza nos modos dela. - Esquece isso - disse ele e, depois, olhando outra vez para as listas, acrescentou: At que ponto que vocs levaram as investigaes destas pessoas que no declaram perdas? Ela olhou para a folha onde Bosch tinha feito um crculo em volta da lista B. Havia dezanove nomes na lista. - Investigmos cada um dos nomes para ver se tinham registos criminais - comeou ela. - Fizemos uma entrevista telefnica e, mais tarde, uma entrevista cara a cara. Se algum agente sentisse vibraes estranhas ou se alguma das histrias no soasse bem, ia l outro agente, sem se fazer anunciar, para fazer mais uma entrevista. Como que para ter uma segunda opinio. No tive nada a ver com essa parte. Tnhamos uma segunda equipa que tratou da maior parte das entrevistas pessoais. Se ests interessado nalgum nome em especial, posso ir buscar os resumos das entrevistas. - E quanto aos nomes vietnamitas que aparecem nas listas? Contei trinta e quatro donos de cofres com nomes vietnamitas, quatro esto na lista dos que no declararam perdas, um na dos becos sem sada. - O que que tm os vietnamitas de especial? Provavelmente, tambm haver uma lista, se a quiseres fazer, de chineses, coreanos, brancos, pretos e latinos. Estes bandidos eram a favor da igualdade. - Sim, mas vocs descobriram uma ligao com o Vietname relativamente ao Meadows. Agora temos o Franklin e o Delgado, possivelmente, envolvidos. Os trs foram PMs no Vietname. Temos a Charlie Company, que pode ou no fazer parte disto. Por isso, depois do Meadows ter passado a ser um suspeito e vocs

comearem a ir buscar os registos militares de ratos dos tneis, fizeram mais alguma investigao relacionada com os vietnamitas das listas? - No... Bem, sim. Em relao aos estrangeiros residentes, metemos os nomes deles no INS para ver h quanto tempo c estavam, se estavam legais. Mas, praticamente, foi s isso. - Calou-se durante uns instantes e depois disse: - Estou a ver onde queres chegar. uma falha na forma como tratmos do assunto. Ests a ver, s passmos a considerar que o Meadows era um suspeito, algumas semanas depois do assalto. Nessa altura, a maior parte dessas pessoas j tinham sido entrevistadas. Depois de termos comeado a olhar para o Meadows, no me parece que tenhamos voltado para trs para ver se algum dos nomes da lista tinha alguma coisa a ver com ele. Pensas que um destes vietnamitas pode ter feito parte disto? - Nem sei em que que estou a pensar. Estou s procura de conexes. Coincidncias que no so coincidncias. Bosch tirou o caderno de notas do bolso e comeou a fazer uma lista de nomes, datas de nascimento e moradas dos vietnamitas que possuam cofres. Ps os nomes dos quatro que no tinham declarado perdas e o da lista dos becos sem sada no princpio. Tinha acabado de escrever os nomes e de fechar o caderno, quando Rourke entrou na sala, com o cabelo ainda molhado do duche matinal. Trazia uma caneca de caf que dizia Boss num dos lados. Viu Bosch e Eleanor e olhou para o relgio. - Esto a comear cedo? - A nossa testemunha apareceu morta - disse Eleanor sem qualquer expresso no rosto. - Santo Deus! Onde? Apanharam algum? Eleanor abanou a cabea e olhou para Bosch com uma expresso de aviso para ele no comear nada. Rourke tambm olhou para ele. - Tem a ver com isto? - perguntou ele. - H alguma prova disso? - Achamos que sim - respondeu Bosch. - Santo Deus! - J disse isso - comentou Bosch. - Devemos tirar o caso ao Departamento da Polcia de Los Angeles? Junt-lo s investigaes do Meadows?
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221 Perguntou aquilo a olhar para Eleanor Wise. Bosch no fazia parte da equipa das tomadas de deciso. Ela no respondeu, por isso, Rourke acrescentou: - Devamos ter-lhe oferecido proteco? Bosch no conseguiu resistir: - Contra quem? Uma madeixa do cabelo molhado saltou do stio e caiu para a testa de Rourke. A cara ficou muito encarnada. - Que raio que isso quer dizer? - Como que sabia que o LAPD tinha o caso? - O qu? - Acabou de perguntar se deviam tirar o caso ao LAPD. Como que sabia que eram eles que o tinham? Ns no dissemos. - Parti desse princpio. Bosch, no gosto da insinuao que isso implica e no gosto nada de si. Est a insinuar que eu ou algum... Se est a dizer que h uma fuga de informaes policiais neste departamento, ento eu prprio pedirei uma investigao interna hoje mesmo. Mas digo-lhe j que se houve alguma fuga no foi do departamento. - Ento de onde que podia ter sido, porra? O que que aconteceu aos relatrios que lhe entregmos? Quem que os viu? Rourke abanou a cabea. - Harry, no seja ridculo. Compreendo como se sente, mas vamos acalmar e pensar um minuto. A testemunha foi apanhada na rua e interrogada na Esquadra de Hollywood, depois foi largada num abrigo pblico para jovens. E, por ltimo, voc anda a ser seguido pelo seu prprio departamento, detective. Lamento, mas aparentemente nem a sua prpria gente confia em si. A expresso de Bosch endureceu. Sentia-se trado. Rourke s podia ter sabido da

vigilncia atravs de Eleanor. Ela tinha topado Lewis e Clarke. Por que que no lhe tinha dito nada em vez de ir contar a Rourke? Bosch olhou para ela, mas ela estava a olhar para a secretria. Voltou a olhar para Rourke que estava a abanar a cabea para cima e para baixo como se fosse uma mola. - Sim, ela apercebeu-se da vigilncia logo no primeiro dia. - Rourke olhou em redor da sala vazia, obviamente desejoso de ter mais pblico. Estava a deslocar o peso do corpo de um p para o outro como um pugilista espera impacientemente no seu canto que o novo round comeasse para poder desferir o murro final no adversrio debilitado. Eleanor Wish continuava calada, sentada secretria. E, nesse momento, pareceu a Bosh que j tinha sido h um milho de anos que tinham estado abraados na cama. Rourke disse: - Se calhar voc devia olhar para si prprio e para o seu departamento antes de comear a fazer acusaes irresponsveis. Bosch no disse nada. Limitou-se a levantar-se e a dirigir-se para a porta. - Harry, onde que vais? - perguntou Eleanor da secretria. Ele deu meia volta e olhou para ela durante um breve instante, depois continuou a andar. Lewis e Clarke viram o Caprice de Bosch mal ele saiu da garagem do edifcio federal. Clarke ia a guiar. Obedientemente, Lewis apontou a hora no registo. - Leva o diabo no cu - disse ele. - melhor aproximarmo-nos mais dele. Bosch tinha voltado para ocidente na Wilshire e seguia na direco da 405. Clarke aumentou a velocidade para se manter atrs dele no meio do trnsito da hora de ponta matinal. - Eu tambm teria o diabo metido em qualquer parte se tivesse acabado de perder a minha nica testemunha - disse Clarke. - Se tivesse feito com que a matassem. - Como? - Tu viste. Ele enfiou o mido no abrigo e foi-se embora todo contente. No sei o que que o rapaz viu ou o que que lhes contou, mas foi suficientemente importante para ter de ser eliminado. O Bosch devia ter tomado conta dele muito melhor. Mant-lo fechado a cadeado. Na 405, seguiram para sul. Bosch ia dez carros mais frente, mantendo-se agora na faixa lenta. A auto-estrada estava carregada com uma massa poluente e mal cheirosa de ao em movimento. - Acho que ele vai apanhar a 10 - disse Clarke. - Vai para Santa Monica. Se calhar, vai voltar a casa dela, provavelmente, esqueceu-se da escova de dentes. Ou ela vai voltar para se encontrar com ele e terem uma sesso matinal. Sabes o que te digo? Digo para o deixarmos ir e nos voltamos para falar com o Irving. Acho que podemos arranjar qualquer coisa com esta coisa da testemunha. Talvez negligncia. H o suficiente para conseguirmos lev-lo a tribunal administrativo. Ele seria pelo menos atirado para fora dos homicdios e, se o Harry Bosch no estiver autorizado a trabalhar nos homicdios, pega na trouxa e vai-se embora. Mais um sulco na coronha do nosso revlver. 222 223 Lewis reflectiu sobre a ideia do colega. No era m. Era capaz de dar resultado. Mas no queria dar a vigilncia por terminada sem o Irving mandar. - Mantm-te atrs dele - disse ele. - Quando ele parar em qualquer stio, eu meto uma moeda e vejo o que que o Irving quer fazer. Quando ele me ligou esta manh por causa do mido, parecia bastante atiado. Como se as coisas estivessem a ficar porreiras. Por isso, no quero largar isto sem ele dizer. - Como queiras. A propsito, como que o Irving soube que o mido tinha sido despachado to depressa? - No sei. Ateno agora. Ele vai meter-se na 10. Seguiram o Caprice cinzento de Bosch pela auto-estrada de Santa Monica. Agora estavam a afastar-se da cidade trabalhadora, seguindo na direco contrria do trnsito e havia menos carros. Mas Bosch j no ia a acelerar. E passou as sadas para Clover Field e Lincoln que levavam casa de Eleanor Wish, mantendo-se na auto-estrada at ela curvar por dentro do tnel e sair por baixo dos penhascos da

praia j como a auto-estrada da Costa do Pacfico. Bosch seguiu para norte ao longo da costa com o sol a brilhar intensamente por cima dele e as montanhas de Malibu uns meros farrapos opacos na neblina ao fundo. - E agora? - perguntou Clarke. - No sei. Deixa-te ficar um bocado para trs. No havia muito trnsito na auto-estrada da Costa do Pacfico e estavam a ter dificuldade em manter sempre pelo menos um carro entre eles e o carro de Bosch. Embora Lewis continuasse a acreditar que os chuis nunca se davam ao trabalho de ver se estavam a ser seguidos, hoje, estava a fazer uma excepo a esta teoria com Bosch. A testemunha dele tinha sido assassinada, era possvel que, instintivamente, ele pudesse desconfiar que algum o tinha andado a seguir e que ainda andasse. - Pois , deixa-te ficar c atrs. Temos o dia todo e ele tambm. A velocidade de Bosch manteve-se constante durante os sete quilmetros seguintes at ele virar para um parque de estacionamento ao p do Aliceos e do cais de Malibu. Lewis e Clarke continuaram em frente. Oitocentos metros mais frente, Clarke fez uma inverso de marcha ilegal e voltou para trs. Quando pararam no parque de estacionamento, o carro de Bosch ainda l estava, mas no viram Bosch. - Outra vez o restaurante? - disse Clarke. - Ele deve adorar este stio. - Ainda nem sequer est aberto a esta hora. Comearam ambos a olhar para em todas as direces. Havia outros quatro carros ao fundo do parque e as grades nos tejadilhos indicavam que pertenciam ao grupo de surfistas que subiam e desciam no mar a sul do cais. Por fim, Lewis viu Bosch e apontou. Estava a meio caminho da ponta do cais, a andar com a cabea baixa e o cabelo a esvoaar. Lewis olhou em volta, procura da mquina fotogrfica e lembrou-se que ainda estava no porta-bagagens. Tirou uns binculos do porta-luvas e experimentou apont-los para a figura cada vez mais pequena de Bosch. Foi olhando at Bosch chegar ponta do estrado de madeira e apoiar os cotovelos no parapeito. - O que que ele est a fazer? - perguntou Clarke. - Deixa-me ver. - Tu guias. Eu observo. De qualquer das maneiras, ele no est a fazer nada. Est s ali encostado. - Tem de estar a fazer qualquer coisa. - Est a pensar. OK?... Olha. Est a acender um cigarro. Satisfeito? Est a fazer qualquer coisa... espera um minuto. - O qu? - Merda! Devamos ter a mquina fotogrfica preparada. - Que histria essa merda do ns? Hoje essa tarefa tua. Eu estou a guiar. O que que ele est a fazer? - Deitou qualquer coisa fora. Para a gua. Com os binculos, Lewis via o corpo de Bosch encostado ao para-peito. Ele estava a olhar para a gua l em baixo. No havia mais ningum no cais tanto quanto Lewis conseguia ver. - O que que ele atirou? Consegues ver? - Porra, como que posso saber o que que ele deitou? No consigo ver a superfcie da gua daqui. Queres que eu v ali fora e pea a um daqueles rapazes do surf para ir at l e ver? No sei o que que ele atirou. - Acalma os cavalos! S estava a perguntar. Bem, consegues lembrar-te da cor do objecto que ele atirou? - Parecia branco, como uma bola. Mas a modos que flutuou. - Julgava que tinhas dito que no conseguias ver a superfcie. - Quero dizer, flutuou ao cair. Acho que era um leno ou um papel qualquer. - O que que ele est a fazer agora? - S est ali encostado ao parapeito. Est a olhar para baixo, para a gua. - Crise de conscincia. Talvez salte e ns poderemos esquecer esta Porcaria toda. Clarke soltou uma risadinha com a sua prpria piada sem graa nenhuma. Lewis no se riu. - Pois, claro. Tenho a certeza que isso mesmo que ele vai fazer. - D-me esses binculos e vai telefonar. V o que que o Irving quer que a gente faa. Lewis entregou-lhe os binculos e saiu do carro. Primeiro, foi at ao porta-

bagagens, abriu-o e tirou a Nikon. Colocou a lente comprida e depois deu a volta at janela do condutor e entregou-a a Clarke. - Tira-lhe uma fotografia para termos qualquer coisa para mostrar ao Irving. Lewis correu para o restaurante procura de um telefone. Estava de volta em menos de trs minutos. Bosch continuava encostado ao parapeito na ponta final do cais. - O chefe diz para no interrompermos a vigilncia em circunstncia alguma informou Lewis. - Tambm disse que os nossos relatrios so um nojo. Quer mais pormenores e mais fotografias. Apanhaste-o? Clarke estava demasiado ocupado a olhar atravs da mquina para lhe responder. Lewis agarrou nos binculos e olhou. Bosch continuava sem se mexer. Lewis no conseguia perceber. O que que ele estava a fazer? A pensar? Para que que ele tinha vindo at to longe s para fazer isso? - O Irving que se foda, no querem l ver - disse Clarke de repente largando a mquina no colo para olhar para o colega. - E sim, tirei-lhe umas fotografias. Chegam para o Irving ficar feliz. Mas ele no est a fazer nada. Est s ali encostado. - J no est - disse Lewis ainda a olhar pelos binculos. - Liga o motor. So horas do espectculo. Bosch afastou-se do cais depois de ter atirado o memorando da hipnose numa bola para a gua. Como uma flor lanada para um mar agitado, aguentou-se uns breves momentos superfcie e depois afundou-se, desaparecendo por completo. A sua resoluo de descobrir o assassino de Meadows estava agora ainda mais forte: agora tambm queria justia para o Sharkey. Quando estava de regresso pelo velho cais de madeira, viu o Plymouth que o tinha estado a seguir sair do parque de estacionamento do restaurante. So eles, pensou ele. Mas no tinha importncia. No se ralava com o que eles tinham visto ou julgavam ter visto. Agora as regras eram novas e Bosch tinha os seus prprios planos para Lewis e Clarke. 226 Seguiu para leste na 10, em direco cidade. Nunca se deu ao trabalho de olhar para o retrovisor procura do carro preto porque sabia que ele l estava. Queria que estivesse. Quando chegou a Los Angeles Street, estacionou numa zona proibida em frente do US Administration Building. No terceiro andar, atravessou umas das salas de espera atravancadas de gente do Servio de Naturalizao e Imigrao. Aquilo cheirava como uma cadeia suor, medo e desespero. Uma mulher aborrecida estava sentada atrs de uma janela de vidro deslizante a fazer as palavras cruzadas do Times. A janela estava fechada. No parapeito, havia um aparelho de senhas igual aos dos talhos. Passados alguns momentos, ela levantou a cabea para olhar para Bosch. Ele estava a mostrar o distintivo. - Conhece uma palavra com seis letras para um homem que est constantemente infeliz e s? - perguntou ela depois de ter empurrado a janela para a abrir e ter verificado se tinha estragado alguma unha. - Bosch. - O qu? - Detective Harry Bosch. Anuncie-me. Quero falar com o Hector V. - Primeiro tenho de perguntar - disse ela num tom amuado. Murmurou qualquer coisa para um telefone, depois agarrou no estojo do distintivo de Bosch e colocou o dedo no nome do carto de identificao. A seguir desligou. - Ele disse para entrar por trs.- Carregou num boto da fechadura da porta ao lado da janela. - Diz que voc sabe o caminho. Bosch apertou a mo de Hector Villabona numa sala de trabalho a abarrotar, ainda mais pequena do que a de Bosch. - Preciso de um favor. Preciso de algum tempo de computador. - Vamos l a isso. Era disso que Bosch gostava em Hector V. Ele nunca perguntava o qu ou quando antes de decidir. Era do tipo vamos-l-a-isso. No entrava nos jogos de aldrabices a que Bosch tinha acabado por acreditar que toda a gente na sua profisso se dedicava. Hector rolou a cadeira at a um IBM numa secretria encostada parede e introduziu a sua palavra-chave.

- Queres verificar nomes, certo? Quantos? Bosch tambm no ia pr-se com aldrabices. Mostrou-lhe a lista dos trinta e quatro nomes. Hector assobiou baixinho e disse: - OK, vamos v-los, mas estes so vietnamitas, se os casos deles no forem tratados neste gabinete, os registos no estaro aqui. S tenho o que est no computador. Datas de entrada, documentao, cidadania, tudo o que estiver no computador. Sabes como , Harry. 227 Bosch sabia. Mas tambm sabia que a Califrnia do Sul era o lugar onde a maior parte dos refugiados vietnamitas se instalavam depois da travessia. Hector comeou a escrever os nomes com dois dedos e, vinte minutos depois, Bosch estava a olhar para a cpia dos resultados. - De que que andamos procura, Harry? - perguntou Hector enquanto examinava a lista com ele. - No sei. Vs alguma coisa que te parea invulgar? - Passaram-se alguns momentos e Bosch pensou que Hector no tinha visto nada de invulgar. Um beco sem sada. Mas estava enganado. - OK, este aqui. Acho que vais descobrir que ele tem ligaes. - O nome era Ngo Van Binh. No significava nada para Bosch a no ser que tinha vindo da lista B; Binh no tinha declarado nada como tendo sido roubado do seu cofre. - Ligaes? - Tem influncia - disse Hector. - Ligaes polticas, acho que seria esse o termo. Ests a ver, o nmero do caso dele tem o prefixo GL. Esses so ficheiros tratados pelo nosso departamento dos casos especiais em DV. Geralmente, o SCB 1 no trata de pessoas comuns. Muito poltico. Trata de casos de pessoas como o X, os Marcos, os desertores russos se forem cientistas ou bailarinos. Coisas dessas. Coisas que eu nunca vejo. Assentiu com a cabea e ps o dedo no papel. - OK, depois temos as datas; so demasiado prximas. Aconteceu demasiado depressa, o que me diz que este caso meteu influncias valentes. No conheo este tipo de lado nenhum, mas sei que este tipo conhece pessoas. Olha para a data da entrada, 4 de Maio, 1975. Apenas quatro dias depois do tipo ter sado do Vietname. Ora calcula, o primeiro dia para chegar a Manila e o ltimo para entrar nos Estados Unidos. Isso deixa apenas dois dias de intervalo em Manila para ele conseguir autorizao e conseguir o bilhete visado para o continente. Nessa altura, quer dizer, p, eles estavam a chegar em barcos a transbordar a Manila. Impossvel em dois dias a no ser que houvesse unto. Por isso o que isto quer dizer que este gajo, este Binh, j trazia autorizao. Tinha ligaes. No assim to invulgar, porque havia uma data de gente que tinha. Ns recebemos c uma data de gente quando a merda rebentou por todo o lado. Muitos deles eram da elite. Muitos deles tinham apenas dinheiro para pagar e passarem a ser da elite.
SCB Special Cases Bureau. (N. T.)

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Bosch olhou para a data em que Binh tinha sado do Vietname. 30 de Abril de 1975. O mesmo dia em que Meadows tinha sado pela ltima vez do Vietname. O dia em que Saigo cara s mos do Exrcito do Norte. - E esta DOD? - continuou Villabona apontando para outra data. - Um tempo muito curto para receber a documentao. 14 de Maio. Quer dizer, dez dias depois de chegar, o gajo recebe um visto. demasiado rpido para o Z comum. Ou neste caso, para o Ngo comum. - Ento o que que concluis? - difcil de dizer. Ele podia ter sido um operacional. Ou podia apenas ter tido dinheiro suficiente para sair de helicptero. Ainda correm uma data de boatos acerca desse tempo. Pessoas que enriqueceram. Os lugares nos transportes militares chegavam a dez mil dlares cada. No h a menor dvida que os vistos ainda custavam mais. Nunca foi nada confirmado. - Podes ir buscar o ficheiro deste tipo? - Claro. Se estivesse em DC. Bosch ficou a olhar para ele e Hector acrescentou:

- Todos os GLs esto l, Harry. l que as pessoas com quem as pessoas tm ligaes esto. Ts a perceber? Bosch no respondeu. - No fiques zangado, Harry. Eu vou ver o que que consigo arranjar. Vou fazer uns telefonemas. Vais andar por aqui mais logo? Bosch deu-lhe o nmero do FBI, mas no lhe disse que era do FBI. Voltaram a trocar um aperto de mo e Bosch saiu. No trio do rs-do-cho, espreitou para a rua pelas portas de vidro fumado, procura de Lewis e Clarice. Quando finalmente viu o Plymouth preto virar a esquina quando os dois detectives dos Assuntos Internos completaram outra volta ao quarteiro, Bosch saiu e desceu os degraus at ao carro. Usando a viso perifrica, viu o carro dos Assuntos Internos abrandar e encostar ao passeio enquanto os dois esperavam que ele entrasse no carro e arrancasse. Bosch fez o que eles queriam. Porque era o que ele queria. A Woodrow Wilson Drive subia serpenteando, no sentido contrrio ao dos ponteiros do relgio, volta das Hollywood Hills, o asfalto rachado e remendado nunca suficientemente largo para passarem dois carros sem terem de reduzir cautelosamente a velocidade. Quando se sobe, as casas esquerda rastejam na vertical pela encosta acima. Aquilo era dinheiro antigo, slido e seguro. Telhados e reboco espanhola. A direita, 229 as casas mais modernas erguem destemidamente as suas divises em estrutura de madeira por cima das ravinas rochosas de arbustos castanhos e margaridas do desfiladeiro. Esto equilibradas em estacas e esperana e esto to tenuamente agarradas beira da colina como os seus proprietrios s posies que ocupam nos estdios l em baixo. A casa de Bosch era a quarta a contar da ponta do lado direito. Quando fez a ltima curva, a casa ficou vista. Ele olhou para a madeira escura, para o desenho caixa de sapato, procura de um sinal de que qualquer coisa tinha mudado como se o exterior da casa lhe pudesse dizer se havia algo de errado com o interior. Nessa altura, olhou pelo espelho retrovisor e apanhou a frente do Plymouth preto a aparecer na curva. Bosch estacionou debaixo do telheiro ao lado da casa e saiu. Entrou sem olhar para trs, para o carro que o vigiava. Tinha ido at ao cais para pensar no que Rourke tinha dito. E ao faz-lo, pensou na chamada desligada que estava registada no seu atendedor de chamadas. Agora, dirigiu-se para a cozinha e ouviu as mensagens gravadas. Primeiro, havia a chamada desligada que tinha entrado na tera-feira e depois a mensagem de Jerry Edgar s primeiras horas da manh quando Edgar tinha telefonado procura de Bosch para lhe dizer para ir ter com ele ao Hollywood Bowl. Bosch voltou a andar com a fita para trs e voltou a ouvir a chamada desligada, censurando-se em silncio por no ter dado conta da sua importncia da primeira vez que a ouvira. Algum tinha telefonado, ouvido a mensagem gravada dele, desligado depois de ouvir o primeiro apito. O desligar tinha ficado gravado na fita. A maioria das pessoas, quando no queria deixar recado, teria muito simplesmente desligado mal ouvisse a voz gravada de Bosch a dizer que no estava em casa. Ou, se pensassem que Bosch estava em casa, teriam chamado pelo nome dele mal ouvissem o apito. Mas esta pessoa tinha ouvido a mensagem toda e s tinha desligado quando ouviu o sinal. Porqu? Bosch tinha deixado passar aquilo da primeira vez, mas agora estava convencido de que a chamada tinha sido um teste para um transmissor. Foi ao armrio ao lado da porta e tirou uns binculos. Foi at janela da sala e espreitou por uma nesga da cortina procura do Plymouth preto. Estava meio quarteiro mais acima. Lewis e Clarke tinham passado pela casa, dado a volta e estacionado junto do passeio, virados para baixo e prontos para continuar a perseguio se Bosch sasse. Com os binculos, Bosch conseguia ver Lewis ao volante a vigiar a casa. Clarke tinha encostado a cabea ao encosto do banco e tinha os olhos fechados. 230 Nenhum deles parecia estar a usar auscultadores. Mesmo assim, Harry tinha de se certificar. Sem despegar os olhos dos binculos, esticou a mo para a porta da frente, abriu-a uns centmetros e voltou a fech-la.

Os homens no carro dos Ais no mostraram qualquer reaco. Clarke continuou com os olhos fechados. Lewis continuou a limpar os dentes com um carto de visita. Bosch concluiu que se eles tivessem posto um microfone l dentro, este estaria a transmitir para um receptor que estaria longe. Era mais seguro assim. Provavelmente, uma bobine minscula activada pelo som escondida no exterior da casa. Esperariam at ele se afastar no carro e depois um deles saltaria do carro recolheria rapidamente a bobine, substituindo-a por uma nova. Depois poderiam apanh-lo antes de ele descer a colina e entrar na auto-estrada. Afastou-se da janela e fez uma inspeco rpida sala e cozinha. Verificou a parte de baixo das mesas e os objectos elctricos, mas no encontrou o microfone e tambm no estava espera de o encontrar. O stio inteligente, como ele sabia, era o telefone que ele estava a guardar para o fim. Tinha uma fonte de alimentao e a sua colocao ali daria uma boa recepo do interior da casa assim como de todas as conversas que se fizessem pelo telefone. Bosch agarrou no telefone e com um canivete pequenino que estava preso ao porta-chaves abriu a tampa do bucal. L dentro, no havia nada que no devesse estar. Tirou a tampa do auscultador. Estava l. Usando o canivete, levantou o microfone com todo o cuidado. Preso atrs dele por um pequeno magnete, estava um transmissor pequeno, achatado e redondo com o tamanho aproximado de uma moeda de vinte e cinco cntimos. Dois fios presos ao aparelho que, sabia ele, era activado pelo som e se chamava T-9. Um dos fios estava enrolado volta de um dos fios do receptor do telefone, roubando electricidade para o microfone. O outro fio entrava na caixa do telefone. Bosch puxou-o para fora com todo o cuidado e saiu a fonte de energia suplementar: uma caixa pequena e delgada contendo apenas uma pequena pilha AA. O microfone era alimentado pela corrente do telefone, mas se o telefone fosse desligado, a pilha podia fornecer a energia necessria para cerca de oito horas. Bosch desligou o aparelho do telefone e colocou-o em cima da mesa. Agora estava a alimentar-se da pilha. Ficou a olhar para ele a pensar no que devia fazer. Era uma escuta clssica da polcia. Capacidade de alcance, de quatro metros e meio a seis, preparado para apanhar tudo o que fosse dito na sala. O alcance da transmisso era mnimo, talvez uns vinte e cinco metros, no mximo, dependendo da quantidade de metal dentro do edifcio. 231 Bosch foi outra vez at janela da sala e espreitou para a rua. Lewis e Clarke continuavam a no mostrar sinais de alerta ou de que o microfone tivesse sido descoberto. Lewis j tinha acabado de limpar os dentes. Bosch ligou o stereo e ps um CD de Wayne Shorter. Depois saiu pela porta da cozinha para o telheiro do carro. No podia ser visto do carro dos Assuntos Internos. Encontrou o gravador no primeiro stio onde procurou: a caixa de juno por baixo do contador de electricidade na parede do fundo do telheiro para o carro. As duas bobines de cinco centmetros estavam a girar ao som do saxofone de Shorter. O gravador Nagra, tal como o T-9, estava ligado corrente da casa, mas tinha uma pilha de reserva. Bosch desligou-o e levou-o para dentro, colocando-o em cima da mesa, ao lado do microfone. Shorter estava a acabar 502 Blues. Bosch sentou-se na cadeira da viglia, acendeu um cigarro e ps-se a olhar para o aparelho enquanto tentava imaginar um plano. Estendeu a mo, voltou a rebobinar a fita e carregou no play. A primeira coisa que ouviu foi a sua prpria voz a dizer que no estava l, depois a mensagem de Herry Edgar sobre o Hollywood Bowl. Os sons seguintes eram a porta a abrir e a fechar por duas vezes e depois o saxofone de Wayne Shorter. Tinham mudado as fitas pelo menos uma vez desde o ltimo telefonema que ele tinha feito. Foi ento que se apercebeu de que a visita de Eleanor Wish tinha sido gravada. Pensou naquilo e perguntou para consigo se o microfone teria apanhado o que fora dito na varanda das traseiras. As histrias de Bosch a respeito de si prprio e de Meadows. Ficou furioso ao pensar naquela intromisso, no momento delicado roubado por aqueles dois homens no Plymouyh preto. Fez a barba, tomou um duche e vestiu roupa lavada, um fato castanho claro com uma camisa oxford cor-de-rosa e uma gravata azul. Depois, voltou sala e meteu o microfone e o transmissor nos bolsos do casaco. Espreitou outra vez pelas cortinas com os binculos: continuava a no haver movimento no interior do carro do

Departamento dos Assuntos Internos. Voltou a sair pela porta lateral e desceu cuidadosamente pelo talude at base do primeiro pilar, uma viga de ao. Atravessou com toda a prudncia o declive por baixo da sua casa. Pelo caminho, reparou que os arbustos secos estavam salpicados com farrapinhos de prata dourada, o rtulo da garrafa de cerveja que ele tinha arrancado e deitado fora pela varanda quando estava com Eleanor. Mal chegou ao outro lado da casa, atravessou a colina, seguindo por baixo das trs casas de pilares seguintes. Depois da terceira, trepou a encosta e, na curva, espreitou para a estrada. Agora estava atrs do Plymouth preto. Arrancou os carrapichos das bainhas das calas e avanou descontraidamente para a rua. Bosch aproximou-se sem ser notado da porta do lado do passageiro. A janela estava aberta e, no preciso instante em que abriu a porta de rompante, pensou que ouvia ressonar dentro do carro. A boca de Clarke estava aberta e os olhos ainda fechados quando Bosch se inclinou para dentro do carro e agarrou os dois homens pelas gravatas de seda. Bosch colocou o p no degrau da porta para servir de alavanca e puxou os dois homens para ele. Embora fossem dois, a vantagem era de Bosch. Clarke estava desorientado e Lewis no tinha muito mais noo do que ele do que se estava a passar. Pux-los pelas gravatas queria dizer que qualquer luta ou resistncia s servia para lhes apertar as gravatas em volta do pescoo cortando-lhes o ar. Saram quase de boa vontade, tropeando como ces presos pela trela e aterraram ao lado de uma palmeira plantada a cerca de um metro do passeio. Tinham as caras vermelhas e contorcidas. Levaram as mos aos pescoos, agarrando os ns das gravatas enquanto se debatiam para voltar a meter ar nos pulmes. As mos de Bosch foram-lhes aos cintos e arrancaram as algemas. Enquanto os dois detectives dos Assuntos Internos engoliam arfadas de ar atravs das gargantas reabertas, Bosch conseguiu algemar a mo esquerda de Lewis mo direita de Clarke. Depois, do outro lado da rvore, meteu a mo de Lewis no outro conjunto de algemas. Mas Clarke percebeu o que que Bosch estava a fazer e tentou levantar-se e libertar-se. Bosch voltou a agarr-lo pela gravata e puxou-o para baixo com toda a fora. A cara de Clarke veio para a frente e embateu na palmeira. Ficou momentaneamente atordoado e Bosch fechou a ltima algema no pulso dele. Os dois chuis dos AI estavam espojados no cho, presos um ao outro, com a palmeira no meio do crculo dos braos de ambos. Bosch tirou-lhes as armas dos coldres e depois recuou para recuperar o flego. Atirou as armas para o assento da frente do carro deles. - Ts feito - conseguiu finalmente Clarke rosnar com a garganta inchada. Conseguiram levantar-se e ficaram de p com a palmeira no meio dos dois. Pareciam dois adultos apanhados a brincar minha macha-dinha. - Agresso a um colega, duas acusaes - disse Lewis. - Conduta imprpria. Agora, podemos tramar-te por meia dzia de outras coisas, 232 Bosch. - Tossiu violentamente e o cuspo atingiu o casaco do fato de Clarke. - Soltanos e talvez possamos esquecer isto. - Nem pensar. No vamos esquecer porra nenhuma - disse Clarke para o colega. Ele vai cair como um parvalho em chamas. Bosch tirou o aparelho de escuta do bolso e segurou-o na palma da mo de forma a que eles o vissem. - Quem que se vai lixar? - perguntou. Lewis olhou para o microfone, percebeu o que era e disse: - Ns no sabemos nada a respeito disso. - Claro que no - disse Bosch. Tirou o gravador do outro bolso e estendeu-o tambm. - Um Nagras sensvel ao som, o que vocs usam nos vossos trabalhinhos, legais ou no, no verdade? Descobri-o no meu telefone. Ao mesmo tempo que reparei que vocs, seus macacos, me tm estado a seguir por toda a cidade. No de concluir que vocs tambm me puseram o microfone para poderem ouvir alm de ver? Nem Lewis nem Clarke responderam e Bosch tambm no estava espera que o fizessem. Reparou numa pequena gota de sangue no canto de uma das narinas de Clarke. Um carro que subia a Woodrow Wilson abrandou e Bosch puxou do distintivo

e mostrou-o. O carro continuou a andar. Os dois detectives dos Assuntos Internos no gritaram a pedir ajuda o que fez com que Bosch se comeasse a sentir seguro. Isto ia ser jogado maneira dele. O departamento tinha tido tanta m publicidade por ter feito escutas ilegais a funcionrios, dirigentes dos direitos civis, e at mesmo a estrelas de cinema, que estes dois no iam levantar problemas com aquilo. Salvar a prpria pele vinha primeiro do que esfolar Bosch. - Tm um mandado a dizer que podem pr-me sob escuta? - Ouve o que te estou a dizer, Bosch - disse Lewis. - J te disse que... - No me parece. preciso ter provas da existncia de um crime para conseguir um mandado. Pelo menos, o que sempre ouvi. Mas o Departamento dos Assuntos Internos no costuma preocupar-se com coisas dessas. Sabes o que que o teu caso de agresso parece, Clarke? Enquanto vocs os dois me estiverem a levar Comisso de Direitos e a conseguirem que me despeam por vos ter arrastado para fora do carro e vos ter posto umas manchas de erva nos vossos cus brilhantes, eu vou levar-vos a vocs os dois, ao vosso patro Irving, ao Departamento dos Assuntos Internos, ao chefe da polcia e porra da cidade inteira a tribunal federal num processo da Quarta Emenda. Busca e deteno ilegais. E at junto tambm o Presidente da Cmara. Que tal? Clarke cuspiu para a relva aos ps de Bosch. Uma gota de sangue do nariz caiu-lhe na camisa branca. Disse: - No podes provar que fomos ns, porque no fomos. - Bosch, o que que queres? - perguntou Lewis furioso, a cara ainda mais vermelha do que quando a gravata lhe tinha sido apertada volta do pescoo como se fosse um n da forca. Bosch comeou a andar vagarosamente em redor dos dois, para eles terem de estar constantemente a virar as cabeas ou a dobrarem-se em volta da rvore para o poderem ver. - O que que eu quero? Bem, por muito que despreze os dois, no estou particularmente interessado em arrastar os vossos cus para o tribunal. Arrast-los pelo passeio j foi suficiente. O que eu quero... - Bosch, devias mandar examinar a porra da tua cabea - explodiu Clarke. - Cala-te, Clarke - ordenou Lewis. - Cala-te tu - retorquiu Clarke. - Por acaso, at j ma examinaram - disse Bosch. - E continuo a preferir ter a minha a ter uma das vossas. Vocs iam precisar de um proctologista para ver as vossas. Disse isto quando passava por trs de Clarke. Depois afastou-se alguns passos e continuou a andar s voltas. - Ora bem, vou dizer-vos uma coisa: estou disposto a esquecer isto. a nica coisa que tm de fazer responder a umas perguntas e ficamos com este mal entendido arrumado. Solto-vos. Afinal de contas, fazemos todos parte da Famlia, no assim? - Que perguntas, Bosch? - perguntou Lewis. - De que que ests a falar? - Quando que comearam a vigilncia? - Tera-feira de manh, apanhmos-te quando estavas a sair do FBI - respondeu Lewis. - No lhe digas pevas, p - disse Clarke ao colega. - Ele j sabe. Clarke olhou para Lewis e abanou a cabea como se no quisesse acreditar no que estava a ouvir. - Quando que puseram o microfone em minha casa? - No pusemos - disse Lewis. 235 - Mentira. Mas no interessa. Viram-me interrogar o mido em Boytown. Foi uma afirmao e no uma pergunta. Bosch queria que eles pensassem que ele sabia praticamente tudo e s precisava de preencher umas lacunas. - Sim - disse Lewis. - Foi o nosso primeiro dia. Quer dizer que nos topaste. E da, porra? Harry viu Lewis levar a mo na direco do bolso do casaco. Avanou rapidamente e meteu a mo primeiro. Tirou um chaveiro que inclua uma chave das algemas. Atirou as chaves para dentro do carro. Por trs de Lewis, disse:

- A quem que contaram? - Contar? Sobre o mido? - disse Lewis. - A ningum. No contmos a ningum, Bosch. - Vocs escrevem um relatrio dirio da vigilncia, no escrevem? Tiram fotografias, no tiram? Aposto que h uma mquina no banco de trs do vosso carro. A no ser que se tenham esquecido e a tenham deixado no porta-bagagens. - Claro que fazemos isso tudo. Bosch acendeu um cigarro e recomeou a andar. - Para onde que foi tudo? Passaram-se alguns instantes antes que Lewis respondesse. Bosch viu-o trocar um olhar com Clarck. - Entregmos o primeiro relatrio e o rolo ontem. Metemo-lo na caixa do chefe. Como de costume. Nem sequer sei se ele j olhou para ele. Foi o nico relatrio que fizemos at agora. Por isso, Bosch, tira-nos l estas algemas. Isto embaraoso. As pessoas esto a ver-nos e essa merda toda. Podemos continuar a falar depois. Bosch meteu-se entre os dois e, soprando o fumo para cima deles, disse que as algemas ficavam at a conversa acabar. Depois inclinou-se para a cara de Clarke e perguntou: - Quem mais recebeu uma cpia? - Do relatrio da vigilncia? Ningum recebeu uma cpia, Bosch - respondeu Lewis. - Isso seria violar as regras do departamento. Bosch soltou uma gargalhada e sacudiu a cabea ao ouvir aquilo. Sabia que eles no iriam admitir nenhuma ilegalidade ou violao das regras do departamento. Comeou a afastar-se, em direco a casa. - Espera um minuto, espera um minuto, Bosch! - gritou Lewis - Entregmos uma cpia ao teu tenente. Est bem? Anda c! Bosch voltou a aproximar-se deles e Lewis continuou: - Ele queria manter-se informado. Tivemos que o fazer. O DC, o Irving, deu autorizao. Fizemos o que nos mandaram fazer. - O que que o relatrio dizia sobre o mido? - Nada. Que era um mido qualquer, mais nada... Uh, Sujeito envolveu-se numa conversa com um adolescente. O adolescente foi transportado para a Esquadra de Hollywood para interrogatrio formal, qualquer coisa parecida com isto. - Identificaram-no no relatrio? - No havia nome. Ns nem sequer sabamos o nome dele. Palavra, Bosch. S te andmos a vigiar. Agora, tira-nos as algemas. - E quanto Home Street Home? Vocs viram-me lev-lo para l. Estava no relatrio? - Sim, estava no relatrio. Bosch voltou a aproximar-se para muito perto deles. - E agora aqui est a pergunta importante. Se j no h nenhuma queixa do FBI contra mim, por que que o Departamento dos Assuntos Internos continua em cima de mim? O FBI ligou para o Pounds e retirou a queixa. E depois, vocs agem como se tivessem sido mandados parar, mas no pararam. Porqu? Lewis ia comear a dizer qualquer coisa, mas Bosch interrompeu-o. Queria que fosse Clarke a responder. - Ests a pensar demasiado depressa, Lewis. - Clarke no disse uma palavra. - Clarke, o mido que viste comigo acabou por ser morto. Algum o matou porque ele falou comigo. E as nicas pessoas que sabiam que ele tinha falado comigo eras tu e o teu colega. Passa-se qualquer coisa e se eu no conseguir as respostas de que preciso, vou expor isto tudo, vou tornar tudo pblico. E vocs vo acabar com os vossos cus a serem investigados pelos Assuntos Internos. Clarke disse as suas primeiras palavras em cinco minutos. - Vai-te foder! - Lewis intrometeu-se. - Olha, Bosch, eu explico-te. O FBI no confia em ti. A coisa essa. Disseram que te meteram no caso, mas a ns disseram que no tinham a certeza a teu respeito. Disseram que foraste a tua entrada e que eles vo ter de te ter debaixo de olho para terem a certeza que no ests a tramar alguma. tudo. Por isso, disseram-nos para recuar, mas para continuarmos em cima de ti. Foi o que fizemos. tudo, p. Agora

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237 solta-nos. Mal consigo respirar e os pulsos esto a comear a doer-me com estas algemas. Puseste-as muito apertadas. Bosch voltou-se para Clarke. - Onde que est a tua chave das algemas? - No bolso da frente - respondeu ele. Estava muito calmo, recusando-se a olhar para a cara de Bosch. Bosch deu a volta por trs dele e rodeou-lhe a cintura com as duas mos. Tirou o porta-chaves do bolso de Clarke e depois murmurou-lhe ao ouvido: - Clarke, se voltares a entrar em minha casa, mato-te. Depois puxou as calas e os boxers dos detectives at aos tornozelos e comeou a afastar-se. Atirou o porta-chaves para dentro do carro. - Filho da puta! - gritou Clarke. - Eu mato-te primeiro, Bosch! Enquanto conservasse o microfone e o Nagra em seu poder, Bosch estava razoavelmente convencido de que Lewis e Clarke no iriam tentar que o departamento apresentasse queixa dele. Tinham mais a perder do que ele. Um processo e um escndalo pblico interrompia-lhes a carreira no patamar para o sexto andar. Bosch meteu-se no carro e voltou para o Edifcio Federal. Demasiadas pessoas tinham sabido do Sharkey ou tinham tido oportunidade de saber, compreendeu ele quando tentava fazer uma avaliao da situao. No havia nenhuma maneira expedita de identificar o informador interno. Lewis e Clarke tinham visto o rapaz e passado a informao a Irving e a Pounds e sabia-se l a quem mais. Rourke e o funcionrio dos registos do FBI tambm sabiam. E estes nomes nem sequer incluam as pessoas da rua que podiam ter visto Sharkey com Bosch, ou que tinham ouvido que Bosch andava procura dele. Bosch sabia que ia ter de esperar que os acontecimentos evolussem. No Federal Building, a recepcionista ruiva por trs da janela de vidro do andar do FBI f-lo esperar enquanto ligava para o Grupo 3. Voltou a observar o cemitrio atravs da cortina de gaze e viu vrias pessoas a trabalhar na trincheira aberta na colina. Estavam a forrar a ferida da terra com blocos de pedra preta onde, com o Sol, refulgiam intensos pontos de luz branca. E finalmente, Bosch achou que sabia o que que eles estavam a fazer. A fechadura da porta atrs dele zumbiu e Bosch entrou. Era meio-dia e meia e toda a gente tinha sado excepto Eleanor Wish. Estava sentada secretria a comer uma sanduche de salada de ovo, do tipo das que so vendidas numas caixas de plstico triangulares em todas as cafetarias dos edifcios governamentais que ele conhecia. A garrafa de plstico e o copo de papel estavam em cima da secretria. Trocaram um tmido ol. Bosch sentia que as coisas entre eles tinham mudado, mas no sabia quanto. - Ests aqui desde manh? - perguntou ele. Ela respondeu que no. Disse-lhe que tinha levado as fotografias de Franklin e Delgado aos funcionrios da caixa-forte do WestLand National e que uma das mulheres tinha identificado Franklin como sendo Fredric B. Isley, o dono do cofre na caixa-forte. O batedor. - o suficiente para um mandado, mas o Franklin no aparece - disse ela. - O Rourke mandou uma equipa s moradas que a DGV tinha dele e do Delgado. Telefonaram h bocadinho. Ou eles se mudaram ou nunca viveram naqueles stios. Parece que desapareceram. - E agora? O que que se segue? - No sei. O Rourke est a falar em fechar a loja por agora, at os apanharmos. Provavelmente, vais ter de voltar para os Homicdios. Quando apanharmos um deles, voltamos a ir buscar-te para o trabalhares em relao ao homicdio do Meadows. - E tambm no do Sharkey. No te esqueas. - Sim, esse tambm. Bosch assentiu com a cabea. Estava acabado. O departamento ia fechar o caso. - A propsito, tens um recado - disse ela. - Telefonaram para ti e deram o nome Hector. Mais nada.

Bosch sentou-se secretria ao lado dela e marcou o nmero directo de Hector Villabona. Ele atendeu ao segundo toque. - o Bosch. - Ei, o que que ests a fazer com o FBI? - perguntou ele.- Telefonei para o nmero que me deste e algum me disse que era o FBI. - Pois, uma longa histria. Eu depois conto-te. Conseguiste alguma coisa? - No consegui grande coisa, Harry e tambm no vou conseguir. No consigo obter o ficheiro. Este gajo, o Bihn, seja l quem for, ele tem algumas ligaes. Tal como calculmos. O ficheiro dele ainda est como classificado. Telefonei a um tipo que l conheo e pedi-lhe para mo mandar. Ele telefonou a dizer que era impossvel. - Por que que ainda secreto? - Quem sabe, Harry? por isso que ainda est como classificado. Para que as pessoas no possam descobrir esta merda. - Bem, obrigado. Agora tambm j no parece to importante. - Se tiveres uma fonte no Departamento de Estado, algum com peso, possvel que tenham mais sorte do que eu. Eu no passo de um insignificante. Mas, ouve, h uma coisa que este tipo que eu conheo deixou assim a modos que escapar. - O qu? - Bem, ests a ver, eu dei-lhe o nome do Binh. E quando ele me telefonou disse: Lamento. O ficheiro do capito Binh classificado. Foi exactamente assim que ele disse. Capito, chamou-lhe ele. Por isso este tipo deve ter sido militar. Provavelmente, foi por isso que o tiraram de l to depressa. Se era militar, no h dvida que lhe salvaram o couro. - Pois - disse Bosch. Depois agradeceu a Hector e desligou. Voltou-se para Eleanor e perguntou se ela tinha alguns contactos no Departamento de Estado. Ela abanou a cabea negativamente. - Servios Secretos militares, CIA, qualquer coisa dessas? - insistiu Bosch. - Algum com acesso aos computadores? Ela pensou durante uns instantes e disse: - Bem, h um tipo no andar do Estado. Conheo-o mais ou menos de DC. Mas o que que se passa, Harry? - Podes telefonar-lhe e dizer que precisas de um favor? - Ele no fala ao telefone de assuntos de servio. Teremos de ir l abaixo. Bosch levantou-se. Fora do gabinete, quando estavam espera do elevador, contou-lhe do Binh, do seu posto militar e do facto de ele ter sado do Vietname no mesmo dia que Meadows. As portas do elevador abriram-se , entraram e ela carregou para o stimo andar. Estavam sozinhos. - Tu sempre soubeste que eu estava a ser seguido pelos Assuntos Internos - disse Bosch. - Vi-os. - Mas sabias antes de os teres visto, no sabias? - Isso faz alguma diferena? - Acho que faz. Por que que no me disseste? - Ela levou um bocado a responder. O elevador parou. - No sei - respondeu por fim. - Desculpa. No o fiz logo e depois, quando quis dizerte no fui capaz. Pensei que ia estragar tudo. Calculo que, de certa maneira, estragou mesma. - Por que que no me disseste logo, Eleanor? Porque ainda havia dvidas a meu respeito? Ela olhou para o canto do elevador em ao inoxidvel. - Ao princpio, sim, ns no estvamos seguros de ti. No vou mentir sobre isso. - E depois do princpio? A porta abriu-se no stimo andar. Eleanor saiu dizendo: - Ainda aqui ests, no verdade? Bosch saiu atrs dela. Agarrou-a pelo brao e f-la parar. Ficaram ali parados enquanto dois homens com fatos cinzentos quase iguais corriam para a porta aberta do elevador. - Sim, ainda c estou, mas tu no me disseste nada acerca deles. - Harry, no podemos falar disso noutra altura? - O problema que eles nos viram com o Sharkey.

- Pois, foi o que eu pensei. - Bem, por que que no disseste nada quando eu falei de informador interno, quando te estava a perguntar a quem que tinhas contado do mido? - No sei. Bosch olhou para os ps. Sentia-se como se fosse o nico homem no planeta que no compreendia o que se estava a passar. - Falei com eles - disse ele. - Eles garantem que s nos viram com o mido. Nunca se deram ao trabalho de investigar de que que se tratava. Disseram que no tinham a identificao dele. O nome do Sharkey no constava dos relatrios deles. - E tu acreditas neles? - Nunca tinha acreditado antes. Mas no os vejo envolvidos nisto. No encaixa. Eles andam apenas atrs de mim e so capazes de tudo para me apanharem. Mas no de matar uma testemunha. Isso seria uma loucura. - Talvez eles estejam a dar informaes a algum que esteja envolvido e no saibam. Bosch voltou a pensar em Irving e Pounds. - uma possibilidade. O que interessa que h algum metido nisto c dentro. Algures. Isto sabemos ns. E pode ser do meu lado. Pode ser do teu. Por isso, vamos ter de ter muito cuidado em relao s pessoas com quem falamos e ao que dizemos. Passado um instante, olhou-a nos olhos e perguntou: - Acreditas em mim? Ela levou muito tempo, mas por fim assentiu com a cabea. - No consigo pensar em nenhuma outra forma de explicar o que est a acontecer. 240 241 Eleanor dirigiu-se para a recepcionista enquanto Bosch se deixava ficar ligeiramente para trs. Alguns minutos depois, uma jovem saiu de uma porta que estivera fechada e levou-os por uns corredores at a um pequeno gabinete. No estava ningum sentado secretria. Sentaram-se nas duas cadeiras em frente da secretria e esperaram. - Com quem que vamos falar? - perguntou-lhe Bosch num murmrio. - Eu apresento-te e ele logo te diz o que ele quiser que tu saibas a respeito dele respondeu ela. Bosch ia perguntar-lhe o que que aquilo queria dizer quando a porta se abriu e um homem entrou. Parecia andar pelos cinquenta anos, cabelo prateado muito bem cuidado e penteado, compleio forte sob o blazer azul. Os olhos cinzentos do homem eram to baos como as brasas numa barbecue no dia seguinte. Sentou-se e no olhou para Bosch. Manteve os olhos fixos em Eleanor Wish. - Ellie, bom ver-te de novo - disse ele. - Como tens passado? - Ela respondeu que estava ptima, trocaram mais umas amabilidades e ela apresentou Bosch. O homem levantou-se e esticou-se por cima da secretria para trocarem um aperto de mo. - Bob Ernest, vice-subsecretrio, comrcio e desenvolvimento, prazer em conheclo. Ento isto quer dizer que uma visita oficial e no apenas uma visitinha para ver um velho amigo? - Pois , lamento, Bob, mas estamos a trabalhar numa coisa e precisamos de ajuda. - Tudo o que eu puder, Ellie - disse Ernest. Estava a irritar Bosch e Bosch s o conhecia h um minuto. - Bob, precisamos de umas informaes sobre uma pessoa cujo nome apareceu num caso em que estamos a trabalhar - explicou Eleanor Wish. - Penso que ests numa posio que te permitir arranjar-nos essas informaes sem grande dificuldade e sem perderes muito tempo. - O nosso problema exactamente esse - acrescentou Bosch. - um caso de homicdio. No temos muito tempo para podermos usar os canais habituais. Para esperar pelas coisas de Washington. - Um residente estrangeiro? - Vietnamita - respondeu Bosch. - Quando que veio para c? - 4 de Maio, 1975.

242 - Ah, logo a seguir queda. Estou a ver. Digam-me, em que raio de homicdio que o FBI e o Departamento da Polcia de Los Angeles esto a trabalhar juntos e que envolve uma histria to antiga e, ainda por cima, tambm a histria de outro pas? - Bob - comeou Eleanor a dizer -, acho que... - No, no respondam - exclamou Ernest. - Acho que tens razo. Ser melhor compartimentalizarmos as informaes. Ernest dedicou-se a endireitar o mata-borro e os objectos em cima da secretria. Para comear, no havia nada fora do lugar. - Para quando que precisam dessas informaes? - perguntou por fim. - Para agora - respondeu Eleanor. - Ns ficamos espera - acrescentou Bosch. - Claro que compreendem que posso no conseguir nada, especialmente to em cima da hora? - Claro - respondeu Eleanor. - Dem-me o nome. Ernest fez deslizar uma folha de papel por cima do mata-borro. Eleanor escreveu o nome de Binh e empurrou-o para ele. Ernest olhou para o nome durante uns curtos instantes e levantou-se sem nunca tocar no papel. - Vou ver o que posso fazer - disse ele e saiu da sala. Bosch olhou para Eleanor. - Ellie? - Por favor, no admito que ningum me chame isso. por isso que no atendo os telefonemas dele e nunca os retribuo. - Queres dizer, at agora. Vais ficar a dever-lhe um favor. - Se ele descobrir alguma coisa. E tu tambm vais ficar. - Acho que vou ter de deixar que ele me trate por Ellie. - Ela no sorriu. - Afinal, como que conheceste este tipo? - Ela no respondeu. Bosch disse: - Provavelmente est a ouvir o que ns estamos a dizer. Olhou em volta da sala, embora, obviamente, qualquer aparelho de escuta que pudesse haver tivesse de estar escondido. Puxou dos cigarros quando viu um cinzeiro em cima da secretria. - Por favor, no fumes - pediu Eleanor. - S um. 243 - Conheci-o quando estvamos os dois em Washington. J nem me lembro a propsito de qu. Ele tambm era vice qualquer coisa do Departamento de Estado nessa altura. Tommos umas bebidas. Mais nada. Algum tempo depois, ele transferiu-se para c. Quando me viu no elevador e descobriu que tambm tinha sido transferida, comeou a telefonar. - CIA, certo? Ou qualquer coisa muito parecida. - Mais ou menos. Acho eu. No interessa se ele conseguir o que queremos. - Mais ou menos. Conheci uns merdosos como ele durante a guerra. Por muita coisa que ele nos venha a dizer hoje, vai ficar sempre muita coisa de fora. Para tipos deste calibre, a informao a moeda de troca deles. Nunca do tudo. Tal como ele disse, eles compartimentalizam tudo. So capazes de nos deixar morrer antes de dizerem tudo. - Podamos parar de falar agora? - Claro... Ellie. Bosch ocupou o tempo a fumar e a olhar para as paredes vazias. O tipo no fez nenhum esforo para fazer com que aquilo parecesse um gabinete a srio. No havia bandeira no canto. Nem sequer uma fotografia do presidente. Ernest voltou ao fim de vinte minutos e, nessa altura, Bosch j ia no seu segundo meio cigarro. Quando o vice-subsecretrio do comrcio e desenvolvimento entrou na sala de mos vazias, disse: - Detective, importava-se de no fumar aqui dentro? Acho isso muito desagradvel numa sala fechada. Bosch apagou o cigarro na tigelinha preta no canto da secretria. - Desculpe - disse ele. - Vi o cinzeiro. Pensei que... - No um cinzeiro, detective - disse Ernest num tom sombrio. - uma tigela de

arroz com trezentos anos. Trouxe-a comigo depois da minha comisso no Vietname. - Tambm j estava a trabalhar no comrcio e desenvolvimento nessa poca? - Desculpa, Bob, descobriste alguma coisa? - intrometeu-se Eleanor. - Sobre o nome? Ernest levou um bom bocado a afastar os olhos de Bosch. - Descobri muito pouca coisa, mas o que arranjei capaz de ser til. Este homem, Binh, um antigo polcia militar de Saigo. Um capito... Bosch, voc veterano desta altercao? - Est a referir-se guerra? Sim, sou. 244 - Claro que - disse Ernest. - Diga-me, esta informao diz-lhe alguma coisa? - No muito. Eu passei quase toda a minha comisso no interior do pas. No vi grande coisa de Saigo, excepto os bares dos Yanks e as salas de tatuagens. O tipo era capito da polcia, isso devia ter algum significado para mim? - Suponho que no. Por isso, deixe-me dizer-lhe. Como capito, o Binh dirigia a unidade de combate droga do departamento da polcia. Bosch pensou naquilo e disse: - OK, provavelmente, era to corrupto como tudo o que estava relacionado com aquela guerra. - Suponho que, vindo do interior do pas, voc no sabe muita coisa sobre o sistema, a maneira como as coisas funcionavam em Saigo? - perguntou Ernest. - Por que que no nos explica? Parece-me que isso era do seu departamento. O meu era apenas tentar manter-me vivo. Ernest ignorou a provocao. Resolveu tambm ignorar Bosch. S olhou para Eleanor enquanto falava. - Era tudo muito simples, na verdade - explicou ele. - Se negociasses em substncias, carne humana, jogo, qualquer outra coisa no mercado negro, eras obrigada a pagar uma tarifa local, uma dzima casa, por assim dizer. Esse pagamento mantinha a polcia local afastada. Praticamente, garantia que o negcio no seria interrompido dentro de certos limites. S tinhas de te preocupar com a polcia militar dos Estados Unidos. Claro, eles tambm podiam ser comprados, calculo eu. Sempre se falou nisso. Bem, seja como for, o sistema funcionou durante anos, desde o princpio do princpio at depois da retirada americana, at, calculo eu, 30 de Abril de 1975, o dia em que Saigo caiu. Eleanor assentiu com a cabea e ficou espera que ele continuasse. - O envolvimento militar americano durou mais de uma dcada, antes disso havia os franceses. Estamos a falar de muitos, muitos anos de interveno estrangeira. - Milhes - disse Bosch. - O qu? - Est a falar de milhes de dlares de subornos. - Sim, exactamente. Dezenas de milhes quando se soma os anos todos. - E onde que o capito Binh encaixa nisso? - perguntou Eleanor. 245 - Ests a ver - disse Ernest -, a informao que tnhamos na altura era que a corrupo dentro da polcia de Saigo era orquestrada ou controlada por uma trade chamada Os Trs do Diabo. Pagavas-lhes ou no fazias negcio. Era muito simples. - Por coincidncia, ou melhor, por no haver coincidncia nenhuma, a polcia de Saigo tinha trs capites cujos domnios correspondiam perfeitamente, por assim dizer, aos da trade. Um capito encarregado do vcio. Outro dos narcticos. Outro da patrulha. Segundo as nossas informaes, esses trs capites eram na realidade a dita trade. - Est sempre a dizer As nossas informaes. Isso quer dizer as informaes do comrcio e desenvolvimento? Onde que foi buscar isto? Ernest recomeou a arrumar as coisas em cima da secretria e depois dirigiu-se a Bosch deitando-lhe um olhar gelado. - Detective, veio ter comigo procura de informaes. Se quer saber qual a fonte dessas informaes, ento est muito enganado. Veio ter com a pessoa errada. Pode acreditar no que eu lhe digo ou no. Isso no tem qualquer importncia para mim. Os dois homens entreolharam-se fixamente mas no disseram mais nada.

- O que que lhes aconteceu? - perguntou Eleanor. - Aos membros da trade? Ernest desviou os olhos de Bosch e respondeu: - O que aconteceu foi que quando os Estados Unidos retiraram as suas tropas em 1973, a fonte de recursos da trade ficou bastante reduzida. Mas, como qualquer entidade de negcios responsvel, eles j estavam espera disso e procuraram uma maneira de a substituir. E as nossas informaes poca eram de que eles mudaram consideravelmente de posies. Nos princpios da dcada de setenta passaram do papel de proteco s operaes da droga em Saigo para o de se tornarem parte dessas operaes. Atravs dos contactos polticos e militares e, evidentemente, do poder da polcia, solidificaram-se como intermedirios de toda a herona castanha que vinha das montanhas e era levada para os Estados Unidos. - Mas no durou - disse Bosch. - Oh, no. Claro que no. Quando Saigo caiu em Abril de setenta e cinco, eles tiveram de sair. Tinham ganhado milhes, calcula-se que entre quinze a dezoito milhes de dlares americanos cada um. No teriam o menor valor na nova cidade Ho Chi Minh e, de qualquer das maneiras, tambm no estariam vivos para os gozar. A trade tinha de sair de l se no queria enfrentar o peloto de fuzilamento do Exrcito do Norte. E tinham que sair com o dinheiro... - E como que o fizeram? - perguntou Bosch. - Era dinheiro sujo. Dinheiro que nenhum capito da polcia vietnamita podia ou devia ter. Suponho que o podiam ter mandado para Zurique, mas preciso no nos esquecermos de que estamos a lidar com a cultura vietnamita. Nascida da confuso e da desconfiana. Da guerra. Esta gente nem sequer confiava nos bancos do seu prprio pas. E, alm disso, j no era dinheiro. - O qu? - perguntou Eleanor sem perceber. - Tinham andado a convert-lo. Sabes o que so dezoito milhes em dinheiro? Se calhar enchiam uma sala. Por isso, eles arranjaram maneira de o encolher. Pelo menos, o que julgamos. - Pedras preciosas - disse Bosch. - Diamantes - disse Ernest. - Dizem que com o tipo certo de diamantes, dezoito milhes de dlares deles cabem em duas caixas de sapatos. - E num cofre de uma caixa-forte - disse Bosch. - possvel, sim, mas, por favor, no quero saber aquilo que no preciso de saber. - O Binh era um dos capites - disse Bosch. - Quem eram os outros dois? - Disseram-me que um deles se chamava Van Nguyen. E pensa-se que morreu. Nunca saiu do Vietname. Morto pelos outros dois ou pelo Exrcito do Norte. Mas nunca saiu. Foi confirmado pelos nossos agentes em Ho Chi Minh depois da queda. Os outros dois saram. Vieram para c. E ambos tinham passes, arranjados atravs das ligaes e do dinheiro, calculo eu. Nisso no os posso ajudar... Havia o Binh, que ao que parece vocs descobriram, e o outro era Nguyen Tran. Veio com o Binh. Para onde foram e o que que fizeram c... nisso j no vos posso ajudar. J passaram quinze anos. Mal eles fizeram a travessia, deixaram de ser preocupao nossa. - Por que que vocs os deixaram entrar? - Quem que diz que deixmos? Tem de perceber, detective Bosch, que muitas destas informaes foram coligidas depois do facto. Ernest levantou-se. Aquilo tinha sido toda a informao que ele estava disposto a descompartimentalizar naquele dia. Bosch no queria voltar para o departamento. As informaes de Ernest eram como anfetaminas no seu sangue. Queria andar a p. Queria falar, queria fazer barulho. Quando entraram no elevador carregou no boto para o trio de entrada e disse a Eleanor que iam sair. O departamento parecia um aquariozinho. Ele queria um espao grande. A Bosch sempre lhe tinha parecido que em todas as investigaes, as informaes iam aparecendo devagarinho, como a areia a cair lenta e regularmente pelo gargalo de uma ampulheta. Em determinado momento, havia mais informao no fundo da ampulheta. E ento, a areia na parte de cima parecia comear a cair mais depressa, at se transformar numa cascata. Estavam nesse momento com Meadows, o assalto ao banco, a coisa toda. As coisas estavam a comear juntar-se. Saram pelo trio da frente e atravessaram para o relvado onde havia oito

bandeiras dos Estados Unidos e uma do estado da Califrnia a adejar preguiosamente nos postes dispostos em semicrculo. Desta vez no havia ningum a protestar. O ar estava quente e anormalmente hmido para a poca do ano. - Temos mesmo que andar a passear aqui fora? - perguntou Eleanor. - Preferia estar l em cima, onde estaramos ao p do telefone. Podias tomar um caf. - Quero fumar. Dirigiram-se para norte, na direco do Wilshire Boulevard. Bosch disse: - Estamos em 1975. Saigo est prestes a ir pelo cano abaixo. O capito da Polcia Binh paga a pessoas para o tirar a ele e sua parte dos diamantes dali para fora. A quem que paga, no sabemos. Mas sabemos que ele consegue tratamento VIP durante toda a viagem. A maior parte das pessoas saram de barco, ele foi de avio. Quatro dias de Saigo aos Estados Unidos. Est acompanhado por um conselheiro civil americano para ir aplainando as coisas. E o Meadows. Ele... - Ele pode ter estado acompanhado - disse ela. - Esqueceste-te da palavra pode. - No estamos no tribunal. Estou a dizer da maneira como vejo as coisas, OK? Depois, se no gostares, podes dizer tua maneira. Ela levantou os braos como se se estivesse a render e Bosh continuou. - Portanto, o Meadows e o Binh esto juntos. 1975. O Meadows est a trabalhar na segurana dos civis ou qualquer coisa parecida. Estas a ver, ele tambm se est a raspar dali. Ele pode ter ou no conhecido o Binh dos seus negcios paralelos, do trfico de herona. O mais provvel ter conhecido. Provavelmente at trabalhou mesmo para o Binh. Ora, ele pode ter sabido ou no o que que o Binh carregava consigo. O mais provvel que pelo menos fizesse alguma ideia. Bosch parou para organizar as suas ideias e Eleanor, relutantemente, continuou. - Binh traz consigo o seu desagrado cultural ou desconfiana em meter o dinheiro nas mos dos banqueiros. Alm disso, tambm tem um problema adicional. O dinheiro dele no legal. No foi declarado, desconhecido e ilegal t-lo com ele. No o pode declarar nem fazer um depsito normal porque isso daria nas vistas e ele teria sido obrigado a explicar-se. Por isso, ele guarda a sua nada pequena fortuna na segunda coisa melhor: uma caixa-forte de um banco. Onde que vamos? Bosch no respondeu. Estava demasiado absorvido nos seus prprios pensamentos. Estavam em Wilshire. Quando o sinal para andar faiscou por cima do cruzamento, avanaram com o fluxo de corpos. No outro lado da rua, viraram para ocidente, caminhando ao longo das sebes que bordejavam o cemitrio dos veteranos. Bosch retomou a histria. - OK, ento o Binh meteu a sua parte num cofre de um banco. Comea a viver o seu grande sonho americano como refugiado. S que ele um refugiado rico. Entretanto, o Meadows volta no fim da guerra, no consegue encaixar-se na confuso da vida normal, no consegue vencer o vcio da droga e comea a traficar para alimentar o vcio. Mas as coisas no so to fceis como em Saigo. apanhado, passa algum tempo na choa. Sai, volta, sai e, finalmente comea a cumprir tempo a srio por acusaes criminais federais relacionadas com assaltos a bancos. Havia uma abertura na sebe e um caminho de lajes. Bosch meteu por ele e pararam a olhar para a vastido do cemitrio, as filas de pedras gravadas de um branco polido pelo tempo que se recortavam no mar de relva. A sebe alta abafava o rudo da rua. De repente, havia uma grande paz. - Parece um parque - comentou Bosch. - um cemitrio - sussurrou ela.- Vamo-nos embora. - No preciso sussurrares. Vamos dar uma volta. sossegado. - Eleanor hesitou mas depois foi atrs dele quando ele seguiu pelo caminho das lajes at a um carvalho velho que fazia sombra s campas de um grupo de veteranos da Primeira Guerra Mundial. Apanhou-o e continuou a conversa. - Bem, ento agora temos o Meadows na TI. No se sabe como, ouve falar desta Charlie Company. Consegue atrair a ateno deste soldado-ministro que dirige a comunidade, consegue o seu apoio e consegue sair mais cedo da TI. Na Charlie Company entra em contacto com dois velhos camaradas da guerra. Ou pelo menos aquilo que supomos. O Delgado e o Franklin. S que s h um dia em que os trs

esto todos juntos na Charlie Company. Apenas um dia. Ests a dizer-me que eles cozinharam isto tudo neste nico dia? - No sei - disse Bosch. - Pode ter acontecido. Mas duvido. Pode ter sido planeado mais tarde, depois de eles terem estabelecido contacto na quinta. O importante que os temos juntos, ou muito perto, em Saigo, em 1975. Agora temo-los outra vez juntos na Charlie Company. A seguir, o Meadows acaba o cursinho, arranja uns quantos empregos para disfarar at acabar a liberdade condicional. Depois, despede-se e desaparece. - At? - At ao assalto ao WestLand. Entram e arrombam os cofres todos at encontrarem o do Binh. Ou talvez j soubessem qual era o dele. Devem t-lo seguido quando andavam a preparar o golpe e devem ter descoberto onde que ele guardava o que restava da sua parte dos diamantes. Precisamos de voltar a consultar os registos da caixa-forte para vermos se este Frederic B. Isley alguma vez fez uma visita ao mesmo tempo que o Binh. Aposto que vamos descobrir que fez. Viu qual era o cofre de Binh porque esteve l ao mesmo tempo que ele. Depois, durante o assalto caixa-forte, rebentaram o cofre dele e a seguir os outros todos, levando tudo como camuflagem. A genialidade disto foi eles saberem que o Binh no podia declarar o que lhe tinha sido roubado porque, legalmente, no existia. Eles sabiam disso. Foi perfeito. E o que fez que assim fosse foi eles terem levado todas as outras coisas para encobrir o seu alvo verdadeiro. Os diamantes. - O crime perfeito - disse ela. - At ao Meadows ter empenhado a pulseira com os golfinhos de ouro. isso que faz com que o matem. O que nos trs outra vez pergunta que j fazamos h uns dias atrs. Porqu? outra coisa que no faz sentido: por que que, se o Meadows ajudou a saquear a caixa-forte, ele estava a viver naquele pardieiro? Era um homem rico que no agia como um homem rico. Bosch continuou a andar em silncio durante um bocado. Era a pergunta para a qual ele vinha procura de uma resposta desde o seu encontro com Ernest. Pensou no pagamento adiantado de onze meses da 250 renda de Meadows. Se estivesse vivo, estaria a mudar-se na semana seguinte. Enquanto passeavam pelo jardim de pedras brancas, tudo parecia encaixar. J no havia areia nenhuma na parte de cima da ampulheta. Por fim, falou. - Porque o crime perfeito ainda s ia em metade. Ao empenhar a pulseira, estava a denunci-lo cedo demais. Por isso, ele tinha de morrer e eles tinham de recuperar a pulseira. Ela parou e olhou para ele. Estavam parados na estrada que dava acesso seco da Segunda Guerra Mundial. Bosch reparou que as razes de outro velho carvalho tinham empurrado algumas das lpides gastas, desalinhando-as. Pareciam dentes espera das mos de um dentista. - Explica-me l isso, aquilo que acabaste de dizer - disse Eleanor. - Eles arrombaram vrios cofres para encobrirem que o que realmente queriam era o que estava dentro do cofre do Binh. Certo? Ela assentiu. Continuavam parados. - OK. Por isso, para continuarem a encobrir isso, o que que eles tinham de fazer? Libertarem-se de todas as outras coisas de maneira a que elas nunca mais fossem encontradas. E eu no estou a falar em as venderem a passadores. Estou a dizer verem-se livres delas, destrurem-nas, afundarem-nas, enterrarem-nas para sempre, em qualquer stio onde nunca mais fossem descobertas. Porque no minuto em que a primeira pea de joalharia ou qualquer moeda antiga, ou qualquer aco aparecesse e a polcia descobrisse, teriam uma pista e iriam procura. - Ento achas que o Meadows foi morto por ter empenhado a pulseira? - perguntou Eleanor. - No foi exactamente por causa disso. H outras correntes a moverem-se no meio disto tudo. Por que que, se o Meadows tinha uma parte dos diamantes do Binh, ele se havia de incomodar com uma pulseira que valia apenas uns milhares de dlares? Por que que ele havia de viver da maneira que vivia? No faz sentido. - Ests a baralhar-me, Harry. - Tambm eu estou baralhado. Mas analisa isto nesta perspectiva s por um minuto. Digamos que eles o Meadows e os outros sabiam onde que os dois, o Binh e o

outro capito, o Nguyen Tran estavam e onde que ambos tinham guardado o que restava dos diamantes que tinham trazido para c. Digamos que havia dois bancos e os diamantes estavam em duas caixas-fortes. E digamos que eles iam assaltar as duas. Primeiro, limpam o banco do Binh. E agora vo atacar o do Tran. 251 Ela assentiu com a cabea para indicar que o estava a acompanhar. Bosch sentia a excitao a aumentar. - OK. Estas coisas demoram tempo a planear, para prepararem toda a estratgia, para o planearem para uma altura em que o banco esteja fechado trs dias seguidos porque desse tempo todo que precisam para abrir o nmero suficiente de cofres para fingirem que era isso que queriam. E depois h o tempo de que necessitam para escavar o tnel. Tinha-se esquecido de acender um cigarro. Percebeu isso naquele momento e meteu um na boca. - Ests a acompanhar-me? Ela assentiu. Ele acendeu o cigarro. - OK, vejamos, o que teria sido a melhor coisa a fazer depois de assaltares o primeiro banco, mas antes de limpares o segundo? Ficas quietinha e no deixas transparecer nada. Vs-te livre de todas as coisas que tiraste como camuflagem, todas as coisas das outras caixas. No ficas com nada. E sentas-te em cima da caixa dos diamantes do Binh. No podes comear a negoci-los porque isso podia atrair a ateno para ti e estragar o segundo golpe. De facto, o Binh deve ter posto gente a farejar, procura dos diamantes. Quero dizer, ao longo destes anos, ele andava provavelmente a vend-los aos bochechos e devia estar familiarizado com a rede de receptadores de diamantes. Por isso, eles tambm tinham de ter cuidado com ele. - Quer dizer que o Meadows quebrou as regras - disse ela. - Ele guardou uma coisa. A pulseira. Os scios descobriram e limparam-lhe o sebo. Depois assaltaram a casa de penhores e recuperaram a pulseira. - Abanou a cabea admirando o plano. - A coisa teria sido perfeita se ele no tivesse feito aquilo. Bosch assentiu. Ficaram ali parados, a olhar um para o outro e depois para o cemitrio. Bosch deitou fora o cigarro e pisou-o. Ao mesmo tempo, olharam para o cimo da colina e viram as paredes negras do Memorial Aos Veteranos do Vietname. - O que que aquilo est aqui a fazer? - perguntou ela. - No sei. uma rplica. Com metade do tamanho. Mrmore falso. Acho que eles andam com ele de um lado para o outro pelo pas inteiro para o caso de algum o querer ver e no poder ir a DC. Eleanor soltou um queixume e voltou-se para ele. - Harry, esta segunda-feira o Memorial Day! - Eu sei. Os bancos fecham dois dias. Alguns trs. Temos de descobrir o Tran. 252 Ela preparou-se para voltar para o FBI. Ele deitou um ltimo olhar ao memorial. A comprida placa de mrmore fingido com todos os nomes gravados estava cravada na encosta da colina. Um homem com um uniforme cinzento varria o passeio frente dele. Havia um monte de flores violeta de um jacarand. Harry e Eleanor permaneceram calados enquanto saam do cemitrio e voltavam pela Wilshire em direco ao Edifcio Federal. Foi ento que ela fez a pergunta com que Bosch andava s voltas na cabea e para a qual ainda no tinha encontrado uma resposta satisfatria. - Porqu agora? Porqu todo este tempo? J passaram quinze anos. - No sei. Se calhar o momento exacto, mais nada. Pessoas, coisas, foras invisveis, juntam-se de tempos a tempos. o que eu acredito. Quem sabe? Se calhar o Meadows esqueceu-se por completo do Binh e, um dia, viu-o na rua por puro acaso, e veio-lhe tudo outra vez memria. O plano perfeito. Se calhar o plano era de outra pessoa qualquer ou ento foi mesmo pensado naquele dia que os trs passaram juntos na Charlie Company. Os porqus nunca se sabem com exactido. S precisamos de saber como e quem. - Sabes, Harry, se eles andam por a, ou como deveria dizer, a por baixo, a escavar um tnel novo, ento temos menos de dois dias para os encontrar. Temos de mandar gente l para baixo para os procurar.

Ele pensou que mandar uma equipa para os tneis da cidade procura de uma possvel entrada para um tnel dos bandidos era procurar uma agulha num palheiro. Ela tinha-lhe dito que havia mais de dois mil e quatrocentos quilmetros de tneis por baixo de L.A. Era possvel que no conseguissem encontrar o tnel dos bandidos mesmo que tivessem um ms. A chave tinha de ser o Tran. Descobrir o ltimo capito da polcia e depois descobrir o banco. A encontrariam os bandidos. E os assassinos de Billy Meadows. E de Sharkey. - Achas que o Binh nos entregaria o Tran? perguntou ele. - Ele no informou que a sua fortuna tinha sido roubada do banco, por isso, no me parece o gnero de pessoa que nos v dizer onde est o Tran. - Exactamente. Acho que o melhor tentarmos descobri-lo por ns antes de irmos falar com o Binh. E melhor deixar o Binh como ltimo recurso. - Vou j para o computador. - Certo.

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O computador do FBI e as redes de computadores a que ele tinha acesso no divulgaram o paradeiro de Nguyen Tran. Bosch e Eleanor no encontraram qualquer referncia a ele no DMV, INS, IRS ou nos ficheiros da Segurana Social. No havia nada nos ficheiros dos nomes fictcios dos registos do Condado de Los Angeles. Nenhuma meno dele nos registos do DWP, nem nos registos dos eleitores ou dos impostos sobre a propriedade. Bosch telefonou a Hector Villabona e confirmou que Tran tinha entrado nos Estados Unidos no mesmo dia de Binh, mas no havia mais registos. Passado trs horas a olhar para as letras amarelas do ecr do computador, Eleanor desligou-o. - Nada - disse ela. - Ele est a usar um nome diferente. Mas no o mudou legalmente, pelo menos neste pas. Ningum tem o rasto do tipo. Ficaram sentados desiludidos e calados. Bosch bebeu o ltimo golo de caf de uma chvena de plstico. Passava das cinco e a sala de trabalho estava deserta. Rourke tinha ido para casa depois de ter sido informado das ltimas novidades e de ter decidido no mandar ningum para os tneis. - Sabem quantos quilmetros de tneis para controlo das guas h em L.A.? - Tinha ele perguntado. - Aquilo l em baixo como um sistema de auto-estradas. Estes tipos, se que esto de facto l em baixo, podem estar em qualquer stio. amos andar aos tropees no escuro. Eles teriam tudo a favor deles e algum dos nossos podia acabar por ficar ferido. Bosch e Eleanor sabiam que ele tinha razo. No discutiram com ele e meteram-se ao trabalho para descobrirem Tran. E tinham fracassado. - Sendo assim, agora temos mesmo de ir ter com o Binh - disse Bosch depois de acabar de beber o caf. - Achas que ele vai cooperar? - perguntou ela. - Ele vai saber que se queremos o Tran, porque devemos conhecer o passado dele. E os diamantes. - No sei o que que ele far - respondeu Bosh. - Amanh vou falar com ele. Tens fome? - Vamos falar com ele amanh - corrigiu ela e depois sorriu. - E sim, tenho fome. Vamo-nos embora. Comeram num grill na Broadway em Santa Monica. Eleanor escolheu o restaurante e, uma vez que ficava perto do apartamento dela, Bosch sentia-se muito bem disposto e descontrado. Um trio tocava num pequeno estrado de madeira ao canto da sala, mas as paredes de tijolo da casa abafavam o som tornando-o praticamente inaudvel. Depois, Eleanor e Bosch deixaram-se ficar confortavelmente sentados a saborearem espressos. Havia entre eles um sentimento de ternura que Bosch sentia mas no sabia explicar. No conhecia esta mulher que estava sentada sua frente. Um olhar para aqueles duros olhos castanhos disse-lhe isso. Queria meter-se por trs deles. Tinham feito amor, mas ele queria estar apaixonado. Queria-a. Parecendo, como sempre, ler-lhe os pensamentos, ela perguntou-lhe: - Vens para casa comigo hoje noite? Lewis e Clarke estavam no segundo nvel do estacionamento da garagem do outro lado da rua, meio bloco abaixo do Broadway Bar & Grill. Lewis estava fora do carro,

agachado junto ao parapeito, a observar atravs da mquina fotogrfica. A objectiva com trinta centmetros de comprimento estava apoiada num trip e apontada para a porta da frente do restaurante, a cem metros de distncia. Esperava que as luzes por cima da porta fossem suficientes. Tinha um rolo de alta velocidade na mquina, mas a pintinha vermelha a piscar no visor estava a dizerlhe para no tirar a fotografia. Ainda no havia luz suficiente. Apesar disso, resolveu experimentar. Queria uma fotografia. - No vais conseguir nada - disse Clarke atrs dele. - Com esta luz impossvel. - Deixa-me fazer o meu trabalho. Se no conseguir, no consegui. Quem que se importa? - O Irving? - Bem, ele que se foda. Ele disse-nos que queria mais documentao. o que vai ter. S estou a tentar fazer aquilo que o homem quer. - Devamos tentar ir ali abaixo, ao p daquele deli, tirar mais de perto... Clarke calou-se e virou-se ao ouvir passos. Lewis manteve os olhos fixos na cmara, espera de poder tirar a fotografia ao restaurante. Os passos pertenciam a um homem com o uniforme azul de um segurana. - Posso perguntar-lhes o que que esto a fazer aqui? - perguntou o guarda. Clarke mostrou-lhe o distintivo e disse: - Estamos a trabalhar. O guarda, um jovem negro, deu um passo em frente para ver melhor o crach e a identificao e estendeu a mo para o segurar. Clarke levantou-o abruptamente, pondo-o fora do alcance dele. - No toques nisso, mano. Ningum mexe no meu crach.

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255 - Isso diz LAPD. Vocs contactaram com o Departamento da Polcia de Santa Monica? Eles sabem que esto aqui? - Porra, mas quem que quer saber disso? Deixa-nos em paz. - Clarke voltou-lhe as costas. Ao ver que o guarda no se ia embora voltou-se outra vez e perguntou: - Filho, precisas de alguma coisa? - Esta garagem o meu territrio, detective Clarke. Posso estar onde muito bem entender. - Podes pr-te fora daqui. Eu posso... Clarke ouviu o obturador da mquina fotogrfica a fechar e o barulho do zumbido automtico. Virou-se para Lewis que se endireitou a sorrir. - Consegui... uma fotografia de primeira - disse Lewis enquanto se endireitava. Eles esto de sada, vamos embora! Lewis dobrou as pernas telescpicas da objectiva e entrou rapidamente para o assento do passageiro do Caprice cinzento pelo qual tinham trocado o Plymouth preto. - At vista, mano - disse Clarke para o guarda enquanto deslizava para trs do volante. O carro recuou obrigando o segurana a saltar para o lado para fugir do caminho. Clarke olhou pelo espelho retrovisor e sorriu enquanto seguia em direco rampa de sada. Viu o guarda a falar para um rdio que tinha na mo. - Fala o que quiseres, rapazinho! - disse ele. O carro dos Assuntos Internos parou ao lado da cabina de sada. Clarke entregou o bilhete e dois dlares ao homem na cabina. Ele aceitou, mas no levantou o cano s riscas pretas e brancas que servia de barreira. - O Benson diz que eu tenho de vos aguentar aqui, rapazes - disse o homem da cabina. - O qu? Quem o Benson, porra? - perguntou Clarke. - o segurana. Ele disse para esperarem um minuto. - Naquele preciso instante, os dois agentes dos Assuntos Internos viram Bosch e Eleanor Wish passar no carro pela frente da garagem em direco Fourth Street. Iam perd-los. Clarke exibiu o distintivo ao empregado. - Estamos em servio. Levanta a porra da barreira. J! - Ele vem j a. Tenho de fazer o que ele diz. Seno perco o emprego.

- Se no levantas essa merda, vais ficar sem ela, meu imbecil - berrou Clarke. Meteu o p a fundo e acelerou o motor para mostrar que ia passar por ela. - Por que que julga que temos um cano em vez de uma barreirinha de madeira? V. Avance. Aquele cano vai rebentar-lhes com o pra-brisas. Faam o que quiserem, mas ele est mesmo a chegar. No retrovisor, Clarke viu o guarda a descer a rampa. A cara de Clarke estava a ficar vermelha de raiva. Sentiu a mo de Lewis no brao. - Calma, parceiro - disse Lewis. - Eles vinham de mo dada quando saram do restaurante. No os vamos perder. Vo para casa dela. Aposto uma semana de salrio que l que os vamos encontrar. Clarke sacudiu-lhe a mo e respirou fundo. Isso fez com que a sua expresso assumisse um ar mais plcido. Disse: - Estou-me nas tintas. Foda-se, no gosto nem um bocadinho desta merda! No Ocean Park Boulevard, Bosch descobriu um lugar para arrumar o carro do lado oposto ao prdio de Eleanor. Estacionou, mas no fez nenhum movimento para sair do carro. Olhou para ela, sentindo a mesma emoo de minutos antes, mas sem saber ao certo onde iriam chegar com aquilo. Ela pareceu aperceber-se disso, se calhar tambm ela prpria o sentia. Pousou a mo em cima da dele e inclinou-se para a frente para o beijar. Sussurrou: - Anda comigo. Ele saiu e dirigiu-se para o lado dela. Eleanor j tinha sado e ele fechou a porta. Deram a volta parte da frente do carro e depois pararam ao lado dele, espera que um carro que se aproximava passasse. O carro trazia os mximos acesos e Bosch desviou os olhos para olhar para Eleanor. Por isso, foi ela que se apercebeu de que os faris se viravam para eles. - Harry? - O qu? - Harry! Bosch voltou-se outra vez para o carro que se aproximava e viu as luzes na realidade, eram quatro feixes de luz de dois conjuntos de faris quadrados ao lado uns dos outros a incidir sobre eles. Nos poucos segundos que restavam, Bosch chegou concluso que o carro no ia passar por eles, mas que estava a avanar para cima deles. No havia

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tempo, contudo, o tempo pareceu entrar em suspenso. Naquilo que lhe pareceu ser em cmara lenta, Bosch virou-se para a direita, para Eleanor. Mas ela no precisava de ajuda. Em simultneo, saltaram para cima do capo do carro de Bosch. Ele estava a rolar por cima dela e os dois estavam a rebolar para o cho quando o carro se ergueu violentamente e se ouviu um som estridente de metal a rasgar-se. Com a viso perifrica, Bosch viu uma chuva de chamas azuis a passar. Depois aterrou em cima de Eleanor na estreita faixa de relva que havia entre o lancil e o passeio propriamente dito. Estavam salvos, Bosch conseguiu aperceber-se disso. Assustados, mas salvos, pelo menos naquele momento. Levantou-se com a arma firmemente agarrada com as duas mos. O carro que tinha vindo contra eles no dava sinais de ir parar. J estava a uns bons cinquenta metros para este, afastando-se e ganhando velocidade. Bosch disparou uma bala que lhe pareceu ter feito ricochete na janela de trs, demasiado fraca, quela distncia, para penetrar no vidro. Ouviu a arma de Eleanor disparar duas vezes ao seu lado, mas no viu nenhum dano no carro em fuga. Sem dizerem uma palavra, enfiaram-se no carro de Bosch pela porta do lado contrrio ao do condutor. Bosch conteve a respirao enquanto fazia girar a chave, mas o motor comeou a trabalhar e o carro afastou-se do passeio com um guinchar de pneus. Bosch girou o volante de um lado para o outro medida que acelerava. A suspenso parecia um pouco solta. No fazia ideia da extenso dos estragos. Quando tentou olhar para o espelho lateral, viu que ele tinha desaparecido. Quando acendeu as luzes, s o farol do lado de Eleanor que estava a funcionar. O carro que os tentara atropelar levava um avano de pelo menos cinco quarteires e estava a chegar lomba onde a Ocean Park Boulevard sobe e depois desce e

desaparece. As luzes do carro apagaram-se no preciso momento em que ele descia a encosta desaparecendo do campo de viso. Estava a dirigir-se para Bundy Drive, pensou Bosch. Dali era uma corridinha at 10. E a, desapareceria por completo e eles nunca mais o veriam. Bosch agarrou no rdio e transmitiu um pedido de auxlio. Mas no conseguiu fazer uma descrio do carro, s pde indicar a direco em que seguiam. - Ele vai para a auto-estrada, Harry! - gritou Eleanor. - Ests bem? - Estou. E tu? Viste a marca? - Estou bem. S assustada. No vi a marca. Americano, pareceu-me. Uh... faris quadrados. No vi a cor, escuro tudo o que sei. No o conseguimos apanhar se ele conseguir chegar auto-estrada. Seguiam para leste pela Ocean Park, paralela 10, que ficava a uns oito quarteires de distncia para norte. Aproximaram-se do cimo da subida e Bosch apagou o nico farol que funcionava. Quando comearam a descer, viu o vulto do carro, de luzes apagadas, a passar o cruzamento iluminado em Lincoln. Sim, ele ia para a Bundy. Em Lincoln, Bosch virou esquerda e carregou a fundo no acelerador. Voltou a acender as luzes. E, quando o carro aumentou de velocidade, ouviram o barulho de qualquer coisa a bater. O pneu da frente, do lado direito e o alinhamento estavam danificados. - Onde que vais? - perguntou Elenor. - Vou entrar na auto-estrada. Mal Bosch tinha acabado de dizer aquilo, apareceram os sinais da entrada da autoestrada e o carro fez uma ampla curva para a direita entrando na rampa. O pneu aguentou-se. Desceram a rampa a toda a velocidade em direco ao trnsito. - Como que vamos saber? - gritou Eleanor. O barulho do pneu era muito forte agora, um batimento quase contnuo. - No sei. Procura os faris quadrados. Um minuto depois, estavam a entrar pela Bundy, mas Bosch no fazia a mnima ideia se tinha conseguido passar frente do outro carro ou se ele j ia muito frente. Vinha um carro a subir a rampa e a entrar na faixa. Era branco e estrangeiro. - No me parece - gritou Eleanor. Bosch voltou a pisar no acelerador e continuou a andar. O corao batia-lhe no peito quase to depressa como o pneu, em parte com a excitao da corrida, em parte com a excitao de ainda estar vivo e no todo partido no meio da rua, em frente do apartamento de Eleanor. Estava a segurar o volante com as duas mos bem separadas uma da outra, incitando o carro a avanar como se estivesse a segurar as rdeas de um cavalo. Deslocavam-se pelo meio do trnsito escasso a cento e quarenta hora, os dois a olhar para as frentes dos carros que passavam, procura dos faris quadrados ou de um lado direito amolgado. Meio minuto depois, os ns dos dedos de Bosch, brancos como a neve enroladas em volta do volante, aproximaram-se de um Ford castanho que seguia a uns cento e dez quilmetros por hora na faixa lenta. Bosch virou o volante e, saindo de trs dele, ultrapassou-o. Eleanor tinha a arma segura com as duas mos, mas estava a segur-la abaixo da janela 258 para no ser vista do lado de fora do carro. O motorista branco nem sequer olhou para eles ou mostrou ter reparado neles. Quando passaram para a frente, Eleanor gritou: - Faris quadrados, ao lado uns dos outros! - o carro? - perguntou Bosch excitado. - No consigo... no sei. No consigo ver o lado direito. Pode ser. O tipo no mostra reaco nenhuma. Estavam agora com um avano de trs quartos do comprimento dum carro. Bosch agarrou na luz porttil que estava no cho do carro e, esticando o brao para fora da janela, colocou-a no tejadilho. Ligou a luz azul giratria e comeou lentamente a desviar o Ford para a berma. Eleanor ps a mo fora da janela e fez sinal ao carro para parar. O motorista comeou a obedecer. Bosch travou bruscamente e deixou que o outro carro entrasse a toda a velocidade na berma; a seguir, Bosch guinou o carro e entrou na berma atrs dele. Quando os dois carros tinham parado ao lado de uma barreira de som, Bosch apercebeu-se de que estava com um grande

problema. Ligou os mximos, mas s o farol do lado do passageiro que continuava a funcionar. O carro da frente estava demasiado perto da barreira para Bosch e Eleanor conseguirem ver se o lado direito estava estragado. Entretanto, o condutor continuava sentado no seu lugar praticamente todo envolvido pela escurido. - Merda! - exclamou Bosch. - OK. No saias at eu te dizer que est tudo em ordem, est bem? Est respondeu ela. Bosch teve de atirar violentamente todo o seu peso de encontro porta para a conseguir abrir. Saiu do carro com a arma numa mo e uma lanterna na outra. Segurava a luz frente, afastada do corpo, e apontava-a para o condutor do carro da frente. Com o barulho do trnsito a atroar-lhe os ouvidos, Bosch comeou a gritar, mas a buzina de um camio diesel abafou-o e uma rajada de vento provocada pelo camio que passava empurrou-o para a frente. Bosch experimentou outra vez, gritando ao condutor para pr as duas mos de fora da janela de forma a que ele as pudesse ver. Nada. Bosch voltou a gritar a ordem. Passado um longo momento, com Bosch posicionado ao lado do pra-choques esquerdo do carro castanho, o condutor acabou por obedecer. Bosch varreu a janela de trs com a luz da lanterna e viu que no havia mais ningum dentro do carro. Avanou e fazendo incidir a luz em cima do condutor, mandou-o sair devagarinho. - O que isto? - protestou o homem. 260 Era pequeno, pele plida, cabelo avermelhado e um bigode transparente. Abriu a porta do carro e saiu com as mos no ar. Vestia uma camisa branca e calas beiges seguras com suspensrios. Olhou para a fila de carros que passava por eles quase como se agradecesse ter uma testemunha para o pesadelo que estava a passar. - Posso ver um distintivo? - gaguejou ele. Bosch precipitou-se para a frente, f-lo dar meia volta e atirou-o contra as traseiras do carro, a cabea e as mos em cima do tejadilho. Com uma mo na nuca do homem, a segur-lo, e a outra a encostar-lhe a arma orelha. Bosch gritou a Eleanor que estava tudo em ordem. - Vai ver a parte da frente. O homem por baixo de Bosch soltou um gemido, como um animal assustado, e Bosch sentiu que ele estava a tremer. Bosch nunca desviou os olhos dele para ver onde Eleanor estava. De repente, a voz dela soou mesmo atrs dele. - Solta-o - disse ela. - No ele. No h estragos. Enganmo-nos no carro. 261 PARTE VI Sexta-Feira, 25 de Maio Foram interrogados pela polcia de Santa Monica, pela Patrulha das auto-estradas da Califrnia, pelo LAPD e pelo FBI. Tinham chamado uma unidade da DUI 1 para fazer um teste de alcoolmia a Bosch. Tinha passado. E s duas da manh, ele estava sentado na sala de interrogatrios do departamento de Los Angeles Ocidental, morto de cansao, a perguntar para consigo se a Guarda Costeira e o IRS iriam ser os prximos. Ele e Eleanor tinham sido separados e ele no a via desde que tinham chegado trs horas antes. Aborrecia-o no poder estar com ela para a proteger dos inquisidores. O tenente Harvey Noventa e Oito Pounds entrou na sala naquele momento e informou Bosch de que tinham terminado por aquela noite. Bosch percebeu que o Noventa e Oito estava zangado, e no era s por ter sido obrigado a sair de casa. - Que tipo de polcia no tira a matrcula do carro que o tentou atropelar? perguntou ele. Bosch estava habituado ao segundo sentido das perguntas. Tinha sido assim toda a noite. - Tal como j disse a todos esses tipos antes de si, eu estava um bocadinho ocupado na altura. Estava a tentar salvar o couro. - E este gajo que mandaste parar - interrompeu Pounds. - Bolas, Bosch, maltratasteo na berma da auto-estrada. Todos os idiotas com telefone no carro esto a ligar

para o nove um um a participar um rapto, um assassnio e s Deus sabe que mais. No podias ter tentado deitar uma olhadela ao lado direito do carro antes de o mandares parar? - Foi impossvel. Tudo isso est explicado no relatrio que dactilografmos, tenente. J o repeti umas dez vezes.
DUI Driving under the Influence (of drugs or alcohol) Conduo sob a influncia (de drogas ou lcool). (N. T.)

Pounds reagiu como se no o tivesse ouvido. - E ainda por cima ele advogado. - E depois? - perguntou Bosch, perdendo a pacincia. - Pedimos desculpa. Foi um engano. O carro parecia o mesmo. E se ele vai processar algum, vai ser o FBI. Eles tm as costas largas. Por isso, no se preocupe. - No, ele vai processar-nos a ambos. J est a falar disso, por amor de Deus! E no altura para tentares ser engraado, Bosch. - Tambm no altura para estarem preocupados em decidir se procedemos bem ou mal. Nenhum desses tipos que apareceu aqui para me interrogar pareceu preocupado com o facto de algum poder estar a tentar matar-nos. S querem saber a que distncia que eu estava quando disparei e se eu tinha posto em perigo algum que fosse a passar e por que que tinha mandado parar aquele carro sem justa causa. Bem, foda-se, homem. H algum que me quer matar, a mim e minha colega. Peo desculpa de no me sentir especialmente incomodado com o advogado que ficou com a suspenso torcida. Pounds estava preparado para aquela argumentao. - Bosch, pelas provas que temos, pode ter-se tratado apenas de um bbado. E o que queres dizer com isso de colega? Ests apenas emprestado para esta investigao. E, depois desta noite, acho que o emprstimo vai ser retirado. Passaste cinco dias inteiros com este caso e, segundo o que Rourke me disse, no conseguiste nada. - No era bbado nenhum, Pounds. ramos um alvo. E estou-me nas tintas para o que o Rourke diz que temos. Vou resolver este caso. E se o senhor parar de minar o esforo feito, se acreditar na sua gente por uma vez e se conseguir tirar esses cretinos dos Assuntos Internos de cima de mim, muito capaz de ainda vir receber uma parte das honras quando isso acontecer. As sobrancelhas de Pounds ergueram-se como uma montanha-russa. - Sim, eu sei do Lewis e do Clarke - disse Bosch. - E sei que os relatrios deles eram passados para si. Aposto que no lhe contaram a conversazinha que tivemos? Apanhei-os a farejar volta da minha casa. Era evidente, pela expresso da cara de Pounds, que ele no tinha ouvido nada. Lewis e Clarke estavam a ser muito discretos e Bosch no ia ser entalado por causa do que lhes tinha feito. Comeou a interrogar-se sobre o paradeiro dos dois detectives dos Assuntos Internos quando ele e Eleanor quase tinham sido atropelados. Entretanto, Pounds ficou calado durante muito tempo. Era um peixe a nadar volta do isco que Bosch tinha lanado, parecendo saber que havia um anzol l dentro, mas a pensar que era capaz de haver uma maneira de comer o isco sem o anzol. Finalmente, disse a Bosch para o pr a par das investigaes da semana. Tinha engolido o anzol. Bosch exps-lhe o caso e, embora Pounds no tivesse dito uma palavra durante os vinte minutos que se seguiram, Bosch conseguiu perceber pelos movimentos das sobrancelhas quando ele estava a ouvir qualquer coisa que Rourke tinha negligenciado contar-lhe. Quando a histria acabou, no houve mais referncias da parte de Pounds possibilidade de Bosch ser retirado do caso. No entanto, Bosch estava a sentir-se muito cansado daquilo tudo. Queria dormir, mas Pounds ainda tinha mais perguntas. - Se o FBI no vai mandar ningum para os tneis, devamos ser ns a faz-lo? perguntou ele. Bosch percebeu que ele estava a pensar na possibilidade de estar presente no momento das detenes, se houvesse alguma. Se ele pusesse gente do Departamento da Polcia de Los Angeles nos tneis de drenagem, o FBI no poderia excluir o departamento quando chegasse o momento de receberem o crdito das

detenes. Pounds receberia uma palmada nas costas do chefe se conseguisse defender-se de uma manobra dessas. Mas Bosch tinha acabado por acreditar que o raciocnio de Rourke estava correcto. Uma equipa nos tneis corria o risco de tropear nos ladres e de morrer algum. - No - respondeu Bosch a Pounds. - Primeiro vamos ver se conseguimos localizar o Tran e descobrir onde que ele guarda a fortuna. Por aquilo que sei, at pode no ser num banco. Pounds levantou-se, tendo ouvido o suficiente. Disse a Bosch que se podia ir embora. Quando o tenente se dirigia para a porta da sala dos interrogatrios, disse: - Bosch, no creio que vs ter qualquer problema por causa do incidente desta noite. Parece-me que fizeste aquilo que pudeste. O advogado ficou com as penas encrespadas, mas vai acalmar. - S mais uma coisa - continuou Pounds. - O facto disto ter acontecido mesmo frente da porta da casa da agente Wish um bocadinho preocupante porque d um certo ar de indecoro. S uma sugestozinha, no ? Tu estavas apenas a acompanh-la at porta, no verdade? - No me ralo nada com o que possa parecer, tenente - respondeu Bosch. - Eu no estava de servio. Pounds olhou para Bosch durante uns instantes, abanou a cabea como se Bosch tivesse acabado de ignorar a sua mo estendida e saiu pela porta da pequena sala. Bosch foi encontrar Eleanor sentada sozinha na sala de interrogatrios a lado da dele. Tinha os olhos fechados e a cabea apoiada nas mos, os cotovelos em cima do tampo estragado da mesa. Abriu os olhos quando ele entrou. Sorriu e ele sentiuse imediatamente curado da fadiga, da frustrao e da raiva. Era um sorriso como o que uma criana dirige a outra quando se conseguiram safar de qualquer coisa perante os adultos. - J est tudo terminado? - perguntou ela. - Sim. E tu? - J aqui estou h mais de uma hora. Quem eles queriam lixar eras tu. - Como de costume. O Rourke foi-se embora? - Sim, raspou-se. Disse que quer que eu o contacte de hora a hora amanh. E quanto ao que aconteceu esta noite, ele acha que no tem tido uma rdea apertada nisto. - Nem em ti. - Pois. Parece que tambm h qualquer coisa desse gnero. Queria saber o que estvamos a fazer em minha casa. Disse-lhe que s me estavas a acompanhar porta. Bosch sentou-se exausto do outro lado da mesa e meteu um dedo dentro do mao de cigarros procura do ltimo. Meteu-o na boca, mas no o acendeu. - Para alm de estar enervado ou ciumento com o que poderamos ter estado a fazer, quem que o Rourke pensa que nos tentou matar? - perguntou. - Um condutor bbado, como a minha gente parece acreditar? - De facto, ele mencionou a teoria do condutor embriagado. Tambm perguntou se tenho um ex-namorado ciumento. Para alm disso, no parece haver uma grande preocupao com a hiptese de poder ter alguma coisa a ver com o nosso caso. - No tinha pensado nesse ngulo do ex-namorado. O que que lhe respondeste? - s to matreiro como ele - respondeu ela exibindo o seu sorriso radioso. Respondi-lhe que no tinha nada a ver com isso. - Boa resposta. Tambm se aplica a mim? - A resposta no. Deixou-o em suspenso durante uns segundos depois acrescentou: Isto , no h exnamorado ciumento. Por isso, podemos ir-nos embora e voltar para o ponto em que estvamos h olhou para o relgio cerca de quatro horas atrs? Bosch estava acordado na cama de Eleanor Wish muito antes da luz da madrugada se insinuar atravs da cortina que tapava a porta de vidro deslizante. Incapaz de vencer a insnia, acabou por se levantar e tomar um duche na casa de banho do andar debaixo. A seguir, vasculhou os armrios da cozinha e o frigorfico e comeou a preparar um pequeno-almoo de caf, ovos e bagels de passas e canela. No conseguiu encontrar bacon. Quando ouviu o chuveiro desligar no andar de cima, subiu com um copo de sumo

de laranja e encontrou-a em frente do espelho da casa de banho. Estava nua e a entranar o cabelo, que tinha dividido em trs grossas madeixas. Ficou fascinado a observ-la enquanto ela penteava destramente o cabelo numa trana francesa. Eleanor aceitou o sumo de laranja e um longo beijo de Bosch. Enfiou o robe curto e desceu para tomar o pequeno-almoo. A seguir, Harry abriu a porta da cozinha e saiu para a varanda para fumar um cigarro. - Sabes - disse ele do lado de fora da porta. - Estou feliz por no ter acontecido nada. - Ests-te a referir a ontem noite, na rua? - Sim. A ti. No sei se teria sido capaz de enfrentar a situao. Sei que acabmos de nos conhecer e isso, mas... uh... interesso-me. Sabes? - Eu tambm. Bosch tinha tomado duche, mas a roupa que trazia vestida estava to lavada como o cinzeiro de um carro usado. Passado um bocado, disse que tinha de passar por casa para se mudar. Eleanor disse que iria para o FBI para ver o que havia na sequncia das actividades da noite anterior e ver o que conseguia obter do ficheiro de Binh. Combinaram encontrar-se na Esquadra de Hollywood, na Wilcox, porque ficava mais perto dos escritrios de Binh e porque Bosch precisava de entregar o carro danificado. Acompanhou-o porta e beijaram-se como se ela se estivesse a despedir por ele ir para um dia de trabalho normal numa firma de contabilidade. Quando Bosch chegou a casa, no encontrou nenhum recado no Vendedor de chamadas nem sinais de que algum l tivesse entrado. 267 Fez a barba e mudou de roupa e, a seguir, desceu a colina, atravessando o Nichols Canyon e depois subiu at Wilcox. Estava sentado sua secretria, a pr em dia os formulrios dos Relatrios Cronolgicos do Agente da Investigao quando Eleanor apareceu s dez horas da manh. A sala estava cheia e a maioria dos detectives que eram do sexo masculino pararam com o que estavam a fazer para a apreciarem. Ela tinha um sorriso contrafeito quando se sentou na cadeira de ao ao lado da secretria dos homicdios. - H algum problema? - Acho que preferia ter atravessado a Biscailuz - disse ela, referindo-se cadeia do xerife na baixa. - Oh! Pois , alguns destes tipos so capazes de sorrir com mais lascvia do que a maioria dos exibicionistas ordinrios. Queres um copo de gua? - No. Estou bem. Ests pronto? - Vamos l. Levaram o carro novo de Bosch que, na realidade, j tinha trs anos e mais de cento e vinte e cinco mil quilmetros. O responsvel pela frota de carros da esquadra, um encarregado permanente daquele servio desde que tinha ficado sem quatro dedos ao apanhar estupidamente uma bomba de Halloween, disse que era o melhor que conseguia arranjar na altura. As contenes no oramento tinham impedido que se substitussem os carros, embora a reparao dos carros velhos ficasse mais cara ao departamento. Pelo menos, descobriu Bosch depois de ter comeado a andar, o ar condicionado funcionava relativamente bem. Aproximavase uma frente de Santa Ana e as previses indicavam que o fim-de-semana do feriado ia ser anormalmente quente. A investigao que Eleanor fizera revelara que Binh tinha um escritrio e uma loja na Vermont, perto da Wilshire. Naquela zona, havia mais lojas de coreanos do que de vietnamitas, mas coexistiam. Tanto quanto Eleanor tinha conseguido descobrir, Binh controlava vrios negcios que importavam do Oriente roupa barata, material electrnico e de vdeo, que depois movimentavam na Califrnia do Sul e no Mxico. Muitos dos artigos que os turistas pensavam que estavam a adquirir baratos no Mxico e que depois traziam para os Estados Unidos j tinham aqui estado. No papel, tudo aquilo parecia ter bons resultados, embora fossem artigos insignificantes. No entanto, era o bastante para levar Bosch a perguntar se Binh precisava sequer dos diamantes. Ou se alguma vez tinha tido algum. 268 Binh possua o edifcio onde ficavam os escritrios e a loja de equipamento vdeo.

Era um salo de venda de automveis dos anos trinta que fora convertido h anos, antes mesmo de Binh o ter visto. Um bloco de cimento no reforado com grandes janelas na fachada da frente com a garantia de vir abaixo com o primeiro tremor de terra decente que houvesse. Mas para algum que tinha conseguido sair do Vietname da forma que Binh sara, os tremores de terra, provavelmente, eram considerados como um inconveniente menor e no um risco. Depois de terem arranjado um espao livre para estacionar do outro lado da rua da Benos Electronics, Bosch disse a Eleanor que queria que fosse ela a conduzir o interrogatrio, pelo menos, ao princpio. Binh era capaz de se sentir mais inclinado a falar com a polcia federal do que com os polcias locais. Combinaram um plano para o levar a falar de coisas triviais e depois perguntarem por Tran. Bosch no lhe disse que tambm tinha um segundo plano em mente. - No tem nada o ar de um stio dirigido por um tipo com uma caixa cheia de diamantes guardada na caixa-forte de um banco; - comentou Bosch quando saam do carro. - Queres dizer que tinha no banco - corrigiu ela. - E lembra-te que ele no podia exibir os diamantes. Tinha de ser igual a todos os outros imigrantes vulgares. O aspecto de viver um dia de cada vez. Os diamantes, se que havia algum, eram uma garantia para esta loja, para a sua histria de sucesso americano. Mas tinha de parecer que ele tinha comeado do zero. - Espera um segundo - disse Bosch quando chegaram ao outro lado da rua. Disse a Eleanor que se tinha esquecido de pedir a Jerry Edgar para o substituir numa ida ao tribunal marcada para essa tarde. Apontou para um telefone pblico numa estao de servio ao lado do prdio de Binh e correu para l. Eleanor ficou para trs a olhar para as montras da loja. Bosch ligou para Edgar, mas no lhe falou de nenhuma ida ao tribunal. - Jed, preciso de um favor. Nem sequer vais precisar de te levantar. - Edgar hesitou como Bosch j esperava que acontecesse. - De que que precisas? - No assim que devias responder. Devias dizer: Claro, Harry, de que que precisas? 269 - Ora, Harry, deixa-te disso, sabemos os dois muito bem que estamos a ser investigados. Temos de ser muito cuidadosos. Diz-me o que que precisas. Eu logo te digo se posso faz-lo. - A nica coisa que quero que me ligues daqui a dez minutos. Preciso de sair de uma reunio. Basta mandares-me um toque e quando eu telefonar para a, podes pousar o telefone durante um par de minutos. Se eu no telefonar, manda-me outro toque passado cinco minutos. Mais nada. - s isso que precisas? Um toque? - Exactamente. Dez minutos a contar de agora. - OK, Harry - respondeu Edgar, com um tom de alvio na voz. - Ei, ouvi falar naquela coisa de ontem noite. Foi por um triz. E o que corre por aqui que no foi nenhum bbado. Tem cuidado contigo. - Sempre. O que que se passa em relao ao Sharkey? - Nada. Interroguei o bando dele, tal como tu me disseste. Dois deles dizem que estiveram com ele nessa noite. Acho que eles andavam a caar pandeiros. Dizem que o perderam de vista depois dele ter entrado num carro. Isso foi umas duas horas antes da recepo ter recebido a chamada a dizer que ele estava no tnel do estdio. Calculo que quem quer que estava no carro que o deve ter despachado. - Descrio? - Do carro? No muito boa. Cor escura, carro americano. Novo. Mais nada. - Que tipo de faris? - Bem, mostrei-lhes o livro dos carros e eles escolheram faris da retaguarda diferentes. Um escolheu redondos, o outro diz que so rectangulares. Mas, em relao aos da frente. Os dois dizem... - Quadrados. Quadrados ao lado uns dos outros. - Exacto. Ei, Harry, ests a pensar que o mesmo carro que se atirou a ti e mulher do FBI? Jesus! Temos que nos juntar para discutirmos isto. - Mais tarde. Talvez mais tarde. Entretanto, liga-me daqui a dez minutos.

- Dez minutos, certo. Bosch desligou e foi ter com Eleanor que estava a olhar para os tijolos de msica em exposio. Entraram na loja, sacudiram dois vendedores, deram a volta a uma pilha de caixas de cmaras de vdeo a 500 dlares cada e disseram a uma mulher de p junto de uma caixa registadora ao fundo da loja que queriam falar com Binh. A mulher olhou para eles com uma expresso vazia at que Eleanor lhe mostrou o distintivo e o carto do FBI.
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- Esperem aqui - disse a mulher e desapareceu por uma porta atrs da caixa registadora. A porta tinha uma pequena janela espelhada que lembrou a Bosch a sala de interrogatrios em Wilcox. Olhou para o relgio. Tinha oito minutos. O homem que apareceu pela porta atrs da caixa registadora parecia ter uns sessenta anos. O cabelo era branco. Era baixo, mas Bosch conseguiu perceber que, noutros tempos, tinha sido fisicamente poderoso para o seu tamanho. Largo e atarracado, agora estava amolecido por uma vida mais fcil do que a que tinha tido na sua terra natal. Usava culos com armaes prateadas e uma colorao rosada e uma camisa de colarinho aberto e calas largas. O bolso do peito pendia com o peso de quase uma dzia de canetas e uma lanterna de bolso. Ngo Van Binh era a discrio personificada. - Mr Binh? Chamo-me Eleanor Wish. Perteno ao FBI. Este o detective Bosch, Departamento da Polcia de Los Angeles. Gostaramos de lhe fazer umas perguntas. - Sim - disse ele, a expresso severa da cara imutvel. - a respeito do assalto ao banco onde o senhor tinha um cofre. - No declarei nenhuma perda, o meu cofre s tinha objectos de valor sentimental. Os diamantes tinham um valor muito elevado no que dizia respeito aos sentimentos, pensou Bosch, mas disse apenas: - Mr Binh, podemos ir para o seu gabinete e conversar em privado? - Sim, mas eu no sofri nenhuma perda. Vo ver. Est nos relatrios. Eleanor esticou a mo, incitando Binh a indicar o caminho. Foram atrs dele, passando a porta com a janela de espelhos, e entraram numa sala enorme que parecia um armazm. Havia centenas de caixas de aparelhos electrnicos em prateleiras de ao que chegavam at ao tecto. Passaram depois para uma sala mais pequena que era uma oficina de montagem ou de reparaes. Uma mulher sentada num banco levava uma tigela de sopa boca. No levantou os olhos quando eles passaram. Havia duas portas ao fundo da diviso e a procisso entrou por uma delas no gabinete de Binh. Era aqui que Binh despia a sua roupagem de campons. O gabinete era grande e luxuoso, com uma secretria e duas cadeiras direita e um sof de pele escura em forma de esquerda. O sof estava colocado borda de um tapete oriental com um drago de trs cabeas em posio de ataque. O sof estava voltado para duas 271 paredes cobertas de livros e de equipamento estereofnico e de vdeo, de uma categoria muito superior que Bosch tinha visto na parte da frente da loja. Devamos t-lo caado em casa, pensou Bosch. Ver como que ele vivia e no como que ele trabalhava. Bosch inspeccionou rapidamente a sala e viu um telefone branco em cima da secretria. Seria perfeito. Era uma antiguidade, daqueles em que o auscultador estava pousado por cima do disco de marcao. Binh encaminhou-se para a secretria, mas Bosch interpelou-o muito depressa. - Mr Binh? Seria possvel sentarmo-nos aqui, no sof? Gostaramos de manter isto o mais informal possvel. Ns passamos os dias sentados secretria, para falar verdade. Binh encolheu os ombros como se no lhe fizesse diferena visto que eles j o estavam a incomodar onde quer que se sentassem. Era um gesto caracteristicamente americano e Bosch estava convencido que a sua aparente dificuldade com o ingls era apenas parte da fachada que ele usava para melhor se isolar. Binh sentou-se num dos lados do sof em forma de e Eleanor e Bosch sentaram-se do outro. - Um escritrio muito bonito - comentou Bosch olhando em volta. No viu mais

nenhum telefone na sala. Binh assentiu com a cabea. No ofereceu nem ch, nem caf, nem nenhuma conversa de circunstncia. Limitou-se a perguntar: - O que que querem, se faz favor? Bosch olhou para Eleanor. Ela disse: - Mr Binh, ns estamos apenas a repetir os passos que j foram dados. O senhor no declarou nenhuma perda financeira no assalto caixa-forte. Ns... - Isso verdade. Nenhuma perda. - Exactamente. O que que guardava no seu cofre? - Nada. - Nada? - Papis e coisas assim, nenhuns valores. Eu j disse isto a toda a gente. - Sim, ns sabemos. Pedimos desculpa por o estarmos a incomodar novamente. Mas o caso continua em aberto e ns temos de voltar atrs para ver se deixmos escapar alguma coisa. Poderia dizer-me em pormenor que papis que perdeu? Podia ser uma ajuda para ns, caso recuperssemos alguma coisa, se pudssemos identificar a quem pertencia. Eleanor tirou um livrinho de apontamentos e uma caneta da carteira. Binh olhou para os dois visitantes como se lhe fosse totalmente impossvel perceber como que essa informao podia ser til. Bosch disse: - O senhor ficaria surpreendido como, por vezes, as coisas mais pequeninas podem... O pager tocou e Bosch tirou o aparelho do cinto e olhou para o nmero no mostrador. Levantou-se e olhou em volta como se estivesse a olhar para a sala pela primeira vez. Perguntou para consigo se no estaria a exagerar. - Mr Binh? Posso usar o seu telefone? local. Binh assentiu com a cabea e Bosch dirigiu-se para a secretria, inclinou-se e pegou no auscultador. Fingiu que estava outra vez a consultar o nmero no pager e marcou o nmero de Edgar. Deixou-se ficar de p, de costas para Eleanor e Binh. Olhou para a parede como se estivesse a admirar a tapearia de seda l pendurada. Ouviu Binh comear a descrever a Eleanor os papis relativos sua imigrao e naturalizao que tinham sido tirados do cofre. Bosch enfiou o pager no bolso do casaco e tirou o canivetezinho, o microfone T-9 e a pequena pilha que tinha desligado do seu prprio telefone. - Daqui o Bosch, quem que me ligou? - perguntou ele para o telefone quando Edgar atendeu. Depois de Edgar ter pousado o telefone, disse: - Espero alguns minutos, mas diz-lhe que estou a meio de uma entrevista. O que que h assim to importante? Continuando de costas e com o Binh ainda a falar, Bosch virou-se ligeiramente para a direita e inclinou a cabea como se estivesse a segurar o telefone junto da orelha esquerda, de forma a que Binh no o pudesse ver. Baixou o auscultador at altura do estmago, usou o canivete para fazer saltar a tampa do bucal aclarando a garganta ao mesmo tempo e depois tirou para fora o receptor udio tinha estado a treinar-se para fazer isso enquanto tinha estado espera do carro novo na garagem da esquadra de Wilcox. Depois usou os dedos para empurrar o microfone e a pilha para dentro do tubo do auscultador. Voltou a colocar o receptor e fechou a tampa, tossindo com fora para tapar o rudo. - OK - disse Bosch para o telefone. - Bem, diz-lhe que eu vou telefonar quando tiver acabado isto aqui. Obrigado, p. Pousou o telefone enquanto voltava a meter o canivete Voltou para o sof onde Eleanor estava a escrever no seu caderno. 272 273 Quando acabou, olhou para Bosch e este percebeu, sem ter sido preciso nenhum sinal, que a entrevista ia mudar de rumo. - Mr Binh - disse ela -, tem a certeza que era s isso que tinha no cofre? - Sim, claro, por que que est a insistir? - Mr Binh, ns sabemos quem o senhor e em que circunstncias que conseguiu entrar neste pas. Sabemos que era um oficial da polcia. - Sim, e ento? O que tem isso?...

- Tambm sabemos outras coisas... - Sabemos - intrometeu-se Bosch -, que o senhor era muitssimo bem pago como oficial da polcia em Saigo, Mr Binh. Sabemos que parte do seu trabalho era pago em diamantes. - O que quer dizer, o que diz ele? - perguntou Binh, olhando para Eleanor e apontando para Bosch. Estava a cair na defesa da barreira da lngua. Parecia saber cada vez menos ingls medida que a entrevista progredia. - Quer dizer aquilo que ele est a dizer - respondeu ela. - Sabemos dos diamantes que trouxe para c do Vietname, capito Binh. Sabemos que os guardava no cofre da caixa-forte. Estamos convencidos que os diamantes foram a motivao para o assalto caixa-forte. A notcia no o abalou, era possvel que ele tambm j tivesse deduzido o mesmo. No se mexeu. Disse: - Isso no verdade. - Mr Binh, temos o seu cadastro - disse Bosch. - Sabemos tudo a seu respeito. Sabemos que estava em Saigo, aquilo que fazia. Sabemos o que que trouxe consigo quando para aqui veio. No sei em que que est metido; agora parece tudo legal, mas a verdade que no nos interessa. Aquilo que nos interessa mesmo quem limpou a caixa-forte. E limparam-na por sua causa. Eles levaram a garantia disto tudo e de tudo o resto que o senhor possui. Ora, eu acho que aquilo que lhe estamos a dizer, provavelmente, j o senhor tinha descoberto ou pelo menos levantado a hiptese. De facto, muito capaz de ter pensado que o seu antigo scio Nguyen Tran estava por trs disto porque ele sabia o que que o senhor tinha e talvez mesmo o stio onde estava. No uma deduo nada m, mas achamos que est errada. De facto, pensamos que ele o prximo da lista. Nem uma fenda se formou na pedra que era a cara de Binh. - Mr Binh, queremos falar com Tran - disse Bosch. - Onde que ele est? Binh olhou para baixo, atravs do tampo de vidro da mesa em frente dele, para o drago das trs cabeas do tapete. Uniu as mos no colo, abanou a cabea e perguntou: - Quem esse Tran? Eleanor deitou um olhar de aviso a Bosch e tentou salvar aquela espcie de entendimento que tinha tido com o homem antes de ele se ter intrometido. - Capito Binh, - disse ela - ns no estamos interessados em proceder contra si. Apenas queremos impedir mais um assalto a um banco antes que ele acontea. No nos pode ajudar, por favor? Binh no respondeu. Olhava para as mos. - Olhe, Binh, no sei o que que o senhor tem andado a fazer em relao a isto disse Bosch. - capaz de ter posto umas pessoas procura das mesmas pessoas que ns queremos, no sei. Mas uma coisa lhe garanto j: o senhor est fora disto. Por isso, diga-nos onde est o Tran. - No conheo esse homem. - O senhor a nossa ltima esperana. Temos que encontrar o Tran. As pessoas que o limparam a si, essas pessoas esto outra vez nos tneis. Neste preciso instante. Se no conseguirmos chegar ao Tran neste fim-de-semana, no vai sobrar nada nem para si nem para ele. Binh permaneceu uma esttua, tal como Bosch estava espera. Eleanor ps-se em p. - Pense nisso, Mr Binh - disse ela. - O tempo est a esgotar-se para ns e tambm para o seu scio - disse Bosch enquanto se dirigiam para a porta. Depois de terem passado a porta do salo de vendas, Bosch olhou para os dois lados da rua e atravessou a Vermont a correr para junto do carro. Eleanor seguiu-o a p, a fria a fazer com que as passadas fossem rgidas e contidas. Bosch entrou e meteu a mo por baixo do assento da frente procura do Nagra. Ligou-o e escolheu a velocidade mxima de gravao. Estava convencido de que a espera no ia ser longa. Esperava que todo aquele equipamento electrnico da loja no estragasse a recepo. Eleanor entrou pela porta do passageiro e comeou a queixar-se. - Foi magnfico, no haja dvida - disse ela. - Agora nunca mais conseguiremos arrancar nada quele gajo. Ele vai telefonar ao Tran e... que raio isso?

- Uma coisa que apanhei aos meigas. Eles puseram um microfone no meu telefone. O truque mais velho do manual dos Assuntos Internos. - E tu foste logo p-lo no... Ela apontou para o outro lado da rua e Bosch assentiu. - Bosch, fazes alguma ideia do que nos pode acontecer, do que que isto significa? Vou voltar l e tirar... Abriu a porta do carro, mas Bosch esticou-se e voltou a fech-la. - No queres fazer isso. a nossa nica maneira de chegar ao Tran. O Binh no nos ia dizer fosse l como fosse que tivssemos feito a entrevista. E l no fundo desses olhos zangados, tu sabes isso muito bem. Por isso, ou isto ou nada. O Binh avisa o Tran e nunca mais saberemos onde que ele est, ou usamos isto para o encontrar. Talvez. Provavelmente, no tardaremos a sab-lo. Eleanor olhou para a frente abanando a cabea. - Bosch, isso pode significar os nossos empregos. Como que pudeste fazer isto sem me consultares? - Por duas razes. Pode significar o meu emprego. Tu no sabias. - Nunca poderia prov-lo. Tudo isto parece uma cilada. Eu mantive-o ocupado enquanto tu te dedicavas a essa tua charadazinha ao telefone. - Foi uma cilada, s que tu no o sabias. Alm disso, o Binh e o Tran no so os alvos da nossa investigao. No estamos a recolher provas contra eles, estamos a recolher provas a partir deles. Isto nunca aparecer num relatrio. E se ele descobrir o microfone, nunca poder provar que fui eu. No h nenhum nmero de registo. Eu vi. Os cretinos no foram suficientemente estpidos para deixarem maneira de o identificar. Estamos a salvo. No te preocupes. - Harry, isso dificilmente me... A luz vermelha no Nagra comeou a piscar. Algum estava a usar o telefone de Binh. Bosch verificou se a fita estava a rodar. - Eleanor, decide tu - disse Bosch segurando o gravador na palma da mo. - Desligao se quiseres. A escolha tua. Ela virou-se e olhou para o gravador e depois para Bosch. Nesse preciso momento o barulho da marcao parou e fez-se silncio no carro. Um telefone comeou a tocar na outra ponta da linha. Ela virou a cara. Algum atendeu o telefone. Foram trocadas algumas palavras em vietnamita e depois o silncio outra vez. A seguir, apareceu outra voz na linha e comeou uma conversa, tambm em vietnamita. Bosch percebeu que uma das vozes pertencia a Binh. O outro parecia um homem mais perto da idade de Bosch. Eram Binh e Tran, outra vez juntos. Eleanor sacudiu a cabea e forou uma curta gargalhada.

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- Brilhante, Harry, agora quem que vamos arranjar para traduzir? No vamos deixar que mais ningum oua isto, no podemos arriscar-nos a isso. - No quero nenhuma traduo - respondeu ele. Desligou o gravador e voltou a enrolar a fita para trs. - Ora pega l no teu bloco e na caneta. Bosch ajustou a velocidade do gravador para a mais baixa possvel e carregou no boto para ouvir. Quando a marcao comeou, estava suficientemente lenta para ele conseguir contar os cliques. Bosch ditou os nmeros para Eleanor que os apontou no bloco. Tinham o nmero para onde Binh tinha ligado. O nmero de telefone tinha como cdigo de rea 714. Orange County. Bosch ligou o receptor; a conversa telefnica entre Binh e o homem desconhecido continuava. Desligou e agarrou no microfone do rdio do carro. Deu ao expedidor o nmero e pediu o nome e o endereo correspondentes. Ia demorar alguns minutos enquanto algum verificava o nmero. Entretanto, Bosch ps o carro a trabalhar e seguiu para sul, em direco a Interestadual 10, j tinha feito a ligao com a 5 e seguia na direco de Orange County quando o expedidor o voltou a contactar. - O nmero de telefone pertencia a uma loja chamada Tan Phu Pagoda em Westminster. Bosch olhou para Eleanor que olhou para o outro lado. - A pequena Saigo - disse ele. Bosch e Eleanor Wish chegaram ao Tan Phu Pagoda uma hora depois de terem sado da loja de Binh. O pagode era um shopping plazza na Bolsa Avenue onde no

havia nem um letreiro escrito em ingls. O edifcio era de estuque branco com paredes de vidro na meia dzia de lojas que cercavam o parque de estacionamento. Cada uma delas era um pequeno estabelecimento que vendia praticamente s coisas desnecessrias como equipamento electrnico ou t-shirts. Em cada uma das pontas, havia dois restaurantes vietnamitas que competiam um com o outro. Ao lado de um dos restaurantes, havia uma porta de vidro que levava a um escritrio ou a uma loja sem montra para a rua. Embora nem Bosch nem Eleanor conseguissem decifrar as palavras na porta, perceberam imediatamente que devia ser a entrada para os escritrios do centro comercial. - Precisamos de entrar ali e confirmar que este stio do Tran, ver se ele est e se h outras sadas - disse Bosch. 277 - Nem sequer sabemos qual o aspecto dele - lembrou-lhe Eleanor. Ele pensou durante uns momentos. Se Tran no usasse o seu nome verdadeiro, no seria boa ideia p-lo de sobreaviso entrando por ali dentro e perguntando por ele. - Tenho uma ideia - disse Eleanor. - Descobre um telefone. Depois eu entro no escritrio. Tu marcas o nmero que tiraste da fita e enquanto eu l estiver, vejo se toca. E aproveito para tambm ver se topo o Tran e se h outras sadas. - Pode haver telefones a tocar l de dez em dez segundos - objectou Bosch. - Pode ser a casa das caldeiras ou um ginsio. Como que podes saber que sou eu? Ela ficou uns segundos calada. - O mais provvel que no falem ingls, ou pelo menos que no falem muito bem disse ela. - Por isso, pede a quem atender o telefone para falar em ingls ou para chamar algum que o faa. Quando conseguires algum que perceba, diz qualquer coisa que faa a pessoa ter uma reaco que eu possa ver. - Queres dizer, se o telefone tocar num stio que tu consigas ver. Eleanor encolheu os ombros, os olhos a mostrarem que estava cansada de ele estar sempre a deitar abaixo as sugestes dela. - Olha a nica coisa que podemos fazer. Anda, est ali um telefone. No temos muito tempo. Ele saiu do parque de estacionamento e dirigiu-se para uma cabina telefnica em frente de uma loja de bebidas alcolicas um pouco mais abaixo. Eleanor Wish voltou a p para o Tan Phu Pagoda e Bosch ficou a ver at ela chegar porta do escritrio. Meteu uma moeda de vinte e cinco cntimos no telefone e marcou o nmero que tinha escrito no bloco de notas frente da loja de Binh. A linha estava ocupada. Voltou a olhar para a porta do escritrio. Eleanor tinha desaparecido. Voltou a meter a moeda e a marcar o nmero. Ocupado. Fez o mesmo duas vezes segui-das at ouvir o sinal de chamada. Estava a pensar que se calhar se tinha enganado no nmero quando atenderam. - Tan Phu - disse uma voz masculina. Jovem, asitica, na casa dos vinte e poucos, pensou Bosch. No era Tran. - Tan Phu? - perguntou Bosch. - Sim, se faz favor. Bosch no conseguiu lembrar-se de nada para dizer. Assobiou para dentro do bucal do auscultador. A reaco foi um violento ataque verbal em staccato de que Bosch no conseguiu entender uma nica palavra. Depois, o telefone do outro lado foi desligado com toda a fora. Bosch meteu-se no carro e dirigiu-se outra vez para o parque de estacionamento do centro comercial. Estava a percorr-lo muito lentamente quando Eleanor apareceu porta de vidro acompanhada por um homem. Um asitico. Tal como Binh, tinha cabelo grisalho e tinha a aura de fora no declarada, msculos inflexveis. Abriu a porta a Eleanor e baixou-lhe a cabea quando ela agradeceu. Ficou a v-la afastar-se e depois desapareceu dentro do escritrio. - Harry - disse ela quando entrou no carro -, o que que disseste ao tipo que atendeu o telefone? - Nem uma palavra. Ento, era aquele escritrio? - Sim. Acho que era o nosso Mr Tran que me abriu a porta. Um sujeito simptico. - E o que que fizeste para ficarem assim to bons amigos? - Disse-lhe que era uma agente imobiliria. Quando entrei, pedi para falar com o patro. Ento, o Senhor de Cabelo Cinzento entrou por uma porta de um escritrio

nas traseiras. Disse que se chamava Jimmie Bok. Disse que representava investidores japoneses e perguntei se estava interessado em aceitar uma oferta pelo centro comercial. Ele disse que no. Num ingls muito fraco, disse-me: Eu compro, no vendo. Depois acompanhou-me at porta. Mas acho que o Tran. H qualquer coisa nele. - Sim, eu vi - disse Bosch. Agarrou no rdio e disse para a recepo para introduzir o nome Jimmie Bok nos computadores do NCIC e do DMV. Eleanor descreveu o interior do escritrio. Uma rea de recepo central, um corredor por trs com quatro portas, incluindo uma ao fundo que parecia uma sada, a julgar pela fechadura dupla. No viu mulheres. Pelo menos quatro homens, sem contar com Bok. Dois deles pareciam seguranas contratados. Levantaram-se do sof da recepo quando Bok saiu da porta do meio do corredor. Bosch saiu do estacionamento e deu a volta ao quarteiro. Virou para a viela que passava por trs do centro comercial. Parou quando j tinha andado o suficiente para conseguir ver um Mercedes dourado estacionado ao p da porta das traseiras do complexo. Havia uma fechadura dupla na porta. - Tem de ser o carro dele - disse Eleanor Wish. Resolveram que o melhor era vigiar o carro. Bosch passou por ele e foi at ao final da viela onde estacionou atrs dum caixote de lixo. Depois percebeu que este estava cheio do lixo do restaurante. Recuou e saiu por completo da viela. Estacionou na rua lateral de forma a poderem ver pela janela do lado oposto ao do condutor as traseiras do Mercedes. Bosch tambm podia olhar para Eleanor. - Bem, acho que agora s esperar - disse ela. - Acho que sim. No temos maneira de saber se ele vai fazer alguma coisa depois do aviso do Binh. Se calhar fez qualquer coisa depois do Binh ter sido limpo no ano passado e ns estamos apenas a perder tempo. Bosch recebeu uma resposta pela rdio do expedidor: Jimmie Blok tinha uma folha limpa como condutor. Vivia em Beverly Hills e no tinha cadastro. Nada mais. - Vou voltar ao telefone - anunciou Eleanor. Bosch olhou para ela. - Tenho que entrar em contacto. Vou dizer ao Rourke que estamos em cima deste tipo e ver se ele consegue libertar algum para telefonar para alguns bancos e pedir para introduzirem o nome dele nos computadores. Para ver se cliente. Tambm gostava de introduzir o nome dele no computador das propriedades. Ele disse: Eu compro, no vendo. Gostava de saber o que que ele compra. - D um tiro se precisares de mim - disse Bosch e ela sorriu enquanto abria a porta. - Queres alguma coisa para comer? - perguntou. - Estou a pensar em ir buscar qualquer coisa para o almoo de um desses restaurantes ali frente. - S caf - respondeu ele. No comia comida vietnamita h vinte anos. Ficou a v-la encaminhar-se para a parte da frente do centro comercial. Cerca de dez minutos depois de ela se ter ido embora, enquanto vigiava o Mercedes, Bosch viu um carro a passar do outro lado da viela. Reconheceu-o imediatamente como um carro da polcia. Um Ford LTD branco sem capas de rodas, apenas as calotas baratas que mostravam as rodas brancas. Estava demasiado longe para conseguir ver quem l ia dentro. Passou a olhar alternadamente para o Mercedes e para o espelho retrovisor para ver se o LTD estava a dar a volta ao quarteiro. Mas passaram-se cinco minutos e ele no voltou a aparecer. Eleanor Wish voltou dez minutos depois disso. Trazia um saco castanho engordurado de onde tirou um caf e duas embalagens douradas. Arroz e caranguejo cozinhados a vapor, explicou ela. Ele recusou a oferta dela e abriu a janela. Bebeu um golo do caf que ela lhe estendeu e fez uma careta. - Parece que foi feito em Saigo e mandado para c - comentou. - Falaste com o Rourke? - Falei. Ele vai mandar algum investigar o Bok e dar-me uma apitadela para o pager se descobrirem alguma coisa. Quer saber, atravs do rdio, mal o Mercedes comece a mover-se. Passaram duas horas facilmente conversando de ninharias e vigiando o Mercedes dourado. Finalmente, Bosch anunciou que ia mudar de posio dando a volta ao

quarteiro s para agitar um bocadinho as coisas. O que no disse foi que estava aborrecido, que tinha o rabo dormente e que queria ver se via o LTD branco. - Achas de devamos telefonar para ver se ele ainda l est e desligar se ele atendesse? - perguntou Eleanor. - Se o Binh o avisou, uma chamada dessas era capaz de o abalar, de o fazer pensar que se estava a passar qualquer coisa e de o tornar mais cauteloso. Contornou a esquina e passou frente do centro comercial. No houve nada de invulgar que lhe despertasse a ateno. Deu a volta ao quarteiro e voltou a estacionar no mesmo stio. No tinha visto o LTD. Mal regressaram posio inicial, o pager de Eleanor Wish deu sinal e ela saiu para ir telefonar outra vez. Bosch concentrou-se no Mercedes dourado e esqueceu o LTD. Mas depois de Eleanor j se ter ido embora havia vinte minutos, comeou a ficar nervoso. J passava das trs da tarde e Bok/Tran ainda no tinha sado como eles esperavam que fizesse. Havia qualquer coisa que no parecia certa. Mas o qu? Bosch levantou os olhos para a esquina do centro comercial, estudando-a enquanto esperava que Eleanor aparecesse esquina do edifcio branco. Ouviu um barulho, um impacto surdo. Dois ou trs iguais. Tiros? Pensou em Eleanor e o corao subiulhe garganta como se tivesse sido empurrado por um punho fechado. Ou teriam sido portas a fechar? Olhou para o Mercedes, mas s conseguiu ver o portabagagens e os faris das traseiras. No viu ningum ao p do carro. Voltou a olhar para a frente. Nada de Eleanor. Outra vez para o Mercedes, e viu as luzes dos traves a acenderem. Bok estava a ir-se embora. Bosch ligou o carro e avanou at esquina, os pneus a fazerem saltar o cascalho enquanto acelerava. esquina, viu Eleanor que vinha pelo passeio em direco a ele. Buzinou-lhe e fez-lhe sinal para se apressar. Eleanor correu para o carro e estava a entrar quando o Mercedes apareceu no espelho retrovisor de Bosch a sair da viela e a virar na direco deles. - Baixa-te! - disse ele e empurrou Eleanor para baixo. 280 281 O Mercedes passou por eles e virou para a Bolsa. Ele soltou-lhe o pescoo. - Mas que raio que pensas que ests a fazer? - perguntou ela quando se endireitou. Bosch apontou para o Mercedes que se afastava. - Iam passar por ns. Ter-te-iam topado porque estiveste l no escritrio hoje de manh. Por que que te demoraste tanto? - Tiveram de ir procura do Rourke. No estava no gabinete. Bosch arrancou e comeou a seguir o Mercedes a uma distncia de dois quarteires. Passado um bom bocado, depois de se ter arranjado, Eleanor peguntou: - Ele est sozinho? - No sei. No o vi entrar. Estava a olhar para a esquina a ver se te via. Acho que ouvi mais de uma porta do carro a fechar. Tenho a certeza que ouvi. - Mas no sabes se o Tran era uma das pessoas que entraram? - Exactamente. No sei. Mas est a fazer-se tarde. Achei que devia ser ele. De repente, Bosch deu conta de que podia ter cado no truque mais antigo do manual da vigilncia. Bok ou Tran, ou quem quer que ele fosse, podia muito simplesmente ter mandado um dos seus empregados no carro de cem mil dlares para afastar os seus perseguidores. - O que que achas, voltamos para trs? - perguntou ele. Eleanor Wish no respondeu at ele olhar para ela. - No, disse ela. - Ficamos com o que temos. No te ponhas a duvidar de ti prprio. Tens razo em relao s horas. H muitos bancos que fecham s cinco antes de um fim-de-semana prolongado. Ele tinha de se mexer. Foi avisado pelo Binh. Acho que ele. Bosch sentiu-se melhor. O Mercedes virou para oeste e depois para norte na Golden State Freeway em direco a Los Angeles. O trnsito arrastava-se vagarosamente para entrar na baixa da cidade e o carro dourado seguiu para oeste na Santa Monica Freeway, saindo na Robertson s vinte para as cinco. Estavam a entrar em Beverly Hills. O Wilshire Boulevard estava cheio de bancos de ambos os lados, desde a baixa ate ao mar. Quando o Mercedes virou para oeste, Bosch sentiu que

deviam estar perto. Tran devia guardar o seu tesouro num banco ao p de casa, pensou ele. Tinham feito a aposta certa. Descontraiu-se um bocadinho e por fim, voltou-se para Eleanor para lhe perguntar o que que o Rourke tinha dito quando ela tinha falado com ele ao telefone. - Confirmou com o gabinete de Orange County que o Jimmie Bok Nguyen Tran. Ele mudou de nome h nove anos. Devamos ter procurado em Orange County. Esqueci-me da Pequena Saigo. - Alm disso, - continuou ela - se este tipo, o Tran, tinha diamantes bem capaz de j os ter gasto todos. Os registos de propriedade mostram que ele possui mais dois centros comerciais como aquele dali. Em Monterey Park e Diamond Bar. Bosch disse para consigo que continuava a ser possvel. Os diamantes podiam ser a garantia para o imprio das propriedades imobilirias. Tal como acontecia com o Binh. Manteve os olhos fixos no Mercedes, agora a apenas a um quarteiro de distncia porque a hora de ponta estava no seu auge e ele no queria ficar para trs. Observou as janelas pretas do carro deslocarem-se ao longo da rua rica e disse para consigo que estavam a dirigir-se para os diamantes. - E guardei o melhor para o fim - anunciou Eleanor. - Mr Bok, tambm conhecido por Mr Tran, controla os seus inmeros bens atravs de uma corporao. O nome da dita corporao, de acordo com a investigao dos registos feita pelo Agente Especial Rourke, no outra seno a Diamond Holdings, Incorporated. Passaram o Rodeo Drive e entraram no centro do distrito comercial. Os edifcios que ladeavam o Wilshire Boulevard assumiam um ar mais imponente, como se soubessem que tinham mais dinheiro e mais classe l dentro. Em certas zonas, o trnsito abrandava para um passo de caracol e Bosch aproximou-se at ficar dois carros atrs do Mercedes, no querendo perder o carro num semforo. Estavam quase no Santa Monica Boulevard e Bosch estava a comear a pensar que se dirigiam para a Century City. Olhou para o relgio. Eram quatro e cinquenta. - Se este gajo vai para a Century City, no me parece que v conseguir chegar a horas. Nesse preciso instante, o Mercedes fez uma curva para a direita para uma garagem de estacionamentos. Bosch abrandou ao mesmo tempo que se aproximava do passeio e, sem dizer uma palavra, Eleanor saltou do carro e entrou na garagem. Bosch voltou direita na rua seguinte e deu a volta ao quarteiro. Os parques de estacionamento e as garagens despejavam carros, impedindo-o de avanar uma e outra vez. Quando, finalmente, deu a volta toda, Eleanor estava parada no passeio exactamente no mesmo stio onde tinha saltado do carro. Ele parou e ela inclinouse para dentro da janela. - Arruma - disse ela apontando para o outro lado da rua, meio bloco mais frente. Havia uma estrutura redonda que sobressaa em relao rua a partir do primeiro andar de um edifcio de escritrios com vrios andares As paredes do semicrculo eram de vidro. E, dentro deste enorme salo de vidro, Bosch viu a porta de ao polido de uma caixa-forte. Um letreiro no exterior do edifcio dizia Beverly Hills Safe & Lock. Olhou para Eleanor e viu que ela estava a sorrir. - O Tran estava no carro? - perguntou-lhe. - Claro. Tu no cometes erros desses. Ele retribuiu o sorriso. Depois viu um espao livre num parqumetro logo ali frente. Dirigiu-se para l e estacionou. - Desde que comemos a pensar que devia haver uma segunda caixa-forte, a nica coisa em que pensei foi em bancos - disse Eleanor Wish. - Sabes, Harry? Talvez um de poupanas e emprstimos. Mas passo de carro por este stio umas duas vezes por semana. Pelo menos. E nunca me lembrei de tal coisa. Tinham descido a Wilshire e estavam parados do outro lado da rua, frente da Beverly Hills Safe & Lock Company. Na realidade, ela estava atrs dele, a espreitar para o edifcio por cima do ombro dele. Tran, ou Bok como era agora conhecido, tinha-a visto e no queriam arriscar-se a que ele a visse ali. O passeio estava cheio de empregados de escritrios que saam em torrentes pelas portas de vidro giratrias dos edifcios, dirigindo-se para os estacionamentos das garagens na tentativa de conseguirem nem que fosse apenas um avano de cinco minutos na entrada no trnsito de um fim-de-semana prolongado. - Mas faz sentido - disse Bosch. - Ele vem para c, no confia em bancos, como

disse o teu amigo do Departamento de Estado. Por isso, descobre uma caixa-forte que no um banco. Esta. Mas ainda melhor. Desde que tenhas dinheiro para pagar, estes stios no precisam de saber quem s. No h nenhuma regulamentao federal porque no so bancos. Podes alugar um cofre e s te identificares com uma carta ou um nmero de cdigo. A Beverly Hills Safe & Lock Company tinha todo o ar de um banco, mas estava muito longe de o ser. No havia contas-poupana nem contas ordem. Nenhum departamento de emprstimos, nenhuns caixas. Aquilo que oferecia era o que estava visvel na janela da frente. A sua caixa-forte de ao polido. Era um negcio que protegia valores e no dinheiro. 284 Numa zona como Beverly Hills, era um negcio precioso. Os ricos e famosos guardavam ali as suas jias. As suas peles, os seus contratos pr-nupciais. E estava ali tudo vista. Atrs do vidro. O negcio ocupava o andar de baixo do J.C. Stock Building, de catorze andares, uma estrutura sem nada de notvel exceptuando o salo da caixa-forte em vidro que sobressaa, num meio crculo, da fachada do primeiro andar. A entrada para a Beverly Hills Safe & Lock ficava no lado do edifcio que dava para a Rincon Street, onde mexicanos com casacos amarelos curtos estavam espera, prontos a tomarem conta do carro de um cliente rico. Depois de Bosch ter largado Eleanor no passeio e ter ido dar a volta ao quarteiro, ela tinha visto Tran e dois guarda-costas sarem do Mercedes dourado e dirigiremse para o edifcio. Se desconfiavam que podiam estar a ser seguidos, no deram qualquer sinal disso. Nunca olharam para trs. Um dos guarda-costas transportava uma mala em ao. Eleanor disse: - Acho que descobri que pelo menos um dos guarda-costas estava armado. O casaco do outro era demasiado largo. - ele? - Sim l est ele Tran estava escoltado por um homem com um fato azul de banqueiro ao entrar na caixa-forte. Um guarda-costas com a mala de ao seguia atrs deles. Bosch viu os olhos do homenzarro varrer o passeio do lado de fora at Tran e o Fato de Banqueiro desaparecerem pela porta aberta da caixa-forte. O homem com a mala ficou espera. Bosch e Eleanor tambm ficaram espera, a observar. Uns trs minutos mais tarde, Tran saiu seguido pelo Fato de Banqueiro que transportava um cofre de metal do tamanho de uma caixa de sapatos de senhora. O guarda-costas fechou a rectaguarda e os trs homens saram da sala de vidro, desaparecendo de vista. - Chique, servio personalizado - comentou Eleanor. - Beverly Hills em tudo. Provavelmente, est a lev-lo para uma sala particular onde ele far a transferncia. - Achas que podes contactar com o Rourke e arranjar algum para seguir o Tran quando ele sair daqui? - perguntou Bosch. Usa um telefone fixo. No podemos comunicar pelo ar no v dar-se o caso dos tipos l em baixo terem algum c em cima a ouvir as nossas frequncias. - Parto do princpio que vamos ficar aqui, com a caixa-forte? - perguntou ela. Bosch assentiu. Ela pensou uns instantes e disse: - Vou telefonar. Ele vai ficar contente por saber que descobrimos o stio. J vamos poder mandar a equipa dos tneis l para baixo. 285 Olhou em volta, viu um telefone pblico ao lado de uma paragem de autocarro na esquina a seguir e fez meno de se afastar, mas Bosch agarrou-lhe no brao. - Eu vou entrar l dentro, ver como . No te esqueas: eles conhecem-te, por isso mantm-te longe at eles se irem embora. - E se eles se pisgam antes dos reforos chegarem? - Eu fico com aquela caixa-forte. O Tran no me interessa. Queres as chaves? Podes levar o carro e segui-lo. - No, fico com a caixa-forte. Contigo. Deu meia volta e dirigiu-se para o telefone. Bosch atravessou o Wishire Boulevard e entrou no Safe and Lock, passando por um guarda armado que se estava a

aproximar da porta com uma argola de chaves na mo. - J estamos a fechar, senhor - disse o guarda que tinha o bambolear e a rudeza de um ex-polcia. - s um minuto - disse Bosch sem parar. O Fato de Banqueiro, que tinha acompanhado Tran at caixa-forte, era um dos trs jovens louros sentados a secretrias antigas em cima de uma carpete cinzenta e espessa na zona da recepo. Levantou os olhos dos papis, avaliou o ar de Bosch e disse a um dos colegas mais novos: - Mr Grant, se no se importa, atenda este senhor. Embora a sua resposta no verbalizada fosse um no, o homem chamado Grant levantou-se, deu a volta secretria e, com o melhor sorriso falso do seu arsenal, aproximou-se de Bosch. - Sim, se faz favor? - disse o homem. - O senhor est a pensar em abrir um depsito na caixa-forte connosco? Bosch ia comear a formular uma pergunta quando o homem estendeu a mo e disse: - James Grant, pergunte-me tudo o que quiser. Embora estejamos a ficar com pouco tempo. Vamos fechar para o fim-de-semana dentro de alguns minutos. Grant puxou para cima a manga do casaco para olhar para o relgio e confirmar a hora do fecho. - Harvey Pounds - disse Bosch apertando-lhe a mo. - Como que sabia que eu no tinha j uma conta? - Segurana, Mr Pounds. Ns vendemos segurana. Eu conheo de vista todos os nossos clientes. E o mesmo acontece com Mr Avery e Mr Bernard - disse ele voltando-se ligeiramente na direco do Fato de Banqueiro e do outro vendedor que baixaram a cabea muito formalmente. - No esto abertos aos fins-de-semana? - perguntou Bosch tentando mostrar-se desapontado. Grant sorriu. - No, senhor. Achamos que os nossos clientes so do tipo de pessoas que tm planos muito bem delineados, vidas muito bem planeadas. Reservam os fins-desemana para se divertirem e no para tratarem de negcios como fazem as outras pessoas. Est a compreender-me? Nada de corridas para os bancos, para as ATMs. Os nossos clientes esto bastante acima disso, Mr Pounds. E ns tambm. Com certeza que compreende isso. Havia um tom escarninho na voz dele ao dizer aquilo. Mas Grant tinha razo. Aquele stio era to finrio como um escritrio de direito comercial, com o mesmo horrio e com os mesmos homens cheios de si. Bosch olhou ostensivamente em volta. Num recanto direita, onde havia uma fila de oito portas, viu dois guarda-costas de Tran, um de cada lado da terceira porta. Bosch fez um gesto de assentimento a Grant e sorriu. - Bem, estou a ver que tm guardas em todo o lado. exactamente desse tipo de segurana que ando procura. - Peo desculpa, Mr Pounds, mas aqueles homens esto apenas espera de um cliente que est numa das nossas salas particulares. No entanto, posso garantir-lhe que os nossos dispositivos de segurana nunca podero ser postos em causa. Est a pensar em arranjar um cofre connosco, senhor? O homem tinha uma simpatia ainda mais melflua do que a de um evangelista. Bosch no gostava dele nem da sua atitude. - Segurana, Mr Grant, eu estou procura de segurana. Quero alugar um cofre na caixa-forte, mas preciso de estar tranquilo com a segurana, tanto no que diz respeito a problemas interiores como a problemas do exterior, se que me estou a fazer entender. - Claro, Mr Pounds, mas tem alguma ideia do custo do nosso servio, da segurana que fornecemos? - No sei nem me interessa, Mr Grant. Est a ver, o dinheiro no est em causa. A paz de esprito sim. Percebido? Na semana passada, o meu vizinho do lado, estou a falar de apenas trs portas mais abaixo do ltimo presidente, foi assaltado. O alarme no foi obstculo para eles. Levaram coisas muito valiosas. No quero ficar espera que me acontea a mesma coisa. Hoje em dia, no h nenhum stio seguro.

- uma verdadeira vergonha, Mr Pounds - disse Grant, uma nota de excitao incontrolada na voz. - No sabia que as coisas estavam a ficar assim em Bel Air. Mas no podia estar mais de acordo com o seu plano de aco. Sente-se na minha secretria e podemos conversar. Quer um caf, talvez um brandy? Estamos quase na hora dos cocktails. Apenas um dos servicinhos que ns podemos fornecer e que uma instituio bancria no pode. Grant esboou uma gargalhada, silenciosamente, balanando a cabea para cima e para baixo. Bosch declinou a oferta e o vendedor sentou-se secretria, puxando a cadeira para a frente. - Ora, deixe-me ento dizer-lhe como que ns basicamente trabalhamos. Somos completamente livres em relao a qualquer agncia governamental. Calculo que o seu vizinho se sentiria feliz com isso. Piscou o olho a Bosch que perguntou: - Vizinho? - O antigo presidente, bem entendido. Bosch assentiu e Grant continuou: - Fornecemos uma longa lista de servios de segurana, tanto aqui como na sua casa, at mesmo uma escolta armada, se for necessrio. Somos os melhores consultores em questes de segurana. Ns... - E quanto caixa-forte? - interrompeu Bosch. Sabia que Tran devia estar a sair da sua sala privativa a todo o instante e queria estar na caixa-forte nessa altura. - Sim, claro, a caixa-forte. Como viu, est vista de todo o mundo. O crculo de vidro, como lhe chamamos, talvez o nosso estratagema de segurana mais brilhante. Quem que iria tentar arromb-lo? Est vista vinte e quatro horas por dia. Aqui mesmo, no Wilshire Boulevard. Genial, no ? O sorriso de Grant exibia um enorme triunfo. Acenou ao de leve com a cabea num esforo para conseguir um sinal de concordncia da parte do cliente. - E quanto ao que fica por baixo? - perguntou Bosch e a boca do homem descaiu, voltando a uma linha sria. - Mr Pounds, o senhor no pode estar espera que eu lhe explique todo o nosso sistema de segurana, mas posso garantir-lhe que a caixa-forte impenetrvel. S aqui entre ns, o senhor no encontra uma caixa-forte nesta cidade com tanto beto e ao no cho, nas paredes e no tecto como na nossa. E a parte elctrica? O senhor no podia - desculpe-me a expresso - dar um traque na sala circular sem fazer disparar os sensores de som, movimento e calor. - Posso v-la? - A caixa-forte? - Evidentemente. - Evidentemente. Grant endireitou o casaco e conduziu Bosch para a caixa-forte. Uma parede de vidro e uma armadilha dividiam a caixa-forte semicircular do resto da Beverly Hills Safe & Lock. Grand apontou para o vidro e disse: - Vidro temperado duplo. Fita de alarme vibratrio entre as duas placas para tornar impossvel qualquer interferncia. O mesmo acontece com as janelas exteriores. Basicamente, a sala da caixa-forte est selada em duas camadas de vidro com uma espessura de trs quartos de polegada. Voltando a usar a mo como um modelo a apontar para os preos num jogo televisivo, Grant indicou um aparelho parecido com uma caixa ao lado da porta para a armadilha. Tinha o tamanho aproximado de um reservatrio de gua dum escritrio e um crculo de plstico branco na parte de cima. No crculo estava desenhado a preto o contorno de uma mo, com os dedos abertos. - Para entrar na caixa-forte, a sua mo tem de estar no ficheiro. A estrutura ssea. Deixe-me mostrar-lhe. Colocou a mo direita na silhueta preta. O aparelho comeou a zumbir e a cobertura plstica acendeu-se da parte de dentro. Uma barra de luz varreu pela parte de baixo o plstico e a mo de Grant, como se fosse uma mquina Xerox. - Raio-x - disse Grant. - Mais eficaz do que as impresses digitais, e o computador consegue process-lo em seis segundos. Seis segundos depois, a mquina emitiu um apito curto e a fechadura electrnica

da primeira porta da armadilha abriu-se com um estalido. - Est a ver, Mr Pounds, aqui a sua mo passa a ser a sua assinatura. No h necessidade de haver nomes. O senhor d um cdigo ao seu cofre e pe a estrutura dos ossos da sua mo no nosso ficheiro. A nica coisa de que precisamos de seis segundos do seu tempo. Bosch ouviu atrs de si uma voz que reconheceu como sendo do Fato de Banqueiro, o homem que se chamava Avery: - Ah, Mr Long, j terminmos? 288 289 Bosch virou a cabea e viu Tran sair da salinha. Agora era ele que transportava a pasta. E um dos guarda-costas transportava o cofre. O outro calmeiro olhou directamente para Bosch. Bosch voltou-se outra vez para Grant e perguntou: - Podemos entrar? Entrou atrs de Grant para a armadilha. A porta fechou-se atrs deles. Estavam numa sala de vidro e ao branco com o dobro do tamanho de uma cabine telefnica. Havia uma segunda porta ao fundo. Atrs dela estava um guarda fardado. - Isto apenas um pormenor que fomos buscar Cadeia do Condado de L.A. explicou Grant. - Esta porta nossa frente no pode ser aberta a no ser que a outra atrs de ns esteja fechada e trancada. Maury, o nosso guarda armado, faz a ltima verificao visual e abre a ltima porta. Est a ver, Mr Pounds, ns aqui temos o toque humano e o toque electrnico. Fez sinal com a cabea a Maury que destrancou e abriu a ltima porta da armadilha. Bosch e Grant entraram na caixa-forte. Bosch no se deu ao trabalho de dizer que tinha acabado de enganar com xito os elaborados obstculos de segurana ao ter jogado com a ambio de Grant enfiando-lhe um barrete com um endereo de Bel Air. - E agora, a caixa-forte - disse Grant levantando a mo como um anfitrio simptico. A caixa-forte era maior do que Bosch tinha imaginado. No era larga, mas estendiase bastante para trs, para o interior do edifcio J. C. Stock. Havia cofres ao longo das duas paredes e numa estrutura de ao que corria o centro da sala. Os dois comearam a descer o corredor para o lado esquerdo enquanto Grant explicava que os cofres do centro serviam para armazenar as coisas maiores. Bosch viu que as portas eram muito maiores do que as dos cofres das paredes laterais. Algumas eram suficientemente grandes para uma pessoa l poder entrar. Grant viu que Bosch estava a olhar para estas e sorriu: - Peles - disse ele. - Martas. Fazemos um bom negcio a guardar peles caras, casacos compridos, o que quiser. As senhoras de Beverly Hills guardam-nas c quando no a estao delas. uma poupana enorme em seguros, j para no falar na paz de esprito. Bosch desligou do discurso do vendedor e concentrou-se na entrada de Tran na caixa-forte, seguido por Avery. Tran continuava a carregar a pasta e Bosch viu uma placa estreita de ao brilhante no pulso dele. Estava algemado pasta. A adrenalina de Bosch subiu vertiginosamente. Avery aproximou-se de um cofre aberto com o nmero 237 e enfiou o cofre de depsitos no seu interior. Fechou a porta e utilizou uma chave numa das duas fechaduras da porta. Tran aproximou-se por sua vez e meteu a sua chave na outra fechadura e rodou-a. Depois fez um gesto com a cabea a Avery e saram os dois da caixa-forte, sem que Tran tivesse olhado uma s vez que fosse para Bosch. Mal Tran desapareceu, Bosch anunciou que j tinha visto o suficiente e dirigiu-se para a sada. Aproximou-se do vidro duplo e olhou l para fora, para o Wilshire Boulevard, vendo Tran, ladeado pelos dois imponentes guarda-costas, dirigir-se para o estacionamento da garagem onde tinha deixado o Mercedes. Ningum o seguiu. Bosch olhou em volta, mas no viu Eleanor. - H algum problema, Mr Pounds? - perguntou Grant atrs dele. - Sim - respondeu Bosch. Meteu a mo no bolso do casaco e tirou a carteira com o crach. Segurou-a por cima do ombro para Grant a poder ver l atrs. - melhor ir chamar o gerente desta coisa. E no volte a tratar-me por Mr Pounds.

Lewis estava parado num telefone pblico frente de um restaurante aberto vinte e quatro horas por dia chamado Darlings. Estava esquina e distncia de um quarteiro da Beverly Hills Safe & Lock. J tinha passado mais de um minuto desde que a agente Mary Grosso tinha atendido o telefone e dissera que ia chamar o subchefe Irving. Lewis estava a pensar que se o homem queria informaes de hora a hora ainda por cima por telefone ento, o mnimo que ele podia fazer era atender a merda da chamada de imediato. Mudou o telefone para a outra orelha e vasculhou o bolso procura de qualquer coisa com que palitar os dentes. O pulso doeu-lhe quando raspou no bolso. Mas pensar em ter sido algemado por Bosch s fazia com que ficasse furioso, por isso, tentou concentrar-se na investigao. No fazia a mnima ideia do que se estava a passar, do que que Bosch e a mulher do FBI andavam a tramar. Mas irving estava convencido que havia tramia e o mesmo acontecia com Clarke. Se assim fosse, jurou Irving a si prprio no telefone pblico, iria ser ele quem ia pr as algemas nos pulsos de Bosch. Um velho mendigo com olhos assustadios e cabelo branco arrastou os ps at ao telefone a seguir ao de Lewis e foi ver a ranhura dos trocos. Estava vazia. Esticou um dedo para a ranhura do telefone que Lewis estava a usar, mas o polcia dos Assuntos Internos deu-lhe uma sapatada. - O que a estiver meu, avozinho - disse Lewis. Sem se intimidar, o vagabundo perguntou: - Tem uma moeda de vinte e cinco cntimos para eu poder arranjar qualquer coisa para comer? - Vai-te foder - disse Lewis. - O qu? - perguntou uma voz. - O qu? - repetiu Lewis e depois percebeu que a voz tinha vindo do telefone. Era Irving. - Oh, no, senhor, no era consigo. No percebi que estava... uh... estava a falar, uh... estou aqui com um problema com uma pessoa... Eu... - assim que fala com um cidado? Lewis meteu a mo no bolso das calas e tirou uma nota de dlar. Estendeu-a ao velho de cabelos brancos e fez-lhe sinal para se ir embora. - Detective Lewis, est a? - Sim, Chefe. Desculpe. J resolvi o problema. Queria fazer o relatrio. Houve um desenvolvimento importante. Esperava que esta ltima frase desviasse a ateno de Irving da indiscrio anterior. Irving disse: - Diga-me l o que tem. Ainda tem o Bosch debaixo de olho? Lewis respirou fundo, aliviado. - Sim, senhor respondeu ele. O detective Clarke est a vigiar enquanto eu falo consigo. - Muito bem, ento conte l. sexta-feira noite, detective, e eu gostaria de chegar a casa a uma hora razovel. Lewis passou os quinze minutos seguintes a pr Irving a par da perseguio que Bosch fizera ao Mercedes dourado desde Orange City at Beverly Hills Safe & Lock. Disse que a perseguio tinha terminado na casa dos depsitos, que parecia ter sido o destino planeado. - O que que eles esto a fazer agora, o Bosch e a mulher do FBI? - Ainda l esto. Parece que esto a interrogar o gerente. Passa-se qualquer coisa. D a ideia de que eles no sabiam para onde iam, mas que mal chegaram a este stio, souberam logo que era aqui. - Aqui o qu? - isso. No sei. Seja l o que for que eles andem a tramar. Penso que o tipo que eles seguiram fez um depsito. H uma caixa-forte, muito grande, na montra da frente desta coisa. - Sim, eu sei de que que est a falar. Irving ficou calado durante um bom bocado e Lewis, tendo terminado o relatrio, sabia que o melhor era no o interromper. Comeou a sonhar acordado com a ideia de algemar as mos de Bosch atrs das costas e de o passar pela frente de um batalho de cmaras de televiso. Ouviu Irving aclarar a garganta. - No sei qual o plano deles - disse Irving. - Mas quero que continuem em cima deles. Se eles no voltarem para casa esta noite, vocs tambm no voltam.

Compreendido? - Sim, senhor. - Se eles deixaram que o Mercedes Benz se fosse embora, ento porque o que queriam era a caixa-forte. Vo pr a caixa-forte sob vigilncia. E vocs, pela vossa parte, vo continuar a vigi-los a eles. - Sim, Chefe - respondeu Lewis, embora ainda no tivesse compreendido nada. Irving passou os dez minutos seguintes a dar instrues ao seu detective e a explicar a sua teoria sobre o que se estava a passar com a Beverly Hills Safe & Lock. Lewis puxou de um bloco de notas e de uma caneta e tirou uns apontamentos rpidos. No fim do dilogo-monlogo, Lewis deu o seu nmero de telefone de casa a Lewis e disse: - No avancem sem terem a minha autorizao prvia. Podem telefonar-me para esse nmero a qualquer hora do dia ou da noite. Compreendido? - Sim, senhor - respondeu Lewis pressurosamente. Irving desligou sem mais uma palavra. Bosch esperou na rea da recepo que Eleanor chegasse sem dizer a Grant e aos outros vendedores o que que se passava. Eles ficaram de p, atrs das secretrias elegantes, de bocas abertas. Quando Eleanor chegou porta esta estava fechada. Ela bateu e mostrou o crach. O guarda deixou-a entrar e ela entrou na rea da recepo. Quando o vendedor chamado Avery abria a boca para falar, Bosch disse: - Esta a agente Eleanor Wish do FBI. Est comigo. Ns vamos entrar num desses gabinetes privados para os vossos clientes para termos uma conversa particular. S vamos demorar um minuto. Se houver algum que seja o encarregado, gostaramos de falar com ele mal ele aparecesse. Grant, ainda atordoado, apontou para a segunda porta da alcova. Bosch entrou na terceira porta e Eleanor foi atrs dele. Fechou a porta na cara dos trs vendedores e trancou-a. - Ento, o que que temos? No sei o que que lhes hei-de dizer - murmurou-lhe ele enquanto olhava em redor da secretria e das duas cadeiras da sala procura de um bocado de papel ou de qualquer outra coisa que Tran l pudesse ter deixado. No havia nada. Abriu as gavetas da secretria de mogno. Havia canetas, lpis, envelopes e um monte de folhas de papel timbrado. Nada mais. Havia uma mquina de faxe em cima de uma mesa encostada parede em frente da porta, mas estava desligada. - Observamos e esperamos - respondeu ela a falar muito depressa. - O Rourke diz que est a juntar uma equipa dos tneis. Eles vo entrar e procurar. Primeiro vo encontrar-se com a DWP para ver exactamente o que l h em baixo. Devem ser capazes de calcular qual o melhor stio para um tnel e depois comeam por a. Harry, achas mesmo que acertmos? Ele assentiu com a cabea. Apetecia-lhe sorrir, mas no o fez. A excitao dela era contagiosa. - Ele conseguiu arranjar quem seguisse o Tran a tempo? - perguntou. - A propsito, aqui conhecem-no por Mr Long. Bateram porta e uma voz disse: - Com licena, com licena. Bosch e Eleanor ignoraram-na. - Tran, Bok e agora Long - disse Eleanor. - No sei nada sobre a vigilncia. O Rourke disse que ia tentar. Dei-lhe a matrcula e disse-lhe onde que o Mercedes estava estacionado. Acho que s vamos saber depois. Ele disse que tambm ia mandar uma equipa para combinar a vigilncia connosco. Vamos ter uma reunio de vigilncia na garagem do outro lado da rua s oito horas. O que que eles dizem aqui? - Ainda no lhes disse o que que se passava. Voltaram a bater porta. Desta vez, mais alto. - Bem, vamos l falar com o chefe. O dono e director da Beverly Hills Safe & Lock Company era o pai de Avery, Martin B. Avery III. Tinha a mesma origem de muitos dos seus clientes e queria que toda a gente o soubesse. Tinha um escritrio particular ao fundo da alcova. Por trs da

secretria, havia uma grande coleco de fotografias emolduradas que atestavam o facto de ele no ser apenas mais um trapaceiro a alimentar-se dos ricos. Era um deles. Havia Avery III com vrios presidentes, um ou dois magnatas do cinema e algumas realezas inglesas. Uma das fotografias era de Avery e o Prncipe de Gales completamente artilhados para o jogo do plo, embora Avery parecesse ser demasiado gordo na cintura e ter as bochechas demasiado balofas para ser um grande cavaleiro. Bosch e Eleanor resumiram-lhe a situao e ele mostrou-se imediatamente cptico. Disse que a sua caixa-forte era inexpugnvel. Disseram-lhe para guardar os discursos promocionais e pediram-lhe para ver os desenhos e planos operacionais da caixa-forte. Avery III virou ao contrrio o seu mata-borro de 60 dlares e l estava o diagrama colado atrs. Era evidente que Avery III e os seus elegantes vendedores estavam a sobrevalorizar a caixa-forte. Comeando pela camada exterior e indo para dentro era uma placa de ao com dois centmetros e meio de espessura seguida por trinta centmetros de cimento reforado a ao e seguidos por outros dois centmetros e meio de ao. A caixa-forte era mais espessa na parte de baixo e no topo, onde havia mais uma camada de sessenta centmetros de beto. Como acontecia com todas as caixas-fortes, a coisa mais impressionante era a grossa porta de ao, mas isso era apenas para vista. Tal como o raio-X da mo e a armadilha. Eram s espectculo. Bosch sabia que se os bandidos andavam mesmo l por baixo, teriam muito pouca dificuldade em vir superfcie para respirarem. Avery III disse que o alarme da caixa-forte tinha disparado nas duas noites anteriores, tendo mesmo soado duas vezes na noite de quinta-feira. Em todas as vezes, ele tinha sido chamado pela polcia de Beverly Hills. Por sua vez, ele tinha chamado o filho, Avery IV, e tinha-o mandado falar com os agentes. Os polcias e o filho tinham voltado a ligar o alarme depois de terem verificado que no havia nenhuma anomalia. No fazamos a mnima ideia de que podia haver algum nos esgotos aqui por baixo - disse Avery III. Disse aquilo como se a palavra esgotos fosse imprpria para os seus lbios. - Difcil de acreditar, difcil de acreditar. Bosch fez mais algumas perguntas detalhadas sobre o funcionamento da caixa-forte e os sistemas de segurana. Sem se aperceber da inportncia do que estava a dizer, Avery III mencionou com ar muito natural que, ao contrrio das caixas-fortes convencionais dos bancos, a sua caixa-forte tinha um sistema que anulava o sistema de abertura retardada. Tinha um cdigo que podia introduzir no computador e que limpava as coordenadas das horas de abertura. Assim, podia abrir a caixa-forte quando quisesse. - Temos de responder s necessidades dos nossos clientes - explicou ele. - Se uma senhora de Beverly Hills telefona num domingo porque precisa da sua tiara para um baile de caridade, quero poder ir-lhe buscar a tiara. Est a ver, o servio que vendemos. - Todos os seus clientes sabem deste seu servio de fim-de-semana? - perguntou Eleanor. - Claro que no - respondeu Avery III. - S alguns escolhidos. Est a ver, levamos um preo elevado. Temos que ter um guarda da segurana para o podermos fazer. - Quanto tempo que preciso para fazer a anulao e abrir as portas? - perguntou Bosch. - No muito. Introduzir o cdigo no teclado ao lado da porta da caixa-forte uma questo de segundos. Depois, introduz-se o cdigo para a abertura do cofre-forte, depois gira-se a roda e a porta abre-se sob o seu prprio peso. Trinta segundos, talvez um minuto, talvez menos. No era suficientemente depressa, pensou Bosch. O cofre de Tran estava localizado perto da parte da frente da caixa-forte. Seria a que os bandidos estariam a trabalhar. Veriam e provavelmente ouviriam a porta da caixa-forte a ser aberta. No seriam apanhados de surpresa. Uma hora depois, Eleanor e Bosch tinham regressado ao carro. Tinham mudado para o segundo nvel da garagem do outro lado do Wilshire Boulevard a leste do Beverly Hills Safe & Lock. Depois de terem deixado Avery III e terem tomado a posio de vigilncia, tinham visto Avery IV e Grant empurrar e fechar a enorme porta de ao da caixa-forte. Giraram a roda e escreveram no teclado do computador, trancando-a. A seguir, as luzes no interior do estabelecimento

apagaram-se todas com excepo das do interior da sala envidraada da caixaforte. Essas ficavam sempre acesas como smbolo da segurana que ofereciam. - Achas que eles vo vir esta noite? - perguntou Eleanor. - difcil de dizer. Sem o Meadows, tm um homem a menos. Podem estar atrasados. Tinham dito a Avery III para ir para casa e ficar espera de ser chamado. O proprietrio tinha concordado, mas mantivera-se cptico em relao ao cenrio que Bosch e Eleanor lhe tinham descrito. - Vamos ter de os tirar dos subterrneos - disse Bosch a Eleanor, com as mos a agarrarem o volante como se estivesse a guiar. Nunca conseguiramos abrir aquela porta suficientemente depressa.

296

Bosch olhou indolentemente para a sua esquerda, viu um LTD branco com rodas da polcia estacionado no passeio a um quarteiro de distncia. Estava parado ao p de uma boca de incndio e tinha duas figuras l dentro. Continuava a ter companhia. Bosch e Eleanor estavam de p ao lado do carro dele que estava estacionado no segundo andar da garagem virado para a parede divisria do lado sul. A garagem tinha ficado virtualmente vazia h mais de uma hora, mas a caixa de cimento armado acastanhado cheirava a tubos de escape e a traves queimados. Bosch tinha a certeza de que o cheiro a traves era do carro dele. O pra-arranca da perseguio desde a Pequena Saigo tinha sido demasiado violento para o carro de substituio. Da posio em que se encontravam, podiam olhar para o outro lado do Wilshire Boulevard e ver, a ocidente, a caixa-forte iluminada da Beverly Hills Safe & Lock distncia de meio quarteiro. Mais para baixo do Wilshire Boulevard, o cu estava cor-de-rosa e o sol poente laranja forte. As luzes comeavam a acender-se na cidade e o trnsito estava a abrandar. Bosch olhou para o leste do Wilshire Boulevard e viu o LTD branco estacionado junto do passeio, as sombras dos seus ocupantes por trs das janelas escurecidas. s oito horas, uma procisso de trs carros, o ltimo um carro patrulha de Beverly Hills, subiu a rampa e atravessou os espaos de estacionamento vazios em direco ao stio onde Bosch e Eleanor estavam em p junto parede. - Bem, se os nossos criminosos tiverem um vigia em qualquer destes edifcios altos e ele viu este desfile, podes apostar que est a mand-los dar o fora - comentou Bosch. Rourke e outros quatro homens saram dos dois carros descaracterizados. Bosch percebeu logo pelos fatos que vestiam que trs homens eram agentes. O fato do quarto homem estava um bocadinho gasto, os bolsos deformados como os de Bosch. Trazia um tubo de carto. Harry calculou que devia ser o supervisor da DWP que Eleanor tinha dito que viria. Trs polcias fardados de Beverly Hills, um deles com os gales de capito no colarinho, saram do carro patrulha. O capito tambm trazia um tubo de papel. Convergiram todos para o carro de Bosch e utilizaram o tejadilho como mesa de reunies. Rourke fez as apresentaes muito rapidamente. Os trs polcias do Departamento da Polcia de B. H. estavam presentes porque a operao decorria na sua jurisdio. Tambm eram teis porque a Beverly Hills Safe & Lock tinha apresentado um plano do edifcio diviso da segurana comercial do departamento. Iriam apenas participar como observadores na reunio, explicou Rourke, e seriam chamados a intervir mais tarde se o departamento fosse preciso para dar apoio. Dois dos agentes do FBI, Hanlon e Houck, iriam encarregar-se da vigilncia nocturna com Bosch e Eleanor Wish. Rourke queria que vigiassem a Beverly Hills Safe & Lock de pelo menos dois ngulos diferentes. O terceiro agente era o coordenador da SWAT do FBI. E o ltimo homem era Ed Gearson, um supervisor das instalaes subterrneas da DWP. - OK, vamos l preparar os planos da batalha - anunciou Rourke quando acabou de fazer as apresentaes. Tirou o tubo de carto a Gearson sem lhe pedir licena e tirou um rolo com uma planta. - Isto um plano esquemtico da DWP para esta rea. Tem todas as linhas teis, os tneis e as galerias. Diz-nos exactamente o que h l em baixo.

Desenrolou o mapa acinzentado com linhas azuis esborratadas em cima do capota. Os trs polcias de Beverly Hills seguraram a outra ponta com as duas mos. Estava a ficar escuro na garagem e o homem da SWAT, um agente chamado Heller, segurou uma caneta-lanterna com um raio surpreendentemente amplo e forte por cima da planta. Rourke tirou uma caneta do bolso da camisa e puxou por ela at a transformar num ponteiro. - OK, ns estamos... aqui... Antes de ele conseguir encontrar o stio, Gearson esticou o brao e ps um dedo em cima do mapa. Rourke levou a caneta at ao stio. - Sim, exactamente aqui - disse ele e deitou um olhar a Gearson que dizia claramente No me lixes. Os ombros do homem da DWP pareceram encolher-se ainda mais dentro do casaco. Toda a gente em redor do carro se aproximou para estudar a localizao. - A Beverly Hills Safe & Lock fica aqui - disse Rourke. - A caixa-forte aqui. Podemos ver a sua planta, capito Orozco? Orozco, que tinha a estrutura de uma pirmide invertida, ombros largos e ancas estreitas, desenrolou a planta em cima da da DWP. Era uma cpia do desenho que Avery III tinha mostrado a Bosch e a Eleanor. - Duzentos e setenta oito metros quadrados de espao na caixa-forte - disse Orozco. - Pequenos cofres privados ao longo das paredes e armrios no meio. Se eles estiverem ali debaixo, podem subir atravs do cho em qualquer stio ao longo dos dois corredores. Por isso, estamos a falar de uma rea de uns seis metros quadrados em que eles podem subir atravs do cho. - Muito bem, capito - disse Rourke -, se levantar isso e voltarmos a olhar para o mapa da DWP, podemos localizar essa zona neste preciso lugar. - Com uma caneta fluorescente amarela, marcou o cho da caixa-forte no mapa. - Usando isto como guia, podemos ver as estruturas subterrneas que oferecem uma proximidade maior. O que que lhe parece, Mr Gearson? Gearson inclinou-se mais uns centmetros por cima da capota do carro e estudou o mapa. Bosch tambm se inclinou. Viu umas linhas grossas que presumiu que indicavam as linhas de drenagem este-oeste mais importantes. O tipo de tneis que eles iriam procurar. Reparou que correspondiam s ruas de maior superfcie: Wilshire, Olympic, Pico. Gearson apontou para a linha da Wilshire, dizendo que corria nove metros abaixo do solo e que era suficientemente larga para deixar passar um camio. Com o dedo, o homem da DWP traou a linha Wilshire para leste durante dez quarteires at Robertson, uma importante linha de drenagem das guas pluviais de norte para sul. Desta interseco, disse ele, era apenas um quilmetro e meio para sul at a uma galeria de drenagem aberta que corre ao longo da auto-estrada de Santa Monica. A abertura na galeria era to grande como uma porta de garagem e s estava fechada por um porto com um cadeado. - Diria que aqui que eles podem ter entrado - disse Gearson. como seguir as ruas da superfcie. Apanhamos a Roberson at Wilshire. Viramos esquerda e estamos praticamente aqui, ao p da vossa linha amarela. A caixa-forte. Mas no me parece que eles fossem escavar um tnel a partir da linha Wilshire. - No? - perguntou Bosch. - E porqu? - Demasiado movimento essa a razo - respondeu Gearson, sentindo que era ele o homem que tinha as respostas ao ver as nove caras que olhavam para ele. Temos sempre gente da DWP l em baixo nestas linhas principais. A procura de rachas, bloqueios, problemas de qualquer tipo. E a Wilshire a mais importante aqui em baixo, a este e a oeste. Tal como aqui em cima. Se algum abrisse um buraco na parede, davam logo por ela. Est a ver? - E se eles conseguissem esconder o buraco? - Est a falar daquilo que fizeram h um ano ou coisa assim naquele assalto da baixa. Sim, isso talvez pudesse voltar a funcionar noutro stio 299 qualquer, mas na linha da Wilshire haveria todas as probabilidades de serem vistos. Agora j andamos procura desse tipo de coisas. E, tal como j disse, h muito movimento na linha da Wilshire. Seguiu-se um perodo de silncio enquanto pensavam naquilo. - Ento, Mr Gearson, onde que eles escavariam para entrar nesta caixa-forte? -

perguntou Bosch por fim. - Temos todos os tipos de ligaes l em baixo. No pensem que ns no pensamos nisto com frequncia quando estamos a trabalhar l em baixo. Esto a ver, o crime perfeito isso. Eu tenho pensado muito em coisas deste gnero, especialmente desde que li essa histria nos jornais. Penso que se esto a dizer que o que eles querem entrar na caixa-forte, vo ter de fazer como eu disse: entrar pela Robertson e depois passar para a linha da Wilshire. Mas depois eu acho que eles passariam para um dos tneis de servio para ficarem longe da vista. Os tneis de servio tm entre metro, metro e meio de largura. So redondos. H muito espao para mover equipamento e trabalhar. Ligam s linhas das artrias principais aos tubos de drenagem das guas pluviais das ruas e aos sistemas utilitrios dos edifcios que ficam aqui. Voltou a pr a mo sob a luz e traou as linhas mais pequenas de que estava a falar no mapa da DWP. - Se fizeram isto como deve ser - continuou ele -, o que fizeram foi entrar pelo porto ao p da auto-estrada e transportar de carro o equipamento at Wilshire e depois seguiram para a vossa zona alvo. Descarregaram o equipamento, esconderam-no num desses tneis de servio, como ns lhes chamamos, e depois voltaram a levar os veculos l para fora. Regressaram a p e comearam a trabalhar no tnel. Raios, podiam estar l a trabalhar durante cinco, seis semanas antes de ns termos tido ocasio de ir verificar essa linha em particular. Bosch continuava a pensar que parecia tudo demasiado simples. - E quanto a estas outras linhas das guas das chuvas? - perguntou ele, indicando Olympic e Pico no mapa. Havia uma rede de cruzamentos dos tneis de servio mais pequenos que corriam para norte por baixo destes em direco caixa-forte. - E que tal utilizar um destes e subir por trs da caixa-forte? Gearson esticou o lbio inferior com um dedo e respondeu: - Boa ideia. Tambm temos estes. Mas a coisa , estas linhas no nos levam para to perto da caixa-forte como estas de Wilshire. Est ver o que eu quero dizer? Por que que eles haviam de escavar um tunel de cem metros quando podem escavar um de trinta metros aqui - Gearson gostava de ter audincia, da ideia de saber mais do que os fatos de seda e os uniformes roda dele. Depois de acabar o seu discurso, balanou-se nos calcanhares, com uma expresso satisfeita estampada na cara. Bosch sabia que, muito provavelmente, o homem estava coberto de razo em todos os pormenores. - E quanto remoo da terra? - perguntou-lhe Bosch. - Estes tipos esto a escavar um tnel atravs de terra, rocha e beto. Onde que eles se vem livres disso? Como? - Bosch, Mr Gearson no um detective - disse Rourke. - Duvido que ele conhea todas as nuances de... - Fcil - interrompeu Gearson. - O cho dos tneis principais como Wilshire e Robertson tm uma gradao de trs graus para o centro. H sempre gua a correr pelo centro, mesmo durante dias de seca. Pode no estar a chover c em cima, mas h sempre gua a correr l em baixo, sabem? Ficariam surpreendidos com a quantidade. Ou so transbordos dos reservatrios ou da utilizao comercial, ou de ambos. Quando o vosso departamento dos bombeiros recebe uma chamada, para onde que pensam que vai a gua quando eles acabam de apagar o fogo? Por isso, aquilo que estou a dizer que se eles tiveram gua suficiente, podem t-la usado para remover a terra ou o que voc lhe quiser chamar. - Tm de ser toneladas - disse Hanlon, falando pela primeira vez. - Mas no so muitas ao mesmo tempo. Vocs disseram que eles levaram vrios dias a escavar. Se tiverem espalhado isso ao longo dos dias, a gua corrente podia ter-se encarregado disso. Ora bem, se eles esto num destes tneis de servio, teriam tido de descobrir uma maneira de arranjarem gua que corresse dali para o cano principal. Eu verificaria as bombas de incndio desta rea. Se tiverem uma a deitar gua ou se houver algum relatrio de algum ter aberto uma, j sabem, so os vossos rapazes. Um dos polcias fardados inclinou-se para o ouvido de Orozco e disse qualquer coisa. Orozco inclinou-se para cima da capota e levantou um dedo por cima do

mapa. Depois desceu-o sobre uma linha azul. - Tivemos uma bomba de incndio vandalizada h duas noites aqui. - Algum a abriu - disse o polcia fardado que tinha murmurado ao capito -, e usou um alicate para ferrolhos para cortar a corrente que segura a tampa. Levaram a tampa e os bombeiros demoraram uma hora a chegar l com uma substituta. - Isso deve ter sido uma data de gua - disse Gearson. - Deve ter dado conta de parte da vossa remoo da terra. Olhou para Bosch e sorriu. Bosch retribuiu-lhe o sorriso. Ficava satisfeito quando as peas do puzzle comeavam a encaixar. - Antes disso, deixem-me ver, foi no sbado noite, tivemos um fogo posto - disse Orozco. - Uma boutiquezinha atrs do Edifcio da Bolsa, na Rincon. Gearson olhou para o stio que Orozco apontou no mapa como sendo a localizao da boutique. Ps o dedo no stio da localizao da bomba de incndio. - A gua destas duas coisas teve de correr para estes trs colectores de rua, aqui, aqui e aqui - disse ele movendo a mo com todo o vontade por cima do papel cinzento. - Estes dois escoam para esta linha. O outro escoa para esta. Os investigadores olharam para as duas linhas de drenagem. Uma corria paralelamente Wilshire, por trs do J. C. Stock Building. A outra corria perpendicularmente Wilshire, completamente a direito e ao lado do edifcio. - Seja ela qual for, estamos a olhar para qu, um tnel de trinta metros? perguntou Eleanor Wish. - Pelo menos - respondeu Gearson. - Se eles conseguiram avanar a direito. Podem ter apanhado equipamentos subterrneos ou rocha dura e terem tido de se desviar um bocado. Duvido que seja possvel abrir um tnel completamente a direito l em baixo. O perito da SWAT puxou pela manga de Rourke e os dois afastaram-se para longe do grupo para conferenciarem em murmrios. Bosch olhou para Eleanor e disse-lhe muito baixinho: - Eles no vo entrar. - O que que queres dizer? - Isto no o Vietname. Ningum obrigado a descer l abaixo. Se o Franklin e o Delgado e mais outra pessoa qualquer esto l em baixo numa dessas linhas, no h nenhuma maneira segura de l entrar de surpresa. Eles tm as vantagens todas. Saberiam que estvamos a entrar. Ela estudou a cara dele, mas no disse nada. - Seria uma manobra errada - continuou Bosch. - Sabemos que eles esto armados e que, provavelmente, tm armadilhas montadas. Sabemos que eles so assassinos. Rourke voltou para o grupo reunido em redor do carro e pediu a Gearson para esperar num dos carros do FBI enquanto ele acabava de falar com os investigadores. O homem da DWP afastou-se em direco ao carro de cabea baixa, desapontado por j no fazer parte do plano. - No vamos atrs deles - disse Rourke depois de Gearson fechar a porta do carro. demasiado perigoso. Eles tm armas, explosivos... Ns no podemos contar com o elemento da surpresa. Tudo somado, teramos perdas pesadas... Por isso, vamos preparar-lhes uma armadilha. Deixamos a coisa correr normalmente e depois estaremos l, espera, em segurana, quando eles sarem. Nessa altura, teremos a surpresa a nosso favor. Hoje noite, a SWAT vai fazer um reconhecimento ao longo da linha Wilshire vamos pedir uns homens da DWP ao Gearson e procurar o local de entrada deles. Depois, instalamo-nos e esperamos naquela que estiver melhor localizada. O que for mais seguro do nosso ponto de vista. Seguiu-se um curto silncio, interrompido por uma buzina na rua, antes de Orozco protestar. - Espere a um minuto, espere um minuto! Esperou at que todas as caras estivessem viradas para ele. Excepto a de Rourke. Ele nem sequer olhou para Orozco. - No podemos estar a falar em ficarmos aqui sentados, com os dedos metidos nos rabos, e deixar que esses tipos rebentem um caminho at caixa-forte - disse Orozco. - Deix-los entrar e abrir umas duas centenas de cofres e depois irem-se

embora com toda a calma. A minha obrigao proteger a propriedade dos cidados de Beverly Hills, que provavelmente, at so noventa por cento dos clientes desse negcio. No alinho nisso. Rourke dobrou o ponteiro da caneta, meteu-o no bolso de dentro do casaco e s depois que falou. Continuou a no olhar para Orozco. - Orozco, o seu protesto pode ficar registado em acta, mas ns no lhe estamos a pedir que alinhe connosco - disse Rourke. Bosch reparou que para alm de no se dirigir a Orozco pela patente, Rourke tinha abandonado toda a pretenso de ser corts. - Isto uma operao federal - continuou Rourke. - Voc est aqui s por cortesia profissional. Alm disso, se a minha ideia estiver correcta, eles s vo abrir um cofre. Quando descobrirem que est vazio, cancelam a operao e abandonam a caixa-forte. Orozco estava vencido. A cara dele mostrava-o. Bosch percebeu que no lhe tinham explicado muitos pormenores da investigao. Teve pena dele, ali deixado a secar por Rourke. - H coisas que no podemos discutir nesta altura - disse Rourke. - Mas ns estamos convencidos de que o alvo deles apenas um dos cofres. Temos razes para acreditar que ele agora j se encontra vazio. Quando os bandidos entrarem na caixa-forte e abrirem esse cofre e descobrirem que est vazio, ns estamos convencidos de que se iro embora a toda a velocidade. Agora o nosso trabalho estarmos preparados para isso. Bosch perguntou para consigo se a suposio de Rourke estaria correcta. Os ladres iriam recuar? Ou pensariam que se tinham enganado no cofre e continuariam a abri-los, procura dos diamantes de Tran? Ou iriam saquear os outros cofres com a esperana de roubarem o suficiente para compensarem todo aquele trabalho com o tnel? Bosch no sabia. Pelo menos, no tinha tantas certezas como Rourke, mas a verdade que sabia que o agente do FBI podia estar s a armar-se para afastar Orozco. - E se eles no recuarem? - perguntou Bosch. - E se eles continuarem a arrombar? - Nesse caso, teremos um longo fim-de-semana pela frente - respondeu Rourke porque vamos ficar espera que eles saiam. - De qualquer das maneiras, voc vai dar cabo do negcio - disse Orozco apontando na direco do Stock Building. - Mal se souber que algum rebentou um buraco na caixa-forte que eles tm ali em exposio naquela montra grande, nunca mais tero a confiana do pblico. Ningum voltar a guardar l os seus bens. Rourke olhou para ele inexpressivamente. A splica do capito estava a cair em saco roto. - Se os podem apanhar depois do assalto, porque no faz-lo antes? - perguntou Orozco. - Por que que no abrimos aquele stio, no pomos uma sirene a tocar, no fazemos bastante barulho e no pomos mesmo um carro patrulha l frente? Fazer qualquer coisa que os faa saber que estamos aqui, que sabemos o que se passa. Isso vai assust-los e eles fogem antes de arrombarem a casa. Apanhamolos e salvamos o negcio. Se no os apanharmos, continuamos a salvar o negcio e podemos sempre apanh-los noutra altura. - Capito - disse Rourke, a falsa delicadeza outra vez em aco. - Se deixar que eles saibam que estamos aqui, tira-nos a nossa nica vantagem a surpresa e d origem a um tiroteio nos tneis e talvez at c em cima, nas ruas, onde eles no se vo ralar com quem ferido, com quem que morre. Incluindo eles prprios e mais uns inocentes que estejam a passar. Nessa altura, como que explicamos ao pblico, e at mesmo a ns prprios, que fizemos isto assim porque queramos salvar um negcio? Rourke esperou um segundo para que as suas palavras fizessem efeito e depois continuou: - Est a ver, capito, eu no vou arriscar na questo da segurana nesta operao. No posso. Estes homens esto l em baixo, no so de se assustarem. Eles matam. Que saibamos, j foram duas pessoas, incluindo uma testemunha. E isto s nesta semana. Nem pensar que os vamos deixar escapar. Porra, nem pensar. Orozco inclinou-se por cima da capota e enrolou o seu mapa. Enquanto fazia estalar um elstico em volta dele, disse:

- Espero que no faam merda, meus senhores. Se fizerem nem eu nem o meu departamento conteremos as nossas crticas ou os pormenores daquilo que foi discutido nesta reunio. Boa-noite. Deu meia volta e dirigiu-se para o carro patrulha. Os dois polcias fardados seguiram-no. As outras pessoas todas limitaram-se a assistir. Quando o carro patrulha desceu a rampa, Rourke disse: - Bem, ouviram o homem. No podemos fazer merda nisto. Mais algum quer sugerir alguma coisa? - E que tal pormos gente na caixa-forte agora e esperar que eles apaream? perguntou Bosch. No tinha pensado naquilo a srio, mas resolveu atirar com a ideia tal como lhe tinha ocorrido. - No - respondeu o homem da SWAT. - Se pusermos pessoas na caixa-forte elas ficam encurraladas. Sem opes. Sem sadas. Nem sequer deixaria que os meus homens se oferecessem. - Podiam ficar feridos com a exploso - disse Rourke. - No h maneira de sabermos onde ou quando que os criminosos vo aparecer. Bosch assentiu em silncio. Tinham razo. - Podemos abrir a caixa-forte e entrar mal soubermos que eles j l esto dentro? perguntou um dos agentes. Bosch no conseguia lembrar-se se era Hanlon ou Houck. - Sim - respondeu Eleanor Wish -, h uma maneira de anular a abertura retardada. Teramos que ir buscar o Avery, o dono, e traz-lo para aqui. - Segundo o que o Avery disse, parece que isso levaria demasiado tempo - disse Bosch. - Demasiado lento. O Avery pode desprogram-la e abri-la, mas uma porta de duas toneladas que abre sob o seu prprio peso. Levaria pelo menos meio minuto a abri-la. Talvez menos, mas os tipos l dentro continuariam a estar em vantagem. o mesmo risco do que lhes aparecer nos tneis. 304 305 - E uma exploso de luz? - sugeriu um dos agentes. - Abrimos a porta da caixa-forte s um nadinha e atiramos l para dentro uma granada de luz. Depois entramos e caamo-los. Bosch e o homem da SWAT abanaram a cabea ao mesmo tempo - No. Por duas razes - disse o homem da SWAT. - Se eles armadilharem os tneis, como pensamos que faro, a exploso pode detonar as cargas. Podamos ver o Wilshire Boulevard ali fora abater nove metros e ns no queremos isso. Pensem s na papelada que teramos de preencher Ningum sorriu e continuou: - Em segundo lugar, ns estamos a falar de uma sala de vidro. A nossa posio l dentro seria muito vulnervel. Se tiverem um vigia, estamos mortos. Pensamos que eles vo entrar com os rdios desligados quando tiverem os explosivos preparados. Mas, imaginemos que no fazem isso e o vigia os informa que ns l estamos. Eles podem estar preparados para nos atirar com qualquer coisa enquanto ns estivermos a deitar qualquer coisa l para dentro. Rourke acrescentou aquilo que pensava: - No se preocupem com o vigia. Ns metemos uma equipa da SWAT nessa sala de vidro e eles at os podero ver pela televiso. Teremos todos os canais de televiso de L.A. com uma cmara no passeio e o trnsito cortado at Santa Monica. Seria um verdadeiro circo. Por isso, esqueam. A SWAT vai reunir com o Gearson, fazer o reconhecimento e descobrir as sadas junto da auto-estrada. Esperamos l por eles e apanhamo-los segundo as nossas condies. Ponto final. O homem da SWAT assentiu e Rourke continuou: - A partir desta noite, vamos ter a caixa-forte sob vigilncia durante as vinte e quatro horas do dia. Quero a Wish e o Bosch concentrados no lado do edifcio que tem a caixa-forte. Hanlon e Houck na Rincon Street de forma a poderem ver a porta de entrada. Se der a ideia de que vai comear, quero ser alertado para depois eu alertar a SWAT. Utilizem telefones de rede fixa. No sabemos se eles esto a monotorizar as nossas frequncias. Vocs, os que ficam a vigiar, tm de combinar um cdigo para usarem na rdio. Toda a gente entendeu? - E se houver um alarme? - perguntou Bosch. - J houve trs esta semana.

Rourke pensou uns instantes e respondeu: - Tratem tudo de forma rotineira. Encontrem-se com o gerente de servio, o Avery, ou l quem for, porta, voltem a accionar o alerta e mandem-no embora. Vou contactar com o Orozco e dizer-lhe para mandar as patrulhas caso haja alarme, mas que seremos ns a tomar conta da situao. - O Avery quem vai receber a chamada - disse Eleanor Wish. - Ele j sabe o que que ns achamos que vai acontecer aqui. E se ele quiser abrir a caixa-forte, dar uma espreitadela l dentro? - No o deixam. simples. A caixa-forte dele, mas a vida dele pode correr perigo. Ns podemos impedir isso. Rourke olhou para as caras sua volta. No havia mais perguntas. - Ento, estamos combinados. Quero as pessoas em posio daqui a noventa minutos. Isso d tempo aos que vo passar aqui a noite para comerem, mijarem e beberem caf. Wish, d-me relatrios da situao, por linhas de terra, meia-noite e s seis da manh. Entendido? - Entendido. Rourke e o homem da SAWT meteram-se no carro onde Gearson estava espera e desceram a rampa. Bosch, Eleanor Wish, Hanlon e Houck combinaram um cdigo para usarem quando quisessem comunicar via rdio. Decidiram trocar os nomes das ruas da zona sob vigilncia com os das ruas da baixa. A ideia era que se algum estivesse a escutar a frequncia de segurana 5, pensaria que estava a ouvir os relatrios de uma vigilncia na zona da Broadway e da First Street na baixa em vez de Wilshire e Rincon Street em Beverly Hills. Tambm combinaram referir-se caixa-forte como loja de penhores enquanto estivessem a comunicar pela rdio. Feito isso, os dois conjuntos de investigadores separaram-se, combinando entrar em contacto no incio da vigilncia. Mal o carro de Hanlon e Houck comeou a descer a rampa, Bosch, sozinho com Eleanor pela primeira vez desde que os planos tinham sido preparados, perguntou-lhe o que que ela pensava daquilo tudo. - No sei. No gosto da ideia de os deixar entrar na caixa-forte e depois deix-los solta l por baixo. Tenho as minhas dvidas de que a malta da SWAT consiga tratar de tudo. - Bem, creio que acabaremos por ficar a saber. Um carro subiu a rampa e dirigiu-se para eles. As luzes cegaram Bosch e, por um instante, ele lembrou-se do carro que os tinha tentado atropelar na noite anterior. Mas o carro desviou-se e parou. Eram Hanlon e Houck. A janela do lado do passageiro estava aberta e Houck estendeu um grosso envelope castanho para fora da janela. - Correio, Bosch - disse o agente. - Esquecemo-nos que te tnhamos de entregar esta coisa. Algum do teu departamento foi entregar isto no nosso departamento, disse que estavas espera disto, mas que no tinhas passado pela Wilcox para o ir buscar.

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307 Bosch agarrou no envelope e segurou-o, mas manteve-o afastado do corpo. Houck reparou no ar pouco seguro de Bosch e disse: - O tipo chamava-se Edgar, um gajo preto, disse que tinhas sido o scio dele. Disse que isso estava h dois dias na tua caixa de correio e que achava que era capaz de ser importante. Disse que ia mostrar uma casa a uma pessoa qualquer em Westwood e que tinha resolvido entregar-te isso enquanto andava pela zona. Parece-te uma coisa legtima? Bosch assentiu e os dois agentes foram-se embora. O envelope pesado estava selado, mas o remetente era o Arquivo dos Registos dos Servios Militares dos EU em St Louis. Rasgou uma das pontas do envelope e espreitou l para dentro. Continha um dossier cheio de papis. - O que isso? - perguntou Eleanor. - o processo do Meadows. Tinha-me esquecido que o tinha pedido. Pedi-o na segunda-feira antes de saber que vocs estavam metidos no caso. Bem, seja como for, j vi isto tudo. Atirou o envelope para o banco traseiro do carro pela janela aberta.

- Tens fome? - perguntou ela. - Pelo menos, quero caf. - Conheo um stio. Bosch estava a sorver caf fumegante de uma chvena de plstico que tinha trazido do restaurante, uma casa italiana na Pico, por trs da Century City. Estava no carro, de volta ao seu posto no segundo andar da garagem de estacionamento no Wilshire Boulevard, do lado oposto caixa-forte. Eleanor Wish abriu a porta e entrou depois de ter feito o telefonema da meia-noite para Rourke. - Encontraram o jipe. - Onde? - O Rourke diz que a SWAT fez uma volta de reconhecimento pelo esgoto das guas pluviais de Wilshire, mas no descobriu sinais de intrusos ou de alguma entrada para o tnel. Parece que o Gearson tinha razo. Esto enfiados numa das linhas tributrias mais pequenas. Bem, seja como for, os tipos da SWAT desceram para a bacia de drenagem junto da auto-estrada para prepararem a armadilha. Estavam a estudar trs sadas dos tneis para se posicionarem quando descobriram o jipe. O Rourke diz que h um parque de estacionamento num terreno mais baixo, ao p da auto-estrada. Est l um jipe beige com um atrelado coberto. Os trs ATVs azuis esto dentro do atrelado. - Ele vai arranjar um mandado? 308 - Sim, tem uma pessoa procura de um juiz. Por isso, vo arranjar. Mas no vo aproximar-se do jipe enquanto no tiverem acabado a operao. No v dar-se o caso do plano deles seja um deles sair e ir buscar os ATVs. Ou j estar algum c fora que v aparecer para os levar para dentro. Bosch assentiu com a cabea e bebeu um gole de caf. Era a atitude mais inteligente. Lembrou-se que tinha um cigarro a arder no cinzeiro e atirou-o fora pela janela. Como se adivinhasse o que ele estava a pensar, ela disse: - O Rourke disse que, pelo que eles conseguiram ver, no h nenhum cobertor dentro do jipe. Mas se for o jipe onde o Meadows foi levado para o reservatrio, ainda deve haver fibras l dentro como prova. - E quanto ao selo que o Sharkey viu na porta? - O Rourke disse que no havia nenhum. Mas pode ter havido e eles podem t-lo tirado quando largaram o jipe ali. - Pois - disse Bosch. Depois de pensar uns segundos, perguntou: - No te incomoda ver como tudo se est a encaixar to bem? - Devia? Bosch encolheu os ombros. Olhou para a parte de cima da Wilshire. O passeio em frente da bomba de incndio estava vazio. Desde que tinham voltado do jantar, Bosch nunca mais tinha visto o LTD branco, que ele estava convencido que era um carro dos Assuntos Internos. No sabia se Lewis e Clarke andavam por perto ou tinham desistido por aquela noite. - Harry, o bom trabalho de deteco compensa quando os casos se resolvem - disse Eleanor. - Quero dizer, ainda nos falta muito para sairmos das trevas, mas acho que, finalmente, temos algum controlo sobre o que se est a passar. Bolas, a nossa viso disto tudo j est muito melhor do que h trs dias atrs. Por isso, por que que te preocupas quando algumas coisas comeam a encaixar? - H trs dias o Sharkey ainda estava vivo. - Bem, enquanto ests a assumir as culpas disso, por que que no juntas todas as outras pessoas que fizeram uma escolha e acabaram mortas? No podes alterar essas coisas, Harry. E no suposto seres um mrtir. - O que que queres dizer com escolha? O Sharkey no escolheu nada. - Escolheu, sim. Quando escolheu as ruas, ele sabia que podia morrer nas ruas.

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- No podes acreditar nisso. Ele no passava dum garoto. - Acredito que as merdas acontecem. Acredito que o melhor que consegues fazer neste trabalho chegares ao fim sem prejuzos. H pessoas que ganham e outras que perdem. Felizmente, metade das vezes so os tipos bons que ganham. Somos ns, Harry.

Bosch esvaziou a chvena e deixou-se ficar sentado em silncio durante um bocado. Tinham uma boa viso da caixa-forte, instalada no meio da sala de vidro, como se fosse um trono. Ali fora, vista de toda a gente, polida e brilhante sob as luzes fortes do tecto, dizia ao mundo: Levem-me, pensou ele. E algum o ia fazer. Ns vamos deix-los. Eleanor agarrou no rdio, carregou duas vezes no boto de transmisso e disse: - Broadway Um para a Primeira, esto a ouvir-me? - Estamos a ouvir, Broadway. Alguma coisa? Era a voz de Houck no receptor. Havia muito barulho de esttica porque as ondas de rdio faziam ricochete nos prdios altos da zona. - S a verificar. Qual a vossa posio? - Estamos a sul da porta da casa de penhores. Temos uma viso desimpedida de nada. - Estamos a este. Conseguimos ver o... - Desligou o boto do microfone e voltou-se para Bosch. - Esquecemo-nos de um cdigo para a caixa-forte. Tens alguma ideia? Bosch abanou a cabea, mas depois disse: - Saxofone. J vi saxofones pendurados nas montras das casas de penhores. Instrumentos musicais. Montes deles. Ela voltou a ligar o microfone. - Desculpem, First Stret, tivemos um problema tcnico. Estamos a este da casa de penhores, temos o piano da montra vista. No h actividade no interior. - Mantenham-se acordados. - claro. Terminado, Broadway. Bosch sorriu e abanou a cabea. - O que que foi? - perguntou ela.- O que que foi agora? - J vi instrumentos musicais nas casas de penhores, mas nunca vi um piano. Quem que vai pr um piano no prego? Era preciso um camio. Demos cabo do disfarce. Agarrou no microfone, mas sem o ligar disse: - Uh, First Street, ouam isto. No um piano que est na montra. um acordeo. Foi engano nosso. 310 Ela deu-lhe um murro no ombro e disse-lhe para esquecer o piano. Ficaram num silncio descontrado. Os trabalhos de vigilncia eram o pesadelo da existncia de muitos detectives. Mas nos seus quinze anos de carreira, Bosch nunca se tinha importado de fazer vigilncias. De facto, muitas vezes at tinha gostado quando tinha boa companhia. Ele definia uma boa companhia no pela conversa, mas pela falta dela. Quando no havia necessidade de conversar para se sentir confortvel, isso era a companhia certa. Bosch pensou no caso e observou o trnsito que passava ao p da caixa-forte. Recapitulou os acontecimentos como tinham acontecido, por ordem, do princpio at ao momento actual. Reviu as cenas, ouviu os dilogos, uma e outra vez. Achava que esta recapitulao dos factos o ajudava muitas vezes a decidir o passo seguinte. Aquilo que estava a remoer nessa altura, passando vezes sem conta, como se fosse um dente a abanar, com a lngua por cima dele, era a tentativa de atropelamento. O carro que se tinha atirado para cima deles na noite anterior. Porqu? O que que eles sabiam naquela altura que os tornava assim to perigosos? Parecia uma aco estpida, matar um polcia e uma agente federal. Por que que o tinham feito? Depois, o seu esprito vagueou para a noite que tinham passado juntos depois de todas as perguntas feitas pelos respectivos supervisores. Eleanor estava assustada. Mais do que ele. E, enquanto a abraava na cama, tinha-se sentido como se estivesse a acalmar um animal assustado. Abraando-a e acariciando-a enquanto ela respirava de encontro ao seu pescoo. No tinham feito amor. Tinham-se limitado a abraar-se. De certo modo, parecia mais ntimo. - Ests a pensar na noite passada? - perguntou ela. - Como que sabias? - Um palpite. Algumas ideias? - Bem, acho que foi agradvel. Acho que ns... - Estava a referir-me a quem nos tentou matar ontem noite. - Oh! No, no tenho nenhuma ideia. Eu estava a pensar no depois. - Oh... Sabes, no te agradeci, Harry, por teres ficado comigo assim, sem esperares

nada. - Eu que te devia agradecer. - Es muito querido. Voltaram a embrenhar-se nos seus pensamentos. Encostado porta, com a cabea apoiada no vidro, Bosch raramente desviava os olhos da caixa-forte. O trnsito no Wilshire Boulevard era pouco, mas contnuo. Pessoas que se dirigiam ou regressavam dos clubes no Santa Monica Boulevard ou em volta do Rodeo Drive. Provavelmente, havia uma

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premire no Academy Hall ali perto. Bosch tinha a impresso que todas as limousines de L. A. estavam a trabalhar no Wilshire Boulevard naquela noite. Carros compridos, de todas as marcas e cores passavam um a seguir ao outro. Moviam-se com tal suavidade que pareciam flutuar. Eram lindos e intrigantes com as suas janelas escuras. Como mulheres exticas com culos de sol. Um carro construdo s para esta cidade, pensou Bosch. - O Meadows j foi enterrado? A pergunta surpreendeu-o. Perguntou para consigo o que a teria levado a lembrarse daquilo. - No - respondeu. - Na segunda-feira, no cemitrio dos veteranos. - Um funeral no Memorial Day, parece muito apropriado. Quer dizer que a sua vida de crime no o desqualificou para ser levado para um solo to sagrado? - No. Ele prestou servio no Vietname. Guardaram um espao para ele. Provavelmente, tambm l h um para mim. Por que que ests a perguntar isso? - No sei. S estava a pensar. Vais? - Se no estiver aqui sentado a vigiar esta caixa-forte. - Ser simptico da tua parte. Sei que ele significou qualquer coisa para ti. Num dado momento da tua vida. Ele deixou cair o assunto, mas ela acrescentou passado uns instantes: - Harry, fala-me daquilo que disseste no outro dia. O que que querias dizer? Ele desviou os olhos da caixa-forte pela primeira vez para olhar para Eleanor. A cara dela estava na escurido, mas os faris de um carro que passava na rua iluminou-a por uns instantes e viu que ela tinha os olhos pousados nele. Voltou a olhar para a caixa-forte. - No h nada para contar, a srio. s que ns chamvamos a um dos intangveis. - Intangveis? - No havia um nome para isso, por isso tivemos que inventar um. Era a escurido, o vazio hmido que sentamos quando l estvamos em baixo, sozinhos naqueles tneis. Era como se estivssemos num stio onde nos sentssemos mortos e enterrados na escurido. Mas continussemos vivos. E estvamos assustados. A nossa prpria respirao parecia ecoar na escurido, suficientemente alta para nos denunciar. Pelo menos, era o que ns pensvamos. No sei. difcil de explicar. Era apenas. 312 Ela deixou passar algum tempo e depois disse: - Acho que ires ao funeral simptico. - H algum problema? - O que que queres dizer? - Aquilo que disse. A maneira como ests a falar. No pareces bem desde ontem noite. Como se alguma coisa... No sei, esquece. - Eu tambm no sei, Harry. Sabes, depois da adrenalina ter desaparecido, acho que fiquei cheia de medo. Fez-me comear a pensar nas coisas. Bosch assentiu com a cabea, mas no disse nada. Os seus pensamentos derivaram para uma ocasio no Tringulo, quando uma companhia que tinha sofrido pesadas baixas dos atiradores furtivos, tropeou na entrada para uma rede de tneis. Bosch, Meadows e um par de outros ratos dos tneis chamados Jarvis e Hanrahan foram largados numa LZ vizinha escoltados at ao buraco. A primeira coisa que fizeram foi deitar para dentro do buraco dois foguetes de fumo LZ, um azul e outro vermelho, e empurrar o fumo para dentro com uma ventoinha Mighty Mite, para descobrirem as outras entradas para os tneis. Passado muito pouco tempo, comearam a aparecer

colunas de fumo de uma dzia de stios, numa rea de duzentos metros e em todas as direces. O fumo estava a sair dos buracos das aranhas que os atiradores furtivos usavam como posies para dispararem ou para entrarem ou sarem de dentro dos tneis. Havia tantos que a selva estava a comear a ficar prpura com o fumo. O Meadows estava pedrado. Meteu uma cassete no reprodutor porttil que trazia sempre com ele e comeou a tocar o Purple Haze de Hendrix aos berros para dentro do tnel. Para Bosch, alm dos seus sonhos era uma das recordaes mais vivas da guerra. Depois daquilo nunca mais tinha gostado de rock and roll. A energia sacudida da msica recordava-lhe demasiado a guerra. - Alguma vez foste ver o Memorial? - perguntou-lhe Eleanor. No precisou de dizer a qual se estava a referir. S havia um verdadeiro, o de Washington. Mas depois, Bosch lembrou-se da comprida rplica negra que tinha visto instalar no cemitrio ao p do edifcio federal. - No - respondeu ele passado um bocado. - Nunca o vi. Depois do ar da selva ter clareado e a fita de Hendrix ter acabado, os quatro tinham entrado no tnel enquanto os restantes soldados da companhia se sentavam em cima das mochilas para comerem e esperarem. Uma hora depois, s Bosch e Meadows que tinham sado. Meadows trazia consigo trs escalpes NVA. Levantouos para os tropas da superfcie os poderem ver e gritou: - Esto a olhar para o irmo de sangue mais mau de todo. E foi assim que o nome apareceu. Mais tarde descobriram Jarvis e Hanrahan nos tneis. Tinham cado em armadilhas punji. Estavam mortos. Eleanor disse: - Eu fui visit-lo quando estava em DC. No tinha conseguido obrigar-me a ir no dia da dedicatria em oitenta e dois. Mas, uma data de anos depois, consegui finalmente arranjar coragem. Queria ver o nome do meu irmo. Pensei que talvez isso me ajudasse a compreender as coisas, ests a perceber, o que lhe tinha acontecido. - E ajudou? - No. Ainda tornou tudo pior. Fez-me sentir zangada. Deixou-me esta necessidade de justia, se que isto faz algum sentido. Queria justia para o meu irmo. O silncio voltou a encher o carro e Bosch voltou a encher a chvena de caf. Estava a comear a sentir os efeitos das sacudidelas da cafena, mas no conseguia parar. Estava viciado. Viu um par de bbados que cambaleavam pela rua para junto da janela de vidro frente da caixa-forte. Um dos homens levantou as duas mos no ar como se estivesse a tentar medir o tamanho da enorme porta da caixa-forte. Passado um bocado, afastaram-se. Bosch pensou na raiva que Eleanor devia ter sentido por causa do irmo. A impotncia. Pensou na sua prpria raiva. Ele conhecia esses sentimentos, talvez no com o mesmo grau, mas de uma perspectiva diferente. Toda a gente que tinha sido tocada pela guerra conhecia uma parte desses sentimentos. Nunca os tinha conseguido resolver e no tinha a certeza de o querer fazer. A raiva e a tristeza davam-lhe qualquer coisa que era melhor do que o completo vazio. Era isso que Meadows sentia? Gostaria de saber. O vazio. Seria isso que o tinha feito saltar de emprego para emprego, de agulha para agulha, at ter sido final e fatalmente consumido nesta ltima misso? Bosch decidiu que iria ao funeral de Meadows, devia-lhe isso. - Sabes aquilo que me contaste no outro dia sobre aquele tipo, o assassino Dollmaker? - perguntou Eleanor. - O que que tem? - Os Assuntos Internos, tentaram arranjar-te um problema dizendo que tu o executaste? 313 - Sim, j te contei. Eles tentaram. Mas no era verdade. A nica coisa que conseguiram fazer foi dar-me uma suspenso por ter violado os procedimentos. - Bem, s te queria dizer que mesmo que eles tivessem razo, estavam errados. Teria sido justia, c na minha maneira de ver. Sabias o que que iria acontecer com um gajo como esse. Olha para o Caador Nocturno. Ele nunca ir parar cmara de gs. Ou ento, s daqui a vinte anos. Bosch estava a sentir-se desconfortvel. S costumava pensar nos seus motivos e

nas suas aces no caso Dollmaker quando estava sozinho. Nunca tinha falado sobre isso com ningum. No estava a perceber onde que ela queria chegar com aquilo. Ela disse: - Sei que se fosse verdade nunca o poderias admitir, mas acho que, quer tenha sido consciente ou inconscientemente, tu tomaste uma deciso, fizeste uma escolha. Querias fazer justia por todas aquelas mulheres, as vtimas dele. E talvez tambm pela tua me. Chocado, Bosch voltou-se para ela e estava quase a perguntar-lhe como que ela sabia da me dele e como que se tinha lembrado de fazer uma relao entre ela e o caso Dollmaker. Mas, de repente, lembrou-se outra vez dos ficheiros. Provavelmente estava l, algures. Quando se tinha candidatado ao departamento, tivera de responder num formulrio qualquer se ele ou algum da sua famlia j tinha sido vtima de um crime. Tinha ficado rfo aos onze anos, tinha ele escrito, quando a me fora encontrada estrangulada num beco junto do Hollywood Boulevard. No precisara de dizer qual era o modo de vida dela. O local e o crime j diziam o suficiente. Quando recuperou a calma, Bosch perguntou a Eleanor onde que ela queria chegar. - A lado nenhum... - respondeu ela. - S... bem eu respeito isso. Se fosse eu, teria gostado de ter feito a mesma coisa, acho eu. Espero que tivesse conseguido ser suficientemente corajosa. Bosch olhou para ela, a escurido escondendo as caras de ambos. J era tarde e no passavam nenhuns faris de carros para os mostrar um ao outro. - melhor ficares com o primeiro turno de sono. Eu bebi demasiado caf. Ela no respondeu. Ele ofereceu-se para ir buscar um cobertor que tinha no portabagagens, mas ela recusou. - Alguma vez ouviste o que que o J. Edgar Hoover disse sobre a justia? - Provavelmente, disse uma data de coisas, mas no me lembro de nenhuma assim de repente. - Ele disse que a justia apenas um incidente da lei e da ordem. Acho que ele tinha razo. No disse mais e, passado um bocado, Bosch ouviu a respirao dela tornar-se mais funda e mais prolongada. Quando, muito raramente, passava um carro, ele olhava para a cara dela enquanto a luz a iluminava. Dormia como uma criana, com a cabea encostada s mos. Abriu a janela e acendeu um cigarro. Fumou enquanto perguntava para consigo se podia ou queria apaixonar-se por ela e ela por ele. Estava excitado e angustiado com aquela ideia, tudo ao mesmo tempo.

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PARTE VII Sbado, 26 de Maio

madrugada cinzenta apareceu por cima da rua e encheu o carro com uma luz fraca. A manh tambm trouxe com ela uma chuva miudinha que molhou a rua e deu origem a uma mancha de condensao na metade inferior das janelas da Beverly Hills Safe & Lock. Era a primeira chuva de qualquer tipo h vrios meses, tanto quanto Bosch se conseguia lembrar. Eleanor Wish dormia e ele observou a caixa-forte: as luzes de tecto ainda cintilavam no remate de ao cromado e polido. Passava das seis horas, mas Bosch tinha-se esquecido da chamada de controlo para Rourke e deixou Eleanor dormir. De facto, durante a noite nunca a tinha acordado para poder dormir durante o seu turno. Nunca se sentiu cansado. Houck contactou pela rdio s trs e meia para se certificar de que havia algum acordado. Depois disso, no tinha havido mais interrupes nem actividade na sala da caixa-forte. Durante o resto da noite, Bosch tinha pensado alternadamente em Eleanor Wish e na caixa-forte que estava a vigiar. Estendeu a mo para a chvena em cima do tablier e tentou descobrir nem que fosse um gole de caf frio, mas estava completamente vazia. Atirou-a por cima do banco para o cho. Ao faz-lo reparou na encomenda de St Louis no assento de

trs. Esticou-se para trs e agarrou no envelope castanho. Tirou o grosso monte de papis para fora e comeou a folhe-lo distraidamente, levantando os olhos para a caixa-forte a intervalos de poucos segundos. A maior parte dos registos militares de Meadows j ele tinha visto. Mas depressa se apercebeu de que havia vrios que no tinham estado no dossier do FBI que Eleanor lhe tinha dado. Este era muito mais completo. Havia uma fotocpia do recrutamento e do exame mdico. Tambm havia relatrios mdicos de Saigo. Tinha recebido tratamento por duas vezes para a sfilis e uma para uma reaco de stress agudo. 317 Enquanto folheava os documentos, parou quando os seus olhos caram numa cpia de uma carta de duas pginas de um congressista de Louisiana chamado Noone. Curioso, Bosch comeou a ler. Estava datada de 1977 e era dirigida a Meadows para a embaixada de Saigo. A carta com o selo oficial do congressista, agradecia a Meadows a sua hospitalidade e ajuda durante a recente visita para recolha de factos do congressista. Noone referia que tinha sido uma surpresa agradvel encontrar um conterrneo de New Ibria naquele pas estranho. Bosch perguntou para consigo se teria sido de facto uma coincidncia assim to grande. Provavelmente, Meadows tinha sido destacado para a segurana do congressista a fim de criarem uma boa relao entre eles e o legislador poder voltar para Washington com uma muito boa opinio do pessoal e do moral no sudeste da sia. No h coincidncias. A segunda pgina da carta dava os parabns a Meadows pela sua excelente carreira e referia os bons relatrios que Noone tinha recebido a respeito de Meadows da parte do comandante deste. Bosch continuou a ler. Era mencionado o envolvimento de Meadows na anulao de uma tentativa de entrada ilegal na embaixada durante a estadia do congressista. Um tenente Rourke tinha fornecido os pormenores dos actos hericos de Meadows comitiva oficial do congressista. Bosch sentiu um frmito por baixo do corao, como se o sangue estivesse a escoar l de dentro. A carta terminava com uma conversa sem importncia sobre a parquia da terra. Havia ainda a grande e floreada assinatura do congressista e uma nota dactilografada no canto esquerdo da margem: Ce: Diviso de Registos, Exrcito EU, Washington DC. Tenente John H. Rourke, Embaixada Americana, Saigo,VN. O Dalily Iberian; ateno do editor de notcias. Bosh ficou a olhar para a segunda pgina durante muito tempo sem se mover ou respirar. Na realidade, pensou que estava a comear a sentir uma sensao de nusea e limpou a testa com a mo. Tentou lembrar-se se j teria ouvido o nome intercalar de Rourke ou a inicial. No se conseguia lembrar. Mas no tinha importncia. No havia dvida. No ha coincidncias. O pager de Eleanor tocou, sobressaltando os dois como se fosse um tiro. Ela endireitou-se no assento e comeou a revolver a carteira procura do pager. 318 - Oh, meu Deus! Que horas so? - perguntou ela ainda desorientada. Ele disse que eram seis e vinte e s nessa altura que se lembrou que deviam ter contactado com Rourke vinte minutos antes. Voltou a enfiar a carta no monto de papis e voltou a enfi-los no envelope. Atirou-o para o banco de trs. - Tenho de ir telefonar - disse Eleanor. - Ei, espera uns minutos at acordares - replicou Bosh muito depressa. - Eu telefono. De qualquer das maneiras, tenho de descobrir uma casa de banho e vou buscar caf e gua. Abriu a porta do carro e saiu antes de ela ter tempo para protestar contra a ideia. - Harry, porque que me deixaste dormir? - perguntou ela. - No sei. Qual o nmero dele? - Eu que devia telefonar-lhe. - Deixa-me ser eu. D-me o nmero. Ela deu-lhe o nmero e Bosch caminhou at esquina e depois percorreu a curta distncia at ao restaurante aberto vinte e quatro horas por dia, chamado Darlingos. Fez todo o caminho completamente atordoado, ignorando os vagabundos que tinham sado com o Sol, tentando absorver a ideia de que era Rourke quem estava dentro do esquema. O que que ele estava a fazer? Havia uma parte que

faltava e que Bosch no conseguia descobrir. Se Rourke era o insider, ento por que que ele havia de os ter autorizado a montar a vigilncia caixa-forte? Queria que a sua gente fosse apanhada? Viu os telefones pblicos em frente do restaurante. - Ests atrasada - disse Rourke atendendo o telefone a meio do primeiro toque. - Esquecemo-nos. - Bosch? Onde est a Wish? Ela que devia telefonar. - No se preocupe com isso, Rourke. Ela est a vigiar a caixa-forte como a sua obrigao. O que que voc est a fazer? - Tenho estado espera de ter notcias vossas antes de ir para a. Vocs adormeceram ou qu? O que que est a passar-se a? - No est a passar-se nada. Mas voc j o sabia, no verdade? Seguiu-se um silncio durante o qual um velho vagabundo se aproximou da cabine telefnica e pediu dinheiro a Bosch. Bosch pousou a mo no peito do homem e afastou-o com um empurro firme. - Ainda a est, Rourke? - perguntou para o telefone.

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- O que que aquilo quis dizer? Como que eu sei o que que se est a passar a se vocs no telefonam como estava combinado? E voc sempre com essas insinuaes veladas. Bosch, no o consigo entender. - Deixe-me perguntar-lhe uma coisa. Ps mesmo gente nas sadas dos tneis, ou aquela planta e o seu ponteiro e o gajo da SWAT foram s fachada? - Chame a Wish ao telefone. Voc no sabe o que que est a dizer. - Lamento, ela no pode vir ao telefone neste momento. - Bosch, estou a dar-lhe ordem para regressar. H qualquer coisa errada. Voc passou toda a noite fora com esta coisa. Acho que voc devia... no, eu vou mandar duas pessoas descansadas para a. Vou ter de telefonar ao seu tenente e... - Voc conhecia o Meadows. - O qu? - Aquilo que eu disse. Voc conhecia o Meadows. Tenho o processo dele, homem. O processo completo. No a verso censurada que voc deu Wish para me dar. Voc foi o CO dele na embaixada de Saigo. Eu sei. Mais silncio. Depois: - Eu fui CO de uma data de gente, Bosch. No os conheci a todos. Bosch abanou a cabea. - Isso muito fraco, tenente Rourke. Muito fraco mesmo. Isso foi pior do que limitarse a reconhecer o facto. Vou dizer-lhe uma coisa, at vista. Bosch desligou e entrou no Darlingos onde pediu dois cafs e duas guas minerais. Ficou ao p da caixa registadora espera que a rapariga tratasse do pedido e a olhar para a rua pela janela. A nica coisa em que conseguia pensar era em Rourke. A rapariga veio para a caixa registadora com o pedido numa caixa de carto para levar para fora. Pagou, deu-lhe uma gorjeta e voltou para a cabine telefnica. Bosch voltou a ligar para o nmero de Rourke sem mais nenhuma inteno para alm de ver se ele estava ao telefone ou se j tinha sado. Desligou ao dcimo toque. Depois ligou para a central de Hollywood e pediu ao operador para ligar para a central do FBI e perguntar se eles tinham uma equipa da SWAT a trabalhar na rea de Wilshire ou nas imediaes de Beverly Hills e se precisavam de ajuda. Enquanto esperava, tentou perceber o esquema de Rourke. Abriu um dos cafs e bebeu um gole. 320 O operador voltou linha com a confirmao de que o FBI tinha uma operao de vigilncia da SWAT no distrito de Wilshire. No precisavam de reforos. Bosch agradeceu e desligou. Agora estava convencido que sabia o que Rourke estava a fazer. O que tinha de estar a acontecer era que no havia homens nenhuns a tentar arrombar a caixa-forte. A cilada na caixa-forte era exactamente isso, uma cilada. A caixa-forte era um chamariz. Bosch pensou na forma como ele tinha deixado Tran seguir o seu caminho depois de o ter seguido at caixa-forte. O que ele tinha feito tinha sido forar o segundo capito a mostrar-se, com os seus diamantes e dar oportunidade ao Rourke para o caar. Bosch tinha feito o jogo dele. Quando Bosch voltou para o carro, viu que Eleanor estava a ler o dossier de

Meadows. Ainda no tinha chegado carta do congressista. - Onde que estiveste? - perguntou ela bem-humorada. - O Rourke estava cheio de perguntas. - Tirou-lhe o dossier das mos e disse: H aqui uma coisa que quero que tu vejas. Onde que arranjaste o dossier do Meadows que me mostraste? - No sei. O Rourke que mo deu. Porqu? Encontrou a carta e entregou-lha sem dizer nada. - O que isto? Mil novecentos e setenta e trs? - L. Isto o dossier do Meadows, aquele que eu pedi para foto-copiarem e mandarem de St. Louis. No h nenhuma carta igual a esta no dossier que o Rourke te entregou para me dares. Ele limpou-a. L, j vais perceber porqu. Deitou uma olhadela porta da caixa-forte. No estava a acontecer nada, nem ele esperava que estivesse. Depois observou-a enquanto ela lia. Ela ergueu uma sobrancelha enquanto dava uma vista de olhos s duas folhas, sem ver o nome. - Sim, ento ele foi uma espcie de heri, o que diz aqui. No vejo... Os olhos arregalaram-se quando chegou ao fim. - Com conhecimento ao tenente John Rourke. - Uh-uh. Tambm no deste pela primeira referncia. Apontou para a frase que identificava Rourke como CO de Meadows. - A toupeira. O que que achas que devamos fazer? - No sei. Tens a certeza? Isto no prova nada. - Se fosse uma coincidncia ele devia ter dito que conhecia o tipo, esclarecer a situao. Como eu fiz. Eu informei. Ele no porque no queria que se soubesse desta conexo. Perguntei-lhe quando falei com ele ao telefone. Mentiu. No sabia que tnhamos isto. 321 - Agora ele sabe que tu sabes? - Exactamente. No sei o que que ele pensa que eu sei. Desliguei-lhe o telefone na cara. A pergunta agora : o que que fazemos em relao a isto? Provavelmente, estamos s a perder o nosso tempo aqui. Tudo isto no passa de uma charada. Ningum vai entrar naquela caixa-forte. Provavelmente, despacharam o Tran depois de ele ter ido buscar os diamantes. Levmo-lo direitinho ao matadouro. Nesse momento percebeu que se calhar o LTD branco pertencia aos ladres e no ao Lewis e ao Clarke. Eles tinham seguido Bosch e Eleanor at ao Tran. - Espera um minuto - disse Eleanor. - No sei. E os alarmes durante esta semana toda? A bomba de incndio e o fogo posto? Tem que estar a acontecer tal como ns pensmos. Olharam os dois para a caixa-forte. A chuva tinha parado, o Sol j tinha nascido por completo e fazia com que a porta de ao refulgisse. Finalmente, Eleanor falou. - Acho que temos de arranjar ajuda. Temos o Hanlon e o Houck sentados do outro lado do banco e a SWAT, a no ser que isso tambm faa parte da charada do Rourke. Bosch disse-lhe que tinha verificado a vigilncia da SAWT e que ficara a saber que eles estavam de facto no local. - Ento o que que est o Rourke a fazer? - perguntou ela. - A carregar nos botes todos. Andaram s voltas com aquilo durante alguns minutos e acabaram por resolver chamar Orozco da polcia de Beverly Hills. Primeiro, Eleanor contactou Hanlon e Houck. Bosch queria que eles se mantivessem nas suas posies. - Ei, rapazes, esto acordados? - perguntou ela para o Motorola. - Com dificuldade. Sinto-me como aquele tipo preso no carro no viaduto a seguir ao terramoto de Oakland. Passa-se alguma coisa? - No, s estvamos a verificar. Como que est a porta da frente? - Ningum bateu durante toda a noite. Ela desligou e ficaram uns instantes em silncio antes de Bosch se virar para abrir a porta e ir telefonar a Orozco. Parou e voltou-se para ela outra vez. - Sabes, ele morreu - disse-lhe. - Quem que morreu? - O tipo no viaduto.

322 Naquele preciso momento houve uma pancada que abanou ligeiramente o carro. No foi exactamente um barulho, mas uma vibrao, um impacto, no muito diferente do primeiro abano de um tremor de terra. No houve mais vibraes. Mas, passado um ou dois segundos, ouviu-se um alarme. O toque, forte e ntido, vinha da Beverly Hills Safe & Lock Company. Bosch sentou-se muito direito, a olhar para a caixa-forte. No se via nenhuma indicao de intrusos. Quase imediatamente, o rdio crepitou com a voz de Hanlon. - Temos uma campainha. Qual o nosso plano de aco? Nem Bosch nem Eleanor responderam de imediato chamada. Estavam a olhar para a caixa-forte, completamente abismados. Rourke tinha deixado que os seus homens cassem direitinhos numa armadilha. Pelo menos, era o que parecia. - Filho da puta! - exclamou Bosch. - Eles esto l dentro. - Diz ao Hanlon e ao Houck para ficarem quietos at recebermos ordens - disse Bosch. - E quem que vai dar-lhes as ordens? - perguntou Eleanor. Bosch no respondeu. Estava a pensar no que se passava na caixa-forte. Por que razo teria Rourke levado os seus homens para uma cilada? - Pode no ter podido avis-los, dizer-lhes que os diamantes j no estavam l e que ns estvamos aqui em cima - disse ele. - Quero dizer, h vinte e quatro horas atrs ns no sabamos da existncia deste stio nem o que se estava a passar. Se calhar, quando descobrimos, j era tarde. Eles j tinham avanado muito l por baixo. - Por isso, eles esto a agir conforme tinham planeado - disse Eleanor. - Eles vo rebentar primeiro com o cofre do Tran, se tiverem feito o trabalho de casa e souberem qual delas . Vo descobrir que est vazia e depois? O que que eles faro? Cavar, ou rebentar com mais cofres at conseguirem deitar a mo a coisas suficientes para fazerem com que esta coisa toda tenha valido a pena? - Acho que se vo raspar - respondeu ela. - Penso que quando eles abrirem o cofre do Tran e no encontrarem os diamantes, vo perceber que h qualquer coisa que no est certa e pem-se ao fresco. Quer dizer que no temos muito tempo. Calculo que eles vo ter tudo a postos na caixa-forte, mas s vo comear a furar quando tivrmos reactivado o alarme e desaparecido da cena. Podemos atrasar um bocadinho a reactivao, mas no demasiado, seno eles podem ficar 323 desconfiados e fugir, procura da nossa gente e prontos para os atacar nos tneis. Saiu do carro e voltou-se para olhar para Eleanor. - Agarra no rdio. Diz a esses tipos para ficarem quietos, depois manda uma mensagem aos teus tipos da SWAT. Diz-lhes que pensamos que h pessoas dentro da caixa-forte. - Vo querer saber porque que no o Rourke a falar com eles. - Pensa em qualquer coisa. Diz-lhes que no sabes onde est o Rourke. - Onde que vais? - Vou ter com o carro patrulha que vai responder ao alarme. Vou dizer-lhes para chamarem o Orozco. Bateu com a porta e desceu a rampa da garagem. Eleanor fez os contactos via rdio. Quando Bosch se aproximou da Beverly Hills Stock & Lock Company, tirou a carteira do crach do bolso, dobrou-a para trs e prendeu-a no bolso do peito do casaco. Virou a esquina da sala de vidro e correu para os degraus da entrada no preciso momento em que um carro patrulha de Beverly Hills parava, com as luzes a faiscarem, mas sem sirene. Os patrulheiros saram, desenfiando os cacetes dos tubos de PVC das portas e enfiando-os depois nas argolas dos cintures. Bosch apresentou-se, disse-lhes o que estava a fazer e pediu-lhes para enviarem uma mensagem ao capito Orozco o mais depressa possvel. Um dos polcias disse que o gerente, um tipo chamado Avery, estava a ser chamado para vir ligar o alarme enquanto a polcia revistasse o local. Tudo rotina. Disseram que j conheciam o sujeito, era o terceiro alarme para que tinham sido chamados nessa semana. Tambm informaram que j tinham ordens para informarem Orozco para casa de todas as chamadas que houvesse daquele local, fosse qual fosse a hora.

- Quer dizer que estas chamadas no eram falsos alarmes? - perguntou o que se chamava Onaga. - No temos a certeza - respondeu Bosch. -Mas queremos tratar esta como se fosse falso alarme, o gerente chamado, ele e vocs voltam a accionar o alarme e cada um vai sua vida. OK? Tudo muito calmo e descontrado. Nada de invulgar. - De acordo - disse o outro polcia. O nome da placa presa no bolso dizia Johnstone. Segurando o cacete preso no cinto, deu uma corrida at ao carro para ligar a Orozco. - Ora c temos o nosso Mr Avery - disse Onaga. 324 Um Cadillac branco parou suavemente junto do passeio atrs do carro patrulha de Beverly Hills. Avery III, que vestia uma camisa desportiva cor-de-rosa e calas de madrasto, saiu do carro e veio ter com eles. Reconheceu Bosch e cumprimentou-o pelo nome. - Houve um arrombamento? - Mr Avery, ns pensamos que capaz de haver qualquer problema, mas no sabemos. Precisamos de tempo para investigar. O que queremos que o senhor faa abrir o escritrio, dar uma volta como costuma fazer, como fez das outras vezes em que os alarmes dispararam no princpio desta semana. Depois, volte a accionar o alarme e feche tudo outra vez. - S isso? E se... - Mr Avery, o que ns queremos que o senhor faa que se meta no carro e se v embora como costuma fazer, como se fosse voltar para casa. Mas quero que d a volta quela esquina e que v at ao Darlings. Entre e tome um caf. Eu, ou vou l ter consigo para lhe dizer o que est a acontecer, ou mando-o chamar. Quero que se descontraia. Ns podemos resolver qualquer situao que venha a surgir aqui. Temos outras pessoas a investigar, mas, por uma questo de aparncias, queremos fazer com que isto passe como mais outro falso alarme. - Estou a ver - respondeu Avery tirando um porta-chaves do bolso. Aproximou-se da porta e abriu-a. - E a propsito, isto que est a tocar no o alarme da caixa-forte. o alarme exterior que accionado pelas vibraes na janela da sala da caixaforte. Eu sei. Tem um tom diferente, est a ver? Bosch deduziu que os homens nos tneis tinham desactivado o sistema de alarme da caixa-forte sem se terem apercebido que o alarme exterior era um sistema diferente. Onaga e Avery entraram e Bosch entrou atrs deles. Enquanto Harry estava parado na entrada procura de fumo e sem ver nenhum, cheirando o ar procura de cordite e sem cheirar nenhuma, entrou Johnstone. Bosch levou o dedo aos lbios para avisar o agente que no devia gritar por cima do barulho do alarme. Johnstone assentiu com a cabea, ps as mos volta da boca encostando-a orelha de Bosch e disse-lhe que Orozco estaria ali dentro de vinte minutos, no mximo. Vivia no Valley. Bosch assentiu esperando que fosse suficientemente depressa. O alarme foi desligado e Avery e Onaga saram do escritrio de Avery e avanaram para a entrada onde Bosch e Johnstone esperavam. Onaga olhou para Bosch e abanou a cabea indicando que no havia nada anormal. - Costuma ir verificar a sala da caixa-forte? - perguntou Bosch. - S costumamos dar uma vista de olhos - respondeu Avery. Dirigiu-se para a mquina do raio-X e ligou-a explicando que levava cinquenta segundos a aquecer. Deixaram passar o tempo sem falar. Por fim, Avery pousou a mo no leitor. Este leu-a e aprovou a estrutura ssea e a fechadura da primeira porta da armadilha abriu-se. - Uma vez que no tenho o meu guarda dentro da sala da caixa-forte, tenho de desligar a fechadura da segunda porta - disse Avery. - Cavalheiros, se no se importam, faam o favor de no olhar quando entrarmos. Os quatro homens entraram na divisria minscula e Avery carregou nuns botes, marcando a combinao da fechadura da segunda porta. Esta abriu-se com um estalido e eles entraram na sala da caixa-forte. No havia nada para ver a no ser ao e vidro. Bosch aproximou-se da porta da caixa-forte e encostou o ouvido, mas no ouviu nada. Dirigiu-se para a parede de vidro e olhou para o Wlshire Boulevard. Conseguiu ver que Eleanor estava outra vez dentro do carro no segundo andar da

garagem. Virou a sua ateno para Avery que se veio colocar ao lado dele como se quisesse olhar l para fora, mas que, em vez disso, se encostou a ele numa posio conspirativa. - Lembre-se que eu posso abrir a caixa-forte - disse ele num murmrio. Bosch olhou para ele, abanou a cabea e disse: - No, no quero fazer isso. demasiado perigoso. Vamo-nos embora. Avery ficou com uma expresso verdadeiramente perplexa estampada na cara, mas Bosch afastou-se. Cinco minutos depois, a Beverly Hills Safe & Lock estava outra vez vazia e trancada. Os dois polcias voltaram para o carro patrulha e Avery foi-se embora. Bosch voltou a p para a garagem. A rua j tinha mais movimento e o barulho do dia tinha comeado. A garagem estava a comear a encher-se de carros e do cheiro dos escapes. Dentro do carro, Eleanor Wish disse-lhe que Hanlon, Houck e a equipa da SWAT se mantinham nas suas posies. Ele disse-lhe que Orozco vinha a caminho. Bosch gostaria de saber quanto tempo que os homens dentro do tnel levariam para se sentirem seguros e comearem a furar. Orozco ainda ia demorar dez minutos. Era muito tempo. - E o que que fazemos quando ele chegar? - perguntou Eleanor. - a cidade dele, ele que decide - respondeu Bosch. - Ns vamos limitar-nos a explicar-lhe a situao e a fazer o que ele quiser. Dizer-lhe que estamos a meio de uma operao lixada e que j no sabem 325 em quem podemos confiar. Pelo menos, no podemos confiar no homem que nos comanda. Ficaram sentados em silncio durante um ou dois minutos. Bosch acendeu um cigarro e Eleanor no lhe disse nada. Parecia perdida nos seus pensamentos, uma expresso intrigada na cara. Ambos olhavam nervosamente para os relgios de trinta em trinta segundos. Lewis esperou que o Cadillac branco que estava a seguir tivesse virado para norte na Willshire. Mal o carro deixou de poder ser visto da Beverly Hills Safe & Lock, Lewis agarrou na luz azul de emergncia no cho do carro e colocou-a no tablier. Ligou-a, mas o condutor do Cadillac j estava a encostar na rua, frente do Darlings. Lewis saiu do carro e dirigiu-se para o Caddy; foi interceptado a meio do caminho pelo prprio Avery. - O que que se passa, agente? - perguntou Avery. - Detective - disse Lewis e mostrou a insgnia. - Assuntos Internos, LAPD. Preciso de lhe fazer umas perguntas, senhor. Ns estamos a investigar o homem, o detective Harry Bosch, com quem estava agora mesmo a conversar no Bevely Hills Safe & Lock. - O que que quer dizer com esse ns? - Deixei o meu colega na Wishire para ele poder continuar a ter o seu negcio debaixo de olho. Mas o que eu gostaria era que o senhor viesse at ao meu carro para podermos conversar durante uns minutos. Passa-se qualquer coisa e eu preciso de saber o qu. - Esse detective Bosch... Hei, como que eu sei que o senhor mesmo o que diz ser? - Como que sabe que ele ? A coisa assim: ns andamos a vigiar o detective Bosch h uma semana, senhor, e sabemos que ele est envolvido em actividades que, se no forem ilegais, so pelo menos embaraosas para o departamento. Nesta altura, no temos a certeza. por isso que precisamos do senhor. Importa-se de me acompanhar at ao carro, se faz favor? Avery deu dois passos hesitantes em direco ao carro dos Assuntos Internos e depois pareceu decidir-se. Dirigiu-se rapidamente para o lado o passageiro e entrou no carro. Avery identificou-se como o proprietrio do Beverly Hills Safe & Lock e fez um curto resumo do que tinha dito nos dois encontros que tivera com Bosch e Wish. Lewis ouviu sem fazer comentrios e depois abriu a porta. - Espere aqui, se faz favor. Volto j. Lewis encaminhou-se para a Wilshire e parou na esquina durante alguns momentos, aparentemente procura de algum, depois fez uma cena complicada a consultar o relgio. Voltou para o carro e sentou-se ao volante. Na Wilshire, Clarke estava

espera na entrada de uma loja a vigiar a caixa-forte. Viu o sinal de Lewis e voltou para o carro com ar descontrado. Quando Clarke entrou para o banco de trs, Lewis disse: - Aqui o Mr Avery diz que o Bosch lhe disse para ir para o Darlings e esperar. Disse que se calhar havia gente dentro da caixa-forte. Vindas dos subterrneos. - O Bosch disse o que que ele ia fazer? - perguntou Clarke. - Nem uma palavra - respondeu Avery. Ficaram todos calados a pensar. Lewis no conseguia perceber. Se Bosch estava sujo, o que que ele estava a fazer? Pensou mais um bocado nisto e compreendeu que se Bosch estivesse envolvido no assalto caixa-forte, estaria na posio ideal uma vez que era o homem que dava as ordens do lado de fora. Podia criar uma grande confuso na forma como estavam a cobrir o assalto. Podia mandar toda gente para o stio errado enquanto os seus homens na caixa-forte sairiam em segurana na direco contrria. - Ele est a controlar toda a gente - disse Lewis, mais para si prprio do que para os outros dois homens sentados no carro. - Quem, o Bosch? - perguntou Clarke. - ele quem est a controlar o assalto. Ns no podemos fazer mais nada a no ser assistir. No podemos entrar na caixa-forte. No podemos ir para baixo do cho sem sabermos para onde ir. Ele j tem a equipa da SWAT do FBI imobilizada ao p da auto-estrada. Eles esto espera de uns ladres que no vo aparecer, porra! - Esperem l um minuto, esperem um minuto - disse Avery. - A caixa-forte. Vocs podem l entrar. Lewis virou-se todo no assento para olhar para Avery. O dono da caixa-forte explicou-lhes que os regulamentos de segurana dos bancos federais no se aplicavam Beverly Hills Safe & Lock porque no era um banco e que ele tinha o cdigo do computador que abria a caixa-forte. - Disse isso ao Bosch? - perguntou Lewis. - Ontem e hoje. - Ele j sabia? - No. Pareceu-me surpreendido. Fez perguntas muito pormenorizadas sobre o tempo que levaria a abrir a porta, o que que eu tinha 328 de fazer, coisas assim. E hoje, quando tivemos o alarme, perguntei-lhe se a devamos abrir. Ele disse que no. S disse para nos pormos a andar dali para fora. - Raios! - exclamou Lewis muito excitado. - melhor telefonar ao Irving. Saltou do carro e correu para os telefones pblicos frente do Darlingos. Marcou o nmero de casa do Irving e no atenderam. Marcou o do gabinete e s apanhou o agente de servio. Mandou o agente contactar Irving pelo pager dando o nmero da cabine. Depois esperou cinco minutos, a passear de um lado para o outro frente dos telefones, preocupado com o tempo que ia passando. O telefone nunca tocou. Usou o outro ao lado para telefonar para o agente de servio a fim de se certificar que Irving tinha sido contactado. Tinha. Lewis decidiu que no podia esperar. Teria de ser ele a tomar esta deciso e iria ser ele o heri. Abandonou os telefones e voltou para o carro. - O que que ele disse? - perguntou Clarke. - Vamos entrar - respondeu Lewis. E arrancou com o carro. O rdio da polcia deu sinal por duas vezes e ouviu-se a voz de Hanlon. - Ei, Broadway, temos vistas aqui na First. Bosch agarrou no rdio. - O que que tm, First? No se v nada na Broadway. - Temos trs homens brancos a entrarem do nosso lado. Esto a usar uma chave. Parece o homem que esteve aqui h bocado contigo. Velho. Calas aos quadrados. Avery. Bosch levou o microfone boca e hesitou, sem ter a certeza do que havia de dizer. - E agora? - perguntou a Eleanor. Tal como Bosch, ela estava a olhar fixamente para a parte de baixo da rua, para a caixa-forte, mas no havia sinal de visitantes. No disse nada. - Uh... First - disse Bosch para o microfone. - Vem algum veculo? - No vimos - respondeu a voz de Hanlon. - Limitaram-se a aparecer a p, do beco

do nosso lado. Devem ter estacionado a. Queres que gente v ver? - No, esperem um minuto. 329 - Agora esto l dentro, j no temos contacto visual. Ordens, por favor. Bosch voltou-se para Wish erguendo as sobrancelhas. Quem poderia ser? - Pede a descrio dos dois que esto com o Avery - disse ela. Ele obedeceu. Brancos - comeou Hanlon -, os dois de fato, usados e amarrotados. Camisas brancas. Ambos na casa dos trinta e poucos. Um com cabelo ruivo, entroncado, um metro e oitenta, oitenta e cinco quilos. O outro, cabelo castanho escuro, mais magro. No sei, diria que estes tipos so polcias. - O Heckle e o Jeckle? - disse Eleanor. - O Lewis e o Clarke. Tm de ser eles. - O que que eles l esto a fazer? Bosch no sabia. Eleanor tirou-lhe o rdio. - First? O rdio deu um estalido. - H razes para julgarmos que os dois tipos de fato so agentes da polcia de Los Angeles. Fiquem atentos. - L esto eles - disse Bosch, quando trs figuras apareceram no claro da luz da caixa-forte. Abriu o porta-luvas e tirou uns binculos. - O que que eles esto a fazer? - perguntou Eleanor enquanto ele focava a imagem. - O Avery est ao p do teclado ao lado da porta. Acho que ele vai abrir aquela maldita coisa. Atravs dos binculos, Bosch viu Avery afastar-se do teclado do computador e dirigir-se para a roda cromada na porta da caixa-forte. Viu Lewis virar-se ligeiramente e olhar na direco da garagem. Haveria ali um ligeiro sorriso? Bosch pensou que via um. Depois, pelos binculos, viu Lewis tirar a arma do coldre debaixo do brao. Clarke fez a mesma coisa e Avery comeou a girar a roda, o capito a manobrar o Titanic. - Aqueles estpidos filhos da me! Esto a abri-la! Bosch saltou do carro e comeou a correr pela rampa abaixo. Tirou a arma do coldre e levantou-a no ar enquanto corria. Deitou uma olhadela Wilshire e viu uma aberta no trnsito ainda escasso. Lanou-se para o outro lado da rua, com Eleanor a uma pequena distncia. Bosch ainda estava a uma distncia de vinte e cinco metros e sabia que ia chegar demasiado tarde. Avery tinha parado de girar a roda da porta e Bosch viu-o empurr-la com toda a fora. A porta comeou abrir-se lentamente. Bosch ouviu a voz de Eleanor atrs de si. 331 - No! - gritava ela. - Avery! No! Mas Bosch sabia que o vidro duplo tornava a caixa-forte prova de som. Avery no a conseguia ouvir e Lewis e Clarke no teriam parado de fazer o que estavam a fazer mesmo que a tivessem podido ouvir. A Bosch, o que aconteceu pareceu um filme. Um filme antigo numa televiso com o som apagado. A porta da caixa-forte a abrir-se devagarinho, com a sua faixa de escurido interior a alargar, dava imagem uma qualidade quase subaqutica, etrea, uma inevitabilidade em cmara lenta. Bosch sentia-se como se estivesse num passeio rolante a andar em sentido contrrio, a correr, mas sem se conseguir aproximar. Tinha os olhos fixos na porta da caixa-forte. A margem preta ia-se tornando cada vez mais larga. Ento, o corpo de Lewis entrou no campo de viso de Bosch, avanando em direco porta que se ia abrindo. Quase de imediato, impelido por uma fora invisvel, Lewis saltou violentamente para trs. As mos levantaram-se e a arma bateu no tecto e depois caiu silenciosamente no cho. Enquanto pedalava para trs, para fora da caixa-forte, a cabea e as costas rebentaram e o sangue e o crebro espalharam-se pela parede de vidro atrs dele. Enquanto Lewis era projectado para longe da porta da caixa-forte, Bosch conseguiu ver o claro da boca da arma na escurido do interior. E ento, teias de rachas rasgaram o vidro duplo quando as balas a atingiram silenciosamente. Lewis embateu num dos painis de vidro enfraquecido e despenhou-se no passeio, um

metro abaixo. Agora, a porta da caixa-forte estava meio aberta e o atirador tinha o campo mais livre. A rajada da metralhadora virou-se para Clarke, que estava de p, desprotegido, a boca aberta com o choque. Bosch j conseguia ouvir os tiros. Viu Clarke tentar fugir da linha de fogo. Mas foi um esforo intil. Tambm ele foi atirado para trs pela fora das balas. O corpo chocou com Avery e ambos caram por cima um do outro no cho de mrmore polido. Os disparos da caixa-forte pararam. Bosch saltou pela abertura onde tinha estado a parede de vidro e deslizou apoiado no peito pelo mrmore e pela poeira de vidro. No mesmo instante, olhou para dentro da caixa-forte e viu o vulto de um homem desaparecer pelo cho abaixo. O movimento provocou um remoinho no p de beto e no fumo que enchiam a caixaforte. Como um mgico, o homem limitou-se a desaparecer na nvoa. Depois, da escurido mais interior, apareceu um segundo homem enquadrado pela moldura da porta. Avanava para o buraco, deslocando-se lateralmente e traando um arco amplo com uma metralhadora M-16, de um lado para o outro. Bosch reconheceu Art Franklin, um dos homens da Charlie Company. Quando o buraco negro da M-16 se virou na direco dele, Bosch empunhou a arma com as duas mos, os cotovelos apoiados no cho frio, e disparou. Franklin disparou ao mesmo tempo. Os tiros dele foram altos e Bosch ouviu mais vidro a estilhaar atrs dele. Bosch disparou mais dois tiros para dentro da caixa-forte. Ouviu um fazer ricochete na porta de ao. O outro acertou em Franklin na parte superior direita do peito, atirando-o de costas para o cho. Mas, num movimento rpido, o homem ferido rolou sobre si prprio e enfiou-se de cabea pelo buraco dentro. Bosch manteve a arma apontada para o vo da porta da caixa-forte espera de mais qualquer outra pessoa. Mas no havia mais nada, apenas o barulho de Avery e Clarke, arquejando e gemendo no cho, esquerda dele. Bosch levantou-se, mas manteve a arma apontada para a caixa-forte. Eleanor trepou l para dentro, empunhando a Beretta. Agachados como os atiradores, Eleanor e Bosch foram-se aproximando da porta, cada um do seu lado. Havia um interruptor ao p do teclado do computador na parede de ao direita da porta. Bosch carregou no interruptor e o interior da caixa-forte ficou inundado de luz. Fez-lhe sinal com a cabea e Eleanor entrou primeiro. Ele seguiu-a. Estava vazia. Bosch saiu e dirigiu-se rapidamente para Clarke e Avery ainda cados no cho. Avery dizia: - Meu Deus! Meu Deus! Clarke tinha as duas mos volta da garganta e arfava tentando respirar, a cara to vermelha que por um instante bizarro, Bosch teve a sensao que ele se estava a estrangular a si prprio. Estava atravessado em cima da parte mdia do corpo de Avery e o sangue dele cobria os dois. - Eleanor! gritou Bosch. - Pede reforos e uma ambulncia. Diz SWAT que eles vo a sair. Pelo menos, dois. Armas automticas. Puxou Clarke de cima de Avery e, agarrando-o pelo ombro do casaco, arrastou-o para fora da linha de fogo da caixa-forte. O detective dos Assuntos Internos tinha apanhado uma bala no pescoo. O sangue escorria pelo meio dos dedos e tinha bolhinhas de sangue nos cantos da boca. Tinha sangue na cavidade torcica. Estava a tremer e a entrar em estado de choque. Estava a morrer. Harry voltou-se para Avery, que tinha sangue no peito e no pescoo e um bocado de massa esponjosa hmida e amarelo acastanhada na bochecha. Um bocado do crebro de Lewis. - Avery, foi atingido? 332 - Sim, uh... uh, acho... no sei - conseguiu ele responder numa voz estrangulada. Bosch ajoelhou-se ao lado dele e inspeccionou-lhe rapidamente o corpo e a roupa ensanguentada. No estava ferido e Harry disse-lhe. Bosch voltou para o stio onde tinha estado a janela de vidro duplo e olhou para baixo, para Lewis estendido de costas no passeio. Estava morto. As balas, tendo-o atingido num arco ascendente, tinham deixado as suas marcas pelo corpo acima. Havia ferimentos de entrada de balas na coxa direita, no estmago, no lado esquerdo do peito e no lado esquerdo da testa. Morreu antes de embater contra o vidro. Os olhos estavam abertos, a

olhar para nada. Nesse momento, Eleanor Wish entrou no trio. - Os reforos j vm a caminho - disse ela. Tinha a cara muito vermelha e estava a respirar quase com tanta dificuldade como Avery. Parecia que quase no controlava os movimentos dos olhos que saltitavam de um lado para o outro. - Quando os reforos chegarem - disse-lhe Bosch -, diz-lhes, se eles entrarem nos tneis, que h um dos nossos l em baixo. Quero que digas a mesma coisa tua gente da SWAT. - De que que ests para a a falar? - Vou descer. Atingi um, no sei com que gravidade. Era o Franklin. Outro desceu frente dele. O Delgado. Mas quero que os bons saibam que estou l dentro. Dizlhes que estou de fato. Os dois que eu caar vestem camuflados. Abriu a arma e tirou os trs cartuchos gastos e substituiu-os por balas que tinha no bolso. Ouvia-se uma sirene ao longe. Ouviu uma pancada seca e olhou atravs da parede de vidro e do trio para a porta da frente onde viu Hanlon a bater com a coronha da arma no vidro da porta. Daquele ngulo, o agente do FBI no podia ver que a parede de vidro da sala da caixa-forte estava despedaada. Bosch fez-lhe sinal para dar a volta. - Espera um minuto - disse Eleanor Wish. - No podes fazer isto, Harry, eles tm armas automticas. Espera at chegarem os reforos e arranjarmos um plano. Ele dirigiu-se para a porta da caixa-forte falando ao mesmo tempo. - Eles j levam um grande avano, tenho de ir. No te esqueas de os avisares que estou l dentro. Passou pela frente dela e entrou na caixa-forte, carregando no interruptor da luz ao entrar. Olhou pela borda para o buraco da exploso. Era uma queda de uns dois metros e meio. Havia bocados de beto e de ao no fundo. Conseguiu ver sangue nos destroos e uma lanterna. Havia demasiada luz. Se eles estivessem l em baixo espera dele, seria um alvo perfeito. Recuou para trs da porta da caixa-forte. Encostou o ombro e comeou a empurrar lentamente a enorme placa de ao para a fechar. Agora, Bosch conseguia ouvir o barulho de vrias sirenes que se aproximavam. Olhando para a rua, viu uma ambulncia e dois carros da polcia que desciam a Wilshire. O carro descaracterizado com Houck l dentro parou com um chiar de pneus e ele saiu com a arma na mo. A porta j estava meio fechada e, finalmente, comeou a mover-se sob o seu prprio peso. Bosch deu a volta e voltou a enfiar-se dentro da caixa-forte. Ficou parado, inclinado sobre o buraco da exploso, enquanto a porta se ia fechando devagarinho e a luz ia diminuindo. Apercebeu-se de que j tinha estado naquela posio muitas vezes. Era sempre na borda, entrada, que era o momento mais assustador, mais aterrorizador para ele. No momento em que saltasse para dentro do buraco, seria o momento em que estaria mais vulnervel. Se Franklin ou Delgado estivessem l em baixo, espera dele, apanhavam-no. - Harry! - ouviu Eleanor a chamar, embora no percebesse como que a voz dela conseguia fazer-se ouvir atravs da abertura que agora j s tinha a largura de uma folha de papel. - Harry, tem cuidado! Podem ser mais do que dois. A voz dela ecoou na sala de ao. Olhou para o buraco e controlou-se. Quando ouviu a porta fechar-se atrs de si com um estalido e j s havia escurido, saltou. Ao cair em cima do entulho, Bosch agachou-se e disparou um tiro com a sua Smith & Wesson para a escurido e depois estendeu-se ao comprido no fundo do tnel. Era um truque da guerra. Dispara antes que eles disparem contra ti. Mas no estava ningum espera dele. No houve nenhum tiro em resposta. Nenhum rudo, exceptuando o barulho distante de passos a correr no cho de mrmore por cima e no exterior da caixa-forte. Lembrou-se de que devia ter avisado Eleanor, devia terlhe dito que o primeiro tiro iria ser dele. Segurou o isqueiro longe do corpo e acendeu-o. Outro truque da guerra. Depois agarrou na lanterna, acendeu-a e olhou em volta. Viu que tinha disparado o seu tiro para um beco sem sada. O tnel que os ladres tinham escavado at caixa-forte ia para o outro lado. Oeste, no este

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como eles tinham pensado quando tinham estado a estudar a planta na noite anterior. Isso queria dizer que eles no tinham vindo da linha das guas pluviais que Gearson tinha pensado. No tinham vindo da Wilshire, talvez tivessem vindo da Olympic ou da Pico a sul ou da Santa Monica a norte. Bosch compreendeu que o homem da DWP e todos os outros agentes e polcias tinham sido habilmente induzidos em erro por Rourke. Nada iria ser como eles tinham planeado ou pensado. Harry estava entregue a si prprio. Dirigiu o feixe de luz para o interior da garganta negra do tnel. Descia e depois subia, dando-lhe apenas cerca de nove metros de visibilidade. O tnel seguia para ocidente. A equipa da SWAT estava espera a sul e a leste. Estavam espera de ningum. Segurando a lanterna virada para a direita e afastada do corpo, comeou a rastejar pela passagem. O tnel no tinha mais de um metro e trinta de altura e talvez uns noventa centmetros de largura. Avanou lentamente, com a arma na mesma mo que utilizava para rastejar. Havia cheiro de cordite no ar e um fumo azulado pairava no feixe de luz da lanterna. Nvoa prpura, pensou Bosch. Sentiu que estava a transpirar abundantemente do calor e do medo. De trs em trs metros, parava para limpar o suor dos olhos com a manga do casaco. No despiu o casaco porque no queria ficar diferente da descrio dada s pessoas que viriam a seguir a ele. No queria ser morto pelo fogo dos seus. O tnel curvava alternadamente para a esquerda e para a direita durante uns cinquenta metros, fazendo com que Bosch comeasse a ficar baralhado com a direco em que seguia. A determinada altura, mergulhava por baixo de um cano de esgoto. Por vezes, Bosch conseguia ouvir o rugido do trnsito que fazia com que parecesse que o tnel estava a respirar. De nove em nove metros, havia uma vela a arder, colocada num nicho escavado na parede do tnel. Nos detritos pedregosos do fundo do tnel, procurou fios de armadilhas, mas s encontrou um rasto de sangue. Passados uns minutos de avano lento, apagou a lanterna e apoiou-se nos calcanhares para descansar e tentar controlar o barulho da respirao. Mas parecia que no conseguia introduzir ar suficiente nos pulmes. Fechou os olhos por uns instantes e quando os reabriu, apercebeu-se de que havia uma luz fraca que vinha da curva mais frente. A luz era demasiado firme para ser de uma vela. Comeou a avanar devagarinho, mantendo a lanterna apagada. Quando deu a volta curva, o tnel alargou-se. Era uma diviso. Suficientemente alta para se poder estar em p e suficientemente larga para l se poder viver, pensou ele, durante a escavao.

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A luz vinha de um candeeiro de querosone em cima de um frigorfico Igloo no canto de uma diviso subterrnea. Tambm havia dois colches enrolados e um fogo a gs Coleman porttil. Havia ainda uma sanita qumica porttil. Viu duas mscaras para gs e tambm duas mochilas com comida e equipamento dentro. E havia sacos de plstico com lixo. Era o acampamento, como aquele que Eleanor tinha presumido que tinha sido usado durante a escavao do tnel para a caixa-forte do WestLand. Bosch olhou para o equipamento e lembrou-se do aviso de Eleanor sobre a possibilidade de eles serem mais do que dois. Mas ela estava enganada. S havia duas coisas de tudo. O tnel continuava para o outro lado do quarto do acampamento, onde havia outro buraco com noventa centmetros de largura. Bosch desligou a chama do candeeiro para no ficar iluminado por trs e rastejou para dentro da passagem. Nas paredes deste no havia velas. Usou intermitentemente a lanterna, ligando-a para se orientar e depois rastejar uma pequena distncia no meio da escurido. De quando em quando parava, sustinha a respirao e escutava. Mas o barulho do trnsito parecia estar mais longe. E no ouvia mais nada. Uns quinze metros depois do acampamento o tnel chegava a um beco sem sada, mas Bosch viu um contorno circular no cho. Era um crculo de contraplacado tapado com uma camada de terra. Vinte anos atrs, ele ter-lhe-ia chamado um buraco de ratos. Recuou, agachou-se e estudou o crculo. No viu nenhum sinal que indicasse que fosse uma armadilha. Na verdade, ele no estava espera que fosse. Se os ladres tivessem armadilhado a abertura, teria sido para impedir a entrada e no a sada. Os explosivos teriam estado deste lado do crculo. Mesmo assim, tirou o canivete do

porta-chaves e passou a ponta, com todo o cuidado, pela borda do crculo e depois levantou-o cerca de um centmetro. Apontou a lanterna para a racha e no viu nem fios, nem quaisquer outras coisas presas do outro lado da placa de contraplacado. Levantou-a toda. No houve tiros. Rastejou para a borda do buraco e viu que havia outro tnel l em baixo. Deixou cair o brao com a lanterna l para dentro e acendeu-a. Girou-a de um lado para o outro e preparou-se para os tiros inevitveis. Mais uma vez, no houve nenhum. Viu que a passagem inferior era completamente redonda. Era de beto liso com algas escuras e um fio de gua no fundo da curva. Era uma conduta de escoamento das guas pluviais. Saltou pelo buraco e escorregou de imediato no lodo, caindo de costas. Endireitouse e, usando a lanterna, comeou procura de rastos

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no lodo escuro. No havia sangue, mas nas algas havia marcas de raspadelas que podiam ter sido feitas por ps que tentavam arranjar apoio. O fio de gua seguia na mesma direco das marcas. Nesta altura, j tinha perdido o sentido de orientao, mas pensava que estava a dirigir-se para norte. Desligou a lanterna e avanou lentamente durante seis metros antes de a voltar a acender. Quando o fez, viu que os rastos se confirmavam. Havia uma mancha de uma mo ensanguentada na parede curva do cano. Meio metro mais frente, havia outra. Franklin estava a perder sangue e foras muito rapidamente, calculou ele. Tinha parado ali para verificar o estado do ferimento. J no devia estar muito longe. Lentamente, tentando reduzir o barulho da respirao, Bosch foi avanando. O cano cheirava como uma toalha molhada e o ar estava suficientemente hmido para lhe deixar a pele coberta com uma fina capa de gua. O rudo do trnsito rugia de qualquer stio ali perto. Ouvia o barulho de sirenes. Sentiu que o cano estava a descer gradualmente e que essa inclinao que fazia com que a gua escorresse. Ele estava a descer cada vez mais para o interior da terra. Tinha cortes nos joelhos que sangravam e ardiam medida que ele escorregava e se arrastava pelo fundo. Ao fim de uns trinta metros, Bosch parou e acendeu a lanterna que continuava a segurar ao lado do corpo, mas afastada, com a arma preparada na outra mo. Mais adiante, na parede curva havia mais sangue. Quando desligou a lanterna, percebeu que havia uma mudana na escurido mais frente. Havia luz com um toque de madrugada. Podia ver que o tubo acabava, ou melhor, ligava a uma passagem onde havia uma luz fraca. Nessa altura, deu conta que conseguia ouvir gua. Uma grande quantidade de gua comparada com a que continuava a correr entre os joelhos dele. Parecia que, l mais frente, corria um rio. Moveu-se lenta e silenciosamente at luz fraca. O tubo onde ele estava agachado era uma abertura num dos lados de um comprido corredor. Estava num tributrio. Ao longo do cho do grande corredor, movia-se gua preta com um brilho de prata. Era um canal subterrneo. Olhando para ela, Bosch no conseguiu perceber se a gua tinha cinco centmetros ou um metro de profundidade. Pondo-se de ccoras borda dela, primeiro procurou ouvir outros sons que no fossem o suave marulhar da gua. No ouvindo nada, esticou devagarinho a parte superior do corpo para espreitar para o fundo da passagem. A gua corria para a esquerda dele. Primeiro olhou para 337 esse lado e conseguiu ver que o contorno esbatido da passagem de beto se curvava gradualmente para a direita. Havia algumas rstias de luz que se infiltravam a intervalos regulares de aberturas no tecto. Calculou que esta luz vinha dos buracos de drenagem abertos nos poos de inspeco nove metros acima. Era uma linha de uma rua principal, como diria Ed Gearson. Qual, Bosch no sabia e tambm j no estava interessado em saber. No havia nenhuma planta para ele poder seguir, para lhe dizer o que devia fazer. Virou-se para olhar na direco contrria corrente e enfiou imediatamente a cabea dentro do tubo como uma tartaruga. Encostada parede interior da passagem, estava uma figura escura. E Bosch tinha visto dois olhos cor de laranja a brilharem na escurido, olhando directamente para ele. Bosch no se mexeu e mal respirou durante quase um minuto. O suor escorria-lhe

para dentro dos olhos, fazendo-os arder. Fechou-os, mas no conseguiu ouvir mais nada a no ser o barulho da gua preta. Ento, devagarinho, voltou a aproximar-se da borda do tubo at conseguir voltar a ver o vulto escuro. No se tinha movido. Dois olhos, como os olhos estranhos de uma pessoa que olha directamente para o claro do flash de uma mquina fotogrfica, olhavam para Bosch. Meteu a lanterna de fora, virando-a naquela direco, e acendeu-a. Com a luz, viu Franklin cado de encontro parede; tinha a M-16 pendurada ao peito, mas as mos estavam tombadas na gua. A ponta da coronha tambm estava dentro de gua. Franklin trazia uma mscara que Bosch levou alguns segundos a perceber que no era uma mscara. O que ele tinha postos eram uns NVGs culos de viso nocturna. - Franklin, acabou-se! - gritou Bosch. - Sou polcia. Rende-te! No houve resposta e Bosch no estava espera que houvesse. Olhou mais uma vez para um lado e para o outro da linha principal e saltou para a gua. Esta apenas lhe cobria os tornozelos. Manteve a luz e a arma apontadas para a figura imvel, mas estava convencido de que no iria precisar da arma. Franklin estava morto. Bosch viu que o sangue ainda escorria de uma ferida no peito pela frente da T-shirt preta. Depois misturava-se com a gua e era levado. Bosch verificou o pescoo do homem procura da pulsao, mas no sentiu nenhuma. Meteu a arma no coldre e tirou a M-16 por cima da cabea do homem. A seguir, tirou os culos de viso nocturna do cadver e p-los. Olhou para um lado do corredor e depois para o outro. Era como se estivesse a olhar para uma velha televiso a preto e branco. Mas os brancos e os cinzentos tinham uma tonalidade amarelada. Ia levar algum tempo a adaptar-se, mas conseguia ver melhor o caminho com os culos e, por isso, deixou-se ficar com eles postos. Depois, passou revista aos bolsos das calas de campanha de Franklin. Encontrou fsforos e um mao de cigarros completamente encharcados. Havia um carregador de balas que Bosch enfiou na algibeira e uma folha de papel dobrada e molhada de onde escorria tinta azul. Bosch desdobrou-a cuidadosamente e viu que tinha sido um mapa desenhado mo. No havia nomes a identificar nada. Apenas linhas azuis esborratadas. Havia um quadrado quase no centro que Bosch interpretou como representando a caixa-forte. As linhas azuis eram os tneis de drenagem, revirou o mapa nas mos, mas o padro no lhe pareceu familiar. Uma linha que corria frente da caixa era a que estava desenhada com um trao mais carregado. Calculou que podia ser a Wilshire ou a Olympic. As linhas que intersectavam estas eram as das ruas perpendiculares Robertson, Doheny, Rexford e outras. Havia um emaranhado de mais linhas que continuavam para o lado da pgina. Depois um crculo com um X. O ponto de sada. Bosch decidiu que o mapa era intil, pois ele no sabia onde estava ou que direco que tinha seguido. Deitou-o para a gua e ficou a v-lo flutuar. Nesse preciso momento, decidiu que iria seguir o sentido da corrente. Uma escolha to boa como qualquer outra. Bosch chapinhou pela gua, movendo-se com a corrente, numa direco que pensava ser o oeste. A gua preta embatia contra a parede em pequenos remoinhos alaranjados. A gua cobria-lhe os tornozelos e enchia-lhe os sapatos, fazendo com que os seus passos fizessem barulho e fossem inseguros. Pensou em como Rourke tinha jogado to bem com aquilo tudo. No interessava que o jipe e os ATVs tivessem sido encontrados ao p da auto-estrada. Era tudo um engodo, uma armadilha. Rourke e os seus bandidos tinham mostrado o bvio e depois tinham feito o oposto. Rourke tinha convencido toda a gente a acreditar naquilo enquanto preparavam os planos de batalha na noite anterior. A equipa da SWAT estava l espera com uma recepo a que ningum ia assistir. Procurou sinais de rastos no corredor mas no encontrou nada. A gua levava com ela todas as hipteses disso. Havia marcas pintadas nas paredes, at mesmo graffitis dos bandos, mas tudo aquilo podia estar ali h anos. Olhou para tudo aquilo, mas no reconheceu nada como um sinal ou indicao de direces. Desta vez, Hansel e Gretel no tinham deixado nenhum rasto. Os barulhos do trnsito estavam a ficar mais fortes e havia mais luz. Bosch levantou os culos de viso nocturna e viu cones de luz azul que se infiltravam a cada trinta metros dos poos de inspeco e dos esgotos. Passado um bocado, chegou a uma

interseco e, enquanto a gua da sua linha colidia e saltava com a gua que vinha do outro canal, Bosch rastejou ao longo da parede lateral e, muito devagarinho, espreitou pela esquina. No viu nem ouviu ningum. No tinha nenhuma ideia de qual o caminho que devia seguir. Delgado podia ter seguido em qualquer das direces. Bosch resolveu seguir o novo corredor para a direita porque isso o levaria, pensava ele, para mais longe da armadilha da SWAT. No tinha dado mais de trs passos dentro do tnel novo quando ouviu uma voz vinda da frente a perguntar num murmrio: - Artie, vais conseguir? V l, despacha-te, Artie! Bosch estacou. A voz vinha de uns vinte metros mais frente. Mas ele no conseguia ver ningum. Sabia que tinham sido os culos da viso nocturna que ele trazia - os olhos cor de laranja - que o tinham impedido de cair numa emboscada. Mas o disfarce no ia durar muito. Se se aproximasse, Delgado iria perceber imediatamente que ele no era o Franklin. - Artie! - gritou a voz rouca outra vez. - Anda! - J vou - respondeu Bosch num sussurro. Deu um passo e, instintivamente, soube que no tinha resultado. Delgado sabia. Mergulhou para a frente levantando ao mesmo tempo a M-16. Bosch viu um remoinho de movimento frente e para a esquerda e depois viu o brilho da boca de uma arma. O barulho dos tiros no tnel de cimento foi ensurdecedor. Bosch ripostou e deixou o dedo no gatilho at ouvir o injector ficar sem balas. Tinha os ouvidos a retinir, mas conseguiu perceber que Delgado, ou quem quer que fosse que estava Ia frente, tambm tinha parado. Bosch ouviu-o carregar outra vez a arma e depois o barulho de ps a correr no cho seco. Harry levantou-se de um salto e correu, tirando o carregador vazio e substituindo-o pelo outro enquanto corria. Vinte e cinco metros depois, chegou a um cano tributrio. Tinha cerca de sete metros e meio de dimetro e Bosch teve de subir um degrau para entrar. Havia algas pretas no fundo, mas no havia gua. Cado no lodo, estava um carregador vazio de uma M-16. 338 Bosch estava no tnel certo, mas j no ouvia os passos de Delgado. Comeou a avanar rapidamente dentro do tnel. Havia uma ligeira subida e, passados cerca de trinta segundos, chegou a uma diviso que era uma encruzilhada iluminada sob uma grade de um esgoto. O cano continuava o seu caminho do outro lado desta diviso. Bosch no teve outro remdio seno continuar por ele, mas desta vez o cano descia gradualmente. Percorreu mais cinquenta metros antes de conseguir ver que a linha por onde seguia desembocava numa passagem mais larga uma linha principal. Conseguia ouvir a gua correr por cima da cabea. Bosch apercebeu-se demasiado tarde de que estava a mover-se demasiado depressa para conseguir parar. Quando se desequilibrou e escorregou nas algas em direco abertura, tornou-se claro que tinha vindo atrs de Delgado para cair numa armadilha. Bosch enterrou os calcanhares no lodo preto, num esforo intil para conseguir parar. Em vez disso, entrou no novo corredor com os ps frente e os braos a esbracejar para se equilibrar. Pareceu-lhe estranho, mas sentiu a bala enfiar-se-lhe no ombro antes de ouvir o barulho do disparo. Foi como se um gancho tivesse descido l de cima, se tivesse enfiado no ombro e depois o tivesse puxado para trs, levantando-o e largando-o no cho logo a seguir. Largou a arma e caiu de uma altura que lhe pareceu uns trinta metros. Mas claro que no era. O cho do corredor com os seus cinco centmetros de gua levantouse como uma parede de gua e atingiu-o na parte detrs da cabea. Os culos saltaram e ele ficou a ver, indolente e desinteressadamente, as fascas desenharem arcos por cima dele e as balas baterem na parede e ricochetearem . Quando voltou a si, parecia-lhe que tinha estado desmaiado durante horas, mas depressa percebeu que tinham sido apenas alguns segundos. O barulho dos tiros ainda ecoava pelo tnel. Sentiu o cheiro a cordite. Ouviu outra vez passos a correr. A afastarem-se, pensou ele. Esperou ele. Bosch rebolou na escurido e na gua e estendeu as mos para procurar a M-16 e os culos de viso nocturna. Desistiu passado um bocado e tentou sacar a sua

arma. O coldre estava vazio. Sentou-se e encostou-se parede. Percebeu que tinha a mo direita adormecida. A bala tinha-o atingido na articulao do ombro e o brao era percorrido por uma dor surda desde o ponto de impacto at mo morta. Sentia o sangue correr por baixo da camisa, pelo peito e pelo brao. Era um contraponto quente para a gua fria que lhe girava em volta das pernas e dos testculos. Deu conta que estava a arquejar e tentou regular a absoro de ar Estava a entrar em estado de choque e sabia-o. Mas no podia fazer nada. O barulho dos passos a afastarem-se parou. Bosch conteve a respirao e escutou. Por que que ele tinha parado? Estava livre. Bosch usou as pernas como tesouras ao longo do cho do tnel procura de uma das armas. No encontrou nada e estava demasiado escuro para ver onde que elas tinham cado. A lanterna tambm tinha desaparecido. Ento, ouviu uma voz, demasiado longe e demasiado abafada para poder ser identificada ou compreendida, mas algum estava a falar. E depois, ouviu uma segunda voz. Dois homens. De repente, a segunda voz tornou-se estridente, depois houve um tiro e depois outro. Tinha-se passado demasiado tempo entre os dois tiros, pensou Bosch. No tinha sido a M-16. Enquanto pensava no significado daquilo, ouviu outra vez o barulho de passos dentro de gua. Passado um bocado, percebeu que os passos na escurido vinham na direco dele. No havia nada de apressado nos passos que avanavam pela gua em direco a Bosch. Lentos, certos, metdicos, como os de uma noiva a caminhar pela nave da igreja. Bosch estava sentado encostado parede e voltou a varrer o fundo escorregadio com as pernas, na esperana de descobrir uma das armas. Tinham desaparecido. Ele estava fraco e cansado, indefeso. A dor surda no brao tinha aumentado para uma palpitao. A mo direita continuava totalmente incapacitada e ele estava a comprimir a esquerda contra a carne do ombro. Tremia violentamente, o corpo em estado de choque, e sabia que no tardaria a ficar inconsciente e que no voltaria a acordar. Agora Bosch conseguia ver o brilho de uma pequena lanterna que avanava pelo tnel em direco a ele. Olhava fixamente para ela com a boca aberta. Alguns dos controlos dos msculos j estavam a ceder. Passados curtos instantes, os passos ruidosos pararam frente dele e a luz ficou ali pendurada por cima da cabea dele como um Sol. Era apenas uma lapiseira lanterna, mas mesmo assim era ainda demasiado brilhante; no conseguia ver por trs dela. De qualquer das maneiras, sabia de quem era a cara que iria l estar, de quem era a mo que segurava a luz e o que estava na outra. - Diga-me - disse ele, num murmrio rouco. No se tinha apercebido de como tinha a garganta seca. - Isso e o seu ponteirinho fazem parte de algum conjunto? 342 Rourke baixou o feixe de luz at ele apontar para o cho. Bosch olhou em redor e viu a M-16 e a sua prpria arma ao lado uma da outra na gua ao p da parede contrria. Demasiado longe para lhes chegar. Reparou que Rourke, que vestia um fato macaco preto enfiado numas botas de borracha, tinha outra M-16 apontada para ele. - Voc matou o Delgado - disse Bosch. Uma afirmao, no uma pergunta. Rourke no falou. Sopesou a arma que tinha na mo. - Agora vai matar um polcia? essa a ideia? - a nica maneira de eu conseguir safar-me disto. A ideia que vai dar que, primeiro, o Delgado o despachou com isto. - levantou a M-16. - E depois eu matei-o a ele. Vou ser um heri. Bosch no sabia se devia dizer alguma coisa sobre Eleanor Wish. Podia pr a vida dela em perigo. Mas tambm podia salvar a vida dele. - Esquea, Rourke - acabou por dizer. - A Wish sabe. Contei-lhe. H uma carta no dossier do Meadows. Liga-o a tudo isto. Provavelmente, ela j contou a toda a gente l em cima. Desista agora e arranje-me ajuda. Vai ser melhor para si se me tirar daqui. Estou a entrar em choque, homem! Bosch no teve a certeza, mas julgou ter visto uma ligeira mudana na cara de Rourke, nos olhos dele. Continuavam abertos, mas era como tivessem parado de

ver, como se a nica coisa que ele estivesse a ver fosse o que estava dentro. Depois voltaram, olhando para Bosch sem simpatia, apenas desprezo. Bosch cravou os taces no limo e tentou erguer-se contra a parede para ficar de p. Mas mal se tinha movido uns centmetros, Rourke inclinou-se e empurrou-o para baixo com toda a facilidade. - Fique a, no se mexa, porra! Julga que o vou tirar daqui para fora? Calculo que nos tenha custado cinco, talvez seis milhes daquilo que o Tran tinha no cofre dele. Tinha de ser pelo menos isso. Voc fodeu o crime perfeito. No vai sair daqui. Bosch deixou cair a cabea, at ficar com o queixo encostado ao peito. Os olhos reviravam-se dentro das plpebras. Queria dormir, mas estava a lutar contra o sono com todas as suas foras. Gemeu, mas no disse nada. - Voc foi a nica coisa deixada ao acaso na porra do plano. E o que que aconteceu? O nico risco de alguma coisa correr mal, e corre. Voc a porra da Lei de Murphy em carne e osso, homem! Bosh conseguiu olhar para cima, para Rourke. Foi uma luta terrvel, depois, o brao so deixou de premir a ferida do ombro. J no tinha fora para o manter ali. - O qu? - conseguiu ele dizer. - O... o... que ... que quer dizer?... Acaso? - O que eu quero dizer coincidncia. Ser voc a receber aquela chamada por causa do Meadows. Isso no fazia parte do plano, Bosch. Acredita nesta merda? Pergunto-me quais so as probabilidades. Quero dizer, o Meadows metido num cano onde sabamos que j tinha dormido de outras vezes. Estamos a contar que ele s seja descoberto uns dois dias mais tarde e que depois leve uns dois, talvez at trs dias para que algum o consiga identificar atravs das impresses digitais. Entretanto, registado como um caso de overdose, uma insignificncia. O tipo tem um carto de drogado nos ficheiros. Por que no? - Mas o que que acontece? H este mido que comunica logo a porra do cadver abanou a cabea - , o homem perseguido - e quem que chamado? Um merda de um chui que at conhecia a porra do morto e que o identifica em dois segundos. Um idiota de um camarada dos tneis da porra do Vietname. Eu prprio no acredito nesta merda. - Lixou tudo com isso, Bosch. At a sua prpria vida miservel... Ei, ainda est aqui comigo? Bosch sentiu que lhe levantavam a cabea, a coronha da arma debaixo do queixo. - Ainda est comigo? - voltou Rourke a perguntar e depois espetou a coronha da arma no ombro direito de Bosch. Isto deu origem a uma onda de choque de uma dor de non vermelho que lhe desceu pelo brao, atravessou o peito e lhe chegou aos testculos. Gemeu e arquejou tentando respirar e depois avanou lentamente com a mo esquerda para a arma. No foi o suficiente. S agarrou ar. Engoliu um vmito e sentiu gotas de suor a escorrerem-lhe pelo cabelo molhado. - No est com muito bom aspecto, p - disse Rourke. - Estou c a pensar que se calhar nem vou precisar de fazer isto. Se calhar, o meu homem, o Delgado, arrumou o assunto com o primeiro tiro. A dor tinha feito com que Bosch voltasse a si. Pulsou por todo ele, deixando-o alerta, ainda que s temporariamente. Rourke continuava inclinado para cima dele e Bosch viu umas palas penduradas do peito e da cintura do fato macaco do agente do FBI. Bolsos. Trazia o fato vestido do avesso. Houve qualquer coisa que fez clique no crebro de Bosch. Lembrou-se de Sharkey dizer que tinha visto um cinto de ferramentas vazio volta da cintura do homem que enfiou o cadver no cano do reservatrio. Era o Rourke. Tambm trazia o fato macaco do avesso nessa 343 noite. Porque dizia FBI nas costas. No queria arriscar que algum visse. Era uma informaozinha que era completamente intil naquela altura, mas, por uma razo qualquer, Bosch sentiu-se satisfeito por conseguir encaixar esta pea do puzzle. - Ests a sorrir de qu, morto? - perguntou Rourke. - Vai-te foder. Rourke levantou o p e deu um pontap no ombro de Bosch, mas Bosch estava espera disso. Agarrou no calcanhar com a mo esquerda e empurrou para cima e para o lado. O outro p de Rourke escorregou na camada espessa de lodo e algas e desequilibrou-o. Caiu de costas fazendo a gua saltar para todos os lados. Mas no

deixou cair a arma como Bosh estava espera. E pronto. No havia mais nada a fazer. Bosch fez um esforo pouco convicto para agarrar a arma, mas Rourke tiroulhe os dedos da coronha com a maior das facilidades e empurrou-o outra vez contra a parede. Bosch inclinou-se para o lado e vomitou para a gua. Sentiu uma nova torrente de sangue a correr-lhe do ombro, e a descer pelo brao abaixo. Rourke levantou-se da gua. Aproximou-se e encostou a coronha da arma testa de Bosch. - Sabe, o Meadows costumava falar-me dessa histria. Dessa treta toda. Bem, Harry, aqui est voc. o fim. - Por que que ele morreu? - sussurrou Bosch. - O Meadows. Porqu? Rourke recuou e olhou para um lado e para o outro do tnel antes de responder. - Voc sabe porqu. Ele foi um falhado l, era um falhado c. Foi por isso que ele morreu. Rourke pareceu estar a rever mentalmente uma lembrana qualquer e abanou a cabea com desprezo. - Correu tudo perfeitamente, exceptuando ele. Ele guardou a pulseira. Uns golfinhozinhos de jade e ouro. - Rourke olhava fixamente para a escurido. Uma expresso melanclica desenhouse-lhe no rosto. - Foi s isso que ele tirou - disse ele. - Est a ver, o plano baseava-se numa total fidelidade para ser bem sucedido. O Meadows, raios o partam... ele no fez isso! Sacudiu a cabea, ainda zangado com o morto e calou-se. Foi nesse momento que Bosch julgou que conseguia ouvir o barulho de passos, algures, ainda ao longe. No tinha a certeza se tinha ouvido mesmo ou se era apenas o que ele esperava ouvir. Mexeu a perna esquerda dentro de gua. No o suficiente para fazer com que Rourke carregasse no gatilho, mas o suficiente para fazer com que a gua se agitasse e cobrisse o som dos passos. Se que eles existiam. - Ele ficou com a pulseira - disse Bosch. - Foi s isso? - Foi o suficiente - respondeu Rourke zangado. - No podia aparecer nada. No est a ver? Isso era a beleza da coisa. No iria aparecer nada. Livrvamo-nos de tudo, excepto dos diamantes. E esses iramos guard-los at termos tratado dos dois assaltos. Mas aquele idiota no conseguiu esperar at terminarmos o segundo trabalhinho. Rouba aquela pulseireca barata e pe-a no prego para comprar droga. Vi nos relatrios das lojas de penhores. Sim, depois do assalto ao WestLand, fomos ao Departamento da Polcia de Los Angeles e pedimos para eles nos mandarem as listas mensais dos penhores para tambm as podermos examinar. Comemos a receb-las no departamento. A nica razo porque dei pela pulseira e os vossos tipos no deram foi porque eu estava procura dela. A equipa dos penhores procura milhares de coisas. Eu s andava procura daquela nica coisa. Sabia que algum tinha ficado com ela. Havia uma data de coisas que foram dadas como roubadas daquela primeira caixa-forte que no estava nas merdas que ns trouxemos de l. Trafulhices com os seguros. Mas a pulseira dos golfinhos eu sabia que era verdade. Aquela velha senhora... a chorar. A histria por trs daquilo, com o marido e toda aquela merda do valor sentimental. Fui eu prprio que a entrevistei. E sabia que ela no estava a aldrabar. Por isso, percebi que um dos meus homens do tnel tinha ficado com ela. Mantm-no a falar, pensou Bosch. Ele continua a falar e tu acabas por te safar. Daqui para fora. Daqui para fora. Vem a algum, o meu brao est a doer. Riu-se no seu delrio e isso f-lo voltar a vomitar. Rourke limitou-se a continuar a falar. - Apostei no Meadows logo de incio. Quando um tipo se mete na agulha... sabe como . Por isso, quando a pulseira apareceu, foi o primeiro com quem fui ter. Rourke calou-se ento, perdido nos seus pensamentos e Bosch fez mais barulho na gua com os ps. Agora a gua parecia-lhe quente e era o sangue que lhe escorria pelo corpo que estava frio. Finalmente, Rourke disse: - Sabe, a verdade que no sei se o deva beijar ou mat-lo, Bosch. Voc custou-nos milhes neste golpe, mas tambm verdade que a minha parte do primeiro aumentou muito agora que os meus dois homens 344 morreram. Provavelmente, feitas bem as contas, at fico com o mesmo. Bosch no acreditava que conseguisse ficar acordado durante muito mais tempo.

Sentia-se cansado, indefeso e resignado. A capacidade de se manter alerta tinha desaparecido por completo. Mesmo agora, quando conseguiu levantar a mo e atir-la contra o ombro desfeito, no sentiu a dor. No conseguia voltar a sentir-se desperto. Deixou-se cair na contemplao da gua que se movia lentamente em redor das suas pernas. Estava to quente e ele estava to frio. S queria deitar-se e pux-la para cima de si como se fosse um cobertor. Queria dormir dentro dela. Mas uma voz, vinda de algures, disse-lhe para se aguentar. Pensou em Clarke agarrado garganta. O sangue. Olhou para o feixe de luz na mo de Rourke e fez mais uma tentativa. - Porqu este tempo todo? - perguntou numa voz que era pouco mais do que um sussurro. - Estes anos todos. O Tran e o Binh. Porqu agora? - No h resposta para isso, Bosch. s vezes as coisas encaixam todas. Como o cometa de Halley. Aparece de setenta em setenta anos, ou uma coisa assim. As coisas juntam-se. Eu ajudei-os a trazerem os diamantes para c. Preparei-lhes tudo. Fui bem pago e nunca achei o contrrio. E um dia, a semente plantada h todos esses anos saiu da terra, p. Estava ali para ser apanhada e, p, ns apanhmo-la. Eu apanhei-a! Foi por isso que foi agora. Um sorriso vanglorioso encheu a cara de Rourke. Voltou a apontar o cano da arma para um ponto na cara de Bosch. A nica coisa que Bosch podia fazer era olhar. - O meu tempo est a acabar, Bosch e o seu tambm. - Rourke agarrou a arma com as duas mos e afastou os ps largura dos ombros. Naquele momento final, Bosch fechou os olhos. Libertou a mente de todos os pensamentos excepto o da gua. To quente, como um cobertor. Ouviu dois tiros de espingarda, ecoando como troves pelo tnel de cimento armado. Lutou para abrir os olhos e viu Rourke encostado outra parede, com as duas mos no ar. Uma segurava a M-16, a outra a lapiseiralanterna. A arma caiu e bateu ruidosamente na gua, depois a lapiseira-lanterna. Oscilou na gua, a lmpada ainda acesa. Projectou um padro rodopiante no tecto e nas paredes do tnel enquanto se afastava vagarosamente com a corrente. Rourke no disse uma nica palavra. Deslizou pela parede abaixo, a olhar fixamente para a sua direita a direco de onde Bosch achava que os tiros tinham vindo e deixando um rasto de sangue que o ia acompanhando at abaixo. Na luz que se ia extinguindo, Bosch conseguiu ver a surpresa estampada na cara dele e depois uma expresso decidida nos olhos. Depressa se encontrava sentado, tal como Bosch, encostado parede, a gua a mover-se em redor das pernas, os olhos mortos j sem verem o que quer que fosse. Nessa altura as coisas ficaram todas desfocadas para Bosch. Queria fazer uma pergunta, mas no conseguia articular as palavras. Havia outra luz no tnel e pensou que ouvia uma voz, uma voz de mulher, a dizer-lhe que estava tudo bem. A seguir pensou que via a cara de Eleanor Wish a flutuar dentro e fora do foco. E depois ela desapareceu na escurido profunda. E, por fim, essa escurido foi tudo o que viu. PARTE VIII Domingo, 27 de Maio Bosch sonhava com a selva. Meadows estava l, assim como todos os outros soldados do lbum de fotografias de Harry. Estavam de p, em redor do buraco no fundo de uma trincheira coberta de folhas. Por cima deles, uma nvoa cinzenta agarrava-se ao topo da cpula da selva. O ar estava calmo e quente. Bosch tirava fotografias aos outros dois ratos com a sua mquina fotogrfica. Meadows ia descer para debaixo do cho, disse ele. Da luz para a escurido. Olhou para Bosch atravs da mquina fotogrfica e disse: - Lembra-te da promessa, Hieronymus. - Rima com annimos - disse Bosch. Mas antes de lhe poder dizer para no ir, Meadows saltou de ps para dentro do buraco e desapareceu. Bosch correu para a borda do buraco e olhou l para dentro mas no viu nada a no ser uma escurido to negra como breu. As caras ficavam focadas e depois voltavam a desaparecer na escurido. Havia Meadows, Rourke, Lewis e Clarke. Ouviu atrs de si uma voz que reconhecia, mas a quem no

conseguia atribuir um rosto. - Harry, v l homem. Preciso de falar contigo. Nesse momento, Bosch tornou-se consciente de uma dor intensa no ombro, que ia do cotovelo at ao pescoo. Algum lhe estava a bater na mo esquerda, a dar-lhe pancadinhas leves. Abriu os olhos. Era Jerry Edgar. - Ora bem, assim que - disse Edgar. - No tenho muito tempo. O tipo que est porta disse-me que eles devem estar a aparecer a qualquer momento. Alm disso, vai largar a guarda. Queria falar contigo antes dos chefes falarem. Teria c vindo ontem, mas isto estava inundado de gajos do FBI. Alm disso, ouvi dizer que estiveste quase todo o dia passado. Demasiado delirante. 348 Bosch limitava-se a olhar para ele. - Nestas coisas - continuou Edgar -, sempre ouvi dizer que melhor uma pessoa dizer que no se lembra de nada. Deixa-os dizer aquilo que quiserem. Quero dizer, quando apanhas um tiro, no h nenhuma maneira de saber se ests a mentir quando dizes que no te lembras. A mente fecha-se, p, quando h um insulto traumtico ao corpo. J li isso. Nesta altura, Bosch percebeu que estava num quarto de hospital e comeou a olhar para o que o rodeava. Reparou em cinco ou seis jarras de flores e o quarto tinha um cheiro adocicado e putrificado. Reparou tambm que tinha uns cintos para o imobilizarem volta do peito e da cintura. - Ests no MLK, Harry. Uhm, os mdicos dizem que vais ficar bom. Mas ainda tm de trabalhar um bom bocado nesse teu ombro. - Edgar baixou a voz para um murmrio. - Entrei socapa. Acho que as enfermeiras esto na mudana de turno ou assim. O polcia da porta, ele da patrulha de Wilshire, deixou-me entrar porque anda a vender e deve ter ouvido dizer que isso territrio meu. Disse-lhe que aceitava a listagem dele por dois pontos se ele me deixasse entrar durante cinco minutos. Bosch ainda no tinha falado. No tinha a certeza de ser capaz. Sentia-se como se estivesse a flutuar numa camada de ar. Tinha dificuldade em se concentrar nas palavras de Edgar. O que que ele queria dizer com aquilo dos pontos? E por que que ele estava no Martin Luther King-Drew Medicai Center ao p de Watts? A ltima coisa de que se lembrava era de estar em Beverly Hills. No tnel. O UCLA Med Center ou o Cedars teriam sido mais perto. - Seja como for - estava Edgar a dizer -, s estou a tentar contar-te o que se passa, aquilo que possvel, antes que os finrios c cheguem e comecem a foder-te a cabea. O Rourke est morto. O Lewis est morto. O Clarke est mal, est na mquina e ouvi dizer que s o esto a aguentar por causa dos seus rgos. Mal consigam ter toda a gente que precisa deles a postos, desligam o interruptor. Como que te sentirias se acabasses com o corao, ou o olho ou outra coisa qualquer daquele imbecil. Bem, como eu j disse, deves safar-te disto sem problemas. De qualquer das maneiras, com um brao desses, podes conseguir os teus oitenta por cento, sem te perguntarem nada. Em servio. Tens o futuro garantido. Sorriu para Bosch que se limitou a olhar para ele sem a menor expresso. A garganta de Harry estava seca e rachada quando, por fim tentou falar.

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- MLK? Saiu um bocado fraquinho, mas percebia-se. Edgar encheu uma chvena com gua de um jarro em cima da mesa de cabeceira e entregou-lho. Bosch desapertou as fivelas dos cintos, sentou-se e bebeu, sentindo imediatamente uma onda de nusea. Edgar no deu por nada. - um clube para as facas e as armas de fogo, p. para aqui que trazem os tipos dos bandos depois das rusgas. No h melhor stio no pas para se ir com um ferimento de bala, e muito menos aqueles doutores todos finrios l do UCLA. Aqui que treinam os mdicos militares. Para eles poderem estar preparados para os feridos de guerra. Trouxeram-te de helicptero. - Que horas so? - Passa um bocadinho das sete, domingo de manh. Perdeste um dia. Nessa altura, Bosch lembrou-se de Eleanor. Era ela que estava no tnel quando fora

o fim? O que que lhe tinha acontecido? Edgar pareceu ler-lhe os pensamentos. Ultimamente, toda a gente lhe andava a fazer isso. - A senhora tua colega est ptima. Tu e ela esto na ribalta, meu, so uns heris. Heris. Bosch pensou naquilo. Passado um bocado, Edgar disse: - Tenho de me raspar. Se souberem que falei contigo, despacham-me para Newton. Bosch assentiu com a cabea. A maior parte dos polcias no se importaria de prestar servio na Diviso de Newton. Tinham aco durante as vinte e quatro horas do dia. Mas no era o caso de Jerry Edgar, agente imobilirio. -Quem que vem? - Os tipos do costume, acho eu. O Departamento dos Assuntos Internos, o dos Tiroteios Envolvendo Agentes. O FBI tambm vai estar. Bev Hills, tambm. Acho que toda a gente ainda est a tentar perceber que porra que aconteceu l em baixo. E s te tm a ti mais Wish para lhes contarem. Provavelmente, vo querer garantir que vocs os dois contam a mesma histria. E por isso que eu te estou a dizer dizlhes que no te lembras de nada. Ests ferido, p. s um agente ferido. Em servio. Tens o direito de no te lembrares do que aconteceu. - O que que tu sabes do que aconteceu? - O departamento no abre a boca. Nem sequer se ouvem boatos sobre isto. Quando ouvi dizer que aquilo tinha ido abaixo, fui l e o

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Pounds j l estava. Viu-me e ordenou-me que me fosse embora. O filho da puta do Noventa e Oito, o gajo no me quis dizer a ponta de um corno. Por isso, s sei o que vem na imprensa. A carga de aldrabices do costume. Ontem noite a TV no sabia pevas. O Times esta manh tambm no tinha grande coisa. O departamento e o FBI, bem eles parecem que se puseram de acordo para fazer de toda a gente soldados destemidos. - Toda a gente? - Sim. O Rourke, o Lewis, o Clarke... todos eles tombaram no cumprimento do dever. - A Wish disse essas coisas? - No. Ela no est na histria. Quer dizer, no citada. Calculo que a vo guardar assim que a modos que em segredo at terem terminado a investigao. - Qual a histria oficial? - O Times conta que o departamento diz que o Lewis e o Clarke e tu faziam parte da equipa de vigilncia que o FBI tinha montado caixa-forte. Ora, eu sei que isso uma mentira porque tu nunca terias deixado aqueles dois palhaos aproximarem-se um centmetro sequer de uma operao tua. Alm disso, eles so dos Assuntos Internos. Acho que o Times tambm acha que h qualquer coisa nesta histria que cheira mal. Aquele tipo que tu conheces, o Bremmer, telefonou-me ontem para ver o que que eu tinha ouvido. Mas eu no abri bico. Se o meu nome aparecer no jornal por causa disto, ainda me acontece pior do que Newton. Se que existe alguma coisa pior. - Pois - disse Bosch. Afastou os olhos do antigo companheiro e ficou imediatamente deprimido. At parecia que o brao tinha comeado a latejar mais intensamente. - Olha, Harry - disse Edgar, meio minuto depois. - melhor eu pr-me a andar. No sei quando que eles vo aparecer, mas vo, p. Tem cuidado e faz como eu te disse. Amnsia. Depois aceita os oitenta por cento de incapacidade por cumprimento do dever e manda-os a merda. Edgar apontou com um dedo para a testa e acenou com a cabea. Harry assentiu destraidamente e Edgar foi-se embora. Bosch conseguiu ver um polcia fardado sentado numa cadeira do lado de fora da porta. Passado um bocado, Bosch agarrou no telefone que estava preso a grade ao longo da cama. No conseguiu ouvir o sinal de marcar, por isso,

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carregou no boto para chamar a enfermeira e alguns minutos depois apareceu uma enfermeira que o informou que o telefone estava desligado, por ordem do Departamento da Polcia de Los Angeles. Pediu um jornal e ela abanou a cabea. A mesma coisa.

Ficou ainda mais deprimido. Sabia que tanto o Departamento da polcia de L.A. como o FBI tinham de enfrentar problemas de relaes pblicas enormes com o que se tinha passado, mas no conseguia ver como seria possvel encobri-lo. Demasiadas agncias. Demasiadas pessoas. Nunca conseguiriam abafar aquilo. Seria possvel que fossem to estpidos que estivessem a tentar faz-lo? Desapertou a correia em volta do peito e tentou sentar-se. Ficou tonto e o brao gritou-lhe para o deixar em paz. Sentiu-se dominado por uma nusea e agarrou num recipiente de ao inoxidvel que estava na mesa-de-cabeceira. A sensao abrandou. Mas fez-lhe soltar uma recordao de estar no tnel com o Rourke na manh anterior. Comeou a lembrar-se de bocados da conversa de Rourke. Tentou encaixar as informaes novas com o que j sabia. Depois, pensou nos diamantes o esplio escondido do trabalhinho do WestLand - e se j teriam sido encontrados. Onde? Por muito que ele tivesse acabado por admirar a concepo do crime, no conseguia forar-se a admirar o seu autor. Rourke. Bosch sentiu a fadiga apoderar-se dele como uma nuvem a cobrir o Sol. Deixou-se cair outra vez contra a almofada. E a ltima coisa em que pensou antes de adormecer foi naquilo que Rourke tinha dito no tnel. Aquela parte sobre ir receber um quinho maior porque Franklin, Delgado e Meadows estavam mortos. Foi ento que Bosch, enquanto deslizava para dentro do buraco negro da selva para onde Meadows tinha saltado antes, se deu conta de todo o significado daquilo que Rourke dissera. O homem sentado na cadeira das visitas trazia um fato s risquinhas de 800 dlares, botes de punho de ouro e um anel com uma pedra nix rosada. Mas no era um disfarce. - Departamento dos Assuntos Internos, certo? - perguntou Bosch com um bocejo. Acordei de um sonho para um pesadelo. O homem sobressaltou-se. No tinha reparado que Bosch tinha aberto os olhos. Levantou-se e saiu do quarto do hospital sem dizer uma palavra. Bosch voltou a bocejar e olhou em volta do quarto procura de um relgio. No havia nenhum. Voltou a soltar o cinto do peito e tentou sentar-se. Desta vez, estava muito melhor. No houve tonturas. No 353 houve agonias. Olhou para os arranjos florais em cima do parapeito da janela e da cmoda. Pareceu-lhe que o nmero delas era capaz de ter aumentado enquanto ele estava a dormir. Perguntou para consigo se haveria algumas de Eleanor. Ela teria vindo v-lo? Provavelmente, eles no a deixavam. Um minuto depois, o Fato das Riscas voltou com um gravador na mo frente de uma procisso de quatro outros homens de fato completo. Um era o tenente Bill Haley, chefe da brigada dos Tiroteios Envolvendo Agentes do Departamento da Polcia de Los Angeles e outro era o subchefe Irvin Irving, o responsvel pelo Departamento dos Assuntos Internos. Bosch calculou que os outros dois fossem do FBI. - Se soubesse que tinha tantos fatos minha espera, tinha posto o despertador disse Bosch. - Mas no me deram nem um relgio despertador, nem um telefone que funcione, uma TV ou um jornal. - Bosch, voc sabe quem eu sou - disse Irving, e apontou com a mo para os outros. - E conhece o Haley. Este o agente Stone e este o agente Folsom, do FBI. Irving olhou para o Fato s Riscas e apontou com a cabea para a mesa-decabeceira. O homem avanou e colocou o gravador em cima da mesa, ps o dedo no boto para gravar e olhou para Irving. Bosch olhou para ele e disse: - Voc no tem direito a uma apresentao? O Fato s Riscas ignorou-o, como alis todos os outros. - Bosch quero fazer isto depressa e sem ter de aturar o seu humor peculiar - disse Irving. Contraiu os impressionantes msculos da queixada e fez sinal com a cabea ao Fato s Riscas. O gravador foi ligado. Irving disse a data, o dia e a hora num tom seco. Eram onze e trinta da manh. Bosch s tinha dormido algumas horas. Mas sentia-se muito mais forte do que quando Edgar l estivera. Irving acrescentou os nomes dos presentes no quarto, dando desta vez um nome ao Fato s Riscas. Clifford Galvin, Jr. O mesmo nome, menos a parte do jnior, do do

outro subchefe do departamento. O Jnior estava a ser apadrinhado e condenado, pensou Bosch. J estava na faixa rpida, sob a asa do Irving. - Vamos fazer isto do princpio - disse Irving. - Detective Bosch comece por nos contar tudo sobre este assunto desde o momento em que se meteu nele. - Tm uns dois dias? 354 Irving encaminhou-se para o gravador e carregou no boto da pausa. - Bosch - disse ele -, todos ns sabemos que voc um tipo muito esperto. Mas hoje no vamos ouvir as suas graas. S parei o gravador desta vez. Se o tornar a fazer, terei o seu distintivo num bloco de vidro na tera-feira de manh. E isso s porque amanh feriado. E no pense numa penso por incapacidade no cumprimento do dever. Tratarei de conseguir que receba oitenta por cento de nada. Ele estava a referir-se prtica do departamento de proibir que um polcia reformado pudesse ficar com o seu distintivo. O director e o concelho municipal no gostavam da ideia de que algumas das antigas figuras importantes da cidade pudessem andar a passear pela cidade a exibir distintivos. Extorses, refeies borla, bilhetes borla, era um escndalo que eles conseguiam prever a centenas de quilmetros de distncia. Por isso, se a pessoa queria levar o distintivo consigo, podia faz-lo: elegantemente montado num bloco de plstico transparente com um relgio decorativo. Tinha cerca de dez centmetros quadrados. Demasiado grande para caber num bolso. Irving fez sinal com a cabea e o Jnior carregou outra vez no boto. Bosch contou tudo como tinha sido, no deixando nada de fora e parando apenas quando o Jnior precisou de virar a cassete. Fizeram-lhe uma ou duas perguntas, mas, praticamente deixaram-no falar sem o interromperem. Irving quis saber o que que Bosch tinha deitado fora no cais de Malibu. Bosch j mal se lembrava. Ningum tomou notas. Limitaram-se a olhar para ele enquanto ele contava tudo. Finalmente, ao fim de uma hora e meia, Bosch acabou de contar a histria. Irving olhou para o Jnior e fez sinal com a cabea. O Jnior desligou o gravador. Quando eles j tinham acabado as perguntas, Bosch comeou com as dele. - O que que encontraram em casa do Rourke? - Isso no da sua conta - respondeu-lhe Irving. . - O tanas que no ! Faz parte da investigao de um homicdio. O Rourke era o assassino. Ele confessou-me. - A sua investigao foi transferida para outra pessoa. Bosch no disse nada porque a raiva subiu e apertou-lhe a garganta. Olhou em volta do quarto e reparou que nenhum dos outros, nem mesmo o Jnior, olhava para ele. Irving disse: - Bem, agora antes de comear a andar por a a dar com a lngua nos dentes acerca de colegas mortos no cumprimento do dever, eu teria o cuidado de ver se conhecia os factos todos. E teria o cuidado de me certificar que tinha provas que corroborassem esses factos. No queremos que se comecem a espalhar boatos sobre homens bons. Bosch no conseguiu conter-se. - Acredita mesmo que vo conseguir safar-se com isso? E os seus dois parvalhes? Como que vai explicar isso? Primeiro, pem um microfone em minha casa, depois metem-se toa na merda de uma vigilncia e so mortos a tiro. E quer fazer deles heris. A quem que quer enganar? - Detective Bosch, j foi explicado. Isso no um assunto que lhe diga respeito. E tambm no lhe cabe contradizer as declaraes pblicas do departamento da polcia ou do FBI sobre este assunto. Isto, detective, uma ordem. Se falar imprensa sobre isto, ser a ltima vez que o far como detective da polcia de Los Angeles. Agora era Bosch que no conseguia olhar para eles. Olhou para as flores em cima da mesa e perguntou: - Ento para que que serviram a gravao, as declaraes, toda esta gente importante aqui consigo? Qual a utilidade disto se o senhor no quer saber a verdade? - Ns queremos a verdade, detective. Voc est a confundir isso com aquilo que

escolhemos dizer ao pblico. Mas, longe dos olhares do pblico, garanto-lhe que vamos completar a sua investigao e tomar as medidas apropriadas. - Isso pattico. - Tambm voc o , detective. Tambm voc. - Irving inclinou-se por cima da cama com a cara suficientemente perto para que Bosch conseguisse sentir o cheiro do hlito azedo. - Esta uma daquelas raras ocasies em que tem o seu futuro nas suas prprias mos, detective Bosch. Faa o que correcto e talvez volte para a Diviso dos Assaltos e Homicdios. Ou pode agarrar naquele telefone - sim, vou mandar a enfermeira lig-lo - e ligar para os seus amigalhaos daquele pasquim da Spring Street. Mas se o fizer, melhor perguntar-lhes se h possibilidade de um exdetective dos homicdios fazer l carreira. Os cinco saram ento do quarto, deixando Bosch sozinho com a sua raiva. Ele levantou-se na cama e estava pronto para atirar com o brao bom de encontro a uma jarra de margaridas em cima da mesa de cabeceira, quando a porta se abriu e Irving voltou a entrar. Sozinho. Sem gravador de cassetes. - Detective Bosch, isto no oficial. Disse aos outros que me tinha esquecido de lhe entregar isto. Tirou um carto do bolso do casaco e p-lo em p no peitoril da janela. Na parte da frente estava uma mulher-polcia com um grande peito e a camisa do uniforme desapertada at cintura. Estava a bater impacientemente com o cassetete na mo. Um balo que lhe saa da boca dizia Fica Bom Depressa Ou... Bosch teria de ler a parte de dentro para perceber a piada. - No me esqueci. S queria dar-lhe uma palavra em particular. - Ficou calado aos ps da cama at Bosch fazer um gesto de assentimento com a cabea. - Voc bom naquilo que faz, detective Bosch. Toda a gente sabe isso. Mas isso no quer dizer que seja um bom agente da polcia. Recusa-se a fazer parte da Famlia. E isso no bom. E, entretanto, est a ver, eu tenho de proteger este departamento. Para mim, isso o trabalho mais importante do mundo. E uma das melhores maneiras de fazer isso controlar a opinio pblica. Manter toda a gente feliz. Por isso, se isso significar fazer um par de simpticos comunicados imprensa e arranjar dois funerais em grande com o Presidente da Cmara, as cmaras de televiso e todos os chefes presentes, isso mesmo que faremos. A proteco deste departamento mais importante do que o facto de dois polcias estpidos terem feito asneira. E acontece o mesmo com o Departamento Federal de Investigao. Eles fazem-no em picadinho antes de se flagelarem publicamente com o Rourke. Por isso, aquilo que lhe estou a dizer que a nica regra que existe diz que voc tem de alinhar connosco. - Isso uma treta e o senhor sabe-o muito bem. - No, no sei. E l bem no fundo, voc tambm no. Deixe-me perguntar-lhe uma coisa. Por que que, na sua opinio, o Lewis e o Clarke foram mandados parar quando da investigao do caso Dollmaker? Quem que voc julga que lhes puxou as rdeas? Quando Bosch no respondeu, Irving assentiu com a cabea. - Est a ver, ns tivemos que tomar uma deciso. Seria melhor ver um dos nossos detectives arrastado pelos jornais e levado a tribunal, ou que ele fosse despromovido e transferido sem alarido? Deixou a pergunta no ar durante uns segundos antes de continuar. - Mais uma coisa. O Lewis e o Clarke vieram ter comigo na semana passada com a histria daquilo que voc lhes fez. Algem-los quela rvore. Muito brutal, foi muito brutal aquilo. Mas eles estavam to felizes como um par de chefes

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de claque depois de uma noite com a equipa de futebol. Tinham-no preso pelos tomates e estavam prontos para meter o papel naquele preciso momento. - Eles tinham-me preso, mas eu tambm os tinha. - No. isso que eu lhe estou a dizer. Eles vieram ter comigo com esta histria do microfone no telefone, aquilo que voc lhes disse. Mas a verdade que eles no tinham posto nenhum microfone no seu telefone, como voc julgava. Eu verifiquei. isso que eu lhe estou a dizer. Eles tinham-no bem lixado.

- Ento, quem...? Bosch calou-se de imediato. Sabia qual era a resposta. - Eu disse-lhes para aguentarem uns dias. Para observarem, para verem o que que acontecia. Estava a passar-se qualquer coisa. Era sempre muito difcil puxar as rdeas queles dois homens quando se tratava de si. Eles pisaram o risco, excederam-se quando decidiram interpelar aquele sujeito, o Avery, e depois quando lhe disseram para os levar caixa-forte. Pagaram o preo. - E quanto ao FBI? O que que eles dizem sobre o microfone? - No sei e no vou perguntar. Se o fizesse, eles responderiam: Qual microfone? Voc sabe isso to bem como eu. Bosch assentiu, sentindo-se imediatamente farto do homem. Havia um pensamento que estava a tentar entrar-lhe na cabea e que ele no queria deixar entrar. Desviou os olhos de Irving e olhou para a janela. Irving voltou a dizer-lhe para pensar no departamento antes de fazer fosse o que fosse e foi-se embora. Quando teve a certeza que Irving j tinha chegado ao fundo do corredor, Bosch brandiu o brao atirando com a jarra das margaridas ao cho e fazendo-a rebolar at ao canto do quarto. A jarra era de plstico e no se partiu. O nico estrago foi a gua entornada e as flores espalhadas. A cara de fuinha de Galvin Jnior entrou e saiu do quarto. Ele no disse nada, mas foi uma indicao para Bosch de que o homem dos Assuntos Internos estava a postos no corredor. Era para o proteger a ele? Ou ao departamento? Bosch no sabia. J no sabia nada. Bosch empurrou para o lado um tabuleiro com uma refeio institucional, em que no tocara, de rolo de peru com molho de farinha, milho, inhame, um pozinho duro, que era suposto ser macio, e um bolinho de morangos com chantilly deslaado. - Se comeres isso, s capaz de nunca mais de c sares.

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Levantou os olhos. Era Eleanor. Estava parada na porta aberta, a sorrir. Ele retribuiu o sorriso. No conseguiu evit-lo. - Eu sei. - Como que ests, Harry? - OK. Vou ficar bem. Posso nunca mais poder voltar a fazer flexes, mas conseguirei sobreviver com isso. Como ests, Eleanor? - Estou bem - respondeu ela e o seu sorriso cortou-lhe o corao. - Fizeram-te passar pela Veg-O-Matic hoje? - Oh, sim. s fatias e aos quadradinhos. Os melhores e os mais inteligentes do meu belo departamento mais um par dos teus amigos estiveram a torturar-me toda a manh. H uma cadeira deste lado. Ela deu volta cama, mas continuou de p ao lado da cadeira. Olhou em volta e uma leve ruga franziu-lhe a testa, como se ela conhecesse o quarto e por isso soubesse que havia qualquer coisa que no estava bem. - Tambm me fizeram o mesmo. Ontem noite. No me quiseram deixar vir ter contigo at te terem interrogado. Ordens, no queriam que combinssemos a histria. Mas acho que as nossas histrias saram bem. Pelo menos, no voltaram a interrogar-me depois de terem falado contigo. Disseram-me que no era preciso mais nada. - Encontraram os diamantes? - No, pelo menos que eu saiba, mas eles j no me contam grande coisa. Hoje tinham duas equipas a trabalhar nisso, mas eu j estou fora. Fui posta secretria at isto acalmar e a equipa que trata dos tiroteios cabe o trabalho. Provavelmente, ainda esto em casa do Rourke. - E quanto ao Tran e ao Binh? Esto a colaborar? - No. Recusam-se a dizer uma palavra que seja. Sei isso atravs de um amigo que esteve no interrogatrio. No sabem nada sobre diamantes nenhuns. Provavelmente, organizaram a malta deles, tipo destacamento armado. Tambm se vo juntar caa do tesouro. - Onde que pensas que o tesouro possa estar? - No fao a mnima ideia. Esta coisa toda, Harry, deu conta de mim. J no sei o que pensar de nada.

E isso inclua o que ela pensava dele, sabia ele. No disse nada e passado um bocado o silncio tornou-se desconfortvel. - O que que aconteceu, Eleanor? O Irving disse-me que o Lewis o Clarke interceptaram o Avery. Mas a nica coisa que sei. No compreendo.

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- Eles viram-nos a vigiar a caixa-forte durante toda a noite. Devem ter metido nas cabeas que ramos vigias. Se partisses da assuno de que eras um polcia sujo, como eles fizeram, eras capaz de ter chegado mesma concluso. Por isso, quando te viram afastar o Avery e mandar os polcias fardados para casa, imaginaram que sabiam qual era o teu jogo. Agarram o Avery no Darlingos e ele conta-lhes da tua visita no dia anterior e dos alarmes todos desta semana e depois deixa escapar que tu no quiseste que ele abrisse a caixa-forte. - E eles perguntaram: Quer dizer que o senhor pode abrir a caixa-forte? e l vo eles, esgueirando-se pelo beco. - Pois. Eles tinham essa mania de quererem ser heris. Apanhar ao mesmo tempo os polcias sujos e os ladres. Um belo plano at ao ajuste de contas. - Coitados dos estpidos parvalhes. - Coitados dos estpidos parvalhes. O silncio voltou, mas desta vez Eleanor no esperou que ele se instalasse. - Bem, s queria ver como que estavas. Ele assentiu. - E... e dizer-te... Aqui est, pensou ele, o beijo de despedida. - .. .que decidi desistir. Vou deixar o FBI. - E quanto ao... O que que vais fazer? - No sei. Mas tenho que me ir embora daqui, Harry. Tenho algum dinheiro, por isso, vou viajar durante algum tempo e depois logo vejo o que quero fazer. - Eleanor, porqu? - Eu no... difcil explicar. Mas tudo o que aconteceu. Tudo neste trabalho se transformou em merda. E acho que no vou ser capaz de voltar a trabalhar naquela sala depois de tudo o que aconteceu. - Mas voltas para Los Angeles? Ela olhou para as mos e depois voltou a olhar em volta do quarto. - No sei, Harry. Desculpa. Parecia que... No sei, neste momento estou muito confusa em relao s coisas. - Quais coisas? - No sei. Ns. Aquilo que aconteceu. Tudo. O silncio voltou a encher o quarto e parecia to alto que Bosch s esperava que uma enfermeira ou at mesmo Galvin Jnior metessem a cabea l dentro para verem se estava tudo bem. Precisava desesperadamente de um cigarro. Deu conta de que era a primeira vez naquele dia 360 que pensava em fumar. Agora, Eleanor olhava para os ps e ele olhava para o tabuleiro da comida. Agarrou no po e comeou a atir-lo ao ar e a apanh-lo como se fosse uma bola de basebol. Passado um bocado, os olhos de Eleanor fizeram a sua terceira viagem volta do quarto sem verem fosse l o que fosse de que ela andava procura. Bosch no conseguia perceber. - No recebeste as flores que eu te mandei? - Flores? - Sim, mandei-te margaridas. Como as que crescem na colina por baixo da tua casa. No as vejo aqui. Margaridas, pensou Bosch. A jarra que ele tinha atirado de encontro parede. Onde esto os malditos dos meus cigarros, queria ele gritar. - Provavelmente, trazem-nas mais tarde. Aqui, s fazem entregas uma vez por dia. Ela franziu a testa. - Sabes - disse Bosch -, se o Rourke sabia que tnhamos encontrado a segunda caixa-forte e a estvamos a vigiar e se sabia que ns tnhamos visto o Tran entrar e limpar o cofre dele, por que que ele no mandou os homens dele sarem? Isso o que me est a incomodar a srio nesta coisa toda. Por que que ele continuou com

o plano? Ela abanou a cabea devagarinho. - No sei. Talvez... bem, tenho andado a pensar que talvez ele quisesse que eles fossem mortos. Ele conhecia aqueles tipos, se calhar ele sabia que a coisa iria resultar, que eles iriam morrer a disparar, que sem eles ele ficaria com todos os diamantes da primeira caixa-forte. - Sim. Mas sabes, tenho estado a lembrar-me de coisas durante todo o dia. De quando l estvamos em baixo. Tem-me estado a voltar memria e lembro-me que ele no disse que ia ficar com tudo. Disse qualquer coisa sobre a sua parte ser maior agora que o Meadows e os outros dois estavam mortos. Ele continuou a usar a palavra parte, como se ainda houvesse algum com quem dividir. Ela ergueu as sobrancelhas. - Talvez, mas isso s uma questo de semntica, Harry. - Talvez. - Tenho de me ir embora. Sabes quanto tempo que te vo fazer ficar aqui? - No me disseram, mas penso que amanh dou alta a mim mesmo. Estou a pensar em ir ao funeral do Meadows nos veteranos. - Um funeral no Memorial Day. Parece-me apropriado. - Queres vir comigo? - Mmmm, no. No me parece que queira ter mais alguma coisa a ver com Mr Meadows... mas vou estar no departamento amanh. A limpar a minha secretria e a escrever relatrios do estado dos casos que vou ter de passar aos outros agentes. Podes passar por l, se quiseres. Fao-te caf, como da outra vez. Mas, sabes, no acredito que te vo deixar sair to depressa, Harry. No com um ferimento de bala. Precisas de descansar. De sarar um bocadinho. - Claro - disse Bosch. Ele sabia que ela lhe estava a dizer adeus. - OK, ento, talvez a gente se volta a ver. Ela inclinou-se e deu-lhe um beijo de adeus e ele sabia que era um adeus a tudo o que tinha existido entre eles. Ela j quase tinha passado a porta quando ele abriu os olhos. - S uma ltima coisa - disse ele e ela voltou-se e olhou para ele. - Como que me encontraste, Eleanor? Sabes, nos tneis com o Rourke. Ela ergueu as sobrancelhas outra vez. - Bem, eu desci com o Hanlon. Mas quando samos do tnel escavado mo, separmo-nos. Ele foi para um lado naquela primeira linha e eu fui para o outro. Escolhi a certa. Encontrei o sangue. Depois encontrei o Franklin. Morto. E depois disso, foi um bocadinho de sorte. Ouvi os tiros e depois as vozes. Quase s a voz do Rourke. Fui atrs. Por que que te lembraste disso agora? - No sei. Apareceu-me de repente. Salvaste-me a vida. Olharam um para o outro. A mo dela estava no puxador da porta e esta estava aberta apenas o suficiente para permitir que Bosch conseguisse olhar para l dela e ver que Galvin Jnior ainda ali estava, sentado numa cadeira do corredor. - A nica coisa que posso dizer obrigado. Ela fez um som como se estivesse a mand-lo calar, rejeitando a gratido dele. - No precisas de dizer nada. - No te demitas. Ele viu a abertura da porta desaparecer e com ela o Jnior. Ela ficou ali parada, em silncio. - No te vs embora. - Tenho de ir. At depois, Harry. Abriu a porta outra vez, desta vez toda. - Adeus, Harry - disse ela e desapareceu. 361 Bosch permaneceu sem se mexer, deitado na cama do hospital durante mais de uma hora. Estava a pensar em duas pessoas: Eleanor Wish e John Rourke. Durante muito tempo, fechou os olhos e concentrou-se na expresso da cara de Rourke quando se foi abaixo e caiu na gua preta. Eu tambm ficaria surpreendido, pensou Bosch, mas tambm havia outra coisa l, qualquer coisa que ele no conseguia identificar. Uma espcie de olhar conhecedor, de reconhecimento e de resoluo no de que estava a morrer, mas de um outro conhecimento secreto.

Passado um bocado, levantou-se e deu alguns passos hesitantes volta da cama. Sentia o corpo fraco, mas todo o sono daquelas ltimas trinta e seis horas tinhamno feito ficar agitado. Depois de se ter conseguido orientar e dos seus ombros terem feito uma adaptao dolorosa gravidade, comeou a andar para a frente e para trs ao lado da cama. Vestia um pijama verde-claro do hospital e no uma daquelas batas abertas atrs que teria achado humilhante. Passarinhou pelo quarto de ps descalos, parando para ler os cartes que tinham vindo com as flores. A liga protectora tinha mandado uma das jarras. As outras tinham vindo de dois polcias que ele conhecia, mas de quem no era particularmente chegado, da viva de um antigo parceiro, do seu advogado do sindicato e de um outro antigo parceiro que vivia em Ensenada. Afastou-se das flores e encaminhou-se para a porta. Abriu-a uma nesga e viu Galvin Jnior ainda l sentado a ler um catlogo de equipamento da polcia. Bosch abriu a porta toda. A cabea de Galvin deu um salto e ele fechou a revista de supeto e enfiou-a numa pasta que tinha junto dos ps. No disse nada. - Ento, Clifford, espero poder trat-lo assim, o que que est a fazer aqui? Acham que corro perigo? O polcia mais novo no disse nada. Bosch olhou para um lado e para o outro do corredor e viu que estava completamente deserto at divisria das enfermeiras ao fundo do corredor a uns quinze metros de distncia. Olhou para a porta do seu quarto e viu que estava no nmero 313. - Detective, por favor, volte para o seu quarto - acabou Galvin por dizer. - S aqui estou para impedir que a imprensa entre no seu quarto. O subchefe pensa que eles vo tentar c entrar para conseguirem que lhes d uma entrevista e a minha funo impedir isso, impedir que o incomodem. - E se eles utilizarem o mtodo furtivo de - Bosch fez uma grande representao fingindo que olhava de uma ponta para a outra do corredor para se certificar que ningum os podia ouvir - usarem o telefone? Galvin soltou um suspiro ruidoso e continuou a no olhar para Bosch. - As enfermeiras esto a controlar as chamadas que entram. S famlia, e, segundo me disseram, voc no tem famlia, por isso, no h telefonemas. - Como que aquela senhora agente do FBI passou por si? - Tinha autorizao do Irving. Volte para o seu quarto, se faz favor. - Claro. Bosch sentou-se na cama e tentou rever mentalmente o caso todo. Mas, quanto mais virava e revirava as vrias partes dele na cabea, mais lhe crescia aquela sensao de ansiedade de que estar sentado na cama de um hospital era uma perda de tempo. Sentiu que estava beira de qualquer coisa, de uma forma de entrar na lgica do caso. O trabalho de um detective era percorrer o trilho das provas, examinar cada uma delas e traz-las consigo. No final do trilho, o que tinha no cesto fazia ganhar ou perder o caso. Bosch tinha um cesto cheio, mas comeava a pensar que havia bocados que lhe faltavam. O que que ele tinha deixado escapar? O que que o Rourke lhe tinha dito no fim? No tanto com as palavras que usara, mas com o seu significado. E a expresso da cara dele. Surpresa. Mas surpresa com o qu? Estava chocado com a bala? Ou chocado com de onde e de quem viera? Podiam ter sido as duas coisas, concluiu Bosch, mas de qualquer das maneiras, o que que queria dizer? A referncia que Rourke tinha feito da sua parte ter ficado maior com as mortes de Meadows, Franklin e Delgado continuava a perturbar Bosch. Tentou colocar-se na posio de Rourke. Se todos os seus scios tivessem morrido e ele fosse o nico beneficirio do assalto primeira caixa-forte, diria: A minha parte aumentou ou diria simplesmente: tudo meu? Bosch tinha a impresso que teria dito a ltima frase, a no ser que ainda houvesse algum com quem partilhar o bolo. Decidiu que tinha de fazer qualquer coisa. Tinha de sair daquele quarto. No estava em priso domiciliria, mas sabia que se se fosse embora, Galvin estava ali para o seguir e informar Irving. Experimentou o telefone e descobriu que tinha sido ligado, tal como Irving prometera. No podiam telefonar para l, mas Bosch podia telefonar para fora. Levantou-se e foi espreitar o armrio. Sapatos, meias e calas, mais nada. As calas tinham marcas de frico, mas tinham sido limpas e engomadas pelo hospital. O

casaco de desporto e a camisa, muito provavelmente, tinham-lhe sido tirados com uma tesoura nas Urgncias e ou tinham sido deitados fora, ou metidos num saco para as provas. Agarrou na 362 roupa e vestiu-se, enfiando a parte de cima do pijama nas calas quando acabou. Ficou com um ar de bronco, mas serviria at arranjar outra roupa l fora. A dor no brao era menos intensa quando punha o brao frente do peito, por isso, comeou a pr o cinto em volta dos ombros para o usar como apoio. Mas, decidindo que isso faria com que ele desse demasiado nas vistas ao sair do hospital, voltou a enfiar o cinto nas presilhas das calas. Abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira e descobriu a carteira e o distintivo, mas no havia arma. Quando estava pronto, agarrou no telefone em cima da mesa de cabeceira, ligou para a operadora e pediu para ligar ao posto de enfermagem do terceiro andar. Uma voz feminina atendeu e Bosch identificou-se como o subchefe Irving. - capaz de chamar o detective Galvin, o meu homem que est sentado na cadeira ao fundo do corredor, ao telefone? Preciso de falar com ele. Bosch pousou o telefone em cima da cama e dirigiu-se em bicos de ps para a porta. Abriu-a apenas o suficiente para ver Galvin sentado na cadeira, outra vez a ler o catlogo. Bosch ouviu a enfermeira cham-lo ao telefone e Galvin levantou-se. Bosch esperou dez segundos antes de espreitar para o fundo do corredor. Galvin ainda ia a caminho do posto de enfermagem. Bosch saiu do quarto e comeou a andar silenciosamente na direco oposta. Ao fim de dez metros, havia um cruzamento de corredores e Bosch escolheu o da esquerda. Chegou a um elevador com um letreiro por cima da porta que dizia S Para Uso do Pessoal do Hospital e carregou ao boto. Quando o elevador chegou, era uma coisa de ao inoxidvel e madeira fingida com outra porta na parte de trs, suficientemente grande para pelo menos duas camas poderem ser empurradas l para dentro, carregou no boto do rs-do-cho e as portas fecharam-se. O seu tratamento para o ferimento da bala tinha terminado. O elevador largou Bosch na sala das urgncias. Atravessou-a e saiu a noite. No caminho para a Esquadra de Hollywood num txi, pediu ao taxista para parar no seu banco, onde tirou dinheiro de um multibanco, e depois num drugstore Sav-On, onde comprou uma camisa esportiva barata, um pacote de maos de cigarros, um isqueiro, visto que no conseguia acender fsforos, algodo, ligaduras novas e um apoio para o brao. O apoio era azul marinho. Seria perfeito para um funeral. Pagou ao taxista porta da esquadra na Wilcox e entrou pela porta da frente, onde sabia que havia menos probabilidades de ser reconhecido ou de lhe dirigirem a palavra. Na recepo estava um caloiro que ele no conhecia com o mesmo batedor gordo com a cara marcada pelas borbulhas que tinha trazido a pizza para o Sharkey. Bosch mostrou o distintivo e passou sem dizer uma palavra. A sala de trabalho dos detectives estava s escuras e deserta, como acontecia na maior parte das noites de domingo, mesmo em Hollywood. Bosch tinha um candeeiro de secretria preso mesa de trabalho e acendeu-o em vez de usar as luzes do tecto da sala que podiam atrair a curiosidade dos agentes das patrulhas no gabinete do comandante de servio ao fundo do corredor. Harry no estava com disposio para responder a perguntas, mesmo s bem intencionadas dos polcias fardados. Primeiro dirigiu-se ao fundo da sala e ps uma cafeteira de caf a fazer. Depois entrou numa das salas de interrogatrios para vestir a camisa nova. O ombro disparou setas de dor que lhe atravessaram o peito e o brao quando despiu a camisa do hospital, sentou-se numa cadeira e examinou as ligaduras para ver se havia sinais de sangue. No havia. Com todo o cuidado, e com muito menos dores, enfiou a camisa nova - era extra-large. Tinha um pequeno desenho com uma montanha, um Sol e uma paisagem marinha no lado esquerdo e as palavras City of Angels. Bosch tapou tudo quando ps a tira para o brao e a ajustou para mant-lo bem encostado ao peito. O caf j estava feito quando acabou de se mudar. Levou uma chvena fumegante para a secretria, acendeu um cigarro e tirou o livro do homicdio e os outros dossiers do caso Meadows da gaveta de um armrio. Olhou para a pilha e no sabia por onde comear nem de que que andava procura. Comeou a ler tudo na esperana de que alguma coisa lhe despertasse a ateno que no fizesse sentido.

Estava procura de qualquer coisa, um nome novo, uma discrepncia nas declaraes de algum, qualquer coisa que tivesse sido ignorada anteriormente por no ser importante, mas que agora lhe parecesse diferente. Releu rapidamente os seus prprios relatrios porque ainda se lembrava da maior parte das informaes. Depois releu o registo militar de Meadows. Era a verso mais pequena, a que tinha sido entregue pelo FBI. No fazia a menor ideia do que tinha acontecido aos registos mais completos que tinha recebido de St. Louis e que tinha deixado ficar no carro quando tinha ido a correr para a caixa-forte na manh anterior. Nessa altura, deu-se conta de que tambm no sabia onde parava o carro.

366

Bosch no conseguiu nada dos relatrios militares. Quando estava a olhar para a miscelnea de relatrios no fim do dossier, as luzes do tecto acenderam-se e entrou um velho polcia de giro chamado Pederson. Dirigia-se para uma das mquinas de escrever com um relatrio de uma deteno na mo e s reparou em Bosch quando j estava sentado. Olhou em volta quando sentiu o cheiro a cigarro e a caf e viu o detective de brao ao peito. - Harry, como que vai isso? Deixaram-te sair muito depressa. O que corria por aqui que tinhas ficado lixado a srio. - Foi s um arranho, Peds. Ficamos bem pior com as unhas dos eles-elas que engavetamos aos sbados noite. Pelo menos, com uma bala, no precisamos de nos preocupar com a merda da SIDA. - A quem o dizes. Pederson massajou instintivamente o pescoo onde ainda tinha as cicatrizes dos arranhes infligidos por um travesti infectado com o vrus da SIDA que se andava a prostituir. O velho polcia tinha suado durante dois anos de testes de trs em trs meses, mas no tinha apanhado o vrus. Era uma histria que se tinha tornado uma lenda de pesadelo na diviso e que era, provavelmente, a nica razo da ocupao mdia dos tanques das prostitutas na cadeia da esquadra ter baixado para metade desde essa altura. J ningum as queria prender a no ser que fosse por homicdio. - Bem, seja como for - disse Pederson -, lamento que tudo aquilo tenha acabado em merda, Harry. Ouvi dizer que o segundo polcia tinha passado a cdigo sete h bocadinho. Dois polcias e um agente federal mortos num tiroteio. J para no falar do teu brao todo fodido. Provavelmente, uma espcie de recorde nesta cidade. Importas-te que beba uma chvena? Bosch apontou para a cafeteira. No tinha ouvido dizer que Clarke tinha morrido. Cdigo sete. Fora de servio, para sempre. Continuava a no conseguir obrigar-se a ter pena dos dois polcias dos Assuntos Inter-nos e isso fazia com que tivesse pena de si prprio. Fazia com que sentisse que o endurecimento do corao estava agora completo. J no sentia compaixo por ningum, nem sequer por dois desgraados imbecis e parvalhes que tinham metido o p na poa e tinham arranjado maneira de serem mortos. - Aqui ningum te diz patavina - dizia Pederson enquanto se servia -, mas quando eu li aqueles nomes no jornal, disse: Uauuu! Eu conheo estes gajos. O Lewis e o Clarke. Eram dos Assuntos Internos, no pertenciam a nenhuma vigilncia de bancos. As pessoas chamavam queles dois os grandes exploradores. Andavam sempre a farejar e a revolver tudo, procura de uma maneira de foder algum. Acho que toda a gente sabe que isso que eles eram, excepto a TV e o Times. Bem, seja como for, no h dvida que curioso, ts a ver, o que que eles l estariam a fazer?. Bosch no ia morder o isco. Pederson e os outros polcias iam ter de descobrir por outra fonte o que tinha realmente acontecido na Beverly Hills Safe & Lock. De facto, ele comeava a duvidar que Pederson tivesse qualquer relatrio para escrever mquina. Ou teria o caloiro da recepo espalhado a notcia de que Bosch estava no departamento e o velho polcia de giro teria sido encarregado de o sondar? Pederson tinha o cabelo mais branco do que a neve e era considerado um polcia velho, mas, na realidade, pouco mais velho era do que Bosch. Tinha feito o giro do Boulevard, a p ou de carro, no turno da noite durante vinte anos e isso era suficiente para fazer cabelos brancos a um homem novo. Bosch gostava de Pederson. Era uma fonte inesgotvel de informaes sobre a rua. Raramente havia

um homicdio no Boulevard sem que Bosch conferenciasse com ele para ver o que que os informadores dele andavam a dizer. E normalmente, ele tinha informaes correctas. - Sim, curioso - disse Bosch. No acrescentou mais nada. - Ests a escrever relatrios sobre o teu tiroteio? - perguntou Pederson depois de se ter sentado em frente de uma mquina de escrever. Quando Bosch no respondeu, acrescentou: - Tens mais algum desses cigarros? Bosch levantou-se e levou um mao inteiro a Pederson. Pousou-os na mquina de escrever frente dele e disse-lhe que eram para ele. Pederson percebeu a mensagem. No era nada de pessoal, mas Bosch no ia falar do assunto, principalmente sobre o que que dois chuis do Departamento dos Assuntos Internos andavam l a fazer. Pederson comeou a trabalhar na mquina de escrever depois daquilo e Bosch voltou ao seu livro do homicdio. Acabou de o ler sem que nem uma lmpada de quarenta watts se lhe acendesse na cabea. Ficou ali sentado, com a mquina de escrever a matraquear como pano de fundo, a fumar e a tentar pensar no que poderia fazer mais. No havia nada. Tinha chegado a um beco sem sada. Decidiu telefonar para casa e ouvir as mensagens no atendedor de chamadas. Agarrou no telefone, mas depois pensou que era melhor no 367 o usar e voltou a larg-lo. Com a esperana de que o seu telefone de secretria no fosse uma linha privada, deu a volta e foi at ao lugar de Jerry Edgar e usou a dele. Apanhou o seu atendedor de chamadas, marcou o cdigo e ouviu enquanto ele passava uma dzia de chamadas. As primeiras nove eram de polcias e alguns velhos amigos a desejarem-lhe uma recuperao rpida. As ltimas trs, as mensagens mais recentes, eram do mdico que o tinha estado a tratar, de Irving e de Pounds. - Mr Bosch, daqui o Dr. McKenna. Considero que foi muito pouco sensato e muito perigoso para si ter sado do hospital. Est a arriscar-se a agravar os seus problemas. Se ouvir esta mensagem, faa o favor de voltar para o hospital. Estamos a guardar-lhe a cama. No poderei trat-lo nem consider-lo como meu doente se no regressar. Por favor. Obrigado. Irving e Pounds no estavam to preocupados com o bem estar de Bosch. A mensagem de Irving dizia: - No sei onde que est nem o que anda a fazer, detective Bosch, mas melhor que tenha sido s por no gostar da comida do hospital. Pense no que lhe disse, detective. No faa nenhum disparate de que ambos nos venhamos a arrepender. Irving no se tinha dado ao trabalho de se identificar, mas no precisava. Acontecia o mesmo com Pounds. O recado dele era o ltimo. Era o coro. - Bosch telefona-me para casa logo que te seja possvel. Informaram-me que saste do hospital e precisamos de conversar. Bosch, no ests autorizado, repito, no ests autorizado a continuar com nenhuma linha de investigao relacionada com o tiroteio de sbado. Telefona-me. Bosch desligou. No ia telefonar a nenhum dos dois. Ainda no. Enquanto estava sentado no lugar de Edgar reparou num livro de rascunhos em cima da secretria onde estava escrito o nome Vernica Niese. A me de Sharkey. Tambm l estava um nmero de telefone. Edgar devia ter-lhe telefonado para a notificar da morte do filho. Bosch pensou nela a ouvir o atendedor de chamadas, espera que fosse mais uma chamada de um dos ordinrios dos seus clientes e, em vez disso, ser o Jerry Edgar a telefonar para lhe dizer que o filho estava morto. Pensar no rapaz fez com que Bosch se lembrasse da entrevista. Ainda no a tinha transcrito. Resolveu ouvi-la e voltou para o seu lugar na mesa. Tirou o gravador de uma das gavetas. A fita no estava l. Lembrou-se de que a tinha dado a Eleanor. Dirigiu-se ao armrio dos equipamentos, tentando calcular se o interrogatrio ainda estaria na fita de segurana. A fita de segurana rebobinava automaticamente quando chegava ao fim e depois comeava a gravar por cima. Dependendo do nmero de vezes que o sistema de gravao da sala de interrogatrios tivesse sido utilizado desde a sesso de tera-feira com Sharkey, o interrogatrio do rapaz podia ainda estar intacto na gravao de segurana. Bosch fez saltar a cassete do gravador e trouxe-a para a sua mesa de trabalho.

Meteu-a no seu gravador porttil, ps uns auscultadores e rebobinou a fita at ao princpio. Foi-a rebobinando, parando de vez em quando para ouvir uns segundos, tentando distinguir a sua prpria voz, ou a de Sharkey ou de Eleanor e avanando a seguir dez segundos na velocidade mais alta. Repetiu este processo durante vrios minutos at que chegou entrevista com o Sharkey na ltima metade da fita. Mal a encontrou, enrolou a cassete at ao princpio da entrevista para a ouvir toda. F-lo demasiado depressa e acabou a ouvir meio minuto do final de um interrogatrio anterior. Depois ouviu a voz de Sharkey. - Para onde que est a olhar? - No sei. Era Eleanor. - Estava a pensar se me conhecias. Pareces-me familiar. No dei conta de que estava a olhar. - O qu? Por que que a havia de conhecer? Nunca me meti em nenhuma merda federal, minha. No sei... - No interessa. Pareceste-me familiar, mais nada. Estava a s a pensar se tu me reconhecias. Por que que no esperamos at vir o detective Bosch? - Sim. OK. Fixe. Seguia-se um bocado de silncio na gravao. Ao ouvir aquilo, Bosch sentiu-se confuso. Depois percebeu que o que tinha acabado de ouvir tinha sido dito antes de ele entrar na sala de interrogatrios. O que que ela tinha estado a fazer? O silncio da fita acabou e Bosch ouviu a sua prpria voz: - Sharkey, vamos gravar isto porque nos poder vir a ser til voltar a ouvir o que foi dito. Como j te disse, no s suspeito, por isso, no tens... Bosch parou a fita e voltou para trs at troca de palavras entre o rapaz e Eleanor. Voltou a ouvi-la uma e outra vez. De todas as vezes, sentiu-se como se lhe tivessem dado um murro no corao. Tinha as mos a suar e os dedos escorregavam nos botes do gravador. Por fim, arrancou os auscultadores e atirouos para cima da mesa. - Raios partam isto! Pederson parou de dactilografar e olhou para ele.

PARTE IX Domingo, 20 de Maio Memorial Day Observado

Quando

Bosch chegou ao cemitrio dos veteranos em Westwood, pouco passava da meia-noite. Tinha requisitado um carro novo na garagem da frota de Wilcox e depois passara pelo apartamento de Eleanor Wish. No havia luzes acesas e sentiu-se como um adolescente a vigiar a namorada que o tinha largado. Embora estivesse sozinho no carro, sentiu-se envergonhado. No sabia o que que teria feito se houvesse uma luz acesa. Voltou para trs, em direco ao cemitrio a leste, a pensar em Eleanor e em como ela o tinha trado no amor e no trabalho, tudo ao mesmo tempo. Comeou com a hiptese de Eleanor ter perguntado a Sharkey se a reconhecia porque era ela que tinha estado no jipe que tinha levado o cadver de Meadows para o reservatrio. Ela tinha estado procura de uma indicao de que o rapaz tinha compreendido isso e a tinha reconhecido. Mas ele no a tinha reconhecido. Sharkey tinha continuado a falar depois de Bosch se ter juntado ao interrogatrio dizendo que tinha visto duas pessoas que ele julgava serem homens. Disse que o mais pequeno tinha ficado no jipe, no lugar do passageiro, e no tinha ajudado em nada com o cadver. Na opinio de Bosch o engano do rapaz devia ter-lhe salvado a vida. Mas ele sabia que tinha sido ele quem tinha condenado o rapaz quando sugeriu que o hipnotizassem. Eleanor tinha informado Rourke que sabia que no podia arriscar-se a isso. Depois havia a questo do porqu. O dinheiro era a resposta bvia, mas Bosch no se sentia muito confortvel em atribuir este motivo a Eleanor. Havia mais qualquer coisa. Os outros envolvidos Meadows, Franklin, Delgado e Rourke todos partilhavam de uma ligao com o Vietname assim como um conhecimento directo dos dois alvos: Binh e Tran. Como que Eleanor encaixava nisto? Bosch pensou no irmo dela, morto no Vietname. Seria ele a ligao? Lembrava-se de que ela lhe tinha dito que o nome dele era Michael, mas ela no tinha dito como ou quando que ele tinha sido morto. Bosch no a tinha deixado. Agora lamentava t-la impedido quando, aparentemente, ela quisera falar dele. Ela tinha mencionado o memorial em Washington e como ele a tinha modificado. O que que ela poderia ter visto que pudesse fazer isso? O que que o muro lhe poderia ter dito que ela no soubesse j? Seguiu at ao cemitrio no Sepulveda Boulevard e levou o carro at aos grandes portes de ferro que estavam fechados cortando o acesso estrada de cascalho. Bosch saiu do carro e caminhou at aos portes, mas estavam fechados com uma corrente e um cadeado. Espreitou por entre as grades pretas e viu uma pequena casa de pedra a cerca de trinta metros da estrada de cascalho. Viu o claro azulclaro da luz de uma televiso na cortina de uma janela. Voltou para o carro e ligou a sirene. Deixou-a tocar at aparecer uma luz por trs da cortina. O guarda do cemitrio saiu uns momentos depois e encaminhou-se para os portes com uma lanterna na mo, enquanto Bosch tirava a carteira com o distintivo e segurava aberta pelo meio das grades. O homem trazia calas escuras e uma camisa azulclara com uma identificao de lata no peito. - da polcia? - perguntou ele. Bosch teve vontade de lhe responder que no, que era da Amway. Em vez disso, disse: - Departamento da Polcia de Los Angeles. Gostaria que me abrisse o porto. O guarda fez incidir a luz da lanterna no distintivo e na identificao. Com a luz, Bosch conseguiu ver as suas brancas na cara do homem e sentir o cheiro leve a bourbon e a suor. - Qual o problema, agente? - Detective. Estou a trabalhar na investigao de um homicdio, Mr...? - Kester. Homicdio? Temos muita gente morta aqui, mas julgo que podemos dizer que esses casos esto encerrados.

- Mr Kester, no tenho tempo para explicar os pormenores todos, mas o que eu preciso de ir ver o memorial do Vietname, a rplica que est aqui em exposio durante o fim-de-semana. - O que que se passa com o seu brao? E onde que est o seu companheiro? Vocs no andam sempre aos pares? - Fui ferido, Mr Kester. O meu companheiro est a trabalhar noutro ngulo da investigao. O senhor v demasiada televiso naquela sua salinha. Isso so coisas dos chuis da televiso. 372 Bosch disse esta ltima parte com um sorriso, mas j estava a comear a ficar farto do velho guarda. Kester voltou-se, olhou para a casa do cemitrio e voltou a olhar para Bosch. - Viu a luz da TV, no foi? Essa descobri eu. Uh, isto propriedade federal e no sei se posso abrir sem... - Olhe, Kester, eu sei que um funcionrio pblico e que eles j no despedem ningum se calhar desde que o Truman era presidente. Mas se me comear a tornar a vida difcil por causa disto, eu vou tornar-lhe a vida difcil. Fao queixa de si por beber no trabalho na tera-feira de manh. Logo de manhzinha. Agora vamos l a isto. Abra o porto e eu no o chateio. S preciso de deitar uma olhadela ao muro. Bosch chocalhou a corrente. Kester olhou com uma expresso mortia para o cadeado e depois pescou um anel de chaves do cinto e abriu o porto. - Desculpe - disse-lhe Bosch. - No me parece que isto seja correcto - disse Kester furioso. - Afinal, o que que a pedra preta tem a ver com um homicdio? - Se calhar, tem tudo - respondeu Bosch. Comeou a andar para o carro, mas depois deu meia volta, tendo-se lembrado de uma coisa que tinha lido acerca do memorial. - H um livro. Diz-nos onde esto os nomes no muro. Podemos procur-los l. Est l, ao p do muro? Kester tinha uma expresso intrigada na cara que Bosch conseguia ver mesmo na escurido. - No sei de livro nenhum. A nica coisa que sei que os tipos do Servio de Parques dos EU trouxeram essa coisa para c e a montaram. Foi preciso uma buldzer para abrir um buraco na colina. Eles tm um tipo qualquer que fica com ele durante as horas normais das visitas. A esse que deve perguntar pelo livro. E no me pergunte onde que ele est. Nem sequer sei como que se chama. Vai demorar-se ou deixo-o aberto? - melhor fechar. Eu vou cham-lo quando me for embora. Bosch passou com o carro pelo porto depois do velhote o ter aberto e depois subiu at a uma zona de estacionamento perto da colina. Bosch conseguia ver o brilho negro da pedra na ferida profunda aberta na elevao. No havia luzes e a rea estava deserta. Agarrou numa lanterna que tinha no assento do carro e comeou a subir a encosta. Primeiro, girou a luz de um lado para o outro para ficar com uma ideia do tamanho do muro. Tinha cerca de dezoito metros de comprimento, estreitando-se nas duas extremidades. Depois aproximou-se o suficiente para conseguir ler os nomes. Foi inundado por um sentimento inesperado. Um pavor. No queria ver estes nomes, compreendeu ele de sbito. Ia haver demasiados que ele conhecia. E o que era pior era que podia encontrar nomes que no sabia que l estavam. Girou a lanterna e viu uma mesa de leitura em madeira, a parte de cima inclinada e com um rebordo para segurar um livro, como uma estante da Bblia numa igreja. Mas quando se aproximou, viu que no havia l nada. As pessoas do servio dos parques deviam ter levado a lista com eles como medida de segurana. Bosch virou-se e olhou para trs para o muro, a extremidade mais afastada a diluir-se na escurido. Verificou os cigarros e viu que tinha um mao quase cheio. Confessou a si prprio que j estava espera que iria ser assim mesmo. Teria de ler cada um dos nomes. Sabia-o antes de vir. Acendeu um cigarro e virou a lanterna para o primeiro painel do muro. Passaram quatro horas at ele encontrar o primeiro nome que conhecia. No era Michael Scarletti. Era Darius Coleman, um rapaz que Bosch tinha conhecido no Primeiro de Infantaria. Coleman foi o primeiro homem que Bosch tinha conhecido,

realmente conhecido, a ir pelos ares. Toda a gente lhe chamava Cake1. Tinha uma tatuagem no brao, feita com uma faca, que dizia: Cake. E foi morto por disparos dos seus prprios companheiros quando um tenente de vinte e dois anos deu as coordenadas erradas para um ataque areo no Tringulo. Bosch estendeu o brao para o muro e passou os dedos pelas letras do nome do soldado morto. Tinha visto pessoas a fazerem aquilo na televiso e nos filmes. Imaginou Cake com um charro atrs da orelha, sentado em cima da sua mochila e a comer bolo de chocolate de uma lata. Ele estava sempre a negociar para conseguir o bolo dos outros. Os charros faziam-no ansiar por chocolate. Depois disso, Harry passou para os outros nomes, parando apenas para acender cigarros, at ficar sem nenhum. Em perto de mais outras quatro horas, tinha encontrado mais trs dzias de nomes de soldados que tinha conhecido e que sabia que tinham morrido. No houve nenhuma surpresa nos nomes e por isso, o seu receio a esse respeito tinha sido infundado. Mas o desespero veio de outra coisa. Uma pequena fotografia de um homem fardado estava entalada na racha estreitinha entre os painis de mrmore falso do memorial. O homem oferecia o seu sorriso orgulhoso e sincero ao mundo. Agora no passava de um nome
Cake Bolo. (N. T.)

375 num muro. Bosch segurou a fotografia na mo e virou-a ao contrrio. Dizia: George, temos saudades do teu sorriso. Todo o nosso amor, Me e Teri. Bosch voltou a colocar com todo o cuidado a fotografia na racha, sentindo-se um intruso em algo muito privado. Pensou em George, um homem que nunca conhecera, e sentiu-se triste por nenhuma razo que fosse capaz de explicar a si prprio. Passado um bocado, continuou. No fim, depois de 58 132 nomes, havia um que no tinha visto. Michael Scarletti. Bosch olhou para o cu. Estava a ficar cor de laranja a este e sentia uma ligeira brisa que vinha do noroeste. A sul, o Edifcio Federal erguia-se por cima da linha das rvores do cemitrio como uma gigantesca e escura pedra tumular. Bosch sentia-se perdido. No sabia porque que estava a ali nem se o que tinha descoberto significava alguma coisa. Michael Scarletti ainda estava vivo? Tinha existido alguma vez? O que Eleanor tinha dito sobre a sua visita ao Memorial tinha parecido to real e verdadeiro. Como que alguma destas coisas poderia fazer sentido? A luz da lanterna estava fraca e a desaparecer. Apagou-a. Bosch dormiu umas duas horas dentro do carro no cemitrio. Quando acordou, o Sol ia alto no cu e, pela primeira vez, reparou que os relvados do cemitrio estavam inundados de bandeiras, cada tmulo assinalado por uma pequena Old Glory1 de plstico com uma haste de madeira. Ps o carro a trabalhar e, muito devagarinho, avanou pelas estradas estreitas do cemitrio, procura do stio onde Meadows iria ser enterrado. Foi difcil de encontrar. Estacionadas na berma de uma das estradas que serpenteava para a seco nordeste do cemitrio, estavam quatro carrinhas com antenas de microondas. Tambm havia um grupo de outros carros. Os media. Bosch no estava espera de todas aquelas cmaras de TV nem de todos aqueles reprteres. Mas mal viu esta multido, percebeu que se tinha esquecido que os feriados eram dias de poucas notcias. E o crime do tnel, como tinha sido baptizado pelos media, ainda era um assunto quente. Os vampiros do vdeo iam precisar de imagens novas para os noticirios da noite. Decidiu ficar no carro e observar enquanto a pequena cerimnia junto do caixo cinzento de Meadows era filmada em quadruplicado. Era presidida por um ministro todo amarrotado que provavelmente vinha de umas misses da baixa da cidade. No havia ningum que estivesse
Outro nome para a bandeira dos Estados Unidos, para alm de Stars and Stripes. (N. T.)

374 verdadeiramente a acompanhar o funeral, exceptuando alguns profissionais dos VFW. Tambm havia uma guarda de honra constituda por trs homens em sentido. Quando acabou, o ministro carregou no pedal do travo com o p e o caixo desceu lentamente. As cmaras aproximaram-se. A seguir, as equipas dos jornalistas separaram-se em direces diferentes para filmar os reprteres a fazerem as suas intervenes finais em locais diferentes do cemitrio. Espalharam-se num

semicrculo. Assim, cada um dos reprteres daria a ideia de que ele ou ela tinha sido o nico a estar presente. Bosch reconheceu algumas das pessoas que j lhe tinham enfiado os microfones na cara em ocasies anteriores. Ento reparou que um dos homens que ele tinha julgado ser um dos acompanhantes profissionais era, na realidade, Bremmer. O reprter do Times afastou-se da campa e comeou a dirigir-se para um dos carros estacionado ao longo da estrada de acesso. Bosch esperou at Bremmer estar quase ao lado do carro dele antes de abrir a janela e chamar por ele. - Harry! Pensava que estavas no hospital ou qualquer coisa parecida. - Resolvi aparecer por c. Mas no sabia que ia haver circo. Vocs no tm nada melhor para fazer? - Hei, eu no estou com eles. Aquilo um chiqueiro. - O qu? - Os reprteres da televiso. isso que eles chamam a uma destas bacanais. Ento, o que que ests aqui a fazer? Nunca esperei que sasses to cedo. - Fugi. Porque que no entras e damos uma volta? Depois, apontando com a mo para os reprteres da Televiso, Bosch adiantou: Eles so capazes de me ver aqui e de se atirarem a ns, deixando-nos esborrachados. Bremmer deu a volta e entrou no carro. Bosch seguiu o caminho na direco da parte ocidental do cemitrio. Estacionou sombra de um carvalho frondoso, de onde podiam ver o memorial do Vietname. Havia vrias pessoas volta dele, passeando devagarinho, a maior parte homens, a maior parte sozinhos. Todos olhavam para a pedra preta em silncio. Alguns dos homens vestiam casacos de camuflados com as mangas arrancadas. - J viste os jornais ou a TV em relao a esta coisa? - perguntou Bremmer.
VFW Veterans of Foreign Wars Veteranos das Guerras Estrangeiras. (N. T.)

376 - Ainda no. Mas ouvi o que tinha sido divulgado. - E? - Aldrabices. Pelo menos, a maior parte. - Podes contar-me? - Desde que no fique envolvido. Bremmer assentiu. Conheciam-se h muito tempo. Bosch no tinha de pedir promessas e Bremmer no tinha de relembrar as diferenas entre declaraes off the record, declaraes de fontes internas e declaraes no atribuveis a ningum. Tinham uma confiana mtua construda na credibilidade anterior e que funcionava nos dois sentidos. - H trs coisas que devias investigar - disse Bosch. - Ningum fez perguntas em relao ao Lewis e ao Clarke. Eles no faziam parte da minha vigilncia. Estavam a trabalhar para o Irving dos Assuntos Internos. Por isso, quando conseguires comprovar isso, pressiona-os para que expliquem o que que eles estavam a fazer. - O que que eles estavam a fazer? - Isso vais ter de saber noutro stio qualquer. Sei que tens outras fontes no departamento. Bremmer estava a escrever num bloco de notas com argolas, fino e comprido, do tipo que denunciava sempre os jornalistas. Ia acenando com a cabea enquanto escrevia. - Segunda, descobre o que h quanto ao funeral do Rourke. Provavelmente, vai ser algures, fora deste estado. Nalgum stio suficientemente longe para que os media daqui no se incomodem a mandar algum. Mas, mesmo assim, manda algum. Algum com uma cmara. Provavelmente, ele vai ser o nico presente. Tal como o funeral de hoje. Isso deve dizer-te qualquer coisa. Bremmer levantou os olhos dos apontamentos. - Queres dizer que no vai ser o funeral de um heri? Ests a dizer que o Rourke fazia parte desta coisa ou que apenas meteu o p na argola? Meu Deus, o FBI e ns, os media estamos a apresentar o gajo como se ele fosse o John Wayne reencarnado. - Pois, bem, vocs deram-lhe vida depois da morte. Tambm a podem tirar, acho eu.

Bosch olhou para ele durante uns instantes, pensando em quanto lhe devia dizer, o que era seguro dizer. Por um breve instante, sentiu-se to ultrajado que lhe apeteceu contar a Bremmer tudo o que sabia e mandar para o inferno o que aconteceria e o que Irving tinha dito. Mas no o fez. Voltou a controlar-se. 377 - Qual a terceira coisa? - perguntou Bremmer. - Arranja os registos militares do Meadows, do Rourke, do Franklin e do Delgado. Isso deve dar-te o embrulho todo. Eles estiveram no Vietname, ao mesmo tempo, na mesma unidade. E a que esta histria toda comea. Quando chegares a, telefona-me e eu tentarei preencher os buracos que ainda tiveres. Ento, repentinamente, Bosch sentiu-se farto daquela charada orquestrada pelo seu departamento e pelo FBI. A lembrana do rapaz, de Sharkey, no parava de lhe vir cabea. Deitado de costas, a cabea torcida naquele ngulo estranho e agoniante. O sangue. Iam limpar aquilo como se no tivesse importncia nenhuma. - H uma quarta coisa - disse ele. - Havia um garoto. - Quando a histria de Sharkey estava terminada, Bosch ps o carro em andamento e levou Bremmer pelo caminho abaixo, at ao carro dele. Os reprteres das Televises tinham abandonado o cemitrio e um homem num pequeno tractor lanava terra para dentro da cova de Meadows. Havia outro homem que estava apoiado a uma p a observar. - Provavelmente, vou precisar de um emprego quando a tua histria sair - comentou Bosch enquanto observava os coveiros. - No vais aparecer como fonte. Alm disso, quando eu conseguir os registos militares, eles falaro por si mesmos. Vou conseguir aldrabar os funcionrios das informaes pblicas do departamento de forma a confirmarem-me parte destas outras coisas e a parecer que partiu tudo deles. E depois, quase no final da histria, vou dizer : O detective Harry Bosch recusou-se a fazer qualquer comentrio. Que tal te parece? - Provavelmente, vou precisar de um emprego quando a tua histria sair . Bremmer limitou-se a olhar durante um longo momento para o detective. - Vais at campa? - Sou capaz. Depois de me deixares em paz. - Vou-me j embora. Abriu a porta, saiu e depois inclinou-se l para dentro. - Obrigado, Harry. Esta vai ser boa. H cabeas que vo rolar. Bosch olhou tristemente para o jornalista e abanou a cabea. - No, no vo. Bremmer ficou a olhar para ele com uma expresso perplexa e Bosch fez-lhe um aceno de despedida. O jornalista fechou a porta e dirigiu-se para o seu carro. Bosch no tinha nenhuma concepo errada a respeito de Bremmer. O jornalista no era guiado por nenhum sentido genuno de 378 ultraje ou pelo seu papel enquanto co de guarda para o pblico. Tudo quanto ele queria era uma histria que mais nenhum reprter tivesse. Bremmer estava a pensar nisso e, se calhar, tambm no livro que viria depois e no filme para a televiso e no dinheiro e na fama que alimentava o ego. Era isso que o motivava e no o ultraje que tinha feito com que Bosch lhe contasse a histria. Bosch sabia isso e aceitava-o. Era assim que as coisas funcionavam. - As cabeas nunca rolam - disse para consigo. Ficou a ver os coveiros acabarem o seu trabalho. Passado um bocado saiu do carro e aproximou-se. Havia um pequeno ramo de flores ao lado da bandeira enfiada no suave cho cor de laranja. As flores eram do VFW. Bosch olhou para a cena sem saber o que devia sentir. Se calhar, uma espcie de afeio sentimental ou de remorso. Desta vez, Meadows estava debaixo do cho para sempre. Bosch no sentia nada. Passado um bocado levantou os olhos da campa e olhou para o Edifcio Federal. Comeou a andar nessa direco. Sentia-se como um fantasma sado do tmulo procura de justia. Ou talvez apenas de vingana. Se ficou surpreendida por ser Bosch que tinha tocado campainha, Eleanor Wish no o deixou transparecer. Harry tinha mostrado de relance o distintivo ao guarda do rs-do-cho e tinham-lhe apontado o elevador. No havia recepcionista a trabalhar no feriado, por isso ele tinha tocado campainha da noite. Foi Eleanor

quem veio abrir a porta. Vestia jeans desbotados e uma blusa branca. No tinha arma no cinto. - Pensei que eras capaz de aparecer, Harry. Foste ao funeral? Ele assentiu com a cabea, mas no fez nenhum movimento em direco porta que ela mantinha aberta. Eleanor olhou para ele durante muito tempo, as sobrancelhas arqueadas naquela sua encantadora expresso interrogativa. - Bem, vais entrar ou ficar a fora o dia todo? - Estava a pensar que podamos dar um passeio. Conversar um bocado. - Tenho de ir buscar o meu carto de acesso para poder voltar a entrar. - Fez um movimento para voltar para dentro e depois parou. - Duvido que j tenhas ouvido isto porque eles ainda no o tornaram pblico. Encontraram os diamantes. - O qu? - Sim. Conseguiram ligar o Rourke a uns cofres de um armazm pblico em Huntington Beach. Encontraram os recibos num stio qualquer. Esta manh, conseguiram arranjar a ordem do tribunal e abriram-nos. Tenho estado a ouvir a rdio interna. Dizem que so centenas de diamantes. Vo ter de arranjar um avaliador. Tnhamos razo, Harry. Diamantes. Tu tinhas razo. Tambm encontraram as outras coisas num segundo cofre. O Rourke no se tinha desfeito delas. Os donos dos cofres vo recuperar os seus pertences. Vai haver uma conferncia de imprensa, mas duvido que eles vo dizer de quem so os cofres. Ele limitou-se a assentir com a cabea e ela desapareceu pela porta. Bosch dirigiuse para os elevadores e carregou no boto enquanto esperava por ela. Ela trazia a carteira quando saiu. Isso f-lo ficar muito consciente de que no tinha uma arma. E, sentiu-se envergonhado consigo mesmo por ter pensado, mesmo que por um breve instante, que isso era um motivo de preocupao. No falaram enquanto desciam, nem enquanto no saram do prdio e se viram no passeio a dirigirem-se para o Wilshire Boulevard. Bosch tinha estado a pesar as suas palavras, perguntando para consigo se a descoberta dos diamantes poderia ter algum significado. Ela parecia estar espera que ele comeasse, mas no se sentindo vontade naquele silncio. - Gosto da tira azul - disse ela por fim. - Afinal, como que te sentes? Estou muito espantada por te terem deixado sair to cedo. - Limitei-me a sair. Sinto-me bem. Parou para meter um cigarro na boca. Tinha comprado um mao numa mquina do trio. Acendeu-o com o isqueiro. - Sabes - disse ela -, isto seria uma boa altura para desistires disso. Comear de novo. Ele ignorou a sugesto e inalou profundamente o fumo. - Eleanor, fala-me do teu irmo. - Do meu irmo? J contei. - Eu sei. Quero ouvir outra vez. O que lhe aconteceu e o que aconteceu quando visitaste o muro em Washington. Disseste que isso mudou tudo para ti. Por que que as coisas mudaram para ti? Estavam no Wilshire Boulevard. Bosch apontou para o outro lado da rua e atravessaram na direco do cemitrio. - Deixei o meu carro ali. Depois trago-te de volta. - No gosto de cemitrios. J te disse. - Quem gosta? Passaram pela abertura da sebe e o barulho do trnsito acalmou. frente deles estendia-se a enorme expanso de relvado verde, pedras brancas e bandeiras americanas. 379 - A minha histria igual de milhares de outras disse ela. O meu irmo foi para l e no voltou. S isso. E depois, sabes, ir ao memorial, bem, encheu-me de uma data de sentimentos diferentes. - Raiva? - Sim, tambm havia isso. - Ultraje? - Sim, acho que sim. No sei. Era muito pessoal. O que que se passa, Harry? O que que isto tem a ver com... com seja o que for?

Estavam no caminho de cascalho que corria ao longo das filas de pedras brancas. Bosch estava a encaminh-la na direco da rplica. - Disseste que o teu pai era um militar de carreira. Conseguiste os pormenores do que aconteceu ao teu irmo? - Ele conseguiu, mas ele e a minha me nunca me disseram de facto nada. Dos pormenores. Quero dizer, s me disseram que ele estava quase a voltar para casa e eu tinha recebido uma carta dele a dizer que ia voltar. Depois, assim, tipo na semana seguinte, sabes, eles disseram-me que ele tinha sido morto. Afinal, no voltou para a casa. Harry, ests-me a fazer sentir... O que que queres? No compreendo. - Claro que compreendes, Eleanor. Ela parou e olhou para o cho. Bosch viu a cor da cara dela mudar para um tom mais plido do que j tinha. E a expresso passou a ser de resignao. Como as caras das mes e das esposas que ele tinha visto quando notificava o parente mais prximo. No era preciso dizer-lhes que algum tinha morrido. Elas abriam a porta; sabiam do que se tratava. E agora a cara de Eleanor mostrava que ela sabia que Bosch conhecia o seu segredo. Levantou os olhos e olhou para a frente, para longe dele. O olhar dela parou no memorial preto que cintilava ao Sol, no topo da elevao. - aquilo, no ? Trouxeste-me aqui para eu ver aquilo. - Acho que te podia pedir para me mostrares onde est o nome do teu irmo. Mas ns os dois sabemos que no est ali. - No... no est. Ela tinha ficado trespassada ao ver o memorial. Bosch conseguia ver-lhe no rosto que a resistncia da casca dura tinha desaparecido. O segredo queria vir c para fora. - Ento, conta-me. - Eu tive mesmo um irmo e ele morreu. Nunca te menti, Harry. Nunca te disse que ele tinha sido morto l. Disse que ele nunca tinha voltado e no voltou. Isso verdade. Mas ele morreu aqui, em Los Angeles. A caminho de casa. Em 1973. Pareceu perder-se nas recordaes. Depois voltou a si. - Espantoso. Quero dizer, conseguir sobreviver quela guerra e depois no fazer a viagem de regresso a casa. No faz sentido. Tinha dois dias de escala em Los Angeles na viagem para DC. Para estar presente na festa de boas-vindas ao heri que lhe tnhamos preparado. Havia um emprego seguro e simptico que o pai lhe tinha arranjado no Pentgono. S que o encontraram num bordel em Hollywood. A agulha ainda estava espetada no brao. Herona. Olhou para a cara de Bosch e depois desviou o olhar. - Era isso que parecia, mas no era assim. Foi considerado uma OD, mas ele foi assassinado. Tal como o Meadows tantos anos depois. Mas o meu irmo ficou registado como o Meadows era para ter ficado registado. Bosch pensou que ela era capaz de ir comear a chorar. Ele precisava de a manter no trilho, a contar a histria. - O que que se passa, Eleanor? O que que isto tem a ver com o Meadows? - Nada - respondeu ela e olhou para trs, para o caminho que tinham percorrido. - Agora estava a mentir. - Ele sabia que havia qualquer coisa. Tinha uma sensao pavorosa nas entranhas de que tudo aquilo girava em torno dela. Pensou nas margaridas que ela lhe tinha mandado para o quarto do hospital. Na msica que tinham posto a tocar no apartamento dela. Na maneira como ela o tinha descoberto nos tneis. Demasiadas coincidncias. - Tudo - disse ele -, tudo fazia parte do teu plano. - No, Harry. - Eleanor, como que sabias que h margaridas na colina por baixo da minha casa? - Vi-as quando... - A tua visita foi noite, lembras-te? No podias ver nada por baixo do alpendre. Deixou que aquilo assentasse um bocadinho. - J l tinhas estado antes, Eleanor. Quando eu estava a tratar do Sharkey. E depois a visita mais tarde, nessa mesma noite, aquilo no foi uma visita. Foi um teste. Como o telefonema em que desligaram. Eras tu. Porque foste tu que puseste o microfone no meu telefone. Esta coisa toda foi.. Por que que no me contas?

Ela assentiu sem olhar para ele. Ele no conseguia desviar os olhos dela. Ela controlou-se e comeou: - Alguma vez tiveste uma coisa que fosse o teu centro, a verdadeira semente da tua existncia? Toda a gente tem uma verdade inaltervel 379 no seu ntimo. Para mim, era o meu irmo. O meu irmo e o seu sacrifcio. Foi assim que eu lidei com a morte dele. Tornando-os maiores do que a vida. Fazendo dele um heri. Era a semente que eu protegi e alimentei. Constru uma capa dura sua volta e regava-a com a minha adorao e medida que ela ia crescendo, ia-se tornando uma parte maior de mim. Transformou-se na rvore que dava sombra minha vida. E ento, completamente de repente, um dia desapareceu. A verdade era falsa. A rvore foi cortada, Harry. J no havia sombra. Apenas o sol ofuscante. Calou-se por uns instantes e Bosch observou-a atentamente. Pareceu-lhe de repente to frgil que ele queria lev-la a correr para uma cadeira antes que ela desfalecesse. Eleanor segurou um cotovelo com uma das mos e levou a outra mo aos lbios. Bosch compreendeu ento o que ela estava a dizer. - Tu no sabias, pois no? - perguntou Bosch. - Os teus pais... ningum te contou a verdade. Ela assentiu com a cabea. - Cresci a pensar que ele era o heri que a minha me e o meu pai diziam que ele era. Eles protegeram-me. Mentiram-me. Mas como que eles haviam de saber que um dia seria construdo um monumento e que iriam l pr todos os nomes... Todos os nomes menos o do meu irmo. Ela calou-se, mas desta vez ele ficou espera que ela continuasse. - Um dia, h alguns anos atrs, fui ao memorial. E pensei que havia um engano qualquer. Havia l um livro, um ndex dos nomes e eu procurei e ele no estava na lista. No havia Michael Scarletti. Gritei para os funcionrios dos parques: Como que puderam deixar o nome de uma pessoa de fora do livro? E passei o resto do dia a ler os nomes no muro. Todos eles. Ia mostrar-lhes como estavam enganados. Mas... ele tambm no estava l. Eu no conseguia... Sabes o que passar quase quinze anos da tua vida a acreditar numa coisa, a construir as tuas crenas em redor de um nico e cintilante facto e ter... descobrir que durante todo esse tempo ele era, na realidade, como um cancro a crescer c dentro? Bosch limpou-lhe as lgrimas das faces com a mo. Inclinou a cara para a dela. - E ento o que que fizeste, Eleanor? O punho apertado contra os lbios contraiu-se mais, os ns dos dedos to desprovidos de sangue como os de um cadver. Bosch reparou num banco mais abaixo do caminho e, agarrando-a pelo ombro, encaminhou-a para l. - Toda esta coisa - disse ele depois de estarem sentados. - Eu no compreendo, Eleanor. Esta coisa toda. Foste tu... Querias uma espcie de vingana contra... - Justia. Vingana no, desforra no. - H alguma diferena? Ela no respondeu. - Conta-me o que fizeste. - Confrontei os meus pais. E, finalmente, eles contaram-me tudo sobre L.A. Passei revista a todas as coisas que tinha dele e descobri uma carta, a ltima carta dele. Ainda a tinha nas coisas que tinha em casa dos meus pais, mas tinha-me esquecido. Est aqui. Abriu a mala e tirou a carteira para fora. Bosch conseguiu ver o punho da arma dela dentro da mala. Ela abriu a carteira e tirou uma folha de um bloco de linhas dobrada ao meio. Delicadamente, desdobrou-a e segurou-a de maneira a que Bosch a pudesse ler. Ele no lhe tocou. Eliie, J me falta to pouco tempo aqui que praticamente j consigo sentir o sabor dos caranguejos de casca mole. Devo estar em casa dentro de uma ou duas semanas. Primeiro, tenho de fazer uma paragem em Los Angeles para ganhar algum dinheiro. H! H! Tenho um plano (mas no digas ao Velho). Tenho de entregar uma encomenda diplomtica em L.A. Mas capaz de haver uma maneira de fazer uma coisa melhor com ela. Quando eu voltar, talvez a gente

possa ir outra vez ao Poconos, antes de eu ter de voltar a ir trabalhar para a mquina de guerra. Sei o que pensas daqui-lo que eu estou a fazer, mas no posso dizer que no ao Velho. Vamos ver como que as coisas correm. Uma coisa certa: estou contente por sair deste stio. Estive no mato durante seis semanas antes de conseguir um descanso aqui em Saigo. No quero voltar, por isso, arranjei maneira de eles me estarem a tratar de desinteria. (Pergunta ao Velho o que ! H! h!.) A nica coisa que tive de fazer foi comer comida de restaurante nesta cidade e ficar com os sintomas. Bem, seja como for, por agora tudo. Estou a salvo e no tardarei a estar em casa. Por isso, tira os apetrechos para os caranguejos do barraco. Saudades, Michael Voltou a dobrar a carta com todo o cuidado e meteu-a na mala. - O Velho? - perguntou Bosch. - O nosso pai. - Certo. 384 Ela estava a recuperar a compostura. A cara estava a ficar com aquela expresso dura que Bosch tinha visto no dia em que a conhecera. Os olhos desceram da cara dele, para o peito e para o brao na tira de pano azul. - No tenho nenhum gravador, Eleanor - disse-lhe ele. - Estou aqui s por mim. Quero saber s para mim. - No era isso que eu estava a ver - respondeu ela. - Eu sei que no terias um gravador. Estava a pensar no teu brao. Harry, se h alguma coisa em que acredites em mim, em que consigas acreditar agora, acredita em mim quando te digo que no havia a mnima inteno de fazer sofrer fosse quem fosse. Ningum... Toda a gente ia ficar a perder. Mas s isso. Depois daquele dia... no memorial, procurei e voltei a procurar at acabar por descobrir o que que tinha acontecido com o meu irmo. Usei o Ernest do State, usei o Pentgono, o meu pai, usei tudo o que pude e descobri o que acontecera ao meu irmo. Ela tentou ler-lhe os olhos, mas ele esforou-se por no revelar os pensamentos atrs deles. - E? - E foi como o Ernest nos contou. Para o fim da guerra, os trs capites, a trade, tinham uma parte activa no transporte de herona para os Estados Unidos. Um dos canais era o Rourke e os seus homens da embaixada, a polcia militar. Isso inclua o Meadows, o Delgado e o Franklin. Descobriam aqueles que estavam prestes a iremse embora nos bares em Saigo e faziam-lhes uma proposta: alguns milhares de dlares para passar pela alfndega um embrulho fechado e com o selo diplomtico. Nada de especial. Podiam arranjar maneira de eles receberem um estatuto temporrio de correios, met-los num avio e algum iria estar espera da encomenda em L.A. O meu irmo foi um dos que aceitou... Mas o Michael tinha um plano. No era preciso ser-se um gnio para perceber o que estavam a transportar. E, por isso, ele deve ter pensado que podia chegar c e fazer um negcio melhor com outra pessoa qualquer. No sei at que ponto ele tinha planeado a coisa ou sequer se j tinha tudo combinado. Mas no interessa. Eles descobriram-no e mataram-no. - Eles? - No sei quem. Gente que trabalhava para os capites. Para o Rourke. Foi perfeito. Mataram-no de uma maneira que o exrcito, a famlia, praticamente toda a gente, iria querer manter em segredo. Por isso, o caso foi rapidamente dado como encerrado e ficou tudo assim. 385 Bosch ficou sentado ao lado dela enquanto ela contava o resto da histria e no a interrompeu at a histria ter chegado ao fim, at ter sado de dentro dela como um demnio. Ela contou que o primeiro que tinha encontrado tinha sido Rourke. Estava, para grande surpresa dela, no FBI. Ela tinha movido os seus cordelinhos e conseguira transferir-se de DC para a equipa dele. Ela tinha um apelido diferente do irmo. Rourke no sabia quem ela era. Depois, o Meadows, o Franklin e o Delgado foram

facilmente localizados nas prises. No iam para lado nenhum. - O Rourke era a chave - disse ela. - Comecei a trabalh-lo. Acho que podes dizer que o seduzi com o plano. Bosch sentiu qualquer coisa partir-se e soltar-se dentro dele, qualquer sentimento final por ela. - Insinuei claramente que queria dar um golpe. Sabia que ele iria alinhar porque era um corrupto h anos. E era ganancioso. Uma noite, contou-me a histria dos diamantes, de como tinha ajudado estes dois tipos a sarem de Saigo com caixas cheias de diamantes. Eram o Tran e o Binh. A partir da, foi fcil planear tudo. Rourke recrutou os outros trs e puxou uns cordelinhos, anonimamente, para conseguir que eles sassem mais cedo e fossem para a Charlie Company. Era um plano perfeito e o Rourke estava mesmo convencido que era dele. Era isso que o fazia perfeito. No fim, eu iria desaparecer com o tesouro. O Tran e o Binh seriam roubados e ficariam sem a fortuna que tinham passado a vida a juntar e a acumular e os outros quatro iriam saborear o melhor golpe das suas carreiras e verem tudo desaparecer. Seria a melhor maneira de os fazer sofrer mais. Mas ningum fora deste crculo ia ser magoado... As coisas aconteceram assim. - O Meadows tirou a pulseira - disse Bosch. - Sim. O Meadows tirou a pulseira. Via-a nas listas das lojas de penhores que o Departamento da Polcia de Los Angeles nos manda. Era rotina, mas eu entrei em pnico. Aquelas listas vo para todas as unidades de roubo no condado. Pensei que algum podia reparar, o Meadows seria apanhado para ser interrogado e deitava c para fora a histria toda. Contei ao Rourke. E ele tambm entrou em pnico. Esperou at termos o segundo tnel quase pronto e depois, ele e os outros dois confrontaram o Meadows. Eu no estive l. Os olhos dela estavam fixos num ponto distante. J no havia qualquer emoo na voz dela. Era apenas uma linha plana. Bosch no precisava de a incitar. O resto saiu de jacto. 386 - Eu no estive l - repetiu ela. - O Rourke telefonou-me. Disse-me que, sabes, o Meadows morreu sem lhes dar a cautela. Disse-me que tinha arranjado maneira de parecer uma overdose. O filha da me disse mesmo que conhecia pessoas que j o tinham feito, h muitos anos, e que se tinham safado com isso. Ests a ver? Ele estava a falar do meu irmo. Quando ele disse aquilo, eu soube que o que estava a fazer estava certo... Bom, de qualquer das maneiras, ele precisava da minha ajuda. Tinham revistado a casa do Meadows e no tinham conseguido descobrir a cautela da loja de penhores. Isso significava que o Delgado e o Franklin iam assaltar a loja e trazer a pulseira. Mas o Rourke queria a minha ajuda com o Meadows. O cadver. No sabia o que que havia de fazer com ele. Ela disse que sabia, pelo cadastro de Meadows, que ele tinha sido preso por vadiagem no reservatrio. No tinha sido difcil convencer Rourke que seria um bom stio para largar o corpo. - Mas eu tambm sabia que o reservatrio pertencia Diviso de Hollywood e que, se no fosses tu a receber a chamada, irias pelo menos ouvir falar disso e que, provavelmente, te irias interessar quando o Meadows fosse identificado. Ests a ver, eu sabia de ti e do Meadows. E agora sabia que o Rourke j tinha perdido o controlo. Tu eras a vlvula de segurana no caso de eu precisar de pr um ponto final naquilo tudo. No ia deixar que o Rourke se voltasse a safar com aquilo. Varreu as pedras com o olhar e, distraidamente, levantou uma mo deixou-a cair no colo, uma pequena demonstrao de resignao. Depois de termos metido o corpo dele no jipe e de o termos tapado com o cobertor, o Rourke voltou atrs para dar uma ltima vista de olhos casa. Eu fiquei l fora. Havia uma chave de ferro para os pneus na parte de trs. Agarrei nela e bati-lhe nos dedos com ela. Nos dedos do Meadows. Para que algum visse que tinha sido um assassnio. Lembro-me to bem do barulho. O osso. To alto. Pensei que o Rourke era capaz de o ter ouvido... - E o Sharkey? - perguntou Bosch. - O Sharkey - disse ela pensativamente, como se estivesse a tentar usar o nome pela primeira vez. - Depois da entrevista, disse ao Rourke que o Sharkey no tinha visto as nossas caras no reservatrio. At tinha pensado que eu era um homem,

sentado no jipe. Mas cometi um erro. Mencionei que tnhamos discutido a hiptese de o hipnotizarmos. Embora eu te tivesse impedido e estivesse convencida de que no o farias sem mim, o Rourke no confiava em ti. Por isso, fez o que fez com o Sharkey. Depois de termos sido l chamados e de eu o ver, eu... Ela no acabou, mas Bosch queria saber tudo. - Tu o qu? - Mais tarde, confrontei o Rourke e disse-lhe que ia acabar com tudo porque ele tinha perdido o controlo e andava a matar gente inocente. Ele disse-me que no havia maneira de parar. O Franklin e o Delgado estavam no tnel e era impossvel contact-los. Eles desligaram os rdios quando levaram o C-4 l para dentro. demasiado instvel. Disse-me que no havia maneira de parar aquilo sem mais derramamento de sangue. Depois, na noite seguinte, tu e eu quase fomos atropelados. Foi o Rourke, tenho a certeza. Ela contou que depois daquilo, eles - os dois - tinham jogado um jogo mudo de desconfiana e suspeita mtuas. O assalto Beverly Hills Safe & Lock continuou como planeado e Rourke convenceu Bosch e todos os outros a no entrarem nos subterrneos para o impedir. Tivera de deixar Franklin e Delgado prosseguir embora j no houvesse diamantes no cofre de Tran. Rourke tambm no se podia arriscar a ir l abaixo avis-los. Por fim, Eleanor tinha acabado o jogo quando seguiu Bosch pelos tneis e matou Rourke, os olhos dele fixos nela enquanto deslizava para dentro da gua preta. - E a histria toda - rematou ela baixinho. - O meu carro est para aquele lado - disse Bosch levantando-se do banco. - Agora vou levar-te de volta. Encontraram o carro no caminho de acesso e Bosch reparou que os olhos dela se demoraram na terra fresca em cima da campa de Meadows antes de entrar. Bosch perguntou para consigo se ela teria estado a ver do Edifcio Federal quando o caixo tinha descido terra. Enquanto seguia para a sada, Harry disse: - Por que que no foste capaz de esquecer? O que aconteceu ao teu irmo foi noutro tempo, noutro stio. Por que que no esqueceste? -Nem sabes quantas vezes perguntei isso a mim mesma e quantas vezes que no consegui encontrar uma resposta. Ainda no consegui. Estavam nos semforos de Wilshire e Bosch estava a pensar no que ia fazer. E mais uma vez, ela leu-lhe os pensamentos, captou a sua indeciso. - Vais entregar-me, Harry? s capaz de ter muita dificuldade em fundamentar o teu caso. Esto todos mortos. Pode parecer que tambm estavas envolvido. Vais arriscar-te a isso? 386 Ele no disse nada. A luz mudou e ele seguiu para o Edifcio Federal, parando junto do passeio ao p do jardim das bandeiras. Ela disse: - Se significar alguma coisa para ti, aquilo que se passou entre ns, no fazia parte de nenhum plano. Sei que nunca sabers se isso verdade, mas eu queria dizer... - No digas - disse ele. - No digas uma palavra sobre isso. Passaram-se alguns momentos de um silncio desconfortvel. - Vais deixar-me assim? - Acho que seria melhor para ti, Eleanor, se te entregasses. Arranja um advogado e entrega-te. Diz-lhes que no tiveste nada a ver com os homicdios. Conta-lhes a histria do teu irmo. So pessoas razoveis e vo querer resolver tudo discretamente, evitar o escndalo. O procurador-geral provavelmente deixar que te declares culpada de qualquer coisa inferior a homicdio. E o FBI far o mesmo. - E se eu no me entregar? Vais contar-lhes? - No. Como tu disseste, estou demasiado envolvido nisso. Eles nunca acreditariam no que eu lhes contasse. Pensou durante muito tempo. No queria dizer o que ia dizer a seguir a no ser que estivesse seguro de que era mesmo o que pensava. E que conseguiria e iria mesmo faz-lo. - No, no vou contar-lhes... Mas, se dentro de alguns dias no ouvir dizer que te entregaste, vou contar ao Binh. E vou contar ao Tran. No preciso de lhes provar nada. Conto-lhes a histria com os factos suficientes para eles saberem que verdade. E nessa altura, sabes o que que eles vo fazer? Vo fingir que no

sabem de que raio que eu estou a falar e vo mandar-me embora. E depois vo atrs de ti, Eleanor, procura do mesmo tipo de justia que tu conseguiste para o teu irmo. - Eras capaz de fazer isso, Harry? - J disse que o fazia. Dou-te dois dias para te entregares. Depois conto-lhes a histria. Ela olhou para ele e a expresso dorida da cara perguntava-lhe porqu. Harry disse: - Algum tem de responder pelo Sharkey. Ela virou-se, ps a mo no fecho da porta e olhou pela janela do carro para as bandeiras que ondulavam com a brisa de Santa Ana. No olhou para ele quando disse: - Ento, isso quer dizer que eu estava enganada a teu respeito. - Se te ests a referir ao caso Dollmaker, a resposta sim, estavas enganada a meu respeito. Voltou a cabea para olhar para ele com um sorriso desmaiado enquanto abria a porta. Inclinou-se e muito rapidamente, deu-lhe um beijo na face. - Adeus, Harry Bosch. No momento seguinte, estava fora do carro, parada ao vento a olhar para ele. Harry esticou-se e fechou a porta. Enquanto se afastava, olhou uma vez pelo espelho retrovisor e viu-a ainda no passeio. Estava ali parada como uma pessoa que tivesse deixado cair uma coisa qualquer na sarjeta. Depois disso, Bosch no voltou a olhar para trs.

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EPLOGO Na manh a seguir ao Memorial Day, Harry Bosch voltou a dar entrada no MLK, onde foi severamente repreendido pelo mdico que pareceu, pelo menos a Harry, ter um prazer perverso em arrancar-lhe do ombro as ligaduras aplicadas em casa e em utilizar em seguida uma soluo salina que fazia arder para limpar a ferida. Passou dois dias a descansar e depois foi levado para a sala de operaes para lhe voltarem a ligar os msculos que tinham sido arrancados do osso pela bala. No segundo dia de recuperao depois da operao, uma ajudante de enfermeira deixou-lhe um Los Angeles Times j com um dia para ele se entreter durante umas horas. A histria de Bremmer estava na primeira pgina e acompanhava uma fotografia de um padre de p em frente de um caixo solitrio num cemitrio de Syracuse. Era o caixo do Agente Especial John Rourke do FBI. Bosch conseguiu perceber pela fotografia que tinham estado mais acompanhantes ainda que membros da imprensa no funeral de Meadows. Mas Bosch abandonou a primeira pgina depois de ter dado uma olhadela rpida aos primeiros pargrafos e ter percebido que no se falava de Eleanor. Passou para a dos desportos. No dia seguinte, teve uma visita. O tenente Harvey Pounds disse a Bosch que quando estivesse restabelecido se iria apresentar outra vez nos homicdios de Hollywood. Pounds disse que nenhum deles tinha possibilidade de escolha. A ordem tinha vindo do andar das chefias no Parker Center. O tenente no tinha muito mais para dizer e nem sequer se referiu ao artigo. Bosch recebeu a notcia com um sorriso e um aceno de assentimento, no querendo deixar transparecer a mais leve sugesto daquilo que sentia ou pensava. - Claro que isto depende de seres capaz de passar num exame fsico do departamento quando tiveres recebido alta dos teus mdicos daqui - acrescentou Pounds.

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- Claro - disse Bosch. - Sabes, Bosch, alguns agentes quereriam a incapacidade, a reforma com oitenta por cento. Podias arranjar um emprego no sector privado e sares-te muito bem. Merecia-lo. - Ah, - pensou Harry -, aqui est a razo da visita. - isso que o departamento quer que eu faa, tenente? - perguntou ele. - O senhor o mensageiro?

- Claro que no. O departamento quer que faas o que quiseres fazer, Harry. Estou s a ver as vantagens da situao. Sabes, apenas uma coisa para pensares. Segundo sei, a investigao privada um mercado em crescimento nos anos noventa. J no h confiana, sabes? Hoje em dia as pessoas compilam em segredo informaes completas sobre o passado mdico, financeiro, romntico das pessoas com quem vo casar. - Isso no me parece nada o meu tipo de emprego. - Quer dizer que aceitas os homicdios? - Mal passe os exames mdicos. No dia seguinte, teve outra visita. Esta era esperada. Era uma advogada do gabinete do procurador-geral. Chamava-se Chavez e queria saber o que se tinha passado na noite em que Sharkey tinha sido morto. Eleanor Wish tinha-se entregado, ficou Bosch a saber. Disse advogada que tinha estado com Eleanor, confirmando o alibi dela. Chavez disse que tinha tido de confirmar antes de comearem a discutir um acordo. Fez mais algumas perguntas e depois levantou-se da cadeira das visitas para se ir embora. - O que que lhe vai acontecer? - perguntou Bosch. - No posso falar sobre esse assunto, detective. Off the records. Off the record, obviamente, ela vai ter de ir para a priso, mas, provavelmente, no ser por muito tempo. O clima que se vive o indicado para isto ser tratado com muita descrio. Ela apresentou-se voluntariamente, trouxe um bom advogado e parece que no esteve directamente envolvida nas mortes. Se quer saber o que eu penso, ela vai safar-se disto com muita sorte. Vai declarar-se culpada e cumprir um mximo de trinta meses em Tehachapi. Bosch assentiu com a cabea e Chavez foi-se embora. Harry tambm se foi embora no dia seguinte, mandado para casa com seis semanas de licena para recuperar antes de se voltar a apresentar na esquadra de Wilcox. Quando chegou a casa, na Woodrow Wilson, encontrou um papel amarelo na caixa de correio. Levou-o aos correios e trocou-o por um embrulho largo e chato em papel castanho. No o abriu at chegar a casa. Era de Eleanor Wish, embora no o dissesse. Era uma coisa que ele sabia simplesmente. Depois de rasgar o papel e o forro de plstico s bolhinhas, descobriu uma reproduo emoldurada do Nighthawks de Hopper. Era o quadro que ele tinha visto pendurado por cima do sof dela na primeira noite que tinha estado com ela. Bosch pendurou o quadro no corredor ao p da porta da frente e, de quando em quando, parava para o estudar quando entrava, especialmente depois de um dia ou de uma noite cansativas de trabalho. O quadro nunca deixava de o fascinar ou de lhe evocar memrias de Eleanor Wish. A escurido. A profunda solido. O homem sentado sozinho, a cara virada para as sombras. Sou aquele homem, pensava Harry Bosch todas as vezes que olhava para ele. Fim.

Carol oConnell AS FILHAS DE JUDAS O ORCULO DE MALLORY LUA VAZIA Lindsey Davis OS PORCOS DE PRATA SOMBRAS DE BRONZE VNUS DE COBRE Anile Perry O ROSTO DE UM ESTRANHO O ESTRANGULADOR DE CATERSTREET UM LUTO PERIGOSO Lauren Henderson H LOIRAS A MAIS Dennis Lehane UM COPO ANTES DA GUERRA A CAMINHO DAS TREVAS Vai McDermid SENTENA DE MORTE O CANTO DAS SEREIAS Stephen Dobyns A IGREJA DAS MENINAS MORTAS Luiz Alfredo Garcia-Roza O SILNCIO DA CHUVA Elizabbeth Peters UM CROCODILO NA DUNA A MALDIO DOS FARAS Mo Havder

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