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SYLVIO ROMRO
^ DA ACADEMIA PERNAMBUCANA DE LETTRAS _j
EVOLUO I D O . R E C I F E yp, de J. B. E del br ock antiga casa LAEMMERT 4 RU A MARQUEZ DE OLINDA 4 \ 1905 M/f ^ ^ f i ^ ^ <%& Ct $ cultivas cc Y ^[lovisiia z Ipori.s, latia, alivia t J^alrel, aj cinco iovmosas &za,a$ cznavn- 1 -bucanas aue, oao ao 9lCua* in>pi- zadozas do dois' atandes escti-ptotx. cffeteep fusLv-^o- J(o-n. Cslr-O-. Mo, Novcmbrv 190k. EVOLUO DO LYRISMO BRASILEIRO W m quadro completo da poesia brasileira, em seu secular desenvolvimento, deveria ser aberto pela apreciao das graas e donaires da musa popular. Alli que se vo prender as razes mais profundas da esthesia ptria, o que nella verdadeiramente nacional. Ao povo, com suas tradies, com suas lendas, com suas cantigas improvisadas, com seus infantis contos da lareira, que pertencem as notas mais intensas, porque so as que saem directamente das esperanas ou dos desalentos da raa. A natureza deste ensaio veda-nos a entrada ampla nesse templo de nossas phantasias auonymas, que, felizmente, n' outros escriptos j tivemos ensejo de des- crever e admirar. (*) Iyimitar-nos-hemos agora a poucas pala- vras. Foi no correr dos dous primeiros s- culos da conquista e do povoamento que os colonos e mareautes portuguezes cantaram neste paiz os imaginosos romances, as sau- dosas xdcaras, as doces serranilhas, as magoadas trovas soltas de seu abundante' cancioneiro. Ao desbravar dos terrenos, ao derribar das mattas, no duro corte do po brasil, e no preparo dos ei tos para o plan- tio das cannas nas roas, negros e ndios escravizados ouviram as primeiras melopas na lngua de Cames. No seu trabalho e has suas festas tambm cantavam elles as toscas canes de seus repertrios selvagens. Entre os colonos houve logo desde o comeo bons lnguas das fallas indgenas e dos dialectos africa- nos, bem como entre os escravos das duas raas muitos foram prestes assimilando o idioma do vencedor. Nas longas noitadas (') Vide Cantos populares dn Brasil, Contos Populares do Brasil e Estados sobre a Poesia Popular Brasileira, pelo auetor. dos engenhos e fazendas nas solides bra- silicas, quando nossas principaes cidades no passavam de insignificantes aldeias e as aldeias e villas no existiam ainda, a au- sncia de toda a diverso, o receio das feras e dos assaltos de ndios bravos, o medo de possveis ataques de extrangeiros affoitos, forariam o aconchego de todos em torno dos chefes e senhores como a regra geral, e, ento, comprehende-se com quanta avidez deveriam ser ouvidas quaesquer notas festi- vas, cantos ou contos, que viessem acaso quebrar a monotonia e o tdio nos rsticos solares de nossos avoengos. Foi assim que se iniciou e produzio a fuso das trez almas que nos formaram. E por isso que em nossos cantos e contos populares o con- curso dos trez povos irrecusvel na lngua, nos themas, nos mythos, na contextura de todos elles. E por isso finalmente que na evoluo secular de nosso lyrismo, porque toda a nossa poesia , digamo-lo desde j, essen- cialmente lyrica, mesmo quando se mette a querer ser pica ou dramtica, nunca faltou certa -tendncia popular, campestre, alde, espcie de revivescencia das origens tradi- cionaes plebas, de que elle dimanou. a evoluo deste lyrismo que nos im- porta assignalar, caracterizando-o nas for- mas capites que tem assumido, qual uma espcie de organismo vivo, -que passasse America e nella se desenvolvesse. XX A poesia no Brasil durante os ltimos decennios do sculo XVI, inicia-se timi- damente, porm imitando as formas mais notveis que j havia attingido em Por- tugal. O grande poema de Cames era ento a verdadeira culminncia nas lettras portugue- zas. O esplendido estylo dos Lusadas desprendia brilhos, que chegavam at America. Gandavo, o mais antigo historiador dos fastos brasileiros, era amigo -particular do incomparavel pico, desde os primordios uma fora na evoluo do Brasil espiritual. BENTO TE I XE I RA PI NTO adopta a oitava rima, ao gosto camoneano, copia-lhe a ma- neira, chegando at a cital-o, no fim d' uma estrophe. O tom de nosso lyrismo ento certamente acanhado; porm j revela a no- tvel qualidade de descrever a natureza do paiz. A ProsopOpa no se esquece de trazer a descripo do porto do Recife. As primeiras manifestaes da musa no Brasil do, pois, testemunho de sua admirao ante os encantos naturaes da terra. Impossvel tomar-lhe o timbre, o emocionante tom dos primitivos accordes, sem ouvil-a*. E' este porto tal, por estar posta Uma cinta de pedra inculta e viva, Ao longo da soberba e larga costa, 0*nde quebra Neptuno a fria esquiva Entre a praia e a pedra descomposta O estanhado elemento se deriva Com tanta mansido, que uma fateixa Basta ter fatal Argds anneixa. Em meio desta obra alpestre e dura Uma bocca rompeu o mar inchado, Que na lingua dos brbaros escura Paranambuco de todos chamado: DeParanque mar,puca,rotura; Feita com fria deste mar salgado, Que, sem no derivar, commetter mingua, Cova do mar se chama em nossa lingua... ( x ) (*l Edio de 1873Rio de Janeiro. 10 - Um trecho da herica terra pernambucana foi, j se v, quem mereceu as primicias da musa brasileira. E j desde aqui, repetimos, temos nascida a mais antiga e estimavel qualidade de nossa poesia: a descripo ca- rinhosa da natureza. . Era a primeira affir- mao do nacionalismo, que nunca mais a arte ptria havia de abandonar, e, ao con- trario, teria de colorir e abrilhantar no de- correr dos sculos, sempre que a poesia ti- vesse de ser sincera comsigo mesma e digna dos superiores destinos de que havia de ser a interprete querida. Passando Bahia, essa tendncia no se desmentio; e as effuses dos poetas foram apenas como que a repetio rythmada das bellas paginas dos Dilogos das grandezas do Brasil, que, sm duvida, corriam por todas as mos. O estylo ainda funda- mentalmente o mesmo, tendo-se lyra dos cantores junctado, a mais, certa nota reli- giosa e, de vez em quando, a severa corda em que, desde ento, faliam tambm em nossa alma as cruciantes dores, as fundas magoas que soem produzir os magnos pro- blemas do destino humano. E por isso que a poesia em MANOE L BOTE LHO DE OLI - VEIRA cantp as bellezas da Ilha da Mar e 11 em FRE I MANOEL DE SANTA MARIA des- creve os encantos da Ilha de Itaparica, e, no poema Eustachidos a destruio de Jerusalm e os tormentos e horrores do in- ferno. O lyrismo nacionalista ento ainda pu- ramente descriptivo e, talvez, menos do que isso, meramente enumerativo. Botelho e Santa Maria limitam-se a enumerar os ac- cidentes geographicos e as bellas e raras for- mas das plantas e animaes das paragens que descrevem. O tom ' ainda em essncia o mesmo de Bento Teixeira; sente-se j certo surto ly- rico que havia de ir de mais em mais cres- cendo, avolumando-se, a ponto de vir a pro- duzir as formas do gnero mais perfeitas talvez que j foram cantadas em qualquer lingua humana. Disse Botelho de Oliveira, fallando de sua ilha: E' como a concha tosca e deslustrosa, Que dentro cria a prola formosa. Erguem-se nella outeiros. Com soberbas de montes altaneiros, Que os valles por humildes despresando, As presumpes do mundo esto mostrando E querendo ser prncipes* subidos Ficam os valles a seus ps rendidos. 12 E passa o poeta, em tom verdadeiramente realista, a enumerar tudo que de raro em peixes, plantas, fructas, se lhe antolha em su deliciosa manso, no se esquecendo de os comparar aos de Portugal, dando prefe- rencia aos de sua terra. ( x ) Frei Manoel de Santa Maria Itaparica ainda mais expressivo. A descripo da ilha, de que o frade tomou o nome, um quadro de gnero em que muito, para o tempo, ha a admirar. No fallando j no que se l nella, no que concerne s arvores, fructos e animaes insulanos, enumerados com maior vigor do que os de Botelho na Ilha da Mar, basta o quadro da pesca da bala para dar a esse pedao da velha poe- sia brasileira um cunho singularmente no- tvel : Monstro do mar, gigante do profundo, Uma torre nas ondas sossobrada, Que, parece, em todo mbito rotundo, Jamais besta to grande foi creada; Os mares despedaa furibundo Co'a barbatana s vezes levantada; Cujos membros teterrimos e broncos Fazem a Thetis dar gemidos roncos. . (') VieFlorilegio da Poesia Brasileira, de K. A.Varnhagen, 1850 : 1. pag. 134 e segs. 13 Tanto que chega o tempo decretado, Que este peixe do vento Austro movido, Estando vista de terra j chegado, Cujos signaes Neptuno d ferido, Em um porto desta ilha assignalado, E de todo o precioso prevenido, Esto umas lanchas leves e veleiras, Que se fazem com remos mais ligeiras. Os riautas so ethiopes robustos, E outros mais do sangue misturado, Alguns mestios em a cr adustos, Cada qual pelo esforo assignalado; Outro alli vai tambm, que sem ter sustos Leva o harpo da corda pendurado, Tambm um, que no oficio a Glauco offusca, E para isto Brasilo se busca.,. Impossvel alongar a citao de to viva scefla que vae num crescendo realistico at o final. Precisamos de poupar o espao. E, como nosso empenho seutir apenas desde j o tom e a cr da poesia nacional em seus albores para assignalar-lhe as trans- formaes evolutivas, no intil lembrar ao leitor que no deixe despercebidos os laos qne prendem o trovar de Frei Santa Maria Itaparica ao dos seus predecessores citados. 14 Note a tendncia descriptiva por enume- rao, o enthusiasmo pela terra, a oitava rima camoneana, o sabor clssico do verso, ao lado de certos amaneirados dos seiscen- tistas, cousas todas estas, que lhe saltaro aos olhos, se os passar por sobre todos os versos das apenas indicadas descripes d'A Ilha de Itaparica, d'A Ilha da Mar e d'A Prosopopa, E para que, desde j, fiquem patentes certas distinces de estylo, certo vigor de tintas da novel poesia brasileira, ainda na infncia, na bocca do frade poeta, oua-se esta estrophe da descripo do Inferno: Ardente serpe de sulfureas chammas O centro gira deste alvergue umbroso, So as fascas horridas escamas, E o fumo negro dente venenoso. As lavaredas das volantes fiammas Azas compem ao monstro tenebroso; Que quanto queima, despedaa e come, Isso mesmo alimenta, que consome. (*) Tomemos nota deste alento da forma e prosigamos. HnritrgiH cit. I. p ac 174. . - 15 Quem assim, ainda na infncia, j mostra porte to seguro e ostenta roupagens to vistosas, com alguns passos adeante, haveria de ser uma celeste creatura envolta em ethe- reas e roagantes vestes. Mas a poesia, como tudo que humano, uma filha da terra, por mais que a faa- mos fugir para o cu de nossos devaneios, para o azulado infinito de nossas aspiraes; e, como filha da terra, tem de luctar e soffrer a nosso . lado, tem que gemer as nossas dores e carpir as nossas magoas. E posto n'estas paginas tenhamos mais que vr a poesia do que os poetas, a arte como alguma cousa de funccional de que os poetas so apenas rgos occasionaes, no poderemos passar sem reparo o referver de paixes, dios e coleras de que GREGORIO DE MATTOS foi, na epocha que vimos pas- sando, a expresso mais ntida. Para bem termos a idia do que era a Bahia na segunda metade do sculo XVII, devemos lembrar j fazer mais de sculo que se havia erigido alli o governo geral do Brasil; ter Portugal j perdido de todo as esperanas na ndia, e feito convergir seu esforo e interesse exclusivamente para suas conquistas d' America; haverem-se j gran- - - 16 - demente desenvolvido o commercio, a la- voura e a riqueza. A sociedade, estimulada por governadores gananciosos, por padres e magistrados cobertos de pretenes, sedentos de riquezas, ostentava j muitas das mcu- las que ento carcomiam a velha metrpole. O sculo XVII, apogeu do regio absolu- tismo, foi no mundo occidental um perodo notavelmente viciado. A capital brasileira, valhacoito de aventureiros de toda a casta, ostentava tantas mazellas quantas L,isba. Quasi sempre, porm, os perodos de vio- lentas paixes so tambm epochas de no- tvel lavor espiritual. A Bahia achava-se n' este estado. E basta dizer que raramente algum perodo de nossa historia contou n' um centro qualquer homens como Eusebio de Mattos, seu irmo Grego- rio, Antnio Vieira, seu irmo Bernardo, Rocha Pitta, Botelho de Oliveira e trinta outros de quasi egual merecimento. No s: deve-se at affirmar que nunca mais se deu igual phenomeno, porquanto na vida espiritual luso-americana no existem dois Antonios Vieiras e nem dois Gregorios de Mattos. Esta singular e terrvel fi^ gura, j por ns duas vezes estudada com esmero, no pde aqui ter mais que uma ra- 1 7 - 4 pida, porm significativa meno. Foi o gnio .satyrico mais poderoso de nossa lingua at hoje; foi o retrato de sua epocha, por elle profligada desapiedadamente; , acima de tudo, um documento por onde se pode reconstruir o quadro dos costumes do tempo. Grandes e pequenos, bispos, governadores, conegos, magistrados, nobres e plebeus, todos soffreram as pancadas de seu latego implacvel. E tinha graa o iracundo censor. ( l ) Em meia dzia de versos pintava uma situao cmica, digna de soffrer o Jouet da satyra. Eis como a musa faceta bahiana j em pleno sculo XVII debicava com as parvoas desaventuras de um pernstico cantador de modinhas : Uma grave entoao Te cantaram, Braz Luiz, Segundo se conta e diz Foi solfa de f bordo. Pelo compasso da mo Em que a valia se apura ; Parecia solfa escura; Pois a mo nunca parava !... Nem no ar, nem no cho dava Sempre em cima da figura !. .. I 1 ) Vide Historia da Litteratura Brasileira e Historia do Brasil pela biographia de seus heres. 1 A poesia lyrica neste divergente mostra os evidentes signaes que a prendem de seus contemporneos. III Mas a vida que, ao findar do sculo XVII e nas primeiras dcadas do XVIII, j era intensa na Bahia, Recife, S. L,uiz e Belm, e para sabel-o bastante lr as Cartas de An- tnio Vieira, a Cultura e Opulencia do Brasil, de Andreoni, ou a Historia da America Portuguesa, de Pitta, no fal- iando j nos Dilogos das Grandezas do Brasil, ou na Historia do Brasil, de Vi- cente do Salvador, por serem dois docu- mentos bem mais antigos, a vida social era ento tambm intensa no Rio de Janeiro e em S. Paulo, e tinha desde esse tempo ir- rompido pelos sertes mineiros. E por isso que durante a segunda me- tade do sculo de Voltaire e Rousseau, as cidades das Minas, nomeadamente Villa Rica, so verdadeiros focos intellectuaes em que a intelligencia colonial faz verdadeiros - I V - prodgios. Os nomes de Santa Rita Duro, Basilio da Gama, Cludio da Costa, Thomaz Gonzaga, Alvarenga Peixoto so ainda hoje dos mais illustres da poesia brasileira. Pouco importa o haverem todos elles ido velha metrpole colher as luzes da cul- tura. L,evavam n'alma ps bons germens, hauridos na ptria, os nobres estmulos que no morrem nunca. Era isto indispensvel para que apurassem alli o ouro de lei da boa linguagem, que deveriam de volta, como millionarios, espalhar entre os patrcios. Se a me-patria nos reenviou polidos Gon- - zaga, Cludio, Basilio, os Alvarengas; ns dmos-lhe feito o extraordinrio e inexce- divel Vieira, a mais colossal figura de suas lettras depois de Cames. E' que na Bahia tambm havia um sanctuario da boa e elo- qente linguagem e, se ,os poetas mineiros muito deveram ao Reino para a formao de seu 'gnio, no menos certo que muito lhes entrou n'alma a grande tradio da es- chola bahiana. SANTA RI TA DURO como um lao que une as duas escholas, o trao que liga frei Santa Maria Itaparica a Clu- dio, aos\ Alvarengas e a Gonzaga. Nem devemos esquecer ter passado este.ultimo a meninice e primeira mocidade em Pernam- 20 buco e Bahia, circumstancia de grande valor no caso. O autor do Caramur, assumpto tomado historia bahiana, um Santa Maria Itaparica um pouco mais desenvolvido e accentuado- N' elle como em Basilio, como em Cludio, como em Gonzaga, como nos dois Alvaren- gas, quer no fluminense (Alvarenga Peixoto), que foi viver em Minas, quer no mineiro, que veio habitar o Rio de Janeiro (Silva Alvarenga), a poesia nacional encontrou al- gumas de suas notas mais verdadeiras, mais eloqentes, mais profundas, mais originaes. Ainda hoje quando sentimos saudades da divina mensageira principalmente n'estes seis grandes mestres mortos que nos imos saciar. assim que ouvimos a ronda phantas- tica das tradies chorar as magoas da gentil Moema: E' fama ento que a muttido formosa Das damas, que Diogo pretendiam, Vendo avanar-se a no na via undosa, E que a esperana de o alcanar perdiam, Entre as ondas com anci furiosa Nadando, o esposo pelo mar seguiam; E nem tanta gua que fluetua vaga O ardor que o peito tem, banhando apaga. 21 Copiosa multido da no franceza Corre a ver o espectaculo assombrada; E ignorando a razo da estranha empresa, Pasma da turba feminil, que nada : Uma, que as mais precede em gentileza, No vinha menos bella do que irada: Era Moema, que de inveja geme, E j visinha no se apega ao leme. Brbaro, a bella diz, tigre e no homem... Porem o tigre, por cruel que brame, Acha foras amor, que emfim o domem : S a ti no domou, por mais que eu te ame Frias, raios, coriscos, que o ar consomem, Como no consumis aquelle infame? Mas pagar tanto amor, com tdio e asco... Ah! que o corisco s tu... raio... penhasco! Bem puderas, cruel, ter sido esquivo, Quando eu a f rendia ao teu engano; Nem me offenderas a escutar-me altivo, Que favor, dado a tempo, um desengano : Porm deixando o corao captivo Com fazer-te a meus rogos sempre humano Fugiste-me, traidor, e desta sorte Paga meu fino amor to crua morte ? To dura ingratido menos sentira, E este fado cruel doce me fora, Se a meu despeito triumphar no vira Essa indigna, essa infame, essa traidora ; 22 Por serva por escrava te seguira, Se no temera de chamar senhora A vil Paragua, que sem qe creia, Sobre ser-me inferior nscia e... feia. Emfim, tens corao de ver-me afflicta, Fluctuar moribunda entre estas ondas; Nem o passado amor teu peito incita A um ai somente, com que aos meus respondas : Brbaro, se esta f teu peito irrita, Disse vendo-o tugir, ah! no te escondas, Dispara sobre mim teu cruel raio... E indo a dizer mais, cae num desmaio. Perde o lume dos olhos, pasma e treme, Pallida a cr, o aspecto moribundo, Com mo j sem vigor, soltando leme, Entre as salsas espumas desce ao fundo ; Mas na onda do mar, que irado freme, Tornando a apparecer desde o profundo: Ah! Diogo cruel! Disse com magua, E sem mais vista ser, sorveu-se n' agua. Choraram da Bahia as nymfas bellas, Que nadando a Moema acompanhavam ; E vendo que sem dr navegam dellas. A branca praia com furor tornaram : . Nem pde o claro Here sem pena vel-as, Com tantas provas que de amor lhe davam ; Nem mais lhe lembra o nome de Moema, Sem que o amante chore, ou grato gema. 2 A evoluo patente; a velha poesia bra- sileira, dos sculos XVI, XVII e XVIII, de Pernambuco e Bahia, os dous grandes cen- tros espirituaes d'onde a vida mental irra- diou por todo o norte, e tambm pelo sul do Brasil, passando pelo Rio de Janeiro e S. Paulo, a velha poesia brasileira, quando veio a florescer nos sertes mineiros na se- gunda metade do sculo passado, no des- mentia a sua origem. Vibrava ainda as pri- mitivas cordas da descripo das paizagens americanas; sabia achar accordes para as dores e esperanas nacionaes e no era muda deante dos problemas humanos. Mas que esplendida florao ! que harmonioso desen- volvimento ! No s a natureza exterior que falia imaginativa dos poetas; o homem tambm comea a captival-a; as varias raas e classes da populao despertam-lhe sym- pathias. O interior das almas comea a ser perscrutado. A frma tem-se enriquecido; a mtrica mais variada, mais flexvel, mais ductil; o estylo tem-se tornado mais firme, mais bri- lhante, mais cheio de plasticidade. Tudo isto, porque o pensamento mais amplo, mais consciente, mais profundo. E,m BASI- LIO DA GAMA, em Peixoto, principalmente 24 em Gonzaga e Cludio, a psychologia dos sentimentos j tem o que estudar e definir. A alma do branco, do conquistador no a nica que se julga capaz de nobres aces; a do selvagem tirada do esque- cimento e mostrada a toda a luz. E por isso que ainda hoje a bella e triste Lindoya continua a ser uma das mais encantadoras filhas da phantasia de nossos poetas, um mixto de amor e saudade que brilha na ga- leria de nossos typos ideaes. O scenario digno da heroina e impe-se admirao : Entram emfim na mais remota e interna Parte do antigo bosque, escuro e negro, Onde ao p de uma lapa cavernosa Corre uma rouca fonte, que murmura, Curva latada de jasmins e rosas. Este logar delicioso e triste, Cansada de viver, tinha escolhido Para morrer a misera Lindoya. L reclinada, como que dormia, Na branda relva e nas mimosas flores, Tinha a face na mo, e a mo no tronco De um fnebre cypreste, que espalhava Melancholica sombra. Mais de perto Descobrem que se enrola no seu corpo Verde serpente, e lhe passeia e cinge Pescoo e braos, e lhe lambe o seio. Fogem de a vr assim, sobresaltados, 25 E param cheios de temor ao longe ; E nem se atrevem a chamal-a e temem Que disperte assustada e irrite o monstro, E fuja e apresse no fugir a morte. Porm o dextro Caitut, que treme Do perigo da irman, sem mais demora Dobrou as pontas do arco, e quiz trs vezes Soltar o tiro, e vacillou trs vezes Entre a ira e o temor. Emfim sacode O arco e faz voar a aguda setta, Que toca o peito de Lindoya, e fere A serpe na testa, e a bocca e os dentes Deixa cravados no vizinho tronco. Aouta o campo co'a ligeira cauda O irado monstro, e em tortuosos giros Se enrosca no cypreste e verte envolto Em negro sangue o livido veneno. Leva nos braos a infeliz Lindoya O desgraado irmo, que ao despertal-a Conhece, com que dr! no frio rosto Os signaes do veneno e v ferido Pelo dente subtil o brando peito. Os olhos em que amor reinara um dia, Cheios de morte ; e muda aquella lingua, Que ao surdo vento e aos chos tantas vezes Contou a larga historia de seus males. Nos olhos Caitut no soffre o pranto E rompe em profundssimos suspiros, Lendo na testa da fronteira gruta De sua mo j tremula gravado O alheio crime e a voluntria morte. E' por todas as partes repetido O suspirado nome de Cacambo. 2> Inda conserva o pallido semblante Um no-sei-que de magoado e triste Que os coraes mais duros enternece. Tanto era bella no seu rosto a morte ! Bellissimo surto potico, mais lyrico do que pico, posto seja uma folha arrancada a um poema herico ! E' que, desde os tem- pos de Basilio, nossa ndole de meridio- naes e mestios ia mais e mais seleccio- nando como a frma esthetica, que melhor nos quadra, o lyrismo. E, d'ento at hoje, os maiores lyricos, da lingua nos pertencem. Como entre todos os povos jovens, ou em via de formao, o lyrismo brasileiro quasi sempre meramente descriptivo, por vezes contemplativo, e quasi nunca se eleva pin- tura de situaes caractersticas da vida, d'alma humana nos dolorosos transes da existncia. Assim como a evoluo suprema do drama, da comedia e do romance a pintura completa, por vezes terrvel, dos caracteres, creando os typos immortaes da vasta galeria das paixes, tambm o desen- volvimento completo da lyrica o desenho exacto das situaes do espirito. No basta descrever a paizagem, ou ex- halar,a dmiraes ou queixumes deante dos phenomenos humanos; preciso ir at aos - 2 1 recessos do corao e de l trazer a photo- graphia exacta das crises d'alma individual ou collectiva. E por isso que o Sino, de Schiller, o Cantor, de Goethe, a Filha da Albergueira, de Uhland, so typos magistraes do eterno lyrismo de todos os tempos. Na escola mineira no tinha a musa na- cional chegado plenamente quelle apuro; mas ainda assim j se nos antolham alli profundas expresses d'uma poesia exemplar. Pelos lbios de CLUDIO DA COSTA eis como o gnero dedilha as cordas do co- rao : No se passa, meu bem, na noite e dia Uma hora s que a msera lembrana Te no tenho presente na mudana Que fez, para meu mal, minha alegria. Mil imagens debuxa a phantasia, Com que mais me atormenta e mais me cansa... Pois, se to longe estou de uma esperana, Que allivio pde dar-me esta porfia ? Tyranno foi commigo o fado ingrato Que crendo, em te roubar, pouca victoria, Me- deixou para sempre o teu retrato... Eu me alegrara da passada gloria, Se, quando me faltou teu doce trato, Me faltara tambm delle a memria 28 Em muitas outras notas, como esta, pela bocca do immaculado inconfidente, a alma dolorida da poesia brasileira exhalou-se re- petidas vezes. A evoluo se accentuava cada vez mais; no era s o velho Cludio que sentia o est Deus in nobis; outros re- cebiam eguaes favores, e as lacrimae rerum eram choradas por outros olhos. O gnio altivo de ALVARENGA PE IXOTO tinha s vezes palavras destas: No cedas, corao ; pois nesta empresa 0 brio s domina; o cego mando Do ingrato amor seguir no deves, quando J no podes amar sem vil baixeza. Rompa-se o forte lao, que fraqueza Ceder a amor, o brio deslustrando ; Vena-te o brio, pelo amor cortando, Que honra, que valor, que fortaleza. Foge de vr Alla; mas se a vires Por que no venhas, outra vez a amal-a, Apaga o fogo, assim que a presentires. E se inda assim o teu valor se abala, No lh'o mostres no rosto; oh! no suspires! Calado geme, soffre, morre, estala! Mas onde este outro inconfidente foi ver- dadeiramente admirvel, pela intuio ntida de nossa situao em fins do sculo XVIII, 29 - foi no afamado Canto Genethliaco, dirigido ao filho de D. Rodrigo de Menezes, go- vernador de Minas, nascido no Brasil. Alli, como j uma vez dissemos, comprehendeu elle a posio ethnica dos brasileiros e vio claro o nosso futuro, tendo, demais, um brado de alento para os mseros escravos. O Canto Genethliaco uma como revela- o; n'elle est o poeta com todos os seus enthusiasmos e todas as suas esperanas. Contrape a Portugal o Brasil rude, certo, mas rico e cheio de porvir; n'aquelles versos o sentimento real, o espirito brasileiro os alenta,, affirmando nossas prerogativas. Que firmeza de tons, que lyrismo espontneo nas largas frmas d'estas estrophes!. . . Ouam: Esses partidos morros escalvados, Que enchem de horror a vista delicada, Em soberbos palcios levantados Desde os primeiros annos empregada, Negros e extensos bosques to fechados, Que at ao mesmo sol negam a entrada, E do agreste paiz habitadores Brbaros homens de diversas cores ; Isto, que Europa barbaria chama, Do seio de delicias to diverso, Quo differente para quem ama Os ternos laos de seu ptrio bero! - 30 - O pastor louro, que meu peito inflamma, Dar novos alentos a meu verso, Para mostrar de nosso here na bocca Como em grandezas tanto horror se troca. Aquellas serras, na apparencia feias, Dirs, por certo, oh! quanto so formosas! Elias conservam nas occultas veias A fora das potncias magestos-is; Tm as ricas entranhas todas cheias De prata, ouro e pedras preciosas ; Aquellas brutas, escalvadas serras Fazem as pazes, do calor s guerras. Aquelles morros negros e fechados, Que occupam quasi a regio dos ares, So os que em edifcios respeitados Repartem raios pelos crespos mares. Os corynthios palcios levantados, Dos ricos templos jonicos altares, So obras feitas desses lenhos duros, Filhos destes sertes, feios e escuros. A c'roa d'ouro, que na festa brilha, E o sceptro que empunha na mo justa, Do augusto Jos a herica filha, Nossa rainha soberana augusta, E Lisboa de Europa maravilha, Cuja riqueza a todo mundo assusta, Estas terras a fazem respeitada, Barbara terra, mas abenoada!... 31 - Esses homens, de vrios accidentes, Pardos, pretos, tinctos e tostados, So os escravos duros e valentes. Aos penosos servios costumados : EUes mudam aos rios as correntes, Rasgam as serras, tendo sempre armados Da pesada alavanca e duro malho Os fortes braos feitos ao trabalho. Houve, no sculo XIX, um momento em que a poesia se tornou tribunicia, vestio a blusa do operariato e verberou os abusos dos reis, estygmatizou os soffrimentos do povo tecendo hymnos s esperanas das des- protegidas classes sociaes. No haver uma illuso da critica, se ella notar nas bellas oitavas que acabam de ser ouvidas alguma cousa que um presenti- mento de to expressivos ardores humanos e patriticos. Podemos avanar ser isso a verdade ; e bem claro se ter visto como se foi encordoando a lyra de nossa poesia. A' corda da descripo naturalista, junctou-se a religiosa e mais a satyrica e mais a pes- soal e subjectiva e mais a patritica e hu- manitria. Temos j a gamma completa, faltando ainda, por certo, a dexteridade quasi perfeita da execuo e a originalidade e profundeza quasi inexcediveis dos tons. 32 - o que s ha de vir com o tempo, a pouco e pouco, em o decorrer do sculo que vai das Lyras de um T. ANTNI O GONZAGA (1792) aos Broqueis de um Cruz e Souza (1893). O desditoso amante de Marilia, o ma- goado Dirceu, ainda estava no Brasil, d' onde sahio degredado para as Pedras de Angoche, em frica, em fins de Septembro de 1793, quando em Lisboa apparecia a primeira edi- o das Lyras, no anno anterior. Apezar da gloria que o celebrizou desde logo, no deixou de ser condemuado, como envolvido na Inconfidncia mineira, e de amargurar os dias em frica at 1809. Neste inconfidente a poesia affirmou-se como alguma cousa de sonoroso e cantante que cahia na alma emocionada do povo. Depois dos Lusadas de Cames nenhum livro tem sido mais amado por ns do que a Marilia de Dirceu. E com razo. que alli esto muitas das notas mais sincera- mente sentidas que j uma vez foram mo- duladas em lingua portugueza. O lyrismo pessoal e ntimo, se no chega s maiores profundezas do gnero, doce e acariciante, cheio de donaires e finezas, e, sobretudo, ternamente magoado. Eis como - 33
a lyra ento falia a linguagem selecta dos apaixonados: Propunha-me dormir no teu regao As quentes horas da comprida ssta, Escrever teus louvores nos olmeiros Toucar-te de papoulas na floresta; Julgou o justo cu que no convinha Que a tanto gro subisse a gloria minha. Ah ! minha bella, se a fortuna volta, Se o bem que j perdi, alcano e provo, Por essas brancas mos, por essas faces, Te juro renascer um homem novo ; Romper a nuvem que os meus olhos cerra, Amar no cu a Jove e a ti na terra... Ns iremos pescar na quente ssta Com canas e com cestos os peixinhos ; Ns iremos caar nas manhs frias Com a vara envisgada os passarinhos ; Para nos divertir faremos quanto Reputa o varo sbiohonesto e santo. Nas noites de sero nos sentaremos Cos. filhos, se os tivermos, fogueira ; Entre as falsas historias que contares, Lhes contars a minha verdadeira ;, Pasmados te ouviro ; eu, entretanto, Ainda o rosto banharei de pranto... A poesia em Gonzaga teve, alm de sua- vssimas notas lyricas, de caracter pessoal e 3 34
psychologico, bellos surtos descriptivos e realistas da natureza e da sociedade. Nos versos citados, como em todos os da Marilia, ha um caracterstico tom de affago, de brandura, de meiguice, sem affectao, sempre real, verdadeiro, capaz, s por si, de dar a medida do caminho percorrido pelo espirito brasileiro, no terreno da arte, du- rante trez sculos. ITT A passagem de Gonzaga para SILVA AL- VARENGA naturalissima. Um teve sua Marilia e outro a sua Glaura; ambos poe- tas lyricos, e ambos amantes apaixonados; ambos contemporneos e amigos. Silva Alvarenga serve para plenamente mostrar a transio da poesia mineira para o Rio de Janeiro e do sculo XVIII para o XIX. O poeta veio fixar-se, depois de formado, na capital da colnia, onde dedicou-se advo- cacia e ao magistrio, e onde falleceu em 1814. Ainda aqui, na ra de 1863, conhe- cemos alguns velhos que tinham sido dis- 3 5 cipulos do notabilissimo cantor de Glaura. O livro de madrigaes e ronds d'esse ex- traordinrio poeta, que consideramos o maior dos tempos coloniaes, appareceu em 1801. Abrio-se assim brilhantemente na poesia o sculo XI X no Brasil. O livro de Glaura, como forma e brilhantismo de estylo, su- perior ao de Marilia. A poesia foi diffe- rente nos dous cultores ; em Silva Alva- renga, mestio em regra, ella foi acima de tudo a arte da palavra, da frma sonora, do rythmo musical. Temperamento meridional, amigo dos tropos cadenciados, deliciava-se nas cambiantes dos sons, no susurro, das rimas. As delicadezas da arte chegavam a este poeta principalmente pelo ouvido; a natureza era para elle um marulho lan- guido, perdendo-se longe, bem longe, no in- finito. Gonzaga era o poeta das imagens exte- riores, das frmas opulentas, dos quadros deslumbrantes: a poesia vinha-lhe principal- mente pela vista. Em Alvarenga ha sem- pre os gemidos, os marulhos da lympha, os susurros das folhas e das brisas, os sons da lyra, o canto das aves; em Gonzaga vm as flores, os mares, as nuvens, as estrellas, as auroras, e tudo isto ainda pouco para for- 3o necer as cores com que o poeta possa re- tratar a sua amada. Ha, por outro lado, na poesia de Silva Alvaienga mais talvez do que na de Gon- zaga, pronunciado brasileirismo, e um brasileirismo no consistente em descripes, como j o tinham feito outros, do homem americano, o selvagem, o caboclo; sim um brasileirismo, que se prazia, como o primi- tivo, em apreciar o torro ptrio. D'ahi a cr natural de seus quadros, que se passam de ordinrios entre as manguei- ras, os cajueiros, os coqueiros, os pssaros, os beija-flores, nas bellas tardes americanas aos reflexos rutilantes do sol tropical. E esses quadros naturaes servem apenas de moldura a uma poesia subjectiva, intima, pessoal, auto-psychologica, qual a que teria- mos de vr entre as geraes de romnticos,' quer europos, quer brasileiros, a datar de 1820 a 1870. Ouamos-lhe algumas notas para bem sa- bermos em que altura nos achamos e nor- tearmos bem a nossa rota. Eis uma: Se eu conseguisse um dia ser mudado Em verde beija-flor, oh que ventura! Desprezara a ternura Das bellas flores no risonho prado. 37 Alegre e namorado, Me verias, oh Glaura, em novos giros, Exhalar mil suspiros; Roubando em tua face melindrosa O doce nectar de purpurea rosa. E bello isto: mas eis o que talvez seja mais bello: No desprezes, oh Glaura, entre estas flores, Com que os prados matiza a bella Flora, O jambo que os amores Colhero ao surgir a branca aurora, A dryade suspira, geme e chora Afflicta e desgraada. Ella foi despojada... os ais lhe escuto... Vers neste tributo, Que por sorte feliz nasceu primeiro, Ou frcto que roubou da rosa o cheiro, Ou rosa transformada em doce fructo. Alvarenga Peixoto, a datar de 1777, anno em que se fixou no Rio de Janeiro, natu- ralmente se constituio o centro em torno ao qual se haviam de mover os espritos in- telligentes, que abrilhantaram a velha capi- tal dos vice-reis durante as duas ultimas dcadas do sculo passado e as duas pri- meiras do sculo prestes a findar. Sousa Caldas, S. Carlos, Sampaio, Rodovalho, Ma- 38 riano J. Pereira da Fonseca, Janurio da Cunha Barbosa, monsenhor Pizarro e Arajo, padre Luiz Gonalves dos Santos, monsenhor t Netto padre Jos Maurcio e o prprio Mon- fAlverne, que j tinha trinta annos quando Alvarenga falleceu, so desse numero. A poesia n'esse meio, a que se vieram junctar pouco mais tarde Villela Barbosa e Bonifcio de Andrade era certamente' a velha poesia da phase clssica, a delicada filha do Renasci- mento, a dilecta disciplina do humanismo, porm 'rejuvenescida ao sol d'America. A quem sabe ler com amor e sentir com abun- dncia d'alma a poesia em algumas paginas escolhidas de Cludio, de Peixoto, de Gon- zaga, de Silva Alvarenga, de Duro, de Ba- silio da Gama, de Sousa Caldas e s quaes no fora talvez exaggerado junctar umas poucas de Natividade Saldanha e do vigrio Ferreira Barrettto, de Pernambuco, n' esse tempo e de frei Bastos Barana da Bahia na mesma epocha, e de Tenreiro Aranha, no Par, em egual pariodo, a quem, sabe lr com amor e sentir com abundncia d'alma a poesia em algumas paginas selectas d'estes escriptores mostra j todas as intuies ca- pites que vieram a ser pelos romnticos transformadas em svstemas com tendncias 39 exclusivistas e dadas por novidades origi- naes de sua doutrina. A quem s sabe enxergar na litteratura brasileira e na das Amricas em geral meras copias das lettras europas, de forma a no ser cada perodo novo o desenvolvimento natural do antece- dente, e sim apenas a cpia servil d'alguma ,phase correlativa do pensamento d'alm Atlntico, a evoluo de nossa poesia, como a de qualquer outra manifestao de nossa energia espiritual, torna-se um enigma inso- luvel. Mas este systema deprimente ab- solutamente absurdo e no tem o apoio dos factos. As quatro ou cinco ou, se quizerem, seis notas capites do romantismo brasileiro no so mais do que o desenvolvimento natural e evolutivo de intuies j existen- tes no seio do velho lyrismo dos nossos clssicos. Vejamos essas cinco ou seis notas tnicas e indiquemos a evoluo. O nosso romantismo, logo no seu primeiro momento, mostrou trez coloraes princi- paes, que se transformaram em trez syste- mas, em trez escholas: tendncia religiosa ou crente, tendncia indiana ou america- nista, tendncia campestre ou costumeira; a primeira predominou em Magalhes, prin- cipalmente ns seus Suspiros Poticos e 40 Saudades, nos seus Mvsterios e Cantos Fnebres; a segunda em Gonalves Dias, em alguns de seus Cantos e nos Tymbiras; a terceira em Porto Alegre em varias de suas Brasiliadas. Ora, quem desconhecer a origem da pri- meira na velha intuio religiosa, j to vi- brante em Euzebio de Mattos,, em Santa Maria Itaparica, o cautor de Santo Eus- tachio, e chegada ao apogo em Sousa Caldas, nas suas poesias originaes, alm da bella traduco dos Psalmos, e em frei S. Carlos, no poema Assumpo da Virgem? Para que desprezar as influencias naturaes de casa e sonhar apenas com estmulos "ex- tranhos ? No s: a intuio inianista, ameri- cana, indgena, ou como lhe queiram cha- mar, que teve em Gonalves Dias apenas sua especial perfeio, vinha, ininterrupta- mente de Basilio da Gama, de Santa Rita Duro e dos poetas menores que lhes suc- cederam at os tempos do primeiro reinado e da regncia, bastando citar, entre outros exemplos, a famosa nenia Nictheroy, de Firmino Rodrigues Silva. A terceira, con- junctamentei ou na sua dupla face descri - ptiva das scenas da naturega e descri- 41 ptiva dos costumes populares, nomeada- mente_os costumes pittorescos dos campo- nios, dos aldees e das classes plebas, ou separadamente numa ou noutra destas duas tendncias, nossa velha conhecida em pa- ginas de Botelho de Oliveira, de Santa Maria Itaparica, .de Cludio, de Silva Ava- renga, de Alvarenga Peixoto, de Gonzaga e at de S. Carlos e, em sentido muito geral, do prprio Bento Teixeira Pinto. Ainda mais: o romantismo, em sua segunda phase, quando entrou a gemer e a lamuriar, em uma palavra, quando arvorou a melan- cholia em deusa predominante da poesia, no tem grande penetrao histrica, falta- lhe o senso da intuio dos tempos, se, prin- cipalmente em Silva Alvarenga, Thomaz Gonsaga e sobretudo em Cludio, no se lhe depararem paginas, que poderiam ser assignadas pelos seus mais lamartinianos ou byronianos poetas. E ainda mais: a nota patritica e a social, que vieram, na eschola condoreira, a fechar a epocha romntica, andam, em ambas as suas manifestaes, esparsas em toda a velha poesia clssica, bastando lembrar, de Silva Alvarenga, o mestio genial, as odes: a Affonso de Al- buquerque, A' Mocidade Portuguesa e o 42 poemeto As Artes, e d'outro mestio de grande talento os hymnos que dedicou a cada um dos heres da guerra hollandeza, o pernambucano Natividade Saldanha. Desfarte comprehende-se o andar normal dos factos e a poesia, bem como a arte e a litteratura em geral, perde aquelle caracter forasteiro e advnticio, para assumir as fei- es de uma funco que se desenvolve por seleco natural, por hereditariedade e ada- ptao a novos meios. No isto desco- nhecer a aco da influencia europa, nem amesquinhar o valor do romantismo e dos systemas que o substituram. Bem ao coutrario. A vida espiritual no Brasil comeou por importao do Velho Mundo; mas esta implantao no se fez apenas a datar do romantismo. Tinha-se feito trez sculos antes, de frma que, ao iniciar-se a romntica, j encontrou entre ns todos aquelles germens de que ella pr- pria teria de brotar nas terras transatlnti- cas, e, assim veio a ser, antes e acima de tudo, um broto espontneo de antigos tron- cos, alm de ser tambm estimulada pelas influencias europas. Por outros termos: nossa terra , ha trez sculos a esta parte, uma participe da cultura 43 occidental, onde', portanto, esto depositadas todas as foras e energias que a constituem. A evoluo vai-se, pois, fazendo aqui e alm com os mesmos elementos e sob idnticos princpios. Pde a Europa ir adeante em certos assumptos; porm n' outros no de extranhar que lhe tomem o passo a America ou a Austrlia, ou at a frica e a prpria sia, quando tambm estas acabaram por se constituir em naes de typo europo. E o destino do mundo e elle se ha de cumprir. TT Mas apreciemos a evoluo do romantis- mo, indicando as transformaes da poesia. ( x ) No este o logar mais prprio para ainda uma vez discutir a indole e a natureza da famosa evoluo litteraria e artstica, que (1) Sobre o significado da revoluo romntica e analyse das di- versas theorias que tm apparecido a esse respeito, veja-se His- toria da Litteratura Brasileira, livro IV, capitulo I, pag. 683 a 691. Sobre as relaes do nosso romantismo com a litteratura colonial, vejam-se .\ovos Estudos de Litteratura Contempornea, pag. 300. 44 sob o nome de romantismo, eucheu quasi toda a vida espiritual do sculo XI X. Indicadas as phases principaes que atra- vessou em nosso paiz, como se l nas linhas acima e mais indevidualdamente no quadro synoptico deixado paginas atraz, lembrados o como e o porque se prendem todas as suas escholas a germens existentes na litte- ratura colonial, resta-nos caracterizar os seus principaes representantes. Taes ca- ractersticas no podem deixar de ser traos rapidssimos, as mais das vezes simples no- taes, apenas esboadas. DOMINGOS JOS GONALVES DE MAGA- LHES (1811 1882), pelo que diz respeito frma, ao estylo, s roupagens da poesia, por certo nada adeanto.u aos escriptores das ultimas dcadas do sculo passado. Ha in- questionavelmente mais mimos de frma, mais bellezas naturaes e espontneas nos versos de Gonzaga e Cludio e de Silva Alvarenga do que nos do auctor dos Sus- piros Poticos. A esthetica de Magalhes, leva, porm, vantagem aos seus predecessores na varie- dade, grandeza e solennidade dos assum- ptos. V-se bem que o poeta, tendo feito viagem ao velho mundo e estudado a litte- 45 -- ratura europa, deixou-se impressionar por grandes factos e grandes scenas do antigo mundo. Sem espirito reflexivo procurou conscientemente agir na reforma da poesia, na creao do theatro e no estudo da phi- loscphia entre ns. Tal o intuito dos Suspiros Poticos, de Antnio Jos ou o poeta e a Inquisio e dos Factos do Espirito Humano. Se a poesia em Magalhes no possue a graciosidade, a delicadeza de tons, os mil segredos acariciautes da frma; se no nos d em notas inolvidaveis nem a paizagem> nem o viver intimo das almas, no importa isto negar-lhe certo vigor nos bons momen- /tos. Eis como a musa n'elle falia de Na- poleo, perdido na sua ultima batalha: Sim, aqui estava o gnio das victorias, Medindo o campo com seus olhos d'aguia ! O infernal retintim do embate d'armas, Os troves dos canhes que ribombavam, O sibillo das balas que gemiam, O horror, a confuso, gritos, suspiros, Eram como uma orchestra a seus ouvidos! Nada o turbava ! Abbadas de balas, Pelo inimigo aos centos disparadas, A seus ps se curvavam respeitosas, Quaes submissos lees; e, nem ousando Tocal-o, ao seu ginete os ps lambiam.. 46 - - A lyrica, em um poeta como o auctor dos Suspiros, de Urania e dos Cantos Fne- bres, tem sempre certa envergadura philo- sophica, expresso de um expirito pensador. O amor n' uma alma dessas uma espcie de emanao das foras eternas que regem o universo. A sua amada desce-lhe do seio do infinito: Alto saber proclama a Natureza, Proclama alto poder D'aquella Eterna Fonte de belleza Que brilha em todo ser. E quanto a vasta immensidade encerra O louva sem cessar ; O dia, a noite, o co, o mar, a terra O ho de sempre amar. E por tudo que eu via o adorava, Que EUe tudo criou ; Mas, por mais um prodigio eu esperava : E um Anjo a' mim baixou. Um Anjo pareceu-me que descia Da clica manso, N Tanto seu divo aspecto me infundia Amor e devoo. Nunca to pulcKra, em todo o jrmamento, Estrella reluzio; Nunca to bella, sobre o salso argento, Aurora resurgio ! 47 Nunca em viso potica arroubado Delicia igual senti, Como nesse momento afortunado, Em que seu rosto vi. Absorto vi seu rosto peregrino, E o seu rosto era o teu ! Sim, era o teu ! E que outro mais divino Me mostraria o cu ?... V-se, em todo caso, que as boas tradi- es do sculo anterior foram conservadas em Magalhes uos felizes momentos. Em MANOEL DE ARAJO PORTO ALE GRE (18061879) o mesmo se deu, isto , teve pulso bastante para no desmentir a lei da evoluo. O lyrismo n'elle, se no um progresso sobre o da eschola mineira, no mostra si- gnaes de retrocesso; se no ostenta mui pronunciados mimos, delicadezas, douras de frma, em compensao est cheio de grandes quadros, bellas pinturas da natu- reza que do claros signaes de sua alma enrgica e vigorosa. Nas Brasilianas no existem amostras de poesia pessoal, intima, psychologica; tudo so scenas do mundo exterior ou da his- toria da humanidade. Se Magalhes pde - - 48 ser considerado uma espcie de precursor entre ns da poesia scientifica, Porto- Alegre um antecipador da poesia hist- rica, a poesia que se praz na apreciao dos vrios cyclos das luctas da civilizao. Neste sentido caracterstico o poemeto escripto em 1835, o Canto sobre as ruinas de Cumas, denominado A Vos da natu- resa. alguma cousa que lembra os pe- quenos poemas da Lenda dos Sculos de V. Hugo, mas muito anterior. A musa falia pela voz do Horisonte, do Circeum, de Gaeta, do Oceano, de Tubero, de uma Columna Dorica, de um Rouxinol, de Pontia, de PandataHa, do Amphitheatro, de Pithecusa, de Rochyta, de Caprea, do Visuvio, etc. como o entoar de um coro immenso em que cantam as dores e as sau- dades de todos. Diz uma das vo/ es: Toca a hora : silencio ! A hora sa Em que o globo inflammado, Que o dia terra mostra, Do ethereo oceano ao fundo rola, E das celestes vagas j levanta As gotas luminosas que borrifam O vasto Armamento. Salve, estrellante noite, Que do Bero da aurora resurgindo De um manto adamantino te apavonas 49 Nas ceruleas campinas ! Vagai na immensidade, ardentes cirios, Que s a immensidade ora me encanta, Mesquinha mente a terra me parece. Mysticos sonhos, clica harmonia, Adejai vossas azas, Resoai no infinito ; Sombras de amor, passai, passai ligeiras, Danai e repeti em muda lingua O nome que idolatro. A poesia em Porto Alegre tem duas notas capites: uma lhe era ministrada por certa intuio pantheista que transuda de toda essa bella symphonia A Vos da Natureza, e tambm se evola de muitas das melho- res paginas do Colombo ; a outra era ori- ginada de scenas da paizagem brasileira. Deste ultimo cunho so a Destruio das Florestas, o Corcovado, o Harpoador. No seu brasileirismo entrou mais, muito mais o solo, a terra, do que o homem. Este ra- ramente appareceu, e o poeta, por isto, ainda um genuino continuador da poesia clssica do sculo antecedente. Mas, em sentido geral, elle o precursor, si no o fundador, da eschola sertanista e campesina de nossa poesia, porque delia teve o pre- _ sentimento, sem que a levasse plenamente a effeito. 4 5(1 Tinha de caber a ANTNI O GONALVES DI AS (1823 1864) a fuuco de preencher as lacunas dos dous mestres anteriores do romantismo. Neste extraordinrio mestio todas as cordas da lyra vibraram uuisonas. Fundo e frma, a natureza e o homem, vida civilizada e vid^ selvagem, scenas das cida- des e scenas da roa, tudo, tudo se apurou e refulgio, passando pela voz desse vate in- sigue. Tem-se dicto que elle foi pura e simples- mente o cantor dos selvagens, o poeta dos ndios. E certo que o que se veio a cha- mar o indianismo fora, em tempo, o mo- mento capital de seu poetar, ou, pelo menos, foi por essa face que elle mais impressionou os contemporneos. Mas a verdade que sua palleta era muito mais variada em tin- ctas; o simples indianismo era por si s incapaz de explicar um caracter to com- plexo, como foi o poeta d'O Gigante de Pedra, o dramatista de Leonor de Men- dona. Este sim, fez avanar e muito a herana recebida dos proto-romanticos da es- chola mineira. Apreciemos a poesia nelle em rpida silhouete. O autor de Marab, da Me d'agna, do Ileito de folhas verdes, do Gigante de 51 Pedra, do Y Juc-Pirama, dos Tymbiras, que tambm o auctor das Sextilhas de Frei Anto, isto , o auctor do que existe de mais nacional e do que ha de mais por- tuguez em nossa litteratura, j o temos dicto mais de uma vez, um dos mais n- tidos exemplares do povo, do genuno povo brasileiro. E o typo do mestio physico e moral, encarnao completa do caracter ptrio. Gonalves Dias era filho de por- tuguez e mameluca, o que vale dizer que descendia das trez raas que constituram a populao nacional e representava-lhes as principaes tendncias. Aos africanos deveu aquella expansibilidade de que era dotado, aquella ponta de alegria que no o deixou jamais e que especialmente se nota em suas cartas. Aos ndios, as melancholias sbitas, a resignao, a passividade com que sup- portava os factos e acontecimentos, deixan- do-se ir ao sabor delles. Aos portuguezes, o bom senso, a nitidez e clareza das idas, a religiosidade que nunca o abandonou, a energia da vontade, as precaues phanta- sistas, um certo idealismo indefinido, im- palpavel. Junctae a tudo isto fortes im- presses de luz e de cores, de vida e de movimento, fornecidas pela natureza tropi- cal, que se expande pela regio em fora que vai de Caxias a S. Luiz; junctae ainda as scenas martimas da primeira viagem a Por- tugal; no esqueais os quadros da natu- reza e da vida provinciana no velho reino, e nem to pouco os panoramas indescripti- veis do Rio de Janeiro e regio circumvi- zinha; trazei a esse concurso de factos e circumstancias as leituras dos -poetas anti- gos e modernos, o estudo das chronicas coloniaes, e tereis os elementos predominan- tes e constitutivos do talento artistico desse valente e mimoso lyrista. Os chefes do romantismo portuguez, nos ltimos annos (18431845) passados pelo escriptor maranhense em Coimbra, j tinham publicado suas obras principaes, e a evolu- o da poesia entre os epgonos, havia at- tingido a phase do sentimeutalismo affe- ctadp e esterilizante. O nosso poeta, j de si bastante melau- cholico, aprendeu aquella maneira e deixou- se eivar da molstia geral O seutimenta- lismo , desfarte, uma das notas mais inten- sas do seu trovar; mas preciso ser surdo para no ouvir que um intenso naturalismo americano, um certo mysticismo religioso, o calor e a effuso lyricas junctam s notas 53 montonas daquelle sentimentalismo as vo- latas e fanfarras d'uma poesia variada, am- pla, serena, meiga, embriagadora. A volta do poeta para o Brasil, sua nova estada no Maranho, sua subsequente partida para o Rio de Janeiro entram como factores na formao de seu talento. Sob a aco de to variados estmulos, claro que o poeta no podia ficar no circulo estreito do melancholismo e nem to pouco em o mbito apertado do indianismo. A verdade que esse illustre lyrico, sem pla- nos preconcebidos, espontaneamente, sem impulsos doutrinrios, s pela fora nativa de sua intelligencia, seleccionada pelas cir- cumstancias, deixou-se influenciar pela vida dos selvagens, como em Y Juc Pirama e dez outras composies; pelas tradies por- tuguezas, como nas Sextilhas de Frei Anto e em Leonor de Mendona; pelos soffrimentos dos escravos pretos, como na Escrava e na Meditao; pelos sentimen- tos e phantasias dos mestios, como em Marab. E todas estas notas no exgottam ainda a complexidade do sentir do poeta. mister junctar-lhes a poesia pessoal e subjectiva e a poesia exterior e paiza- gista. v 54 Em summa: a musa sagrou neste homem um poeta e poeta lyrico. Deu-lhe a vibra- tilidade das sensaes, a ideao prompta e mobil, a linguagem fluida, sonora e cadente, o espirito sonhador e contemplativo, a ima- ginao sempre prompta a desferir o vo. No era da raa dos que confundem a poesia com a eloqncia, a musica d'alma com os sons de um instrumento. Tal o poeta; e no poeta o lyrista distinguia-se pela justeza do sentimento, a doura das imagens, a delicadeza das tinctas, a facili- dade das idas, a espontaneidade da frma, o vo sereno de,todas as foras espirituaes. E por isso que muitas de suas produc- es so bellissimas poesias e das mais en- cantadoras da lingua portugueza. Eis aqui alguma cousa que pde bem claro mostrar a distancia percorrida pela ly- rica nacional em trez sculos; comparem-se estas estrophes cantantes, aladas, levssimas, esta musica de palavras que deslisam fulgi- das e macias, com as oitavas de Bento Teixeira, ou de Santa Maria Itaparica, ou de Santa Rita Duro; comparem-n'as com as estrophes de Gregorio de Mattos, ou de Botelho de Oliveira, e at de Cludio, de Gonzaga e de Alvarenga Peixoto: 55 Eu vivo ssinha; ningum me procura. Acaso feitura No sou de Tup ? Se algum d'entre os homens de mim no se esconde Tu s, me responde, Tu s, Marab ! Meus olhos so garos, so cor das saphiras, Teem luz das estrellas, teem meigo brilhar ; Imitam as nuvens de um cu anilado, As cores imitam das vagas do mar. Se algum dos guerreiros no foge a meus passos : Teus olhos so garos, Responde anojado: mas s Marab : Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes, t Uns olhos fulgentes. Bem pretos, retintos, no cr de anaj! E' alvo o meu rosto, da alvura dos lyrios, Da cr das aras batidas do mar; As aves mais brancas, as conchas mais puras No teem mais alvura, no tem mais brilhar. Se ainda me escuta meus agros delrios : E's alva de lyrios Sorrindo responde : mas s Marab: Quero antes um rosto de jambo^ corado, Um rosto crestado, Do sol do deserto, no flor de caj! 56 Meu, collo de neve se curva engraado Como hastea pendente de cactos em flor ; Mimosa, indolente, resvalo no prado, Como um soluado suspiro de amor!... E intil proseguir. Certo est evidente: com este poeta o romantismo j est de posse de suas principaes armas. A evolu- o vai continuar, mostrando outras faces dos factos e das idas: porm raro exceder a poesia dos Cantos, como frma e como fundo. Depois do triumvirato inicial da phase romntica, podemos passar em silen- cio a aco dos epgonos, que se acercaram delles: Teixeira e Sousa, Norberto Silva, Dutra e Mello, Francisco Octaviano, Joo Cardoso de Meneses e Sousa, ^Joaquim Jos Teixeira, Manoel Pessoa da Silva, Torres Bandeira, padre Correia de Al- meida, Felix Martins, Jos Maria Velho da Silva e outros. Nada influram na evo- luo da poesia entre ns. Seria possivel abrir uma excepo para Francisco Octaviano, se a poltica no o tivesse feito abandonar de todo a arte, con- finando-o no terreno safaro do jornalismo partidrio e da eloqncia parlamentar. Em todo caso, justo dar-lhe um distincto logar na poesia nacional, por algumas pro- 57 duces originaes e principalmente por suas bellas traduces de v poetas inglezes e alle- mes. Meno distincta mereceria tambm Dutra e Mello. A elle e a outros de seus contempor- neos j fizemos justia na Historia da Litteratura Brasileira. ndole desta me- mria obriga-nos a insistir apenas nos che- fes de fila, os abridores de caminho, guias de grupos. T7"I Entre o triumvirato da primeira phase do romantismo e o triumvirato mussetista e byroniano de sua segunda phase, temos de abrir espao para quatro poetas dos mais notveis do Brazil, que no podem ser cha- mados meros discpulos dos primeiros nem dos segundos. So: Moniz Barreto, Maciel Monteiro, Jos Maria do Amaral e Laurindo Rabello. Os dous primeiros eram mais velhos que Porto Alegre, o mais antigo da trindade inicial do omantismo; o terceiro era da edade de Magalhes, e o quarto era ante- 58 - rior um pouco a Gonalves Dias, o mais moo do grupo. No , porm, por este mo- tivo que so collocados parte; que seu trovar foi deveras divergente. FRANCISCO MONIZ BARRETO (18041868) foi educado na velha poesia clssica ao gosto e geito de muitos outros poetas do comeo do s- culo XIX. No foi propriamente um lyrico; no tinha nem imaginao nem sentimento para isto. O que lhe garante um logar na historia litteraria o seu raro e verdadeira- mente phenomenal talento de repentista. Eis uma amostra: Ver. . . e do que se v logo abrazado Sentir o corao de um fogo ardente, De prazer um suspiro de repente Exhalar, e aps elle um ai magoado; Aquillo que no foi inda logrado, Nem o ser talvez, lograr na mente; Do rosto a cr mudar continuamente, Ser feliz e ser logo desgraado ; Desejar tanto mais quo mais se prive, Calmar o ardor que pelas veias corre, J querer, j buscar que elle se active ; O que isto , a todos ns occorre : Isto amor, e deste amor se vive ; Isto amor, e deste amor se morre,. , 59 Bellissimo soneto e admirvel como re- pente. D'estes o poeta improvisou cente- nares. A poesia em ANTNI O PE RE GRI NO MA- CIEL MONTEIRO (18041868) foi particular- mente notvel pelo brilho das imagens, o colorido da phrase. O poeta habitou Pariz de 1822 a 1829, concluindo alli os estudos preparatrios e formando-se em medicina. Assistio, portanto, acol s grandes luctas do romantismo, sob a direco de Victor Hugo, Lamartine, Sainte Beuve, -Vigny e consocios. Em 1830 j se achava de volta no Brasil, sendo deputado e ministro no pe- rodo regencial. Um homem d'estes, mais velho que Magalhes, conhecedor da vida parisiense treze annos antes delle, espirito muito mais vivace, testemunha directa das mutaes litterarias operadas em Frana du- rante o terceiro decennio deste sculo, no tinha a esperar que o poeta fluminense, es- pirito muito mais tardo, clssico emperrado ainda em 1832 nas Poesias Avulsas, fosse Europa e nos enviasse de l os Suspiros Poticos em 1836, para comprehender e seguir a nova eschola. Cremos que os pri- meiros versos romnticos escriptos por bra- sileiros foram de Maciel Monteiro. 6(1 Cada citao, rpida que seja, que vamos fazendo, pura e simplesmente para mostrar as frmas diversas que a poesia vai assu- mindo e assim sorprehender em flagrante os passos da evoluo. Em Maciel Monteiro a arte da poesia reveste uma lucidez, uma transparncia de roupagens, como raras vezes tem acontecido na lingua portugueza. o mais antigo poeta hugoano do ptrio idioma nos dous hemispherios. Eis uma prova, d'entre muitas: Gnio! gnio! inda mais: supremo esforo Das mos de Deus no ardor do enthusiasmo ! E's anjo ou s mulher, tu que nos roubas Do culto o amor, o extasis do pasmo ? Na pujana do vo a guia soberba Tenta o co devassar, exhausta pra : Nas azas do lyrismo, tu de Gehva Ao templo chegas e te prostras n'ara. Ahi, c'roada de fulgente aureola, No concerto dos anjos te mixturas; E, se cantas da terra, so teus hymnos Harmonias que ouviste nas alturas. Ahi aspiras o lustrai perfume Que das urnas sagradas se evapora ; [vis porque tua voz parece ungida Dos olores da flor que orvalha a aurora. 61 Ahi do corao na harpa animada As cordas descobristc de oiro extreme, Que se vibram de amor, ateiam n'alma Paixo que goza e soffre, canta e geme. Ahi o idioma typico aprendeste Que entendem todos e que. tudo exprime : E' assim teu olhar o verbo vivo, E' teu gesto a linguagem mais sublime. Mysterio augusto que do Eterno ao fiat Surgiste qual viso que attrahe, fascina ; . Si da mulher teu corpo veste a frma, Arde no gnio teu chamma divina... Ha n'este estylo certo arroubamento, que denuncia um' arte senhora de si mesma, conscia de seus recursos. D'indole, porm, bem diversa era o doce poetar de Jos Maria do Amaral (1811-1887). Se fossemos a filiar o espirito deste poeta no espirito de algum, este havia de ser o do velho inconfidente Cludio da Costa. Ha nestes dous homens alguns pontos de coutacto na vida, e pelo lado mental si- milhauas profundas. Em ambos o lyrismo uma revivescencia de uma qualidade eth- nica; em ambos o lyrismo tem a frma e o sabor do velho lyrismo portuguez. Amaral no exerceu uma influencia profunda na poesia brasileira, porque -passando os me- 62 lhores annos de sua vida fora do paiz, muito poucas publicaes litterarias fez entre ns. Nenhum dos poetas nacionaes de seu tempo teve em mais alto gro aquella doura, aquella delicadeza de impresses, nem aquelle vago do pensamento e aquella embriaguez do desconhecido, extravasados numa lingua- gem ondulante e caprichosa, ningum mais do que elle teve aqui esse caracterstico romntico. Tinha a faculdade de ouvir a monodia' de extranhos mundos e sentir o prazer das so- lides interminas do mar: Aos mares outra vez, vamos aos mares, Nas vagas embalar os sonhos d'alma ; No inquieto balouar d'inquietas ondas Vamos da vida sacudir os nojos. Solta o velame, nauta, aos sopros d'alva, Acima o ferro, ao horizonte a proa, Leva-me longe a errar por essas guas, Abre-me a vastido que as brisas correm; Quero entornar minh'alma em tanto espao, Quero em tanta grandeza engrandecl-a. Nem ptria o bardo tem nem tem amores ; Canta como alcio, como elle va De vaga em vaga s bordas do infinito, De brisa em brisa esfolha a vida em hymnos, A' terra um s adeus ; partamos, nauta, Aos mares outra vez, vamos acs mares, Nas vagas embalar os sonhos d'alma. - - (>3 --- So versos estes do tempo da mocidade. Ento o poeta no sentia ainda o pungir de acerbas dores moraes, que o assediaram na velhice e exhalaram-se em cerca de oito- centos sonetos dos mais sentidos que j uma vez sairam de penna d'homem. (*) Nos quatro divergentes de que imos tra- ctando, a musa da alegria, que se praz em festas e improvisos, encarnou-se em Moniz Barreto; a musa voluptuosa que fareja a belleza das mulheres irmanou-se com a alma de Maciel Monteiro; a musa triste e me- lancholica dos desconsolados deu a mo a Jos Maria do Amaral. Quanto a LARI NDO RABELLO (1820 1864), se a musa brejeira dos espritos ga- lhofeiros visitava-o por vezes, no menos verdade ter sido sua companheira mais constante a magoada inspiradora do auctor de Veroni. E por isso Larindo e Jos Maria so os dous maiores elegacos do Brasil. Larindo Rabello se distingue pela com- plexidade de seu temperamento. Triste, profundamente melancholico, j por ndole (>) Vide Historia da litteratura Brasileira I, pag. Wl\ e seg. 04 - - e j pelas- condies de sua existncia, mas robusto, forte, sadio, dotado, alm do mais de uma extraordinria espontaneidade de pensar e produzir, no se limitou em sua vida a exhalar profundas e sinceras magoas; a satyra, a ironia, a chalaa foram muitas vezes a expresso natural de seu sentir. Tinha elasticidade bastante para a galhofa, a pilhria, o improviso, a pornographia, mas no fundo l estava a nota plangente dos desconsolados. Eis um trecho da deprecao, bem se po- der dizer da prece, que dirigio sua irm, depois de morta. Que tens, mimosa saudade ? Assim branca quem te fez ? Quem te poz to desmaiada, Minha flor ? que pallidez ! Ah ! talvez num peito vario Emblema foste de amor : O peito mudou de affecto E tu mudaste de cr . . . Quem sabe. . . (Oh! meu Deus, no seja, No seja essa ida van!) Si em ti no foi transformada A alma de minha irm? 6 5 Minh'alma toda saudades, De saudades morrerei. . . Disse-me quando a minh'alma Em saudades lhe deixei. E agora esta saudade To triste e pallida, assim Como a saudade que geme Por ella dentro de mim ; A namorar-me os sentidos, A fascinar-me a razo. . . Julgo que sinto a voz d'ella Fallar-me no corao! Exulta, minh'alma, exulta ! Aos meus lbios, flor loua. . . No meu peito. . . Toma um beijo, Outro beijo, minha irm ! ' Outro beijo, que estes beijos No t'os prohibe o pudor : Sou teu irmo, no te mancham Os beijos do meu amor. . . Desnecessrio citar mais. Ousamos con- vidar o leitor a examinar a caracterstica, por ns consagrada a este grande lyrico em 5 nossa Historia da Litteratura, uma das que alli foram feitas com mais amor. T7-II Entretanto a evoluo prbseguia. Depois de haver tomado a colorao religiosa e emanuelica, a indiana e paizagista, a poesia romntica tinha de, por assim dizer, syste- matizar o desgosto da vida, dr do mundo, a Weltschmers dos espritos a Byron, Vigny, Musset e outros illustres c- ripheus do pessimismo. Jos Maria e La- rindo so simplesmente elegacos; Alvares de Azevedo e seus companheiros Aureliano Lessa e Bernardo Guimares (estes dous muito menos) foram, por vezes, verdadeiros desesperados. , Em MANOEL ANTNIO ALVARES DE AZE - VEDO (18311852), que se deve considerar, depois de Gonalves Dias e Jos de Alen- car, a mais alta figura do romantismo bra- sileiro, a poesia complicou-se de problemas novos. O moo auctor o typo represei!- tativo do homem moderno, do filho do s- culo no Brasil. Na serie da evoluo litferaria elle no o primeiro, mas o mais accentuado exem- plo, verdadeiramente illustre, de um produ- cto puramente local, de um filho de acade- mia brasileira. Sabemos que alguns poetas, oradores sagrados, msicos e pinctores dos tempos coloniaes no sahiram nunca do Brasil; aqui fizeram-se o que foram; mas, alm de terem sido a excepo, accresce que sua intuio em geral permaneceu quasi pu- ramente portugueza -nos tons fundamentaes. Sabemos ainda que, j no sculo a findar, alguns bons talentos se formaram, antes de Azevedo, que se acharam nas mesmas con- dies de seus predecessores coloniaes, e d'entre os nomes j apreciados linhas acima o caso de Moniz Barreto, de Dutra e Mello, de Francisco Octaviano, de Larindo Ra- bello e vrios outros; porm alm de no constiturem a regra geral, cumpre confes- sar que todos esses no chegaram inteira- mente a libertar-se da influencia da antiga me-patria. Porto-Alegre, Magalhes, Maciel Monteiro, Jos Maria do Amaral e Gonalves Dias viajaram muito e completaram sua educao 68 l fora. A creao, como j uma vez pon- dermos, das academias brasileiras foi de um alcance intellectual extraordinrio; logo na esphera poltica e administrativa come- mos a ter homens, como Eusebio, Nabuco, Zacarias, Cotegipe, Rio Branco e cincoenta outros, filhos de faculdades nacionaes, e alguns delles no puzeram jamais os ps na .Europa, ou os puzeram rapidamente, e foram sempre os melhores. O mesmo se foi dando na litteratura: Penna, Larindo, Octaviano, Macedo, Azevedo, Lessa, Ber- nardo Guimares, Alencar, Agrrio, Jun- queira Freire, Varella, Teixeira de Mello, Machado de Assis, Tobias Barretto, Castro Alves, Luiz Delfino so filhos das eschqlas brasileiras e com elles tudo o que houve de mais illustre em nossa vida espiritual no sculo que finda. Penna s foi ao velho mundo colher a morte e Alencar apressal-a, j o dissemos algures. Com Alvares de Azevedo, o trabalho co- meado pelos primeiros romnticos para ar- rancar-nos da influencia portugueza, progre- diu consideravelmente. O moo poeta, edu- cado pelos allemes Planitz, a principio, e, mais tarde Tautphoeus no Collegio de - 69 Pedro II, costumou-se a olhar para o grande mundo das lettras e da poesia e a lr os grandes mestres gregos, latinos, inglezes, allemes, hespanhes e francezes. O poeta da Lyra dos vinte annos foi um talento possante numa organizao de- masiado franzina. No podia viver muito, era doentio, e era melancholico. Isto pode- se d'elle dizer, porque a verdade mani- festada em \sua vida e em seus escriptos. Essa natureza notavelmente intelligente e idealista, n' um organismo mrbido e dese- quilibrado, tornou-se singularmente agitada pelo estudo e pela leitura dos sonhadores do tempo. No foi anjo nem demnio, qual a teem julgado dous partidos oppos,tos que mal o comprehenderam. Tomou por certo, parte n' algumas d'esss brincadeiras prprias de estudantes, essa poesia practica da vida que bem se desfructa na quadra da moci- dade no perodo acadmico. No teve porm, nem ensejo nem tempo de travar algum amor serio, alguma paixo sincera e profunda. Precoce em tudo, extranhava que esse affecto no lhe tivesse ainda chegado. D'ahi o dualismo que se nota nas suas composies lyricas de gnero amoroso. Ora um lyrismo idyllico, todo confiante e puramente ideal; ora a amargura de quem no encontrou ainda um corao que o comprehendesse, ou a pinctura d' alguma scena lasciva. Outro dualismo d-se nas opinies, cren- as e doutrinas do poeta. Idealista e crente por ndole, educado n' um regimen religioso, o sopro de sculo abalou-o em metade. Essa revoluo no se fez por intermdio da sciencia e de idas positivas; fez-se por meio da poesia e da litteratura romntica. D'ahi, esse desequilbrio, esse cambalear, essas duas facetas do gnio e das inspira- es do moo escriptor. Posio alis com- mum a um grande numero de espritos em nosso sculo, cheio de to rpidas renova- es e mutaes intellectuaes. Vida quasi toda subjectiva, agitada pela desordenada leitura, no teve, repetimos, en- sejo de amar, nem de gozar farta. D'ahi, o desanimo, a excitao, a impotncia da vontade. Sua melancholia, ingenita e desenvolvida pela vacillao das idas no proveio de in- justias soffridas, de luctas sociaes ou de problemas scientificos em desharmonia com seus sentimentos. No teve um canto de 71 alegria pelo amor satisfeito e retribudo, nem de desespero pelo amor trahido. Teve sempre queixas de no haver podido encon- trar mulheres puras e somente messalinas... Foi sincero n'isto, tragicamente sincero. No foi um viciado, um libertino que fi- zesse a poesia de seus vcios, nem to pouco um'alma cndida e virgem que se mostrasse viciada por systema. Foi um imaginoso, um triste, um lyrico que enfraqueceu as energias da vontade e os fortes impulsos da vida no estudo e en- fermou o espirito na leitura tumultuaria dos romnticos a Byron, Shelley, Heine, Musset e Sand. Quanto ao valor de sua obra, deve se dizer que n'elle temos um poeta lyrico e o esboo d'um conteur, d'um dramatista e d'um critico; o poeta, de que somente ora tratamos, superior a todas as mais mani- festaes de seu talento. O lyrismo do joven artista no o sim- ples lyrismo melancholico a Lmartine. Ha n'elle grande variedade, introduzida por estmulos objectivistas, por scenas de costumes, preoccupaes polticas, por pas- sagens humorsticas. E' um engano suppor ter sido elle um lacrymoso perenne; ha em sua obra pagi- nas, e das melhores, de um completo ob- jectivismo: Pedro Ivo, Theresa, Cantiga do sertanejo, Na minha terra, Crepsculo no mar, Crepsculo nas montanhas e muitas outras o provam. Em Gloria mo- ribunda, Cadver de poeta, Sombra de D. Juan, Bohemios, Poemas do frade, e Conde Lopoha muito d'esse satanismos d'esse desprazer terrvel da vida em que veio a dar certa ramificao do roman- tismo. Ha apenas mais talento do que em Bau- delaire; porque, de mixtura com os desati- nos , e extravagncias do gnero, em Aze- vedo apparecem manifestaes de so e opu- lento lyrismo, que to eloqentes no pos- sua o famoso poeta das Flores do Mal, livro posterior, alis, morte do nosso com- patriota. O lyrismo n' este amvel sonhador da Lyra dos vinte annos pde soffrer uma diviso capital: idealismo e humorismo. N' um e n' outro existem notas pessoaes e geraes. Leiam-se Anima Mea, Harmonia, Tarde de vero, Saudades, Virgem morta Spleen e charutos, Meu desejo, Lagrimas 73 da vida, Malva maan, Namoro a cavallo e outras. Julgamol-o mais aprecivel na sua frma seria e idealista, posto reconheamos ser o nosso poeta o primeiro a usar em lingua, portugueza do humour, essa bella manifes- tao da alma moderna. O homour ingleza e allem ns no o tnhamos jamais cultivado nem no Brasil nem em Portugal, e convm no o confun- dir com a chalaa, a velha pilhria lusitana; esta tivemol-a sempre, e sempre a possuio o reino. Para concluir com este grandssimo poeta: uma qualidade de seu lyrismo, e que o distingue do d'aquelles que o precederam, certa frescura das imagens. Em Magalhes, Porto Alegre, Moniz Bar- reto, e at em Gonalves Dias, Maciel Mon- teiro, Larindo Rabello e Jos Maria do Amaral ha um certo tour na frma que lembra o velho classismo. No poeta da Lyra dos vinte annos a cousa outra e a impresso bem diversa; o tom novo; v-se nitidamente que se est a tractar com um genuno enfant du sicle. E como mister sentir aqui mesmo a meiguice d'esse estylo, quando elle traduz os bons sentimentos do poeta, no nos fur- tamos ao prazer de, ao menos, ler as quatro primeiras estrophes da bellissima poesia di- rigida pelo mallogrado moo a sua me: E's t, alma divina, essa Madona, Que nos embala na manh da vida, Que ao amor indolente se abandona E beija uma criana adormecida. No leito solitrio s t quem vela, Tremulo o corao que a dr anceia, Nos ais do soffrimento inda mais bella, Pranteando sobre um'alma que pranteia. E, si pallida sonhas na ventura O affecto virginal, da gloria o brilho, Dos sonhos no luar, a mente pura S delira ambies pelo teu filho. Pensa em mim, como em ti saudoso penso, Quando a lua no mar se vae doirando; Pensamento de me como o incenso Que os anjos do Senhor beijam passando. . . Como isto acariciante e doce! Como j sabia neste desventurado jovem a poesia vasar numa linguagem de oiro as mais fundas emoes d' alma! Mas Alvares de Azevedo no estava s. Uma pleiade notabilissima de moos arden- " 75 tes pelo saber e pela gloria o cercava. O perodo que ns chamamos a primeira es- chola de S. Paulo (18451855) mereceria um estudo especial em que, derredor o moo poeta, __ fossem estudados os typos de Octa- viano, Jos de Alencar Lessa, Bernardo Gui- mares, Jos Bonifcio, Silveira de Sousa, Felix da Cunha, Ferreira Vianna, Duarte de Azevedo, Paulo do Valle, Lopes de Arajo Ferreira Torres,- e muitos e muitos outros. Ns aqui temos apenas de notar em traos rapidssimos o que denominamos o trium- virato byroniano. J vimos Azevedo; diga- mos clere de Lessa e Bernardo. A poesia em AURE LI ANO JOS LE SSA (18281861) teve trs feies principaes: a philosophica, a melancholica, a amorosa; a primeira no passava de certo metaphysi- cismo pantheistico; a segunda tinha em seus lbios um travor dolorosissimo; a ultima se lhe traduzia em doces e languorosos arrou- bos. Os documentos da primeira frma so: 0 Sol, A Creao, O Hymmo da Crea- o, A Tarde. O Poeta; os da terceira so: Leviana, A... Tu, Canto de Amor, Queixa, Duas Auroras; a nota a Byron e Musset espalha-se em varias paginas do pequeno volume que do auctor nos ficou. Em Aze- 76 vedo ha mais devaneios, mais exuberancias; em Bernardo mais lyrismo; em Lessa mais energia, mais lucidez, mais vigor de phrase. Pincta a pinceladas largas e possantes como estas : Depois co'a dextra contraindo o vcuo Informe e tenebroso Deixou cahir o Universo inteiro No espao luminoso. O silencio expandio-se ; era um sussurro De sublime harmonia : Hymno da vida, porque o sol gyrava 0 primitivo dia. Um chuveiro de mundos despenhou-se Pelos desertos ares, Como a saraiva, ou como os gros de areia L no fundo dos mares. Rodava a terra verde e a lua pallida, Ia a noite aps ellas; Mas cahio sobre as trevas, que fugiam, Uma chuva de estrellas. . . Toda esta admirvel poesiaA Cre ao de um lyrismo impessoal, imponente e rutilo. Em BERNARDO JOAQUIM DA SILVA GU I - MARES (18271885) a poesia teve bellas / / amostras de lyrismo naturalista, como em Invocao e O Ermo; de lyrismo philoso- phico como em O Devanear do sceptico; de lyrismo amoroso, como em Evocaes; de lyrismo humorstico, como em Orgia dos duendes, Dilvio de papel, O naris pe- rante os poetas. Mas isto no define, no individualiza o poeta entre os seus pares; preciso desco- brir uma nota que seja s delle, que o afaste de seus competidores; e esta nota parece- nos estar nas tinctas sertanejas de sua pa- lheta e no tom brasileiro de sua linguagem. Magalhes, Gonalves Dias, Porto Alegre, Maciel Monteiro, Jos Maria do Amaral, L"aurindo, Alvares de Azevedo e muitos outros poetas romnticos nacionaes do norte ou do sul, eram filhos da regio da costa ou da regio das mattas prxima costa. Viveram, alm disto, nas grandes cidades, ao contacto de extrangeiros e quasi nada co- nheceram das diversas regies do paiz. Gonalves Dias, que poderia fazer exce- po, s nos ltimos annos que viajou os sertes do norte. Aureliano Lessa pouca propenso tinha pela paizagem, posto fosse tambm um ser- tanejo. Por mais brasileira que fosse a in- - - / 8 tuio desses homens, no o poderia ser tanto quanto a de Bernardo, talento obje- ctivista, que nasceu e viveu na plena luz do corao do Brasil, o planalto central. Filho de Minas, viajou muito os sertes de sua provncia e das de Goyaz, S. Paulo e Rio de Janeiro. Tinha o prurido de bohemio, movia-se constantemente, e neste caminhador havia o instincto do pittoresco. Juncte-se a isto o conviver intimo com o povo, o faliar con- stante de sua linguagem e ter-se-ha a razo pela qual o intelligente mineiro em seus versos e romances foi uma das mais ntidas encarnaes do espirito nacional. Quasi todos os seus escriptos versam sobre themas brasileiros; mas ha nelles al- guma cousa mais do que a simples escolha do assumpto; ha o brasileirismo subjectivo, espontneo, inconsciente, oriundo d'alma e do corao. Na impossibilidade de estudar aqui uma por uma as quatro notas do lyrismo do poeta das Evocaes, enviamos o leitor para a Historia da Litteratura, onde se acha longamente feita a sua caracterstica. E, como fazemos neste ensaio questo de mos- trar a evoluo da frma, do tom, da cr, 79 do estylo, em summa, que vae a arte da poesia revestindo nos seus eleitos nesta parte da America, documentaremos a feio que chegou a ter no grande cantor mineiro. Eis um trecho da Primeira Evocao: Das sombras do sepulchro Eil-a que surge, plcida e formosa, Essa viso primeira, Que me sorrio' na quadra venturosa Da infncia prazenteira... S mui bem vinda, oh flor sempre lembrada De minha leda aurora ! Graas te rendo, pois a consolar-me Surges primeira agora. Inda hoje mesmo, aps to largos annos, Que repousas no leito funerrio, A' minha voz aodes e abandonas Para escutar-me o glido sudario. . . No ; no morreste: ou bella como outr'ora A' voz do meu amor hoje renasces ! Tombam-te ao collo as ntidas madeixas E adorvel pudor te adorna as faces. No vens da campa, no, que nos teus lbios Vejo o frescor e a purpura da rosa ; Palpita o seio e brincam-te os sorrisos Na bocca perfumosa. , . _ 80 E por vinte e sete estrophes doces, sere- m a S encantadoras desusa este cntico, que deve ser lido pelos amantes da boa e des- pretenciosa poesia. o lyrismo pessoal; mas a personalidade aqui realada pela sinceridade. As Evocaes lembram, j uma vez o dissemos, as Noites de Musset, talvez a mais bella produco do romantismo francez. Prosigamos. VIII Segue-se o terceiro momento do roman- tismo, com os epgonos de Byron, Musset e Lamartine, cujos principaes foram: Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, Franco de S, Constantino Gomes, Augusto de Mendona, Pedro de Calasans, e aos quaes, dissemos ns, se prende Fagundes Varella, que tinha, entretanto, algumas notas divergentes. Este grupo de poetas contm alguns daquelles choramigas, que chegaram a desacreditar o romantismo brasileiro na quadra que vai de a 1862 mais ou menos. Varella muito 81 - r mais rico de talento do que qualquer delles, se lhes vae ligar mais pela face irnica e rebelde do byronismo do que pela sentimen- talidade lamartiniana. Similhante o caso de Pedro de Calasans, que entra no grmio por eguaes motivos. Apressamo-nos, porm, em declarar que as classificaes litterarias no devem jamais ser tomadas rigorosamente lettra. Os grandes talentos possuem sem- pre certas qualidades que os fazem romper com as medidas e convenes doutrinrias e criticas. Daremos nestas linhas dos septe poetas, citados no perodo de que ora tractamos, apenas ligeiras palavras dos quatro princi- paes : Junqueira, Casimiro, Calasans e Varella. Com Luiz JOS JUNQUE I RA FRE I RE (1832 1855) temos ensejo de assistir, por momentos, evoluo do que se poderia chamar a segunda ( a primeira foi, como j se viu, a ,do sculo XVI I ) eschola ba- hiana. i Referimo-nos ao grupo de litteratos, es- criptores e poetas que, em torno de Moniz Barreto, fulgiu na Bahia em 1847 ou 48 at 1866 ou 67. No exquecer que ento alli o jornalismo e a eloqncia tiveram repre- d sentantes, como Joo Maurcio Wanderley, Landulpho Medrado, Fernandes da Cunha,' Barbosa de Almeida, Guedes Cabral, Alvares da Silva, Joo Barbosa, Victor de Oliveira, Eunapio Deir, Gustavo de S e Leo Vel- loso ; e que a litteratura e a poesia expan- diram-se pela bocca do citado Moniz Bar- reto, Agrrio de Menezes, Manoel Pessoa da Silva, Gualberto dos Passos, Rodrigues da Costa, Augusto de Mendona, Joo Freitas, Joaquim Ayres e muitos outros. Junqueira Freire, pois, no estava isolado. Este poeta foi um joven de temperamento nervoso e apprehensivo, que se viu attrahido por duas correntes diversas. A educao religiosa e a intuio livre do sculo trava- ram lucta em sua alma sem que nenhuma das duas triumphasse da outra completa- mente ; suas crenas vacillaram, resentiram-se seus sentimentos. D'ahi certa dubiedade, certo dualismo em seus escriptos, justamente o mesmo abalo que se dera cm Azevedo e companheiros. Apenas Junqueira era mais lcido, mais raciocinador e menos imaginoso, menos poeta. O bahiano , como todos os bons vates brasileiros, um bom lyrista ; c seu l**r ; : mo tem quatro notas principaes : religiosa, phi- losophica, amorosa, popular ou sertanista. Damos estes dous ltimos epithetos ao pu- nhado de poesias que se inspiram de scenas do viver de nossas classes aldeians e rocei- ras. Si no so as mais abundantes, so as melhores do auctor. As principaes so : A Orphan na costura, O Banho, O Canto do gallo, O Menestrel do serto. Nos outros gneros as mais saborosas so : Por que canto, Meu filho no claustro, A flor murcha no altar. Nada podemos exemplificar ; limitamo-nos a dizer que o estylo do poeta bahiense, nos bons momentos, tem certa simplicidade e doura ao gosto das melopias populares. No possua, entretanto, o auctor das Con- tradices Poticas o vigor de Azevedo e Lessa, a terna melancholia de Bernardo Guimares, nem a exuberncia de Larindo Rabello. A qualidade que tinha menos que Bernardo, era ainda mais pronunciada em CASIMIRO DE ' ABREU, avantajado aos dous por esta face. O poeta das Primaveras (18371860) o mais perfeito _e completo typo do romn- tico triste, melancholico, sentimental. Esta nota, j existente em todos os seus prede- 84 cessores romnticos, e que se vai encontrar at em Silva Alvarenga e Gonzaga, em Ca- simiro chegou completa evoluo. Tudo conspirou para este resultado : o meio social, o temperamento do poeta, seu gnero de vida em desaccordo com seus gostos e as- piraes. Pobre moo, fraco, com propenses tu- berculose, cheio de leituras sentimentaes, va- porosas, areas, embriagadoras, tudo o le- vava a collocar su'alma n' um palcio de chimeras, irizados sonhos em desaccordo completo com a dura realidade. Mas ha a mais completa ausncia de artificio nas ma- guadas poesias do desconsolado mancebo. Este meigo e doce desequilibrado o mais sincero, o mais puro e honesto dos homens. E' um'alma de moa, alguma cousa como Shelley aos dezeseis annos, antes que o mundo o tivesse tomado em suas garras e lhe houvesse alterado a primitiva virgin- dade. O estylo, como simplicidade, ausncia de amaneirados, espontnea singeleza, tem che- gado quasi perfeio. Uma ou -outra vez descamba para o defeito daquella quali- dade : torna-se vulgar. Ei-lo quando melhor : 85. T m'inspiraste, oh musa do silencio, Mimosa flor da languida saudade! Por ti correu meu estro ardente e louco .Nos ardores febris da mocidade. T vinhas pelas horas das tristezas, Sobre o meu hombro debruar-te a medo, A dizer-me baixinho mil cantigas, Como vozes subtis d'algum segredo. E' esta a nota quasi geral da poesia no auctor das Primaveras. Dizemos quasi geral, porque em Casimiro encontram-se tambm, de longe em longe, algumas volatas de ly- rismo alegre, expansivo, com uns doces tons cmicos. Em PE DRO DE CALAZANS (18361875) a romntica brasileira revela alguns sympto- mas dignos de nota. O poeta sergipano deve figurar entre os epgonos do byronismo e do mussetismo, no pela face sentimental, que no tinha ao gosto de Casimiro de Abreu, por exemplo, sim pelas cores de irnico realismo que sabia manejar. Em seu tempo a poesia brasileira ramifi- cava-se por trez caminhos principaes alis provindos/ como demonstrmos, da phase clssica e trilhados tambm pelos chefes do .86 nosso romantismo : a corrente de Gonalves Dias e a de Alvares de Azevedo, isto , o indianismo e o sentimentalismo descrente, a que se junctava a veia sertanista e campes- tre, que, exactamente ao lado de Calasans, havia de ter os seus melhores representantes em Trajano Galvo, Dias Carneiro, Gentil Homem, Marques Rodrigues, Costa Ribeiro, Franklin Doria e Bittencourt Sampaio. Esta brilhante pleiade de poetas, entre os quaes predominam moos do Maranho, fez o curso de direito na ifaculdade do Recife, entre os annos de 1854 a 60 ou 61 e con- stituiu alli uma verdadeira eschola, que te- remos de estudar linhas abaixo. So poetas todos do norte e bem diver- sos de seus contemporneos da eschola de S. Paulo. A transio entre uns e outros representada por Junqueira Freire e Augusto de Mendona, poetas bahianos, que jamais sairam da bella ptria de Gregorio de Mattos. Em Calasans, posto fosse elle respei- tado como mestre por todos aquelles colle- gas seus de academia e de litteratura, no apparece nenhuma das trs notas indicadas- N'elle no apparecem os Penes, Folias e Manfredos enfastiados, no se vem os ca- bildas selvagens, nem se escutam as can- 87 es buclicas do naturalismo aldeo. Seu realismo outro, o realismo da cidade, da gente elevada, dos sales civilizados, das classes cultas. O poeta pinta principalmente os vcios elegantes do seu tempo, nomeadamente os desregramentos da mulher viciada e blase. Sete somnos, Mulheres de ouro, Fel por mel; Wiesbade so characteristicos n'este sentido. E como exemplo de estylo para exacta apreciao da evoluo, lembramos A Bomba do Lago, que assim comea : Brilhava a lua sob um cu de seda, Recamado de estreitas diamantinas, Como donzella nos sales de um baile Aos trementes clares das serpentinas. N'uma plancie que florestas fecham, Escondendo aos mortaes um paraso, A mo do eterno se esmerou pintando Um manso lago do crystal mais liso. Fulgente lamina de metal pulido O lago solitrio parecia, Onde os bafejos duma aragem branda Finos traos na flor, leve, esculpia. 88 E da floresta nas selvagens harpas Expiravam de amor longiquas notas, Como os murmrios de adormida lympha, Bater das azas de gentis gaivotas. . . E' um dos poetas largamente estudados na Historia da Litteratura, e pode alli ser melhor apreciado. Aqui importa-nos apenas o sentido geral da evoluo lyrica. E, por tal face, de- masiado curioso o caso de Luiz NICOLO FAGUNDE S VARE LLA (18411875). Quando em 1861, este rapaz aos vinte annos de idade, publicou os primeiros versos, a poesia brasileira estava quasi completamente muda. Magalhes e Porto Alegre ainda viviam no extrangeiro, um dedicado quasi exclusiva- mente philosophia, o outro calado, escre- vendo lentamente seu extenso poema. Gon- alves Dias e Larindo, prematuramente cansados e prximos morte, mais nada produziam. Alvares de Azevedo, Aureliano Lessa, Casimiro de Abreu e Junqueira Freire ti- nham emmudecido no sepulchro. Jos Maria do Amaral e Maciel Monteiro, que nunca foram assduos em publicaes poticas nem nos deixaram livros impres- sos, estavam l fora na diplomacia. Francisco 89 Octaviano e Jos Bonifcio, que tambm raro produziam, andavam calados e entre- gues poltica. Bernardo Guimares perdia- se obscuro nos centros de Minas e come- ava a cultivar o romance de preferencia ao verso. Teixeira de Mello tinha emmudecido completamente depois das Sombras e sonhos (1858). O mesmo tinha feito Calasans, por alguns annos, depois das Ultimas paginas (1858; Franklin Doria, aps os EMIMOS (1859), e Bittencourt Sampaio, aps as Flores Syl- vestres (1860). Os companheiros de Cala- lans e Doria, na academia do Recife tinham- se graduado em direito e haviam dependu- rado as lyras para s raro a tangerem de longe em longe. Luiz Delfino no se havia ainda revelado o potente lyrista que veio * a ser no correr dos ltimos trinta annos. Ma- chado de Assis comeava apenas e mui ti- midamente na poesia. D'est'arte, Fagundes Varella foi quem tomou aos hombros os en- cargos da arte essencialmente querida dos brasileiros no quinquennio de 1860 a 65. Desde dez ou doze annos passados, desde os ureos tempos de Azevedo no se tinha visto em nossas academias um to interes- 90 sante typo de litterato. As boas tradies romnticas, os bellos dias da bohemia ti- nham renascido. Varella foi o ultimo repre- sentante de mrito de certa indole de poe- tas e de certa feio de poesia. Por isso prendemol-o ao grupo que vimos agora re- passando ; porque elle fundamentalmente o continuador daquellas tendncias. E, como ao lado d'esse grupo, e exactamente pelo mesmo tempo, tinha-se destacado o grupo parallelo dos sertanistas, distincto do outro lgica e no chronologicamente, se- gu-se ser Facundes Varella, que com uns e outros tinha pontos de contacto, o ver- dadeiro lo que prende todo o romantismo, brasileiro ultima eschola do systema, a famosa eschola condoreira. A obra de Varella, apparentemente lgica, uma das mais contradictorias que possui- mos ; apparentemente pessoal, uma das mais impessoaes de nossa litteratura. 'O poeta no foi um triste, nem um alegre, nem um crente, nem um sceptico, nem um libe- ral, nem um auctoritario ; porque foi tudo isto ao mesmo tempo conforme o ensejo e a occasio. Foi uma natureza mltipla, in- constante, excessivamente excitavel, ator- mentada por estimulos diversos. 91 Foi um agitado, um detraqu ao geito de Edgar Po, menos a epilepsia franca. Dahi a variedade de suas impresses e a mobilidade dos tons de seu cantar ; dahi essa morbidez inconsciente e irresistvel que se evapora de quasi todas as suas compo- sies. Tal a caracterstica que mais o de- fine, e por isso as produces que melhor o representam so aquellas em que appare- cem essas incertezas, essas fluctuaes, essas nevoas, esses claros e escuros, essas vagas aspiraes, esses sonhos roseos e de um es- pirito inconsistente adormecido numa esp- cie de embriaguez, e que bem se poderia chamar o lyrismo bacchico. O trao pessoal da lyrica varelliana o phantasiar caprichoso e dolente, areo e brumoso, cheio de douras e sonoridades, alguma cousa de impalpavel e indefinido, de vaporoso, e phosphorescente na prpria va- porosidade. Nevoas, Juvenilia, Acusmata, Vises da Noite, Madrugada d beira mar, Enchente, Gualter, Diverso e cincoenta outras o provam. Estes versos no encontram eguaes em lingua portugueza, no como forma, sino no sentido a que alludimos: 92 Cresce, transpe as bordas De brilhante crystal, Torrente amada que o prazer acordas. . . Toma a guitarra, escravo ! afina as cordas, E viva a saturnal! J corre-me nas veias Um sangue mais veloz. . . Anjos, inspiraes, mundos de idias, Sacodi-me da fronte as sombras feias Deste scismar atroz ! Que celestes bafagens! Que languidos perfumes ! Que vaporosas, lcidas imagens Danam vestidas de subtis roupagens Entre esplendidos lumes ! Tange mais brando ainda Esse mago instrumento! Mais. . . inda mais ! Que maravilha infinda Que plaga immensa, luminosa e linda! Que de vozes no vento ! So as huris divinas Que junto a mim perpassam, Ou de Schiraz as virgens peregrinas, Que cingidas de rosas purpurinas Choram Bulbul e passam ? 93 Oh ! no, que no so ellas, Mas, ai! meus sonhos so ! So do passado as vividas estrellas, Que flux rebentam cada vez mais bellas, De mais puro claro ! So meus prazeres idos, Minha extincta esperana! So. . . Mas que nota fere-me os ouvidos ? Escravo estulto, abafa esses gemidos ! Canta o riso e a bonana! Canta a paz e a ventura, O mar e o co azul! Quero olvidar minha comedia escura, E a ledos sons as larvas da loucura Bater como Saul. Leva-me s densas mattas Onde viveu Celuta ; Faze-me um leito margem das cascatas Ou nas alfombras humidas e gratas De recndita gruta. . . Assim. . . assim. Fagueiras Escuto j nos ares As vozes das donzellas prazenteiras Que danam rindo ao lume das fogueiras No centro dos palmares. . . . 04 E' a mais completa systematizao do delrio de que ha exemplo na poesia brasi- leira. Varella no chegou completa luci- dez na extravagncia e na loucura, como Edgar Po ; caminhava, porm, para l e poderia vir a ser nesse caminho o mais ex- traordinrio de nossos poetas. IX O cantor de Anchieta foi tambm o can- tor de A Roa e de Mimosa, duas bellissi- mas produces de nosso naturalismo cam- pesino e buclico, e isto nos offerece natu- ral passagem aos mais extremados cultores do gnero que havemos tido. Foram elles o grupo de poetas que flo- resceram, como j dissemos, em Pernam- buco, de 1854 a 60, entre os quaes predo- minaram intelligentes filhos do Maranho, retirados mais tarde para a sua provncia, onde constituram verdadeira eschola litte- raria. Escusado repetir os nomes de Trajano Galvo, Marques Rodrigues Franco de S, 95 Dias Carneiro, Gentil Homem, Joaquim Serra aos quaes se prendem os do piau- hyeuse Jos Coriolano, do paraense Bruno Seabra, do cearense Juvenal Galeno, do ser- gipano Bittencourt Sampaio e dos bahia- nos FrankUn Doria, Mello Moraes Filho. Daremos uma ida dos quatro melhores Trajano Galvo, Joaquim Serra, Bitten- court Sampaio e Mello Moraes Filho. O romantismo, talvez o mais complexo e variado movimento litterario havido em todo mundo, cuja comprehenso no se ha de ir pedir ao extravagante, atrazado, beato e cls- sico Brunetire, entre as mltiplas faces,- que mostrou no correr da existncia teve a de ser nas lettras, n'um momento, a reper- cusso do famoso principio das naciona- lidades. Isto quando, aps' seu inicio na Ingla- terra, com Richardson, Cowper, Crabbe, Gray, Coleridge, Wordsworth, Joung, Burns, Swift, Sterne, sua passagem primeira pela Frana, com Prvost, Diderot, Rousseau. sua erupo na Allemanha, com Lessing, Gthe, Schiller, Tieck, os Schlegels, Novalis, voltou de novo Frana, em dias de Bo- naparte, com Stel e-Chateaubriand. De uma simples reaco contra os ideaes cias- 90 sicos dos povos do meio dia em favor da intuio das gentes do norte, que fora em sua primeira phase, transformou-se, de 1813 em diante e por algum tempo, n' um movi- mento em prol das tradies de todos os povos modernos. Era o despertar das na- es occidentaes que haviam sido pisadas pelas patas dos corceis da Revoluo e de Bonaparte. D'ahi a chamada volta s tradies po- pulares, no que ellas tinham de lendrio, imaginoso e sentido. Na Europa, cheia de velhas naes, era o phenomeno de fcil explicao e a tentativa tambm relativa- mente fcil na execuo. Os valorosos es- tudos histricos dos homens, que haviam iniciado a nova phase da lingstica, da critica religiosa, do direito, do folk-lore nos comeos do sculo XIX, desbravaram o terreno aos poetas, romancistas e drama- turgos. Simples foi a italianos, francezes, alle- mes, portuguezes, hespanhes, russos, in- glezes, e escandinavos, indicar o filo meio esquecido de suas origens e tradies e mostrar-lhes o caminho novo a ser trilhado. No tanto, porm, na America e respecti- vamente no Brasil. Tnhamos durante perto 9/ de trs sculos sido representados especial- mente como portugueses, meros continua- dores do pensar da metrpole. O absurdo era evidente, e o nosso ro- mantismo, que teve, como j lembrmos, um extraordinrio precursor na nunca assz louvada eschola mineira do sculo XVIII, reagio contra o exclusivismo, caindo, entre- tanto, no exaggero de pretender, ao menos um certo tempo foi esta a sua illuso, re- presentar-nos como caboclos. Tal o significado histrico e social da nossa rpida eschola indianista. Durante a illuso mesma dos indianistas, os nossos melhores poetas, romancistas, contistas, co- mediographos e at vrios dos que um momento tinham sacrificado aos idolos caboclos, sabedores instinctivamente de no sermos nem portugueses ndios (os negros, como raa, nunca tiveram partidrios fran- cos e decididos nas lettras) comearam de olhar mais intensamente para as varias classes da populao e com mais amor para nossos costumes genuinamente ncionaes, oriundos desse immenso mestiamento, que tem vindo a operar-se durante quatrocentos annos, e foram produzindo muitas das pa- ginas mais bellas e mais brasileiras de n,s nossa litteratura. Nesse grupo que teem logar as creaes superiores do theatro de Martins Penna, de Macedo, de Agrrio, de Alencar, de Augusto de Castro, de Joaquim Serra, de Frana Jnior, de Ar- thur Asevedo: as melhores produces do romance de Manoel de Almeida, Bernardo Guimares, Franklin Tavora, Celso de Magalhes, Escragnolle Taunay, Ingls de Sousa, Aluisio Azevedo e do prprio Alencar e at de Macedo, bastando lembrar d'este as Mulheres de Mantilha, a More- ninha, as Victimas Algoses, Moo Loiro e do outro O Tronco do Ip, TU, O Gacho, O Sertanejo; as paginas mais bellas das poesias do grupo sertanista que vimos agora estudando; e os mais perfeitos dos contos e novellas dos modernos auctoresCoelho Netto, Affonso Arinos, Pedro Rabello, Escragnolle Doria, Adolpho Caminha, Do- micio da Gama, Raul Pompeia, Rodolpho Theophilo. Os prprios poetas, sectrios, de outras escolas, um Alvares de Asevedo, um Gonalves Dias, um Junqueira Freire, um Augusto de Mendona, um Tobias Barreto, um Constantino Gomes, um Castro Alves, um Bernardo Guimares, um Casi- miro de Abreu no deixaram de nos mi- 99 mosear com algumas paginas do gnero, porque tinham a intuio do seu valor como impresso do meio e dos costumes genuinamente brasileiros. Pode-se at af- firmar ter sido de todas as manifestaes da estho-psychologia nacional a mais per- feita e completa, porque nada lhe tem fal- tado : est representada no drama, na co- media, no romance, na novella, no folhe- tim, e at na critica litteraria, desde que certo no ter sido outro o movei inspira- dor de livros, como os Estudos sobre a poesia Popular Brasileira e a Historia da Litteratura Basileira. O gnesis desta, to grande corrente litte- raria, to amplamente ramificada, j foi nestas mesmas paginas determinado, tendo- se mostrado que suas raizes se vo prender na espcie de proto-romantismo entre ns existente desde fins do sculo XVIII. Eram ento, como nos praz repetir trez as ramificaes principaes de nossa poesia : certo lusismo determinadamente religioso cujo principal representante era o padre Sousa Caldas ; um indianismo incipiente, cujas notas mais altas estavam em Basilio e Duro; um brasileirismo, ora buclico e campestre, ora matuto e sertanista, ora 100 - aldeio e burgus, cujas mais vivas cores andavam esparsas em Silva Alvarenga, em Cludio, em Gonzaga, em Peixoto, em Cal- das Barbosa. Quando se deu a evoluo romntica, no tivemos quasi nada a mudar alm da frma ; o fundo permaneceu o mesmo; as trs correntes continuaram a rolar as suas guas; a imaginao e o sentir 'brasileiro proseguiram os mesmos vos, apenas com azas mais possantes: Maga- lhes (pouco dotado quanto frma) pro- longou Sousa Caldas, com quem tem innu- meros ponctos de contacto; Gonalves Dias protrahio Basilio, de quem digno irmo no manejo do verso branco; Porto Alegre avanou na senda dos Alvarengas no que elles tinham de sentimento real da natu- reza e da paizagem. Volvamos aos nossos sertanistas. A poesia em TRAJANO GALVO (1830 1864) mostra trez notas principaes: lyrismo geral naturalista, lyrismo local campesino, em que faz entrar scenas do viver do es- cravo negro, lyrismo satyrico e pilherico. A segunda * incontestavelmente a mais no- tvel e por ella que o poeta maranhense merece ter seu nome na historia litteraria. Dissemos, linhas acima, no haverem os 101 negros, como raa, contado partidrias con- victos e decididos em nossas lettras ; e a verdade. Houve sim, e s de certa epocha em diante, quem se referisse escravido, s dores e soffrimentos do captiveiro, e os las- timasse ; mas os pretos, como classe da po- pulao, nunca foram objecto de especial carinho dos poetas, romancistas e dramatur- gos. S o escravo que, no africano e seus descendentes, nossos poetas tardia- mente viram ; jamais o homem. E, todavia, os raros, que do captivo se tem occupado, ainda podem ser divididos em duas classes, os que apenas estygmatizaram em tons di- versos o facto geral e, por assim dizer, abstracto da escravido ; os que deram, em suas produces, entrada a scenas da vida real dos escravisados. O primeiro, que o saibamos, a enveredar por esta ultima trilha foi Trajano Galvo. E, como consideramos de alcance o facto, para aqui transcrevemos litteralmente o que sobre elle escrevemos n' outro livro. Trajano Galvo no foi um grande poeta ; mas indispensvel conside- rai-o em ,nossa historia litteraria, porque ha n'elle alguma cousa que lhe garante um nome. 102 Referimo-nos circumstancia de ter sido o primeiro a dar ingresso aos captivos da raa negra em nossa poesia. Antes de Tra- jano um ou outro poeta havia roado de passagem nos escravos pretos ; mas s de passagem e sempre como protesto contra a escravido. Trajano foi alm . collocou-se mais no intimo do viver dos escravos e pintou typos mais ou menos reaes. Infe- lizmente poucas poesias nos restam d'elle e particularmente do gnero de que tra- ctamos. As deste numero conhecidas so o Ca- Ihambola, a Crioula, Nuranjau e Jovino o senhor de escravos. Bem se comprehende a importncia da cousa. Era uma anomalia a ser notada por toda a gente: na litteratura brasileira a raa negra, apezar de ter contribudo com um grande numero de habitantes do paiz, de ser o principal factor de nossa riqueza, de se haver entrelaado immensamente na vida familiar, de estar por toda a parte, em summa, nunca foi assumpto predilecto aos nossos poetas, romancistas e dramaturgos. O indio e o branco obtiveram sempre a preferencia; e mais tarde os mestios, sob os nomes de sertanejos, matutos, tabaros, 103 e caipiras, tiveram tambm seu quinho nas attenes geraes dos litteratos. Muitos decantaram as moreninhas, as formosas cr de jambo, muitos outros che- garam at s mulatinhas com seus cabees rendados a enfeitiar toda a gente, e outras pieguices da espcie. Ningum durante s- culos, jamais se lembrou do negro, nem como ente humano, nem mesmo como es- cravo. S muito modernamente rarissimos delle se occuparam de passagem, e sempre como motivo para declamaes fugitivas. Tal o caso at de bons poetas, como Gonalves Dias com a sua Escrava, Bit- tencourt Sampaio com a sua Captiva Luiz Delfino com a sua Filha d'Africa e d'outros d'egual ndole e estylo. No theatro ha o caso phenomenal do Demnio Familiar de Alencar, onde se move um typo de negro, e no romance o das Victimas Algbses, de J. Manoel de Macedo; mas a comedia de Alencar, sobre ser facto relativamente recente, isolado e no seguido, tomou apenas o escravo n' um caso excepcional e bastante raro; e o romance de Macedo, alm de medocre, foi escripto nos ltimos annos da vida do auctor, hontem, por assim dizer, e com pretenes anti-abo- 104 licionistas. Foi uma obra de partido, feliz- mente, sem repercusso. Escusado fallar da Escrava Isaura de Bernardo Guimares ; porque a interessante filha da imaginao do poeta mineiro era uma verdadeira branca escravisada. Declamaes sobre o facto do captiveiro houve-as ahi a granel; especialmente depois que se accentuou o movimento abolicionista, no appareceu versejador que se no qui- zesse celebrizar custa dos pobres pretos. Dos que na litteratura tardia e escassa- mente se occuparam com elles, s quatro o fizeram mais demorada e conscientemente : Trajano Galvo, Castro Alves, Celso de Magalhes e Mello Moraes Filho. Tra- jano tem o mrito da antecedncia e de se haver collocado no ponto de vista descri- ptivo do viver do preto escravo. Em suas poesias o captivo no protesta, no se las- tima; o poeta d-lh a palavra e o calham- bola, a crioula, a Nuranjan descantam suas pretenes, seus anhelos ( l ). t 1 ) Se nos fora permittido, lembraramos que no poemeto Os Palmarei decantmos tambm conscientemente os negros escravos. 105 Castro Alves tomou outro caminho ; es- creveu odes de indignao, de cholera, no estylo alteroso e meio declamatrio de Victor Hugo: tal a ndole do Navio Negrei- ro, das Voses d'Afric'a e da mr parte da Cachoeira de Paulo AJfonso. O poeta bahiano possua a imaginao e o tom al- tisonante dos lyristas pomposos, mas no tinha o espirito de observao, o naturalis- mo apto a sorprender as scenas populares. Celso de Magalhes, o bello talento que fomos o primeiro a dar a conhecer ao Brasil em geral, no seu poema Os calhambolas approxima-se, no caminho aberto por Tra- jano, da vida psychologica e real do ca- ptivo. E' . pena que se tivesse limitado a consi- derar o escravo fugido, isto , o escravo fora do seu viver normal. Mello Moraes Filho seguio por vereda mais certa, e, por este lado, sobrepujou seus- companheiros no gnero. No ostenta aquellas opulencias, aquelle farfalhar de bonitas phrases ao gosto de Castro Alves: sua maneira outra e pa- rallela de Trajano e Celso: colloca-se no meio mesmo da escravido, mette-se entre captivos e senhores, assiste ao viver da- 106 quelle mundo especial das Fasendas e En- genhos, e narra sem grandes adornos as cruezas que alli se do. So pequenos quadros, pequenos esboos, nos quaes cir- cula a verdade. Trajano Galvo foi o pre- decessor nesse gnero de poesia e por isso deve ser lembrado com distinco (*). Devemos um exemplo de seu estylo. Eis aqui uma estrophe da Crioula : Sou captiva. . . qu'importa ! folgando Hei-de o vil captiveiro levar! Hei-de sim, que o feitor tem mui brando Corao que se pde amansar. . . Como terno o feitor quando chama, A' noitinha, escondido co'a rama No caminho: crioula vem c! Ha hi nada que pague o gostinho De poder-se ao feitor no caminho, Faceirando, dizer: no vou l ? Prosegue assim natural e singela at final. Em FRANCISCO LE I T E BITTE NCOURT SAMPAIO (1830-1894) predomina o lyrismo (') Historia da Litteratura Brasileira, II, pag. 1110 e segs. 107 local, tradicionalista, campestre, popular. Por este lado talvez o melhor poeta do Brasil; porque, sendo to terno e natural quanto Trajano Galvo, Dias Carneiro, Marques Rodrigues, Bruno Seabra, Joaquim Serra, Gentil Homem, Mello Moraes e Ju- venal Galeno, mais artista do que todos elles. Os dotes principaes da poesia neste auctor so a melodia do verso, a graciosi- dade que faz primar em pequenos quadros, certa nostalgia pelas scenas, pela vida sim- ples, fcil, descuidosa das regies da roa e do serto, tal o caso em A Cigana, Bem te vi, A rosa dos bosques, A Som- nambula, o Canto da Serrana, Tarde de Vero, O Canto do gacho, Nossa Senhora da Piedade, O Lenhaor, O Tropeiro, A Mucama, todas contidas no bello livrinho das Flores Sylvestres, publicado em 1860. Cumpre advertir que essa espcie de poesia s tem graa quando sabe alliar ver- dade os primores da arte, as gentilezas e galas do estylo, quando obra de um ver- dadeiro artista. Fora dahi s tem valor, quando genuinamente anonyma e folk- lorica. Ou inteiramente popular, collectiva, colhida directamente da bocca dos menes- 108 treis dos sertes, ou transfigurada, depu- rada, enaltecida pelos poetas de talento. Quando no nem uma nem outra cousa, um gnero hybrido, que nem popular nem culto e transforma-se numa triaga in- supportavel. Em Bittencourt Sampaio esta- mos com um artista de mrito. Exemplifi- caremos com alguns versos d'A Cigana: L corre a morena, levando faceira Na cinta punhal, Veloz como a ema saltando ligeira Por montes e vai : Gentil engraada Dissereis levada Por artes de amor ! Agora fugindo, Sorrindo Innocente L vae de repente Pulando, Brincando, Fallando, No prado co'a flor. A linda trigueira canada sentou-se No verde tapiz ; Mas logo um momentode p levantou-se Contente e feliz. 109 Travessa menina, Vem lr minha sina, No fujas, vem c ! Chegou-se a cigana, Que engana Innocente Com ditos a gente, Saltando, Gyrando, Cantando, No seu patu. . . Mui graciosa e faceira escorre essa lin- guagem, leve e cantante, por estrophes e estrophes encantadoras de simplicidade. JOAQUIM MARINHO SERRA SOBRINHO foi um homem alegre, expansivo, de um opti- mismo inaltervel. N' uma alma assim ar- gamassada o enthusiasmo tem entrada franca; si o temperamento de poeta, a poesia ser nella simples, galhofeira, brin- calhona o mais das vezes : si o tempera- mento de poltico, a intuio poltica ser o liberalismo em sua mais bella expresso, esse liberalismo confiante no espirito hu- mano, crente no seu progresso, enthusiasta pelo bem-estar do povo. O nosso mara- nhense tinha ambas as feies : foi um poeta e um jornalista ; por uma e outra 108 treis dos sertes, ou transfigurada, depu- rada, enaltecida pelos poetas de talento. Quando no nem uma nem outra cousa, um gnero hybrido, que nem popular nem culto e transforma-se numa triaga in- supportavel. Em Bittencourt Sampaio esta- mos com um artista de mrito. Exemplifi- caremos com alguns versos d'A Cigana : L corre a morena, levando faceira Na cinta punhal, Veloz como a ema saltando ligeira Por montes e vai : Gentil engraada Dissereis levada Por artes de amor ! Agora fugindo, Sorrindo Innocente L vae de repente Pulando, Brincando, Fallando, No prado co'a flor. A linda trigueira canada sentou-se No verde tapiz ; Mas logo um momentode p levantou-se Contente e feliz. 109 Travessa menina, Vem lr minha sina, No fujas, vem c ! Chegou-se a cigana, Que engana Innocente Com ditos a gente, Saltando, Gyrando, Cantando, No seu patu. . . Mui graciosa e faceira escorre essa lin- guagem, leve e cantante, por estrophes e estrophes encantadoras de simplicidade. JOAQUIM MARINHO SERRA SOBRINHO foi um homem alegre, expansivo, de um opti- mismo inaltervel. N' uma alma assim ar- gamassada o enthusiasmo tem entrada franca; si o temperamento de poeta, a poesia ser nella simples, galhofeira, brin- calhona o mais das vezes : si o tempera- mento de poltico, a intuio poltica ser o liberalismo em sua mais bella expresso, esse liberalismo confiante no espirito hu- mano, crente no seu progresso, enthusiasta pelo bem-estar do povo. O nosso mara- nhense tinha ambas as feies : foi um poeta e um jornalista ; por uma e outra 110 face suas qualidades principaes foram o brasileirismo de suas inspiraes, o humo- rismo amoravel de seu estylo. Quem l as poesias de Joaquim Serra logo agradavel- mente impressionado pela espontaneidade do tom, pela simplicidade das cores, pelo nacionalismo dos quadros. Sente-se imme- diatamente que se est a tractar com um homem que veio do povo, que conviveu com elle, que o conhece, que se inspirou de sua poesia nativa, de suas lendas, de suas tradies ; um homem e isto o principal, que, tendo mais tarde estudado os auctores extrangeiros, nem por isso seutio estancar-se-lhe a fonte do antigo brasileirismo e quebrar-se-lhe na lyra a corda das queridas melodias sertanejas. No gnero o caracterstico do poeta dos Quadros est em saber escolher sempre um facto concreto e pittoresco e narral-o pelo seu lado mais impressionista, fazendo um escoro rpido, claro, de tom realista, num desenho firme, porm elementar e sem com- plicaes. O Mestre de Resa, Rasto de Sangue, Cantiga Viola, O Roceiro de Volta so modelos perfeitos. Temos um. completo quadro de gnero hollandeza n'o Mestre de Resa, por exemplo: 111 Era um velhinho teso Exquisito no porte e no trajar ; Por isso a villa em peso Quando o via se punha a cochichar. Se da lista tirarmos o vigrio, E mais o boticrio, Bem como o juiz de paz, Era o mestre de reza O primeiro na villa ; com certeza O homem mais capaz. Depois d'Ave Maria Vem elle cada dia Co'os meninos da Villa, E alli no largo atraz da freguezia, Pe todos numa fila : As perguntas comeam e as respostas; E' um nunca acabar ! Os rapazes de p e de mos postas, Elle em frente da linha a passear ! A reza ou fallada, Ou em coro cantada, uma balburdia ! Quanta doutrina nova e mascavada ! Quanta orao esturdia ! As beatas morriam de alegria Co'o dialogo d'Eva e da serpente, E o psalmo da baleia, E a santa melodia Dos asnos da Judeia E magos do Oriente ! Sabe o mestre umas rezas milagrosas Contra a faca de ponta e mo olhado, E cobras venenosas, E o jaguar a rugir esfomeado... 112 Se quereis no cair n'um sumidouro, Elle tem oraes prodigiosas, Outras que fazem achar grande thesouro Occulto e enterrado ! Mora n'aquella casa de uma porta, Ao lado da ribeira ; Na frente tem uma horta, No lundo uma ingazeira. Reside alli o homem milagreiro, O apstolo da roa ; E' de velhas devotas um viveiro A sua pobre choa ! Salve, o mestre de reza, Na villa personagem popular ! Eil-o que passa. . . vale quanto pesa ! Deixemol o passar ! A poesia s chega a este tom despreten- ciosamente naturalista quando tem atraz de si a lenta evoluo que a faz perder as de- clamaes e exterioridade e attingir a rea- lidade das cousas. Em ALE XANDRE JOS DE ME LLO MO- RAES FI LHO a poesia vibra as varias cordas apontadas em Trajano, Bittencourt e Serra ; porm um pouco mais systematicamente, porque elle sobreviveu a todos e teve tempo de olhar para estes assumptos, organisando- os conscientemente. A lyrica neste auctor mostra duas faces primordiaes : certa disposio phautastica 113 dos quadros e scenas da natureza e do homem aprendida principalmente de Edgar Quinet, determinado aferro a assumptos na- cionaes, aprendido peculiarmente de Bitten- court Sampaio, conforme as prprias con- fisses do poeta. A tendncia para os assumptos nacionaes, a inclinao do espirito para reflectir os sentimentos, os affectos, as effuses d'alma brasileira, eram nelle predisposies nativas reforadas pela leitura das Flores Sylves- tres, de Sampaio, e definitivamente syste- matizadas pelos Estudos sobre a Poesia Popular do Brasil, do auctor desta me- mria. Muitos dos nossos nocionalistas foram duplamente lacunosos ; no abrangeram todos os factores da alma brasileira, e dos que tractaram no sairam, por via de regra, das manifestaes exteriores. Neste auctor v-se que a poesia escapou a esse duplo motivo de inferioridade. Alli ha o quadro completo dos agentes que constituram, dif- ferenciaram, integraram o nosso povo. Natureza exterior, ndios, negros, brancos, mestios l esto : e alm d'isso, de ndios por exemplo, no ' se limitou a descrever usos meramente externos ; reproduziu-lhes 114 lendas, peuetrando-lhes assim na psycholo-' gia ; e de negros, no declamou sobre o facto geral da escravido ; observou-lhes a vida, da qual pinctou cruentas peripcias. D'entre as poesias que do conta de scenas de nossa natureza tropical desta- cam-se : Ponte de lianas, A sucuriuba, Tarde tropical, Floresta submergida, Noites do Equador, Tempestade dos tr- picos. D'entre as que se referem a assum- ptos indianos avultam : O sangue do jaguar, No co e na terra, A lenda do algodo, A tapera da lua, A lenda das pedras verdes, A lenda da abbora. Nas que teem por objecto o negro escravo distin- guem-se : A rede, A novena, A ama de leite, Partida de escravos, Verba testa- mentaria. O legado da morta, Mi de cria- o. A feiticeira, Ingnuos, Escravo fugido, A resa, Cantiga no eito. Os assumptos portuguezes apparecem em Alma penada, Saudaes dos mortos, Os immortaes. Os themas de intuio brasileira particular, in- tuio de colorao mestia, acham-se em A mulata, A tabara, A caipora, No Pouso, O palcio da mi d'agua, Bem- te-vi, Trovador do Serto, A sereia' do Jaburu, A lus dos afogados, A endemo- 115 ninhada; A romaria do Bom-Despacho, A vspera de Reis. Todos estes assumptos foram tractados com frma fcil e gracio- sidades de lyrista. Deixando de lado Sousa Andrade, Beni- cio Fonienelle e vrios outros, pouco si- gnificativos, sectrios de diversas intuies, como tenham sido Rosendo Munis, Epi- phanio Bittencourt, Lisboa Serra, Luis Gama, Felix da Cunha, Luis Jos Pereira da Silva, Ferreira de Meneses, Augusto Emlio Zaluar, Paes de Andrade, Costa Ribeiro, Joaquim Ayres de Almeida, Freitas, e muitos mais, porque neste paiz quasi toda a gente tem feito versos,, dete- nhamo-nos antes os dous grandes diver- gentes da epocha que estamos rapidamente a estudar) Jos Bonifcio e Luis Del- fino. So duas figuras respeitveis. O primeiro, tendo comeado como um epgono do byronismo, transformou-se n' um poderoso] talento lyrico, verdadeiro precursor - 110 da eschola hugoaua ; o segundo havendo partipo de posio anloga e passado tambm pela maneira hugoana, passou-se ao parna- sianismo, onde revelou-se um extraordinrio poeta, mo grado os defeitos que por ven- tura possam afeiar a sua obra. A poesia de JOS BONIFCIO DE ANDRA- DE E SILVA conhecido por Jos Bonifcio o moo (1827-1886) das mais vibran- tes que possumos. Distingue-se logo da de seus pares, por, no ter, siuo de passagem e de leve, sacri- ficado lamria romntica. Teve, desde o comeo, uma tecla objectivista, que o le- vava a extasiar-se deante de scenas da na- tureza e de factos da sociedade. O estylo do poeta possuio sempre certa individuali- dade, que o separava dos mais. Este ly- rico tem vigor e firmeza de tinctas, dex- treza e facilidade na mo. Exaggera s vezes, faz allegorias, torna- se visionrio, entra uos domnios das ap- paries. Um p, Tu e eu, O retrato Suprema l'isio, Aspirao, A amante do poeta, Cames, O Cometa da morte, No e sim, O R&divivo, Primus inter pares, adeus de Gonsaga, A Caridade, A' mar- gem da corrente, Arvore secca, Galura- 117 mo, Teu nome, Saudades do escravo, so brilhantes paginas de um lyrismo ardente e vigoroso. Para que se tenha a prova directa do progresso artstico da lyrica em meio . da evoluo romntica, aqui inserimos O re- trato, um verdadeiro mimo de naturalidade, de singeleza e graa: Incline o rosto um pouco-. . . assim. . . ainda. . . Arqueie o brao, a mo sobre a cintura ; Deixe fugir-lhe um riso bocca pura E a covinha animar da face linda. Erga a ponta do p. . . que graa infinda! Quero nos olhos ver-lhe a formosura, Feitio azul de orvalho que fulgura, Foco de luz suave que no finda. Ha pouca luz. . . eu vej o-a. . . est sentada : Passou-lhe a sombra de um cuidado agora Na ruguinha da fronte j ambeada. . . Enfadou-se ? Meu Deus, eil-a que chora, Pois cahio-me o pincel; que mo ousada ! Pintar de noite o levantar da aurora . . . ! O melhor meio de dar a conhecer um brilhante mostra-lo. Em tal intuito, para bem se apreciar a poesia em Jos Bonifcio, 118 seria mister, no gnero gracioso, alm d'0 retrato, mostrar, verbi-gratia, O p, e no gnero pico-lyrico fazer lr Primus inter pares e O Redivivo, pelo menos. Ver-se- hia ento como a lingua progrediu em am- plitude, flexibilidade, colorido, movimento ; ver-se-hia tambm como' o lyrismo amo- roso foi-se tornando cada vez mais ardente, mais intenso, chegando a ficar n'alma de alguns temperamentos verdadeiramente me- ridionaes, por assim dizer, tempestuoso, al- lucinado, Luiz DE LPHI NO DOS SANTOS nascido em Sancta Catharina em 1834 e ainda vivo, , pela variedade e extenso de sua obra, o maior poeta do Brazil. Infelizmente suas innumeraveis produces andam esparsas pelos jornaes e revistas. No tem um s livro publicado. Sua carreira divide-se em duas phases perfeitamente distinctas : na primeira, que distende-se por mais de vinte annos (1855 ou 56 a 1879 ou 80) o poeta quasi nada salientou-se, passando quasi despercebido no meio da indifferena geral. No que lhe faltasse o talento para tornar-se de chfre to conhecido e estimado quanto Gonalves Dias, Alvares de Azevedo, Lau- 119 rindo Rabello, Jos Bonifcio, Casimiro de Abreu, Fagundes Varella ou qualquer dos outros seus coevos ; que o poeta, preoc- cupado com as labutaes de sua grande clinica, porque elle um d6tincto medico, muito pouco publicou de suas composies d'aquelle tempo e isto mesmo de longe em longe. E' o perodo de seu semi-condoreirismo. Mas de 1879 em diante as cousas tomaram outro aspecto ; o poeta comeou de atirar sobre o publico as jias de seu escrinio, e raro ha sido o dia que no tenhamos ad- mirado as suas notveis qualidades de ly- rista no correr dos dous ltimos decennios do sculo expirante. E o perodo parna- siano. N' um trabalho do gnero deste impossvel traar a characteristica de um poeta como Luiz Delphino, tal a varie- dade de sua produco. Contentamo-nos em affirmar ser elle de todos os nossos poetas, sem duvida, o de mais imaginao, ' o de surtos mais possantes, e talvez o de vocabulrio mais rico. A primeira phase est bem representada em Solemnia Verba, a segunda pde ser bem apreciada em An- gustia do Infinito, Cidade de Lus, Trs irms e duzentas outras peas de primeira 120 ordem. Uma pequena amostra de estylo d'entre as mltiplas manifestaes deste talento : Foi festa e grande em toda a Cachemira, Quando chegou montada no elephante. Vio-se em leve sandlia <\e saphira O seu p de uma alvura deslumbrante. Colhendo as sedas, sua mo ferira Com luz nevada a multido, deante Da qual o rosto apenas descobrira Na sombra do riqussimo turbante. Mas quando viram seus nevados seios, Brancos, riscados de azulados veios, Croados d'uma aureola de cabellos, Tnues fios de estrella que irradia. . . Para no offendel-a luz do dia, Fugiram delia ao trote dos camellos, Nada ha a dizer de Pedro Luis Pereira de Sousa como um dos precursores da ma- neira hugoana entre ns. Produzio quatro ou cinco poesias, mais declamatrias de que sentidas, de cunho meramente poltico, e no deixou uma s pea de doce e delicado lysismo. Muito maior do que elle, naquella 121 direco foi Jos Maria Gomes de Sousa, poeta sergipano, desconhecido, dos proceres da critica indgena. 2^1 O encadeamento dos factos leva-nos a dizer da poesia nos trez notveis predeces- sores do parnasianismo : TE I XE I RA DE MELLO, MACHADO DE Assis e Lu i z ' GU I - MARES JNIOR. O primeiro destes poetas nunca teve no Brasil a importncia de que merecedor. Sua poesia tem uns toques to suaves, to doces, to delicados, que no sabemos de outro que o sobrepuje por esta face. O seu livro Sombras e Sonhos um dos mais mimosos que j uma vez foram escriptos por mo de homem. Temos ufani de haver sido o primeiro a despertar na Historia da Litteratura a atteno para elle. O que individualiza e distingue as feies da poesia de Teixeira de Mello certa sin- gularidade, certa elevao graciosa e meiga das phrases, certa garridice das imagens; 1 22 alguma cousa que lembra Victor Hugo nos bons tempos, quando no tinha ainda gon- gorismo a penna com que escreveu Sara Ia baigneuse e outras jias de igual qui- late. E como o principal mostrar aqui a evoluo da frma, indicaremos alguns tre- chos que documentaro nossos assertos. Ouam : Tinhas ento no olhar a morbideza Da infncia que presente a mocidade ; Tinhas na fronte o sello da belleza E n'alma a sombra vaga da -saudade. Amemos como luz as mariposas, Como a flor ama o orvalho que a remoa ! Amar no topar pela existncia, Como a topaste, um'alma irm da nossa ? Ou isto, que ainda melhor: Onde haja musgo em que tea Um ninho em que eu adormea Com meus amores implumes ; Onde no vinguem espinhos, Onde o sol entre carinhos Viva de azul e perfumes. 123 Procurai no mundo todo Um ponto, per'la no lodo, Onde o amor fosse verdade ! Onde a vida fosse um lago ! Nosso baixei um afago ! Nossa brisa. . . a' mocidade ! Ou estas quadras da poesia Lua: T passas na, escabellada e muda, Levada em braos de milhes de anjinhos, E vais, quem sabe ? te banhar nos lagos Em que lavam-se o sol e os passarinhos. . . Eu te vejo passar, to perto s vezes, No meu deserto, fugitiva embora! Tu s o cysne que em meus cantos canta ; Tu s a amante que em meus prantos chora ! Ou finalmente: Tens perfumes na voz que embriaga ; Como os anjos tu cantas fallando, E dos seios na tumida vaga Tens perfumes que alentam matando. . . Tens perfumes na bocca mimosa, Que um azul beija-flor do vergel J tomou-a por folhas de rosa E ma ahelha por favos de mel. 124 So -fragmentos citados a esmo, e que de- monstram outra peculicar qualidade da poe- sia de Mello ; a correco da lingua e da forma mtrica. O poeta impeccavel ; um primoroso romntico e um verdeiro precursor dos parnasianos modernos. Podemos s por elle aquilatar do pro- gresso da poesia brasileira em trez sculos de vida. No regimen clssico a lingua no tinha essa elasticidade, essa flexibilidade, esse doce torneio, essa capacidade capri- chosa e ondulante de ostentar-se em bellas phrases. Em MACHADO DE Assis, o poeta das Chrysalidas, das Phalenas, e das Ameri- canas, a poesia ostenta egualmeute grande correco de frma, quanto linguagem e quanto mtrica. O poeta, mais illustre como prosador, acatado como um dos melhores mestres, talvez o melhor na opinio de muitos, do romance nacional. Na poesia no nos pa- rece to distincto quanto o auctor de Sonhos e Sombras ; pelo menos no to sentido, revelaudo-se muito mais frio. Nos ltimos annos tornou-se um completo par- nasiano, ad instar de Luis Delfino, pro- puzindo, porm,' muito menos do que elle e 125 por modo e estylo diverso. A esta ultima phase pertencem duas pequenas peas Cir- culo vicioso e A Mosca asai, que os seus admiradores citam a cada passo, como mo- delos inexcediveis. Achamos, por nossa parte, que a poesia nacional nos modernos tempos possue pioduces bem mais not- veis. Eis aqui o famoso Circulo vicioso : Bailando no ar, gemia inquieto vagalume : Quem me dera que fosse aquella loura estrella, Que arde no eterno azul como uma eterna vela ! Mas a estrella fitando a lua, com cime : Pudesse eu copiar-te o transparente lume, Que da grega columna, gothica janella, Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bella ! Mas a lua, fitando o sol com azedume : Msero ! tivesse eu aquella enorme, aquella Claridade immortal, que toda luz resume ! Mas o sol, inclinando a rtila capella : Pesa-me esta brilhante aurola de nume. . . Enfra-me esta azul e desmedida umbella. . . Porque no nasci eu um simples vagalume ? 126 correcto e bem feito ; porm no lhe vemos essa rara profundeza que tanto em- bevece os euthusiastas. Machado de Assis ficar como prosador, como quem mais fundo penetrou no romance e no conto os abysmos d'alma humana. No pequena gloria, como se ver adiante. Luiz CAETANO P. GUIMARES JNI OR (1844-1898) era mais moo do que Tei- xeira de Mello (1833) e Machado de Assis ( 1 839). Estes vivem ainda e elle j falleceu- Sua actividade potica, como era natural, principiou mais tarde. O lyrista das Som- bras e Sonhos comeou em 1855 ou 56 ; o cantor d'A Mosca asul em 1857 ou 58. Luis Guimares s deu inicio sua car- reira em 1862 ou 63. Deixou-uos dous livros de versosCorymbos e Sonetos e Rimas. O primeiro representa a phase em que poetou no Brasil (1862-72), o outro o pe- riodo em que residiu na Europa em car- reira diplomtica. No primeiro, menos brilhante pela frma, a poesia mais espontnea, mais sincera, mais sentida. Sob tal feio os Corymbos, so superiores aos Sonetos e Rimas. Estes revelam mais apuros e requintes de frma ; 127 aquelles mais alma e esta de mais valor, ainda mesmo em poesia. Os Corymbos so o repositrio dos cantos do poeta dos de- zoito aos vinte e cinco annos, quando elle no tinha ainda aprendido' na diplomacia a arte das frmas polidas, aptas a esconde- rem e refolharem o pensamento e o sentir. Como factura, como mo d'obra, como producto de ourivesaria os Sonetos e Rimas deixam os Corymbos muito a perder de vista ; como expresses 'francas de um'alma de rapaz, estes, repetimos, ganham a palma. Luiz Guimares no era uma intelligen- cia apta para a sciencia, a critica, a philo- sophia, as especulaes, que exigem pro- funda tenso de espirito. Os gneros que lhe ficavam de molde eram a poesia ligeira, o conto rpido, o folhetim minsculo. A primeira que lhe assentava melhor. Em seus livros de versos no se encontram produces ms ; porm no se nos depa- ram muitas que sejam verdadeiramente su- periores e imponentes. No ultrapassa certa altura no vo ; sobe bastante, certo, mas no se perde nas nuvens. No produz brilhantes raros engastados em finssimo ouro ; espalha rubins, turque- zas, saphyras e topazios em graciosas jias 128 de ouro mdio e*faz deliciosas filigranas de boa prata. Mas verdade que no desce ao estanho e ao cobre. No poeta para nos alentar nos momentos das grandes dores, das fundas crises do corao ; um diligente e pra- zenteiro camarada por certas horas de des- cuido ou de enfado. Ouamo-lo nos re- quintes da su' arte : Emquanto os meus olhares fluctuavam, Seguindo os vos da erradia mente, Sob a odorosa cupola fremente Dos bosques onde os ventos susurravam. Ouvi fallar. As arvores fallavam : A secular mangueira fielmente Repetia-me o branco idylio ardente Que dous noivos, tarde, lhe contavam ; A palmeira narrava-me a innocencia De um puro e mutuo amor, sonho que veste Dos loiros annos a feliz demncia ; Ouvi o cedro, o coqueiral agreste, Mas excedia a todas a eloqncia D'uma que no fallava : era o cypreste. 129 Luiz Guimares estudou direito no Recife entre 1864 e 1869 ; assistiu alli ao desen- volvimento da eschola que ficou denomi- nada na historia a eschola condreira, em que tomou parte mais ou menos dire- ctamente. ZHZII Foi o ultimo movimento effectuado em nossa poesia dentro dos limites do velho romantismo. Seus representantes foram : Tobias Barreto, Castro Alves, Victoriano Falhar es, Castro Rabello, Plinio de Lima todos no Recife, e a que se podem ligar no sul Eleseario Pinto, Carlos Ferreira, Mucio Teixeira, este no primeiro de seus livros de versos. A intuio e a maneira do grande poeta das Orieniaes j tinha tido, como dissemos, precursores entre ns em Maciel Monteiro, Jos Bonifcio, Luis Delfino, Pedro Luis e Jos Maria Gomes de Sousa, todos mais ou menos intercorrentemente e com talentos deseguaes. 13(1 Como eschola, conscientemente, com es- tylo assentado, com determinados ideaes e com um grupo de pelejadores, que vieram a influir por todo o Brasil, foi evoluo le- vada a effeito em Pernambuco entre 1862 e 1870. Neste ultimo' auno comearam as reaces contra o romantismo em geral e especialmente contra a ultima de suas ma- nifestaes. TOBIAS BARRETO DE ME NE ZE S (1839 89) foi -um talento de fortes qualidades communicativas ; era um reactor, um abridor de caminho. D'ahi a influencia que exer- ceu nas trs espheras principaes de activi- dade a que se dedicou e que correspondem a trs epochas perfeitamente' distinctas de sua vida : a poesia, na primeira phase do Recife de 1862 a 1870 ; a critica de philo- sophia e de litteratura, no perodo da Es- cada de 1871 a 1881 ; o direito, no ultimo estdio recifense de 1882 a 1889. Agora s, temos de ver e muito rapida- mente o poeta, um dos maiores que o Brasil tem possudo, em que peze a ferrenhos ad- versrios que possue, e coutar ainda por muito tempo. Ha da parte desses irredu- ctiveis uma perfeita mania que lhes obscu- rece o espirito e os faz negar o mereci- 131 mento de um dos homens mais eminentes deste paiz. Fazem-no sempre desasada- mente, porm incessantemente : uma ver- dadeira obsesso. Os grandes poetas das primeiras phases do romantismo ou j tinham fallecido, ou estavam mais ou menos mudos, quando foi iniciado o movimento condoreiro. O syn- chretismo dos factos mostra-nos que Ma- chado de Assis, Fagundes Varella e Tobias Barreto comearam pelo mesmo tempo. Castro Alves seguiu lbgo immediatamente, e o mesmo foi o caso de Luiz Guimares.. Como se est a ver, so cinco individuali- dades ^ notveis que representaram os foros de nosso lyrismo no decennio que vai de 1860 a 1870. A poesia em Tobias Barreto, comquanto elle no tivesse escripto muito asss variada em suas feies. Se qui- zerdes a nota synthetica da evoluo hu- mana, tendes nesse grandioso Gnio da Humanidade ; se preferirdes a nota huma- nitria, tendes ri'A Caridade ; se procurardes a nota liberal em prol dos povos captivos, acha-la-heis na ode A' Polnia ; se vos aprouver a nota patritica, l est ella em A' Vista do Recife, em Sete de Setembro, em Os Voluntrios Pernambucanos, em - 132 os Lees do Norte, em Capitulao de Montevidu ; se for mais de vosso agrado a nota tribunicia contra os mos governos, vos apparecer em Decadncia ; se dese-- jardes a nota philosophica, Ignorabimus vo-la dar ; se vos lembrardes da nota ser- taneja, ouvi-la-heis em Os Trovadores da Selva, Anno Bom e Os Taburos ; se acreditardes ausente a nota psychologica, vos apparecer em Vos e Quedas, Lutas d'Alma e outras ; se duvidardes da nota naturalista, est manifesta em Lenda Civil e Lenda Rstica ; se gostardes da nota de pura effuso esthetica, deveis ler A Mr. Reichert, A F. Monis Barretto, A' Senes- pleda, A' Cortesi, e muitas mais ; se antes de tudo prezardes nos poetas a nota amo- rosa, tendes Leocadia, Pelo dia en que nasceste, Idia, Como ? Incrdula, Com- templao, e vinte outras ; se julgardes que todo poeta deve ter uma nota cmica, lede O Rei reina e no governa ; se, fi- nalmente, acima de tudo collocardes o ly- rismo innominado em sua delicadeza iudefi- nivel, encontra-lo-heis em O Beija-Flor, O Beijo, Por brincadeira. . . Como nosso fim principal, conforme havemos declarado por vezes, mostrar a evoluo especial- 133 mente na frma, limitamo-nos aqui a um s exemplo ; Leocadia : Livro de luz, em que o Senhor medita, E s mos dos anjos no dado abrir, Onde as estrellas aprenderam juntas Com as rosas puras a chorar e a rir ; Alma, que d-se em alimento s flores, De cuja essncia a creao trescala, Ingnua e cndida, escutando em sonhos, A voz da santa, que do co vos falia. . . Vs sois 'na terra a incarnao brilhante Do sacro amor que a vossos pes adita, Rutila estrophe de um poema d'ouro, Livro de luz em que o Senhor medita. . . Lagrima d'alva, que no seio calido Da nuvem rubra vos deixou cahir, Pagina alvissima em que Deus escreve, E s mos dos anjos no dado abrir. Virgem serena, a cujos olhos tmidos A lua gosta de fazer perguntas, Biblia celeste de mysterios castos, Onde as estrellas aprenderam juntas Com as brisas tnues, a dizer as queixas D'alguma dr que s Deqs pde ouvir, Com as onda crulas, com as auroras pallidas, Com as rosas puras a chorar e a rir ; 1 34 Fronte em que passam d'outro mundo as scismas, Rosto banhado em matinaes albores, Peito onde arquejam do infinito as vagas, Alma que d-se em alimento s flores, Mimo do sol, que vos attrahe os raios, E as vossas graas pelo eco propala, Vs sois a alvura dos eternos lyrios De cuja essncia a creao trescala. E quo piedosas no sero as preces Dos vossos lbios divinaes, risonhos ! Trancas esparsas, joelhada, esttica, Ingnua e cndida, escutando em sonhos, Por entre os cantos das espheras lcidas, E os ais sentidos que o universo exhala, E os sons mellifluos do psalterio anglico, A voz da santa que do co vos falia ! ! Temos n' estes versos, verdadeiramente sug.-4e.stivos, uma antecipao do lyrismo symbolista e encantador de Cruz e Sousa, tanto verdade que as escholas se vo prendendo umas s outras pelos elos pro- fundos do pensamento, que se desdobra e evolue. Citamo-los de preferencia a quaes- quer outros puramente condoreiros. E que o poeta dos Dias e Noites , a nosso ver, mais para ser apreciado em suas produces suavemente delicadas, do que nas epico- lyficas. 135 E mais no nos estenderemos, por evitar a v censura de pretendermos collocar To- bias Barreto acima de todos os escriptores brasileiros, quando apenas temos procurado v-lo no logar que lhe compete. O mesmo fizemos por Gregorio de Mattos que antes da Historia da Litteratura Brasileira no passava de um maldizente que se sup- punha desprezvel ; por Larindo Rabello, considerado apenas um andarilho pornogra- phico em o pensar geral ; por Teixeira de Mello, inteiramente desconhecido como poeta; por Celso de Magalhes, o roman- cista do Estudo de Temperamento, o poeta dos Calhambolas, o critico do Estudo sobre a poesia popular do Brasil, ainda hoje quasi de todos ignorado ; por Mello Moraes Filho, que no era devidamente acatado como lyrico ; por L. C. Martins Penna, cujo valor, como documentador de sua epo- cha, fomos o primeiro a salientar. Limita- mo-nos a lembrar no nos passarem des- percebidos os motivos da mania accusatoria movida ao poeta dos Dias e Noites. Quem foi o primeiro, entre ns, a bradar contra a influencia deletria do Rio de Jaueiro, contra o prestigio o valor dos mestres portuguezes e, mais ainda, contra a dictadura do pensa 136 mento francez em nossas lettras, no pde ser ! um homem querido, um escriptor fes- tejado. N' este paiz seria um milagre. ANTNIO DE CASTRO ALVE S (1847-1871), discipulo do poeta dos Dias e Noites, teve destino completamente diverso do do mes- tre : foi sempre o enfant gt dos dis- pensadores de fama n'este paiz, especial- mente depois q-ue Jos de Alencar e Ma- chado de Assis o apontaram admirao geral. O poeta, alis, no precisava de taes en- comios e proteces, por que tinha real- mente um grande talento. E que ainda os homens, a despeito de tudo, no apreciam muito os luctadores solitrios e indepen- dentes, nomeadamente nas terras onde o empenho a primeira das foras publicas ; at na esphera das lettras tem elle a prefe- rencia a todas as nobres qualidades que um homem haja de possuir. Apreciemos a poesia em Castro Alves. No gnero deixou dous livros ; Espumas fluctuantes e O Poema dos Escravos. Este ficou incompleto ; existem apenas dous fra- gmentos : o episdio d'A Cachoeira de Paulo Ajfonso e o punhado de poesias sob o titulo de Manuscriptos de Stenio. O _ 137 Poema dos Escravos no era na mente do auctor uma epopia no velho e vulgar sen- tido, um enredo, uma aco especial, desen- rolados, por personagens typicos. Era antes uma colleco de poesias soltas, desprendi- das entre si, referentes todas, porm, ao facto social da escravido. E aqui tocamos o in- timo mesmo do talento do moo poeta. Quem o l attentamente nota-lhe logo dous tons fuudamentaes ; o lyrismo gracioso das paixes, dos amores, das effuses indivi- duaes e o cantar brilhante do socialista, do democrata social. As produces em que predomina o primeiro tom so interessantes, mas contam muitas congneres na littera- tura brasileira. Aquellas, em que sobresae a outra nota, possuem poucas similares entre ns. Castro Alves em nossa historia littera- ria representa um duplo papel. Por um lado foi o apstolo andante do condorei- rismo. No ficou parado no Recife : depois de ter alli luctado em proF da nova poesia, passou Bahia e d'ahi ao Rio e a S. Paulo. Estes so os quatro centros intellectuaes mais notveis do Brasil ; uelles o poeta fez-se ouvir e creou adeptos. 138 Por outro lado tomou muito a serio o seu caracter de poeta e concentrou ahi todos os esforos e energias de seu espi- rito. Quiz deixar obra durvel. Para tanto abandonou por bastante tempo suas preoccupaes particulares, seus ephe- meros amores, e lanou olhares curiosos nossa sociedade. Um facto ahi havia que o impressionou sobre todos, o facto cruel e repugnante da escravido ; e tentou fazer o poema dos escravos. Ahi vai a sua verdadeira originalidade. Antes e depois delle, entre ns e no estran- geiro, alguns poetas tomaram como assum- pto de seus cantares o phenomeno extrava- gante do captiveiro. Mas Castro Alves tem entre todos uma nota especial. bem ver- dade que no se collocou em o ponto de vista determinado da escravido brasileira. Por outros termos, bem verdade que no fez a psychologia nem a sociologia do es- cravo, no se poz no meio dos captivos, nos engenhos e nas fasendas, para lhes photo- graphar com nitidez naturalistica o viver pungente e as profundssimas misrias. O poeta no architectou o romance cruel e realista dos escravos. No ; seu caminho foi outro, ensinado, apontado pela ndole 139 mesma de seu talento. Ao poeta bastou- lhe, para o excitar e commover o facto geral e indistincto da escravido. S- isto foi bastante para levantar-lhe o sentimento, e este sentimento foi a indignao e a cho- lera. O poeta no desceu a descrever scenas ; alludiu rapidamente a ellas e supp-las com razo conhecidas de todos. EUe da fa- mlia do cantor dos Chatiments; indigna- se, encholeriza-se e larga o azorrague nos vejrdugos, nos oppressores dos mseros captivos. O espirito de Castro Alves o de um tribuno, de um agitador ; sua poesia a expresso natural de seu caracter, de seu temperamento. assim um dos mais ntidos exemplares entre ns do poeta socialista, queremos dizer, do poeta que em sua arte preoccu- pa-se com certas idas e problemas que se agitam na vida poltica e social da nao. E no perdeu o seu tempo; bem ao con- trario, este paiz dever sempre ler, todos os bellos versos em que elle foi p porta-voz, a expresso grandiloqua da conscincia da ptria. Antes da lei de 28 de Septembro de 1871, que declarou livres todos os nas- 140 ciclos no Brasil, a poesia j se havia hon- rado com as Voses d'frica e o Navio Negreiro. Estas poesias foram avulsamente pu- blicadas em folhas soltas em 1870 e 1871. Espalharam-se por todo o Brasil, fizeram grande sensao em Portugal, onde tiveram muitos imitadores : foram l decoradas e recitadas nos sales. No tero ellas infludo no condoreirisrpo tardio de Guerra Junqeiro ? Ns o cremos bem. Um critico moderno aconselhou cuidado em distinguir na poesia franceza, especial- mente na de Victor Hugo, a eloqncia da genuina e estreme poesia. Esta observao verdadeira e no pde ser illudida. Ha muitos trechos na poesia romntica, repletos de imagens, cheios de sonoridades, de requebros, de adjectivaes, de apostro- phes, que so verdadeiros typos, verdadei- ros especimens de eloqncia. Entretanto, e por via de regra, nem sempre so os mais poticos. Este caracter pertence quelles em quem se nota mais simplicidade, mais sentimento, mais vida intima, mais sinceridade. 141 . Os povos meridionaes, por indole exagge- rados e propensos rhetorica, quasi nunca observam a alludida distinco. Gostam das fortes imagens, dos rendilha- dos das phrases, do farfalhar das palavras, de toda a exterioridade bulhenta, emfim. Por isso entre ns o que mais agradou de Castro Alves foram os palavres, as bombas, toda a falsa eloqncia dos versos. Felizmente salva-se elle na historia, porque teve o bom instincto de escrever bellos pedaos de simples poesias. Os epgonos se apoderaram do falso es- tylo e o levaram ao requinte do exaggero. Foi a quarta potncia do gongorismo, ver- dadeira teratologia litteraria. Veja-se agora um trecho do bello estylo do poeta : Boa noite, Maria. Eu vou-me embora. A lua nas janellas bate em cheio. Boa noite, Maria ! E' tarde. . . E' tarde. . , No me apertes assim contra teu seio. Boa noite ! . . . E tu dizes Boa noite. Mas no digas assim por entre beij os. . . Mas no m'o digas descobrindo o peito, Mar de amor onde vagam meus desejos. 1 12 Julieta do co ! Ouve. . . A calhandra J rumoreja o canto da matina ; T dizes que eu menti?. . . pois foi mentira ! Quem cantou foi teu hlito, divina ! Se a estrella d'alva os derradeiros raios Derrama nos jardins do Capuleto, Eu direi, me esquecendo da alvorada : E' noite ainda em teu cabello preto. . . E' noite ainda. Brilha na cambraia, Desmanchado o roupo, a espadua nua. 0 globo do teu peito entre os arminhos, Como entre as nevoas se baloua a lua. E' noite, pois ! Durmamos, Julieta ! Rescende a alcova ao trescalar das flores. Fechem sobre ns dois estas cortinas. . . So as azas do archanjo dos amores. A frouxa luz da alabastrina lmpada Lambe voluptuosa os teus contornos.. . Ah ! deixa-me aquecer teus ps divinos No doudo afago de meus lbios mornos. Mulher de meu amor ! Quando aos meus beijos Treme tua alma como a lyra ao vento, Das teclas de teu seio que harmonias, Que escalas de suspiros bebo attento ! Ai ! canta a cavatina do delrio, Ri, suspira, solua, anceia e chora. . . Marion ! Marion ! E' noite ainda, Que importa o raio de uma nova aurora ? 143 Como um negro e sombrio Armamento, Sobre mim desenrola teu cabello. . . E deixa-me dormir balbuciando : Boa noite ! formosa Consuelo I Bellissima poesia, apta a dar uma idia do estylo do moo bahiense, . quando elle queria ser delicadamente lyrico. A funco histrica da eschola condoreira, como j dissemos vinte vezes, foi arrancar a poesia nacional da modorra choramigas em que ella andava a esmorecer e chamal-a a inte- ressar-se por. assumptos mais humanos, mais elevados, mais nobres, mais impessoaes, dando-lhe, ao mesmo tempo, um estylo mais vibrante e mais largo ! Fechou o. cyclo do romantismo, como tambm j advertimos. XIII 'O primeiro brado de alarma contra o decadente systema no Brasil foi dado pelo auctor d'estas linhas, que aventou a ida de mudar a litteratura s velhas trilhas e, inspirar-se na critica, na philosophia, na 144 sciencia moderna. Era em 1870 e em jor- naes de Pernambuco. Eis aqui em rpida synthese o que diziamos pouco mais tarde, no prlogo dos Cantos do fim do sculo : A poesia um facto commum, ordinrio, vulgar, da vida humana, que no deve ter a pretenso .de exigir inviolabilidades nem privilgios para si. Como a linguagem, como a mythologia, como a religio, ella perdeu todos os ares de mysterio, depois que a sciencia do dia, imparcial e segura, penetrou amplamente no problema das ori- gens. Este resultado foi devido principal- mente alta critica histrica e philologica, depois que o sopro das sciencias naturaes a fez rejuvenescer. A poesia um resultado da organisao humana; nada tem de absoluto nem de so- brenatural ; nada, por outro lado, de des- prezvel ou repugnante. No meio das mutaes por que teem passado todos os ramos do pensamento hu- mano, qual o estado a que deve ter ella chegado ? qual o seu caracter de hoje ? A epocha de Darwin, Moleschott e Bchner, de Lyell, de Vogt e Virschow natural- mente a de Comte, Mill e Spencer, de Buckle, Draper e Bagehot. Estes nomes 145 exprimem a grande transformao das scien- cias da natureza invadindo a esphera das sciencias do homem. Todos sabem. que a religio, a linguagem e a historia, o direito, a poltica e a litteratura so hoje tractados por methodo bem diverso daquelle por que o eram ha trinta annos. Esta nova ma- neira de sentir e pensar de sbios e philo- sophos, num tempo como o nosso no fica incgnita e mysteriosa, sem aco sobre a massa dos leitores. A cabalistica do sculo XIX nenhuma : toda descoberta logo espalhada aos quatro ventos pela voz dos livros, das revistas, dos jornaes. A popu- larizao da sciencia um phenomeno dos derradeiros tempos e a melhor conquista da repulsa do sobrenatural. A intuio do grande publico vai mudando, como mudada ha muito se acha a dos homens competen- tes. Na evoluo de todas as manifesta- es espirituaes, a poesia uo pode ficar estacionaria. Tem-no, entretanto, ficado em grande parte ; o mpeto das reformas, pelo menos, no comparvel ao arrojo romntico do comeo deste sculo. A reforma dos prin- cpios ha muito anda feita nos livros de analyse ; mas a poesia quasi que tem a an- 10 146 tiga toada. A nova intuio potica e litte- raria nada contar de dogmtico : ser um resultado do espirito geral da critica con- tempornea. Acima dos combatentes, sem duvida necessrios, que, obcecados por uma vista qualquer particular das novas idas, falseam a noo do grande todo, esto os espritos, que se empenham em traar as grandes linhas do edificio moderno ; acima de todas as doutrinas est a intuio ge- nrica da critica. A poesia no pde se fazer systematica ; conseguir somente em- beber-se dos grandes princpios da philoso- phia geral. . . A arte no agora uma ca- duquice, quando a musica rejuvenesceu e a poesia attende a todas as perplexidades contemporneas e sente-se possvel e fe- cuuda : a arte funda-se hoje na intuio novssima que a sciencia desapaixonada e imparcial vai divulgando. Deve ser uma conseqncia e uma synthese de todos os princpios que at hoje teem agitado o s- culo. Palavras estas de 1873, que resu- miam a propaganda que vinha de annos antes. Nos Cantos do fim do sculo e nos ltimos Arpejos o auctor levou a ef- feito o seu programma de uma poesia phi- losophica, symbolica e geral. 147 Entretanto, quasi immediatamente duas correntes inteiramente diversas tinham de vir mudar a feio das cousas e arrastar em suas fallaciosas miragens as intelligen- cias nacionaes, o naturalismo e o parna- sianismo, isto , aquelle a preteno errada de querer fazer arte e poesia somente com a observao e o outro a preteno, no menos errnea, de querl-as fazer s com os apuros da forma ! Felizmente o tempo se encarregou de destruir taes illuses ; e a novssima e ultima eschola litteraria do sculo que finda, fez voltar os espritos a uma concepo da arte que se approxima muito mais da nossa prpria doutrina do que das pretenes dos realistas e parna- sianos. Nosso systema foi desprezado a pretexto de obscuro no fundo e descuidoso na frma. . . Estvamos com a verdade ; era, porm, impossvel fazer parar a corrente, nomeadamente na sua feio parnasiana, a mais fcil e a mais enganadora ; porque para ella entraram os maiores talentos po- ticos da epocha : Theophilo Dias, Ray- mundo Corra, Olavo Bilac, Alberto de Oli- veira e outros e outros. Pelo que toca a realismo naturalistico, muito pouco deu de 148 -- si em poesia e foi asylar-se no romance e no conto, onde tambm pouco prosperou. Foi, pois, com immenso gudio que se nos depararam em plena revoluo parnasiana estas palavras do sr. Annibal Falco no prlogo das Opalas do sr. Fontoura Xa- vier : A falta mais grave de toda a litte- ratura contempornea consiste em confundir os diversos elementos da elaborao arts- tica, dando preeminencia aos dous inferio- res, isto , ora expresso, ora obser- vao. Desta frma prejudicada a idea- lisao, operao essencial da poesia. . . A critica acerba do moo pernambucano passou despercebida, e o erro proseguiu impvido, at que os symbolistas entrassem na arena e limpassem-na das velhas preten- es emperradas. Como amostra de nossa intuio, e para que se veja que no era l to abstrusa de sentido e to descon- certada de frma, aqui vai o que es- crevemos d! Alma, scilicet, do mytho de Psych : Aqui da fronte que desponta a aurora, Aqui do peito s que o amor se exhala. . Grega sublime, Psych formosa, N'um sonho doce quem te ouvira a falia, 149 O riso meigo, o harmonioso anceio Dos teus enlevos ! Nas madeixas tuas, Ah ! quem pousara d'um suspiro, ao menos, O tnue mimo nas espaduas nuas ! Mas, sonhadora, que altivez essa ? Deixando os lbios, vaes beijar as flores ? D que o teu seio, deslumbrante e meigo, Nos mostre a vida dentro em seus fervores. O vento fresco das manhs saudosas, O azul da vaga, que desperta agora, Todo o sussurro que os jasmins despedem, Por tuas graas que tudo adora. . . Oh ! bella imagem das ternuras brandas, O teu perfume pelo co foi feito : Tu, que acordaste d'uma scisma aos frocos Envolta e nua do sidereo leito, Lindo o teu corpo, que as paixes desfolhas, J de cansadas de te ver ausente, Dize : nas dobras de teu seio occultas Tambm uma alma no palpita e sente ? Como que a vida se evapora em risos L no sacrario dessa noiva santa ! A nuvem loura dos cabellos soltos, Rosada a boca, que as manhs encanta, Inda mais bella se s estrellas falia, No. . . no tudo. . . mas o puro espanto Dos seus olhares que reflectem mudos A gloria e a sorte em. divinalquebranto t 150 Sim, ver-lhe o corpo, na expresso d'um sonho, Tingida a neve pela cor das rosas, To transparente, que sua alma em extasis Mostra-se toda nas feies mimosas ; Ver como um susto lhe descora a face, Como um anhelo lhe entumece o seio, E' ter a fronte mergulhada em brilhos, Longe os mysterios desvendando a meio. Sentir-lhe a vida perfumosa, em ondas Rolando cheia, borbulhando flores, E sob o collo lhe vr a alma aberta Em seus effluvios, dentro em seus fulgores, Bello espectaculo ! E como todo riso So devaneios e caprichos vagos, Como os desejos so ondulamentos D'alguma idia que suspira affagos ! . . . O co brilhante dessa plaga hellenica Sopra a bafagem perfumosa e amena ; E l dos astros desce o encanto fulgido, A paz, a calma, a mansido serena, E com os enleios de sera languida, E com os arroubos de baechante louca, Todos os sonhos, palpitantes, tumidos Abrem as az as. . . A amplido pouca !. . . E' d'Alma a empresa. Que expanses suaves ! Assim Homero devassava a sorte ; Plato entrava na sortida, s vezes, Trazendo sempre mais um raio forte. 151 Aqui d'America, n'agitada arena, Cada um suspiro traz um co no fundo, A cada idia no sacia um astro, Que ns sentimos vacillar o mundo. . . Ah ! ns provamos que o tufo, que passa, Traz-nos de longe alguma nova infinda ; Que a flor aberta madrugada amvel, Sabe um segredo que no disse ainda. Voae, desejos, aquecei-vos todos A' luz sagrada cfeste sol que brilha ; Mas que parece que tambm procura D'outras grandezas a sonhada trilha ! Ou nos enganamos muito ou esse mixto do mytho da Psych da velha Grcia e das esperanas e ousadias da joven America, alliana do passado e do futuro, espcie de symbolo do progresso, no deixa de ter algum valor, e, como fundo e forma, no achamos que tenha desmerecido do aprumo a que tinha chegado a poesia nacional. Os inimigos do critico puderam livremente vingar-se no poeta. Mas, como quer que seja, espcie de conceptualismo philoso- phico, de que fomos arauto na lyrica bra- sileira, teve outros sectrios, sendo os maio- res delles MARTINS JNI OR e TE I XE I RA DE SOUSA, E' uma corrente litteraria que tem 152 fortes laos de unio com a eschola realis- ti^e-socialista, que se lhe formou ao lado. Jos E DUARDO TE I XE I RA DE SOUSA na ordem chronologica antecede a Jos Isidoro Martins Jnior. Publicou, principalmente na Ida, revista litteraria, em 1875, algu- mas poesias, onde se nos depara elevada intuio philosophica. As principaes so : Naturae Vox, Os Dous Amphitheatros, Terribilis Vox, Redempo, Que ser ? Aquarella, Excelsior, A Vos do porvir, Cano do patriota, e poucas mais. De todas, as melhores so as duas primeiras. Parece-nos haver elle compreheudido a dou- trina da poesia scientifica ; porque v-se bem claro no pretender fazer sciencia em verso, e sim pura e -simplesmente levar para os domnios da arte a ampla intuio, a vi- sualidade subjectiva inspirada pela sciencia e pela philosophia. Eis aqui um trecho tirado d'Os Dois Amphitheatros, uma das poesias do gnero mais bellas que existem em lingua portugueza ; o poeta falia do Colyseu e da Igreja : Eil-a a enorme ellipse em mrmore talhada ! Abobada de p, arcada sobre arcada, E mil symbolos d'ouro, emblemas e floreios Em torno cplumnata, a descreverem veios 153 Artsticos, subtis, corynthios, jonios, doricos, E em cada capitei poemas allegoricos, Onde ainda se v, trazendo rico espolio De mais uma conquista ao alto Capitlio, Se debuxar, a par do mytho olympian, O carro triumphal do imperador romano. Aqui est de Marte o carrancudo busto, Alli a fronte esbelta e bacchica de Augusto. Abala o amphitheatro a turba em vozeria : < Ave Cezar ! - E o rei na excelsa galeria, Como o co que fareja inanimada caa, Srri-se prazenteiro toda populaa. D signal o pretor, e das jaulas na arena Atira-se um leo frente de uma hyena. Medem-se n'um momento os rudes combatentes, As caudas ferem o ar, rosnam por entre os dentes ; E, como se um tufo roncasse nas collinas, Lana nuvens de p o sopro das narinas. Arremettem de encontro os feros animaes ; Chocam-se a lacerar aquelles dous rivaes, E ttonitos de p, estacam de repente Co'a celeuma que se ergue festival, remente Da plebe que os receia, applaude e surprehende. Por todo o circo, ento felino olhar se estende, Olhar que em cada uma esplendida pupilla, D'envolta com o desprezo, a clera fuzila ! O sangue lhe rebenta em jorros das mandibulas Que batem-se a ranger sem descansar estridulas ! E trava-se de novo a interrompida luta ! As fauces o leo a escancarar, j nuta ! Mas volta-se de um salto, a redobrar de esforo, E no contrario flanco e no contrario dorso Crava de uma s vez as aguadas garras. 154 Do povo o borborinho estronda em algazarras Que ao brbaro duello os animaes aujam ! As feras rebramindo ennoveladas pulam ; Rolam ambas por terra e ambas de p logo Ensaiam novo ardil n'aquelle feroz jogo : At que um uivo surdo, extremo, vacillante, Mostra a victima exangue, inerme, agonisante, Cahir no ultimo arranco, os msculos desfeitos, Inerte o corao nos descarnados peitos ! Era um lago de sangue, a revolvida arena E o vencedor leo rugia pela scena ! Um moo gladiador e prncipe que era Ao circo se arremessa e desafia a fera. Ao ver que luta nova estava a ser travada Expande-se em delrio a turba enthusiasmada. O joven soberano, o cortezo mendigo, Que esmola uma coroa ao Cezar, seu amigo, Arrosta do animal a rabida ameaa : Explora lisongeiro a cobiada graa, E ao protector monarcha o seu valor attesta. Era mostrar-se o sol no co daquella festa ! Como que adormecendo gloria indifferente, Ou a pensar talvez na sorte inconseqente, O intrpido animal fora deitar-se ao fundo. O altivo imperador ostenta-se jocundo ! Elle recusa o repto ! *> exclama a turba louca. Anima-se o mancebo, avana at a bocca Do vencedor feroz e o gladio seu embebe Na espessa e crespa juba em que veloz recebe O rpido leo o golpe sem effeito. O prelio ia ferir-se a peito contra peito ! Dupla animalidade em um s corpo finge Aquelle grupo em terra a semelhar esphinge ! 155 Acaso as foras d'alma, as foras da matria, Do espirito o sentir, o circular da artria No pleiteiam tambm contenda to renhida No ergastulo fatal do que se chama a vida ? Lutar para viver no esta a divisa Que a natureza em tudo eterna symbolisa ? D'um lado a intelligencia e d'outro lado o instincto, Quem o laurel teria em rubro sangue tinto ? De Lacoonte a fria se estorcendo em dores Parecia o arfar dos dois batalhadores ! Jpiter o sustem ! condul-o alguma Da Qual Hercules outr'ora aos bosques de Nema ! Attenta cruel pugna a multido murmura. Apraz-se inda o leo e o prelio, ento, perdura Indeciso, tremendo, incrvel e assombroso ! Mas como sempre vem o enjo apoz o gozo, Aquelle que mais fora e armas tem comsigo Estreitamente aperta o peito do inimigo, Os ossos seus esmaga, as carnes dilacera. . . Assim inda esta vez ganhava o pleito a jera ! A juba a sacudir que sangue e p espalha, Domina o animal o campo da batalha ; Rodeia ento a presa e irnico a amima ; Fareja a regia fronte e assenta a pata em cima. Applauso sobre applauso em frenesi resa ! Ribomba pelo circo, estronda, alm echa 1 O Cezar de sua festa enthusiasmado, ufano, Decreta ao vencedor o titulo de romano. A' scena da decrepitude romana oppe o poeta a florescncia da Igreja humilde e perseguida ; porm mais tarde, por sua vez 156 perseguidora e atroz. Sentimos no dar o quadro inteiro. MARTINS JNIOR, alm de haver publi- cado as Vises de hoje, Estilhaos e Tela Polychroma, escreveu, sob o titulo d'A Poesia Scientifica, um opusculo, defendendo esta corrente na arte moderna. Declara nesse liyrinho de combate que ns e Teixeira de Sousa fomos apenas pre- cursores da doutrina no Brasil, cabendo-lhe a elle o ter penetrado mais fundamente o sentido da eschola. Pde ser ; continua- mos, porm, a acreditar andarmos ns mais bem avisados em dar poesia apenas de ieve a intuio philosophica, por meio de symbolos, de modo a no perder ella sua natural feio lyrica e artstica, do que chamando-a a immiscuir-se directamente em problemas e debates da sciencia. Tal a razo por que, no citado prlogo dos Cantos do fim do sculo, tnhamos dicto : A algum juizo, pouco esclarecido, a these ca- pital, que temos desenvolvido, poder ser tomada pelo diactismo potico. Ser uma bem grave dissonncia. Temos horror poesia didactica ; quem leu Shakespeare, quem leu Schiller sabe s detesta-la. A poesia indomita, a nica que pde viver, 157 riso, delrio. Eschylo e Dante so dous visionrios. Ao menos no deve ella despir sua roupagem de encantos, deixar aquelle ar de gracejos que parece sahir dos lbios de uma deusa. A sciencia toda grave ; seu methodo deve ser o jogo de princpios incontest- veis ; a prosa a sua natural expresso, prosa severa como as correces que sabem ter as idas claramente definidas numa ca- bea de sbio. Nada pde emprestar arte, alm da grande intuio do mundo e da humanidade. E quanto lhe basta para alar o vo, despreoccupada e fecunda. O poeta deve ter as grandes idas que a sciencia de hoje certifica em suas eminn- cias ; no para ensinar geographia ou lingstica, prehistorica ou mathematica ; mas para enlevar o bello com os lampe- jos da verdade, para ter a certesa dos problemas alm das miragens da illuso. Nada mais claro e mais verdadeiro. Em cada um dos themas idealizados nos Cantos do fim do sculo disfaramos symbolica- inente a ida scientifica sob as roupagens do lyrismo, Parece-nos que Martins Jnior no conseguiu o mesmo nas Vises de hoje, onde o elemento scientifico suffoca a poesia. 158 Felizmente, em composies mais novas o poeta tem evitado esse defeito e se appro- ximado da doutrina por ns indicada. o que se nota principalmente em Tela Polychroma. Eis uma amostra de seu es- tylo nas Vises de hoje : O' lei da evoluo, lei do progresso ! Ateaste No meu craneo uma luz, alegre como a haste Que num dia de festa erige uma bandeira ! Ensinaste-me como a infinita fileira Do povo foi subindo, erguendo-se na Historia, At se transformar nessa soberba gloria Que hoje explende ante ns, impondo aos derradeiros Reis a submisso intil dos cordeiros ! Mostrando-me primeiro os tempos tenebrosos Em que a Egreja e o Throno, os dous cruis esposos Riam cynicamente em cima das torturas Que faziam soffrer s tristes creaturas Bafejadas ao ar de crena differente Ou nutridas de um sangue herico, inconfidente ; Apontando depois ao meu olhar afoito O crepsculo bom do Sculo Dezoito Onde, como um corisco em mo do velho Jove, Fuzilava, bramia o rubro Oitenta e Nove ; E afinal me indicando o, sol Noventa e Trs, Mostrando-me como que as antiquadas leis Fundem-se ao crpitar da clera do povo, Quando ella irrompe atroz, viva como um renovo De arbusto, num jardim. . . pozeste-me deante 159 Uma cousa ideal, translcida, gigante, Que eu no vejo sem ter os olhos offuscados E sem o enthusiasmo erguer-me n'alma brados ! Esse aliquid kigente^ ( O' lei ! eu te agradeo ! ) E' da edade moderna o rutilo cabeo Onde est, como um astro a descrever a ecliptica E a brilhar, do Presente a synthese poltica ! Aqui as idas so to elevadas e revo- lucionrias como as de Teixeira de Sousa i mas a poesia um pouco inferior. IV O segundo movimento de reaco contra o romantismo foi, pelo mesmo tempo em que se desenvolvia a eschola philosophica, o que se poderia chamar, como propuzemos linhas acima, a eschola realistico-social, com os nomes de Celso de Magalhes, Generino dos Santos, Sousa Pinto, Car- valho Jnior, Fontoura Xavier, Lcio de Mendona, Assis Brasil, Augusto de Lima e outros. Medeiros e Albuquerqtie filia-se neste grupo. 160 Impossivel estudar um a um todos estes poetas. Ha entre elles um to pro- nunciado ar de famlia, que ler um quasi ter lido todos. E, todavia, cumpre dizer que em Celso de Magalhes e Sousa ' Pinto predomina um realismo velado, doce, filho da observao, certo, porm sem de- masiadas cruezas. Em Generino dos Santos e Augusto de Lima, certa nota philosophica, uo primeiro muito systematica, no segundo mais ampla e desprendida da eiva da eschola. Nos outros a nota poltica tem a preferencia : menos Carvalho Jnior, onde impera o realismo mais cr. Indicaremos uns exem- plos para documentar a evoluo. Eis aqui a Flor Agreste, de SOUSA PI NTO : A casinha no alto da collina Esconde-se entre os galhos da mangueira, Fica ao lado uma roa pequenina Onde cresce abundante macacheira. Uma gentil morena e que mo fina ! Assentada da porta na soleira, Agita com pacincia femenina Os bilros d'almofada costumeira. 161 L no fundo uma velha entre as gallinhas Espalha a refeio de espao a espao Em pores economico-mesquinhas. Chega um rapaz de foice sob o brao, Diz moa : Bons dias, Mariquinhas E atira-lhe uma rosa no regao. Falle agora a musa philosophica de AU - GUSTO DE LIMA. Eis aqui : Illuses que eu amei ao despontar da vida, Bonanosa esperana, esmeraldino mar. Em que vogou meu bero virao querida De suspiros de amor ; oh ! aves de meu lar, Jardins que alimentou a caricia materna ; Flores que desfolhei, cantando e rindo luz De aurora fulgurante e que eu julgava eterna ! Um momento deixai vossos nimbos azues, Onde, ha muito dormis, e vinde, em revoadas, Robustecer-me a crena, encher-me o corao, Deslumbrar-me na luz de vossas alvoradas E povoar emfim a minha solido. Multiplique-se em vs minha alma a cada passo, Como a cr no crystal prismatico^^o espao E haura em vossa memria o intrpido vigor,, Para sempre me achar, valente luetador, Da vida social na porfiada lia, Ao lado do Dever e ao lado da Justia. 11 M<2 Vs sois o meu passado e sois o meu porvir, Ensinando-me o Bem e dando-me a sentir A eterna aspirao, que o homem nunca perde, Porque a prpria Esperana o grande pendo verde, Atrs do qual desfila o exercito vital Das almas conquista augusta do Ideal. O poeta das Contemporneas , por certo, um dos mais illustres do Brasil ; tem composies de primeira ordem, como Faust, e mereceria um caprichoso estudo, que no pde aqui ser feito. Cumpre-nos apenas destacal-o em meio pleiade em que fulge. Muito distincto tambm o poeta das Opalas, FONTOURA XAVIE R, o rei do triolet, e um dos mais ardentes lyristas dos lti- mos tempos. Ei-lo que nos mostra a Flor da Decadncia : Sou como o guardio dos tempos do mosteiro ! Na tumular nudez d'um povo que descana, As creaes do Sonho, os fetos da Esperana Repousam no meu seio o somno derradeiro. De quando em vez eu ouo os dobres do sineiro. E' mais uma illuso, um fcrctro que avana. . . Dizem-me Deus. . . Jesus. . . outra palavra mansa Depois um som cavado a enxada do coveiro ! 163 Minh'alma, como o monge sombra das clausuras, Passa na solido do p das sepulturas A desfiar a dr no pranto da demncia. E de cogitar insano n'essas cousas, E' da suppurao medonha d'essas lousas Que medra em ns o tdio a flor da decadncia ! Do grupo que vamos agora indicando, o poeta que vibra com mais vigor a satyra poltica, , sem contestao, Lcio DE MENDONA. E' um terrvel pamphletario em verso ; tem paginas que lembram os Ch- timents de Hugo. Como completo modelo do gnero sentimos no ter mo, para citar, os versos dedicados entrada de certo ex-republicano para o senado impe- rial. No existem melhores na lingua por- tugueza. Na falta, ouamos Consrcio maldito : E um rude sujeito honrado e generoso, Forte e trabalhador. Ella toda franzina ; de antiga nobreza ; e da raa felina O seu mavioso gesto electrico e nervoso. Jura-lhe amor, e tem-lhe um dio rancoroso, Sobre o peito do athleta o regio busto inclina, E mette-lhe no bolso a mo fidalga e fina E despoja-o. E elle, o bom e cego esposo, 104 Deixa-se despojar, e trabalha, calado. Ella com uns padres vis anda de mancebia, E, fartos, riem d'elle, o enorme desgraado. Ella a Messalina, a barreg sombria, Elle, um trabalhador estpido e enganado : Elle chama-se Povo, e ella Monarchia. F. A. DE CARVALHO JNIOR, morto muito joven, deixou-nos um drama Pa- risina, alguns folhetins e duas dzias de sonetos, verdadeiramente apreciveis pela correco, pela naturalidade, pelo sabor do mais completo realismo. Eis aqui uma prova : Quando, pala manh, comtemplo-te abatida, Amortecido o olhar e a face descorada, Immersa em languidez profunda, indefinida, O lbio resequido e a palpebra azulada, Relembro as impresses da noite consumida Na lubrica expanso, na febre allucinada, Do gozo sensual, phrenetico, homicida, Como a lamina aguda e fria de uma espada. E ao vr em derredor o grande desalinho Das roupas pelo cho, dos moveis no caminho, E o boudoir, emfim, do cahos um fiel plagio, 165 - Supponho-me um heroe da velha antigidade, Um marinheiro audaz aps a tempestade, Tendo por pedestal os restos d'um naufrgio ! Bella scna, tanto quanto a pintura de situaes d'um grosseiro realismo pode ser bello. SI T7" A eschola realistico-socialista foi uma verdadeira transio para o parnasianismo. Quasi todos os poetas deste ultimo systema, antes de se dedicarem ao culto exaggerado da frma, tinham vibrado o alade revolu- cionrio, ou tinham pedido aos processos da pura observao as inspiraes para seus quadros. No grupo dos parnasianos acham- se quatro dos maiores poetas do Brasil nas duas ultimas dcadas do saculo XI X : Theophilo Dias, Raymundo Corra, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira, egualados apenas por Lus Murat, Luis Delphino e pelo inditoso Crus e Sousa. Aquelles 16(1 quatro uotabilissimos filhos das musas tm tambm entre si um pronunciado ar de fa- mlia, sendo difficil differencial-os inteira- mente. Na eschola romntica as grandes individualidades guardavam maior distancia de umas e outras. Basta lr uma pagina de Alvares de Azevedo e de Gonalves Dias para nunca mais se poder confundir um com outro. J no inteiramente assim entre os parnasianos ; e a razo que aquelles se distinguiam pelas idas, pela concepo que tinham do mundo e da hu- manidade. Estes, no fazendo caso sino quasi puramente da frma, levaram-na a um supremo apuro em que ella, por assim dizer, se crystalliza, toma feies uniformes e acaba por constituir-se um canon immuta- vel dentro do qual tm de se mover as inspiraes dos poetas. Dahi o ar de si- milhana de todos elleS; Far, porm, in- juria a esses magnos talentos, e peccar pe- rante a critica, quem no tiver perspiccia bastante para sentir e notar as differenas na apparente uniformidade da eschola. Na impossibilidade de estudar miuda- mente cada um delles, dar-nos-hemos por felizes si conseguirmos definil-os em quatro rpidas formulas. 167 RAYMUNDO CORRA, por suas poesias, revela-se dos quatro a alma mais selecta, mais distincta e mais verdadeiramente sen- tida. No encontramos em seus versos ms paixes, affectos grosseiros, ou siquer duvi- dosos, sino grandes e nobres effuses de um espirito de elite. Tem mais sentimento do que imaginao ; mais corao do que faculdade creadora ; mais ternura e gracio- sidade do que fora. Meiga, discreta, con- templativa, sua musa tem provado o travor das luctas de nosso tempo; mas, quando canta, sabe fazel-o com certa compostura, num tom de dignidade, que lembra produc- es, da musa clssica, quando fallava, por exemplo, pela bocca de um Racine. Lede As Pombas, A Chegada, Missa Universal, Sobre um trecho de Millevoye, 0 Anoitecer, Cahir das folhas, Rio Acima, Mal Secreto, A av, O vinho de Hebe, Ouro sobre asul, Despedida, Plena nues, Desdens, Chuva e Sol, Aspasia, Noites de inverno, Na primavera, Passeio Matinal, Lembrana, A saudade, Tmulo areo, Versos a um artista, Luisinha e outras e outras, e vereis que temos acertado. Nas mos deste poeta, e de seus companheiros, a plstica artstica chegou a um tal gro 168 de perfeio que difficil se torna fazer pre- ferencia desta ou daquella de suas produc- es. lr ao acaso. Mas eis aqui Mal secreto : Se a clera que espuma, a dor que mora N'alma e destroe cada illuso que nasce, Tudo o que punge, tudo o que devora O corao, no rosto se estampasse ; Se se podesse, o espirito que chora Vr, atravez da mascara da face, Quanta gente, talvez, que inveja agora Nos causa, ento piedade nos causasse ! Quanta gente que ri, talvez, comsigo Guarda um atroz, recndito inimigo, Como invisvel chaga cancerosa ! Quanta gente que ri, talvez existe, Cuja ventura nica consiste, Em parecer aos outros venturosa ! Como esta frma perfeita, correcta, pura ; mas tambm como sentido o brado do poeta ! Comprehenda-se, entretanto, que isto o romantismo na melhor accepo, 169 depurado na essncia e rejuvenescido na estructura da mtrica. Eis o Tmulo areo : Com que tocante e singular tristeza, Entre os Natchez, a me, que acerba e dura Perda de um filho soffre, a atroz crueza Das prprias dores illudir procura ! Pe-no em cama de flores, que pendura A um galho, por cips torcidos presa : Cantam aves por cima. . . e a correnteza De um rio embaixo fle, trepida e pura. . . Das arvores suspenso e entre as ramagens, 0 morto infante jaz ; frouxa, macia E mollemente, embalam-no as aragens ; E em branda oscillao suave e doce, Seu tmulo alli fica, noite e dia, A balouar, como se um bero fosse. . . Ainda aqui a inspirao segura e a frma esplendida. Leiamos As pombas : Vae-se a primeira pomba despertada. . . Vae-se outra mais. . . mais outra. . .emfim dezenas De pombas vo-se dos pombaes, apenas Raia, sangnea e fresca, a madrugada. 170 E tarde, quando a rigida nortada Sopra, aos pombaes de novo ellas, serenas, Ruflando as azas, sacudindo as pennas, Voltam todas em bando e em revoada. . . Tambm dos coraes onde abotoam, Os sonhos, um por um, cleres voam, Como voam as pombas dos pombaes ; No azul da adolescncia as azas soltam, Fogem. . . mas aos pombaes as pombas voltam, E elles aos coraes no voltam mais. . . Parece uma cano de Heine, pela deli- cadeza do sentir, ou de Goethe, pela per- feio irreprehensivel da frma. Si tivssemos de fazer um estudo, por li- mitado que fosse, do poeta, haveramos de fallar de suas produces polticas e das humorsticas, insistindo peculiarmente na intuio philosophica que sae de suas obras. No aqui o logar. THE OPHI LO DI AS foi como. seu patricio, autor das Symphonias e das Alleluias (ambos so maranhenses), um extraordin- rio cultor da frma. Teem entre si muitos pontos de contacto o que se explica pela 171 confisso do mesmo credo litterario e pela natural convivncia mantida entre ambos nos bancos acadmicos em S. Paulo, onde foram collegas. Em Theophilo ha por- ventura mais colorido e mais profuses ly- ricas ; ha, talvez, mais calor nas inspiraes amorosas e mais audacias nas polticas e sociaes. Raymundo o excede na elevao das idas, na variedade dos pensamentos, num quer que seja de serenidade olympica, que s se encontra nos grandes gnios da arte. Si no fosse uma extravagncia comparar os dous moos brasileiros, um dos quaes morreu muito joven, tendo apenas publi- cado trez pequenas colleces lyricas, e o outro, vivo ainda, qne tambm ainda muito joven, tendo publicado egual numero de collectaneas, si no fosse uma extrava- gncia, ns diramos que em Raymundo ha algum raio do gnio lyrico de Goethe e em Theophilo Dias alguma nota dos ardores de Schiller. Estes parallelos devem ser entendidos cum grano salis. Como quer que seja, cumpre accrescentar ser mais forte a imaginativa no auctor dos Cantos Tro- picaes e das Fanfarras, do que em seu amigo e emulo. 172 Para justificar quanto havemos dicto, mostremos ao leitor apenas Procellarias, gnero politico-social, e A Matilha, gnero sensualistico-amoroso. E comecemos por esta, que uma das paginas superiores do lyrismo universal : Pendente a lingua rubra, os sentidos attentos, Inquieta, rastejando os vestgios sangrentos, A matilha feroz persegue enfurecida, Allucinadamente, a presa mal ferida. Um, fitando o olhar, sonda a escura folhagem : Outro consulta o vento ; outro sorve a bafagem ; 0 fresco, vivo odor, calido, penetrante Que na rpida fuga, a victima arquejante Vae deixando no ar, prfido e traioeiro ; Todos, num turbilho phantastico ligeiro, Ora em vrtice, aqui se agrupam, rodam, giram, E, cheios de furor frentico, respiram, Ora, cegos de raiva, afastados, diversos, Arrojam-se a correr. Vo por trilhos dispersos, Esbraseando o olhar, dilatando as narinas. Transpem num momento os valles e as collinas, Sobem aos alcantis, descem pelas encostas, Recruzam-se febris em direces oppostas, T que da presa, emfim, nos msculos cansados Cravam com avidez os dentes afiados. No de outro modo, assim meus soffregos desejos. Em matilha voraz de allucinados beijos, Percorrem-te o primor s languorosas linhas, As curvas juvenis, onde a volpia aninhas, 173 Frescas ondulaes de frmas florescentes Que o teu contorno imprime s roupas eloqentes : O dorso avelludado, electrico, felino, Que poreja um vapor aromatico e fino ; O cabello revolto em anneis perfumados, Em fofos turbilhes, elsticos, pesados ; As fibrilhas subtis dos lindos braos brancos, Feitos para apertar em nervosos arrancos, A exacta correco das azuladas veias, Que palpitam, de fogo entumecidas, cheias, Tudo matilha audaz, perlustra, corre, aspira, Sonda, esquadrinha, explora, e anhelante respira, At que, finalmente, embriagada, louca, Vae encontrar a presa, o gozo em tua bocca. S um mestio brasileiro, e Theophilo Dias o era, poderia escrever versos to ar- dentes, to sensuaes e, ao mesmo tempo, to doces, to meigos, to acariciantes, to delicados ao ouvido de sua amada ! Neste sentido a lyrica brasileira uma das mais completas e perfeitas que existem. Desde os tempos do romantismo at as -ultimas escholas temos produzido no gnero certa- mente algumas das mais bellas peas da poesia universal. O lyrismo, e s elle, tem sido o nosso forte em litteratura. E Theo- philo Dias ahi um dos pontfices magnos. Ouamos-lhe umas notas humanas, sociaes. Leiamos Procellarias. 174 ainda o mesmo poeta imaginoso, fluente, abundante, correctissimo. Rasgando a flor de um mar sem rumor, largo e plano, Um sulco de ouro e luz teso o concavo panno, Ao galerno fugaz, que as velas arredonda, O navio veloz resvala de onda em onda. E' transparente o co, liso o mar ; calmo o espao E do vento e da vaga ao rythmo, ao compasso Que faz rolar sobre um outro bordo a pupilla Do gageiro perscruta a vastido tranquilla, Cravado no horisonte o olhar profundo e agudo. Tudo lmpido, azul ; paz, bonana tudo. Mas eis que de improviso umas aves estranhas, Que parecem o vo arrancar das entranhas Do horisonte longnquo ainda ha pouco vazio, Em nuvens sobreveem demandando o navio, Mosqueadas de negro, audazes, agoureiras, Contornam o maame e as vergas altaneiras, Sinistras pipilando entre as velas redondas, Rasgando a superfcie intermina das ondas. So ellas que l vem, as procellarias ! Logo Phosphorecendo, o mar vibra sulphur e fogo ; Torna-se escuro o ar, negro o co ; e a tormenta, De sbito cahindo, horrisona rebenta ; Pesa no espao a treva ; esfusiam os ventos ; Cortam a escurido relmpagos sangrentos, 175 A voz do temporal desfeito sobrepuja A grita de terror, que levanta e maruja, Ao tenebroso co, tranzida de agonia. Mas, renascendo a calma e repontando o dia, Na deserta amplido das vagas solitrias, T onde alcana o olhar, j no ha procellarias, Assim vem, assim vo as bravas avesinhas, Affrontando o furor das tormentas marinhas ; Desdenhosas da paz, fugindo calmaria, Libradas nos tufes. A luta as inebria. Os gnios so assim ; como as filhas do oceano, Pairam sobre os vulces do pensamento humano, Arrostando do mal a infrene tempestade, Precursores do bem, e nncios da verdade ; 0 torpor lhes repugna ; o combate os convida ; S a lucta os attrai, porque a lucta a vida. Versos, como estes, no so muito com- muns e vulgares em todas as lnguas. ALBERTO DE OLIVEIRA , d'entre os quatro poetas maiores em cujo numero o collocamos, o que parece ter tomado mais a serio a sua misso de artista do verso. E' o que tem mais escripto e publicado mais. Canes Romnticas, Meridionaes, Sonetos e Poemas e Versos e Rimas, so colleces suas apparecidas umas sobre as outras. Dos quatro o que tem peas mais 176 bem acabadas, feitas com mais capricho e mais fino lavor, num vocabulrio mais abundante e mais escolhido. Em compen- sao o mais frio, o que mais descobre o esforo, o parti pris de fazer bonito, e, por mais que o queiramos esconder, im- possvel negar uma tal ou qual affectao que sae de algumas de suas paginas. De- feito este, porm, que lhe no apaga o grande mrito e que deve mais ser posto conta da eschola do que notado em desfa- vor do poeta. De todos os seus companheiros elle o parnasiano em regra, extremado, completo, radical. Por isso, si tem do systema as vantagens, possue tambm em mr escala os sines. As boas qualidades predominam. o mais abundante e talvez o mais ima- ginoso poeta brasileiro ao lado de Luiz Delphino e Luiz Murat. Quem se quizer convencer leia O Leque, Cano da Ilha, Viajando, A arvore, A lagarta, A borbo- leta asul, Per tenebras, A crus da mon- tanha, A enchente, As trs formigas, Historia de um corao e muitas outras. Notar tambm o que o lr attentamente que elle o maior paizagista entre os nossos poetas dos ltimos trinta annos. 177 Para dar amostra rpida de seu estylo, citamos aqui o soneto Ultima Deusa : Foram-se os deuses, foram-se, em verdade ; Mas das deusas alguma existe, alguma Que tem teu ar, a tua magestade, Teu porte e aspecto, que s tu mesma em summa. Ao ver-te com esse andar de divindade, Como cercada de invisvel bruma, A gente crena antiga se acostuma, E do Olympo se lembra com saudade. De l trouxeste o olhar sereno e garo, 0 alvo collo onde, em quedas de ouro tincto, Rutilo rola o teu cabello esparso. . . Pisas alheia terra. . . Essa tristeza, Que possues, de estatua que ora extincto Sente o culto da frma e da belleza. Ahi est o lyrico enamorado da frma, expresso suprema da belleza, na opinio dessa casta de sonhadores e elles no dei- xam de ter em immensa parte razo. Mas eis agora alguma cousa que define melhor talvez o nosso poeta : Vaso grego : 12 178 Esta de ureos relevos, trabalhada De divas mos, brilhante copa, um dia J de servir aos deuses agastada Vinda do Olympo, a um novo deus servia. Era o poeta de Theus que a suspendia Ento, e ora repleta ora esvasada A taa amiga aos dedos seus tinia, Toda de roxas ptalas colmada. Depois. . . Mas o lavor da taa admira, Toca-a, e do ouvido aproximando-a, s bordas Finas has-de lhe ouvir, suave e doce. Ignota voz, qual se da antiga lyra Fosse a encantada musica das cordas, Qual se essa voz de Anachreonte fosse. Este poeta um contemplativo da natu- reza, da vida, onde procura acima de tudo as frmas doces, esplendidas, attrahentes, que o extasiam. O mundo exterior que lhe fornece a matria e as cores para seus quadros. A alma humana, na variedade infinita de suas luctas e agitaes, raro lhe merece um olhar investigador. 179 OLAVO BILAC um temperamento inteira- mente diverso. Mobil, activo, irnico, fez facilmente, apezar de muito moo, a volta inteira em torno aos homens e s cousas, ajudado por seu temperamento irrequieto e escarninho, chegando a attingir a sereni- dade do humour, que a indifferena su- perior alegria e magoa. Dahi o trao principal de seu poetar: ardente, sentido, sem ser triste ou melan- cholico ; apaixonado, sem ser sentimental e choramigas. O poeta nelle ha de ser estudado e com- meutado com o auxilio do folhetinista en- demoniado, que tambm nelle reside. um dos poucos em nossa raa que teem conseguido o humour, sem precisar de se fazer metaphysico, remontado, nebuloso, ex- travagante, como o auctor de Brs Cubas. Se Theophilo Dias o mais ardente, Raymundo Corra o mais sereno, Alberto de Oliveira o mais artista destes poetas, Olavo Bilac o mais espontneo, o mais natural de todos elles. Os versos lhe saem correntios, deslisam- lhe doces e maviosos como se fossem fallas decoradas e repetidas sem o minimo esforo. Em suas composies avultam dous gneros 1X0 principaes : idealisaes histricas, feitas com invejvel maestria, e effuses amorosas como no ha melhores em lnguas roma- nicas. Do primeiro numero so, entre outras, O sonho de Marco Antnio, Delena Carthago, O julgamento de Phryna, A tentao de Xencrates. No segundo grupo acham-se todas as pequenas peas, esses admirveis sonetos que enchem a seco a que deu, em seu volume de poesias o nome de Via-lactea. O Intermesso de Heine, que uma das cousas mais bellas produzidas pela musa universal em todos os tempos, tem muitas vezes mais conceito, mais profundeza, porm no tem mais brilho, nem mais mimos. Como frma e como manifestao lyrica, a Via-lactea um dos pontos culminantes na poesia moderna em lingua portugueza. Deve ser lida em seu conjuncto para se bem apreciar na multiplicidade de seus tons. Destacaremos dous fragmentos para es- tudo comparativo : Sonhei que me esperavas. E, sonhando, Sa, ancioso por te ver ; Corria. . . E tudo ao ver-me to depressa andando, Soube logo o logar para onde eu ia. 181 E tudo me fallou, tudo ! Escutando Meus passos, atravez da romaria Dos despertados pssaros o bando : Vai mais depressa ! Parabns ! * Dizia. Disse o luar Espera! que eu te sigo : Quero tambm beijar as faces delia ! E disse o aroma: Vai, que eu vou comtigo! Cheguei : , ao chegar, disse uma estrella : Como s feliz ! como s feliz, amigo, Que de to perto vais ouvil-a e vl-a! bello isto e d'uma belleza simples, singela como costuma ser a boa poesia. Mas, cousa melhor : Ora ( direis) ouvir estrellas ! Certo Perdeste o senso. E eu vos direi, no emtanto, Que para ouvil-as, muita vez desperto E abro as janellas, pallido de espanto. . . E conversamos toda a noite, emquanto A via-lactea, como um pallio aberto, Scintilla. E, ao vir do sol, saudoso em pranto Inda as procuro pelo co deserto. Direis agora : Tresloucado amigo ! Que conversam ellas ? Que sentido Tem o que dizem, quando esto comtigo ? Eu vos direi : Amae para entende-las! Pois s quem ama pde ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrellas . 182 Todo o lyrismo nas grandes litteraturas segue esta evoluo ; comea por descri- pes de scenas simples da natureza ; passa depois a descrever os phenomenos mais complexos do mundo exterior; aps appa- recem as narrativas de factos histricos, e, quasi ao mesmo tempo, a reproduco de lendas e tradies populares ; mais tarde surgem as scenas sociaes, domesticas, os mais quadros de costumes sorprendidos ao vivo ; s posteriormente que o mundo subjectivo e psychologico entra em aco. Esta ultima phase divide-se em dous gran- des momentos : no primeiro apparecem apenas os sentimentos elementares, por assim dizer ; o poeta d-nos conta de suas alegrias ou de suas tristezas, fazendo-nos a narrativa dos seus amores ; no segundo momento, que a phase final de todo ly- rismo, surge a alma humana em sua inte- gralidade e as situaes complicadissimas do espirito so o thema predilecto da poesia. Ha algumas paginas destas em Gcethe, em Shelley, em Byron, em Vigny, em Musset, em Uhland, em Heine, em Tennyson e pouco mais. Nosso lyrismo, por emquanto, no passou das primeiras situaes da evo- luo chegando apenas, nos seus melhores 183 representantes, ao primeiro momento do ultimo perodo. Olavo Bilac, com todo seu merecimento, no desmente a regra geral da evoluo lyrica no Brasil. Sua poesia, com ser lmpida e brilhante, no ampla e profunda, como uma repro- duco fiel das grandes magoas, dos im- mensurados tormentos, dos insondaveis abysmos do corao moderno. 2^^7-1 Nem podia ser por outra forma. A ul- tima expresso do lyrismo s chega quando a sociedade tem experimentado as grandes vicissitudes do viver histrico, as fundas dores da evoluo lenta e complicada da vida dos povos. S depois d'essas magnas luctas, que se exprimem no drama, na comedia, no theatro em summa, no romance que o lyrismo attinge a forma suprema, e vale por si s qual uma philosophia in- teira. Isto nos leva naturalmente a fallar de Luiz MURAT, que figura, como diver- 184 gente dos romnticos e dos parnasianos em o n. XVI de nosso quadro synoptico. No to estimado, talvez, quanto os quatro evangelistas do parnasianismo, cujas rpidas silhouettes acabamos de traar. que sua leitura no to fcil, to simples ; con- vida mais a pensar. Tem mais obscuridades e extravagncias do que qualquer delles ; mas, em compen- sao, mostra mais personalidade, mais fora, mais profundeza do que todos elles. No se parece com os outros ; tem feies pr- prias, e isto tudo em litteratura e arte. Quando quer ser mimoso, delicado e meigo, sabe ser como quem mais o sabe ; e quando quer voar longe nos surtos do pensamento sobe at onde os outros no podem chegar. muitas vezes diffuso; mas, quando brilha, torna-se transparente, diaphano como a luz meridiana. Tem quasi a imaginao de Luiz Delphino, tendo mais profundeza de pensamento e mais philosophia do que elle. De todos os nossos poetas o que vae se approximando da ultima phase da evo- luo do lyrismo, penetrando no solio d'alma humana. S Cruz e Sousa ahi o eguala, ou o excede talvez. Em suas variadas pro- 185 duces podem-se distinguir trs ordens principaes : amorosas, philosophicas e phan- tasiosas. Entre estas, que teem um cunho d originalidade muito pronunciado, con- tam-se no segundo volume das Ondas ; Uma Viso, Phantasma, A Zagala, A Moa e o Rouxinol; e- no primeiro volume. Atravs do passado, Cano das prolas, Concertante nocturno, Rouxinoes do co- rao, A Concha, A Vingana de Sileno, peas todas estas que, no seu gnero so das mais bellas que se podem ler. Entre as philosophicas destacam-se A Roda de Ixion, Depois do Calvrio, Sanie Universal, Sonho apocalyptico, Se- lemno, A Tristesa do Cahos. O lyrismo amoroso abrange a mr parte das produc- es do poeta (*). Ahi as effuses de su'alma, que a de um forte, irrompem num torvelinhar de phrases rutilas, cano- ras, irizadas e amplas, numa fcil abundn- cia, que esto a indicar a riqueza do ma- nancial d'onde brotam. Exemplo : {') Vide em nossos Novos Estudos de Litteratura Contempo- rnea o estado consagrado ao auctor das Ondas. 186 i Custa to pouco perdoar, formosa ! A' noite o insecto a flor persegue, e, emquanto A flor o insecto esconde na cheirosa Ptala, e o orvalho como argenteo pranto Ca-se leve pelas urnas de ouro : E o valle estende uma penumbra fresca, Macia como o teu cabello louro, Ou como a tua pelle romanesca ; A' noite, quando o olhar procura, ancioso, Do valle em meio a sombra que o procura E rola, ao longe, o mar tardo e queixoso, E a voz do vento s ondas se mistura ; Quando um sorriso outro sorriso doura, E a alma fica mais pallida e mais louca ; Quando o beijo como uma vaga estoura E em flocos se desfaz de bocca em bocca ; Quando a alegria, buliosa e douda, Pelos pomares, rindo, se derrama, E a natureza, como n'uma boda, Nas tetas cheias das estrellas mama ; Quando uma nuvem pe o p de manso Na espadua de algum rio ou de algum monte, E vai a lua em plcido balano De um horizonte para outro horizonte ; 187 Quando a folhagem murmura palpita, E os ninhos tremem, voluptuosamente ; Quando arqueja o bambual e a aragem grita E arde no espao o rutilo crescente ; Quando o rio de vaga em vaga chora, E os montes, como brancos minaretes, Surgem da sombra ao despontar da aurora, Campindo o azul de fulvos ramalhetes, E desfolha-os depois e os montes salta ; Quando as extensas curvas das campinas A madrugada de ureo friso esmalta Desabrochando as rosas purpurinas ; Quando um rumor de plumas o ar sacode Talvez porque se afastam as estrellas ; E vae por entre as flores como uma ode De ouro o canrio de azas amarellas ; Quando a poesia alegre borboleta Quebra o casulo e parte e ouve-se o riso Que ella deixou na sombra, alva e irrequieta Como o que Eva deixou no paraso ; Quando a floresta, como um livro aberto, No sei que encanto s aves offerece, E como o sonho da alma est mais perto, Mais perto o co dos olhos nos parece ; 188 Quando o beirai das casas a andorinha Deixa e os espaos plcidos percorre, Como no Oceano a prola marinha, Como na face a lagrima que escorre ; S atravez dos bosques e dos prados E dos alegres pssaros distante, Caminho, e elles nas azas descansados, Em coro, chamam-me o phantasma errante. Perda-me !. . . nas trevas de onde saio, Como uma sombra triste e silenciosa, Vive minh'alma, e emtanto o mez de maio Brinca e ri entre as arvores, formosa. Nosso fito primordial, neste esboo de nossa poesia em quatro sculos, mostrar o fio da evoluo, o normal desdobramento das escholas, dos systemas, indicando, prin- cipalmente, as transformaes do estylo, da plstica artstica. O leitor intelligente ir pegando em flagrante as modificaes da lingua e da frma, bastando-lhe percorrer a distancia que vai de um Bilac, ou de um Murat a um Bento Teixeira, ou um Santa Maria Itaparica. Collocamos entre os divergentes do par- nasianismo, alm do auctor das Ondas, Mudo Teixeira, Emilio de Meneses, Joo - 189 Barretto de Meneses, Theotonio Freire e Frana Pereira. Muito haveria a dizer destes talentosos poetas : somos, porm, forados a indical-os apenas. XVII Temos pressa de apreciar o ultimo pe- riodo da evoluo da poesia brasileira no final do sculo XI X e rapidamente fallar dos symbolistas. Infelizmente s poder- nos-hemos deter ante Bernardino Lopes e Crus e Sousa. Se tivssemos de estudar, um a um, os poetas, todos os que ainda nestas paginas no foram contemplados, esta memria to- maria propores que lhe no podemos dar. Mas vejamos os dous famosos symbolistas brasileiros. BERNARDINO LOPE S, se nos licito assim escrever, pois o poeta assigna sempre e sys- tematicamente B. Lopes, tem hoje quarenta annos de edade e escreve ha mais de vinte. Tem neste perodo publicado os seis livros seguintes : 1) ( ) Chromos (1881), Pissicatos (1880), D. Carmen (1890), Brases (1895), Sinh Flor (1899), Vai de Lyrios (1900). Pro- mette publicar ainda Hellenos e Hym- verno. Tem atravessado duas phases e possue duas maneiras de poetar. A primeira, mais espontnea e brilhante, pde-se filiar no parnasianismo e acha-se em Chromos, Pissicatos, grande parte dos Brases, e tambm em parte em Dona Carmen e Sinh Flor. A segunda, que se distingue por certa feio de affectada re- ligiosidade e pretendido mysticismo, que se costuma prender ao chamado symbolis- mo. Achamos prefervel a primeira ; porque nella melhor se apreciam as boas qualida- des do poeta, que consistem no brilho da phrase, na riqueza das imagens, ua facilida- de do verso e da rima. Preferimos v-lo, em amoroso enleio, entre as princesas, marquesas, duquesas, con- dessas e fidalgas de toda a casta, em cujo convvio parece passar a existncia, do que ouvil-o a entoar Ave Maria e Ladainhas em louvor de sanctas. Esta ultima alti- tude elle a tomou desde a parte final dos Brases, que intitulou Vai de Lyrios, e 191 no livro, recentemente publicado, a que poz egual titulo. Por isso mesmo neste volume agradam-nos mais as peas que se prendem ao seu primeiro estylo. Neste caso esto Minha Varanda, As Flautas, Berlinda, Missa d'alva, Maio Festivo, Guitarrilha, Slancias, Analia e Andorinha. Como exemplo do doce e va- loroso parnasianismo de Bernardino Lopes seria preciso citar quasi todos os Brases. Contentemo-nos com este soneto : N'essas manhs alegres, perfumadas, De ether sadio e claro firmamento, Acariciando o mesmo pensamento Percorremos o parque, de mos dadas, Aves trinando em cima das ramadas, Alvos patos e um cysne a nado lento Sobre as guas do lago, num momento Pela braza do sol ensangentadas. . . Brilha o sereno tremulo nas pontas Do vistoso gramai, como se fosse Solto rosrio de opalinas contas. . . Emquanto uns casos rsticos de aldeia Eu vou narrando-lhe, em linguagem doce, Escuto a queixa de seus ps na areia ! 1'2 To bellos e mais bellos ainda do que este, outros muitos existem em seus livros. A inexperincia de alguns poetas novis no Brasil, pelos annos de 1874 em deante, levou-os imitao de poesia martellante, emphatica, de Guerra Junqueiro, com indi- zivel escndalo das ptrias musas. Isto dissemos ns j vai para bastantes annos. Referiamo-nos influencia desastrada de Morte de Dom Joo na poesia nacional. Hoje no podemos, sem faltar ainda mais elementar verdade, deixar de profligar a in- fluencia, mais nociva ainda, Os Simples, do vate lusitano. Tem sido um verdadeiro desastre. Depois que o auctor d'A Velhice do Padre Eterno, quiz se fazer singelo, crente, e mystico e entrou a emparelhar os versi- nhos de quatro, cinco e seis syllabas das velhas xacaras, no depravado e ignaro choto de Toe, toe, toe, molleirinha santa. . . a chusma dos imitadores, como um fcando de gralhas esfaimadas sobre um arrozal, caiu em cima d'aquillo e tem sido um nunca acabar. Volumes inteiros teem ahi 193 surgido naquella montona toada. O nosso Bernardino Lopes caiu tambm no lao e entrou a escrever cousas destas : Bemdito, santo, louvado seja. . . Coro de gloria, dentro da igreja, Para a agonia do espao vem ; O leo da magua na tarde escorre, Que como o lyrio : recende e morre. Belm... Belm. . . Faz realmente pena ver um poeta de ta- lento real, que escreveu algumas das me- lhores poesias da lyrica brasileira, escravi- sar-se assim, sem a menor necessidade, ao simples capricho de uma moda detestvel e sem futuro. E, como desejamos apagar qualquer resaibo de desagrado que, por- ventura, possam deixar estas palavras de censura que a verdade nos impoz, appella- remos do poeta para elle mesmo, citando- lhe estes versos : Vieram comtigo, flor de primavera, Na brilhante exploso de ureas phalenas E andorinhas gazis, abrindo as pennas, O sonho azul, a fulgida chimera. . . 13 194 - Entre os lauris de ramos de hera, Myrthos floridos e humidas verbenas, Rindo, talvez, s doces cantilenas, Abrem-se os ninhos, meigamente, espera Da aza primeira e do primeiro beijo. . . E este aroma de rosas, este harpejo, O sonho azul, a flgida chimera, Ferindo a luz do amor, a luz querida, Que esta alma aquece e me illumina a vida, Vieram comtigo, flor de primavera I De tudo evidencia-se no dever ser o logar do poeta dos Brases entre os sym- bolistas. apenas uma transio para elles ; seu posto mais exacto dever ser entre os parnasianos. No assim CRUZ E SOUZA, a muitos res- peitos o melhor poeta d'entre os nossos symbolistas. E o nosso symbolista puro, o rei da poesia suggestiva; e, cousa singular nelle no se encontram uma s vez os taes ver- sinhos imitados d' Os Simples, cheios de balo, balo, belm, belm, e outras ga- feirices da espcie. E o ultimo poeta qne temos de rapida- mente notar ; porm d prazer ao critico 195 avistar-se com um homem destes, um in- tegro, um nobre espirito de eleio. Deixou publicados, em poesia, os Broqueis e in- ditos Phares e ltimos Sonetos. De- vemos delicadeza do sr. Nestor Victor, grande amigo do poeta e que se encarre- gou de publicar-lhe as obras pstumas, a ventura de ler os manuscriptos do illustre morto, que nos hoje plenamente conhe- cido. O que notmos de mais notvel nas poesias de Cruz e Sousa fcil de ser dicto em poucas palavras. Em primeiro logar, resaltam de todas as suas composios uma elevao d'alma, uma nobreza de sentimentos, uma delicadeza de affectos, uma dignidade de caracter que nunca se desmentem, nunca se apagam. Dahi, como segunda qualidade aprecivel, a completa sinceridade do poeta: este no faz cantatas a condessas e duquesas, nem entoa fingidas ladainhas a sanctas. . . Inspirados pela natureza, pelo infinito scenario do mundo exterior, ou pelas peri- pcias da vida, pelos attritos da sociedade, ou pelas dores intimas de seu corao, os seus versos so sempre simples, espontneos, sin- ceros, como as confisses de uma alma limpa e digna. Nada de pose. Outra qua- 196 lidade da arte de Cruz e Sousa o poder evocativo de muitas de suas poesias. Elle no descreve nem narra. Em phrases vagas, indeterminadas, apparentemente desalinha- das, sabe, por no sabermos que interessante e curiosa magia, atirar o pensamento do leitor nos louges indefinidos, suggestio- nando-lhe a imaginativa, fazendo-o perder- se nos mundos desconhecidos, sempre me- lhores do que aquelles em que vivemos. Quem se quizer convencer leia em Bro- queisAntiphona, Sideraes, em Sonhos, Monja, Braos, Cano da Formosura, Lua, Tulipa Real, Vesperal, Turberculosa, Acrobata da Dr, Angelus ; em Phares leia Piedosa, Olhos do Sonho, Violes que choram, Envelhecer, Lyrio Astral ; e em ltimos sonetos especialmente Al- lucinao, Vida obscura, Gloria, Madona, da Tristesa, O grande momento, Vos fu- gitiva, Supremo Verbo, Bemdtctas cadeias, A Harpa, Cano confiante, Cr, Alma jatigada, Flor nirvanisada, Crusada nova, Acima de tudo, Immortal falerno, Asas abertas, Velho, Eternidade, Retrospectiva, Alma mater, O Corao, Invulnervel, Lyrio luctuoso, Um Ser, O Grande sonho, Alma solitria, Silncios, A Morte. 197 A philosophia que transuda da poesia de Cruz e Sousa, a de um triste, mas um triste rebellado; o pessimismo, ultima flor da civilisao humana. Elle o caso nico de um negro, um negro puro, verdadeiramente superior no desenvolvimento da cultura brasileira. Mes- tios notveis temos tido muitos ; negros no, s elle; porque Luiz Gama, por exem- plo, nem tinha grande talento, nem era um negro pur sang. Assim outros. Soffreu os terrveis agrores de sua posio de preto e de pobre, desprotegido e certamente, des- prezado. Mas a sua alma cndida e seu peregrino talento deixaram sulco bem forte na poesia nacional. Morreu muito moo, em 1898, quasi ao findar deste sculo, e nelle acha-se o ponto culminante da lyrica brasileira aps quatrocentos annos de exis- tncia. Fazemos votos para que lhe sejam publicados os inditos e lido e estudado este nobre e vigoroso artista. Aqui no nos podemos alongar. Como especimen de seu estylo, e para que seja bem distinctamente o ponto, a que nos levou a evoluo da lyrica, teremos de tambm citar um trecho d'este magno poeta. E como cital-o facillimo, porque tudo que deixou em verso bom, no precisa- mos de ir alm da primeira pagina de seu mais antigo livro Broqueis. E eis a An- tiphona : O' Frmas alvas, brancas, frmas claras De luares, de neves, de neblinas ! . . . O' Frmas vagas, fluidas, crystallinas. . . Incensos dos thuribulos das aras. . . Frmas do Amor, constellarmente puras, De virgens e de Santas vaporosas. . . Brilhos errantes, mdidas frescuras, E dolencias de lyrios e de rosas. . . Indefiniveis musicas supremas, Harmonias da Cr e do perfume. . . Horas do Occaso, tremulas, extremas, Requiem do Sol que a Dor da Luz resume. Vises, psalmos e cnticos serenos, Surdinas de rgos flbeis, soluantes. . . Dormencias de volupicos venenos Subtis e suaves, mrbidos, radiantes.. . Infinitos espritos dispersos, Ineffaveis, ednicos, areos, Fecundai o Mysterio destes versos Com a chamma ideal de todos os mysterios, 199 - Do sonho as mais azues diaphaneidades Que fuljam, que nas Estrophes se levantem E as emoes, todas as castidades Da alma do Verso, pelos versos cantem. Que o pllen de ouro dos mais finos astros Fecunde e inflamme a rima clara e ardente. , Que brilhe a correco dos alabastros Sonoramente, luminosamente. Foras originaes, essncia, graa De carnes de mulher, delicadezas... Todo esse effluvio que por ondas passa Do Ether nas roseas e ureas correntezas. . Crystaes diludos de clares alacres Desejos, vibraes, ancias, alentos, Fulvas victorias, triumphamentos acres, Os mais estranhos estremecimentos. . . Flores negras do tdio e flores vagas De amores vos, tantalicos, doentios. . . Fundas vermelhides de velhas chagas Em sangue abertas, escorrendo em rios. Tudo ! vivo e nervoso e quente e forte, Nos turbilhes chimericos do Sonho, Passe, cantando, ante o perfil medonho E o tropel cabalistico da Morte ! . . . 200 -- Sentimos nada poder dizer de muitos jovens poetas mais ou menos filiados escola de Cruz e Souza, Para findar : o symbolismo, nome por certo mal escolhido para significar a reaco espiritualista que neste final do sculo se fez na arte contra as grosserias do natura- lismo e contra o dilettantismo epicurista da arte pela arte do parnasianismo, , nas suas melhores manifestaes lyricas, uma volta, consciente ou no, ao romantismo uaquillo que elle tinha tambm de melhor e mais significativo. No Brasil, porm, para que elle caminhe e progrida, ser preciso que, deixando de lado as ladainhas de Bernar- dino Lopes e Alphonsus de Guimares, deixando, em summa, as affectaes d'Os Simples, prosiga na trilha que lhe foi aberta por Cruz e Sousa, no o Cruz e Souza, da prosa abstrusa do Missal e das Evocaes, porm o Cruz e Sousa dos Phares e dos ltimos Sonetos, e essa ha de ser uma das mais bellas pores da lyrica nacional, que iro ainda florescer nos primeiros annos do sculo que vai entrar. (1). (i) Nao esquecer que este ensaio foi escripto em 1899 para fi- gurar no Livro do Centenrio. 201 A synthese de tudo que ahi ficou escri- pto fcil de fazer : o lyrismo portuguez da epocha camoneafta, passado ao Brasil, evoluiu em marcha crescente, tomando mais calor na intensidade e mais brilhos na frma, at vir a constituir a expresso typica da esthesia nacional e tornar-se um dos mais perfeitos, si no o mais perfeito da America. O sangue africano e o ind- gena contribue muito para isso; quasi todos os poetas de talento que deixamos citados so mestios e, si no o indicamos sempre e sempre deante do nome de cada um, porque ainda hoje, os preconceitos no o deixam fazer sem desgosto. FIM
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