COMPLETO Silvio Romero

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SYLVIO ROMRO

^ DA ACADEMIA PERNAMBUCANA DE LETTRAS _j


EVOLUO
I D O
. R E C I F E
yp, de J. B. E del br ock antiga casa LAEMMERT
4 RU A MARQUEZ DE OLINDA 4
\ 1905
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Y ^[lovisiia z Ipori.s,
latia, alivia t J^alrel,
aj cinco iovmosas &za,a$ cznavn-
1 -bucanas aue, oao ao 9lCua* in>pi-
zadozas do dois' atandes escti-ptotx.
cffeteep
fusLv-^o- J(o-n. Cslr-O-.
Mo, Novcmbrv 190k.
EVOLUO DO LYRISMO BRASILEIRO
W m quadro completo da poesia brasileira,
em seu secular desenvolvimento, deveria ser
aberto pela apreciao das graas e donaires
da musa popular. Alli que se vo prender
as razes mais profundas da esthesia ptria,
o que nella verdadeiramente nacional. Ao
povo, com suas tradies, com suas lendas,
com suas cantigas improvisadas, com seus
infantis contos da lareira, que pertencem
as notas mais intensas, porque so as que
saem directamente das esperanas ou dos
desalentos da raa. A natureza deste ensaio
veda-nos a entrada ampla nesse templo de
nossas phantasias auonymas, que, felizmente,
n' outros escriptos j tivemos ensejo de des-
crever e admirar. (*)
Iyimitar-nos-hemos agora a poucas pala-
vras. Foi no correr dos dous primeiros s-
culos da conquista e do povoamento que os
colonos e mareautes portuguezes cantaram
neste paiz os imaginosos romances, as sau-
dosas xdcaras, as doces serranilhas, as
magoadas trovas soltas de seu abundante'
cancioneiro. Ao desbravar dos terrenos, ao
derribar das mattas, no duro corte do po
brasil, e no preparo dos ei tos para o plan-
tio das cannas nas roas, negros e ndios
escravizados ouviram as primeiras melopas
na lngua de Cames.
No seu trabalho e has suas festas tambm
cantavam elles as toscas canes de seus
repertrios selvagens. Entre os colonos
houve logo desde o comeo bons lnguas
das fallas indgenas e dos dialectos africa-
nos, bem como entre os escravos das duas
raas muitos foram prestes assimilando o
idioma do vencedor. Nas longas noitadas
(') Vide Cantos populares dn Brasil, Contos Populares do Brasil
e Estados sobre a Poesia Popular Brasileira, pelo auetor.
dos engenhos e fazendas nas solides bra-
silicas, quando nossas principaes cidades
no passavam de insignificantes aldeias e as
aldeias e villas no existiam ainda, a au-
sncia de toda a diverso, o receio das feras
e dos assaltos de ndios bravos, o medo de
possveis ataques de extrangeiros affoitos,
forariam o aconchego de todos em torno
dos chefes e senhores como a regra geral,
e, ento, comprehende-se com quanta avidez
deveriam ser ouvidas quaesquer notas festi-
vas, cantos ou contos, que viessem acaso
quebrar a monotonia e o tdio nos rsticos
solares de nossos avoengos. Foi assim que
se iniciou e produzio a fuso das trez almas
que nos formaram. E por isso que em
nossos cantos e contos populares o con-
curso dos trez povos irrecusvel na lngua,
nos themas, nos mythos, na contextura de
todos elles.
E por isso finalmente que na evoluo
secular de nosso lyrismo, porque toda a
nossa poesia , digamo-lo desde j, essen-
cialmente lyrica, mesmo quando se mette a
querer ser pica ou dramtica, nunca faltou
certa -tendncia popular, campestre, alde,
espcie de revivescencia das origens tradi-
cionaes plebas, de que elle dimanou.
a evoluo deste lyrismo que nos im-
porta assignalar, caracterizando-o nas for-
mas capites que tem assumido, qual uma
espcie de organismo vivo, -que passasse
America e nella se desenvolvesse.
XX
A poesia no Brasil durante os ltimos
decennios do sculo XVI, inicia-se timi-
damente, porm imitando as formas mais
notveis que j havia attingido em Por-
tugal.
O grande poema de Cames era ento a
verdadeira culminncia nas lettras portugue-
zas. O esplendido estylo dos Lusadas
desprendia brilhos, que chegavam at
America.
Gandavo, o mais antigo historiador dos
fastos brasileiros, era amigo -particular do
incomparavel pico, desde os primordios
uma fora na evoluo do Brasil espiritual.
BENTO TE I XE I RA PI NTO adopta a oitava
rima, ao gosto camoneano, copia-lhe a ma-
neira, chegando at a cital-o, no fim d' uma
estrophe. O tom de nosso lyrismo ento
certamente acanhado; porm j revela a no-
tvel qualidade de descrever a natureza do
paiz. A ProsopOpa no se esquece de
trazer a descripo do porto do Recife. As
primeiras manifestaes da musa no Brasil
do, pois, testemunho de sua admirao ante
os encantos naturaes da terra. Impossvel
tomar-lhe o timbre, o emocionante tom
dos primitivos accordes, sem ouvil-a*.
E' este porto tal, por estar posta
Uma cinta de pedra inculta e viva,
Ao longo da soberba e larga costa,
0*nde quebra Neptuno a fria esquiva
Entre a praia e a pedra descomposta
O estanhado elemento se deriva
Com tanta mansido, que uma fateixa
Basta ter fatal Argds anneixa.
Em meio desta obra alpestre e dura
Uma bocca rompeu o mar inchado,
Que na lingua dos brbaros escura
Paranambuco de todos chamado:
DeParanque mar,puca,rotura;
Feita com fria deste mar salgado,
Que, sem no derivar, commetter mingua,
Cova do mar se chama em nossa lingua... (
x
)
(*l Edio de 1873Rio de Janeiro.
10 -
Um trecho da herica terra pernambucana
foi, j se v, quem mereceu as primicias da
musa brasileira. E j desde aqui, repetimos,
temos nascida a mais antiga e estimavel
qualidade de nossa poesia: a descripo ca-
rinhosa da natureza. . Era a primeira affir-
mao do nacionalismo, que nunca mais a
arte ptria havia de abandonar, e, ao con-
trario, teria de colorir e abrilhantar no de-
correr dos sculos, sempre que a poesia ti-
vesse de ser sincera comsigo mesma e digna
dos superiores destinos de que havia de ser
a interprete querida.
Passando Bahia, essa tendncia no se
desmentio; e as effuses dos poetas foram
apenas como que a repetio rythmada das
bellas paginas dos Dilogos das grandezas
do Brasil, que, sm duvida, corriam por
todas as mos. O estylo ainda funda-
mentalmente o mesmo, tendo-se lyra dos
cantores junctado, a mais, certa nota reli-
giosa e, de vez em quando, a severa corda
em que, desde ento, faliam tambm em
nossa alma as cruciantes dores, as fundas
magoas que soem produzir os magnos pro-
blemas do destino humano. E por isso que
a poesia em MANOE L BOTE LHO DE OLI -
VEIRA cantp as bellezas da Ilha da Mar e
11
em FRE I MANOEL DE SANTA MARIA des-
creve os encantos da Ilha de Itaparica, e,
no poema Eustachidos a destruio de
Jerusalm e os tormentos e horrores do in-
ferno.
O lyrismo nacionalista ento ainda pu-
ramente descriptivo e, talvez, menos do que
isso, meramente enumerativo. Botelho e
Santa Maria limitam-se a enumerar os ac-
cidentes geographicos e as bellas e raras for-
mas das plantas e animaes das paragens que
descrevem.
O tom ' ainda em essncia o mesmo de
Bento Teixeira; sente-se j certo surto ly-
rico que havia de ir de mais em mais cres-
cendo, avolumando-se, a ponto de vir a pro-
duzir as formas do gnero mais perfeitas
talvez que j foram cantadas em qualquer
lingua humana. Disse Botelho de Oliveira,
fallando de sua ilha:
E' como a concha tosca e deslustrosa,
Que dentro cria a prola formosa.
Erguem-se nella outeiros.
Com soberbas de montes altaneiros,
Que os valles por humildes despresando,
As presumpes do mundo esto mostrando
E querendo ser prncipes* subidos
Ficam os valles a seus ps rendidos.
12
E passa o poeta, em tom verdadeiramente
realista, a enumerar tudo que de raro em
peixes, plantas, fructas, se lhe antolha em
su deliciosa manso, no se esquecendo de
os comparar aos de Portugal, dando prefe-
rencia aos de sua terra. (
x
)
Frei Manoel de Santa Maria Itaparica
ainda mais expressivo. A descripo da
ilha, de que o frade tomou o nome, um
quadro de gnero em que muito, para o
tempo, ha a admirar. No fallando j no
que se l nella, no que concerne s arvores,
fructos e animaes insulanos, enumerados
com maior vigor do que os de Botelho na
Ilha da Mar, basta o quadro da pesca da
bala para dar a esse pedao da velha poe-
sia brasileira um cunho singularmente no-
tvel :
Monstro do mar, gigante do profundo,
Uma torre nas ondas sossobrada,
Que, parece, em todo mbito rotundo,
Jamais besta to grande foi creada;
Os mares despedaa furibundo
Co'a barbatana s vezes levantada;
Cujos membros teterrimos e broncos
Fazem a Thetis dar gemidos roncos. .
(') VieFlorilegio da Poesia Brasileira, de K. A.Varnhagen,
1850 : 1. pag. 134 e segs.
13
Tanto que chega o tempo decretado,
Que este peixe do vento Austro movido,
Estando vista de terra j chegado,
Cujos signaes Neptuno d ferido,
Em um porto desta ilha assignalado,
E de todo o precioso prevenido,
Esto umas lanchas leves e veleiras,
Que se fazem com remos mais ligeiras.
Os riautas so ethiopes robustos,
E outros mais do sangue misturado,
Alguns mestios em a cr adustos,
Cada qual pelo esforo assignalado;
Outro alli vai tambm, que sem ter sustos
Leva o harpo da corda pendurado,
Tambm um, que no oficio a Glauco offusca,
E para isto Brasilo se busca.,.
Impossvel alongar a citao de to viva
scefla que vae num crescendo realistico at
o final. Precisamos de poupar o espao.
E, como nosso empenho seutir apenas
desde j o tom e a cr da poesia nacional
em seus albores para assignalar-lhe as trans-
formaes evolutivas, no intil lembrar
ao leitor que no deixe despercebidos os
laos qne prendem o trovar de Frei Santa
Maria Itaparica ao dos seus predecessores
citados.
14
Note a tendncia descriptiva por enume-
rao, o enthusiasmo pela terra, a oitava
rima camoneana, o sabor clssico do verso,
ao lado de certos amaneirados dos seiscen-
tistas, cousas todas estas, que lhe saltaro
aos olhos, se os passar por sobre todos os
versos das apenas indicadas descripes d'A
Ilha de Itaparica, d'A Ilha da Mar e d'A
Prosopopa,
E para que, desde j, fiquem patentes
certas distinces de estylo, certo vigor de
tintas da novel poesia brasileira, ainda na
infncia, na bocca do frade poeta, oua-se
esta estrophe da descripo do Inferno:
Ardente serpe de sulfureas chammas
O centro gira deste alvergue umbroso,
So as fascas horridas escamas,
E o fumo negro dente venenoso.
As lavaredas das volantes fiammas
Azas compem ao monstro tenebroso;
Que quanto queima, despedaa e come,
Isso mesmo alimenta, que consome. (*)
Tomemos nota deste alento da forma e
prosigamos.
HnritrgiH cit. I. p ac 174.
. - 15
Quem assim, ainda na infncia, j mostra
porte to seguro e ostenta roupagens to
vistosas, com alguns passos adeante, haveria
de ser uma celeste creatura envolta em ethe-
reas e roagantes vestes.
Mas a poesia, como tudo que humano,
uma filha da terra, por mais que a faa-
mos fugir para o cu de nossos devaneios,
para o azulado infinito de nossas aspiraes;
e, como filha da terra, tem de luctar e soffrer
a nosso . lado, tem que gemer as nossas
dores e carpir as nossas magoas.
E posto n'estas paginas tenhamos mais
que vr a poesia do que os poetas, a arte
como alguma cousa de funccional de que os
poetas so apenas rgos occasionaes, no
poderemos passar sem reparo o referver de
paixes, dios e coleras de que GREGORIO
DE MATTOS foi, na epocha que vimos pas-
sando, a expresso mais ntida.
Para bem termos a idia do que era a
Bahia na segunda metade do sculo XVII,
devemos lembrar j fazer mais de sculo que
se havia erigido alli o governo geral do
Brasil; ter Portugal j perdido de todo as
esperanas na ndia, e feito convergir seu
esforo e interesse exclusivamente para suas
conquistas d' America; haverem-se j gran-
- - 16 -
demente desenvolvido o commercio, a la-
voura e a riqueza. A sociedade, estimulada
por governadores gananciosos, por padres e
magistrados cobertos de pretenes, sedentos
de riquezas, ostentava j muitas das mcu-
las que ento carcomiam a velha metrpole.
O sculo XVII, apogeu do regio absolu-
tismo, foi no mundo occidental um perodo
notavelmente viciado. A capital brasileira,
valhacoito de aventureiros de toda a casta,
ostentava tantas mazellas quantas L,isba.
Quasi sempre, porm, os perodos de vio-
lentas paixes so tambm epochas de no-
tvel lavor espiritual.
A Bahia achava-se n' este estado. E basta
dizer que raramente algum perodo de nossa
historia contou n' um centro qualquer homens
como Eusebio de Mattos, seu irmo Grego-
rio, Antnio Vieira, seu irmo Bernardo,
Rocha Pitta, Botelho de Oliveira e trinta
outros de quasi egual merecimento.
No s: deve-se at affirmar que nunca
mais se deu igual phenomeno, porquanto na
vida espiritual luso-americana no existem
dois Antonios Vieiras e nem dois Gregorios
de Mattos. Esta singular e terrvel fi^
gura, j por ns duas vezes estudada com
esmero, no pde aqui ter mais que uma ra-
1 7 -
4
pida, porm significativa meno. Foi o
gnio .satyrico mais poderoso de nossa lingua
at hoje; foi o retrato de sua epocha, por
elle profligada desapiedadamente; , acima
de tudo, um documento por onde se pode
reconstruir o quadro dos costumes do tempo.
Grandes e pequenos, bispos, governadores,
conegos, magistrados, nobres e plebeus,
todos soffreram as pancadas de seu latego
implacvel.
E tinha graa o iracundo censor. (
l
) Em
meia dzia de versos pintava uma situao
cmica, digna de soffrer o Jouet da satyra.
Eis como a musa faceta bahiana j em
pleno sculo XVII debicava com as parvoas
desaventuras de um pernstico cantador de
modinhas :
Uma grave entoao
Te cantaram, Braz Luiz,
Segundo se conta e diz
Foi solfa de f bordo.
Pelo compasso da mo
Em que a valia se apura ;
Parecia solfa escura;
Pois a mo nunca parava !...
Nem no ar, nem no cho dava
Sempre em cima da figura !. ..
I
1
) Vide Historia da Litteratura Brasileira e Historia do Brasil
pela biographia de seus heres.
1
A poesia lyrica neste divergente mostra
os evidentes signaes que a prendem de
seus contemporneos.
III
Mas a vida que, ao findar do sculo XVII
e nas primeiras dcadas do XVIII, j era
intensa na Bahia, Recife, S. L,uiz e Belm, e
para sabel-o bastante lr as Cartas de An-
tnio Vieira, a Cultura e Opulencia do
Brasil, de Andreoni, ou a Historia da
America Portuguesa, de Pitta, no fal-
iando j nos Dilogos das Grandezas do
Brasil, ou na Historia do Brasil, de Vi-
cente do Salvador, por serem dois docu-
mentos bem mais antigos, a vida social era
ento tambm intensa no Rio de Janeiro e
em S. Paulo, e tinha desde esse tempo ir-
rompido pelos sertes mineiros.
E por isso que durante a segunda me-
tade do sculo de Voltaire e Rousseau,
as cidades das Minas, nomeadamente Villa
Rica, so verdadeiros focos intellectuaes em
que a intelligencia colonial faz verdadeiros
- I V -
prodgios. Os nomes de Santa Rita Duro,
Basilio da Gama, Cludio da Costa, Thomaz
Gonzaga, Alvarenga Peixoto so ainda hoje
dos mais illustres da poesia brasileira.
Pouco importa o haverem todos elles ido
velha metrpole colher as luzes da cul-
tura. L,evavam n'alma ps bons germens,
hauridos na ptria, os nobres estmulos que
no morrem nunca. Era isto indispensvel
para que apurassem alli o ouro de lei da
boa linguagem, que deveriam de volta, como
millionarios, espalhar entre os patrcios.
Se a me-patria nos reenviou polidos Gon- -
zaga, Cludio, Basilio, os Alvarengas; ns
dmos-lhe feito o extraordinrio e inexce-
divel Vieira, a mais colossal figura de suas
lettras depois de Cames. E' que na Bahia
tambm havia um sanctuario da boa e elo-
qente linguagem e, se ,os poetas mineiros
muito deveram ao Reino para a formao
de seu 'gnio, no menos certo que muito
lhes entrou n'alma a grande tradio da es-
chola bahiana. SANTA RI TA DURO como
um lao que une as duas escholas, o trao
que liga frei Santa Maria Itaparica a Clu-
dio, aos\ Alvarengas e a Gonzaga. Nem
devemos esquecer ter passado este.ultimo a
meninice e primeira mocidade em Pernam-
20
buco e Bahia, circumstancia de grande valor
no caso.
O autor do Caramur, assumpto tomado
historia bahiana, um Santa Maria Itaparica
um pouco mais desenvolvido e accentuado-
N' elle como em Basilio, como em Cludio,
como em Gonzaga, como nos dois Alvaren-
gas, quer no fluminense (Alvarenga Peixoto),
que foi viver em Minas, quer no mineiro,
que veio habitar o Rio de Janeiro (Silva
Alvarenga), a poesia nacional encontrou al-
gumas de suas notas mais verdadeiras, mais
eloqentes, mais profundas, mais originaes.
Ainda hoje quando sentimos saudades da
divina mensageira principalmente n'estes
seis grandes mestres mortos que nos imos
saciar.
assim que ouvimos a ronda phantas-
tica das tradies chorar as magoas da gentil
Moema:
E' fama ento que a muttido formosa
Das damas, que Diogo pretendiam,
Vendo avanar-se a no na via undosa,
E que a esperana de o alcanar perdiam,
Entre as ondas com anci furiosa
Nadando, o esposo pelo mar seguiam;
E nem tanta gua que fluetua vaga
O ardor que o peito tem, banhando apaga.
21
Copiosa multido da no franceza
Corre a ver o espectaculo assombrada;
E ignorando a razo da estranha empresa,
Pasma da turba feminil, que nada :
Uma, que as mais precede em gentileza,
No vinha menos bella do que irada:
Era Moema, que de inveja geme,
E j visinha no se apega ao leme.
Brbaro, a bella diz, tigre e no homem...
Porem o tigre, por cruel que brame,
Acha foras amor, que emfim o domem :
S a ti no domou, por mais que eu te ame
Frias, raios, coriscos, que o ar consomem,
Como no consumis aquelle infame?
Mas pagar tanto amor, com tdio e asco...
Ah! que o corisco s tu... raio... penhasco!
Bem puderas, cruel, ter sido esquivo,
Quando eu a f rendia ao teu engano;
Nem me offenderas a escutar-me altivo,
Que favor, dado a tempo, um desengano :
Porm deixando o corao captivo
Com fazer-te a meus rogos sempre humano
Fugiste-me, traidor, e desta sorte
Paga meu fino amor to crua morte ?
To dura ingratido menos sentira,
E este fado cruel doce me fora,
Se a meu despeito triumphar no vira
Essa indigna, essa infame, essa traidora ;
22
Por serva por escrava te seguira,
Se no temera de chamar senhora
A vil Paragua, que sem qe creia,
Sobre ser-me inferior nscia e... feia.
Emfim, tens corao de ver-me afflicta,
Fluctuar moribunda entre estas ondas;
Nem o passado amor teu peito incita
A um ai somente, com que aos meus respondas :
Brbaro, se esta f teu peito irrita,
Disse vendo-o tugir, ah! no te escondas,
Dispara sobre mim teu cruel raio...
E indo a dizer mais, cae num desmaio.
Perde o lume dos olhos, pasma e treme,
Pallida a cr, o aspecto moribundo,
Com mo j sem vigor, soltando leme,
Entre as salsas espumas desce ao fundo ;
Mas na onda do mar, que irado freme,
Tornando a apparecer desde o profundo:
Ah! Diogo cruel! Disse com magua,
E sem mais vista ser, sorveu-se n' agua.
Choraram da Bahia as nymfas bellas,
Que nadando a Moema acompanhavam ;
E vendo que sem dr navegam dellas.
A branca praia com furor tornaram :
. Nem pde o claro Here sem pena vel-as,
Com tantas provas que de amor lhe davam ;
Nem mais lhe lembra o nome de Moema,
Sem que o amante chore, ou grato gema.
2
A evoluo patente; a velha poesia bra-
sileira, dos sculos XVI, XVII e XVIII, de
Pernambuco e Bahia, os dous grandes cen-
tros espirituaes d'onde a vida mental irra-
diou por todo o norte, e tambm pelo sul
do Brasil, passando pelo Rio de Janeiro e
S. Paulo, a velha poesia brasileira, quando
veio a florescer nos sertes mineiros na se-
gunda metade do sculo passado, no des-
mentia a sua origem. Vibrava ainda as pri-
mitivas cordas da descripo das paizagens
americanas; sabia achar accordes para as
dores e esperanas nacionaes e no era muda
deante dos problemas humanos. Mas que
esplendida florao ! que harmonioso desen-
volvimento ! No s a natureza exterior
que falia imaginativa dos poetas; o homem
tambm comea a captival-a; as varias raas
e classes da populao despertam-lhe sym-
pathias. O interior das almas comea a ser
perscrutado.
A frma tem-se enriquecido; a mtrica
mais variada, mais flexvel, mais ductil; o
estylo tem-se tornado mais firme, mais bri-
lhante, mais cheio de plasticidade. Tudo
isto, porque o pensamento mais amplo,
mais consciente, mais profundo. E,m BASI-
LIO DA GAMA, em Peixoto, principalmente
24
em Gonzaga e Cludio, a psychologia dos
sentimentos j tem o que estudar e definir.
A alma do branco, do conquistador no
a nica que se julga capaz de nobres
aces; a do selvagem tirada do esque-
cimento e mostrada a toda a luz. E por
isso que ainda hoje a bella e triste Lindoya
continua a ser uma das mais encantadoras
filhas da phantasia de nossos poetas, um
mixto de amor e saudade que brilha na ga-
leria de nossos typos ideaes.
O scenario digno da heroina e impe-se
admirao :
Entram emfim na mais remota e interna
Parte do antigo bosque, escuro e negro,
Onde ao p de uma lapa cavernosa
Corre uma rouca fonte, que murmura,
Curva latada de jasmins e rosas.
Este logar delicioso e triste,
Cansada de viver, tinha escolhido
Para morrer a misera Lindoya.
L reclinada, como que dormia,
Na branda relva e nas mimosas flores,
Tinha a face na mo, e a mo no tronco
De um fnebre cypreste, que espalhava
Melancholica sombra. Mais de perto
Descobrem que se enrola no seu corpo
Verde serpente, e lhe passeia e cinge
Pescoo e braos, e lhe lambe o seio.
Fogem de a vr assim, sobresaltados,
25
E param cheios de temor ao longe ;
E nem se atrevem a chamal-a e temem
Que disperte assustada e irrite o monstro,
E fuja e apresse no fugir a morte.
Porm o dextro Caitut, que treme
Do perigo da irman, sem mais demora
Dobrou as pontas do arco, e quiz trs vezes
Soltar o tiro, e vacillou trs vezes
Entre a ira e o temor. Emfim sacode
O arco e faz voar a aguda setta,
Que toca o peito de Lindoya, e fere
A serpe na testa, e a bocca e os dentes
Deixa cravados no vizinho tronco.
Aouta o campo co'a ligeira cauda
O irado monstro, e em tortuosos giros
Se enrosca no cypreste e verte envolto
Em negro sangue o livido veneno.
Leva nos braos a infeliz Lindoya
O desgraado irmo, que ao despertal-a
Conhece, com que dr! no frio rosto
Os signaes do veneno e v ferido
Pelo dente subtil o brando peito.
Os olhos em que amor reinara um dia,
Cheios de morte ; e muda aquella lingua,
Que ao surdo vento e aos chos tantas vezes
Contou a larga historia de seus males.
Nos olhos Caitut no soffre o pranto
E rompe em profundssimos suspiros,
Lendo na testa da fronteira gruta
De sua mo j tremula gravado
O alheio crime e a voluntria morte.
E' por todas as partes repetido
O suspirado nome de Cacambo.
2>
Inda conserva o pallido semblante
Um no-sei-que de magoado e triste
Que os coraes mais duros enternece.
Tanto era bella no seu rosto a morte !
Bellissimo surto potico, mais lyrico do
que pico, posto seja uma folha arrancada
a um poema herico ! E' que, desde os tem-
pos de Basilio, nossa ndole de meridio-
naes e mestios ia mais e mais seleccio-
nando como a frma esthetica, que melhor
nos quadra, o lyrismo. E, d'ento at hoje,
os maiores lyricos, da lingua nos pertencem.
Como entre todos os povos jovens, ou em
via de formao, o lyrismo brasileiro quasi
sempre meramente descriptivo, por vezes
contemplativo, e quasi nunca se eleva pin-
tura de situaes caractersticas da vida,
d'alma humana nos dolorosos transes da
existncia. Assim como a evoluo suprema
do drama, da comedia e do romance a
pintura completa, por vezes terrvel, dos
caracteres, creando os typos immortaes da
vasta galeria das paixes, tambm o desen-
volvimento completo da lyrica o desenho
exacto das situaes do espirito.
No basta descrever a paizagem, ou ex-
halar,a dmiraes ou queixumes deante dos
phenomenos humanos; preciso ir at aos
- 2 1
recessos do corao e de l trazer a photo-
graphia exacta das crises d'alma individual
ou collectiva.
E por isso que o Sino, de Schiller, o
Cantor, de Goethe, a Filha da Albergueira,
de Uhland, so typos magistraes do eterno
lyrismo de todos os tempos.
Na escola mineira no tinha a musa na-
cional chegado plenamente quelle apuro;
mas ainda assim j se nos antolham alli
profundas expresses d'uma poesia exemplar.
Pelos lbios de CLUDIO DA COSTA eis
como o gnero dedilha as cordas do co-
rao :
No se passa, meu bem, na noite e dia
Uma hora s que a msera lembrana
Te no tenho presente na mudana
Que fez, para meu mal, minha alegria.
Mil imagens debuxa a phantasia,
Com que mais me atormenta e mais me cansa...
Pois, se to longe estou de uma esperana,
Que allivio pde dar-me esta porfia ?
Tyranno foi commigo o fado ingrato
Que crendo, em te roubar, pouca victoria,
Me- deixou para sempre o teu retrato...
Eu me alegrara da passada gloria,
Se, quando me faltou teu doce trato,
Me faltara tambm delle a memria
28
Em muitas outras notas, como esta, pela
bocca do immaculado inconfidente, a alma
dolorida da poesia brasileira exhalou-se re-
petidas vezes. A evoluo se accentuava
cada vez mais; no era s o velho Cludio
que sentia o est Deus in nobis; outros re-
cebiam eguaes favores, e as lacrimae rerum
eram choradas por outros olhos.
O gnio altivo de ALVARENGA PE IXOTO
tinha s vezes palavras destas:
No cedas, corao ; pois nesta empresa
0 brio s domina; o cego mando
Do ingrato amor seguir no deves, quando
J no podes amar sem vil baixeza.
Rompa-se o forte lao, que fraqueza
Ceder a amor, o brio deslustrando ;
Vena-te o brio, pelo amor cortando,
Que honra, que valor, que fortaleza.
Foge de vr Alla; mas se a vires
Por que no venhas, outra vez a amal-a,
Apaga o fogo, assim que a presentires.
E se inda assim o teu valor se abala,
No lh'o mostres no rosto; oh! no suspires!
Calado geme, soffre, morre, estala!
Mas onde este outro inconfidente foi ver-
dadeiramente admirvel, pela intuio ntida
de nossa situao em fins do sculo XVIII,
29 -
foi no afamado Canto Genethliaco, dirigido
ao filho de D. Rodrigo de Menezes, go-
vernador de Minas, nascido no Brasil. Alli,
como j uma vez dissemos, comprehendeu
elle a posio ethnica dos brasileiros e vio
claro o nosso futuro, tendo, demais, um
brado de alento para os mseros escravos.
O Canto Genethliaco uma como revela-
o; n'elle est o poeta com todos os seus
enthusiasmos e todas as suas esperanas.
Contrape a Portugal o Brasil rude, certo,
mas rico e cheio de porvir; n'aquelles versos
o sentimento real, o espirito brasileiro os
alenta,, affirmando nossas prerogativas. Que
firmeza de tons, que lyrismo espontneo nas
largas frmas d'estas estrophes!. . . Ouam:
Esses partidos morros escalvados,
Que enchem de horror a vista delicada,
Em soberbos palcios levantados
Desde os primeiros annos empregada,
Negros e extensos bosques to fechados,
Que at ao mesmo sol negam a entrada,
E do agreste paiz habitadores
Brbaros homens de diversas cores ;
Isto, que Europa barbaria chama,
Do seio de delicias to diverso,
Quo differente para quem ama
Os ternos laos de seu ptrio bero!
- 30 -
O pastor louro, que meu peito inflamma,
Dar novos alentos a meu verso,
Para mostrar de nosso here na bocca
Como em grandezas tanto horror se troca.
Aquellas serras, na apparencia feias,
Dirs, por certo, oh! quanto so formosas!
Elias conservam nas occultas veias
A fora das potncias magestos-is;
Tm as ricas entranhas todas cheias
De prata, ouro e pedras preciosas ;
Aquellas brutas, escalvadas serras
Fazem as pazes, do calor s guerras.
Aquelles morros negros e fechados,
Que occupam quasi a regio dos ares,
So os que em edifcios respeitados
Repartem raios pelos crespos mares.
Os corynthios palcios levantados,
Dos ricos templos jonicos altares,
So obras feitas desses lenhos duros,
Filhos destes sertes, feios e escuros.
A c'roa d'ouro, que na festa brilha,
E o sceptro que empunha na mo justa,
Do augusto Jos a herica filha,
Nossa rainha soberana augusta,
E Lisboa de Europa maravilha,
Cuja riqueza a todo mundo assusta,
Estas terras a fazem respeitada,
Barbara terra, mas abenoada!...
31 -
Esses homens, de vrios accidentes,
Pardos, pretos, tinctos e tostados,
So os escravos duros e valentes.
Aos penosos servios costumados :
EUes mudam aos rios as correntes,
Rasgam as serras, tendo sempre armados
Da pesada alavanca e duro malho
Os fortes braos feitos ao trabalho.
Houve, no sculo XIX, um momento em
que a poesia se tornou tribunicia, vestio a
blusa do operariato e verberou os abusos
dos reis, estygmatizou os soffrimentos do
povo tecendo hymnos s esperanas das des-
protegidas classes sociaes.
No haver uma illuso da critica, se ella
notar nas bellas oitavas que acabam de ser
ouvidas alguma cousa que um presenti-
mento de to expressivos ardores humanos
e patriticos. Podemos avanar ser isso a
verdade ; e bem claro se ter visto como se
foi encordoando a lyra de nossa poesia. A'
corda da descripo naturalista, junctou-se
a religiosa e mais a satyrica e mais a pes-
soal e subjectiva e mais a patritica e hu-
manitria. Temos j a gamma completa,
faltando ainda, por certo, a dexteridade
quasi perfeita da execuo e a originalidade
e profundeza quasi inexcediveis dos tons.
32 -
o que s ha de vir com o tempo, a pouco
e pouco, em o decorrer do sculo que vai
das Lyras de um T. ANTNI O GONZAGA
(1792) aos Broqueis de um Cruz e Souza
(1893).
O desditoso amante de Marilia, o ma-
goado Dirceu, ainda estava no Brasil, d' onde
sahio degredado para as Pedras de Angoche,
em frica, em fins de Septembro de 1793,
quando em Lisboa apparecia a primeira edi-
o das Lyras, no anno anterior.
Apezar da gloria que o celebrizou desde
logo, no deixou de ser condemuado, como
envolvido na Inconfidncia mineira, e de
amargurar os dias em frica at 1809.
Neste inconfidente a poesia affirmou-se
como alguma cousa de sonoroso e cantante
que cahia na alma emocionada do povo.
Depois dos Lusadas de Cames nenhum
livro tem sido mais amado por ns do que a
Marilia de Dirceu. E com razo. que
alli esto muitas das notas mais sincera-
mente sentidas que j uma vez foram mo-
duladas em lingua portugueza.
O lyrismo pessoal e ntimo, se no chega
s maiores profundezas do gnero, doce e
acariciante, cheio de donaires e finezas, e,
sobretudo, ternamente magoado. Eis como
- 33

a lyra ento falia a linguagem selecta dos
apaixonados:
Propunha-me dormir no teu regao
As quentes horas da comprida ssta,
Escrever teus louvores nos olmeiros
Toucar-te de papoulas na floresta;
Julgou o justo cu que no convinha
Que a tanto gro subisse a gloria minha.
Ah ! minha bella, se a fortuna volta,
Se o bem que j perdi, alcano e provo,
Por essas brancas mos, por essas faces,
Te juro renascer um homem novo ;
Romper a nuvem que os meus olhos cerra,
Amar no cu a Jove e a ti na terra...
Ns iremos pescar na quente ssta
Com canas e com cestos os peixinhos ;
Ns iremos caar nas manhs frias
Com a vara envisgada os passarinhos ;
Para nos divertir faremos quanto
Reputa o varo sbiohonesto e santo.
Nas noites de sero nos sentaremos
Cos. filhos, se os tivermos, fogueira ;
Entre as falsas historias que contares,
Lhes contars a minha verdadeira ;,
Pasmados te ouviro ; eu, entretanto,
Ainda o rosto banharei de pranto...
A poesia em Gonzaga teve, alm de sua-
vssimas notas lyricas, de caracter pessoal e
3
34

psychologico, bellos surtos descriptivos e
realistas da natureza e da sociedade.
Nos versos citados, como em todos os da
Marilia, ha um caracterstico tom de affago,
de brandura, de meiguice, sem affectao,
sempre real, verdadeiro, capaz, s por si, de
dar a medida do caminho percorrido pelo
espirito brasileiro, no terreno da arte, du-
rante trez sculos.
ITT
A passagem de Gonzaga para SILVA AL-
VARENGA naturalissima. Um teve sua
Marilia e outro a sua Glaura; ambos poe-
tas lyricos, e ambos amantes apaixonados;
ambos contemporneos e amigos. Silva
Alvarenga serve para plenamente mostrar a
transio da poesia mineira para o Rio de
Janeiro e do sculo XVIII para o XIX. O
poeta veio fixar-se, depois de formado, na
capital da colnia, onde dedicou-se advo-
cacia e ao magistrio, e onde falleceu em
1814. Ainda aqui, na ra de 1863, conhe-
cemos alguns velhos que tinham sido dis-
3 5
cipulos do notabilissimo cantor de Glaura.
O livro de madrigaes e ronds d'esse ex-
traordinrio poeta, que consideramos o maior
dos tempos coloniaes, appareceu em 1801.
Abrio-se assim brilhantemente na poesia o
sculo XI X no Brasil. O livro de Glaura,
como forma e brilhantismo de estylo, su-
perior ao de Marilia. A poesia foi diffe-
rente nos dous cultores ; em Silva Alva-
renga, mestio em regra, ella foi acima de
tudo a arte da palavra, da frma sonora, do
rythmo musical. Temperamento meridional,
amigo dos tropos cadenciados, deliciava-se
nas cambiantes dos sons, no susurro, das
rimas. As delicadezas da arte chegavam a
este poeta principalmente pelo ouvido; a
natureza era para elle um marulho lan-
guido, perdendo-se longe, bem longe, no in-
finito.
Gonzaga era o poeta das imagens exte-
riores, das frmas opulentas, dos quadros
deslumbrantes: a poesia vinha-lhe principal-
mente pela vista. Em Alvarenga ha sem-
pre os gemidos, os marulhos da lympha, os
susurros das folhas e das brisas, os sons da
lyra, o canto das aves; em Gonzaga vm as
flores, os mares, as nuvens, as estrellas, as
auroras, e tudo isto ainda pouco para for-
3o
necer as cores com que o poeta possa re-
tratar a sua amada.
Ha, por outro lado, na poesia de Silva
Alvaienga mais talvez do que na de Gon-
zaga, pronunciado brasileirismo, e um
brasileirismo no consistente em descripes,
como j o tinham feito outros, do homem
americano, o selvagem, o caboclo; sim um
brasileirismo, que se prazia, como o primi-
tivo, em apreciar o torro ptrio.
D'ahi a cr natural de seus quadros, que
se passam de ordinrios entre as manguei-
ras, os cajueiros, os coqueiros, os pssaros,
os beija-flores, nas bellas tardes americanas
aos reflexos rutilantes do sol tropical.
E esses quadros naturaes servem apenas
de moldura a uma poesia subjectiva, intima,
pessoal, auto-psychologica, qual a que teria-
mos de vr entre as geraes de romnticos,'
quer europos, quer brasileiros, a datar de
1820 a 1870.
Ouamos-lhe algumas notas para bem sa-
bermos em que altura nos achamos e nor-
tearmos bem a nossa rota. Eis uma:
Se eu conseguisse um dia ser mudado
Em verde beija-flor, oh que ventura!
Desprezara a ternura
Das bellas flores no risonho prado.
37
Alegre e namorado,
Me verias, oh Glaura, em novos giros,
Exhalar mil suspiros;
Roubando em tua face melindrosa
O doce nectar de purpurea rosa.
E bello isto: mas eis o que talvez seja
mais bello:
No desprezes, oh Glaura, entre estas flores,
Com que os prados matiza a bella Flora,
O jambo que os amores
Colhero ao surgir a branca aurora,
A dryade suspira, geme e chora
Afflicta e desgraada.
Ella foi despojada... os ais lhe escuto...
Vers neste tributo,
Que por sorte feliz nasceu primeiro,
Ou frcto que roubou da rosa o cheiro,
Ou rosa transformada em doce fructo.
Alvarenga Peixoto, a datar de 1777, anno
em que se fixou no Rio de Janeiro, natu-
ralmente se constituio o centro em torno ao
qual se haviam de mover os espritos in-
telligentes, que abrilhantaram a velha capi-
tal dos vice-reis durante as duas ultimas
dcadas do sculo passado e as duas pri-
meiras do sculo prestes a findar. Sousa
Caldas, S. Carlos, Sampaio, Rodovalho, Ma-
38
riano J. Pereira da Fonseca, Janurio da
Cunha Barbosa, monsenhor Pizarro e Arajo,
padre Luiz Gonalves dos Santos, monsenhor
t
Netto padre Jos Maurcio e o prprio Mon-
fAlverne, que j tinha trinta annos quando
Alvarenga falleceu, so desse numero. A
poesia n'esse meio, a que se vieram junctar
pouco mais tarde Villela Barbosa e Bonifcio
de Andrade era certamente' a velha poesia da
phase clssica, a delicada filha do Renasci-
mento, a dilecta disciplina do humanismo,
porm 'rejuvenescida ao sol d'America. A
quem sabe ler com amor e sentir com abun-
dncia d'alma a poesia em algumas paginas
escolhidas de Cludio, de Peixoto, de Gon-
zaga, de Silva Alvarenga, de Duro, de Ba-
silio da Gama, de Sousa Caldas e s quaes
no fora talvez exaggerado junctar umas
poucas de Natividade Saldanha e do vigrio
Ferreira Barrettto, de Pernambuco, n' esse
tempo e de frei Bastos Barana da Bahia na
mesma epocha, e de Tenreiro Aranha, no
Par, em egual pariodo, a quem, sabe lr
com amor e sentir com abundncia d'alma
a poesia em algumas paginas selectas d'estes
escriptores mostra j todas as intuies ca-
pites que vieram a ser pelos romnticos
transformadas em svstemas com tendncias
39
exclusivistas e dadas por novidades origi-
naes de sua doutrina. A quem s sabe
enxergar na litteratura brasileira e na das
Amricas em geral meras copias das lettras
europas, de forma a no ser cada perodo
novo o desenvolvimento natural do antece-
dente, e sim apenas a cpia servil d'alguma
,phase correlativa do pensamento d'alm
Atlntico, a evoluo de nossa poesia, como
a de qualquer outra manifestao de nossa
energia espiritual, torna-se um enigma inso-
luvel. Mas este systema deprimente ab-
solutamente absurdo e no tem o apoio dos
factos. As quatro ou cinco ou, se quizerem,
seis notas capites do romantismo brasileiro
no so mais do que o desenvolvimento
natural e evolutivo de intuies j existen-
tes no seio do velho lyrismo dos nossos
clssicos. Vejamos essas cinco ou seis
notas tnicas e indiquemos a evoluo. O
nosso romantismo, logo no seu primeiro
momento, mostrou trez coloraes princi-
paes, que se transformaram em trez syste-
mas, em trez escholas: tendncia religiosa
ou crente, tendncia indiana ou america-
nista, tendncia campestre ou costumeira;
a primeira predominou em Magalhes, prin-
cipalmente ns seus Suspiros Poticos e
40
Saudades, nos seus Mvsterios e Cantos
Fnebres; a segunda em Gonalves Dias,
em alguns de seus Cantos e nos Tymbiras;
a terceira em Porto Alegre em varias de
suas Brasiliadas.
Ora, quem desconhecer a origem da pri-
meira na velha intuio religiosa, j to vi-
brante em Euzebio de Mattos,, em Santa
Maria Itaparica, o cautor de Santo Eus-
tachio, e chegada ao apogo em Sousa
Caldas, nas suas poesias originaes, alm da
bella traduco dos Psalmos, e em frei S.
Carlos, no poema Assumpo da Virgem?
Para que desprezar as influencias naturaes
de casa e sonhar apenas com estmulos "ex-
tranhos ?
No s: a intuio inianista, ameri-
cana, indgena, ou como lhe queiram cha-
mar, que teve em Gonalves Dias apenas
sua especial perfeio, vinha, ininterrupta-
mente de Basilio da Gama, de Santa Rita
Duro e dos poetas menores que lhes suc-
cederam at os tempos do primeiro reinado
e da regncia, bastando citar, entre outros
exemplos, a famosa nenia Nictheroy, de
Firmino Rodrigues Silva. A terceira, con-
junctamentei ou na sua dupla face descri -
ptiva das scenas da naturega e descri-
41
ptiva dos costumes populares, nomeada-
mente_os costumes pittorescos dos campo-
nios, dos aldees e das classes plebas, ou
separadamente numa ou noutra destas duas
tendncias, nossa velha conhecida em pa-
ginas de Botelho de Oliveira, de Santa
Maria Itaparica, .de Cludio, de Silva Ava-
renga, de Alvarenga Peixoto, de Gonzaga e
at de S. Carlos e, em sentido muito geral,
do prprio Bento Teixeira Pinto. Ainda
mais: o romantismo, em sua segunda phase,
quando entrou a gemer e a lamuriar, em
uma palavra, quando arvorou a melan-
cholia em deusa predominante da poesia,
no tem grande penetrao histrica, falta-
lhe o senso da intuio dos tempos, se, prin-
cipalmente em Silva Alvarenga, Thomaz
Gonsaga e sobretudo em Cludio, no se
lhe depararem paginas, que poderiam ser
assignadas pelos seus mais lamartinianos ou
byronianos poetas. E ainda mais: a nota
patritica e a social, que vieram, na eschola
condoreira, a fechar a epocha romntica,
andam, em ambas as suas manifestaes,
esparsas em toda a velha poesia clssica,
bastando lembrar, de Silva Alvarenga, o
mestio genial, as odes: a Affonso de Al-
buquerque, A' Mocidade Portuguesa e o
42
poemeto As Artes, e d'outro mestio de
grande talento os hymnos que dedicou a
cada um dos heres da guerra hollandeza, o
pernambucano Natividade Saldanha.
Desfarte comprehende-se o andar normal
dos factos e a poesia, bem como a arte e a
litteratura em geral, perde aquelle caracter
forasteiro e advnticio, para assumir as fei-
es de uma funco que se desenvolve por
seleco natural, por hereditariedade e ada-
ptao a novos meios. No isto desco-
nhecer a aco da influencia europa, nem
amesquinhar o valor do romantismo e dos
systemas que o substituram.
Bem ao coutrario. A vida espiritual no
Brasil comeou por importao do Velho
Mundo; mas esta implantao no se fez
apenas a datar do romantismo. Tinha-se
feito trez sculos antes, de frma que, ao
iniciar-se a romntica, j encontrou entre
ns todos aquelles germens de que ella pr-
pria teria de brotar nas terras transatlnti-
cas, e, assim veio a ser, antes e acima de
tudo, um broto espontneo de antigos tron-
cos, alm de ser tambm estimulada pelas
influencias europas.
Por outros termos: nossa terra , ha trez
sculos a esta parte, uma participe da cultura
43
occidental, onde', portanto, esto depositadas
todas as foras e energias que a constituem.
A evoluo vai-se, pois, fazendo aqui e alm
com os mesmos elementos e sob idnticos
princpios. Pde a Europa ir adeante em
certos assumptos; porm n' outros no de
extranhar que lhe tomem o passo a America
ou a Austrlia, ou at a frica e a prpria
sia, quando tambm estas acabaram por se
constituir em naes de typo europo. E o
destino do mundo e elle se ha de cumprir.
TT
Mas apreciemos a evoluo do romantis-
mo, indicando as transformaes da poesia. (
x
)
No este o logar mais prprio para
ainda uma vez discutir a indole e a natureza
da famosa evoluo litteraria e artstica, que
(1) Sobre o significado da revoluo romntica e analyse das di-
versas theorias que tm apparecido a esse respeito, veja-se His-
toria da Litteratura Brasileira, livro IV, capitulo I, pag. 683 a
691. Sobre as relaes do nosso romantismo com a litteratura
colonial, vejam-se .\ovos Estudos de Litteratura Contempornea,
pag. 300.
44
sob o nome de romantismo, eucheu quasi
toda a vida espiritual do sculo XI X.
Indicadas as phases principaes que atra-
vessou em nosso paiz, como se l nas linhas
acima e mais indevidualdamente no quadro
synoptico deixado paginas atraz, lembrados
o como e o porque se prendem todas as
suas escholas a germens existentes na litte-
ratura colonial, resta-nos caracterizar os
seus principaes representantes. Taes ca-
ractersticas no podem deixar de ser traos
rapidssimos, as mais das vezes simples no-
taes, apenas esboadas.
DOMINGOS JOS GONALVES DE MAGA-
LHES (1811 1882), pelo que diz respeito
frma, ao estylo, s roupagens da poesia,
por certo nada adeanto.u aos escriptores das
ultimas dcadas do sculo passado. Ha in-
questionavelmente mais mimos de frma,
mais bellezas naturaes e espontneas nos
versos de Gonzaga e Cludio e de Silva
Alvarenga do que nos do auctor dos Sus-
piros Poticos.
A esthetica de Magalhes, leva, porm,
vantagem aos seus predecessores na varie-
dade, grandeza e solennidade dos assum-
ptos. V-se bem que o poeta, tendo feito
viagem ao velho mundo e estudado a litte-
45 --
ratura europa, deixou-se impressionar por
grandes factos e grandes scenas do antigo
mundo. Sem espirito reflexivo procurou
conscientemente agir na reforma da poesia,
na creao do theatro e no estudo da phi-
loscphia entre ns.
Tal o intuito dos Suspiros Poticos, de
Antnio Jos ou o poeta e a Inquisio e
dos Factos do Espirito Humano.
Se a poesia em Magalhes no possue a
graciosidade, a delicadeza de tons, os mil
segredos acariciautes da frma; se no nos
d em notas inolvidaveis nem a paizagem>
nem o viver intimo das almas, no importa
isto negar-lhe certo vigor nos bons momen-
/tos. Eis como a musa n'elle falia de Na-
poleo, perdido na sua ultima batalha:
Sim, aqui estava o gnio das victorias,
Medindo o campo com seus olhos d'aguia !
O infernal retintim do embate d'armas,
Os troves dos canhes que ribombavam,
O sibillo das balas que gemiam,
O horror, a confuso, gritos, suspiros,
Eram como uma orchestra a seus ouvidos!
Nada o turbava ! Abbadas de balas,
Pelo inimigo aos centos disparadas,
A seus ps se curvavam respeitosas,
Quaes submissos lees; e, nem ousando
Tocal-o, ao seu ginete os ps lambiam..
46 - -
A lyrica, em um poeta como o auctor dos
Suspiros, de Urania e dos Cantos Fne-
bres, tem sempre certa envergadura philo-
sophica, expresso de um expirito pensador.
O amor n' uma alma dessas uma espcie
de emanao das foras eternas que regem
o universo. A sua amada desce-lhe do seio
do infinito:
Alto saber proclama a Natureza,
Proclama alto poder
D'aquella Eterna Fonte de belleza
Que brilha em todo ser.
E quanto a vasta immensidade encerra
O louva sem cessar ;
O dia, a noite, o co, o mar, a terra
O ho de sempre amar.
E por tudo que eu via o adorava,
Que EUe tudo criou ;
Mas, por mais um prodigio eu esperava :
E um Anjo a' mim baixou.
Um Anjo pareceu-me que descia
Da clica manso,
N
Tanto seu divo aspecto me infundia
Amor e devoo.
Nunca to pulcKra, em todo o jrmamento,
Estrella reluzio;
Nunca to bella, sobre o salso argento,
Aurora resurgio !
47
Nunca em viso potica arroubado
Delicia igual senti,
Como nesse momento afortunado,
Em que seu rosto vi.
Absorto vi seu rosto peregrino,
E o seu rosto era o teu !
Sim, era o teu ! E que outro mais divino
Me mostraria o cu ?...
V-se, em todo caso, que as boas tradi-
es do sculo anterior foram conservadas
em Magalhes uos felizes momentos.
Em MANOEL DE ARAJO PORTO ALE GRE
(18061879) o mesmo se deu, isto , teve
pulso bastante para no desmentir a lei da
evoluo.
O lyrismo n'elle, se no um progresso
sobre o da eschola mineira, no mostra si-
gnaes de retrocesso; se no ostenta mui
pronunciados mimos, delicadezas, douras
de frma, em compensao est cheio de
grandes quadros, bellas pinturas da natu-
reza que do claros signaes de sua alma
enrgica e vigorosa.
Nas Brasilianas no existem amostras de
poesia pessoal, intima, psychologica; tudo
so scenas do mundo exterior ou da his-
toria da humanidade. Se Magalhes pde
- - 48
ser considerado uma espcie de precursor
entre ns da poesia scientifica, Porto-
Alegre um antecipador da poesia hist-
rica, a poesia que se praz na apreciao dos
vrios cyclos das luctas da civilizao.
Neste sentido caracterstico o poemeto
escripto em 1835, o Canto sobre as ruinas
de Cumas, denominado A Vos da natu-
resa. alguma cousa que lembra os pe-
quenos poemas da Lenda dos Sculos de
V. Hugo, mas muito anterior. A musa
falia pela voz do Horisonte, do Circeum,
de Gaeta, do Oceano, de Tubero, de uma
Columna Dorica, de um Rouxinol, de
Pontia, de PandataHa, do Amphitheatro,
de Pithecusa, de Rochyta, de Caprea, do
Visuvio, etc. como o entoar de um coro
immenso em que cantam as dores e as sau-
dades de todos. Diz uma das vo/ es:
Toca a hora : silencio ! A hora sa
Em que o globo inflammado,
Que o dia terra mostra,
Do ethereo oceano ao fundo rola,
E das celestes vagas j levanta
As gotas luminosas que borrifam
O vasto Armamento.
Salve, estrellante noite,
Que do Bero da aurora resurgindo
De um manto adamantino te apavonas
49
Nas ceruleas campinas !
Vagai na immensidade, ardentes cirios,
Que s a immensidade ora me encanta,
Mesquinha mente a terra me parece.
Mysticos sonhos, clica harmonia,
Adejai vossas azas,
Resoai no infinito ;
Sombras de amor, passai, passai ligeiras,
Danai e repeti em muda lingua
O nome que idolatro.
A poesia em Porto Alegre tem duas notas
capites: uma lhe era ministrada por certa
intuio pantheista que transuda de toda
essa bella symphonia A Vos da Natureza,
e tambm se evola de muitas das melho-
res paginas do Colombo ; a outra era ori-
ginada de scenas da paizagem brasileira.
Deste ultimo cunho so a Destruio das
Florestas, o Corcovado, o Harpoador. No
seu brasileirismo entrou mais, muito mais
o solo, a terra, do que o homem. Este ra-
ramente appareceu, e o poeta, por isto,
ainda um genuino continuador da poesia
clssica do sculo antecedente. Mas, em
sentido geral, elle o precursor, si no o
fundador, da eschola sertanista e campesina
de nossa poesia, porque delia teve o pre- _
sentimento, sem que a levasse plenamente
a effeito.
4
5(1
Tinha de caber a ANTNI O GONALVES
DI AS (1823 1864) a fuuco de preencher
as lacunas dos dous mestres anteriores do
romantismo. Neste extraordinrio mestio
todas as cordas da lyra vibraram uuisonas.
Fundo e frma, a natureza e o homem, vida
civilizada e vid^ selvagem, scenas das cida-
des e scenas da roa, tudo, tudo se apurou
e refulgio, passando pela voz desse vate in-
sigue.
Tem-se dicto que elle foi pura e simples-
mente o cantor dos selvagens, o poeta dos
ndios. E certo que o que se veio a cha-
mar o indianismo fora, em tempo, o mo-
mento capital de seu poetar, ou, pelo menos,
foi por essa face que elle mais impressionou
os contemporneos. Mas a verdade que
sua palleta era muito mais variada em tin-
ctas; o simples indianismo era por si s
incapaz de explicar um caracter to com-
plexo, como foi o poeta d'O Gigante de
Pedra, o dramatista de Leonor de Men-
dona. Este sim, fez avanar e muito a
herana recebida dos proto-romanticos da es-
chola mineira. Apreciemos a poesia nelle em
rpida silhouete.
O autor de Marab, da Me d'agna, do
Ileito de folhas verdes, do Gigante de
51
Pedra, do Y Juc-Pirama, dos Tymbiras,
que tambm o auctor das Sextilhas de
Frei Anto, isto , o auctor do que existe
de mais nacional e do que ha de mais por-
tuguez em nossa litteratura, j o temos
dicto mais de uma vez, um dos mais n-
tidos exemplares do povo, do genuno povo
brasileiro. E o typo do mestio physico
e moral, encarnao completa do caracter
ptrio. Gonalves Dias era filho de por-
tuguez e mameluca, o que vale dizer que
descendia das trez raas que constituram a
populao nacional e representava-lhes as
principaes tendncias. Aos africanos deveu
aquella expansibilidade de que era dotado,
aquella ponta de alegria que no o deixou
jamais e que especialmente se nota em suas
cartas. Aos ndios, as melancholias sbitas,
a resignao, a passividade com que sup-
portava os factos e acontecimentos, deixan-
do-se ir ao sabor delles. Aos portuguezes, o
bom senso, a nitidez e clareza das idas, a
religiosidade que nunca o abandonou, a
energia da vontade, as precaues phanta-
sistas, um certo idealismo indefinido, im-
palpavel. Junctae a tudo isto fortes im-
presses de luz e de cores, de vida e de
movimento, fornecidas pela natureza tropi-
cal, que se expande pela regio em fora que
vai de Caxias a S. Luiz; junctae ainda as
scenas martimas da primeira viagem a Por-
tugal; no esqueais os quadros da natu-
reza e da vida provinciana no velho reino,
e nem to pouco os panoramas indescripti-
veis do Rio de Janeiro e regio circumvi-
zinha; trazei a esse concurso de factos e
circumstancias as leituras dos -poetas anti-
gos e modernos, o estudo das chronicas
coloniaes, e tereis os elementos predominan-
tes e constitutivos do talento artistico desse
valente e mimoso lyrista.
Os chefes do romantismo portuguez, nos
ltimos annos (18431845) passados pelo
escriptor maranhense em Coimbra, j tinham
publicado suas obras principaes, e a evolu-
o da poesia entre os epgonos, havia at-
tingido a phase do sentimeutalismo affe-
ctadp e esterilizante.
O nosso poeta, j de si bastante melau-
cholico, aprendeu aquella maneira e deixou-
se eivar da molstia geral O seutimenta-
lismo , desfarte, uma das notas mais inten-
sas do seu trovar; mas preciso ser surdo
para no ouvir que um intenso naturalismo
americano, um certo mysticismo religioso, o
calor e a effuso lyricas junctam s notas
53
montonas daquelle sentimentalismo as vo-
latas e fanfarras d'uma poesia variada, am-
pla, serena, meiga, embriagadora. A volta
do poeta para o Brasil, sua nova estada no
Maranho, sua subsequente partida para o
Rio de Janeiro entram como factores na
formao de seu talento.
Sob a aco de to variados estmulos,
claro que o poeta no podia ficar no circulo
estreito do melancholismo e nem to pouco
em o mbito apertado do indianismo. A
verdade que esse illustre lyrico, sem pla-
nos preconcebidos, espontaneamente, sem
impulsos doutrinrios, s pela fora nativa
de sua intelligencia, seleccionada pelas cir-
cumstancias, deixou-se influenciar pela vida
dos selvagens, como em Y Juc Pirama e
dez outras composies; pelas tradies por-
tuguezas, como nas Sextilhas de Frei
Anto e em Leonor de Mendona; pelos
soffrimentos dos escravos pretos, como na
Escrava e na Meditao; pelos sentimen-
tos e phantasias dos mestios, como em
Marab. E todas estas notas no exgottam
ainda a complexidade do sentir do poeta.
mister junctar-lhes a poesia pessoal
e subjectiva e a poesia exterior e paiza-
gista.
v
54
Em summa: a musa sagrou neste homem
um poeta e poeta lyrico. Deu-lhe a vibra-
tilidade das sensaes, a ideao prompta e
mobil, a linguagem fluida, sonora e cadente,
o espirito sonhador e contemplativo, a ima-
ginao sempre prompta a desferir o vo.
No era da raa dos que confundem a
poesia com a eloqncia, a musica d'alma
com os sons de um instrumento. Tal o
poeta; e no poeta o lyrista distinguia-se
pela justeza do sentimento, a doura das
imagens, a delicadeza das tinctas, a facili-
dade das idas, a espontaneidade da frma,
o vo sereno de,todas as foras espirituaes.
E por isso que muitas de suas produc-
es so bellissimas poesias e das mais en-
cantadoras da lingua portugueza.
Eis aqui alguma cousa que pde bem
claro mostrar a distancia percorrida pela ly-
rica nacional em trez sculos; comparem-se
estas estrophes cantantes, aladas, levssimas,
esta musica de palavras que deslisam fulgi-
das e macias, com as oitavas de Bento
Teixeira, ou de Santa Maria Itaparica, ou de
Santa Rita Duro; comparem-n'as com as
estrophes de Gregorio de Mattos, ou de
Botelho de Oliveira, e at de Cludio, de
Gonzaga e de Alvarenga Peixoto:
55
Eu vivo ssinha; ningum me procura.
Acaso feitura
No sou de Tup ?
Se algum d'entre os homens de mim no se esconde
Tu s, me responde,
Tu s, Marab !
Meus olhos so garos, so cor das saphiras,
Teem luz das estrellas, teem meigo brilhar ;
Imitam as nuvens de um cu anilado,
As cores imitam das vagas do mar.
Se algum dos guerreiros no foge a meus passos :
Teus olhos so garos,
Responde anojado: mas s Marab :
Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,
t
Uns olhos fulgentes.
Bem pretos, retintos, no cr de anaj!
E' alvo o meu rosto, da alvura dos lyrios,
Da cr das aras batidas do mar;
As aves mais brancas, as conchas mais puras
No teem mais alvura, no tem mais brilhar.
Se ainda me escuta meus agros delrios :
E's alva de lyrios
Sorrindo responde : mas s Marab:
Quero antes um rosto de jambo^ corado,
Um rosto crestado,
Do sol do deserto, no flor de caj!
56
Meu, collo de neve se curva engraado
Como hastea pendente de cactos em flor ;
Mimosa, indolente, resvalo no prado,
Como um soluado suspiro de amor!...
E intil proseguir. Certo est evidente:
com este poeta o romantismo j est de
posse de suas principaes armas. A evolu-
o vai continuar, mostrando outras faces
dos factos e das idas: porm raro exceder
a poesia dos Cantos, como frma e como
fundo. Depois do triumvirato inicial da
phase romntica, podemos passar em silen-
cio a aco dos epgonos, que se acercaram
delles: Teixeira e Sousa, Norberto Silva,
Dutra e Mello, Francisco Octaviano, Joo
Cardoso de Meneses e Sousa, ^Joaquim
Jos Teixeira, Manoel Pessoa da Silva,
Torres Bandeira, padre Correia de Al-
meida, Felix Martins, Jos Maria Velho
da Silva e outros. Nada influram na evo-
luo da poesia entre ns.
Seria possivel abrir uma excepo para
Francisco Octaviano, se a poltica no o
tivesse feito abandonar de todo a arte, con-
finando-o no terreno safaro do jornalismo
partidrio e da eloqncia parlamentar. Em
todo caso, justo dar-lhe um distincto
logar na poesia nacional, por algumas pro-
57
duces originaes e principalmente por suas
bellas traduces de
v
poetas inglezes e alle-
mes. Meno distincta mereceria tambm
Dutra e Mello.
A elle e a outros de seus contempor-
neos j fizemos justia na Historia da
Litteratura Brasileira. ndole desta me-
mria obriga-nos a insistir apenas nos che-
fes de fila, os abridores de caminho, guias
de grupos.
T7"I
Entre o triumvirato da primeira phase do
romantismo e o triumvirato mussetista e
byroniano de sua segunda phase, temos de
abrir espao para quatro poetas dos mais
notveis do Brazil, que no podem ser cha-
mados meros discpulos dos primeiros nem
dos segundos. So: Moniz Barreto, Maciel
Monteiro, Jos Maria do Amaral e Laurindo
Rabello.
Os dous primeiros eram mais velhos que
Porto Alegre, o mais antigo da trindade
inicial do omantismo; o terceiro era da
edade de Magalhes, e o quarto era ante-
58 -
rior um pouco a Gonalves Dias, o mais
moo do grupo. No , porm, por este mo-
tivo que so collocados parte; que seu
trovar foi deveras divergente. FRANCISCO
MONIZ BARRETO (18041868) foi educado
na velha poesia clssica ao gosto e geito
de muitos outros poetas do comeo do s-
culo XIX. No foi propriamente um lyrico;
no tinha nem imaginao nem sentimento
para isto. O que lhe garante um logar na
historia litteraria o seu raro e verdadeira-
mente phenomenal talento de repentista. Eis
uma amostra:
Ver. . . e do que se v logo abrazado
Sentir o corao de um fogo ardente,
De prazer um suspiro de repente
Exhalar, e aps elle um ai magoado;
Aquillo que no foi inda logrado,
Nem o ser talvez, lograr na mente;
Do rosto a cr mudar continuamente,
Ser feliz e ser logo desgraado ;
Desejar tanto mais quo mais se prive,
Calmar o ardor que pelas veias corre,
J querer, j buscar que elle se active ;
O que isto , a todos ns occorre :
Isto amor, e deste amor se vive ;
Isto amor, e deste amor se morre,. ,
59
Bellissimo soneto e admirvel como re-
pente. D'estes o poeta improvisou cente-
nares.
A poesia em ANTNI O PE RE GRI NO MA-
CIEL MONTEIRO (18041868) foi particular-
mente notvel pelo brilho das imagens, o
colorido da phrase. O poeta habitou Pariz
de 1822 a 1829, concluindo alli os estudos
preparatrios e formando-se em medicina.
Assistio, portanto, acol s grandes luctas
do romantismo, sob a direco de Victor
Hugo, Lamartine, Sainte Beuve, -Vigny e
consocios. Em 1830 j se achava de volta
no Brasil, sendo deputado e ministro no pe-
rodo regencial. Um homem d'estes, mais
velho que Magalhes, conhecedor da vida
parisiense treze annos antes delle, espirito
muito mais vivace, testemunha directa das
mutaes litterarias operadas em Frana du-
rante o terceiro decennio deste sculo, no
tinha a esperar que o poeta fluminense, es-
pirito muito mais tardo, clssico emperrado
ainda em 1832 nas Poesias Avulsas, fosse
Europa e nos enviasse de l os Suspiros
Poticos em 1836, para comprehender e
seguir a nova eschola. Cremos que os pri-
meiros versos romnticos escriptos por bra-
sileiros foram de Maciel Monteiro.
6(1
Cada citao, rpida que seja, que vamos
fazendo, pura e simplesmente para mostrar
as frmas diversas que a poesia vai assu-
mindo e assim sorprehender em flagrante os
passos da evoluo. Em Maciel Monteiro
a arte da poesia reveste uma lucidez, uma
transparncia de roupagens, como raras vezes
tem acontecido na lingua portugueza. o
mais antigo poeta hugoano do ptrio idioma
nos dous hemispherios. Eis uma prova,
d'entre muitas:
Gnio! gnio! inda mais: supremo esforo
Das mos de Deus no ardor do enthusiasmo !
E's anjo ou s mulher, tu que nos roubas
Do culto o amor, o extasis do pasmo ?
Na pujana do vo a guia soberba
Tenta o co devassar, exhausta pra :
Nas azas do lyrismo, tu de Gehva
Ao templo chegas e te prostras n'ara.
Ahi, c'roada de fulgente aureola,
No concerto dos anjos te mixturas;
E, se cantas da terra, so teus hymnos
Harmonias que ouviste nas alturas.
Ahi aspiras o lustrai perfume
Que das urnas sagradas se evapora ;
[vis porque tua voz parece ungida
Dos olores da flor que orvalha a aurora.
61
Ahi do corao na harpa animada
As cordas descobristc de oiro extreme,
Que se vibram de amor, ateiam n'alma
Paixo que goza e soffre, canta e geme.
Ahi o idioma typico aprendeste
Que entendem todos e que. tudo exprime :
E' assim teu olhar o verbo vivo,
E' teu gesto a linguagem mais sublime.
Mysterio augusto que do Eterno ao fiat
Surgiste qual viso que attrahe, fascina ;
. Si da mulher teu corpo veste a frma,
Arde no gnio teu chamma divina...
Ha n'este estylo certo arroubamento, que
denuncia um' arte senhora de si mesma,
conscia de seus recursos.
D'indole, porm, bem diversa era o doce
poetar de Jos Maria do Amaral (1811-1887).
Se fossemos a filiar o espirito deste poeta
no espirito de algum, este havia de ser o
do velho inconfidente Cludio da Costa.
Ha nestes dous homens alguns pontos
de coutacto na vida, e pelo lado mental si-
milhauas profundas. Em ambos o lyrismo
uma revivescencia de uma qualidade eth-
nica; em ambos o lyrismo tem a frma e o
sabor do velho lyrismo portuguez. Amaral
no exerceu uma influencia profunda na
poesia brasileira, porque -passando os me-
62
lhores annos de sua vida fora do paiz, muito
poucas publicaes litterarias fez entre ns.
Nenhum dos poetas nacionaes de seu tempo
teve em mais alto gro aquella doura,
aquella delicadeza de impresses, nem aquelle
vago do pensamento e aquella embriaguez
do desconhecido, extravasados numa lingua-
gem ondulante e caprichosa, ningum mais
do que elle teve aqui esse caracterstico
romntico.
Tinha a faculdade de ouvir a monodia' de
extranhos mundos e sentir o prazer das so-
lides interminas do mar:
Aos mares outra vez, vamos aos mares,
Nas vagas embalar os sonhos d'alma ;
No inquieto balouar d'inquietas ondas
Vamos da vida sacudir os nojos.
Solta o velame, nauta, aos sopros d'alva,
Acima o ferro, ao horizonte a proa,
Leva-me longe a errar por essas guas,
Abre-me a vastido que as brisas correm;
Quero entornar minh'alma em tanto espao,
Quero em tanta grandeza engrandecl-a.
Nem ptria o bardo tem nem tem amores ;
Canta como alcio, como elle va
De vaga em vaga s bordas do infinito,
De brisa em brisa esfolha a vida em hymnos,
A' terra um s adeus ; partamos, nauta,
Aos mares outra vez, vamos acs mares,
Nas vagas embalar os sonhos d'alma.
- - (>3 ---
So versos estes do tempo da mocidade.
Ento o poeta no sentia ainda o pungir de
acerbas dores moraes, que o assediaram na
velhice e exhalaram-se em cerca de oito-
centos sonetos dos mais sentidos que j
uma vez sairam de penna d'homem. (*)
Nos quatro divergentes de que imos tra-
ctando, a musa da alegria, que se praz em
festas e improvisos, encarnou-se em Moniz
Barreto; a musa voluptuosa que fareja a
belleza das mulheres irmanou-se com a alma
de Maciel Monteiro; a musa triste e me-
lancholica dos desconsolados deu a mo a
Jos Maria do Amaral.
Quanto a LARI NDO RABELLO (1820
1864), se a musa brejeira dos espritos ga-
lhofeiros visitava-o por vezes, no menos
verdade ter sido sua companheira mais
constante a magoada inspiradora do auctor
de Veroni.
E por isso Larindo e Jos Maria so os
dous maiores elegacos do Brasil.
Larindo Rabello se distingue pela com-
plexidade de seu temperamento. Triste,
profundamente melancholico, j por ndole
(>) Vide Historia da litteratura Brasileira I, pag. Wl\ e seg.
04 - -
e j pelas- condies de sua existncia, mas
robusto, forte, sadio, dotado, alm do mais
de uma extraordinria espontaneidade de
pensar e produzir, no se limitou em sua
vida a exhalar profundas e sinceras magoas;
a satyra, a ironia, a chalaa foram muitas
vezes a expresso natural de seu sentir.
Tinha elasticidade bastante para a galhofa,
a pilhria, o improviso, a pornographia,
mas no fundo l estava a nota plangente
dos desconsolados.
Eis um trecho da deprecao, bem se po-
der dizer da prece, que dirigio sua irm,
depois de morta.
Que tens, mimosa saudade ?
Assim branca quem te fez ?
Quem te poz to desmaiada,
Minha flor ? que pallidez !
Ah ! talvez num peito vario
Emblema foste de amor :
O peito mudou de affecto
E tu mudaste de cr . . .
Quem sabe. . . (Oh! meu Deus, no seja,
No seja essa ida van!)
Si em ti no foi transformada
A alma de minha irm?
6 5
Minh'alma toda saudades,
De saudades morrerei. . .
Disse-me quando a minh'alma
Em saudades lhe deixei.
E agora esta saudade
To triste e pallida, assim
Como a saudade que geme
Por ella dentro de mim ;
A namorar-me os sentidos,
A fascinar-me a razo. . .
Julgo que sinto a voz d'ella
Fallar-me no corao!
Exulta, minh'alma, exulta !
Aos meus lbios, flor loua. . .
No meu peito. . . Toma um beijo,
Outro beijo, minha irm !
' Outro beijo, que estes beijos
No t'os prohibe o pudor :
Sou teu irmo, no te mancham
Os beijos do meu amor. . .
Desnecessrio citar mais. Ousamos con-
vidar o leitor a examinar a caracterstica,
por ns consagrada a este grande lyrico em
5
nossa Historia da Litteratura, uma das
que alli foram feitas com mais amor.
T7-II
Entretanto a evoluo prbseguia. Depois
de haver tomado a colorao religiosa e
emanuelica, a indiana e paizagista, a poesia
romntica tinha de, por assim dizer, syste-
matizar o desgosto da vida, dr do
mundo, a Weltschmers dos espritos a
Byron, Vigny, Musset e outros illustres c-
ripheus do pessimismo. Jos Maria e La-
rindo so simplesmente elegacos; Alvares
de Azevedo e seus companheiros Aureliano
Lessa e Bernardo Guimares (estes dous
muito menos) foram, por vezes, verdadeiros
desesperados. ,
Em MANOEL ANTNIO ALVARES DE AZE -
VEDO (18311852), que se deve considerar,
depois de Gonalves Dias e Jos de Alen-
car, a mais alta figura do romantismo bra-
sileiro, a poesia complicou-se de problemas
novos. O moo auctor o typo represei!-
tativo do homem moderno, do filho do s-
culo no Brasil.
Na serie da evoluo litferaria elle no
o primeiro, mas o mais accentuado exem-
plo, verdadeiramente illustre, de um produ-
cto puramente local, de um filho de acade-
mia brasileira. Sabemos que alguns poetas,
oradores sagrados, msicos e pinctores dos
tempos coloniaes no sahiram nunca do
Brasil; aqui fizeram-se o que foram; mas,
alm de terem sido a excepo, accresce que
sua intuio em geral permaneceu quasi pu-
ramente portugueza -nos tons fundamentaes.
Sabemos ainda que, j no sculo a findar,
alguns bons talentos se formaram, antes de
Azevedo, que se acharam nas mesmas con-
dies de seus predecessores coloniaes, e
d'entre os nomes j apreciados linhas acima
o caso de Moniz Barreto, de Dutra e Mello,
de Francisco Octaviano, de Larindo Ra-
bello e vrios outros; porm alm de no
constiturem a regra geral, cumpre confes-
sar que todos esses no chegaram inteira-
mente a libertar-se da influencia da antiga
me-patria.
Porto-Alegre, Magalhes, Maciel Monteiro,
Jos Maria do Amaral e Gonalves Dias
viajaram muito e completaram sua educao
68
l fora. A creao, como j uma vez pon-
dermos, das academias brasileiras foi de
um alcance intellectual extraordinrio; logo
na esphera poltica e administrativa come-
mos a ter homens, como Eusebio, Nabuco,
Zacarias, Cotegipe, Rio Branco e cincoenta
outros, filhos de faculdades nacionaes, e
alguns delles no puzeram jamais os ps na
.Europa, ou os puzeram rapidamente, e
foram sempre os melhores. O mesmo se
foi dando na litteratura: Penna, Larindo,
Octaviano, Macedo, Azevedo, Lessa, Ber-
nardo Guimares, Alencar, Agrrio, Jun-
queira Freire, Varella, Teixeira de Mello,
Machado de Assis, Tobias Barretto, Castro
Alves, Luiz Delfino so filhos das eschqlas
brasileiras e com elles tudo o que houve
de mais illustre em nossa vida espiritual no
sculo que finda.
Penna s foi ao velho mundo colher a
morte e Alencar apressal-a, j o dissemos
algures.
Com Alvares de Azevedo, o trabalho co-
meado pelos primeiros romnticos para ar-
rancar-nos da influencia portugueza, progre-
diu consideravelmente. O moo poeta, edu-
cado pelos allemes Planitz, a principio, e,
mais tarde Tautphoeus no Collegio de
- 69
Pedro II, costumou-se a olhar para o grande
mundo das lettras e da poesia e a lr os
grandes mestres gregos, latinos, inglezes,
allemes, hespanhes e francezes.
O poeta da Lyra dos vinte annos foi
um talento possante numa organizao de-
masiado franzina. No podia viver muito,
era doentio, e era melancholico. Isto pode-
se d'elle dizer, porque a verdade mani-
festada em \sua vida e em seus escriptos.
Essa natureza notavelmente intelligente e
idealista, n' um organismo mrbido e dese-
quilibrado, tornou-se singularmente agitada
pelo estudo e pela leitura dos sonhadores
do tempo. No foi anjo nem demnio, qual
a teem julgado dous partidos oppos,tos que
mal o comprehenderam. Tomou por certo,
parte n' algumas d'esss brincadeiras prprias
de estudantes, essa poesia practica da vida
que bem se desfructa na quadra da moci-
dade no perodo acadmico. No teve
porm, nem ensejo nem tempo de travar
algum amor serio, alguma paixo sincera e
profunda.
Precoce em tudo, extranhava que esse
affecto no lhe tivesse ainda chegado.
D'ahi o dualismo que se nota nas suas
composies lyricas de gnero amoroso.
Ora um lyrismo idyllico, todo confiante
e puramente ideal; ora a amargura de
quem no encontrou ainda um corao que
o comprehendesse, ou a pinctura d' alguma
scena lasciva.
Outro dualismo d-se nas opinies, cren-
as e doutrinas do poeta. Idealista e crente
por ndole, educado n' um regimen religioso,
o sopro de sculo abalou-o em metade.
Essa revoluo no se fez por intermdio
da sciencia e de idas positivas; fez-se por
meio da poesia e da litteratura romntica.
D'ahi, esse desequilbrio, esse cambalear,
essas duas facetas do gnio e das inspira-
es do moo escriptor. Posio alis com-
mum a um grande numero de espritos em
nosso sculo, cheio de to rpidas renova-
es e mutaes intellectuaes.
Vida quasi toda subjectiva, agitada pela
desordenada leitura, no teve, repetimos, en-
sejo de amar, nem de gozar farta. D'ahi,
o desanimo, a excitao, a impotncia da
vontade.
Sua melancholia, ingenita e desenvolvida
pela vacillao das idas no proveio de in-
justias soffridas, de luctas sociaes ou de
problemas scientificos em desharmonia com
seus sentimentos. No teve um canto de
71
alegria pelo amor satisfeito e retribudo,
nem de desespero pelo amor trahido. Teve
sempre queixas de no haver podido encon-
trar mulheres puras e somente messalinas...
Foi sincero n'isto, tragicamente sincero.
No foi um viciado, um libertino que fi-
zesse a poesia de seus vcios, nem to pouco
um'alma cndida e virgem que se mostrasse
viciada por systema.
Foi um imaginoso, um triste, um lyrico
que enfraqueceu as energias da vontade e
os fortes impulsos da vida no estudo e en-
fermou o espirito na leitura tumultuaria
dos romnticos a Byron, Shelley, Heine,
Musset e Sand.
Quanto ao valor de sua obra, deve se
dizer que n'elle temos um poeta lyrico e o
esboo d'um conteur, d'um dramatista e
d'um critico; o poeta, de que somente ora
tratamos, superior a todas as mais mani-
festaes de seu talento.
O lyrismo do joven artista no o sim-
ples lyrismo melancholico a Lmartine.
Ha n'elle grande variedade, introduzida
por estmulos objectivistas, por scenas de
costumes, preoccupaes polticas, por pas-
sagens humorsticas.
E' um engano suppor ter sido elle um
lacrymoso perenne; ha em sua obra pagi-
nas, e das melhores, de um completo ob-
jectivismo: Pedro Ivo, Theresa, Cantiga
do sertanejo, Na minha terra, Crepsculo
no mar, Crepsculo nas montanhas e
muitas outras o provam. Em Gloria mo-
ribunda, Cadver de poeta, Sombra de
D. Juan, Bohemios, Poemas do frade, e
Conde Lopoha muito d'esse satanismos
d'esse desprazer terrvel da vida em que
veio a dar certa ramificao do roman-
tismo.
Ha apenas mais talento do que em Bau-
delaire; porque, de mixtura com os desati-
nos , e extravagncias do gnero, em Aze-
vedo apparecem manifestaes de so e opu-
lento lyrismo, que to eloqentes no pos-
sua o famoso poeta das Flores do Mal,
livro posterior, alis, morte do nosso com-
patriota.
O lyrismo n' este amvel sonhador da
Lyra dos vinte annos pde soffrer uma
diviso capital: idealismo e humorismo.
N' um e n' outro existem notas pessoaes e
geraes. Leiam-se Anima Mea, Harmonia,
Tarde de vero, Saudades, Virgem morta
Spleen e charutos, Meu desejo, Lagrimas
73
da vida, Malva maan, Namoro a cavallo
e outras.
Julgamol-o mais aprecivel na sua frma
seria e idealista, posto reconheamos ser o
nosso poeta o primeiro a usar em lingua,
portugueza do humour, essa bella manifes-
tao da alma moderna.
O homour ingleza e allem ns no
o tnhamos jamais cultivado nem no Brasil
nem em Portugal, e convm no o confun-
dir com a chalaa, a velha pilhria lusitana;
esta tivemol-a sempre, e sempre a possuio
o reino. Para concluir com este grandssimo
poeta: uma qualidade de seu lyrismo, e que
o distingue do d'aquelles que o precederam,
certa frescura das imagens.
Em Magalhes, Porto Alegre, Moniz Bar-
reto, e at em Gonalves Dias, Maciel Mon-
teiro, Larindo Rabello e Jos Maria do
Amaral ha um certo tour na frma que
lembra o velho classismo.
No poeta da Lyra dos vinte annos a
cousa outra e a impresso bem diversa;
o tom novo; v-se nitidamente que se
est a tractar com um genuno enfant du
sicle. E como mister sentir aqui mesmo
a meiguice d'esse estylo, quando elle traduz
os bons sentimentos do poeta, no nos fur-
tamos ao prazer de, ao menos, ler as quatro
primeiras estrophes da bellissima poesia di-
rigida pelo mallogrado moo a sua me:
E's t, alma divina, essa Madona,
Que nos embala na manh da vida,
Que ao amor indolente se abandona
E beija uma criana adormecida.
No leito solitrio s t quem vela,
Tremulo o corao que a dr anceia,
Nos ais do soffrimento inda mais bella,
Pranteando sobre um'alma que pranteia.
E, si pallida sonhas na ventura
O affecto virginal, da gloria o brilho,
Dos sonhos no luar, a mente pura
S delira ambies pelo teu filho.
Pensa em mim, como em ti saudoso penso,
Quando a lua no mar se vae doirando;
Pensamento de me como o incenso
Que os anjos do Senhor beijam passando. . .
Como isto acariciante e doce! Como j
sabia neste desventurado jovem a poesia
vasar numa linguagem de oiro as mais
fundas emoes d' alma!
Mas Alvares de Azevedo no estava s.
Uma pleiade notabilissima de moos arden-
" 75
tes pelo saber e pela gloria o cercava. O
perodo que ns chamamos a primeira es-
chola de S. Paulo (18451855) mereceria
um estudo especial em que, derredor o moo
poeta, __ fossem estudados os typos de Octa-
viano, Jos de Alencar Lessa, Bernardo Gui-
mares, Jos Bonifcio, Silveira de Sousa,
Felix da Cunha, Ferreira Vianna, Duarte de
Azevedo, Paulo do Valle, Lopes de Arajo
Ferreira Torres,- e muitos e muitos outros.
Ns aqui temos apenas de notar em traos
rapidssimos o que denominamos o trium-
virato byroniano. J vimos Azevedo; diga-
mos clere de Lessa e Bernardo.
A poesia em AURE LI ANO JOS LE SSA
(18281861) teve trs feies principaes: a
philosophica, a melancholica, a amorosa; a
primeira no passava de certo metaphysi-
cismo pantheistico; a segunda tinha em seus
lbios um travor dolorosissimo; a ultima se
lhe traduzia em doces e languorosos arrou-
bos. Os documentos da primeira frma so:
0 Sol, A Creao, O Hymmo da Crea-
o, A Tarde. O Poeta; os da terceira so:
Leviana, A... Tu, Canto de Amor, Queixa,
Duas Auroras; a nota a Byron e Musset
espalha-se em varias paginas do pequeno
volume que do auctor nos ficou. Em Aze-
76
vedo ha mais devaneios, mais exuberancias;
em Bernardo mais lyrismo; em Lessa mais
energia, mais lucidez, mais vigor de phrase.
Pincta a pinceladas largas e possantes como
estas :
Depois co'a dextra contraindo o vcuo
Informe e tenebroso
Deixou cahir o Universo inteiro
No espao luminoso.
O silencio expandio-se ; era um sussurro
De sublime harmonia :
Hymno da vida, porque o sol gyrava
0 primitivo dia.
Um chuveiro de mundos despenhou-se
Pelos desertos ares,
Como a saraiva, ou como os gros de areia
L no fundo dos mares.
Rodava a terra verde e a lua pallida,
Ia a noite aps ellas;
Mas cahio sobre as trevas, que fugiam,
Uma chuva de estrellas. . .
Toda esta admirvel poesiaA Cre ao
de um lyrismo impessoal, imponente e
rutilo.
Em BERNARDO JOAQUIM DA SILVA GU I -
MARES (18271885) a poesia teve bellas
/ /
amostras de lyrismo naturalista, como em
Invocao e O Ermo; de lyrismo philoso-
phico como em O Devanear do sceptico;
de lyrismo amoroso, como em Evocaes;
de lyrismo humorstico, como em Orgia dos
duendes, Dilvio de papel, O naris pe-
rante os poetas.
Mas isto no define, no individualiza o
poeta entre os seus pares; preciso desco-
brir uma nota que seja s delle, que o afaste
de seus competidores; e esta nota parece-
nos estar nas tinctas sertanejas de sua pa-
lheta e no tom brasileiro de sua linguagem.
Magalhes, Gonalves Dias, Porto Alegre,
Maciel Monteiro, Jos Maria do Amaral,
L"aurindo, Alvares de Azevedo e muitos
outros poetas romnticos nacionaes do norte
ou do sul, eram filhos da regio da costa
ou da regio das mattas prxima costa.
Viveram, alm disto, nas grandes cidades, ao
contacto de extrangeiros e quasi nada co-
nheceram das diversas regies do paiz.
Gonalves Dias, que poderia fazer exce-
po, s nos ltimos annos que viajou os
sertes do norte.
Aureliano Lessa pouca propenso tinha
pela paizagem, posto fosse tambm um ser-
tanejo. Por mais brasileira que fosse a in-
- - / 8
tuio desses homens, no o poderia ser
tanto quanto a de Bernardo, talento obje-
ctivista, que nasceu e viveu na plena luz do
corao do Brasil, o planalto central. Filho
de Minas, viajou muito os sertes de sua
provncia e das de Goyaz, S. Paulo e Rio
de Janeiro.
Tinha o prurido de bohemio, movia-se
constantemente, e neste caminhador havia o
instincto do pittoresco. Juncte-se a isto o
conviver intimo com o povo, o faliar con-
stante de sua linguagem e ter-se-ha a razo
pela qual o intelligente mineiro em seus
versos e romances foi uma das mais ntidas
encarnaes do espirito nacional.
Quasi todos os seus escriptos versam
sobre themas brasileiros; mas ha nelles al-
guma cousa mais do que a simples escolha
do assumpto; ha o brasileirismo subjectivo,
espontneo, inconsciente, oriundo d'alma e
do corao.
Na impossibilidade de estudar aqui uma
por uma as quatro notas do lyrismo do
poeta das Evocaes, enviamos o leitor para
a Historia da Litteratura, onde se acha
longamente feita a sua caracterstica. E,
como fazemos neste ensaio questo de mos-
trar a evoluo da frma, do tom, da cr,
79
do estylo, em summa, que vae a arte da
poesia revestindo nos seus eleitos nesta parte
da America, documentaremos a feio que
chegou a ter no grande cantor mineiro. Eis
um trecho da Primeira Evocao:
Das sombras do sepulchro
Eil-a que surge, plcida e formosa,
Essa viso primeira,
Que me sorrio' na quadra venturosa
Da infncia prazenteira...
S mui bem vinda, oh flor sempre lembrada
De minha leda aurora !
Graas te rendo, pois a consolar-me
Surges primeira agora.
Inda hoje mesmo, aps to largos annos,
Que repousas no leito funerrio,
A' minha voz aodes e abandonas
Para escutar-me o glido sudario. . .
No ; no morreste: ou bella como outr'ora
A' voz do meu amor hoje renasces !
Tombam-te ao collo as ntidas madeixas
E adorvel pudor te adorna as faces.
No vens da campa, no, que nos teus lbios
Vejo o frescor e a purpura da rosa ;
Palpita o seio e brincam-te os sorrisos
Na bocca perfumosa. , .
_ 80
E por vinte e sete estrophes doces, sere-
m a S
encantadoras desusa este cntico, que
deve ser lido pelos amantes da boa e des-
pretenciosa poesia.
o lyrismo pessoal; mas a personalidade
aqui realada pela sinceridade.
As Evocaes lembram, j uma vez o
dissemos, as Noites de Musset, talvez a
mais bella produco do romantismo francez.
Prosigamos.
VIII
Segue-se o terceiro momento do roman-
tismo, com os epgonos de Byron, Musset e
Lamartine, cujos principaes foram: Junqueira
Freire, Casimiro de Abreu, Franco de S,
Constantino Gomes, Augusto de Mendona,
Pedro de Calasans, e aos quaes, dissemos
ns, se prende Fagundes Varella, que tinha,
entretanto, algumas notas divergentes. Este
grupo de poetas contm alguns daquelles
choramigas, que chegaram a desacreditar o
romantismo brasileiro na quadra que vai de
a 1862 mais ou menos. Varella muito
81 - r
mais rico de talento do que qualquer delles,
se lhes vae ligar mais pela face irnica e
rebelde do byronismo do que pela sentimen-
talidade lamartiniana. Similhante o caso
de Pedro de Calasans, que entra no grmio
por eguaes motivos. Apressamo-nos, porm,
em declarar que as classificaes litterarias
no devem jamais ser tomadas rigorosamente
lettra. Os grandes talentos possuem sem-
pre certas qualidades que os fazem romper
com as medidas e convenes doutrinrias
e criticas.
Daremos nestas linhas dos septe poetas,
citados no perodo de que ora tractamos,
apenas ligeiras palavras dos quatro princi-
paes : Junqueira, Casimiro, Calasans e
Varella.
Com Luiz JOS JUNQUE I RA FRE I RE (1832
1855) temos ensejo de assistir, por
momentos, evoluo do que se poderia
chamar a segunda ( a primeira foi, como
j se viu, a ,do sculo XVI I ) eschola ba-
hiana.
i
Referimo-nos ao grupo de litteratos, es-
criptores e poetas que, em torno de Moniz
Barreto, fulgiu na Bahia em 1847 ou 48 at
1866 ou 67. No exquecer que ento alli
o jornalismo e a eloqncia tiveram repre-
d
sentantes, como Joo Maurcio Wanderley,
Landulpho Medrado, Fernandes da Cunha,'
Barbosa de Almeida, Guedes Cabral, Alvares
da Silva, Joo Barbosa, Victor de Oliveira,
Eunapio Deir, Gustavo de S e Leo Vel-
loso ; e que a litteratura e a poesia expan-
diram-se pela bocca do citado Moniz Bar-
reto, Agrrio de Menezes, Manoel Pessoa da
Silva, Gualberto dos Passos, Rodrigues da
Costa, Augusto de Mendona, Joo Freitas,
Joaquim Ayres e muitos outros. Junqueira
Freire, pois, no estava isolado.
Este poeta foi um joven de temperamento
nervoso e apprehensivo, que se viu attrahido
por duas correntes diversas. A educao
religiosa e a intuio livre do sculo trava-
ram lucta em sua alma sem que nenhuma
das duas triumphasse da outra completa-
mente ; suas crenas vacillaram, resentiram-se
seus sentimentos. D'ahi certa dubiedade,
certo dualismo em seus escriptos, justamente
o mesmo abalo que se dera cm Azevedo e
companheiros.
Apenas Junqueira era mais lcido, mais
raciocinador e menos imaginoso, menos
poeta.
O bahiano , como todos os bons vates
brasileiros, um bom lyrista ; c seu l**r
;
: mo
tem quatro notas principaes : religiosa, phi-
losophica, amorosa, popular ou sertanista.
Damos estes dous ltimos epithetos ao pu-
nhado de poesias que se inspiram de scenas
do viver de nossas classes aldeians e rocei-
ras. Si no so as mais abundantes, so as
melhores do auctor. As principaes so : A
Orphan na costura, O Banho, O Canto
do gallo, O Menestrel do serto. Nos
outros gneros as mais saborosas so : Por
que canto, Meu filho no claustro, A flor
murcha no altar.
Nada podemos exemplificar ; limitamo-nos
a dizer que o estylo do poeta bahiense, nos
bons momentos, tem certa simplicidade e
doura ao gosto das melopias populares.
No possua, entretanto, o auctor das Con-
tradices Poticas o vigor de Azevedo e
Lessa, a terna melancholia de Bernardo
Guimares, nem a exuberncia de Larindo
Rabello. A qualidade que tinha menos que
Bernardo, era ainda mais pronunciada em
CASIMIRO DE ' ABREU, avantajado aos dous
por esta face.
O poeta das Primaveras (18371860)
o mais perfeito _e completo typo do romn-
tico triste, melancholico, sentimental. Esta
nota, j existente em todos os seus prede-
84
cessores romnticos, e que se vai encontrar
at em Silva Alvarenga e Gonzaga, em Ca-
simiro chegou completa evoluo. Tudo
conspirou para este resultado : o meio social,
o temperamento do poeta, seu gnero de
vida em desaccordo com seus gostos e as-
piraes.
Pobre moo, fraco, com propenses tu-
berculose, cheio de leituras sentimentaes, va-
porosas, areas, embriagadoras, tudo o le-
vava a collocar su'alma n' um palcio de
chimeras, irizados sonhos em desaccordo
completo com a dura realidade. Mas ha a
mais completa ausncia de artificio nas ma-
guadas poesias do desconsolado mancebo.
Este meigo e doce desequilibrado o mais
sincero, o mais puro e honesto dos homens.
E' um'alma de moa, alguma cousa como
Shelley aos dezeseis annos, antes que o
mundo o tivesse tomado em suas garras e
lhe houvesse alterado a primitiva virgin-
dade.
O estylo, como simplicidade, ausncia de
amaneirados, espontnea singeleza, tem che-
gado quasi perfeio. Uma ou -outra vez
descamba para o defeito daquella quali-
dade : torna-se vulgar. Ei-lo quando
melhor :
85.
T m'inspiraste, oh musa do silencio,
Mimosa flor da languida saudade!
Por ti correu meu estro ardente e louco
.Nos ardores febris da mocidade.
T vinhas pelas horas das tristezas,
Sobre o meu hombro debruar-te a medo,
A dizer-me baixinho mil cantigas,
Como vozes subtis d'algum segredo.
E' esta a nota quasi geral da poesia no
auctor das Primaveras. Dizemos quasi geral,
porque em Casimiro encontram-se tambm,
de longe em longe, algumas volatas de ly-
rismo alegre, expansivo, com uns doces tons
cmicos.
Em PE DRO DE CALAZANS (18361875) a
romntica brasileira revela alguns sympto-
mas dignos de nota.
O poeta sergipano deve figurar entre os
epgonos do byronismo e do mussetismo,
no pela face sentimental, que no tinha ao
gosto de Casimiro de Abreu, por exemplo,
sim pelas cores de irnico realismo que sabia
manejar.
Em seu tempo a poesia brasileira ramifi-
cava-se por trez caminhos principaes alis
provindos/ como demonstrmos, da phase
clssica e trilhados tambm pelos chefes do
.86
nosso romantismo : a corrente de Gonalves
Dias e a de Alvares de Azevedo, isto , o
indianismo e o sentimentalismo descrente, a
que se junctava a veia sertanista e campes-
tre, que, exactamente ao lado de Calasans,
havia de ter os seus melhores representantes
em Trajano Galvo, Dias Carneiro, Gentil
Homem, Marques Rodrigues, Costa Ribeiro,
Franklin Doria e Bittencourt Sampaio. Esta
brilhante pleiade de poetas, entre os quaes
predominam moos do Maranho, fez o
curso de direito na ifaculdade do Recife,
entre os annos de 1854 a 60 ou 61 e con-
stituiu alli uma verdadeira eschola, que te-
remos de estudar linhas abaixo.
So poetas todos do norte e bem diver-
sos de seus contemporneos da eschola de
S. Paulo. A transio entre uns e outros
representada por Junqueira Freire e Augusto
de Mendona, poetas bahianos, que jamais
sairam da bella ptria de Gregorio de
Mattos. Em Calasans, posto fosse elle respei-
tado como mestre por todos aquelles colle-
gas seus de academia e de litteratura, no
apparece nenhuma das trs notas indicadas-
N'elle no apparecem os Penes, Folias e
Manfredos enfastiados, no se vem os ca-
bildas selvagens, nem se escutam as can-
87
es buclicas do naturalismo aldeo. Seu
realismo outro, o realismo da cidade,
da gente elevada, dos sales civilizados, das
classes cultas.
O poeta pinta principalmente os vcios
elegantes do seu tempo, nomeadamente os
desregramentos da mulher viciada e blase.
Sete somnos, Mulheres de ouro, Fel por
mel; Wiesbade so characteristicos n'este
sentido. E como exemplo de estylo para
exacta apreciao da evoluo, lembramos
A Bomba do Lago, que assim comea :
Brilhava a lua sob um cu de seda,
Recamado de estreitas diamantinas,
Como donzella nos sales de um baile
Aos trementes clares das serpentinas.
N'uma plancie que florestas fecham,
Escondendo aos mortaes um paraso,
A mo do eterno se esmerou pintando
Um manso lago do crystal mais liso.
Fulgente lamina de metal pulido
O lago solitrio parecia,
Onde os bafejos duma aragem branda
Finos traos na flor, leve, esculpia.
88
E da floresta nas selvagens harpas
Expiravam de amor longiquas notas,
Como os murmrios de adormida lympha,
Bater das azas de gentis gaivotas. . .
E' um dos poetas largamente estudados
na Historia da Litteratura, e pode alli ser
melhor apreciado.
Aqui importa-nos apenas o sentido geral
da evoluo lyrica. E, por tal face, de-
masiado curioso o caso de Luiz NICOLO
FAGUNDE S VARE LLA (18411875). Quando
em 1861, este rapaz aos vinte annos de
idade, publicou os primeiros versos, a poesia
brasileira estava quasi completamente muda.
Magalhes e Porto Alegre ainda viviam no
extrangeiro, um dedicado quasi exclusiva-
mente philosophia, o outro calado, escre-
vendo lentamente seu extenso poema. Gon-
alves Dias e Larindo, prematuramente
cansados e prximos morte, mais nada
produziam.
Alvares de Azevedo, Aureliano Lessa,
Casimiro de Abreu e Junqueira Freire ti-
nham emmudecido no sepulchro.
Jos Maria do Amaral e Maciel Monteiro,
que nunca foram assduos em publicaes
poticas nem nos deixaram livros impres-
sos, estavam l fora na diplomacia. Francisco
89
Octaviano e Jos Bonifcio, que tambm
raro produziam, andavam calados e entre-
gues poltica. Bernardo Guimares perdia-
se obscuro nos centros de Minas e come-
ava a cultivar o romance de preferencia ao
verso.
Teixeira de Mello tinha emmudecido
completamente depois das Sombras e sonhos
(1858).
O mesmo tinha feito Calasans, por alguns
annos, depois das Ultimas paginas (1858;
Franklin Doria, aps os EMIMOS (1859), e
Bittencourt Sampaio, aps as Flores Syl-
vestres (1860). Os companheiros de Cala-
lans e Doria, na academia do Recife tinham-
se graduado em direito e haviam dependu-
rado as lyras para s raro a tangerem de
longe em longe. Luiz Delfino no se havia
ainda revelado o potente lyrista que veio * a
ser no correr dos ltimos trinta annos. Ma-
chado de Assis comeava apenas e mui ti-
midamente na poesia. D'est'arte, Fagundes
Varella foi quem tomou aos hombros os en-
cargos da arte essencialmente querida dos
brasileiros no quinquennio de 1860 a 65.
Desde dez ou doze annos passados, desde
os ureos tempos de Azevedo no se tinha
visto em nossas academias um to interes-
90
sante typo de litterato. As boas tradies
romnticas, os bellos dias da bohemia ti-
nham renascido. Varella foi o ultimo repre-
sentante de mrito de certa indole de poe-
tas e de certa feio de poesia. Por isso
prendemol-o ao grupo que vimos agora re-
passando ; porque elle fundamentalmente
o continuador daquellas tendncias. E,
como ao lado d'esse grupo, e exactamente
pelo mesmo tempo, tinha-se destacado o
grupo parallelo dos sertanistas, distincto do
outro lgica e no chronologicamente, se-
gu-se ser Facundes Varella, que com uns
e outros tinha pontos de contacto, o ver-
dadeiro lo que prende todo o romantismo,
brasileiro ultima eschola do systema, a
famosa eschola condoreira.
A obra de Varella, apparentemente lgica,
uma das mais contradictorias que possui-
mos ; apparentemente pessoal, uma das
mais impessoaes de nossa litteratura. 'O
poeta no foi um triste, nem um alegre, nem
um crente, nem um sceptico, nem um libe-
ral, nem um auctoritario ; porque foi tudo
isto ao mesmo tempo conforme o ensejo e
a occasio. Foi uma natureza mltipla, in-
constante, excessivamente excitavel, ator-
mentada por estimulos diversos.
91
Foi um agitado, um detraqu ao geito
de Edgar Po, menos a epilepsia franca.
Dahi a variedade de suas impresses e a
mobilidade dos tons de seu cantar ; dahi
essa morbidez inconsciente e irresistvel que
se evapora de quasi todas as suas compo-
sies. Tal a caracterstica que mais o de-
fine, e por isso as produces que melhor
o representam so aquellas em que appare-
cem essas incertezas, essas fluctuaes, essas
nevoas, esses claros e escuros, essas vagas
aspiraes, esses sonhos roseos e de um es-
pirito inconsistente adormecido numa esp-
cie de embriaguez, e que bem se poderia
chamar o lyrismo bacchico.
O trao pessoal da lyrica varelliana o
phantasiar caprichoso e dolente, areo e
brumoso, cheio de douras e sonoridades,
alguma cousa de impalpavel e indefinido, de
vaporoso, e phosphorescente na prpria va-
porosidade.
Nevoas, Juvenilia, Acusmata, Vises da
Noite, Madrugada d beira mar, Enchente,
Gualter, Diverso e cincoenta outras o
provam. Estes versos no encontram eguaes
em lingua portugueza, no como forma,
sino no sentido a que alludimos:
92
Cresce, transpe as bordas
De brilhante crystal,
Torrente amada que o prazer acordas. . .
Toma a guitarra, escravo ! afina as cordas,
E viva a saturnal!
J corre-me nas veias
Um sangue mais veloz. . .
Anjos, inspiraes, mundos de idias,
Sacodi-me da fronte as sombras feias
Deste scismar atroz !
Que celestes bafagens!
Que languidos perfumes !
Que vaporosas, lcidas imagens
Danam vestidas de subtis roupagens
Entre esplendidos lumes !
Tange mais brando ainda
Esse mago instrumento!
Mais. . . inda mais ! Que maravilha infinda
Que plaga immensa, luminosa e linda!
Que de vozes no vento !
So as huris divinas
Que junto a mim perpassam,
Ou de Schiraz as virgens peregrinas,
Que cingidas de rosas purpurinas
Choram Bulbul e passam ?
93
Oh ! no, que no so ellas,
Mas, ai! meus sonhos so !
So do passado as vividas estrellas,
Que flux rebentam cada vez mais bellas,
De mais puro claro !
So meus prazeres idos,
Minha extincta esperana!
So. . . Mas que nota fere-me os ouvidos ?
Escravo estulto, abafa esses gemidos !
Canta o riso e a bonana!
Canta a paz e a ventura,
O mar e o co azul!
Quero olvidar minha comedia escura,
E a ledos sons as larvas da loucura
Bater como Saul.
Leva-me s densas mattas
Onde viveu Celuta ;
Faze-me um leito margem das cascatas
Ou nas alfombras humidas e gratas
De recndita gruta. . .
Assim. . . assim. Fagueiras
Escuto j nos ares
As vozes das donzellas prazenteiras
Que danam rindo ao lume das fogueiras
No centro dos palmares. . .
. 04
E' a mais completa systematizao do
delrio de que ha exemplo na poesia brasi-
leira. Varella no chegou completa luci-
dez na extravagncia e na loucura, como
Edgar Po ; caminhava, porm, para l e
poderia vir a ser nesse caminho o mais ex-
traordinrio de nossos poetas.
IX
O cantor de Anchieta foi tambm o can-
tor de A Roa e de Mimosa, duas bellissi-
mas produces de nosso naturalismo cam-
pesino e buclico, e isto nos offerece natu-
ral passagem aos mais extremados cultores
do gnero que havemos tido.
Foram elles o grupo de poetas que flo-
resceram, como j dissemos, em Pernam-
buco, de 1854 a 60, entre os quaes predo-
minaram intelligentes filhos do Maranho,
retirados mais tarde para a sua provncia,
onde constituram verdadeira eschola litte-
raria.
Escusado repetir os nomes de Trajano
Galvo, Marques Rodrigues Franco de S,
95
Dias Carneiro, Gentil Homem, Joaquim
Serra aos quaes se prendem os do piau-
hyeuse Jos Coriolano, do paraense Bruno
Seabra, do cearense Juvenal Galeno, do ser-
gipano Bittencourt Sampaio e dos bahia-
nos FrankUn Doria, Mello Moraes Filho.
Daremos uma ida dos quatro melhores
Trajano Galvo, Joaquim Serra, Bitten-
court Sampaio e Mello Moraes Filho.
O romantismo, talvez o mais complexo e
variado movimento litterario havido em todo
mundo, cuja comprehenso no se ha de ir
pedir ao extravagante, atrazado, beato e cls-
sico Brunetire, entre as mltiplas faces,-
que mostrou no correr da existncia teve a
de ser nas lettras, n'um momento, a reper-
cusso do famoso principio das naciona-
lidades.
Isto quando, aps' seu inicio na Ingla-
terra, com Richardson, Cowper, Crabbe,
Gray, Coleridge, Wordsworth, Joung, Burns,
Swift, Sterne, sua passagem primeira pela
Frana, com Prvost, Diderot, Rousseau.
sua erupo na Allemanha, com Lessing,
Gthe, Schiller, Tieck, os Schlegels, Novalis,
voltou de novo Frana, em dias de Bo-
naparte, com Stel e-Chateaubriand. De
uma simples reaco contra os ideaes cias-
90
sicos dos povos do meio dia em favor da
intuio das gentes do norte, que fora em
sua primeira phase, transformou-se, de 1813
em diante e por algum tempo, n' um movi-
mento em prol das tradies de todos os
povos modernos. Era o despertar das na-
es occidentaes que haviam sido pisadas
pelas patas dos corceis da Revoluo e de
Bonaparte.
D'ahi a chamada volta s tradies po-
pulares, no que ellas tinham de lendrio,
imaginoso e sentido. Na Europa, cheia de
velhas naes, era o phenomeno de fcil
explicao e a tentativa tambm relativa-
mente fcil na execuo. Os valorosos es-
tudos histricos dos homens, que haviam
iniciado a nova phase da lingstica, da
critica religiosa, do direito, do folk-lore
nos comeos do sculo XIX, desbravaram
o terreno aos poetas, romancistas e drama-
turgos.
Simples foi a italianos, francezes, alle-
mes, portuguezes, hespanhes, russos, in-
glezes, e escandinavos, indicar o filo meio
esquecido de suas origens e tradies e
mostrar-lhes o caminho novo a ser trilhado.
No tanto, porm, na America e respecti-
vamente no Brasil. Tnhamos durante perto
9/
de trs sculos sido representados especial-
mente como portugueses, meros continua-
dores do pensar da metrpole.
O absurdo era evidente, e o nosso ro-
mantismo, que teve, como j lembrmos, um
extraordinrio precursor na nunca assz
louvada eschola mineira do sculo XVIII,
reagio contra o exclusivismo, caindo, entre-
tanto, no exaggero de pretender, ao menos
um certo tempo foi esta a sua illuso, re-
presentar-nos como caboclos.
Tal o significado histrico e social da
nossa rpida eschola indianista. Durante a
illuso mesma dos indianistas, os nossos
melhores poetas, romancistas, contistas, co-
mediographos e at vrios dos que um
momento tinham sacrificado aos idolos
caboclos, sabedores instinctivamente de no
sermos nem portugueses ndios (os negros,
como raa, nunca tiveram partidrios fran-
cos e decididos nas lettras) comearam de
olhar mais intensamente para as varias
classes da populao e com mais amor para
nossos costumes genuinamente ncionaes,
oriundos desse immenso mestiamento, que
tem vindo a operar-se durante quatrocentos
annos, e foram produzindo muitas das pa-
ginas mais bellas e mais brasileiras de
n,s
nossa litteratura. Nesse grupo que teem
logar as creaes superiores do theatro de
Martins Penna, de Macedo, de Agrrio,
de Alencar, de Augusto de Castro, de
Joaquim Serra, de Frana Jnior, de Ar-
thur Asevedo: as melhores produces do
romance de Manoel de Almeida, Bernardo
Guimares, Franklin Tavora, Celso de
Magalhes, Escragnolle Taunay, Ingls de
Sousa, Aluisio Azevedo e do prprio
Alencar e at de Macedo, bastando lembrar
d'este as Mulheres de Mantilha, a More-
ninha, as Victimas Algoses, Moo Loiro e
do outro O Tronco do Ip, TU, O Gacho,
O Sertanejo; as paginas mais bellas das
poesias do grupo sertanista que vimos agora
estudando; e os mais perfeitos dos contos
e novellas dos modernos auctoresCoelho
Netto, Affonso Arinos, Pedro Rabello,
Escragnolle Doria, Adolpho Caminha, Do-
micio da Gama, Raul Pompeia, Rodolpho
Theophilo. Os prprios poetas, sectrios,
de outras escolas, um Alvares de Asevedo,
um Gonalves Dias, um Junqueira Freire,
um Augusto de Mendona, um Tobias
Barreto, um Constantino Gomes, um Castro
Alves, um Bernardo Guimares, um Casi-
miro de Abreu no deixaram de nos mi-
99
mosear com algumas paginas do gnero,
porque tinham a intuio do seu valor
como impresso do meio e dos costumes
genuinamente brasileiros. Pode-se at af-
firmar ter sido de todas as manifestaes
da estho-psychologia nacional a mais per-
feita e completa, porque nada lhe tem fal-
tado : est representada no drama, na co-
media, no romance, na novella, no folhe-
tim, e at na critica litteraria, desde que
certo no ter sido outro o movei inspira-
dor de livros, como os Estudos sobre a
poesia Popular Brasileira e a Historia
da Litteratura Basileira.
O gnesis desta, to grande corrente litte-
raria, to amplamente ramificada, j foi
nestas mesmas paginas determinado, tendo-
se mostrado que suas raizes se vo prender
na espcie de proto-romantismo entre ns
existente desde fins do sculo XVIII.
Eram ento, como nos praz repetir trez as
ramificaes principaes de nossa poesia :
certo lusismo determinadamente religioso
cujo principal representante era o padre
Sousa Caldas ; um indianismo incipiente,
cujas notas mais altas estavam em Basilio
e Duro; um brasileirismo, ora buclico e
campestre, ora matuto e sertanista, ora
100 -
aldeio e burgus, cujas mais vivas cores
andavam esparsas em Silva Alvarenga, em
Cludio, em Gonzaga, em Peixoto, em Cal-
das Barbosa. Quando se deu a evoluo
romntica, no tivemos quasi nada a mudar
alm da frma ; o fundo permaneceu o
mesmo; as trs correntes continuaram a
rolar as suas guas; a imaginao e o sentir
'brasileiro proseguiram os mesmos vos,
apenas com azas mais possantes: Maga-
lhes (pouco dotado quanto frma) pro-
longou Sousa Caldas, com quem tem innu-
meros ponctos de contacto; Gonalves Dias
protrahio Basilio, de quem digno irmo
no manejo do verso branco; Porto Alegre
avanou na senda dos Alvarengas no que
elles tinham de sentimento real da natu-
reza e da paizagem. Volvamos aos nossos
sertanistas.
A poesia em TRAJANO GALVO (1830
1864) mostra trez notas principaes: lyrismo
geral naturalista, lyrismo local campesino,
em que faz entrar scenas do viver do es-
cravo negro, lyrismo satyrico e pilherico.
A segunda * incontestavelmente a mais no-
tvel e por ella que o poeta maranhense
merece ter seu nome na historia litteraria.
Dissemos, linhas acima, no haverem os
101
negros, como raa, contado partidrias con-
victos e decididos em nossas lettras ; e
a verdade.
Houve sim, e s de certa epocha em
diante, quem se referisse escravido, s
dores e soffrimentos do captiveiro, e os las-
timasse ; mas os pretos, como classe da po-
pulao, nunca foram objecto de especial
carinho dos poetas, romancistas e dramatur-
gos. S o escravo que, no africano e
seus descendentes, nossos poetas tardia-
mente viram ; jamais o homem. E, todavia,
os raros, que do captivo se tem occupado,
ainda podem ser divididos em duas classes,
os que apenas estygmatizaram em tons di-
versos o facto geral e, por assim dizer,
abstracto da escravido ; os que deram, em
suas produces, entrada a scenas da vida
real dos escravisados. O primeiro, que o
saibamos, a enveredar por esta ultima trilha
foi Trajano Galvo. E, como consideramos
de alcance o facto, para aqui transcrevemos
litteralmente o que sobre elle escrevemos
n' outro livro. Trajano Galvo no foi um
grande poeta ; mas indispensvel conside-
rai-o em ,nossa historia litteraria, porque
ha n'elle alguma cousa que lhe garante um
nome.
102
Referimo-nos circumstancia de ter sido
o primeiro a dar ingresso aos captivos da
raa negra em nossa poesia. Antes de Tra-
jano um ou outro poeta havia roado de
passagem nos escravos pretos ; mas s de
passagem e sempre como protesto contra a
escravido. Trajano foi alm . collocou-se
mais no intimo do viver dos escravos e
pintou typos mais ou menos reaes. Infe-
lizmente poucas poesias nos restam d'elle
e particularmente do gnero de que tra-
ctamos.
As deste numero conhecidas so o Ca-
Ihambola, a Crioula, Nuranjau e Jovino
o senhor de escravos.
Bem se comprehende a importncia da
cousa. Era uma anomalia a ser notada por
toda a gente: na litteratura brasileira a raa
negra, apezar de ter contribudo com um
grande numero de habitantes do paiz, de
ser o principal factor de nossa riqueza, de
se haver entrelaado immensamente na vida
familiar, de estar por toda a parte, em
summa, nunca foi assumpto predilecto aos
nossos poetas, romancistas e dramaturgos.
O indio e o branco obtiveram sempre a
preferencia; e mais tarde os mestios, sob
os nomes de sertanejos, matutos, tabaros,
103
e caipiras, tiveram tambm seu quinho nas
attenes geraes dos litteratos.
Muitos decantaram as moreninhas, as
formosas cr de jambo, muitos outros che-
garam at s mulatinhas com seus cabees
rendados a enfeitiar toda a gente, e outras
pieguices da espcie. Ningum durante s-
culos, jamais se lembrou do negro, nem
como ente humano, nem mesmo como es-
cravo. S muito modernamente rarissimos
delle se occuparam de passagem, e sempre
como motivo para declamaes fugitivas.
Tal o caso at de bons poetas, como
Gonalves Dias com a sua Escrava, Bit-
tencourt Sampaio com a sua Captiva Luiz
Delfino com a sua Filha d'Africa e d'outros
d'egual ndole e estylo.
No theatro ha o caso phenomenal do
Demnio Familiar de Alencar, onde se
move um typo de negro, e no romance o
das Victimas Algbses, de J. Manoel de
Macedo; mas a comedia de Alencar, sobre
ser facto relativamente recente, isolado e no
seguido, tomou apenas o escravo n' um caso
excepcional e bastante raro; e o romance de
Macedo, alm de medocre, foi escripto nos
ltimos annos da vida do auctor, hontem,
por assim dizer, e com pretenes anti-abo-
104
licionistas. Foi uma obra de partido, feliz-
mente, sem repercusso. Escusado fallar
da Escrava Isaura de Bernardo Guimares ;
porque a interessante filha da imaginao
do poeta mineiro era uma verdadeira
branca escravisada.
Declamaes sobre o facto do captiveiro
houve-as ahi a granel; especialmente depois
que se accentuou o movimento abolicionista,
no appareceu versejador que se no qui-
zesse celebrizar custa dos pobres pretos.
Dos que na litteratura tardia e escassa-
mente se occuparam com elles, s quatro o
fizeram mais demorada e conscientemente :
Trajano Galvo, Castro Alves, Celso de
Magalhes e Mello Moraes Filho. Tra-
jano tem o mrito da antecedncia e de se
haver collocado no ponto de vista descri-
ptivo do viver do preto escravo. Em suas
poesias o captivo no protesta, no se las-
tima; o poeta d-lh a palavra e o calham-
bola, a crioula, a Nuranjan descantam suas
pretenes, seus anhelos (
l
).
t
1
) Se nos fora permittido, lembraramos que no poemeto Os
Palmarei decantmos tambm conscientemente os negros escravos.
105
Castro Alves tomou outro caminho ; es-
creveu odes de indignao, de cholera, no
estylo alteroso e meio declamatrio de
Victor Hugo: tal a ndole do Navio Negrei-
ro, das Voses d'Afric'a e da mr parte da
Cachoeira de Paulo AJfonso. O poeta
bahiano possua a imaginao e o tom al-
tisonante dos lyristas pomposos, mas no
tinha o espirito de observao, o naturalis-
mo apto a sorprender as scenas populares.
Celso de Magalhes, o bello talento que
fomos o primeiro a dar a conhecer ao Brasil
em geral, no seu poema Os calhambolas
approxima-se, no caminho aberto por Tra-
jano, da vida psychologica e real do ca-
ptivo.
E' . pena que se tivesse limitado a consi-
derar o escravo fugido, isto , o escravo
fora do seu viver normal.
Mello Moraes Filho seguio por vereda
mais certa, e, por este lado, sobrepujou seus-
companheiros no gnero.
No ostenta aquellas opulencias, aquelle
farfalhar de bonitas phrases ao gosto de
Castro Alves: sua maneira outra e pa-
rallela de Trajano e Celso: colloca-se no
meio mesmo da escravido, mette-se entre
captivos e senhores, assiste ao viver da-
106
quelle mundo especial das Fasendas e En-
genhos, e narra sem grandes adornos as
cruezas que alli se do. So pequenos
quadros, pequenos esboos, nos quaes cir-
cula a verdade. Trajano Galvo foi o pre-
decessor nesse gnero de poesia e por isso
deve ser lembrado com distinco (*).
Devemos um exemplo de seu estylo. Eis
aqui uma estrophe da Crioula :
Sou captiva. . . qu'importa ! folgando
Hei-de o vil captiveiro levar!
Hei-de sim, que o feitor tem mui brando
Corao que se pde amansar. . .
Como terno o feitor quando chama,
A' noitinha, escondido co'a rama
No caminho: crioula vem c!
Ha hi nada que pague o gostinho
De poder-se ao feitor no caminho,
Faceirando, dizer: no vou l ?
Prosegue assim natural e singela at final.
Em FRANCISCO LE I T E BITTE NCOURT
SAMPAIO (1830-1894) predomina o lyrismo
(') Historia da Litteratura Brasileira, II, pag. 1110 e segs.
107
local, tradicionalista, campestre, popular.
Por este lado talvez o melhor poeta do
Brasil; porque, sendo to terno e natural
quanto Trajano Galvo, Dias Carneiro,
Marques Rodrigues, Bruno Seabra, Joaquim
Serra, Gentil Homem, Mello Moraes e Ju-
venal Galeno, mais artista do que todos
elles.
Os dotes principaes da poesia neste
auctor so a melodia do verso, a graciosi-
dade que faz primar em pequenos quadros,
certa nostalgia pelas scenas, pela vida sim-
ples, fcil, descuidosa das regies da roa
e do serto, tal o caso em A Cigana,
Bem te vi, A rosa dos bosques, A Som-
nambula, o Canto da Serrana, Tarde de
Vero, O Canto do gacho, Nossa Senhora
da Piedade, O Lenhaor, O Tropeiro, A
Mucama, todas contidas no bello livrinho
das Flores Sylvestres, publicado em 1860.
Cumpre advertir que essa espcie de poesia
s tem graa quando sabe alliar ver-
dade os primores da arte, as gentilezas e
galas do estylo, quando obra de um ver-
dadeiro artista. Fora dahi s tem valor,
quando genuinamente anonyma e folk-
lorica. Ou inteiramente popular, collectiva,
colhida directamente da bocca dos menes-
108
treis dos sertes, ou transfigurada, depu-
rada, enaltecida pelos poetas de talento.
Quando no nem uma nem outra cousa,
um gnero hybrido, que nem popular
nem culto e transforma-se numa triaga in-
supportavel. Em Bittencourt Sampaio esta-
mos com um artista de mrito. Exemplifi-
caremos com alguns versos d'A Cigana:
L corre a morena, levando faceira
Na cinta punhal,
Veloz como a ema saltando ligeira
Por montes e vai :
Gentil engraada
Dissereis levada
Por artes de amor !
Agora fugindo,
Sorrindo
Innocente
L vae de repente
Pulando,
Brincando,
Fallando,
No prado co'a flor.
A linda trigueira canada sentou-se
No verde tapiz ;
Mas logo um momentode p levantou-se
Contente e feliz.
109
Travessa menina,
Vem lr minha sina,
No fujas, vem c !
Chegou-se a cigana,
Que engana
Innocente
Com ditos a gente,
Saltando,
Gyrando,
Cantando,
No seu patu. . .
Mui graciosa e faceira escorre essa lin-
guagem, leve e cantante, por estrophes e
estrophes encantadoras de simplicidade.
JOAQUIM MARINHO SERRA SOBRINHO foi
um homem alegre, expansivo, de um opti-
mismo inaltervel. N' uma alma assim ar-
gamassada o enthusiasmo tem entrada
franca; si o temperamento de poeta, a
poesia ser nella simples, galhofeira, brin-
calhona o mais das vezes : si o tempera-
mento de poltico, a intuio poltica ser
o liberalismo em sua mais bella expresso,
esse liberalismo confiante no espirito hu-
mano, crente no seu progresso, enthusiasta
pelo bem-estar do povo. O nosso mara-
nhense tinha ambas as feies : foi um
poeta e um jornalista ; por uma e outra
108
treis dos sertes, ou transfigurada, depu-
rada, enaltecida pelos poetas de talento.
Quando no nem uma nem outra cousa,
um gnero hybrido, que nem popular
nem culto e transforma-se numa triaga in-
supportavel. Em Bittencourt Sampaio esta-
mos com um artista de mrito. Exemplifi-
caremos com alguns versos d'A Cigana :
L corre a morena, levando faceira
Na cinta punhal,
Veloz como a ema saltando ligeira
Por montes e vai :
Gentil engraada
Dissereis levada
Por artes de amor !
Agora fugindo,
Sorrindo
Innocente
L vae de repente
Pulando,
Brincando,
Fallando,
No prado co'a flor.
A linda trigueira canada sentou-se
No verde tapiz ;
Mas logo um momentode p levantou-se
Contente e feliz.
109
Travessa menina,
Vem lr minha sina,
No fujas, vem c !
Chegou-se a cigana,
Que engana
Innocente
Com ditos a gente,
Saltando,
Gyrando,
Cantando,
No seu patu. . .
Mui graciosa e faceira escorre essa lin-
guagem, leve e cantante, por estrophes e
estrophes encantadoras de simplicidade.
JOAQUIM MARINHO SERRA SOBRINHO foi
um homem alegre, expansivo, de um opti-
mismo inaltervel. N' uma alma assim ar-
gamassada o enthusiasmo tem entrada
franca; si o temperamento de poeta, a
poesia ser nella simples, galhofeira, brin-
calhona o mais das vezes : si o tempera-
mento de poltico, a intuio poltica ser
o liberalismo em sua mais bella expresso,
esse liberalismo confiante no espirito hu-
mano, crente no seu progresso, enthusiasta
pelo bem-estar do povo. O nosso mara-
nhense tinha ambas as feies : foi um
poeta e um jornalista ; por uma e outra
110
face suas qualidades principaes foram o
brasileirismo de suas inspiraes, o humo-
rismo amoravel de seu estylo. Quem l as
poesias de Joaquim Serra logo agradavel-
mente impressionado pela espontaneidade
do tom, pela simplicidade das cores, pelo
nacionalismo dos quadros. Sente-se imme-
diatamente que se est a tractar com um
homem que veio do povo, que conviveu
com elle, que o conhece, que se inspirou
de sua poesia nativa, de suas lendas, de
suas tradies ; um homem e isto o
principal, que, tendo mais tarde estudado
os auctores extrangeiros, nem por isso
seutio estancar-se-lhe a fonte do antigo
brasileirismo e quebrar-se-lhe na lyra a
corda das queridas melodias sertanejas.
No gnero o caracterstico do poeta dos
Quadros est em saber escolher sempre um
facto concreto e pittoresco e narral-o pelo
seu lado mais impressionista, fazendo um
escoro rpido, claro, de tom realista, num
desenho firme, porm elementar e sem com-
plicaes. O Mestre de Resa, Rasto de
Sangue, Cantiga Viola, O Roceiro de
Volta so modelos perfeitos. Temos um.
completo quadro de gnero hollandeza
n'o Mestre de Resa, por exemplo:
111
Era um velhinho teso
Exquisito no porte e no trajar ;
Por isso a villa em peso
Quando o via se punha a cochichar.
Se da lista tirarmos o vigrio,
E mais o boticrio,
Bem como o juiz de paz,
Era o mestre de reza
O primeiro na villa ; com certeza
O homem mais capaz.
Depois d'Ave Maria
Vem elle cada dia
Co'os meninos da Villa,
E alli no largo atraz da freguezia,
Pe todos numa fila :
As perguntas comeam e as respostas;
E' um nunca acabar !
Os rapazes de p e de mos postas,
Elle em frente da linha a passear !
A reza ou fallada,
Ou em coro cantada, uma balburdia !
Quanta doutrina nova e mascavada !
Quanta orao esturdia !
As beatas morriam de alegria
Co'o dialogo d'Eva e da serpente,
E o psalmo da baleia,
E a santa melodia
Dos asnos da Judeia
E magos do Oriente !
Sabe o mestre umas rezas milagrosas
Contra a faca de ponta e mo olhado,
E cobras venenosas,
E o jaguar a rugir esfomeado...
112
Se quereis no cair n'um sumidouro,
Elle tem oraes prodigiosas,
Outras que fazem achar grande thesouro
Occulto e enterrado !
Mora n'aquella casa de uma porta,
Ao lado da ribeira ;
Na frente tem uma horta,
No lundo uma ingazeira.
Reside alli o homem milagreiro,
O apstolo da roa ;
E' de velhas devotas um viveiro
A sua pobre choa !
Salve, o mestre de reza,
Na villa personagem popular !
Eil-o que passa. . . vale quanto pesa !
Deixemol o passar !
A poesia s chega a este tom despreten-
ciosamente naturalista quando tem atraz de
si a lenta evoluo que a faz perder as de-
clamaes e exterioridade e attingir a rea-
lidade das cousas.
Em ALE XANDRE JOS DE ME LLO MO-
RAES FI LHO a poesia vibra as varias cordas
apontadas em Trajano, Bittencourt e Serra ;
porm um pouco mais systematicamente,
porque elle sobreviveu a todos e teve tempo
de olhar para estes assumptos, organisando-
os conscientemente.
A lyrica neste auctor mostra duas faces
primordiaes : certa disposio phautastica
113
dos quadros e scenas da natureza e do
homem aprendida principalmente de Edgar
Quinet, determinado aferro a assumptos na-
cionaes, aprendido peculiarmente de Bitten-
court Sampaio, conforme as prprias con-
fisses do poeta.
A tendncia para os assumptos nacionaes,
a inclinao do espirito para reflectir os
sentimentos, os affectos, as effuses d'alma
brasileira, eram nelle predisposies nativas
reforadas pela leitura das Flores Sylves-
tres, de Sampaio, e definitivamente syste-
matizadas pelos Estudos sobre a Poesia
Popular do Brasil, do auctor desta me-
mria.
Muitos dos nossos nocionalistas foram
duplamente lacunosos ; no abrangeram
todos os factores da alma brasileira, e dos
que tractaram no sairam, por via de regra,
das manifestaes exteriores. Neste auctor
v-se que a poesia escapou a esse duplo
motivo de inferioridade. Alli ha o quadro
completo dos agentes que constituram, dif-
ferenciaram, integraram o nosso povo.
Natureza exterior, ndios, negros, brancos,
mestios l esto : e alm d'isso, de ndios
por exemplo, no ' se limitou a descrever
usos meramente externos ; reproduziu-lhes
114
lendas, peuetrando-lhes assim na psycholo-'
gia ; e de negros, no declamou sobre o
facto geral da escravido ; observou-lhes a
vida, da qual pinctou cruentas peripcias.
D'entre as poesias que do conta de
scenas de nossa natureza tropical desta-
cam-se : Ponte de lianas, A sucuriuba,
Tarde tropical, Floresta submergida,
Noites do Equador, Tempestade dos tr-
picos. D'entre as que se referem a assum-
ptos indianos avultam : O sangue do jaguar,
No co e na terra, A lenda do algodo,
A tapera da lua, A lenda das pedras
verdes, A lenda da abbora. Nas que
teem por objecto o negro escravo distin-
guem-se : A rede, A novena, A ama de
leite, Partida de escravos, Verba testa-
mentaria. O legado da morta, Mi de cria-
o. A feiticeira, Ingnuos, Escravo fugido,
A resa, Cantiga no eito. Os assumptos
portuguezes apparecem em Alma penada,
Saudaes dos mortos, Os immortaes. Os
themas de intuio brasileira particular, in-
tuio de colorao mestia, acham-se em
A mulata, A tabara, A caipora, No
Pouso, O palcio da mi d'agua, Bem-
te-vi, Trovador do Serto, A sereia' do
Jaburu, A lus dos afogados, A endemo-
115
ninhada; A romaria do Bom-Despacho,
A vspera de Reis. Todos estes assumptos
foram tractados com frma fcil e gracio-
sidades de lyrista.
Deixando de lado Sousa Andrade, Beni-
cio Fonienelle e vrios outros, pouco si-
gnificativos, sectrios de diversas intuies,
como tenham sido Rosendo Munis, Epi-
phanio Bittencourt, Lisboa Serra, Luis
Gama, Felix da Cunha, Luis Jos Pereira
da Silva, Ferreira de Meneses, Augusto
Emlio Zaluar, Paes de Andrade, Costa
Ribeiro, Joaquim Ayres de Almeida,
Freitas, e muitos mais, porque neste paiz
quasi toda a gente tem feito versos,, dete-
nhamo-nos antes os dous grandes diver-
gentes da epocha que estamos rapidamente
a estudar) Jos Bonifcio e Luis Del-
fino. So duas figuras respeitveis.
O primeiro, tendo comeado como um
epgono do byronismo, transformou-se n' um
poderoso] talento lyrico, verdadeiro precursor
- 110
da eschola hugoaua ; o segundo havendo
partipo de posio anloga e passado tambm
pela maneira hugoana, passou-se ao parna-
sianismo, onde revelou-se um extraordinrio
poeta, mo grado os defeitos que por ven-
tura possam afeiar a sua obra.
A poesia de JOS BONIFCIO DE ANDRA-
DE E SILVA conhecido por Jos Bonifcio
o moo (1827-1886) das mais vibran-
tes que possumos.
Distingue-se logo da de seus pares, por,
no ter, siuo de passagem e de leve, sacri-
ficado lamria romntica. Teve, desde
o comeo, uma tecla objectivista, que o le-
vava a extasiar-se deante de scenas da na-
tureza e de factos da sociedade. O estylo
do poeta possuio sempre certa individuali-
dade, que o separava dos mais. Este ly-
rico tem vigor e firmeza de tinctas, dex-
treza e facilidade na mo.
Exaggera s vezes, faz allegorias, torna-
se visionrio, entra uos domnios das ap-
paries. Um p, Tu e eu, O retrato
Suprema l'isio, Aspirao, A amante do
poeta, Cames, O Cometa da morte, No
e sim, O R&divivo, Primus inter pares,
adeus de Gonsaga, A Caridade, A' mar-
gem da corrente, Arvore secca, Galura-
117
mo, Teu nome, Saudades do escravo, so
brilhantes paginas de um lyrismo ardente e
vigoroso.
Para que se tenha a prova directa do
progresso artstico da lyrica em meio . da
evoluo romntica, aqui inserimos O re-
trato, um verdadeiro mimo de naturalidade,
de singeleza e graa:
Incline o rosto um pouco-. . . assim. . . ainda. . .
Arqueie o brao, a mo sobre a cintura ;
Deixe fugir-lhe um riso bocca pura
E a covinha animar da face linda.
Erga a ponta do p. . . que graa infinda!
Quero nos olhos ver-lhe a formosura,
Feitio azul de orvalho que fulgura,
Foco de luz suave que no finda.
Ha pouca luz. . . eu vej o-a. . . est sentada :
Passou-lhe a sombra de um cuidado agora
Na ruguinha da fronte j ambeada. . .
Enfadou-se ? Meu Deus, eil-a que chora,
Pois cahio-me o pincel; que mo ousada !
Pintar de noite o levantar da aurora . . . !
O melhor meio de dar a conhecer um
brilhante mostra-lo. Em tal intuito, para
bem se apreciar a poesia em Jos Bonifcio,
118
seria mister, no gnero gracioso, alm d'0
retrato, mostrar, verbi-gratia, O p, e no
gnero pico-lyrico fazer lr Primus inter
pares e O Redivivo, pelo menos. Ver-se-
hia ento como a lingua progrediu em am-
plitude, flexibilidade, colorido, movimento ;
ver-se-hia tambm como' o lyrismo amo-
roso foi-se tornando cada vez mais ardente,
mais intenso, chegando a ficar n'alma de
alguns temperamentos verdadeiramente me-
ridionaes, por assim dizer, tempestuoso, al-
lucinado,
Luiz DE LPHI NO DOS SANTOS nascido em
Sancta Catharina em 1834 e ainda vivo, ,
pela variedade e extenso de sua obra, o
maior poeta do Brazil. Infelizmente suas
innumeraveis produces andam esparsas
pelos jornaes e revistas. No tem um s
livro publicado.
Sua carreira divide-se em duas phases
perfeitamente distinctas : na primeira, que
distende-se por mais de vinte annos (1855
ou 56 a 1879 ou 80) o poeta quasi nada
salientou-se, passando quasi despercebido
no meio da indifferena geral. No que
lhe faltasse o talento para tornar-se de
chfre to conhecido e estimado quanto
Gonalves Dias, Alvares de Azevedo, Lau-
119
rindo Rabello, Jos Bonifcio, Casimiro de
Abreu, Fagundes Varella ou qualquer dos
outros seus coevos ; que o poeta, preoc-
cupado com as labutaes de sua grande
clinica, porque elle um d6tincto medico,
muito pouco publicou de suas composies
d'aquelle tempo e isto mesmo de longe em
longe.
E' o perodo de seu semi-condoreirismo.
Mas de 1879 em diante as cousas tomaram
outro aspecto ; o poeta comeou de atirar
sobre o publico as jias de seu escrinio, e
raro ha sido o dia que no tenhamos ad-
mirado as suas notveis qualidades de ly-
rista no correr dos dous ltimos decennios
do sculo expirante. E o perodo parna-
siano. N' um trabalho do gnero deste
impossvel traar a characteristica de um
poeta como Luiz Delphino, tal a varie-
dade de sua produco. Contentamo-nos
em affirmar ser elle de todos os nossos
poetas, sem duvida, o de mais imaginao, '
o de surtos mais possantes, e talvez o de
vocabulrio mais rico. A primeira phase
est bem representada em Solemnia Verba,
a segunda pde ser bem apreciada em An-
gustia do Infinito, Cidade de Lus, Trs
irms e duzentas outras peas de primeira
120
ordem. Uma pequena amostra de estylo
d'entre as mltiplas manifestaes deste
talento :
Foi festa e grande em toda a Cachemira,
Quando chegou montada no elephante.
Vio-se em leve sandlia <\e saphira
O seu p de uma alvura deslumbrante.
Colhendo as sedas, sua mo ferira
Com luz nevada a multido, deante
Da qual o rosto apenas descobrira
Na sombra do riqussimo turbante.
Mas quando viram seus nevados seios,
Brancos, riscados de azulados veios,
Croados d'uma aureola de cabellos,
Tnues fios de estrella que irradia. . .
Para no offendel-a luz do dia,
Fugiram delia ao trote dos camellos,
Nada ha a dizer de Pedro Luis Pereira
de Sousa como um dos precursores da ma-
neira hugoana entre ns. Produzio quatro
ou cinco poesias, mais declamatrias de que
sentidas, de cunho meramente poltico, e
no deixou uma s pea de doce e delicado
lysismo. Muito maior do que elle, naquella
121
direco foi Jos Maria Gomes de Sousa,
poeta sergipano, desconhecido, dos proceres
da critica indgena.
2^1
O encadeamento dos factos leva-nos a
dizer da poesia nos trez notveis predeces-
sores do parnasianismo : TE I XE I RA DE
MELLO, MACHADO DE Assis e Lu i z ' GU I -
MARES JNIOR.
O primeiro destes poetas nunca teve no
Brasil a importncia de que merecedor.
Sua poesia tem uns toques to suaves, to
doces, to delicados, que no sabemos de
outro que o sobrepuje por esta face. O seu
livro Sombras e Sonhos um dos mais
mimosos que j uma vez foram escriptos
por mo de homem. Temos ufani de haver
sido o primeiro a despertar na Historia da
Litteratura a atteno para elle.
O que individualiza e distingue as feies
da poesia de Teixeira de Mello certa sin-
gularidade, certa elevao graciosa e meiga
das phrases, certa garridice das imagens;
1 22
alguma cousa que lembra Victor Hugo nos
bons tempos, quando no tinha ainda gon-
gorismo a penna com que escreveu Sara
Ia baigneuse e outras jias de igual qui-
late. E como o principal mostrar aqui a
evoluo da frma, indicaremos alguns tre-
chos que documentaro nossos assertos.
Ouam :
Tinhas ento no olhar a morbideza
Da infncia que presente a mocidade ;
Tinhas na fronte o sello da belleza
E n'alma a sombra vaga da -saudade.
Amemos como luz as mariposas,
Como a flor ama o orvalho que a remoa !
Amar no topar pela existncia,
Como a topaste, um'alma irm da nossa ?
Ou isto, que ainda melhor:
Onde haja musgo em que tea
Um ninho em que eu adormea
Com meus amores implumes ;
Onde no vinguem espinhos,
Onde o sol entre carinhos
Viva de azul e perfumes.
123
Procurai no mundo todo
Um ponto, per'la no lodo,
Onde o amor fosse verdade !
Onde a vida fosse um lago !
Nosso baixei um afago !
Nossa brisa. . . a' mocidade !
Ou estas quadras da poesia Lua:
T passas na, escabellada e muda,
Levada em braos de milhes de anjinhos,
E vais, quem sabe ? te banhar nos lagos
Em que lavam-se o sol e os passarinhos. . .
Eu te vejo passar, to perto s vezes,
No meu deserto, fugitiva embora!
Tu s o cysne que em meus cantos canta ;
Tu s a amante que em meus prantos chora !
Ou finalmente:
Tens perfumes na voz que embriaga ;
Como os anjos tu cantas fallando,
E dos seios na tumida vaga
Tens perfumes que alentam matando. . .
Tens perfumes na bocca mimosa,
Que um azul beija-flor do vergel
J tomou-a por folhas de rosa
E ma ahelha por favos de mel.
124
So -fragmentos citados a esmo, e que de-
monstram outra peculicar qualidade da poe-
sia de Mello ; a correco da lingua e da
forma mtrica. O poeta impeccavel ;
um primoroso romntico e um verdeiro
precursor dos parnasianos modernos.
Podemos s por elle aquilatar do pro-
gresso da poesia brasileira em trez sculos
de vida. No regimen clssico a lingua no
tinha essa elasticidade, essa flexibilidade,
esse doce torneio, essa capacidade capri-
chosa e ondulante de ostentar-se em bellas
phrases.
Em MACHADO DE Assis, o poeta das
Chrysalidas, das Phalenas, e das Ameri-
canas, a poesia ostenta egualmeute grande
correco de frma, quanto linguagem e
quanto mtrica.
O poeta, mais illustre como prosador,
acatado como um dos melhores mestres,
talvez o melhor na opinio de muitos, do
romance nacional. Na poesia no nos pa-
rece to distincto quanto o auctor de
Sonhos e Sombras ; pelo menos no to
sentido, revelaudo-se muito mais frio. Nos
ltimos annos tornou-se um completo par-
nasiano, ad instar de Luis Delfino, pro-
puzindo, porm,' muito menos do que elle e
125
por modo e estylo diverso. A esta ultima
phase pertencem duas pequenas peas Cir-
culo vicioso e A Mosca asai, que os seus
admiradores citam a cada passo, como mo-
delos inexcediveis. Achamos, por nossa
parte, que a poesia nacional nos modernos
tempos possue pioduces bem mais not-
veis.
Eis aqui o famoso Circulo vicioso :
Bailando no ar, gemia inquieto vagalume :
Quem me dera que fosse aquella loura estrella,
Que arde no eterno azul como uma eterna vela !
Mas a estrella fitando a lua, com cime :
Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
Que da grega columna, gothica janella,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bella !
Mas a lua, fitando o sol com azedume :
Msero ! tivesse eu aquella enorme, aquella
Claridade immortal, que toda luz resume !
Mas o sol, inclinando a rtila capella :
Pesa-me esta brilhante aurola de nume. . .
Enfra-me esta azul e desmedida umbella. . .
Porque no nasci eu um simples vagalume ?
126
correcto e bem feito ; porm no lhe
vemos essa rara profundeza que tanto em-
bevece os euthusiastas. Machado de Assis
ficar como prosador, como quem mais
fundo penetrou no romance e no conto os
abysmos d'alma humana. No pequena
gloria, como se ver adiante.
Luiz CAETANO P. GUIMARES JNI OR
(1844-1898) era mais moo do que Tei-
xeira de Mello (1833) e Machado de Assis
( 1 839). Estes vivem ainda e elle j falleceu-
Sua actividade potica, como era natural,
principiou mais tarde. O lyrista das Som-
bras e Sonhos comeou em 1855 ou 56 ; o
cantor d'A Mosca asul em 1857 ou 58.
Luis Guimares s deu inicio sua car-
reira em 1862 ou 63. Deixou-uos dous
livros de versosCorymbos e Sonetos e
Rimas.
O primeiro representa a phase em que
poetou no Brasil (1862-72), o outro o pe-
riodo em que residiu na Europa em car-
reira diplomtica.
No primeiro, menos brilhante pela frma,
a poesia mais espontnea, mais sincera,
mais sentida. Sob tal feio os Corymbos,
so superiores aos Sonetos e Rimas. Estes
revelam mais apuros e requintes de frma ;
127
aquelles mais alma e esta de mais valor,
ainda mesmo em poesia. Os Corymbos so
o repositrio dos cantos do poeta dos de-
zoito aos vinte e cinco annos, quando elle
no tinha ainda aprendido' na diplomacia
a arte das frmas polidas, aptas a esconde-
rem e refolharem o pensamento e o sentir.
Como factura, como mo d'obra, como
producto de ourivesaria os Sonetos e Rimas
deixam os Corymbos muito a perder de
vista ; como expresses 'francas de um'alma
de rapaz, estes, repetimos, ganham a palma.
Luiz Guimares no era uma intelligen-
cia apta para a sciencia, a critica, a philo-
sophia, as especulaes, que exigem pro-
funda tenso de espirito. Os gneros que
lhe ficavam de molde eram a poesia ligeira,
o conto rpido, o folhetim minsculo. A
primeira que lhe assentava melhor. Em
seus livros de versos no se encontram
produces ms ; porm no se nos depa-
ram muitas que sejam verdadeiramente su-
periores e imponentes. No ultrapassa certa
altura no vo ; sobe bastante, certo, mas
no se perde nas nuvens.
No produz brilhantes raros engastados
em finssimo ouro ; espalha rubins, turque-
zas, saphyras e topazios em graciosas jias
128
de ouro mdio e*faz deliciosas filigranas de
boa prata.
Mas verdade que no desce ao estanho
e ao cobre. No poeta para nos alentar
nos momentos das grandes dores, das fundas
crises do corao ; um diligente e pra-
zenteiro camarada por certas horas de des-
cuido ou de enfado. Ouamo-lo nos re-
quintes da su' arte :
Emquanto os meus olhares fluctuavam,
Seguindo os vos da erradia mente,
Sob a odorosa cupola fremente
Dos bosques onde os ventos susurravam.
Ouvi fallar. As arvores fallavam :
A secular mangueira fielmente
Repetia-me o branco idylio ardente
Que dous noivos, tarde, lhe contavam ;
A palmeira narrava-me a innocencia
De um puro e mutuo amor, sonho que veste
Dos loiros annos a feliz demncia ;
Ouvi o cedro, o coqueiral agreste,
Mas excedia a todas a eloqncia
D'uma que no fallava : era o cypreste.
129
Luiz Guimares estudou direito no Recife
entre 1864 e 1869 ; assistiu alli ao desen-
volvimento da eschola que ficou denomi-
nada na historia a eschola condreira,
em que tomou parte mais ou menos dire-
ctamente.
ZHZII
Foi o ultimo movimento effectuado em
nossa poesia dentro dos limites do velho
romantismo. Seus representantes foram :
Tobias Barreto, Castro Alves, Victoriano
Falhar es, Castro Rabello, Plinio de Lima
todos no Recife, e a que se podem ligar
no sul Eleseario Pinto, Carlos Ferreira,
Mucio Teixeira, este no primeiro de seus
livros de versos.
A intuio e a maneira do grande poeta
das Orieniaes j tinha tido, como dissemos,
precursores entre ns em Maciel Monteiro,
Jos Bonifcio, Luis Delfino, Pedro Luis
e Jos Maria Gomes de Sousa, todos mais
ou menos intercorrentemente e com talentos
deseguaes.
13(1
Como eschola, conscientemente, com es-
tylo assentado, com determinados ideaes e
com um grupo de pelejadores, que vieram
a influir por todo o Brasil, foi evoluo le-
vada a effeito em Pernambuco entre 1862 e
1870. Neste ultimo' auno comearam as
reaces contra o romantismo em geral e
especialmente contra a ultima de suas ma-
nifestaes.
TOBIAS BARRETO DE ME NE ZE S (1839
89) foi -um talento de fortes qualidades
communicativas ; era um reactor, um abridor
de caminho. D'ahi a influencia que exer-
ceu nas trs espheras principaes de activi-
dade a que se dedicou e que correspondem
a trs epochas perfeitamente' distinctas de
sua vida : a poesia, na primeira phase do
Recife de 1862 a 1870 ; a critica de philo-
sophia e de litteratura, no perodo da Es-
cada de 1871 a 1881 ; o direito, no ultimo
estdio recifense de 1882 a 1889.
Agora s, temos de ver e muito rapida-
mente o poeta, um dos maiores que o Brasil
tem possudo, em que peze a ferrenhos ad-
versrios que possue, e coutar ainda por
muito tempo. Ha da parte desses irredu-
ctiveis uma perfeita mania que lhes obscu-
rece o espirito e os faz negar o mereci-
131
mento de um dos homens mais eminentes
deste paiz. Fazem-no sempre desasada-
mente, porm incessantemente : uma ver-
dadeira obsesso.
Os grandes poetas das primeiras phases
do romantismo ou j tinham fallecido, ou
estavam mais ou menos mudos, quando foi
iniciado o movimento condoreiro. O syn-
chretismo dos factos mostra-nos que Ma-
chado de Assis, Fagundes Varella e Tobias
Barreto comearam pelo mesmo tempo.
Castro Alves seguiu lbgo immediatamente,
e o mesmo foi o caso de Luiz Guimares..
Como se est a ver, so cinco individuali-
dades ^ notveis que representaram os foros
de nosso lyrismo no decennio que vai de
1860 a 1870. A poesia em Tobias Barreto,
comquanto elle no tivesse escripto muito
asss variada em suas feies. Se qui-
zerdes a nota synthetica da evoluo hu-
mana, tendes nesse grandioso Gnio da
Humanidade ; se preferirdes a nota huma-
nitria, tendes ri'A Caridade ; se procurardes
a nota liberal em prol dos povos captivos,
acha-la-heis na ode A' Polnia ; se vos
aprouver a nota patritica, l est ella em
A' Vista do Recife, em Sete de Setembro,
em Os Voluntrios Pernambucanos, em
- 132
os Lees do Norte, em Capitulao de
Montevidu ; se for mais de vosso agrado
a nota tribunicia contra os mos governos,
vos apparecer em Decadncia ; se dese--
jardes a nota philosophica, Ignorabimus
vo-la dar ; se vos lembrardes da nota ser-
taneja, ouvi-la-heis em Os Trovadores da
Selva, Anno Bom e Os Taburos ; se
acreditardes ausente a nota psychologica,
vos apparecer em Vos e Quedas, Lutas
d'Alma e outras ; se duvidardes da nota
naturalista, est manifesta em Lenda Civil
e Lenda Rstica ; se gostardes da nota de
pura effuso esthetica, deveis ler A Mr.
Reichert, A F. Monis Barretto, A' Senes-
pleda, A' Cortesi, e muitas mais ; se antes
de tudo prezardes nos poetas a nota amo-
rosa, tendes Leocadia, Pelo dia en que
nasceste, Idia, Como ? Incrdula, Com-
templao, e vinte outras ; se julgardes que
todo poeta deve ter uma nota cmica, lede
O Rei reina e no governa ; se, fi-
nalmente, acima de tudo collocardes o ly-
rismo innominado em sua delicadeza iudefi-
nivel, encontra-lo-heis em O Beija-Flor,
O Beijo, Por brincadeira. . . Como nosso
fim principal, conforme havemos declarado
por vezes, mostrar a evoluo especial-
133
mente na frma, limitamo-nos aqui a um
s exemplo ; Leocadia :
Livro de luz, em que o Senhor medita,
E s mos dos anjos no dado abrir,
Onde as estrellas aprenderam juntas
Com as rosas puras a chorar e a rir ;
Alma, que d-se em alimento s flores,
De cuja essncia a creao trescala,
Ingnua e cndida, escutando em sonhos,
A voz da santa, que do co vos falia. . .
Vs sois 'na terra a incarnao brilhante
Do sacro amor que a vossos pes adita,
Rutila estrophe de um poema d'ouro,
Livro de luz em que o Senhor medita. . .
Lagrima d'alva, que no seio calido
Da nuvem rubra vos deixou cahir,
Pagina alvissima em que Deus escreve,
E s mos dos anjos no dado abrir.
Virgem serena, a cujos olhos tmidos
A lua gosta de fazer perguntas,
Biblia celeste de mysterios castos,
Onde as estrellas aprenderam juntas
Com as brisas tnues, a dizer as queixas
D'alguma dr que s Deqs pde ouvir,
Com as onda crulas, com as auroras pallidas,
Com as rosas puras a chorar e a rir ;
1 34
Fronte em que passam d'outro mundo as scismas,
Rosto banhado em matinaes albores,
Peito onde arquejam do infinito as vagas,
Alma que d-se em alimento s flores,
Mimo do sol, que vos attrahe os raios,
E as vossas graas pelo eco propala,
Vs sois a alvura dos eternos lyrios
De cuja essncia a creao trescala.
E quo piedosas no sero as preces
Dos vossos lbios divinaes, risonhos !
Trancas esparsas, joelhada, esttica,
Ingnua e cndida, escutando em sonhos,
Por entre os cantos das espheras lcidas,
E os ais sentidos que o universo exhala,
E os sons mellifluos do psalterio anglico,
A voz da santa que do co vos falia ! !
Temos n' estes versos, verdadeiramente
sug.-4e.stivos, uma antecipao do lyrismo
symbolista e encantador de Cruz e Sousa,
tanto verdade que as escholas se vo
prendendo umas s outras pelos elos pro-
fundos do pensamento, que se desdobra e
evolue. Citamo-los de preferencia a quaes-
quer outros puramente condoreiros. E que
o poeta dos Dias e Noites , a nosso ver,
mais para ser apreciado em suas produces
suavemente delicadas, do que nas epico-
lyficas.
135
E mais no nos estenderemos, por evitar
a v censura de pretendermos collocar To-
bias Barreto acima de todos os escriptores
brasileiros, quando apenas temos procurado
v-lo no logar que lhe compete. O mesmo
fizemos por Gregorio de Mattos que antes
da Historia da Litteratura Brasileira
no passava de um maldizente que se sup-
punha desprezvel ; por Larindo Rabello,
considerado apenas um andarilho pornogra-
phico em o pensar geral ; por Teixeira
de Mello, inteiramente desconhecido como
poeta; por Celso de Magalhes, o roman-
cista do Estudo de Temperamento, o poeta
dos Calhambolas, o critico do Estudo sobre
a poesia popular do Brasil, ainda hoje
quasi de todos ignorado ; por Mello Moraes
Filho, que no era devidamente acatado
como lyrico ; por L. C. Martins Penna,
cujo valor, como documentador de sua epo-
cha, fomos o primeiro a salientar. Limita-
mo-nos a lembrar no nos passarem des-
percebidos os motivos da mania accusatoria
movida ao poeta dos Dias e Noites. Quem
foi o primeiro, entre ns, a bradar contra a
influencia deletria do Rio de Jaueiro, contra
o prestigio o valor dos mestres portuguezes
e, mais ainda, contra a dictadura do pensa
136
mento francez em nossas lettras, no pde
ser
!
um homem querido, um escriptor fes-
tejado. N' este paiz seria um milagre.
ANTNIO DE CASTRO ALVE S (1847-1871),
discipulo do poeta dos Dias e Noites, teve
destino completamente diverso do do mes-
tre : foi sempre o enfant gt dos dis-
pensadores de fama n'este paiz, especial-
mente depois q-ue Jos de Alencar e Ma-
chado de Assis o apontaram admirao
geral.
O poeta, alis, no precisava de taes en-
comios e proteces, por que tinha real-
mente um grande talento. E que ainda os
homens, a despeito de tudo, no apreciam
muito os luctadores solitrios e indepen-
dentes, nomeadamente nas terras onde o
empenho a primeira das foras publicas ;
at na esphera das lettras tem elle a prefe-
rencia a todas as nobres qualidades que um
homem haja de possuir.
Apreciemos a poesia em Castro Alves.
No gnero deixou dous livros ; Espumas
fluctuantes e O Poema dos Escravos. Este
ficou incompleto ; existem apenas dous fra-
gmentos : o episdio d'A Cachoeira de
Paulo Ajfonso e o punhado de poesias sob
o titulo de Manuscriptos de Stenio. O
_ 137
Poema dos Escravos no era na mente do
auctor uma epopia no velho e vulgar sen-
tido, um enredo, uma aco especial, desen-
rolados, por personagens typicos. Era antes
uma colleco de poesias soltas, desprendi-
das entre si, referentes todas, porm, ao facto
social da escravido. E aqui tocamos o in-
timo mesmo do talento do moo poeta.
Quem o l attentamente nota-lhe logo dous
tons fuudamentaes ; o lyrismo gracioso das
paixes, dos amores, das effuses indivi-
duaes e o cantar brilhante do socialista, do
democrata social. As produces em que
predomina o primeiro tom so interessantes,
mas contam muitas congneres na littera-
tura brasileira. Aquellas, em que sobresae
a outra nota, possuem poucas similares
entre ns.
Castro Alves em nossa historia littera-
ria representa um duplo papel. Por um
lado foi o apstolo andante do condorei-
rismo.
No ficou parado no Recife : depois de
ter alli luctado em proF da nova poesia,
passou Bahia e d'ahi ao Rio e a S. Paulo.
Estes so os quatro centros intellectuaes
mais notveis do Brasil ; uelles o poeta
fez-se ouvir e creou adeptos.
138
Por outro lado tomou muito a serio o
seu caracter de poeta e concentrou ahi
todos os esforos e energias de seu espi-
rito. Quiz deixar obra durvel.
Para tanto abandonou por bastante tempo
suas preoccupaes particulares, seus ephe-
meros amores, e lanou olhares curiosos
nossa sociedade. Um facto ahi havia que
o impressionou sobre todos, o facto cruel e
repugnante da escravido ; e tentou fazer o
poema dos escravos.
Ahi vai a sua verdadeira originalidade.
Antes e depois delle, entre ns e no estran-
geiro, alguns poetas tomaram como assum-
pto de seus cantares o phenomeno extrava-
gante do captiveiro. Mas Castro Alves tem
entre todos uma nota especial. bem ver-
dade que no se collocou em o ponto de
vista determinado da escravido brasileira.
Por outros termos, bem verdade que no
fez a psychologia nem a sociologia do es-
cravo, no se poz no meio dos captivos, nos
engenhos e nas fasendas, para lhes photo-
graphar com nitidez naturalistica o viver
pungente e as profundssimas misrias.
O poeta no architectou o romance cruel
e realista dos escravos. No ; seu caminho
foi outro, ensinado, apontado pela ndole
139
mesma de seu talento. Ao poeta bastou-
lhe, para o excitar e commover o facto geral
e indistincto da escravido. S- isto foi
bastante para levantar-lhe o sentimento, e
este sentimento foi a indignao e a cho-
lera. O poeta no desceu a descrever scenas ;
alludiu rapidamente a ellas e supp-las com
razo conhecidas de todos. EUe da fa-
mlia do cantor dos Chatiments; indigna-
se, encholeriza-se e larga o azorrague nos
vejrdugos, nos oppressores dos mseros
captivos.
O espirito de Castro Alves o de um
tribuno, de um agitador ; sua poesia a
expresso natural de seu caracter, de seu
temperamento.
assim um dos mais ntidos exemplares
entre ns do poeta socialista, queremos
dizer, do poeta que em sua arte preoccu-
pa-se com certas idas e problemas que
se agitam na vida poltica e social da
nao.
E no perdeu o seu tempo; bem ao con-
trario, este paiz dever sempre ler, todos os
bellos versos em que elle foi p porta-voz, a
expresso grandiloqua da conscincia da
ptria. Antes da lei de 28 de Septembro
de 1871, que declarou livres todos os nas-
140
ciclos no Brasil, a poesia j se havia hon-
rado com as Voses d'frica e o Navio
Negreiro.
Estas poesias foram avulsamente pu-
blicadas em folhas soltas em 1870 e
1871.
Espalharam-se por todo o Brasil, fizeram
grande sensao em Portugal, onde tiveram
muitos imitadores : foram l decoradas e
recitadas nos sales.
No tero ellas infludo no condoreirisrpo
tardio de Guerra Junqeiro ? Ns o cremos
bem.
Um critico moderno aconselhou cuidado
em distinguir na poesia franceza, especial-
mente na de Victor Hugo, a eloqncia da
genuina e estreme poesia. Esta observao
verdadeira e no pde ser illudida.
Ha muitos trechos na poesia romntica,
repletos de imagens, cheios de sonoridades,
de requebros, de adjectivaes, de apostro-
phes, que so verdadeiros typos, verdadei-
ros especimens de eloqncia. Entretanto,
e por via de regra, nem sempre so os
mais poticos.
Este caracter pertence quelles em quem
se nota mais simplicidade, mais sentimento,
mais vida intima, mais sinceridade.
141 .
Os povos meridionaes, por indole exagge-
rados e propensos rhetorica, quasi nunca
observam a alludida distinco.
Gostam das fortes imagens, dos rendilha-
dos das phrases, do farfalhar das palavras,
de toda a exterioridade bulhenta, emfim.
Por isso entre ns o que mais agradou
de Castro Alves foram os palavres, as
bombas, toda a falsa eloqncia dos versos.
Felizmente salva-se elle na historia,
porque teve o bom instincto de escrever
bellos pedaos de simples poesias.
Os epgonos se apoderaram do falso es-
tylo e o levaram ao requinte do exaggero.
Foi a quarta potncia do gongorismo, ver-
dadeira teratologia litteraria.
Veja-se agora um trecho do bello estylo
do poeta :
Boa noite, Maria. Eu vou-me embora.
A lua nas janellas bate em cheio.
Boa noite, Maria ! E' tarde. . . E' tarde. . ,
No me apertes assim contra teu seio.
Boa noite ! . . . E tu dizes Boa noite.
Mas no digas assim por entre beij os. . .
Mas no m'o digas descobrindo o peito,
Mar de amor onde vagam meus desejos.
1 12
Julieta do co ! Ouve. . . A calhandra
J rumoreja o canto da matina ;
T dizes que eu menti?. . . pois foi mentira !
Quem cantou foi teu hlito, divina !
Se a estrella d'alva os derradeiros raios
Derrama nos jardins do Capuleto,
Eu direi, me esquecendo da alvorada :
E' noite ainda em teu cabello preto. . .
E' noite ainda. Brilha na cambraia,
Desmanchado o roupo, a espadua nua.
0 globo do teu peito entre os arminhos,
Como entre as nevoas se baloua a lua.
E' noite, pois ! Durmamos, Julieta !
Rescende a alcova ao trescalar das flores.
Fechem sobre ns dois estas cortinas. . .
So as azas do archanjo dos amores.
A frouxa luz da alabastrina lmpada
Lambe voluptuosa os teus contornos.. .
Ah ! deixa-me aquecer teus ps divinos
No doudo afago de meus lbios mornos.
Mulher de meu amor ! Quando aos meus beijos
Treme tua alma como a lyra ao vento,
Das teclas de teu seio que harmonias,
Que escalas de suspiros bebo attento !
Ai ! canta a cavatina do delrio,
Ri, suspira, solua, anceia e chora. . .
Marion ! Marion ! E' noite ainda,
Que importa o raio de uma nova aurora ?
143
Como um negro e sombrio Armamento,
Sobre mim desenrola teu cabello. . .
E deixa-me dormir balbuciando :
Boa noite ! formosa Consuelo I
Bellissima poesia, apta a dar uma idia
do estylo do moo bahiense, . quando elle
queria ser delicadamente lyrico. A funco
histrica da eschola condoreira, como j
dissemos vinte vezes, foi arrancar a poesia
nacional da modorra choramigas em que
ella andava a esmorecer e chamal-a a inte-
ressar-se por. assumptos mais humanos, mais
elevados, mais nobres, mais impessoaes,
dando-lhe, ao mesmo tempo, um estylo mais
vibrante e mais largo ! Fechou o. cyclo do
romantismo, como tambm j advertimos.
XIII
'O primeiro brado de alarma contra o
decadente systema no Brasil foi dado pelo
auctor d'estas linhas, que aventou a ida
de mudar a litteratura s velhas trilhas e,
inspirar-se na critica, na philosophia, na
144
sciencia moderna. Era em 1870 e em jor-
naes de Pernambuco. Eis aqui em rpida
synthese o que diziamos pouco mais tarde,
no prlogo dos Cantos do fim do sculo :
A poesia um facto commum, ordinrio,
vulgar, da vida humana, que no deve ter
a pretenso .de exigir inviolabilidades nem
privilgios para si. Como a linguagem,
como a mythologia, como a religio, ella
perdeu todos os ares de mysterio, depois
que a sciencia do dia, imparcial e segura,
penetrou amplamente no problema das ori-
gens. Este resultado foi devido principal-
mente alta critica histrica e philologica,
depois que o sopro das sciencias naturaes
a fez rejuvenescer.
A poesia um resultado da organisao
humana; nada tem de absoluto nem de so-
brenatural ; nada, por outro lado, de des-
prezvel ou repugnante.
No meio das mutaes por que teem
passado todos os ramos do pensamento hu-
mano, qual o estado a que deve ter ella
chegado ? qual o seu caracter de hoje ?
A epocha de Darwin, Moleschott e Bchner,
de Lyell, de Vogt e Virschow natural-
mente a de Comte, Mill e Spencer, de
Buckle, Draper e Bagehot. Estes nomes
145
exprimem a grande transformao das scien-
cias da natureza invadindo a esphera das
sciencias do homem. Todos sabem. que a
religio, a linguagem e a historia, o direito,
a poltica e a litteratura so hoje tractados
por methodo bem diverso daquelle por que
o eram ha trinta annos. Esta nova ma-
neira de sentir e pensar de sbios e philo-
sophos, num tempo como o nosso no fica
incgnita e mysteriosa, sem aco sobre a
massa dos leitores. A cabalistica do sculo
XIX nenhuma : toda descoberta logo
espalhada aos quatro ventos pela voz dos
livros, das revistas, dos jornaes. A popu-
larizao da sciencia um phenomeno dos
derradeiros tempos e a melhor conquista da
repulsa do sobrenatural. A intuio do
grande publico vai mudando, como mudada
ha muito se acha a dos homens competen-
tes. Na evoluo de todas as manifesta-
es espirituaes, a poesia uo pode ficar
estacionaria.
Tem-no, entretanto, ficado em grande
parte ; o mpeto das reformas, pelo menos,
no comparvel ao arrojo romntico do
comeo deste sculo. A reforma dos prin-
cpios ha muito anda feita nos livros de
analyse ; mas a poesia quasi que tem a an-
10
146
tiga toada. A nova intuio potica e litte-
raria nada contar de dogmtico : ser um
resultado do espirito geral da critica con-
tempornea. Acima dos combatentes, sem
duvida necessrios, que, obcecados por uma
vista qualquer particular das novas idas,
falseam a noo do grande todo, esto os
espritos, que se empenham em traar as
grandes linhas do edificio moderno ; acima
de todas as doutrinas est a intuio ge-
nrica da critica. A poesia no pde se
fazer systematica ; conseguir somente em-
beber-se dos grandes princpios da philoso-
phia geral. . . A arte no agora uma ca-
duquice, quando a musica rejuvenesceu e a
poesia attende a todas as perplexidades
contemporneas e sente-se possvel e fe-
cuuda : a arte funda-se hoje na intuio
novssima que a sciencia desapaixonada e
imparcial vai divulgando. Deve ser uma
conseqncia e uma synthese de todos os
princpios que at hoje teem agitado o s-
culo. Palavras estas de 1873, que resu-
miam a propaganda que vinha de annos
antes. Nos Cantos do fim do sculo e
nos ltimos Arpejos o auctor levou a ef-
feito o seu programma de uma poesia phi-
losophica, symbolica e geral.
147
Entretanto, quasi immediatamente duas
correntes inteiramente diversas tinham de
vir mudar a feio das cousas e arrastar
em suas fallaciosas miragens as intelligen-
cias nacionaes, o naturalismo e o parna-
sianismo, isto , aquelle a preteno errada
de querer fazer arte e poesia somente com
a observao e o outro a preteno, no
menos errnea, de querl-as fazer s com
os apuros da forma ! Felizmente o tempo
se encarregou de destruir taes illuses ; e
a novssima e ultima eschola litteraria do
sculo que finda, fez voltar os espritos a
uma concepo da arte que se approxima
muito mais da nossa prpria doutrina do
que das pretenes dos realistas e parna-
sianos.
Nosso systema foi desprezado a pretexto
de obscuro no fundo e descuidoso na
frma. . . Estvamos com a verdade ; era,
porm, impossvel fazer parar a corrente,
nomeadamente na sua feio parnasiana, a
mais fcil e a mais enganadora ; porque
para ella entraram os maiores talentos po-
ticos da epocha : Theophilo Dias, Ray-
mundo Corra, Olavo Bilac, Alberto de Oli-
veira e outros e outros. Pelo que toca a
realismo naturalistico, muito pouco deu de
148 --
si em poesia e foi asylar-se no romance e
no conto, onde tambm pouco prosperou.
Foi, pois, com immenso gudio que se nos
depararam em plena revoluo parnasiana
estas palavras do sr. Annibal Falco no
prlogo das Opalas do sr. Fontoura Xa-
vier : A falta mais grave de toda a litte-
ratura contempornea consiste em confundir
os diversos elementos da elaborao arts-
tica, dando preeminencia aos dous inferio-
res, isto , ora expresso, ora obser-
vao. Desta frma prejudicada a idea-
lisao, operao essencial da poesia. . .
A critica acerba do moo pernambucano
passou despercebida, e o erro proseguiu
impvido, at que os symbolistas entrassem
na arena e limpassem-na das velhas preten-
es emperradas. Como amostra de nossa
intuio, e para que se veja que no era
l to abstrusa de sentido e to descon-
certada de frma, aqui vai o que es-
crevemos d! Alma, scilicet, do mytho de
Psych :
Aqui da fronte que desponta a aurora,
Aqui do peito s que o amor se exhala. .
Grega sublime, Psych formosa,
N'um sonho doce quem te ouvira a falia,
149
O riso meigo, o harmonioso anceio
Dos teus enlevos ! Nas madeixas tuas,
Ah ! quem pousara d'um suspiro, ao menos,
O tnue mimo nas espaduas nuas !
Mas, sonhadora, que altivez essa ?
Deixando os lbios, vaes beijar as flores ?
D que o teu seio, deslumbrante e meigo,
Nos mostre a vida dentro em seus fervores.
O vento fresco das manhs saudosas,
O azul da vaga, que desperta agora,
Todo o sussurro que os jasmins despedem,
Por tuas graas que tudo adora. . .
Oh ! bella imagem das ternuras brandas,
O teu perfume pelo co foi feito :
Tu, que acordaste d'uma scisma aos frocos
Envolta e nua do sidereo leito,
Lindo o teu corpo, que as paixes desfolhas,
J de cansadas de te ver ausente,
Dize : nas dobras de teu seio occultas
Tambm uma alma no palpita e sente ?
Como que a vida se evapora em risos
L no sacrario dessa noiva santa !
A nuvem loura dos cabellos soltos,
Rosada a boca, que as manhs encanta,
Inda mais bella se s estrellas falia,
No. . . no tudo. . . mas o puro espanto
Dos seus olhares que reflectem mudos
A gloria e a sorte em. divinalquebranto t
150
Sim, ver-lhe o corpo, na expresso d'um sonho,
Tingida a neve pela cor das rosas,
To transparente, que sua alma em extasis
Mostra-se toda nas feies mimosas ;
Ver como um susto lhe descora a face,
Como um anhelo lhe entumece o seio,
E' ter a fronte mergulhada em brilhos,
Longe os mysterios desvendando a meio.
Sentir-lhe a vida perfumosa, em ondas
Rolando cheia, borbulhando flores,
E sob o collo lhe vr a alma aberta
Em seus effluvios, dentro em seus fulgores,
Bello espectaculo ! E como todo riso
So devaneios e caprichos vagos,
Como os desejos so ondulamentos
D'alguma idia que suspira affagos ! . . .
O co brilhante dessa plaga hellenica
Sopra a bafagem perfumosa e amena ;
E l dos astros desce o encanto fulgido,
A paz, a calma, a mansido serena,
E com os enleios de sera languida,
E com os arroubos de baechante louca,
Todos os sonhos, palpitantes, tumidos
Abrem as az as. . . A amplido pouca !. . .
E' d'Alma a empresa. Que expanses suaves !
Assim Homero devassava a sorte ;
Plato entrava na sortida, s vezes,
Trazendo sempre mais um raio forte.
151
Aqui d'America, n'agitada arena,
Cada um suspiro traz um co no fundo,
A cada idia no sacia um astro,
Que ns sentimos vacillar o mundo. . .
Ah ! ns provamos que o tufo, que passa,
Traz-nos de longe alguma nova infinda ;
Que a flor aberta madrugada amvel,
Sabe um segredo que no disse ainda.
Voae, desejos, aquecei-vos todos
A' luz sagrada cfeste sol que brilha ;
Mas que parece que tambm procura
D'outras grandezas a sonhada trilha !
Ou nos enganamos muito ou esse mixto
do mytho da Psych da velha Grcia e das
esperanas e ousadias da joven America,
alliana do passado e do futuro, espcie de
symbolo do progresso, no deixa de ter
algum valor, e, como fundo e forma, no
achamos que tenha desmerecido do aprumo
a que tinha chegado a poesia nacional. Os
inimigos do critico puderam livremente
vingar-se no poeta. Mas, como quer que
seja, espcie de conceptualismo philoso-
phico, de que fomos arauto na lyrica bra-
sileira, teve outros sectrios, sendo os maio-
res delles MARTINS JNI OR e TE I XE I RA DE
SOUSA, E' uma corrente litteraria que tem
152
fortes laos de unio com a eschola realis-
ti^e-socialista, que se lhe formou ao lado.
Jos E DUARDO TE I XE I RA DE SOUSA na
ordem chronologica antecede a Jos Isidoro
Martins Jnior. Publicou, principalmente
na Ida, revista litteraria, em 1875, algu-
mas poesias, onde se nos depara elevada
intuio philosophica. As principaes so :
Naturae Vox, Os Dous Amphitheatros,
Terribilis Vox, Redempo, Que ser ?
Aquarella, Excelsior, A Vos do porvir,
Cano do patriota, e poucas mais. De
todas, as melhores so as duas primeiras.
Parece-nos haver elle compreheudido a dou-
trina da poesia scientifica ; porque v-se
bem claro no pretender fazer sciencia em
verso, e sim pura e -simplesmente levar para
os domnios da arte a ampla intuio, a vi-
sualidade subjectiva inspirada pela sciencia
e pela philosophia. Eis aqui um trecho
tirado d'Os Dois Amphitheatros, uma das
poesias do gnero mais bellas que existem
em lingua portugueza ; o poeta falia do
Colyseu e da Igreja :
Eil-a a enorme ellipse em mrmore talhada !
Abobada de p, arcada sobre arcada,
E mil symbolos d'ouro, emblemas e floreios
Em torno cplumnata, a descreverem veios
153
Artsticos, subtis, corynthios, jonios, doricos,
E em cada capitei poemas allegoricos,
Onde ainda se v, trazendo rico espolio
De mais uma conquista ao alto Capitlio,
Se debuxar, a par do mytho olympian,
O carro triumphal do imperador romano.
Aqui est de Marte o carrancudo busto,
Alli a fronte esbelta e bacchica de Augusto.
Abala o amphitheatro a turba em vozeria :
< Ave Cezar ! - E o rei na excelsa galeria,
Como o co que fareja inanimada caa,
Srri-se prazenteiro toda populaa.
D signal o pretor, e das jaulas na arena
Atira-se um leo frente de uma hyena.
Medem-se n'um momento os rudes combatentes,
As caudas ferem o ar, rosnam por entre os dentes ;
E, como se um tufo roncasse nas collinas,
Lana nuvens de p o sopro das narinas.
Arremettem de encontro os feros animaes ;
Chocam-se a lacerar aquelles dous rivaes,
E ttonitos de p, estacam de repente
Co'a celeuma que se ergue festival, remente
Da plebe que os receia, applaude e surprehende.
Por todo o circo, ento felino olhar se estende,
Olhar que em cada uma esplendida pupilla,
D'envolta com o desprezo, a clera fuzila !
O sangue lhe rebenta em jorros das mandibulas
Que batem-se a ranger sem descansar estridulas !
E trava-se de novo a interrompida luta !
As fauces o leo a escancarar, j nuta !
Mas volta-se de um salto, a redobrar de esforo,
E no contrario flanco e no contrario dorso
Crava de uma s vez as aguadas garras.
154
Do povo o borborinho estronda em algazarras
Que ao brbaro duello os animaes aujam !
As feras rebramindo ennoveladas pulam ;
Rolam ambas por terra e ambas de p logo
Ensaiam novo ardil n'aquelle feroz jogo :
At que um uivo surdo, extremo, vacillante,
Mostra a victima exangue, inerme, agonisante,
Cahir no ultimo arranco, os msculos desfeitos,
Inerte o corao nos descarnados peitos !
Era um lago de sangue, a revolvida arena
E o vencedor leo rugia pela scena !
Um moo gladiador e prncipe que era
Ao circo se arremessa e desafia a fera.
Ao ver que luta nova estava a ser travada
Expande-se em delrio a turba enthusiasmada.
O joven soberano, o cortezo mendigo,
Que esmola uma coroa ao Cezar, seu amigo,
Arrosta do animal a rabida ameaa :
Explora lisongeiro a cobiada graa,
E ao protector monarcha o seu valor attesta.
Era mostrar-se o sol no co daquella festa !
Como que adormecendo gloria indifferente,
Ou a pensar talvez na sorte inconseqente,
O intrpido animal fora deitar-se ao fundo.
O altivo imperador ostenta-se jocundo !
Elle recusa o repto ! *> exclama a turba louca.
Anima-se o mancebo, avana at a bocca
Do vencedor feroz e o gladio seu embebe
Na espessa e crespa juba em que veloz recebe
O rpido leo o golpe sem effeito.
O prelio ia ferir-se a peito contra peito !
Dupla animalidade em um s corpo finge
Aquelle grupo em terra a semelhar esphinge !
155
Acaso as foras d'alma, as foras da matria,
Do espirito o sentir, o circular da artria
No pleiteiam tambm contenda to renhida
No ergastulo fatal do que se chama a vida ?
Lutar para viver no esta a divisa
Que a natureza em tudo eterna symbolisa ?
D'um lado a intelligencia e d'outro lado o instincto,
Quem o laurel teria em rubro sangue tinto ?
De Lacoonte a fria se estorcendo em dores
Parecia o arfar dos dois batalhadores !
Jpiter o sustem ! condul-o alguma Da
Qual Hercules outr'ora aos bosques de Nema !
Attenta cruel pugna a multido murmura.
Apraz-se inda o leo e o prelio, ento, perdura
Indeciso, tremendo, incrvel e assombroso !
Mas como sempre vem o enjo apoz o gozo,
Aquelle que mais fora e armas tem comsigo
Estreitamente aperta o peito do inimigo,
Os ossos seus esmaga, as carnes dilacera. . .
Assim inda esta vez ganhava o pleito a jera !
A juba a sacudir que sangue e p espalha,
Domina o animal o campo da batalha ;
Rodeia ento a presa e irnico a amima ;
Fareja a regia fronte e assenta a pata em cima.
Applauso sobre applauso em frenesi resa !
Ribomba pelo circo, estronda, alm echa 1
O Cezar de sua festa enthusiasmado, ufano,
Decreta ao vencedor o titulo de romano.
A' scena da decrepitude romana oppe o
poeta a florescncia da Igreja humilde e
perseguida ; porm mais tarde, por sua vez
156
perseguidora e atroz. Sentimos no dar o
quadro inteiro.
MARTINS JNIOR, alm de haver publi-
cado as Vises de hoje, Estilhaos e Tela
Polychroma, escreveu, sob o titulo d'A
Poesia Scientifica, um opusculo, defendendo
esta corrente na arte moderna.
Declara nesse liyrinho de combate que
ns e Teixeira de Sousa fomos apenas pre-
cursores da doutrina no Brasil, cabendo-lhe
a elle o ter penetrado mais fundamente o
sentido da eschola. Pde ser ; continua-
mos, porm, a acreditar andarmos ns mais
bem avisados em dar poesia apenas de
ieve a intuio philosophica, por meio de
symbolos, de modo a no perder ella sua
natural feio lyrica e artstica, do que
chamando-a a immiscuir-se directamente em
problemas e debates da sciencia. Tal a
razo por que, no citado prlogo dos Cantos
do fim do sculo, tnhamos dicto : A
algum juizo, pouco esclarecido, a these ca-
pital, que temos desenvolvido, poder ser
tomada pelo diactismo potico. Ser uma
bem grave dissonncia. Temos horror
poesia didactica ; quem leu Shakespeare,
quem leu Schiller sabe s detesta-la. A
poesia indomita, a nica que pde viver,
157
riso, delrio. Eschylo e Dante so dous
visionrios. Ao menos no deve ella despir
sua roupagem de encantos, deixar aquelle
ar de gracejos que parece sahir dos lbios
de uma deusa.
A sciencia toda grave ; seu methodo
deve ser o jogo de princpios incontest-
veis ; a prosa a sua natural expresso,
prosa severa como as correces que sabem
ter as idas claramente definidas numa ca-
bea de sbio. Nada pde emprestar
arte, alm da grande intuio do mundo
e da humanidade. E quanto lhe basta
para alar o vo, despreoccupada e fecunda.
O poeta deve ter as grandes idas que a
sciencia de hoje certifica em suas eminn-
cias ; no para ensinar geographia ou
lingstica, prehistorica ou mathematica ;
mas para enlevar o bello com os lampe-
jos da verdade, para ter a certesa dos
problemas alm das miragens da illuso.
Nada mais claro e mais verdadeiro. Em
cada um dos themas idealizados nos Cantos
do fim do sculo disfaramos symbolica-
inente a ida scientifica sob as roupagens
do lyrismo, Parece-nos que Martins Jnior
no conseguiu o mesmo nas Vises de hoje,
onde o elemento scientifico suffoca a poesia.
158
Felizmente, em composies mais novas o
poeta tem evitado esse defeito e se appro-
ximado da doutrina por ns indicada.
o que se nota principalmente em Tela
Polychroma. Eis uma amostra de seu es-
tylo nas Vises de hoje :
O' lei da evoluo, lei do progresso ! Ateaste
No meu craneo uma luz, alegre como a haste
Que num dia de festa erige uma bandeira !
Ensinaste-me como a infinita fileira
Do povo foi subindo, erguendo-se na Historia,
At se transformar nessa soberba gloria
Que hoje explende ante ns, impondo aos derradeiros
Reis a submisso intil dos cordeiros !
Mostrando-me primeiro os tempos tenebrosos
Em que a Egreja e o Throno, os dous cruis esposos
Riam cynicamente em cima das torturas
Que faziam soffrer s tristes creaturas
Bafejadas ao ar de crena differente
Ou nutridas de um sangue herico, inconfidente ;
Apontando depois ao meu olhar afoito
O crepsculo bom do Sculo Dezoito
Onde, como um corisco em mo do velho Jove,
Fuzilava, bramia o rubro Oitenta e Nove ;
E afinal me indicando o, sol Noventa e Trs,
Mostrando-me como que as antiquadas leis
Fundem-se ao crpitar da clera do povo,
Quando ella irrompe atroz, viva como um renovo
De arbusto, num jardim. . .
pozeste-me deante
159
Uma cousa ideal, translcida, gigante,
Que eu no vejo sem ter os olhos offuscados
E sem o enthusiasmo erguer-me n'alma brados !
Esse aliquid kigente^ ( O' lei ! eu te agradeo ! )
E' da edade moderna o rutilo cabeo
Onde est, como um astro a descrever a ecliptica
E a brilhar, do Presente a synthese poltica !
Aqui as idas so to elevadas e revo-
lucionrias como as de Teixeira de Sousa i
mas a poesia um pouco inferior.
IV
O segundo movimento de reaco contra
o romantismo foi, pelo mesmo tempo em
que se desenvolvia a eschola philosophica,
o que se poderia chamar, como propuzemos
linhas acima, a eschola realistico-social,
com os nomes de Celso de Magalhes,
Generino dos Santos, Sousa Pinto, Car-
valho Jnior, Fontoura Xavier, Lcio de
Mendona, Assis Brasil, Augusto de Lima
e outros. Medeiros e Albuquerqtie filia-se
neste grupo.
160
Impossivel estudar um a um todos
estes poetas. Ha entre elles um to pro-
nunciado ar de famlia, que ler um quasi
ter lido todos. E, todavia, cumpre dizer
que em Celso de Magalhes e Sousa
' Pinto predomina um realismo velado, doce,
filho da observao, certo, porm sem de-
masiadas cruezas.
Em Generino dos Santos e Augusto de
Lima, certa nota philosophica, uo primeiro
muito systematica, no segundo mais ampla
e desprendida da eiva da eschola. Nos
outros a nota poltica tem a preferencia :
menos Carvalho Jnior, onde impera o
realismo mais cr. Indicaremos uns exem-
plos para documentar a evoluo. Eis aqui
a Flor Agreste, de SOUSA PI NTO :
A casinha no alto da collina
Esconde-se entre os galhos da mangueira,
Fica ao lado uma roa pequenina
Onde cresce abundante macacheira.
Uma gentil morena e que mo fina !
Assentada da porta na soleira,
Agita com pacincia femenina
Os bilros d'almofada costumeira.
161
L no fundo uma velha entre as gallinhas
Espalha a refeio de espao a espao
Em pores economico-mesquinhas.
Chega um rapaz de foice sob o brao,
Diz moa : Bons dias, Mariquinhas
E atira-lhe uma rosa no regao.
Falle agora a musa philosophica de AU -
GUSTO DE LIMA. Eis aqui :
Illuses que eu amei ao despontar da vida,
Bonanosa esperana, esmeraldino mar.
Em que vogou meu bero virao querida
De suspiros de amor ; oh ! aves de meu lar,
Jardins que alimentou a caricia materna ;
Flores que desfolhei, cantando e rindo luz
De aurora fulgurante e que eu julgava eterna !
Um momento deixai vossos nimbos azues,
Onde, ha muito dormis, e vinde, em revoadas,
Robustecer-me a crena, encher-me o corao,
Deslumbrar-me na luz de vossas alvoradas
E povoar emfim a minha solido.
Multiplique-se em vs minha alma a cada passo,
Como a cr no crystal prismatico^^o espao
E haura em vossa memria o intrpido vigor,,
Para sempre me achar, valente luetador,
Da vida social na porfiada lia,
Ao lado do Dever e ao lado da Justia.
11
M<2
Vs sois o meu passado e sois o meu porvir,
Ensinando-me o Bem e dando-me a sentir
A eterna aspirao, que o homem nunca perde,
Porque a prpria Esperana o grande pendo verde,
Atrs do qual desfila o exercito vital
Das almas conquista augusta do Ideal.
O poeta das Contemporneas , por
certo, um dos mais illustres do Brasil ; tem
composies de primeira ordem, como Faust,
e mereceria um caprichoso estudo, que no
pde aqui ser feito. Cumpre-nos apenas
destacal-o em meio pleiade em que fulge.
Muito distincto tambm o poeta das
Opalas, FONTOURA XAVIE R, o rei do triolet,
e um dos mais ardentes lyristas dos lti-
mos tempos. Ei-lo que nos mostra a Flor
da Decadncia :
Sou como o guardio dos tempos do mosteiro !
Na tumular nudez d'um povo que descana,
As creaes do Sonho, os fetos da Esperana
Repousam no meu seio o somno derradeiro.
De quando em vez eu ouo os dobres do sineiro.
E' mais uma illuso, um fcrctro que avana. . .
Dizem-me Deus. . . Jesus. . . outra palavra mansa
Depois um som cavado a enxada do coveiro !
163
Minh'alma, como o monge sombra das clausuras,
Passa na solido do p das sepulturas
A desfiar a dr no pranto da demncia.
E de cogitar insano n'essas cousas,
E' da suppurao medonha d'essas lousas
Que medra em ns o tdio a flor da decadncia !
Do grupo que vamos agora indicando, o
poeta que vibra com mais vigor a satyra
poltica, , sem contestao, Lcio DE
MENDONA. E' um terrvel pamphletario em
verso ; tem paginas que lembram os Ch-
timents de Hugo. Como completo modelo
do gnero sentimos no ter mo, para
citar, os versos dedicados entrada de
certo ex-republicano para o senado impe-
rial. No existem melhores na lingua por-
tugueza. Na falta, ouamos Consrcio
maldito :
E um rude sujeito honrado e generoso,
Forte e trabalhador. Ella toda franzina ;
de antiga nobreza ; e da raa felina
O seu mavioso gesto electrico e nervoso.
Jura-lhe amor, e tem-lhe um dio rancoroso,
Sobre o peito do athleta o regio busto inclina,
E mette-lhe no bolso a mo fidalga e fina
E despoja-o. E elle, o bom e cego esposo,
104
Deixa-se despojar, e trabalha, calado.
Ella com uns padres vis anda de mancebia,
E, fartos, riem d'elle, o enorme desgraado.
Ella a Messalina, a barreg sombria,
Elle, um trabalhador estpido e enganado :
Elle chama-se Povo, e ella Monarchia.
F. A. DE CARVALHO JNIOR, morto
muito joven, deixou-nos um drama Pa-
risina, alguns folhetins e duas dzias de
sonetos, verdadeiramente apreciveis pela
correco, pela naturalidade, pelo sabor do
mais completo realismo. Eis aqui uma
prova :
Quando, pala manh, comtemplo-te abatida,
Amortecido o olhar e a face descorada,
Immersa em languidez profunda, indefinida,
O lbio resequido e a palpebra azulada,
Relembro as impresses da noite consumida
Na lubrica expanso, na febre allucinada,
Do gozo sensual, phrenetico, homicida,
Como a lamina aguda e fria de uma espada.
E ao vr em derredor o grande desalinho
Das roupas pelo cho, dos moveis no caminho,
E o boudoir, emfim, do cahos um fiel plagio,
165 -
Supponho-me um heroe da velha antigidade,
Um marinheiro audaz aps a tempestade,
Tendo por pedestal os restos d'um naufrgio !
Bella scna, tanto quanto a pintura de
situaes d'um grosseiro realismo pode ser
bello.
SI T7"
A eschola realistico-socialista foi uma
verdadeira transio para o parnasianismo.
Quasi todos os poetas deste ultimo systema,
antes de se dedicarem ao culto exaggerado
da frma, tinham vibrado o alade revolu-
cionrio, ou tinham pedido aos processos
da pura observao as inspiraes para seus
quadros. No grupo dos parnasianos acham-
se quatro dos maiores poetas do Brasil nas
duas ultimas dcadas do saculo XI X :
Theophilo Dias, Raymundo Corra, Olavo
Bilac e Alberto de Oliveira, egualados
apenas por Lus Murat, Luis Delphino
e pelo inditoso Crus e Sousa. Aquelles
16(1
quatro uotabilissimos filhos das musas tm
tambm entre si um pronunciado ar de fa-
mlia, sendo difficil differencial-os inteira-
mente. Na eschola romntica as grandes
individualidades guardavam maior distancia
de umas e outras. Basta lr uma pagina
de Alvares de Azevedo e de Gonalves
Dias para nunca mais se poder confundir
um com outro. J no inteiramente assim
entre os parnasianos ; e a razo que
aquelles se distinguiam pelas idas, pela
concepo que tinham do mundo e da hu-
manidade. Estes, no fazendo caso sino
quasi puramente da frma, levaram-na a um
supremo apuro em que ella, por assim dizer,
se crystalliza, toma feies uniformes e
acaba por constituir-se um canon immuta-
vel dentro do qual tm de se mover as
inspiraes dos poetas. Dahi o ar de si-
milhana de todos elleS; Far, porm, in-
juria a esses magnos talentos, e peccar pe-
rante a critica, quem no tiver perspiccia
bastante para sentir e notar as differenas
na apparente uniformidade da eschola.
Na impossibilidade de estudar miuda-
mente cada um delles, dar-nos-hemos por
felizes si conseguirmos definil-os em quatro
rpidas formulas.
167
RAYMUNDO CORRA, por suas poesias,
revela-se dos quatro a alma mais selecta,
mais distincta e mais verdadeiramente sen-
tida. No encontramos em seus versos ms
paixes, affectos grosseiros, ou siquer duvi-
dosos, sino grandes e nobres effuses de
um espirito de elite. Tem mais sentimento
do que imaginao ; mais corao do que
faculdade creadora ; mais ternura e gracio-
sidade do que fora. Meiga, discreta, con-
templativa, sua musa tem provado o travor
das luctas de nosso tempo; mas, quando
canta, sabe fazel-o com certa compostura,
num tom de dignidade, que lembra produc-
es, da musa clssica, quando fallava, por
exemplo, pela bocca de um Racine.
Lede As Pombas, A Chegada, Missa
Universal, Sobre um trecho de Millevoye,
0 Anoitecer, Cahir das folhas, Rio Acima,
Mal Secreto, A av, O vinho de Hebe,
Ouro sobre asul, Despedida, Plena nues,
Desdens, Chuva e Sol, Aspasia, Noites de
inverno, Na primavera, Passeio Matinal,
Lembrana, A saudade, Tmulo areo,
Versos a um artista, Luisinha e outras
e outras, e vereis que temos acertado. Nas
mos deste poeta, e de seus companheiros,
a plstica artstica chegou a um tal gro
168
de perfeio que difficil se torna fazer pre-
ferencia desta ou daquella de suas produc-
es. lr ao acaso. Mas eis aqui Mal
secreto :
Se a clera que espuma, a dor que mora
N'alma e destroe cada illuso que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O corao, no rosto se estampasse ;
Se se podesse, o espirito que chora
Vr, atravez da mascara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, ento piedade nos causasse !
Quanta gente que ri, talvez, comsigo
Guarda um atroz, recndito inimigo,
Como invisvel chaga cancerosa !
Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura nica consiste,
Em parecer aos outros venturosa !
Como esta frma perfeita, correcta,
pura ; mas tambm como sentido o brado
do poeta ! Comprehenda-se, entretanto, que
isto o romantismo na melhor accepo,
169
depurado na essncia e rejuvenescido na
estructura da mtrica. Eis o Tmulo
areo :
Com que tocante e singular tristeza,
Entre os Natchez, a me, que acerba e dura
Perda de um filho soffre, a atroz crueza
Das prprias dores illudir procura !
Pe-no em cama de flores, que pendura
A um galho, por cips torcidos presa :
Cantam aves por cima. . . e a correnteza
De um rio embaixo fle, trepida e pura. . .
Das arvores suspenso e entre as ramagens,
0 morto infante jaz ; frouxa, macia
E mollemente, embalam-no as aragens ;
E em branda oscillao suave e doce,
Seu tmulo alli fica, noite e dia,
A balouar, como se um bero fosse. . .
Ainda aqui a inspirao segura e a
frma esplendida. Leiamos As pombas :
Vae-se a primeira pomba despertada. . .
Vae-se outra mais. . . mais outra. . .emfim dezenas
De pombas vo-se dos pombaes, apenas
Raia, sangnea e fresca, a madrugada.
170
E tarde, quando a rigida nortada
Sopra, aos pombaes de novo ellas, serenas,
Ruflando as azas, sacudindo as pennas,
Voltam todas em bando e em revoada. . .
Tambm dos coraes onde abotoam,
Os sonhos, um por um, cleres voam,
Como voam as pombas dos pombaes ;
No azul da adolescncia as azas soltam,
Fogem. . . mas aos pombaes as pombas voltam,
E elles aos coraes no voltam mais. . .
Parece uma cano de Heine, pela deli-
cadeza do sentir, ou de Goethe, pela per-
feio irreprehensivel da frma.
Si tivssemos de fazer um estudo, por li-
mitado que fosse, do poeta, haveramos de
fallar de suas produces polticas e das
humorsticas, insistindo peculiarmente na
intuio philosophica que sae de suas obras.
No aqui o logar.
THE OPHI LO DI AS foi como. seu patricio,
autor das Symphonias e das Alleluias
(ambos so maranhenses), um extraordin-
rio cultor da frma. Teem entre si muitos
pontos de contacto o que se explica pela
171
confisso do mesmo credo litterario e pela
natural convivncia mantida entre ambos
nos bancos acadmicos em S. Paulo, onde
foram collegas. Em Theophilo ha por-
ventura mais colorido e mais profuses ly-
ricas ; ha, talvez, mais calor nas inspiraes
amorosas e mais audacias nas polticas e
sociaes. Raymundo o excede na elevao
das idas, na variedade dos pensamentos,
num quer que seja de serenidade olympica,
que s se encontra nos grandes gnios da
arte.
Si no fosse uma extravagncia comparar
os dous moos brasileiros, um dos quaes
morreu muito joven, tendo apenas publi-
cado trez pequenas colleces lyricas, e o
outro, vivo ainda, qne tambm ainda
muito joven, tendo publicado egual numero
de collectaneas, si no fosse uma extrava-
gncia, ns diramos que em Raymundo ha
algum raio do gnio lyrico de Goethe e em
Theophilo Dias alguma nota dos ardores
de Schiller. Estes parallelos devem ser
entendidos cum grano salis. Como quer
que seja, cumpre accrescentar ser mais forte
a imaginativa no auctor dos Cantos Tro-
picaes e das Fanfarras, do que em seu
amigo e emulo.
172
Para justificar quanto havemos dicto,
mostremos ao leitor apenas Procellarias,
gnero politico-social, e A Matilha, gnero
sensualistico-amoroso.
E comecemos por esta, que uma das
paginas superiores do lyrismo universal :
Pendente a lingua rubra, os sentidos attentos,
Inquieta, rastejando os vestgios sangrentos,
A matilha feroz persegue enfurecida,
Allucinadamente, a presa mal ferida.
Um, fitando o olhar, sonda a escura folhagem :
Outro consulta o vento ; outro sorve a bafagem ;
0 fresco, vivo odor, calido, penetrante
Que na rpida fuga, a victima arquejante
Vae deixando no ar, prfido e traioeiro ;
Todos, num turbilho phantastico ligeiro,
Ora em vrtice, aqui se agrupam, rodam, giram,
E, cheios de furor frentico, respiram,
Ora, cegos de raiva, afastados, diversos,
Arrojam-se a correr. Vo por trilhos dispersos,
Esbraseando o olhar, dilatando as narinas.
Transpem num momento os valles e as collinas,
Sobem aos alcantis, descem pelas encostas,
Recruzam-se febris em direces oppostas,
T que da presa, emfim, nos msculos cansados
Cravam com avidez os dentes afiados.
No de outro modo, assim meus soffregos desejos.
Em matilha voraz de allucinados beijos,
Percorrem-te o primor s languorosas linhas,
As curvas juvenis, onde a volpia aninhas,
173
Frescas ondulaes de frmas florescentes
Que o teu contorno imprime s roupas eloqentes :
O dorso avelludado, electrico, felino,
Que poreja um vapor aromatico e fino ;
O cabello revolto em anneis perfumados,
Em fofos turbilhes, elsticos, pesados ;
As fibrilhas subtis dos lindos braos brancos,
Feitos para apertar em nervosos arrancos,
A exacta correco das azuladas veias,
Que palpitam, de fogo entumecidas, cheias,
Tudo matilha audaz, perlustra, corre, aspira,
Sonda, esquadrinha, explora, e anhelante respira,
At que, finalmente, embriagada, louca,
Vae encontrar a presa, o gozo em tua bocca.
S um mestio brasileiro, e Theophilo
Dias o era, poderia escrever versos to ar-
dentes, to sensuaes e, ao mesmo tempo,
to doces, to meigos, to acariciantes, to
delicados ao ouvido de sua amada ! Neste
sentido a lyrica brasileira uma das mais
completas e perfeitas que existem. Desde
os tempos do romantismo at as -ultimas
escholas temos produzido no gnero certa-
mente algumas das mais bellas peas da
poesia universal. O lyrismo, e s elle, tem
sido o nosso forte em litteratura. E Theo-
philo Dias ahi um dos pontfices magnos.
Ouamos-lhe umas notas humanas, sociaes.
Leiamos Procellarias.
174
ainda o mesmo poeta imaginoso,
fluente, abundante, correctissimo.
Rasgando a flor de um mar sem rumor, largo e plano,
Um sulco de ouro e luz teso o concavo panno,
Ao galerno fugaz, que as velas arredonda,
O navio veloz resvala de onda em onda.
E' transparente o co, liso o mar ; calmo o espao
E do vento e da vaga ao rythmo, ao compasso
Que faz rolar sobre um outro bordo a pupilla
Do gageiro perscruta a vastido tranquilla,
Cravado no horisonte o olhar profundo e agudo.
Tudo lmpido, azul ; paz, bonana tudo.
Mas eis que de improviso umas aves estranhas,
Que parecem o vo arrancar das entranhas
Do horisonte longnquo ainda ha pouco vazio,
Em nuvens sobreveem demandando o navio,
Mosqueadas de negro, audazes, agoureiras,
Contornam o maame e as vergas altaneiras,
Sinistras pipilando entre as velas redondas,
Rasgando a superfcie intermina das ondas.
So ellas que l vem, as procellarias ! Logo
Phosphorecendo, o mar vibra sulphur e fogo ;
Torna-se escuro o ar, negro o co ; e a tormenta,
De sbito cahindo, horrisona rebenta ;
Pesa no espao a treva ; esfusiam os ventos ;
Cortam a escurido relmpagos sangrentos,
175
A voz do temporal desfeito sobrepuja
A grita de terror, que levanta e maruja,
Ao tenebroso co, tranzida de agonia.
Mas, renascendo a calma e repontando o dia,
Na deserta amplido das vagas solitrias,
T onde alcana o olhar, j no ha procellarias,
Assim vem, assim vo as bravas avesinhas,
Affrontando o furor das tormentas marinhas ;
Desdenhosas da paz, fugindo calmaria,
Libradas nos tufes. A luta as inebria.
Os gnios so assim ; como as filhas do oceano,
Pairam sobre os vulces do pensamento humano,
Arrostando do mal a infrene tempestade,
Precursores do bem, e nncios da verdade ;
0 torpor lhes repugna ; o combate os convida ;
S a lucta os attrai, porque a lucta a vida.
Versos, como estes, no so muito com-
muns e vulgares em todas as lnguas.
ALBERTO DE OLIVEIRA , d'entre os
quatro poetas maiores em cujo numero o
collocamos, o que parece ter tomado mais
a serio a sua misso de artista do verso.
E' o que tem mais escripto e publicado
mais. Canes Romnticas, Meridionaes,
Sonetos e Poemas e Versos e Rimas, so
colleces suas apparecidas umas sobre as
outras. Dos quatro o que tem peas mais
176
bem acabadas, feitas com mais capricho e
mais fino lavor, num vocabulrio mais
abundante e mais escolhido. Em compen-
sao o mais frio, o que mais descobre
o esforo, o parti pris de fazer bonito, e,
por mais que o queiramos esconder, im-
possvel negar uma tal ou qual affectao
que sae de algumas de suas paginas. De-
feito este, porm, que lhe no apaga o
grande mrito e que deve mais ser posto
conta da eschola do que notado em desfa-
vor do poeta.
De todos os seus companheiros elle o
parnasiano em regra, extremado, completo,
radical. Por isso, si tem do systema as
vantagens, possue tambm em mr escala
os sines. As boas qualidades predominam.
o mais abundante e talvez o mais ima-
ginoso poeta brasileiro ao lado de Luiz
Delphino e Luiz Murat. Quem se quizer
convencer leia O Leque, Cano da Ilha,
Viajando, A arvore, A lagarta, A borbo-
leta asul, Per tenebras, A crus da mon-
tanha, A enchente, As trs formigas,
Historia de um corao e muitas outras.
Notar tambm o que o lr attentamente
que elle o maior paizagista entre os
nossos poetas dos ltimos trinta annos.
177
Para dar amostra rpida de seu estylo,
citamos aqui o soneto Ultima Deusa :
Foram-se os deuses, foram-se, em verdade ;
Mas das deusas alguma existe, alguma
Que tem teu ar, a tua magestade,
Teu porte e aspecto, que s tu mesma em summa.
Ao ver-te com esse andar de divindade,
Como cercada de invisvel bruma,
A gente crena antiga se acostuma,
E do Olympo se lembra com saudade.
De l trouxeste o olhar sereno e garo,
0 alvo collo onde, em quedas de ouro tincto,
Rutilo rola o teu cabello esparso. . .
Pisas alheia terra. . . Essa tristeza,
Que possues, de estatua que ora extincto
Sente o culto da frma e da belleza.
Ahi est o lyrico enamorado da frma,
expresso suprema da belleza, na opinio
dessa casta de sonhadores e elles no dei-
xam de ter em immensa parte razo.
Mas eis agora alguma cousa que define
melhor talvez o nosso poeta : Vaso
grego :
12
178
Esta de ureos relevos, trabalhada
De divas mos, brilhante copa, um dia
J de servir aos deuses agastada
Vinda do Olympo, a um novo deus servia.
Era o poeta de Theus que a suspendia
Ento, e ora repleta ora esvasada
A taa amiga aos dedos seus tinia,
Toda de roxas ptalas colmada.
Depois. . . Mas o lavor da taa admira,
Toca-a, e do ouvido aproximando-a, s bordas
Finas has-de lhe ouvir, suave e doce.
Ignota voz, qual se da antiga lyra
Fosse a encantada musica das cordas,
Qual se essa voz de Anachreonte fosse.
Este poeta um contemplativo da natu-
reza, da vida, onde procura acima de tudo
as frmas doces, esplendidas, attrahentes,
que o extasiam. O mundo exterior que
lhe fornece a matria e as cores para seus
quadros.
A alma humana, na variedade infinita de
suas luctas e agitaes, raro lhe merece um
olhar investigador.
179
OLAVO BILAC um temperamento inteira-
mente diverso. Mobil, activo, irnico, fez
facilmente, apezar de muito moo, a volta
inteira em torno aos homens e s cousas,
ajudado por seu temperamento irrequieto e
escarninho, chegando a attingir a sereni-
dade do humour, que a indifferena su-
perior alegria e magoa.
Dahi o trao principal de seu poetar:
ardente, sentido, sem ser triste ou melan-
cholico ; apaixonado, sem ser sentimental
e choramigas.
O poeta nelle ha de ser estudado e com-
meutado com o auxilio do folhetinista en-
demoniado, que tambm nelle reside.
um dos poucos em nossa raa que teem
conseguido o humour, sem precisar de se
fazer metaphysico, remontado, nebuloso, ex-
travagante, como o auctor de Brs Cubas.
Se Theophilo Dias o mais ardente,
Raymundo Corra o mais sereno, Alberto
de Oliveira o mais artista destes poetas,
Olavo Bilac o mais espontneo, o mais
natural de todos elles.
Os versos lhe saem correntios, deslisam-
lhe doces e maviosos como se fossem fallas
decoradas e repetidas sem o minimo esforo.
Em suas composies avultam dous gneros
1X0
principaes : idealisaes histricas, feitas
com invejvel maestria, e effuses amorosas
como no ha melhores em lnguas roma-
nicas. Do primeiro numero so, entre
outras, O sonho de Marco Antnio,
Delena Carthago, O julgamento de
Phryna, A tentao de Xencrates. No
segundo grupo acham-se todas as pequenas
peas, esses admirveis sonetos que enchem
a seco a que deu, em seu volume de
poesias o nome de Via-lactea.
O Intermesso de Heine, que uma das
cousas mais bellas produzidas pela musa
universal em todos os tempos, tem muitas
vezes mais conceito, mais profundeza, porm
no tem mais brilho, nem mais mimos.
Como frma e como manifestao lyrica, a
Via-lactea um dos pontos culminantes
na poesia moderna em lingua portugueza.
Deve ser lida em seu conjuncto para se bem
apreciar na multiplicidade de seus tons.
Destacaremos dous fragmentos para es-
tudo comparativo :
Sonhei que me esperavas. E, sonhando,
Sa, ancioso por te ver ; Corria. . .
E tudo ao ver-me to depressa andando,
Soube logo o logar para onde eu ia.
181
E tudo me fallou, tudo ! Escutando
Meus passos, atravez da romaria
Dos despertados pssaros o bando :
Vai mais depressa ! Parabns ! * Dizia.
Disse o luar Espera! que eu te sigo :
Quero tambm beijar as faces delia !
E disse o aroma: Vai, que eu vou comtigo!
Cheguei : , ao chegar, disse uma estrella :
Como s feliz ! como s feliz, amigo,
Que de to perto vais ouvil-a e vl-a!
bello isto e d'uma belleza simples,
singela como costuma ser a boa poesia.
Mas, cousa melhor :
Ora ( direis) ouvir estrellas ! Certo
Perdeste o senso. E eu vos direi, no emtanto,
Que para ouvil-as, muita vez desperto
E abro as janellas, pallido de espanto. . .
E conversamos toda a noite, emquanto
A via-lactea, como um pallio aberto,
Scintilla. E, ao vir do sol, saudoso em pranto
Inda as procuro pelo co deserto.
Direis agora : Tresloucado amigo !
Que conversam ellas ? Que sentido
Tem o que dizem, quando esto comtigo ?
Eu vos direi : Amae para entende-las!
Pois s quem ama pde ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrellas .
182
Todo o lyrismo nas grandes litteraturas
segue esta evoluo ; comea por descri-
pes de scenas simples da natureza ; passa
depois a descrever os phenomenos mais
complexos do mundo exterior; aps appa-
recem as narrativas de factos histricos, e,
quasi ao mesmo tempo, a reproduco de
lendas e tradies populares ; mais tarde
surgem as scenas sociaes, domesticas, os
mais quadros de costumes sorprendidos ao
vivo ; s posteriormente que o mundo
subjectivo e psychologico entra em aco.
Esta ultima phase divide-se em dous gran-
des momentos : no primeiro apparecem
apenas os sentimentos elementares, por
assim dizer ; o poeta d-nos conta de suas
alegrias ou de suas tristezas, fazendo-nos a
narrativa dos seus amores ; no segundo
momento, que a phase final de todo ly-
rismo, surge a alma humana em sua inte-
gralidade e as situaes complicadissimas
do espirito so o thema predilecto da poesia.
Ha algumas paginas destas em Gcethe, em
Shelley, em Byron, em Vigny, em Musset,
em Uhland, em Heine, em Tennyson e
pouco mais. Nosso lyrismo, por emquanto,
no passou das primeiras situaes da evo-
luo chegando apenas, nos seus melhores
183
representantes, ao primeiro momento do
ultimo perodo.
Olavo Bilac, com todo seu merecimento,
no desmente a regra geral da evoluo
lyrica no Brasil.
Sua poesia, com ser lmpida e brilhante,
no ampla e profunda, como uma repro-
duco fiel das grandes magoas, dos im-
mensurados tormentos, dos insondaveis
abysmos do corao moderno.
2^^7-1
Nem podia ser por outra forma. A ul-
tima expresso do lyrismo s chega quando
a sociedade tem experimentado as grandes
vicissitudes do viver histrico, as fundas
dores da evoluo lenta e complicada da
vida dos povos. S depois d'essas magnas
luctas, que se exprimem no drama, na
comedia, no theatro em summa, no romance
que o lyrismo attinge a forma suprema,
e vale por si s qual uma philosophia in-
teira. Isto nos leva naturalmente a fallar
de Luiz MURAT, que figura, como diver-
184
gente dos romnticos e dos parnasianos em
o n. XVI de nosso quadro synoptico. No
to estimado, talvez, quanto os quatro
evangelistas do parnasianismo, cujas rpidas
silhouettes acabamos de traar. que sua
leitura no to fcil, to simples ; con-
vida mais a pensar.
Tem mais obscuridades e extravagncias
do que qualquer delles ; mas, em compen-
sao, mostra mais personalidade, mais fora,
mais profundeza do que todos elles. No
se parece com os outros ; tem feies pr-
prias, e isto tudo em litteratura e arte.
Quando quer ser mimoso, delicado e meigo,
sabe ser como quem mais o sabe ; e quando
quer voar longe nos surtos do pensamento
sobe at onde os outros no podem chegar.
muitas vezes diffuso; mas, quando brilha,
torna-se transparente, diaphano como a luz
meridiana. Tem quasi a imaginao de
Luiz Delphino, tendo mais profundeza de
pensamento e mais philosophia do que
elle.
De todos os nossos poetas o que vae
se approximando da ultima phase da evo-
luo do lyrismo, penetrando no solio d'alma
humana. S Cruz e Sousa ahi o eguala, ou
o excede talvez. Em suas variadas pro-
185
duces podem-se distinguir trs ordens
principaes : amorosas, philosophicas e phan-
tasiosas. Entre estas, que teem um cunho
d originalidade muito pronunciado, con-
tam-se no segundo volume das Ondas ;
Uma Viso, Phantasma, A Zagala, A
Moa e o Rouxinol; e- no primeiro volume.
Atravs do passado, Cano das prolas,
Concertante nocturno, Rouxinoes do co-
rao, A Concha, A Vingana de Sileno,
peas todas estas que, no seu gnero so
das mais bellas que se podem ler.
Entre as philosophicas destacam-se A
Roda de Ixion, Depois do Calvrio,
Sanie Universal, Sonho apocalyptico, Se-
lemno, A Tristesa do Cahos. O lyrismo
amoroso abrange a mr parte das produc-
es do poeta (*). Ahi as effuses de
su'alma, que a de um forte, irrompem
num torvelinhar de phrases rutilas, cano-
ras, irizadas e amplas, numa fcil abundn-
cia, que esto a indicar a riqueza do ma-
nancial d'onde brotam. Exemplo :
{') Vide em nossos Novos Estudos de Litteratura Contempo-
rnea o estado consagrado ao auctor das Ondas.
186
i
Custa to pouco perdoar, formosa !
A' noite o insecto a flor persegue, e, emquanto
A flor o insecto esconde na cheirosa
Ptala, e o orvalho como argenteo pranto
Ca-se leve pelas urnas de ouro :
E o valle estende uma penumbra fresca,
Macia como o teu cabello louro,
Ou como a tua pelle romanesca ;
A' noite, quando o olhar procura, ancioso,
Do valle em meio a sombra que o procura
E rola, ao longe, o mar tardo e queixoso,
E a voz do vento s ondas se mistura ;
Quando um sorriso outro sorriso doura,
E a alma fica mais pallida e mais louca ;
Quando o beijo como uma vaga estoura
E em flocos se desfaz de bocca em bocca ;
Quando a alegria, buliosa e douda,
Pelos pomares, rindo, se derrama,
E a natureza, como n'uma boda,
Nas tetas cheias das estrellas mama ;
Quando uma nuvem pe o p de manso
Na espadua de algum rio ou de algum monte,
E vai a lua em plcido balano
De um horizonte para outro horizonte ;
187
Quando a folhagem murmura palpita,
E os ninhos tremem, voluptuosamente ;
Quando arqueja o bambual e a aragem grita
E arde no espao o rutilo crescente ;
Quando o rio de vaga em vaga chora,
E os montes, como brancos minaretes,
Surgem da sombra ao despontar da aurora,
Campindo o azul de fulvos ramalhetes,
E desfolha-os depois e os montes salta ;
Quando as extensas curvas das campinas
A madrugada de ureo friso esmalta
Desabrochando as rosas purpurinas ;
Quando um rumor de plumas o ar sacode
Talvez porque se afastam as estrellas ;
E vae por entre as flores como uma ode
De ouro o canrio de azas amarellas ;
Quando a poesia alegre borboleta
Quebra o casulo e parte e ouve-se o riso
Que ella deixou na sombra, alva e irrequieta
Como o que Eva deixou no paraso ;
Quando a floresta, como um livro aberto,
No sei que encanto s aves offerece,
E como o sonho da alma est mais perto,
Mais perto o co dos olhos nos parece ;
188
Quando o beirai das casas a andorinha
Deixa e os espaos plcidos percorre,
Como no Oceano a prola marinha,
Como na face a lagrima que escorre ;
S atravez dos bosques e dos prados
E dos alegres pssaros distante,
Caminho, e elles nas azas descansados,
Em coro, chamam-me o phantasma errante.
Perda-me !. . . nas trevas de onde saio,
Como uma sombra triste e silenciosa,
Vive minh'alma, e emtanto o mez de maio
Brinca e ri entre as arvores, formosa.
Nosso fito primordial, neste esboo de
nossa poesia em quatro sculos, mostrar
o fio da evoluo, o normal desdobramento
das escholas, dos systemas, indicando, prin-
cipalmente, as transformaes do estylo, da
plstica artstica. O leitor intelligente ir
pegando em flagrante as modificaes da
lingua e da frma, bastando-lhe percorrer a
distancia que vai de um Bilac, ou de um
Murat a um Bento Teixeira, ou um Santa
Maria Itaparica.
Collocamos entre os divergentes do par-
nasianismo, alm do auctor das Ondas,
Mudo Teixeira, Emilio de Meneses, Joo
- 189
Barretto de Meneses, Theotonio Freire
e Frana Pereira. Muito haveria a dizer
destes talentosos poetas : somos, porm,
forados a indical-os apenas.
XVII
Temos pressa de apreciar o ultimo pe-
riodo da evoluo da poesia brasileira no
final do sculo XI X e rapidamente fallar
dos symbolistas. Infelizmente s poder-
nos-hemos deter ante Bernardino Lopes
e Crus e Sousa.
Se tivssemos de estudar, um a um, os
poetas, todos os que ainda nestas paginas
no foram contemplados, esta memria to-
maria propores que lhe no podemos dar.
Mas vejamos os dous famosos symbolistas
brasileiros.
BERNARDINO LOPE S, se nos licito assim
escrever, pois o poeta assigna sempre e sys-
tematicamente B. Lopes, tem hoje quarenta
annos de edade e escreve ha mais de vinte.
Tem neste perodo publicado os seis livros
seguintes :
1) ( )
Chromos (1881), Pissicatos (1880), D.
Carmen (1890), Brases (1895), Sinh
Flor (1899), Vai de Lyrios (1900). Pro-
mette publicar ainda Hellenos e Hym-
verno.
Tem atravessado duas phases e possue
duas maneiras de poetar.
A primeira, mais espontnea e brilhante,
pde-se filiar no parnasianismo e acha-se
em Chromos, Pissicatos, grande parte dos
Brases, e tambm em parte em Dona
Carmen e Sinh Flor. A segunda, que se
distingue por certa feio de affectada re-
ligiosidade e pretendido mysticismo, que
se costuma prender ao chamado symbolis-
mo. Achamos prefervel a primeira ; porque
nella melhor se apreciam as boas qualida-
des do poeta, que consistem no brilho da
phrase, na riqueza das imagens, ua facilida-
de do verso e da rima.
Preferimos v-lo, em amoroso enleio, entre
as princesas, marquesas, duquesas, con-
dessas e fidalgas de toda a casta, em cujo
convvio parece passar a existncia, do que
ouvil-o a entoar Ave Maria e Ladainhas
em louvor de sanctas. Esta ultima alti-
tude elle a tomou desde a parte final dos
Brases, que intitulou Vai de Lyrios, e
191
no livro, recentemente publicado, a que poz
egual titulo. Por isso mesmo neste volume
agradam-nos mais as peas que se prendem
ao seu primeiro estylo.
Neste caso esto Minha Varanda, As
Flautas, Berlinda, Missa d'alva, Maio
Festivo, Guitarrilha, Slancias, Analia e
Andorinha. Como exemplo do doce e va-
loroso parnasianismo de Bernardino Lopes
seria preciso citar quasi todos os Brases.
Contentemo-nos com este soneto :
N'essas manhs alegres, perfumadas,
De ether sadio e claro firmamento,
Acariciando o mesmo pensamento
Percorremos o parque, de mos dadas,
Aves trinando em cima das ramadas,
Alvos patos e um cysne a nado lento
Sobre as guas do lago, num momento
Pela braza do sol ensangentadas. . .
Brilha o sereno tremulo nas pontas
Do vistoso gramai, como se fosse
Solto rosrio de opalinas contas. . .
Emquanto uns casos rsticos de aldeia
Eu vou narrando-lhe, em linguagem doce,
Escuto a queixa de seus ps na areia !
1'2
To bellos e mais bellos ainda do que
este, outros muitos existem em seus livros.
A inexperincia de alguns poetas novis
no Brasil, pelos annos de 1874 em deante,
levou-os imitao de poesia martellante,
emphatica, de Guerra Junqueiro, com indi-
zivel escndalo das ptrias musas. Isto
dissemos ns j vai para bastantes annos.
Referiamo-nos influencia desastrada de
Morte de Dom Joo na poesia nacional.
Hoje no podemos, sem faltar ainda mais
elementar verdade, deixar de profligar a in-
fluencia, mais nociva ainda, Os Simples,
do vate lusitano. Tem sido um verdadeiro
desastre.
Depois que o auctor d'A Velhice do
Padre Eterno, quiz se fazer singelo, crente,
e mystico e entrou a emparelhar os versi-
nhos de quatro, cinco e seis syllabas das
velhas xacaras, no depravado e ignaro
choto de
Toe, toe, toe, molleirinha santa. . .
a chusma dos imitadores, como um fcando
de gralhas esfaimadas sobre um arrozal,
caiu em cima d'aquillo e tem sido um
nunca acabar. Volumes inteiros teem ahi
193
surgido naquella montona toada. O nosso
Bernardino Lopes caiu tambm no lao e
entrou a escrever cousas destas :
Bemdito, santo, louvado seja. . .
Coro de gloria, dentro da igreja,
Para a agonia do espao vem ;
O leo da magua na tarde escorre,
Que como o lyrio : recende e morre.
Belm... Belm. . .
Faz realmente pena ver um poeta de ta-
lento real, que escreveu algumas das me-
lhores poesias da lyrica brasileira, escravi-
sar-se assim, sem a menor necessidade, ao
simples capricho de uma moda detestvel e
sem futuro. E, como desejamos apagar
qualquer resaibo de desagrado que, por-
ventura, possam deixar estas palavras de
censura que a verdade nos impoz, appella-
remos do poeta para elle mesmo, citando-
lhe estes versos :
Vieram comtigo, flor de primavera,
Na brilhante exploso de ureas phalenas
E andorinhas gazis, abrindo as pennas,
O sonho azul, a fulgida chimera. . .
13
194 -
Entre os lauris de ramos de hera,
Myrthos floridos e humidas verbenas,
Rindo, talvez, s doces cantilenas,
Abrem-se os ninhos, meigamente, espera
Da aza primeira e do primeiro beijo. . .
E este aroma de rosas, este harpejo,
O sonho azul, a flgida chimera,
Ferindo a luz do amor, a luz querida,
Que esta alma aquece e me illumina a vida,
Vieram comtigo, flor de primavera I
De tudo evidencia-se no dever ser o
logar do poeta dos Brases entre os sym-
bolistas. apenas uma transio para elles ;
seu posto mais exacto dever ser entre os
parnasianos.
No assim CRUZ E SOUZA, a muitos res-
peitos o melhor poeta d'entre os nossos
symbolistas.
E o nosso symbolista puro, o rei da
poesia suggestiva; e, cousa singular nelle
no se encontram uma s vez os taes ver-
sinhos imitados d' Os Simples, cheios de
balo, balo, belm, belm, e outras ga-
feirices da espcie.
E o ultimo poeta qne temos de rapida-
mente notar ; porm d prazer ao critico
195
avistar-se com um homem destes, um in-
tegro, um nobre espirito de eleio. Deixou
publicados, em poesia, os Broqueis e in-
ditos Phares e ltimos Sonetos. De-
vemos delicadeza do sr. Nestor Victor,
grande amigo do poeta e que se encarre-
gou de publicar-lhe as obras pstumas, a
ventura de ler os manuscriptos do illustre
morto, que nos hoje plenamente conhe-
cido. O que notmos de mais notvel nas
poesias de Cruz e Sousa fcil de ser
dicto em poucas palavras.
Em primeiro logar, resaltam de todas as
suas composios uma elevao d'alma, uma
nobreza de sentimentos, uma delicadeza de
affectos, uma dignidade de caracter que
nunca se desmentem, nunca se apagam.
Dahi, como segunda qualidade aprecivel, a
completa sinceridade do poeta: este no faz
cantatas a condessas e duquesas, nem entoa
fingidas ladainhas a sanctas. . .
Inspirados pela natureza, pelo infinito
scenario do mundo exterior, ou pelas peri-
pcias da vida, pelos attritos da sociedade, ou
pelas dores intimas de seu corao, os seus
versos so sempre simples, espontneos, sin-
ceros, como as confisses de uma alma
limpa e digna. Nada de pose. Outra qua-
196
lidade da arte de Cruz e Sousa o poder
evocativo de muitas de suas poesias. Elle
no descreve nem narra. Em phrases vagas,
indeterminadas, apparentemente desalinha-
das, sabe, por no sabermos que interessante
e curiosa magia, atirar o pensamento do
leitor nos louges indefinidos, suggestio-
nando-lhe a imaginativa, fazendo-o perder-
se nos mundos desconhecidos, sempre me-
lhores do que aquelles em que vivemos.
Quem se quizer convencer leia em Bro-
queisAntiphona, Sideraes, em Sonhos,
Monja, Braos, Cano da Formosura,
Lua, Tulipa Real, Vesperal, Turberculosa,
Acrobata da Dr, Angelus ; em Phares
leia Piedosa, Olhos do Sonho, Violes
que choram, Envelhecer, Lyrio Astral ;
e em ltimos sonetos especialmente Al-
lucinao, Vida obscura, Gloria, Madona,
da Tristesa, O grande momento, Vos fu-
gitiva, Supremo Verbo, Bemdtctas cadeias,
A Harpa, Cano confiante, Cr, Alma
jatigada, Flor nirvanisada, Crusada nova,
Acima de tudo, Immortal falerno, Asas
abertas, Velho, Eternidade, Retrospectiva,
Alma mater, O Corao, Invulnervel,
Lyrio luctuoso, Um Ser, O Grande sonho,
Alma solitria, Silncios, A Morte.
197
A philosophia que transuda da poesia de
Cruz e Sousa, a de um triste, mas um
triste rebellado; o pessimismo, ultima flor
da civilisao humana.
Elle o caso nico de um negro, um
negro puro, verdadeiramente superior no
desenvolvimento da cultura brasileira. Mes-
tios notveis temos tido muitos ; negros
no, s elle; porque Luiz Gama, por exem-
plo, nem tinha grande talento, nem era um
negro pur sang. Assim outros. Soffreu os
terrveis agrores de sua posio de preto e
de pobre, desprotegido e certamente, des-
prezado. Mas a sua alma cndida e seu
peregrino talento deixaram sulco bem forte
na poesia nacional. Morreu muito moo,
em 1898, quasi ao findar deste sculo, e
nelle acha-se o ponto culminante da lyrica
brasileira aps quatrocentos annos de exis-
tncia. Fazemos votos para que lhe sejam
publicados os inditos e lido e estudado
este nobre e vigoroso artista. Aqui no
nos podemos alongar.
Como especimen de seu estylo, e para
que seja bem distinctamente o ponto, a que
nos levou a evoluo da lyrica, teremos
de tambm citar um trecho d'este magno
poeta.
E como cital-o facillimo, porque tudo
que deixou em verso bom, no precisa-
mos de ir alm da primeira pagina de seu
mais antigo livro Broqueis. E eis a An-
tiphona :
O' Frmas alvas, brancas, frmas claras
De luares, de neves, de neblinas ! . . .
O' Frmas vagas, fluidas, crystallinas. . .
Incensos dos thuribulos das aras. . .
Frmas do Amor, constellarmente puras,
De virgens e de Santas vaporosas. . .
Brilhos errantes, mdidas frescuras,
E dolencias de lyrios e de rosas. . .
Indefiniveis musicas supremas,
Harmonias da Cr e do perfume. . .
Horas do Occaso, tremulas, extremas,
Requiem do Sol que a Dor da Luz resume.
Vises, psalmos e cnticos serenos,
Surdinas de rgos flbeis, soluantes. . .
Dormencias de volupicos venenos
Subtis e suaves, mrbidos, radiantes.. .
Infinitos espritos dispersos,
Ineffaveis, ednicos, areos,
Fecundai o Mysterio destes versos
Com a chamma ideal de todos os mysterios,
199 -
Do sonho as mais azues diaphaneidades
Que fuljam, que nas Estrophes se levantem
E as emoes, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.
Que o pllen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflamme a rima clara e ardente. ,
Que brilhe a correco dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.
Foras originaes, essncia, graa
De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse effluvio que por ondas passa
Do Ether nas roseas e ureas correntezas. .
Crystaes diludos de clares alacres
Desejos, vibraes, ancias, alentos,
Fulvas victorias, triumphamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos. . .
Flores negras do tdio e flores vagas
De amores vos, tantalicos, doentios. . .
Fundas vermelhides de velhas chagas
Em sangue abertas, escorrendo em rios.
Tudo ! vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhes chimericos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalistico da Morte ! . . .
200 --
Sentimos nada poder dizer de muitos
jovens poetas mais ou menos filiados
escola de Cruz e Souza,
Para findar : o symbolismo, nome por
certo mal escolhido para significar a reaco
espiritualista que neste final do sculo se
fez na arte contra as grosserias do natura-
lismo e contra o dilettantismo epicurista da
arte pela arte do parnasianismo, , nas suas
melhores manifestaes lyricas, uma volta,
consciente ou no, ao romantismo uaquillo
que elle tinha tambm de melhor e mais
significativo. No Brasil, porm, para que
elle caminhe e progrida, ser preciso que,
deixando de lado as ladainhas de Bernar-
dino Lopes e Alphonsus de Guimares,
deixando, em summa, as affectaes d'Os
Simples, prosiga na trilha que lhe foi aberta
por Cruz e Sousa, no o Cruz e Souza, da
prosa abstrusa do Missal e das Evocaes,
porm o Cruz e Sousa dos Phares e dos
ltimos Sonetos, e essa ha de ser uma das
mais bellas pores da lyrica nacional, que
iro ainda florescer nos primeiros annos do
sculo que vai entrar. (1).
(i) Nao esquecer que este ensaio foi escripto em 1899 para fi-
gurar no Livro do Centenrio.
201
A synthese de tudo que ahi ficou escri-
pto fcil de fazer : o lyrismo portuguez
da epocha camoneafta, passado ao Brasil,
evoluiu em marcha crescente, tomando mais
calor na intensidade e mais brilhos na
frma, at vir a constituir a expresso
typica da esthesia nacional e tornar-se um
dos mais perfeitos, si no o mais perfeito
da America. O sangue africano e o ind-
gena contribue muito para isso; quasi todos
os poetas de talento que deixamos citados
so mestios e, si no o indicamos sempre
e sempre deante do nome de cada um,
porque ainda hoje, os preconceitos no o
deixam fazer sem desgosto.
FIM






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