Corpo Gênero Sexualidade
Corpo Gênero Sexualidade
Corpo Gênero Sexualidade
Anderson Ferrari
Cludia Maria Ribeiro
Roney Polato de Castro
Vanderlei Barbosa
LAVRAS - MG
2014
proibida a reproduo total ou parcial deste livro, sejam quais forem os meios empregados:
eletrnicos, mecnicos, fotogrficos, gravao ou quaisquer outros, sem permisso por escrito dos
editores.
APRESENTAO
Este livro fruto de pesquisas e debates entre profissionais de vrias reas do conhecimento
pedagogos/as, socilogos/as, filsofos/as, psiclogos/as entre outros/as preocupados e
preocupadas com o contexto cultural contemporneo. Trata-se de um grupo de pesquisadores/as
gabaritados/as e de aguada sensibilidade para com as questes afetas ao ser humano, numa
sociedade voltada ao fazer viver, medicalizao, promoo da sade, juvenizao, beleza,
heteronormatividade; temas relacionados ao controle dos corpos e, nele, das relaes de gnero e
das sexualidades inseridos no cenrio social. No se pode desconsiderar que, hoje, as vrias mdias
tm ocupado lugar de destaque como veculo dos discursos verdadeiros mdicos, religiosos,
psicolgicos, jurdicos, educacionais, entre outros , que, ao se correlacionarem em diversas
instncias sociais, integram os processos constitutivos das subjetividades e de controle dos
corpos. Ao mesmo tempo, o fluxo de informaes e de tecnologias que atravessa a vida
contempornea vem gerando deslocamentos nos modos de pensar, desestabilizando certezas e
criando condies para outros arranjos e tipos de relaes entre os sujeitos e consigo mesmo;
alteram-se as formas de entender a gerao/criao da vida, o cuidar de si e do outro, o
viver/morrer, os prazeres dos corpos, os riscos/os medos... Desse modo, tornam-se necessrias
anlises e discusses crticas sobre as condies contemporneas implicadas na fabricao dos
corpos e dos modos de existncia. Parece-nos oportuno socializar e colocar em discusso as
experincias e pesquisas produzidas por profissionais que vm desenvolvendo estudos que
articulam teorizaes dos campos dos Estudos Culturais e da Educao (agregando, ainda, as
contribuies da Histria do Corpo, dos Estudos da Cincia, da Sade, dos Estudos Gays e
Lsbicos, Estudos Negros e Educao Ambiental). Foi em meio a essas problematizaes e como
forma de ampli-las e coloc-las em circulao que nasceu a ideia de se organizar um seminrio
que congregasse a discusso em torno do Corpo, Gnero e Sexualidades.
Cabe destacar que a valiosa contribuio terica que os estudos registrados nesta obra
trazem um processo de construo histrica. As duas primeiras edies do evento 2003 e 2005
foram realizadas na cidade de Rio Grande (RS) e contaram com a participao dos grupos de
pesquisa da UFRGS na organizao e realizao das atividades. Houve mais de 200 participantes
em cada edio, o que nos permite afirmar que discusses como essas so de interesse de
profissionais de reas distintas. A continuidade do evento ocorreu em 2007, em Porto Alegre
(RS), com aproximadamente 500 participantes distribudos/as entre estudantes, professores/as,
pesquisadores/as e outros/as profissionais. A quarta edio foi realizada na FURG, em 2009, com
a participao de mais de 600 inscritos.
Em 2011, o Seminrio foi realizado na Universidade Federal do Rio Grande e passou a ser
considerado um evento internacional, pela consolidao da participao de palestrantes, de
pesquisadores/as e discentes, bem como pela apresentao de trabalhos de outros pases,
principalmente da regio do Mercosul. Nesse mesmo ano, tambm realizou-se o I Encontro
Gnero e Diversidade na Escola GDE, com o objetivo de reunir profissionais que
atuam/atuaram no curso Gnero e Diversidade na Escola no Brasil, a fim de debaterem a respeito
de suas experincias, produo de materiais, projetos de interveno, entre outros aspectos. O
GDE visa formao de profissionais de educao da rede pblica e aborda as temticas de
gnero, sexualidade e igualdade tnico-racial e tem como objetivo ampliar conhecimentos acerca
da promoo, respeito e valorizao da diversidade tnico-racial, de orientao sexual e identidade
de gnero, colaborando para o enfrentamento da violncia sexista, tnico-racial e homofbica no
mbito das escolas.
O evento realizado em 2011 buscou trazer para o cenrio de debates as prticas em
funcionamento em diversas instncias sociais, implicadas na produo de polticas direcionadas ao
controle do corpo e regulamentao da vida. Nesse sentido, no V Seminrio Corpo, Gnero e
Sexualidade procurou-se discutir e problematizar o papel das prticas sociais na constituio dos
corpos contemporneos, enfatizando as prticas escolares e suas relaes com a sade, a beleza, a
socializao e o trabalho. O seminrio foi direcionado para professores/as da rede pblica e
particular de ensino, profissionais da rea da sade, pesquisadoras/es, estudantes de graduao e
ps-graduao e demais profissionais interessados/as.
Em 2014, pela primeira vez, os eventos ocorrero num estado fora do sul do Brasil, reflexo
do movimento que se iniciou em 2011, quando o seminrio adquiriu carter mais dinmico e
internacional. Esse fato justifica sua circulao por outras cidades, facilitando a participao de
pesquisadores/as de outras regies, mas com a preocupao da continuidade com as edies
anteriores, de maneira que no se perca a identidade que vem sendo construda. Assim, a UFLA,
que j havia participado como organizadora na edio anterior, permanece como organizadora
desta edio de 2014, juntamente com a UFJF. Uma parceria que vem se concretizando h algum
tempo entre os grupos de pesquisa coordenados pela professora Dra. Cludia Maria Ribeiro e
professor Dr. Anderson Ferrari, que agora se fortalecem no investimento por trazer para cidade
de Juiz de Fora/MG esse evento internacional. Busca-se consolidar a internacionalizao do
evento com a participao de pesquisadores/as e palestrantes do exterior da Europa e de outros
pases da Amrica Latina bem como da participao de pesquisadores/as, discentes e
profissionais do Brasil e do exterior, interessados/as no debate sobre corpo, gnero e sexualidade.
A configurao da obra, ao apresentar o pensamento de treze significativos/as
pesquisadores/as, representantes da Europa e Amrica Latina, testemunha uma importante
referncia no campo investigativo das temticas corpo, gnero e sexualidade. Com efeito, trata-se
de uma obra de referncia no campo da formao humana e de suas mediaes pedaggicas. Em
cada eixo, composto de textos, o/a leitor/a encontrar instigantes provocaes reflexo de
temas to urgentes e polmicos, a saber:
Corpos e Contemporaneidade: desejos, polticas, polmicas. David Le Breton no artigo
Corps, genre, identit apresentado no original e tambm traduzido por Gerclia B. de O. Mendes
tradutora juramentada de francs fala da impossibilidade de pensar o corpo, o gnero, o sexo,
a sexualidade fora da histria e apresenta-nos, ento as multiplicidades das histrias de gnero,
contestando a polaridade do masculino e do feminino. Um terceiro sexo desafia a lei do gnero:
as diferentes formas de homossexualidade que embaralham o dualismo masculino-feminino.
Reporta-se, ento, aos hermafroditas, os intersexuados, os transexuais que subvertem essa lgica.
Discute, em seu artigo, a movncia dos transgneros dedicando-se a problematizar a subverso
dos gneros, dos sexos e a queeriz-los. Em um ltimo subttulo aborda que o sexo em si uma
construo social.
Corpo, Gnero, Sexualidade e Educao: implicaes na prtica escolar veicula quatro
artigos. O primeiro de autoria de Marcio Caetano intitulado No se nasce mulher ela
performatizada: sexo, poltica e movimentos curriculares. Com base nas narrativas de professoras
transexuais e do filme Transamrica, embasado do referencial terico dos Estudos Culturais,
discute os movimentos curriculares e a produo das feminilidades. Conclui que, muito embora
entende-se as identidades como temporrias e contraditrias, elas se configuram em dilogo com
os instrumentos educacionais que nos ensinam formas de ser. Na investigao, percebeu, ainda,
que o 'feminino' foi ampliado, trazendo outras possibilidades de viv-lo, com repercusses nos
currculos, mas que suas possibilidades ainda so mediadas pela tradio sexual sobre a 'mulher'.
O segundo artigo: Entremeando corpos, sexualidades, gneros e educao escolar assinado
por Elenita Pinheiro de Queiroz Silva. Inicia sua escrita apresentando o desassossego em que se
encontrava para decidir o que escrever, pois desejava dizer o que at hoje no [me] lhe foi
possvel. Optou por apontar elementos que lhe permitiram pensar modos como as experincias
dos corpos, de gnero e das sexualidades se implicam e esto implicadas com a escola e a educao
escolar. Nesse percurso discorre considerando os subttulos: Rastros do Outro, A incurso de
outros corpos e sexualidades (experincias) nos documentos oficiais da educao escolar,
Experincias de corpos, gneros e sexualidades no jogo da escola, A colonizao dos corpos e as
sexualidades e Os corpos abjetos, corpos viveis na educao escolar. O referido percurso termina
com a afirmao de que, no campo dos estudos de gnero, corpo, sexualidade e educao, h vrias
apostas e que, uma delas a escola. Mas, qual escola? A autora elabora outras perguntas a partir
dessa e indica pistas.
Gays,
Bissexuais,
Bigneros,
Travestis,
Transexuais,
Transgneros,
Queer,
formao inicial discente na universidade que atua. Estratgias de resistncia foram produzidas
coletivamente com as crianas e so apresentadas na ltima parte do artigo. Mas antes, cada
subttulo apresenta a densidade terico-metodolgica do texto, a saber: E agora, Bernardo?
Violncia contra crianas; Ouvir as vozes das crianas: o que meninas e meninos tm a nos dizer
sobre violncias, corpo e autocuidado; O que as crianas tm a dizer sobre violncia? Como
cuidam e protegem seus corpos? Crianas tm direitos? Livros para a infncia: resistncias em
ao.
Desafios e Potencialidades da Relao Corpo, Gnero e Sexualidades. Esse ltimo
eixo apresenta dois textos. O primeiro deles de autoria de Dagmar Elizabeth Estermann Meyer:
Uma promessa de fala em forma de texto assumindo os desafios e potencialidades ditas no ttulo
do referido eixo. A autora fala, ento, do enredar-se em teias e lanar-se no olho de um furaco e
elenca vrias perguntas sobre sua agenda de pesquisa dos ltimos 10 anos que privilegia o
exame de polticas pblicas englobando as reas da Educao, da Sade e do Desenvolvimento
Social e delineia trs conjuntos de questes, a saber: 1) a noo de famlia que privilegiada nos
documentos normativos das polticas investigadas; 2) como da incorporao de gnero nas
polticas pesquisadas e, 3) que corpos importam nos processos de operacionalizao da incluso
social que se busca com essas polticas.
O segundo texto de autoria de Sergio Carrara intitulado: Reflexes sobre as tramas da
constituio de um campo. Apresentar os subttulos que compem o artigo anunciam seu
contedo: Poltica sexual no Brasil: um rpido panorama; Movimento LGBT no Brasil e a
imploso do corpo homossexual; Uma pesquisa e vrios problemas. O autor aponta para os
inmeros desafios em refletir sobre as relaes entre corpo, gnero e sexualidade no trnsito em
quatro campos distintos: o religioso, o jurdico-poltico, o cientfico e o societrio. Ressalta a
tenso entre esses campos, especialmente no que concerne s relaes entre ativismo e reflexo
acadmica desarticulando-se e rearticulando-se nas singularidades. O autor mostra, no
decorrer do texto, como diferentes estilos de militncia e de pensamento seguem em constante
interlocuo.
Ns, organizadores e organizadora, desejamos a continuidade das pesquisas, das
interlocues e crescente ebulio desse campo investigao.
Anderson Ferrari
Cludia Maria Ribeiro
Roney Polato de Castro
Vanderlei Barbosa
Agosto de 2014
SUMRIO
CAPTULO 1
CORPOS E CONTEMPORANEIDADE: DESEJOS, POLTICAS, POLMICAS
David Le Breton
Corpo, Gnero, Identidade -------------------------------------------------------------------------- 17
Traduo: Gerclia B. de O. Mendes
David Le Breton
CAPTULO 2
CORPO, GNERO, SEXUALIDADE E EDUCAO: IMPLICAES NA PRTICA
ESCOLAR
No se nasce mulher ela performatizada: sexo, poltica e movimentos
curriculares --------------------------------------------------------------------------------------------- 37
Mrcio Caetano
Entremeando corpos, sexualidades, gneros e educao escolar ---------------------------- 59
Elenita Pinheiro de Queiroz Silva
Cuerpos, gneros y sexualidades de/en la Formacin Docente: Institucionalizacin y
militancia social. La importancia de mantener la tensin------------------------------------- 79
Graciela Alonso
Corpo, gnero, sexualidades e educao ---------------------------------------------------------- 97
Eliane Rose Maio
Isaias Batista de Oliveira Junior
CAPTULO 3
CORPO-ARTE, CORPO-ESPORTE, CORPO-CONSTRUO: O QUE PODEMOS
FAZER COM O CORPO, NO CORPO, A PARTIR DO CORPO, PELO CORPO, ENTRE
CORPOS...
Os corpos no espao escolar: (Re)configuraes dos/as alunos/as anormais em
tempos ps-modernos ------------------------------------------------------------------------------- 121
Paula Regina Costa Ribeiro
Corpo, gnero e prticas corporais esportivas: dilogos iniciais a partir da teoria
queer ---------------------------------------------------------------------------------------------------- 139
Priscila Gomes Domingues Dornelles
CAPTULO 4
CORPOS, RESISTNCIAS, SEXUALIDADES
(Des)fazendo gneros e queerizando a vida: a (des)educao de corpos ------------------ 159
Maria Rita de Assis Csar
O Corpo como heterotopia (?): Problematizaes na cama do gnero, da sexualidade
e do envelhecimento --------------------------------------------------------------------------------- 175
Fernando Pocahy
E agora, Bernardo?! Corpos infantis, sexualidades e violncia contra crianas -------- 185
Constantina Xavier Filha
CAPTULO 5
DESAFIOS E POTENCIALIDADES DA RELAO CORPO, GNERO E
SEXUALIDADES
Uma promessa de fala em forma de texto ------------------------------------------------------- 209
Dagmar Elizabeth Estermann Meyer
Reflexes sobre as tramas da constituio de um campo ------------------------------------ 217
Srgio Carrara
CAPTULO 1
CORPOS E CONTEMPORANEIDADE:
DESEJOS, POLTICAS, POLMICAS
DAVID LE BRETON
UNIVERSIDADE DE ESTRASBURGO, FRANA
Histoires de genre
On ne peut penser le corps (mais tout autant le genre, le sexe, la sexualit) hors de
lhistoire, et de valeurs et de reprsentations propres une condition sociale et culturelle un
moment donn, mme si lindividu en fait son affaire et se les approprie sa manire. Aucune
extriorit rassurante nautorise formuler un jugement de vrit ce propos. Parler de masculin
ou de fminin, implique de quelque faon un jugement de valeur, la rfrence un contexte social
et culturel. Lanthropologie du XXe sicle et le fminisme des annes soixante-dix dnoncent
lternel fminin ou lternel masculin. M. Mead surtout, ds les annes vingt, montre que
homme et femme sont des constructions sociales, des genres dont les attributs et les
rles sont infiniment variables, transmis par la socialisation, et en aucun cas des essences (Mead,
1963). S. de Beauvoir condense en une formule exemplaire cette mallabilit du genre en crivant
: On ne nait pas femme, on le devient . De la mme faon, on devient un homme .
Les notions d homme ou de femme ne sont pas des essences, elles se dissolvent sous
les fictions plus ou moins partages qui les mettent en scne dans le lien social. Ces attentes
collectives propres aux rles de genre sont antrieures au sexe et elles le conditionnent.
Lindividu construit lvidence de ses comportements comme homme ou femme, sans en avoir
toujours conscience car il en a acquis le principe au cours de son enfance par la socialisation et
leur confirmation relve du jeu ordinaire de lexistence. Cest une pratique dimprovisation qui
se dploie lintrieur dune scne de contrainte (Butler, 2006, 13). Le sexe dit biologique
nexerce aucune obligation sur lidentit sexuelle, cest--dire les comportements de genre et la
sexualit. Le genre construit lintelligibilit du corps et des comportements dans lespace public.
Le masculin ou le fminin nexistent qu travers les rptitions comme normes de comportement
et non comme absolus. Le genre nest pas emprisonn dans le sexe, et de surcroit le sexe est plus
compliqu quune simple polarit masculin-fminin. La notion de sexe est mme dduite de la
notion de genre.
Mme si elles demeurent largement dominantes travers le monde et dans nos propres
socits, les conventions du genre (masculin et fminin), tayes sur un enracinement biologique,
confirmes par les ritualits sociales et les reprsentations culturelles, contrles par ltat civil,
et donc par lEtat, sont aujourdhui branles. Le masculin et le fminin incarnaient deux essences
immuables, dissymtriques au regard de la domination masculine, au fondement de la famille et
du lien social, mais aujourdhui leur solidit seffondre. Si les diffrences de genres sont restes
longtemps tranches dans nos socits, elles connaissent bien des mutations majeures. Nombre
dhommes ou de femmes ont des comportements qui taient traditionnellement associs l
autre sexe. La fminit est multiple comme lest la masculinit, lune et lautre se dclinent en
maints styles parfois contradictoires (Le Breton, 2012). Les conceptions traditionnelles du genre
volent en clat. Cette ouverture drange ceux dont le sentiment didentit est profondment
enracin sur une vision ancienne des genres, elle libre les autres qui se reconnaissent mal dans la
ncessit de trouver leur place dans la dualit, mais elle naffecte gure une majorit de nos
contemporains pour lesquels ces jeux de diffrence relvent surtout de la libration de lindividu.
Le genre devient le fait dune dcision propre et dune reprsentation sur la scne sociale appuye
sur une cosmtique adapte pour produire une identit dhomme ou de femme, ou autre,
indpendamment de son sexe biologique dorigine, ce dernier nest quun pr-texte. Lidentit
de genre, immerge dans le sentiment didentit de lindividu, est mallable, mouvante, multiple,
simple proposition ventuellement rvocable. Tout individu, avec son style propre met
thtralement en scne, en toute vidence et en toute sincrit, au long du jour et du temps, les
modes de prsence et de comportements propres au sens commun de son genre. A lexception de
ceux qui sefforcent justement de les apprivoiser car ce sont des transfuges en qute de crdibilit
pour eux-mmes, venus de lautre sexe ou des individus mal dans leur peau et leur genre.
Lidentit performative de genre nest pas seulement la rptition dun modle dj donn, mais
une improvisation thtrale travers un canevas que chaque acteur sapproprie sa guise en le
dplaant selon son style propre. Le genre nest quune ressource, une boite outils disposition
des individus. Elle nest pas une contrainte, mais une proposition la manire dun rle tenu par
un comdien sur une scne de thtre (Berger, 2013).
Mauvais genre
Principe fondamental dorganisation du lien social (Hritier, 2008), la polarit du masculin
et du fminin est aujourdhui conteste. Sans doute universelle, au-del de ses multiples
dfinitions sociales, elle est cependant traverse de nuances ou dexceptions. Un troisime sexe
(Murat (2006, 11) vient parfois dfier la loi du genre : les diffrentes formes dhomosexualits
brouillent le dualisme masculin-fminin. Plus encore les hermaphrodites ou les intersexus la
subvertissent radicalement car ils possdent les attributs des deux sexes avec des organes trop
mlangs pour attester dune assignation prcise. Ni homme ni femme, et cependant lun et
lautre. A leur corps dfendant, ils subvertissent par leur anatomie les catgories socialement en
usage.
Le transsexualisme est une autre objection la naturalit du sexe1. Chez les transsexuels
une contradiction tragique oppose leur anatomie et leur sentiment didentit. Leur corps fminin
ou masculin contredit lhomme ou la femme quils sont convaincus dtre, et leur corps leur
apparait comme une prison. Un homme se sent femme, une femme se sent homme, et leur
aspiration est de transformer leur apparence anatomique pour se conformer au sexe quils pensent
tre, surtout pour chapper la souffrance de ne pas se sentir soi. Leur sexe biologique ne
concide pas avec leur dsir social de genre. Ils sidentifient comme homme (FtM) ou femme
(MtF). Ils vivent une contrainte la mtamorphose (Sironi, 2011, 25) et se sentent souvent en
porte faux avec le parcours mdical qui simpose eux pour avoir le droit de changer de sexe
. On nous dit que nous sommes des malades mais que nous pouvons tre guris. En
consquence de la mdicalisation de notre condition de transsexuels, nous devons voir des
thrapeutes pour tre autoriss recevoir les traitements mdicaux propres la rassignation
(Bornstein, 1994, 62). Leur malaise rappelle que la polarit masculin-fminin fonde sur le sexe
est dabord une convention sociale et culturelle. Mme si par ailleurs nombre dentre eux tiennent
au binarisme des sexes.
Pour chapper au dsarroi de se sentir enferms dans un corps inappropri et rejoindre leur
dsir, conformer leur sentiment didentit leur corps, ils prennent le risque de franchir le pas, ils
recourent des outils de transformation de soi : la rassignation hormonale qui consiste en un
arrt pharmacologique de la production dhormones propres au sexe de naissance et linverse
la prise dhormones dans un souci de remodelage de la forme du corps2. La prise clandestine
dhormones est courante, ou bien elle accompagne un processus mdical de rassignation. Les
hormones sont la matire dun jeu, dune transformation du corps et de lhumeur qui est une
forme dexprimentation de soi. Ces prises visent liminer les traits saillants dune identit de
genre que les individus veulent liminer au profit de celle quils ont choisi. Epreuve de vrit qui
confirme ou annule la dcision de poursuivre le processus car ses effets sont toujours rversibles.
Nettement plus radicale, la chirurgie implique davoir longuement muri sa dcision car elle est
sans appel, et certains transsexuels y renoncent. Elle transforme leur apparence en tant ou en
recrant les organes qui leur posent problme. Chez les FtM, elle procde une ablation de
1
A limage des personnes intersexes ou hermaphrodites, les transsexuels se sont battus contre les instances
mdicales ou psychanalytiques qui pathologisaient leur tat, et revendiquaient ddicter une vrit du sexe et du
genre, ils se sont arrachs leur invisibilit dans les mouvances gay ou lesbiennes (Foerster, 2012, 175 sq.) M.
Foerster rappelle la violence qui sest longtemps exerce contre eux familiale, policire, juridique, politique,
psychiatrique, psychanalytique, linguistique et bien sr, physique (Foerster, 2012, 207).
Rappelons que nombre de biologistes rcusent la qualification de sexuelle propos de ces hormones car elles
remplissent de nombreux rles dans lorganisme. A. Fausto-Sterling (2012) suggre de les nommer hormones
strodes ou hormones de croissance pour viter lambigut de la mtaphore sexuelle.
lutrus, des ovaires et des seins, et ventuellement une transformation du vagin pour ceux qui
souhaitent un no-pnis. Chez les MtF, elle enlve la pomme dAdam, le pnis et les testicules
pour plus tard crer un no-vagin, un clitoris, une vulve, un nouvel appareil urinaire. Une autre
squence consiste en une intervention chirurgicale pour modifier les cordes vocales et en une
rducation de la voix pour lajuster au nouveau genre. Et une pilation radicale pour les MtF
ou linverse la jubilation de voir les poils qui poussent pour les FtH. De la russite ou de lchec
de ce processus dpend la qualit dexistence de lindividu. Matire premire ventuellement
agencer autrement, un certain nombre dattributs corporels ayant une connotation forte de genre
se transforment en signes du masculin ou du fminin et redistribuent les frontires et les
identits.
Le changement dtat civil vient couronner la dimension sociale du passage dun genre un
autre ou dun sexe lautre. Bnficier de la chirurgie ma permis daspirer ce qui va de soi
pour les habitants du Minnesota : une vie normale. Je nai plus tent de me suicider , crit M. D.
OHartigan (in Califia, 2003, 359). Elle rcuse la qualification de transgenre son propos car, ditelle, elle na pas chang de genre mais de sexe : Comme les hijras dInde et les gallae de Rome,
jai fait usage dune arme blanche contre moi-mme et jai dmontr que lanatomie ce nest pas le
destin. Comme le shaman sibrien tchouktche, je suis morte, on ma dmonte et rassemble. Jai
chang de sexe et je suis revenue avec de nouveaux pouvoirs (in Califia, 2003, 358). Beaucoup
de transsexuels vivent leur mastectomie (ablation des seins chez les personnes FtM) ou leur
pnectomie (ablation du pnis chez les MtF) comme une renaissance. Ou du moins comme un
premier pas minemment symbolique. Enfin, elles vivent la hauteur de leur dsir dappartenir
lautre sexe, ou de voyager dans leur corps selon leur dsir.
Ce passage dun monde social de genre un autre travers la mtamorphose du corps,
Garfinkel lobserve en sociologue en 1958, la clinique de l'UCCLA (Universit de Los Angeles)
o il enseigne. Il rencontre une jeune femme de 19 ans : Agns, qui se prsente comme secrtaire :
visage agrable, maquillage discret, taille fine, voix douce, elle tmoigne d'une fminit panouie.
En fait son corps est anatomiquement masculin, mais le pnis dont elle est dote est ses yeux
une anomalie. Depuis toujours elle se sent femme et vit comme une injustice ce membre qui
l'empche de rejoindre pleinement son essence. Agns partage le sens commun de la division des
sexes entre hommes et femmes, mais elle se considre comme une exception cause dune erreur
biologique. Elle se dfend de la moindre ambigut dans son attitude, elle n'est ni homosexuelle,
ni travestie, ni transsexuelle, mais femme part entire, hormis le "dtail" de son sexe. Ses seins
bien dvelopps et son absence de pilosit, sa manire de se vtir, ne la distinguent en rien d'une
autre jeune femme de son ge et de sa condition sociale. Rien n'est exagr dans ses attitudes, elle
prsente les signes d'une fminit qui s'impose avec aisance ses interlocuteurs. Elle s'prouve
comme une femme enferme dans un corps d'homme. Son ducation et son apparence pour les
autres furent pourtant celles d'un garon jusqu' l'ge de 17 ans. A cette poque elle suit un
rgime alimentaire pour maigrir, modifie le style de son apparence et franchit le pas de se
prsenter en public comme la femme qu'elle pense tre depuis sa naissance. Elle part dans une
autre ville o nul ne la connat pour vivre pleinement sa nouvelle existence. Elle y trouve un
travail de secrtaire.
Garfinkel passe de longues heures avec elle pour comprendre son histoire, ses motivations,
il s'intresse surtout la manire dont elle produit sa fminit au fil des circonstances malgr son
pass masculin. A tout instant Agns ralise en effet l'accomplissement pratique de sa fminit en
se conformant aux attitudes "naturelles" d'une femme qui parle, marche, mange, se maquille, etc.
Si son apparence ou le style de ses gestes donnent l'impression dune routine, ils sont le fruit d'un
effort d'observation et dajustement qui n'en finit jamais. Les allants de soi d'une telle attitude
imposent un travail minutieux de mise en scne de soi. Agns se cre femme par son rcit
(accountability), ses manires dtre et ses actes. Elle est une "apprentie secrte" (secret apprentice)
de ce qu'il en est, selon elle, d'tre femme. Pour entrer davantage dans son rle, elle profite des
autres qui sont mieux au fait des "ethnomthodes" de la fminit et elle les utilise leur insu
comme personnes ressources. Chaque situation nouvelle se mue en ventuelle leon pour la
dbutante qu'elle est. Le regard des autres lui donne en permanence un jugement sur ses lignes
de conduite, il est une sorte de boussole pour ajuster ses comportements. Il lui importe non
seulement d'tre une femme normale , mais surtout de le paratre leurs yeux.
Les organes sexuels lgitimement possds confrent la personne le droit tre ce qu'elle
est. Si la "nature", au sens des allants de soi biologiques est une source plus propice
l'habilitation, les chirurgiens peuvent se faire les agents d'un rtablissement de "ce qui aurait d
tre" lorigine, ce vagin-l, recr pour pallier les dfauts de la nature, devenant justement la
ralit (Garfinkel, 2007, 217). Aprs son opration, prive de son pnis et dote dun vagin, Agns
demeure sur ses gardes, de crainte d'une bvue susceptible d'induire le soupon sur le caractre
naturel de sa fminit. Il lui incombe de construire l'vidence de son personnage de femme pour
l'arborer sans dommage devant autrui, une performance sans cesse reprendre.
Chez les trans qui sinscrivent dans une logique de passage dun sexe lautre (Foerster,
2012, 189), les transformations cosmtiques saccompagnent dune srie dapprentissages ou de
comportements en lien avec le sexe dlection. Par exemple, uriner assis malgr un pnis ou
debout malgr un vagin, signe lmentaire didentification qui se prolonge travers la recherche
dun style de prsence aux autres qui calque les usages du genre dsir dans les manires de
shabiller, de se coiffer, de soigner son apparence, de marcher, de parler, dinteragir avec les
autres, etc. Parfois cet apprentissage sest effectu trs tt dans lexistence sur un mode secret
(dans sa chambre en revtant les vtements de lautre genre et en simaginant les porter dans des
scnes fictives de la vie courante) ou public (mais non sans raillerie ou sans susciter le mpris). La
tche est deffacer les attributs physiques et les manires de se comporter susceptibles de prter
malentendu pour paraitre conforme au genre dsir.
Souvent le passage seffectue petits pas, en apprenant mieux se connaitre et oser
affronter le regard des autres. Ainsi de Camille Cabral, mdecin venue du Brsil, interroge par
A. Fleming Cmara Vale, qui raconte son cheminement progressif vers son sexe et son genre
dlection : Pouco a pouco, eu comecei a me impor socialmente como mulher. Eu usava um jeans
feminino, um pulver mais ou menos, meio l e meio c e fui fazendo minha transformaao, meu
processo de feminilizaao, tomando hormnios com a posologia exata e vendo um
endocrinologista () eu j sabia que minha feminilidade era completamente diferente, por
exemplo, da feminilidade de um gay efeminado () E claro que havia uma feminilidade no corpo,
no andar, na fala, etc., mas isso nao essa feminilidade que voc v hoje () Antes de tomar
hormnios, eu tenho impresso de que minha feminilidade era mais adaptada para essa
feminilidade um pouco afetada, talvez, que alguns gays tm (Vale, 2012, 86). Il ne sagit pas de
reproduire, de mimer, mais de devenir soi travers une reprsentation intime de ce quest une
femme. Germana, autre trans, explique comment elle aussi effectue le passage en se voyant
travers le regard des hommes et en sloignant de la fminit porte par les gays : Voc se
hormoniza, se feminiliza, voc faz outra leitura desse olhar. Voc agora faz a leitura daquele olhar
com desejo, com vontade de confundir-se com uma fmea e isso traria uma certa premiaao no
sentir, muito mais do que as rabiscadas, os despeitos que causou em tanta gente (Vale, 2012,
146). La condition sociale, la capacit intime de se dprendre de soi pour ne jamais se laisser
intimider par le discours ambiant, la comprhension ou lhostilit des personnes qui comptent
ses yeux, favorisent ou non la dcision du passage et sa qualit ultrieure. Mais chaque
transsexuel construit son chemin vers lautre genre son rythme, avec les technologies quil
entend mettre en uvre pour laider dans sa dmarche.
homme-femme,
masculin-fminin
et
affiche
la
volont
de
problmatiser les diffrences, de les multiplier plutt que de les ranger dans des catgories
stables et prtablies. Elle nait dune volont daller au-del du travestissement et du
transsexualisme dans une sorte de rcusation de la dualit des sexes en jouant sur la frontire et
en devenant impossible cataloguer, voire mme en inventant dautres manires dtre, dautres
formes corporelles. Certains nomades de leur corps entendent devenir genderqueer ou FtN
(fminin neutre) ou MtN (masculin neutre).
Jamais la matrialit du corps nest une donne naturelle ni fixe, de mme la diffrence
sexuelle quil convient dailleurs mieux de nommer au pluriel : les diffrences sexuelles pour
rompre avec la polarit du fminin et du masculin, mme si celle-ci demeure socialement trs
puissante. Il sagit toujours dune entreprise de matrialisation de sens travers des contraintes
normatives que lindividu sapproprie selon son histoire. Aujourdhui une rflexivit intense
amne intervenir directement sur la dfinition visible de soi. Le corps est une forme
symbolique, un univers de significations et de valeurs toujours rejou, toujours en mouvement
(Le Breton, 2012 ; 2013).
Certes, le transgenre nchappe pas lhistoire de sa socit, sa condition sociale, aux
valeurs ambiantes, aux reprsentations qui lentourent, mme sil se les approprie la premire
personne, mais sagissant de son corps et de sa sexualit, il est dans la position dun artiste qui
joue de son existence et sapproprie un langage dj donn pour y imprimer sa marque.
Dmler la signification prcise de ce que peut tre lautonomie est cependant une tche difficile
puisque choisir son corps implique toujours de naviguer entre des normes poses lavance, des
normes antrieures au choix de la personne et articules de concert avec dautres puissances
dagir minoritaires (minority agencies). En fait, crit J. Butler, les individus sappuient sur des
institutions et des rseaux de solidarit afin dexercer leur pouvoir dautodtermination
relativement au corps et au genre quils souhaitent avoir et maintenir, de sorte que
lautodtermination ne prend sens que dans le contexte dun monde social qui soutient et rend
possible lexercice de la puissance dagir (Butler, 2006, 19).
Le transgenre entend revtir une apparence sexuelle conforme un sentiment personnel
durable ou provisoire. Son sexe dlection est le fait de sa dcision propre, un moment donn, et
non un destin anatomique, il vit travers une volont dlibre de provocation ou de jeu, et de
subversion des modles contraignants ses yeux. Il se faonne au quotidien un corps toujours
inachev, remaniable, toujours conqurir grce aux hormones, aux chirurgies, aux cosmtiques,
aux vtements et au style de sa prsence aux autres. Le genre devient un vaste champ
dexprimentation non plus une polarit mais un continent explorer. Volont de conjurer la
sparation, de ne plus faire du sexe (du latin secare : couper) ni un corps ni une biologie, mais de
sen affranchir pour sinventer et se mettre soi-mme au monde.
La mdecine qui a longtemps fonctionn comme une police du genre et de la sexualit, en
conformit avec les modles rgulateurs de nos socits, devient dsormais une boite outil pour
se dfaire de la pesanteur de tout ancrage de genre et de sexe. Le corps devient un fait personnel
(Le Breton, 2012 ; 2013). Certes, toute invention de soi est mesure socialement par les
propositions offertes sur le march de la cosmtique en gnral, et des pressions sociales, et par la
manire dont lindividu essaie de tirer son pingle du jeu, mais il nest pas seul dans son corps,
une foule laccompagne comme disait Artaud. En outre, le passage dun sexe un autre, ou la
volont dinventer un corps singulier, implique une redfinition radicale de soi et notamment des
relations antrieures avec lensemble des acteurs qui constituaient son public coutumier dans le
tissu social ou professionnel. Si le franchissement est une preuve morale pour lindividu luimme, il connait aussi celle de la confrontation directe avec les autrui significatifs, les personnes
qui comptent ses yeux : ses parents, son compagnon ou sa compagne, ses enfants, ses ami(e)s,
etc. La personne trans doit affronter une multitude de demandes dexplications relatives sa
nouvelle apparence et son changement dtat civil.
Queeriser le genre
Les transgenres revendiquent le droit de choisir leur genre et/ou leur sexe, mais sans
ncessairement sy installer. Ils inventent lindiffrenciation des sexes et des genres dans le jeu
entre les deux sexes ou au-del. Ils subvertissent la diffrence. Ce sont des passeurs de corps, des
passeurs de monde (Sironi, 2011, 18), qui refusent lenfermement dans un genre, mme si
certains prennent des hormones pour se rapprocher de lun ou de lautre, ils ne recourent pas
ncessairement la chirurgie pour une rassignation. Ils demeurent dans le passage, lentre-deux
ou plutt lentre-tout la liminalit, ils sont multiples, changeants, nomades de leur corps et de
leur dsir. Voyageur de leur propre corps, ils changent leur guise de forme et de genre,
poussant son terme le statut dobjet de circonstance dun corps modulable, devenu une pure
proposition reprendre (Le Breton, 2012 ; 2013). Si ltre humain nat homme ou femme, il nest
pas tenu de le rester, il peut instaurer son propre genre, les multiplier en refusant toute
contrainte didentit ce propos. La revendication genderqueer libre de tout ancrage biologique,
de toute convention sociale et invente un individu sans frontires de genre, faisant imploser les
pratiques sexuelles.
Apparue aux Etats-Unis au dbut des annes quatre-vingt-dix, elle entend retourner le
stigmate attach toute sexualit non htronormative et elle revendique une multitude de
positionnements possibles en matire de genre, de sexe et de sexualit. Elle vise troubler le
genre , disloquer le systme traditionnel genre-sexe. Au sexe ne correspond plus
ncessairement un genre. Les technologies de genre (de Lauretis, 2007) socialement mises en
uvre ne sont plus que des pr-textes que la personne peut sapproprier sa guise en les
subvertissant. La thorie queer traduit lindividualisation du sens et du corps (Le Breton, 2013)
dans nos socits, lmergence dun individu pour qui les donnes sociales et culturelles
ambiantes ne sont que des ressources, jamais des intimidations. Elle poursuit en la radicalisant
lentreprise de dnaturalisation du genre et du sexe. Un dispositif symbolique, la fois technique,
visuel, stylistique, produit lvidence dtre homme ou femme ou en bouleverse les catgories en
inventant dautres manires dtre. Le genre nest plus pos en dualit mais comme une
accumulation de possibilits dpendantes des comportements et du discours que lindividu tient
sur lui-mme. Il nest quune ressource reprendre crativement par un individu qui nest plus
astreint rpter des normes mais inventer des manires dtre qui lui soient propres. La
polarit masculin-fminin est subvertie, non seulement en en multipliant les modalits possibles,
mais aussi en inventant dautres manires dtre (Boursier, 2011, 219). Il nexiste plus pour les
genderqueers de genre masculin ou fminin bien dfini mais une zone dindtermination, un refus
dassignation rsidence dans un corps.
Masculin et fminin nincarnent plus une vrit ontologique fonde sur une anatomie
intangible, ni mme une polarit ncessaire, l o la fabrique corporelle de soi ne cesse dlargir
son champ dintervention possible travers larbitraire personnel de sa forme corporelle et de ses
manires de se mettre en scne. Ils sont une diffrence parmi dautres, proposition initiale
rectifier selon une volont propre. Des transgenres appellent un troisime genre, dautres
soutiennent la possibilit dune multitude de genres. Lassignation un genre devient surtout une
histoire que lon se raconte et que lon accrdite aux autres travers une stylisation de son
rapport au monde. Certains trans se revendiquent gender queer ou gender outlaw et refusent toute
assignation en termes de masculin ou fminin. Ils entendent saffranchir de ces catgories
obsoltes leurs yeux. Pour K. Bornstein, il y a surtout des hommes et des femmes, mais elle ne
se reconnait pas dans ces catgories, et les autres, inclassables, dans lesquels elle se compte. Elle
crit ce propos : Aprs trente-sept ans essayer dtre un homme et plus de huit ans essayer
dtre une femme, jen suis arriv la conclusion quaucune de ces deux positions ne vaut la peine
, mme si elle dit sortir dans la rue en se donnant les allures dune femme afin de ne pas tre
agresse et viter de passer pour une sorte de monstre (Bornstein, 1994, 234-125). Pour elle
cest le systme de genre lui-mme lide mme du genre- qui doit tre abandonn. Les
diffrences tomberont delles-mmes (114). Ainsi, par exemple, Norrie (48 ans), cite par F.
Sironi, se dfinit comme androgyne : Ces concepts, homme et femme, ne me vont tout
simplement pas, et sils me sont appliqus, ils relvent de la fiction (Sironi, 2011, 69).
Ces trans revendiquent une chappe belle hors des catgories prtablies socialement pour
se dfinir justement dans le trans, le passage, une transition qui nen finit plus, ils subvertissent
les limites des genres. T. Beatty, transsexuel amricain FtM a mis une fille au monde en 2008.
Dans son processus de rassignation, il prenait de la testostrone et avait ralis une
mammectomie. Il conservait cependant son utrus et ses ovaires. Ces personnes saccommodent
10
de rester dans lentre-deux, inassignables, par rticence devant les prises dhormones ou les
chirurgies radicales, elles vivent alors en homme ou femme trans, avec des traits de lautre sexe
tout en prservant certains caractres de leur sexe dorigine. Elles donnent le change travers la
manire dont elles se mettent en scne dans leur vie personnelle selon leur public du moment.
Elles sont en qute dun mythe personnel du genre atteindre. Ce mythe se fonde sur un
bricolage avec les multiples rcits qui traversent la scne queer et les dbats publics ce propos
mais il est aussi hritier des fantasmes de lenfance et de ladolescence. Dans la mesure o il
nexiste pas de modles prtablis, chaque trans sinvente un personnage qui nappartient qu lui,
mme sil est ncessairement en lien avec la sensibilit dun moment.
Pourquoi notre socit ne permet-elle que deux genres maintenus polariss ? Pourquoi
navons-nous pas de rle social pour les hermaphrodites ? Les berdaches ? Pourquoi les
transsexuels doivent-ils devenir de vraies femmes ou de vrais hommes au lieu dtre
seulement des transsexuels ? Aprs tout, ny a-t-il pas des avantages tre un homme avec un
vagin ou une femme avec un pnis, ne serait-ce que pour la perspective unique que cela ouvrirait
? Pourquoi les gens ne peuvent-ils pas aller et venir comme ils le dsirent (Califia, 2003, 356).
Pat Califia se demande si finalement le genre est si important, et elle imagine un monde o il
glisserait dans linsignifiance ou deviendrait provisoire : A quoi cela ressemblerait-il de vivre
dans une socit o on pourrait prendre des vacances de son genre ? Ou (encore plus important)
du genre des autres ? Imaginez la cration de Gender Free Zones (Califia, 2003, 382). G. Rubin
crit elle-aussi : Mon sentiment personnel est que le mouvement fministe doit rver bien
plus encore qu llimination de loppression des femmes. Il doit rver llimination des
sexualits obligatoires et des rles de sexe. Le rve qui me semble le plus attachant est celui dune
socit androgyne et sans genre (mais pas sans sexe) o lanatomie sexuelle naurait rien voir
avec qui lon est, ce que lont fait, ni avec qui ont fait lamour (Rubin, 1998, 62-3). Dans la
mesure o le genre se personnalise, il se multiplie linfini et devient une notion indcidable
quand il ne relve plus directement du fminin ou du masculin, dautant plus si lindividu ny
occupe que des positions provisoires.
La mouvance genderqueer se dcline en archipel avec ceux qui chevauchent deux genres sans
tre assignables lun dentre eux : ceux qui affichent deux, trois ou davantage de genres ; ceux
qui rcusent le genre. Et ceux qui inventent dautres genres, mme si la tche nest pas aise. Ce
sont des personnes (des personnages la Goffman) qui demeurent dans lintelligibilit sociale
malgr le jeu des diffrences car ils rptent sans doute leur insu certaines conventions de genre
en les subvertissant par moment, ils restent socialement lisibles dans leur comportement et leur
apparence, en ce quils ne rompent pas radicalement les rites dinteraction, le rapport au langage
ou les manires dapparaitre aux yeux des autres. Ils inventent une myriade de comportements
11
qui induisent sans doute lironie, lamorce dun autre monde, mais toujours dans la sphre de la
communication sociale. Il semble que lhumain doive devenir tranger lui-mme, monstrueux
mme, pour rinstaurer lhumain sur un autre plan, crit J. Butler. Cet humain ne sera pas un, en
effet, il naura pas de forme dfinitive, mais il ngociera constamment la diffrence sexuelle de
faon ce quelle nait pas de consquences naturelles ou ncessaires sur lorganisation sociale de
la sexualit. Si jinsiste pour dire que ce sera l une question persistante et ouverte, cest pour
suggrer de ne pas dfinir la diffrence sexuelle mais de laisser cette question troublante ouverte
et non rsolue (Butler, 2006, 219).
Longtemps stigmatiss, les trans sont aujourdhui des analyseurs des conventions de nos
socits autour de la naturalit du masculin et du fminin qui justifiait lhtrosexualit et
lassignation un corps destin pour toute lexistence. Avec le soutien des technologies, la
production des corps, mme si elle ne remet nullement en cause le binarisme largement dominant
du masculin et du fminin, en a cependant desserr le principe, et ouvert au-del. Le corps se
construit partir dune anatomie furtive et dun nomadisme aujourdhui encore insolite. Il relve
dune autognration, dune mise au monde par soi-mme (ou plutt pense comme telle). La
dmarche est profondment politique et traduit lindividualisation du sens propre nos socits
contemporaines.
12
organes cachs surgir soudain. Il ny a pas frontires entre homme et femme mais passages,
fluctuations dun mme sexe qui runit aussi bien le guerrier le plus fort au courtisan le plus
effmin, de la plus agressives des mgres la plus douce des pucelles (Laqueur, 1992, 142).
Le corps tait finalement unisexe, une simple diffrence de degr distinguait lhomme de la
femme. Au XVIIIe sicle merge le modle anatomique des deux sexes, une diffrence despce en
quelque sorte, et ds lors le sexe engage le genre. Les anatomistes mettent en vidence que la
diffrence homme-femme nest pas seulement le fait des organes reproducteurs, mais touchent
maints aspects du corps. Une certaine tradition dun corps cosmologique hrit de lantiquit, et
notamment de Galien, cde la place un corps boucl sur lui-mme, coup du monde, devenu
organisme, et lieu fondamental de lincarnation individuelle. La menstruation et la lactation, par
exemple, sont identifies des processus physiologiques propres au fminin et non plus une
commune conomie des fluides (Laqueur, 1992, 11), mais la qute des diffrences biologiques
devient obsessionnelle au XIXe sicle. Lide de la continuit des corps est rvoque par celle
dune radicale incompatibilit entre les sexes.
Dans sa prface ldition amricaine des mmoires dHerculine Barbin, M. Foucault (1994)
rappelle que longtemps nos socits ne se sont gure soucies de lattribution dun vrai sexe
aux individus. Au Moyen Age par exemple, face la naissance dun enfant hermaphrodite, le pre
ou le parrain dcident du sexe retenu en fonction de ce quintuitivement ils ressentent du devenir
du nouveau-n. Plus tard, au moment de se marier, lindividu dcide de son propre chef sil
conserve ou non ce sexe pour ltat-civil. Mais ds lors il ne peut plus en changer. Plus tard,
partir du XVIIIe sicle, le libre choix disparait, un vrai sexe est assign par les mdecins la
naissance de lenfant en dgageant une vrit anatomique derrire la confusion du corps. Au
fil du temps, nos socits finissent par accepter, non sans rticence, que certaines personnes qui se
sentent en dsaccord avec le sexe attribu socialement puissent en changer pour entrer enfin dans
le bon sexe , mme parfois au-del des apparences.
La matrialit du corps nest pas une biologie o viendrait sincarner la vrit dun sexe, elle
nest quun test projectif travers lequel les individus tiennent un discours et accomplissent les
performances qui les amnent tre rangs dans des catgories existantes ou en inventer
dautres. Elle est une cristallisation la fois provisoire et durable de significations et de valeurs
pour lindividu dune part, et pour la trame sociale de lautre. Un cart existe souvent entre
certaines perceptions individuelles et certaines perceptions sociales. Les catgories biologiques
sur lesquelles sappuient les distinctions de sexe dans nos socits sont objets de dbats : sexe
anatomique, physiologique, hormonal, chromosomique, gntique. Plusieurs sexes deviennent
pensables, aucune vidence naturelle ne simpose mais un palimpseste dchiffrer. Le mme
individu est parfois male, sous certains aspects biologiques, et femelle pour dautres. Le vagin ou
13
le pnis ne suffisent pas attester dun sexe prcis, ils sont des lments parmi dautres mme
sils viennent alimenter au premier chef les catgories du sens commun. Le monde sportif est
rgulirement confront cette impossibilit de trancher sur lattribution dun sexe biologique.
Etant donn les discordances souvent notes entre le sexe anatomique, le sexe hormonal ou le
sexe gnique, comment dcider dans ces conditions partir de quelle proportion et de quel
mlange de traits biologiques une personne devrait tre considre comme une femme ou comme
un homme ? (Gardey, Lwy, 2000, 26). Le sexe nest pas une catgorie physique ou biologique,
mais une attribution symbolique plus ou moins consensuelle. La bicatgorisation du sexe ne
tient pas plus que le sexe lui-mme la route du naturel (Rouch, 2011, 108). J. Butler rappelle
combien le concept de sexe est un terrain troubl, puisquil sest form travers une srie de
controverses quant aux critres dcisifs permettant de distinguer les deux sexes (Butler, 2009,
19). Les donnes biologiques, en ce quelles sont elles-mmes socialement construites, ne suffisent
pas tablir une diffrence naturelle des sexes, elles ne sont que ce que les individus en font.
La biologiste A. Fausto-Sterling crit quapposer sur quelquun ltiquette homme ou
femme est une dcision sociale. Le savoir scientifique peut nous aider prendre cette dcision,
mais seules nos croyances sur le genre et non la science- dfinissent le sexe () Nos corps sont
trop complexes pour offrir des rponses claires et nettes sur la diffrence sexuelle . Elle se
demande dailleurs sil doit ny avoir que deux sexes (Fausto-Sterling, 2012, 19-21-101). La
science ne dcrit pas les phnomnes, elle les constitue.
Les donnes biologiques propres aux reprsentations du corps sont dj connotes dune
dimension de genre. Elles sont ressaisies au cur du lien social en termes de masculin ou de
fminin. Des mtaphores induisent de retrouver en amont des catgories que lon a mises en aval
en toute bonne foi dans un raisonnement circulaire (Keller, 2000). A. Fausto-Sterling en rsume
le principe : Au cours du sicle les scientifiques nont cess dintgrer plus profondment les
signes du genre dans notre corps : des organes gnitaux la chimie corporelle en passant par
lanatomie des gonades et des cerveaux. Dans le cas de la chimie corporelle, ils ont accompli cet
exploit en dfinissant comme des hormones sexuelles des rgulateurs chimiques multisites de la
croissance, rendant ainsi quasiment invisible leur rle non sexuel dans le dveloppement
masculin et fminin () Malgr cette absence dintention manifeste, le travail de recherche sur la
biologie des hormones est profondment li la politique du genre (Fausto-Sterling, 2012, 1701). Lanatomie, la physiologie sont dabord des surfaces de projection du sens, elles sinscrivent
dans un paradigme fortement marqu par la dualit des sexes, et dans un systme
dinterprtation qui ne peut que retrouver des catgories genres dans le sexe puisquil les y a
dj mises. Certains, comme M. H. Bourcier en viennent se demander si la diffrence sexe-genre
est vraiment utile : Tout est genre, y compris le sexe dont les prtentions naturalisantes,
biologisantes et binaires seront rduites (Bourcier, 2011, 223).
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DAVID LE BRETON
UNIVERSIDADE DE ESTRASBURGO, FRANA
Histrias de gnero
No possvel pensar o corpo (mas, do mesmo modo, o gnero, o sexo, a sexualidade) fora
da histria e de valores de representaes prprios a uma condio social e cultural em dado
momento, ainda que o indivduo faa deles um assunto seu e se aproprie deles ao seu modo.
Nenhuma exterioridade tranquilizadora autoriza a formular um julgamento de verdade a esse
respeito. Falar de masculino ou de feminino implica, de algum modo, num julgamento de valor,
na referncia a um contexto social e cultural. A antropologia do sculo XX e o feminismo dos
anos 70 denunciam o eterno feminino o eterno masculino. M. Mead, principalmente, a partir dos
anos 20, mostra que homem e mulher so construes sociais, gneros, cujos atributos e
papis so infinitamente variveis, transmitidos pela socializao e, em nenhum caso, essncias
(MEAD, 1963). S. de Beauvoir condensa numa frmula exemplar essa maleabilidade do gnero,
escrevendo: No se nasce mulher, torna-se mulher. Do mesmo modo a pessoa se torna um
"homem". As noes de homem e mulher no so essncias, elas se dissolvem sob as fices
mais ou menos compartilhadas que as colocam em cena no liame social. Essas expectativas
coletivas prprias aos papis de gnero so anteriores ao sexo e o condicionam. O indivduo
constri a evidncia de seus comportamentos como homem ou mulher, sem ter sempre a
conscincia disso, pois adquiriu o princpio desses comportamentos ao longo de sua infncia,
atravs da socializao, e sua confirmao depende do jogo comum da existncia. uma prtica
de improvisao que se desenvolve no interior de uma cena de coero (BUTLER, 2006, 13). O
sexo dito biolgico no exerce nenhuma coero sobre a identidade sexual, ou seja, sobre os
comportamentos de gnero e a sexualidade. O gnero constri a inteligibilidade do corpo e dos
comportamentos no espao pblico. O masculino e o feminino no existem seno atravs das
repeties, como normas de comportamento e no como absolutos. O gnero no est aprisionado
no sexo e, alm disso, o sexo mais complicado do que uma simples polaridade masculinofeminino. A noo de sexo at mesmo deduzida a partir da noo de gnero.
Ainda que elas continuem sendo amplamente dominantes mundo afora e em nossas prprias
sociedades, as convenes do gnero (masculino e feminino), amparadas num enraizamento
biolgico, confirmadas pelas ritualidades sociais e pelas representaes culturais, controladas pelo
registro civil e, portanto, pelo Estado, esto sofrendo um abalo O masculino e o feminino
20
Gnero incorreto
Princpio fundamental da organizao do liame social (HRITIER, 2008), a polaridade do
masculino e do feminino contestada hoje. Qui universal, para alm de suas mltiplas
definies sociais, ela transpassada, contudo, por nuances ou excees. Algumas vezes, um
terceiro sexo (MURAT 2006, 11) vem desafiar a lei do gnero: as diferentes formas de
homossexualidade embaralham o dualismo masculino-feminino. Mais ainda: os hermafroditas e os
intersexuados subvertem-na radicalmente, pois possuem os atributos dos dois sexos, com rgos
misturados demais para garantir uma atribuio precisa. Nem homem nem mulher, e, no entanto,
21
Assim como as pessoas intersexuais ou hermafroditas, os transexuais lutaram contra as instncias mdicas e
psicanalticas que patologizavam seu estado, e reivindicavam editar uma verdade do sexo e do gnero; eles saram
de sua invisibilidade nas movncias gays ou lsbicas (FOERSTER, 2012, p. 175 e s.). M. Foerster lembra a
violncia exercida durante muito tempo contra eles, [violncia] familiar, policial, jurdica, poltica, psiquitrica,
psicanaltica, lingustica e, claro, fsica (FOERSTER 2012, p. 207).
Lembre-se que muitos bilogos rejeitam a qualificao de sexual para esses hormnios, porque eles desempenham
vrios papis no organismo. A. Fausto-Sterling (2012) sugere cham-los de hormnios esteroides ou hormnios de
crescimento, para evitar a ambiguidade da metfora sexual.
22
problemas. Entre os FtM, a cirurgia consiste na ablao do tero, dos ovrios e das mamas e,
eventualmente, na transformao da vagina, para aqueles que desejam um neopnis. Entre os
MtF, a cirurgia retira o pomo de Ado, o pnis e os testculos, para que se construa,
posteriormente, uma neovagina, um clitris, uma vulva, um novo aparelho urinrio. Outra
possibilidade consiste numa interveno cirrgica para modificar as cordas vocais e na reeducao
da voz para ajust-la ao novo gnero. Segue-se uma depilao radical para os MtF ou,
inversamente, para os FtH, o jbilo de ver os pelos crescerem. Do xito ou do fracasso desse
processo depende a qualidade da existncia do indivduo. Matria-prima a ser agenciada,
eventualmente, de outro modo, certo nmero de atributos corporais com forte conotao de
gnero transformam-se em sinais do masculino ou feminino e redistribuem as fronteiras e as
identidades.
A alterao do registro civil vem coroar a dimenso social da passagem de um gnero a
outro ou de um sexo a outro. Ter-me beneficiado da cirurgia permitiu-me aspirar quilo que
natural para os moradores de Minnesota: uma vida normal. No voltei a tentar o suicdio,
escreve M. D. O'Hartigan (in: CALIFIA, 2003, p. 359), que rejeita a qualificao de transgnero a
seu respeito, pois, segundo ela, ela no mudou de gnero, mas sim de sexo: Como os hijras da
ndia e os gallae de Roma, usei uma arma branca contra mim mesmo e provei que a anatomia no
o destino. Como o xam siberiano chukchi, eu morri, desmontaram-me e remontaram-me. Eu
mudei de sexo e voltei com novos poderes (in: CALIFIA, 2003., p. 358). Muitos transexuais
vivem sua mastectomia (ablao das mamas em FtM) ou sua penectomia (ablao do pnis em
MtF) como um renascimento, ou, pelo menos, como um primeiro passo eminentemente simblico.
Enfim, eles vivem altura de seu desejo de pertencer ao outro sexo, ou de viajar em seu corpo do
modo como desejam.
Essa passagem de um mundo social de gnero ao outro atravs da metamorfose do corpo foi
observada por Garfinkel, na qualidade de socilogo, em 1958, na clnica da UCCLA
(Universidade de Los Angeles), onde professor. Ali, ele conheceu uma jovem de 19 anos, Agns,
que se apresentou como secretria: rosto agradvel, maquiagem discreta, cintura fina, voz suave,
ela tem uma feminilidade desabrochada. Na verdade, seu corpo anatomicamente masculino, mas
o pnis de que ela dotada , aos seus olhos, uma anomalia. Ela se sente mulher desde sempre e
considera uma injustia esse membro que a impede de encontrar plenamente sua essncia. Agns
compartilha o senso comum da diviso dos sexos entre homens e mulheres, mas se considera uma
exceo, por causa de um erro biolgico. Ela se defende de qualquer ambiguidade em sua atitude,
ela no nem homossexual, nem travesti, nem transexual, mas uma mulher completa, salvo pelo
detalhe de seu sexo. Seus seios bem desenvolvidos, sua ausncia de pelos e seu modo de se vestir
no a distinguem em nada de outras moas de sua idade e condio social. Nada exagerado em
23
suas atitudes, ela apresenta os sinais de uma feminilidade que se impe com desembarao a seus
interlocutores. Ela se sente como mulher fechada num corpo de homem. No entanto, sua
educao e sua aparncia para os outros foram a de um menino at a idade de 17 anos. Foi quando
ela seguiu uma dieta alimentar para emagrecer, modificou o estilo de sua aparncia e tomou a
deciso de se apresentar em pblico como a mulher que ela pensa ser desde seu nascimento. Ela se
mudou para outra cidade onde ningum a conhecia, para viver plenamente sua nova existncia e
encontrou um trabalho de secretria.
Garfinkel passa longas horas com ela para compreender sua histria, suas motivaes,
interessando-se, sobretudo, pelo modo como ela produz sua feminilidade de acordo com as
circunstncias, no obstante seu passado masculino. De fato, Agns realiza o tempo todo a
concluso prtica de sua feminilidade, conformando-se s atitudes naturais de uma mulher que
fala, caminha, come, maquia-se etc. Se sua aparncia e o estilo de seus gestos do a impresso de
uma rotina, eles so fruto de um esforo de observao e reajuste que nunca termina. A
naturalidade de tal atitude impe um trabalho minucioso de autoencenao. Agns cria-se mulher
por sua narrativa (accountability), seus modos de ser e seus atos. Ela uma aprendiz secreta
(secret apprentice) daquilo que, segundo ela, ser mulher. Para melhor assumir seu papel, ela se
serve de outras pessoas mais conhecedoras dos etnomtodos da feminilidade e usa-as, sem que
elas saibam, como pessoas-fonte. Cada situao nova transforma-se em eventual lio para a
iniciante que ela . O olhar dos outros passa-lhe, permanentemente, um julgamento sobre suas
linhas de conduta, uma espcie de bssola para que ela ajuste seus comportamentos. Ele lhe
impe no apenas que ela seja uma mulher normal, mas tambm que ela parea normal para
eles.
Os rgos sexuais legitimamente possudos conferem pessoa o direito de ser o que ela .
Se a natureza, no sentido das naturalidades biolgicas, uma fonte mais propcia habilitao,
os cirurgies podem se tornar agentes de um restabelecimento daquilo que deveria ter sido na
origem, aquela vagina, que recriada para paliar os defeitos da natureza, tornando-se, justamente,
a realidade (GARFINKEL, 2007, p. 217). Depois de sua operao, privada de seu pnis e dotada
de uma vagina, Agns permaneceu vigilante, temendo cometer uma gafe que pudesse induzir
suspeita sobre o carter natural de sua feminilidade. A ela incumbe construir a evidncia de sua
personagem de mulher, para ostentar perante os outros, sem prejuzo, uma performance que deve
ser incessantemente retomada.
Entre os transexuais que se inscrevem numa lgica de passagem de um sexo a outro
(FOERSTER, 2012, 189), as transformaes cosmticas vm acompanhadas por uma srie de
aprendizados ou comportamentos relacionados com o sexo escolhido. Por exemplo, urinar
sentado, apesar do pnis, ou de p, apesar da vagina, sinal elementar de identificao, que se
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prolonga atravs da busca por um estilo de presena perante os outros, que calca os usos do
gnero desejado nos modos de se vestir, pentear, cuidar da aparncia, caminhar, falar, interagir
com os outros etc. Algumas vezes, esse aprendizado foi feito muito cedo na existncia, de um
modo secreto (no quarto, revestindo-se das roupas do outro gnero e se imaginando com elas nas
cenas fictcias do cotidiano) ou pblico (mas no sem deboche ou sem suscitar desprezo). A tarefa
consiste em apagar os atributos fsicos e modos de se comportar que possam gerar mal-entendido,
para parecer conforme ao gnero desejado.
Muitas vezes, a passagem feita aos poucos, aprendendo a se conhecer melhor e a ousar
enfrentar o olhar dos outros. Assim foi com Camille Cabral, mdica brasileira, entrevistada por A.
Fleming Cmara Vale, que conta seu encaminhamento progressivo em direo ao seu sexo e ao
seu gnero de eleio: Pouco a pouco, eu comecei a me impor socialmente como mulher. Eu
usava um jeans feminino, um pulver mais ou menos, meio l e meio c, e fui fazendo minha
transformao, meu processo de feminilizao, tomando hormnios com a posologia exata e
vendo um endocrinologista () eu j sabia que minha feminilidade era completamente diferente,
por exemplo, da feminilidade de um gay efeminado (). claro que havia uma feminilidade no
corpo, no andar, na fala etc., mas isso no essa feminilidade que voc v hoje (). Antes de
tomar hormnios, eu tenho a impresso de que minha feminilidade era mais adaptada para essa
feminilidade um pouco afetada, talvez, que alguns gays tm (VALE, 2012, p. 146). No se trata
de reproduzir, de imitar, mas de o indivduo tornar-se ele mesmo atravs de uma representao
ntima do que uma mulher. Germana, outro transexual, explica como ela tambm efetuou a
passagem, vendo-se atravs do olhar dos homens e se distanciando da feminilidade usada pelos
gays: Voc se hormoniza, se feminiliza, voc faz outra leitura desse olhar. Voc agora faz a
leitura daquele olhar com desejo, com vontade de se confundir com uma fmea e isso traria uma
certa premiao no sentir, muito mais do que as rabiscadas, o despeito que causou em tanta
gente (VALE, 2012, p. 146). A condio social, a capacidade ntima de se desprender de si mesmo,
para nunca se deixar intimidar pelo discurso do ambiente, pela compreenso ou pela hostilidade
das pessoas que contam para o indivduo, favorecem ou no a deciso sobre a passagem e a
qualidade ulterior dessa deciso. Mas cada transexual constri seu caminho em direo a outro
gnero em seu ritmo, com as tecnologias que ele pretende empregar para o ajudar em seu
processo.
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A medicina, que durante muito tempo funcionou como uma polcia do gnero e da
sexualidade, em conformidade com os modelos reguladores de nossas sociedades, torna-se, a
partir de agora, uma caixa de ferramentas para se livrar do peso de toda e qualquer ancoragem de
gnero e de sexo. O corpo torna-se um uma realidade pessoal (LE BRETON, 2012; 2013).
Certamente, toda inveno de si medida socialmente pelas ofertas existentes no mercado da
cosmtica em geral, por presses sociais e pelo modo como o indivduo tenta tirar partido da
situao. Mas ele no est sozinho em seu corpo, uma multido acompanha-o, como dizia
Artaud. Ademais, a passagem de um sexo a outro, ou a vontade de inventar um corpo singular,
implica numa redefinio radical de si e, principalmente, das relaes anteriores com o conjunto
dos atores que constituam o pblico costumeiro do indivduo no tecido social ou profissional. Se
a transposio uma provao moral para o prprio indivduo, ele tambm sofre a provao do
confronto direto com os outros, com as pessoas que so importantes para ele: pais, companheiro
ou companheira, filhos, amigos etc. O transexual tem que enfrentar uma multiplicidade de
pedidos de explicao sobre sua nova aparncia e sobre a alterao de seu registro civil.
Queerizar o gnero
Os transgneros reivindicam o direito de escolher seu gnero e/ou seu sexo, mas sem
necessariamente se instalar nele. Eles inventam a indiferenciao dos sexos e dos gneros no jogo
entre os dois sexos ou para alm dele. Eles subvertem a diferena. So "passadores de mundo"
(SIRONI, 2011, 18) que rejeitam o fechamento num gnero. Ainda que alguns usem hormnios
para se aproximar de um ou de outro, eles no recorrem necessariamente cirurgia para obter
uma reatribuio. Eles permanecem na passagem, no entre-dois, ou melhor, no entre-tudo, na
liminalidade, so mltiplos, cambiveis, nmades de seu corpo e de seu desejo. Viajantes de seu
prprio corpo, eles mudam, de acordo com sua vontade, de forma e de gnero, levando ao limite o
status de objeto de circunstncia de um corpo modulvel, que se tornou uma mera proposta a ser
retomada (LE BRETON, 2012; 2013). Se o ser humano nasceu homem ou mulher, ele no
obrigado a continuar sendo o que , ele pode instaurar seu prprio gnero, multiplic-lo,
rejeitando toda e qualquer coero de identidade a esse respeito. A reivindicao genderqueer
liberta de toda e qualquer ancoragem biolgica ou conveno social e inventa um indivduo sem
fronteiras de gnero, que faz implodir as prticas sexuais.
Surgida nos Estados Unidos, no incio dos anos 90, ela pretende revirar o estigma ligado a
toda sexualidade no heteronormativa e reivindica uma multiplicidade de posicionamentos
possveis em matria de gnero, sexo e sexualidade. Ela visa a perturbar o gnero, a deslocar o
sistema tradicional gnero-sexo. Ao sexo no corresponde mais necessariamente um gnero. As
tecnologias de gnero (DE LAURENTIS, 2007) socialmente empregadas passam a ser pr-
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textos dos quais a pessoa pode se apropriar de acordo com sua vontade, subvertendo-os. A teoria
queer traduz a individualizao do sentido e do corpo (LE BRETON, 2013) em nossas
sociedades, a emergncia de um indivduo para o qual os dados sociais e culturais do ambiente so
apenas recursos, nunca intimidaes. Ela persegue, radicalizando-o, a empreitada de
desnaturalizao do gnero e do sexo. Um dispositivo simblico, ao mesmo tempo tcnico, visual
e estilstico, produz a evidncia de ser homem ou mulher, ou confunde as categorias, inventando
outros modos de ser. O gnero no mais colocado em dualidade, mas como um acmulo de
possibilidades dependentes dos comportamentos e do discurso que o indivduo faz sobre si
mesmo. Ele apenas um recurso a ser usado de modo criativo por um indivduo que no mais
obrigado a repetir normas, mas pode inventar modos de ser que lhe so prprios. A polaridade
masculino-feminino subvertida, no apenas atravs da multiplicao das modalidades, mas
tambm da inveno de outros modos de ser (BOURSIER, 2011, p. 219). Para os genderqueers, no
existe mais gnero masculino e feminino bem definido, mas uma zona de indeterminao, uma
recusa de atribuio residncia num corpo.
Masculino e feminino no mais encarnam uma verdade ontolgica fundada numa anatomia
intangvel, nem tampouco uma polaridade necessria, quando a fbrica corporal de si mesmo no
para de ampliar seu campo de interveno possvel atravs do arbitrrio pessoal de sua forma
corporal e de seus modos de se encenar. Eles so uma diferena entre outras, proposta inicial a ser
retificada de acordo com uma vontade prpria. Alguns transgneros apelam para um terceiro
gnero, outros sustentam a possibilidade de uma multiplicidade de gneros. A atribuio a um
gnero torna-se, sobretudo, uma histria que contada e cujo crdito dado aos outros, atravs
de uma estilizao da relao que se tem com o mundo. Alguns trans reivindicam para si [a
condio de] gender queer ou gender outlaw e rejeitam toda e qualquer atribuio em termos de
masculino ou feminino. Eles pretendem se libertar dessas categorias que consideram obsoletas.
Para K. Bornstein, existem, sobretudo, homens e mulheres - mas ela no se reconhece nessas
categorias - e os outros, os inclassificveis, dos quais ela diz fazer parte. A esse respeito, ela
escreve: Depois de 37 anos tentando ser um homem e de mais de oito anos tentando ser uma
mulher, cheguei concluso de que nenhuma dessas duas posies vale a pena, ainda que ela
afirme sair rua dando-se a aparncia de uma mulher, para no ser agredida e evitar passar por
uma espcie de monstro (BORNSTEIN, 1994, pp. 234-125). Para ela, o sistema de gnero em
si - a prpria ideia do gnero - que deve ser abandonado. As diferenas cairo por si mesmas" (p.
114). Assim, por exemplo, Norrie (48 anos), citada por F. Sironi, define-se como andrgina:
Esses conceitos, homem e mulher, simplesmente no me convm, e, se me so aplicados, trata-se
de fico (SIRONI, 2011, p. 69).
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Esses trans reivindicam uma escapadela para fora das categorias preestabelecidas
socialmente para se definirem, justamente, no trans, na passagem, numa transio que nunca
termina, eles subvertem os limites dos gneros. T. Beatty, transexual americano FtM teve uma
filha em 2008. Em seu processo de reatribuio, ele usou testosterona e passou por uma
mastectomia, conservando, porm, o tero e os ovrios. Essas pessoas acomodam-se em ficar no
entre-dois, inatribuveis. Por serem reticentes ao uso de hormnios ou a cirurgias radicais, elas
vivem, ento, como homem ou mulher trans, com traos do outro sexo, preservando, ao mesmo
tempo, certas caractersticas de seu sexo de origem. Elas simulam atravs do modo como se
colocam em cena na vida pessoal, conforme o pblico do momento. Esto em busca de um mito
pessoal do gnero a ser atingido. Esse mito funda-se num arranjo feito com as mltiplas
narrativas que permeiam a cena queer e os debates pblicos a esse respeito, mas tambm
herdeiro das fantasias da infncia e da adolescncia. Na medida em que no existem modelos
preestabelecidos, cada trans inventa para si um personagem que pertence s a ele, ainda que esteja
necessariamente relacionado com a sensibilidade de um momento.
Por que nossa sociedade s permite dois gneros que so mantidos polarizados? Por que
no temos papel social para os hermafroditas? Para os berdaches? Por que os transexuais
precisam se tornar verdadeiras mulheres ou verdadeiros homens ao invs de serem apenas
transexuais? Afinal, no existem vantagens em ser um homem com uma vagina ou uma mulher
com um pnis, nem que seja pela perspectiva nica que isso pode oferecer? Por que as pessoas no
podem ir e vir como desejam? (CALIFIA, 2003, p. 356). Pat Califia pergunta-se, afinal, se o
gnero to importante e imagina um mundo onde ele cairia na insignificncia ou tornar-se-ia
provisrio: Como seria viver numa sociedade onde a pessoa poderia tirar frias de seu gnero?
Ou (mais importante ainda) do gnero dos outros? Imaginem a criao de Gender Free Zones
(CALIFIA, 2003, p. 382). G. Rubin tambm escreve: Meu sentimento pessoal que o movimento
feminista deve sonhar com muito mais do que a eliminao da opresso das mulheres. Ele deve
sonhar com a eliminao da sexualidade obrigatria e dos papis de sexo. O sonho que me parece
mais cativante o de uma sociedade andrgina e sem gnero (mas no sem sexo), onde a
anatomia sexual no teria nada a ver com quem se , com o que se faz, nem com quem se faz
amor (RUBIN, 1998, p. 62-3). Na medida em que o gnero personaliza-se, ele se multiplica ao
infinito e se torna uma noo indefinida, quando deixa de ter relao direta com o feminino ou
masculino, tanto mais quando o indivduo s ocupa posies provisrias nessas categorias.
A movncia genderqueer declina-se em arquiplago com aqueles que se sobrepem a dois
gneros, sem poderem ser atribudos a um deles: aqueles que exibem dois, trs ou mais gneros;
aqueles que recusam o gnero. E com aqueles que inventam outros gneros, ainda que a tarefa
no seja fcil. So pessoas (personagens la Goffman) que permanecem na inteligibilidade social,
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apesar do jogo das diferenas, uma vez que repetem, qui involuntariamente, certas convenes
de gnero, subvertendo-as temporariamente. Eles continuam socialmente legveis em seu
comportamento e aparncia, pois no rompem radicalmente os ritos de interao, a relao com a
linguagem e as maneiras de aparecer aos olhos dos outros. Eles inventam uma mirade de
comportamentos que, talvez, levem ironia, ao esboo de outro mundo, mas sempre na esfera da
comunicao social. Parece que o humano deve se tornar estranho a si mesmo, monstruoso, para
restaurar o humano em outro plano, escreve J. Butler. Esse humano no ser um humano, de fato,
ele no ter forma definitiva, mas negociar constantemente a diferena sexual, de modo que ela
no tenha consequncias naturais ou necessrias sobre a organizao social da sexualidade. Se
insisto em dizer que essa ser uma questo persistente e aberta, para sugerir que no se defina a
diferena sexual, mas que se deixe essa questo perturbadora aberta e no solucionada
(BUTLER, 2006, p. 219).
Estigmatizados durante muito tempo, os trans so, hoje, analisadores das convenes de
nossas sociedades sobre a naturalidade do masculino e do feminino que justificavam a
heterossexualidade e a atribuio a um corpo-destino para toda a existncia. Com o apoio das
tecnologias, a produo dos corpos, ainda que no venha ameaar o binarismo amplamente
dominante do masculino e do feminino, afrouxou o princpio desse binarismo, abrindo-o mais
amplamente. O corpo constri-se a partir de uma anatomia furtiva e de um nomadismo ainda
inslito hoje. Ele tem relao com uma autogerao, com uma colocao no mundo por si mesmo
(ou melhor, pensada como tal). O processo profundamente poltico e traduz a individualizao
do sentido prprio s nossas sociedades contemporneas.
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31
entre certas percepes individuais e certas percepes sociais. As categorias biolgicas sobre as
quais se apoiam as distines de sexo em nossas sociedades so objeto de debate: sexo anatmico,
fisiolgico, hormonal, cromossmico, gentico. Vrios sexos tornam-se pensveis, nenhuma
evidncia natural impe-se, mas sim um palimpsesto a ser decifrado. Algumas vezes, o mesmo
indivduo macho, sob certos aspectos biolgicos, e fmea, sob outros. A vagina ou o pnis no
bastam para certificar um sexo preciso, eles so elementos entre outros, ainda que venham
alimentar, em primeiro plano, as categorias do senso comum. O mundo esportivo regularmente
confrontado com essa impossibilidade de decidir sobre a atribuio de um sexo biolgico.
Considerando-se as discordncias frequentemente observadas entre sexo anatmico, sexo
hormonal e sexo gnico, como decidir, nessas condies, a partir de qual proporo e de qual
mistura de traos biolgicos uma pessoa deve ser considerada uma mulher ou um homem?
(GARDEY, LWY, 2000, p. 26). O sexo no uma categoria fsica ou biolgica, mas uma
atribuio simblica mais ou menos consensual. A bicategorizao do sexo no mais natural do
que o sexo em si (ROUCH, 2011, p. 108). J. Butler lembra o quanto o conceito de sexo um
terreno nebuloso, uma vez que se formou atravs de uma srie de controvrsias sobre os critrios
decisivos que permitem distinguir os dois sexos (BUTLER, 2009, p. 19). Os dados biolgicos,
por serem eles mesmos socialmente construdos, no bastam para estabelecer uma diferena
natural entre os sexos, eles no so seno aquilo que os indivduos fazem deles. A biloga A.
Fausto-Sterling escreve que colocar em algum a etiqueta homem ou mulher uma deciso
social. O saber cientfico pode nos ajudar a tomar essa deciso, mas somente nossas crenas sobre
o gnero - e no a cincia - definem o sexo (). Nossos corpos so complexos demais para
oferecer respostas claras e lmpidas sobre a diferena sexual". Alis, ela se pergunta se devem
existir apenas dois sexos (FAUSTO-STETRLING, 2012, pp. 19-21-101). A cincia no descreve
os fenmenos, ela os constitui.
Os dados biolgicos prprios s representaes do corpo j so conotados por uma
dimenso de gnero. Eles so coletados em termos de masculino ou feminino no seio do liame
social. Metforas levam a encontrar a montante categoria que, com toda a boa-f, foram colocadas
a jusante, num raciocnio circular (KELLER, 2000). A. Fausto-Sterling resume o princpio disso:
Ao longo dos sculos, os cientistas no deixaram de integrar em nosso corpo de modo mais
profundo os sinais do gnero: dos rgos genitais qumica corporal, passando pela anatomia das
gnadas e do crebro. No caso da qumica corporal, eles realizaram essa faanha definindo como
hormnios sexuais os reguladores qumicos multisstio do crescimento, tornando praticamente
invisvel seu papel no sexual no desenvolvimento masculino e feminino () Apesar dessa
ausncia de inteno manifesta, o trabalho de pesquisa sobre a biologia dos hormnios est
profundamente ligado poltica do gnero (FAUSTO-STERLING, 2012, p. 170-1). A anatomia,
a fisiologia, so, antes de tudo, superfcies de projeo do sentido, elas se inscrevem no paradigma
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fortemente marcado pela dualidade dos sexos e num sistema de interpretao que s consegue
encontrar categorias de gnero no sexo, porque ele mesmo j as situou ali. Alguns, como M. H.
Bourcier, chegam a se perguntar se a diferena sexo-gnero realmente til: Tudo gnero,
inclusive o sexo, cujas pretenses naturalizantes, biologizantes e binrias sero reduzidas
(BOURCUER, 2011, p. 223).
Como observa A. Camara Fleming Vale, pode-se perceber na liminalidade da movncia
transgnero a perspectiva de um horizonte privilegiado, de um entre, de uma condio positiva
presente e de uma condio futura ignota, enxergando na experincia transgnero uma zona de
inteligibilidade privilegiada para pensar as experincias do corporal e do sexual na sociedade
contempornea" (VALE, 2013, p. 307). Contudo, o status do conhecimento e o privilgio das zonas
nebulosas para desconstruir as rotinas de pensamento diferem da existncia concreta dos prprios
indivduos, que vivem cotidianamente na ambivalncia prpria liminalidade. Mudando de sexo
ou embaralhando todas as fronteiras de gnero, o transexual e o transgnero perturbam as
categorias de pensamento, ficam no limbo, despojados de seus antigos atributos, sem entrar
completamente, ao menos por um timo, no crculo do liame social, onde as coisas so definidas
com maior ou menor clareza.
Hoje, como outrora, a biologia um captulo do poltico. O sexo, assim como o corpo, uma
cristalizao de significados sociais, inclusive em sua descrio, que no seria capaz de escapar a
categorias de sentido e de valores. O corpo no determina mais a identidade, ele est a servio
dela. O transexual e o transgnero so indivduos ps-modernos, na medida em que pretendem se
colocar no mundo por si mesmos, retificar sua origem, decidindo sobre seu renascimento sob uma
aparncia que s pertence a eles. Seu corpo um artefato tecnolgico, uma construo cirrgica e
hormonal, uma modelagem plstica e tecnolgica. Eles assumem uma identidade fluida, nmade,
sempre pronta a se renovar. Eles experimentam possveis ainda pouco comuns. O corpo apenas
o habitculo provisrio de uma identidade que recusa toda e qualquer fixao e escolhe uma forma
de nomadismo de sua presena no mundo. Ele a ferramenta para criar para si personagens e
declin-los socialmente, de modo a assumir a multiplicidade de si. Hoje, corpo somente pode ser
escrito no plural (LE BRETON, 2012; 2013). Mas muitas lnguas fracassam em traduzir essa
pluralidade, porque dispem apenas do "ele" ou do "ela" para designar um indivduo que pretende
escapar a essas categorias.
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33
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1991.
34
CAPTULO 2
MRCIO CAETANO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE - FURG
As obras cinematogrficas podem ser entendidas como pedagogias culturais que trabalham
linguagens e biografias a partir das quais sentidos sociais so (re) produzidos e (re) significados
no cinema e, por sua vez, pelos/as expectadores/as do filme. Entendendo-as como representao,
como artefato cultural que tem mltiplas implicaes na realidade, destaco no filme Transamrica,
do diretor Duncan Tucker, algumas questes que nos ajudaro a refletir tericometodologicamente a trajetria das personagens centrais construdas para este artigo: as
professoras Tiresia e Nu.
O ttulo prope-se a parafrasear um trecho do livro O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, publicado pela
primeira vez em 1949. O livro mostra, a partir da perspectiva moral existencialista, como esto constitudas as
marcas que excluem as mulheres do acesso individualidade e, portanto, liberdade. Assim, ser mulher no era
uma eleio, na perspectiva de Beauvoir, mas uma determinao. A essa marca, em principio, biolgica, acumulamse outras e a figura final, a mulher, est construda com um molde que a nenhuma lhe permite rechaar e,
portanto, tampouco eleger. Ser mulher tem sido e uma aprendizagem que, como consequncia, limita seu poder
sobre o universo e sobre sua vida.
Pesquisa financiada pelo CNPq e FAPERGS.
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Ao utilizarmos essa expresso, no queremos, com isso, calcar este texto no pensamento binomial, que v, de um
lado, a matria o corpo, e, de outro, a cultura os gneros. Destacamos que, conforme aponta Judith Butler
(2003), o biolgico tambm atravessado pelo cultural, quer dizer, se h uma matria que anteceda o discurso, esta
no pode ser recuperada, se no por meio do prprio discurso.
So esses acordos/negociaes que, conforme argumenta Hommi Bhabha (1998), promovem o que em outro
momento denominamos derriso da heterossexualidade compulsria (LUCAS LIMA, 2012). A protagonista de
Transamrica, Bree, por meio de sua performance nitidamente feminina, tal qual as protagonistas deste artigo,
provoca fissuras no gnero, que se queria inviolvel.
No nos interessavam conceitos a priori experincia que envolvessem esses ciclos, mas o que as entrevistadas
compreendiam como comportamentos prprios a eles.
41
42
de sociedade pretendida. Portanto, se estamos entendendo o corpo como locus central e inicial de
produo e expresso da cultura nele que as identidades so elaboradas e significadas; os
currculos ganham importncia por serem um dos instrumentos pelos quais as escolas executam a
formao de seus sujeitos, e, portanto, incidem sobre a construo das identidades sexuais, por
exemplo.
Reconhecendo as inmeras instncias socioeducativas por onde passam os sujeitos que
integram a educao e, por sua vez, os interesses implicados nos seus fazeres pedaggicos, no
limito as redes de poder que incidem sobre o currculo escola. Assim, amplio seu alcance,
chamando-o de movimentos curriculares, entendendo-os como tecnologias pedaggicas
(arquitetura, organizao da cidade, livros didticos, vestimentas, polticas pblicas, discursos
mdicos e cientficos, mdia, etc.), que, construdas socioculturalmente, projetam significados
sobre as identidades (raciais, gendricas, de classes, etc.). Essas tecnologias pedaggicas ensinam
e regulam corporalidades, produzindo modos de subjetividades e arquitetando formas e
configuraes de estar e viver na sociedade e, mais especificamente, na escola. Com isso, estou
entendendo que as identidades no so dadas, mas resultantes de uma construo que, embora
realizada pelo sujeito, esse lana mo dos tijolos e argamassa disponibilizados, isto , dos
elementos culturalmente disponveis/ensinados e aprendidos por ele para a construo do efeito
pretendido.
Com o dito, concordo com Delory-Momberger quando a autora sinaliza que a humanidade
constituda por
[...] seres fundamentalmente projetados, no duplo sentido de, ao mesmo tempo serem
planejados e arremessados para adiante. Toda atividade humana, tanto a mais rotineira,
como a mais excepcional, implicita um horizonte de possibilidade, um espao frente dela
mesma que a lana na existncia e lhe d sua finalidade e sua justificativa [...] esse projeto,
em si primordial, no deve ser compreendido como uma construo consciente, visando
imediatamente a realizaes concretas, mas como um impulso para frente, uma orientao
para o futuro (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 63).
10
Ser a interpelao feita pela cultura, as mediaes sociais operadas no cerne das idiossincrasias dos grupos o que
conferir legibilidade aos corpos, processo esse capaz de tornar 'viveis' ou 'inviveis', caso da personagem Bree,
ou das protagonistas deste artigo, Tiresia e Nu os sujeitos. Esses procedimentos so to poderosos que, algumas
vezes, o prprio estatuto de corpo questionado, o que ocasiona a produo de seres abjetos ou ininteligveis.
43
A partir dos ensinamentos de Heilborn, a sexualidade passa a ser entendida no como algo
determinado por imperativos biolgicos, mas condicionado s contingncias sociais, culturais,
histricas, econmicas e geogrficas. Assim, ela no se ajusta ou simplesmente ajustada a um
modelo ou entendimento unvoco e essencialista.
Sabemos que para cada estrutura social existe um conjunto de conhecimentos sexuais
hegemnicos e outros que so subalternizados, com os quais dialogamos e construmos nossas
leituras e formas de estar no mundo. Enquanto alguns conhecimentos so massificados e acabam
44
por se configurar como hegemnicos e realizam o duplo papel de assegurar a ordem social e
legitim-los, outros, subalternizados, questionam aqueles que so os hegemnicos e, em ocasies,
generalizam propostas alternativas, tornando-se, por vezes, opes legitimadas. Nesse caminho,
pode ser apreendida tanto a construo de formas legtimas de ser homossexual quanto a
experimentao do modo de vida gay ou lsbico. Ambas so derivaes da heterossexualidade e
maneiras por intermdio das quais uma sexualidade marginal e seus saberes encontra
significao na sociedade e, por sua vez, nos movimentos curriculares. Entendo impossvel a
legitimao de saberes tornados subalternos na sociedade ocidental sem a mediao do capital,
motor da Histria e principal negociador das diferenas culturais, sociais, 'gendricas' e sexuais.
Mesmo que, em momentos, sexualidades e desejos no hegemnicos logrem reconhecimento,
legitimao, no se deve perder de vista que tal movimento cobra, sempre, seu preo: a instituio
de normas, quase que fixas, que possibilitam sua existncia e sua leitura na dinmica do social. No
caso da institucionalizao de saberes homoerticos, por exemplo, alguns autores, a exemplo de
Halbertam (2005), nomeiam tal procedimento como homonormatividade, que nada mais que a
fixao, no mago do rol dos saberes legtimos, de estilos e modos de vida gay ou lsbico,
notadamente aqueles vinculados a uma cultura de consumo oriunda dos pases centrais, sobretudo
os Estados Unidos.
O entendimento de sexo e de sexualidade, aliado busca pelo conhecimento, a
engrenagem essencial do movimento que conduz as personagens deste texto superao dos
obstculos que as separam da legibilidade social e cultural. Stuart Hall chama a ateno para que
tomemos o corpo, conforme antes aponto, como tela de representao (HALL, 2006), na
condio de materialidade performtica que, a partir da experincia, ensaia novas possibilidades
existenciais, alternativas que, sem o impulso da criatividade, no seriam viveis.
45
existncia do filho de Bree no somente a questiona sobre o mtodo utilizado para conceb-lo,
como tambm denuncia que tal mtodo foi por meio de relao sexual com uma mulher. Assumir
que seu filho era originrio de uma 'relao lsbica' foi, portanto, a forma encontrada por Bree
para negar que um dia, no passado, ela fora homem.
O fato que dias antes da cirurgia de transgenitalizao, Bree Osbourne descobre que tem
um filho de 17 anos e tenta ignor-lo. Entretanto, sua psicloga impe como prerrogativa de sua
cirurgia o acerto de contas com o seu passado. Era obrigao de Bree reencontrar com todos
aqueles que a conheceram como homem e com eles acertar suas dvidas. Diante dessas exigncias,
Bree viaja Nova Iorque com a inteno de se livrar de Tody, seu filho, que deseja ser ator de
cinema porn.
Ao encontrar o filho, Tody, no reformatrio, Bree, temendo dizer a ele sobre sua
transexualidade, embarca em uma viagem de segredos, revelaes, encontros e desencontros. A
caminho de Los Angeles, ela encontra sua famlia, vivencia o desejo sexual por um ndio cowboy,
descobre-se aberrao no olhar de uma criana, observa que duas transexuais podem ser lsbicas,
revela-se pai a uma policial quando se v responsvel por aquele que rejeitou como filho e revive
o pesadelo de no existir como mulher em um mundo onde foi constituda como corpo masculino.
Transamrica um filme cuja centralidade a fluidez de suas personagens. A forma como
Bree contorna seu corpo (feminino) e se depara com sua histria (masculina) refora essa obsesso
pela ideia de configurao corporal e pela inveno e edio da biografia. As ambiguidades e
dualidades presentes nos discursos sobre a transexualidade no filme descrevem cenrios em que o
controle minucioso sobre os pormenores do corpo a confirmao dos investimentos femininos
entendidos e ensinados na famlia, na escola, na religio, na cincia, nas polticas pblicas, pelos
discursos da sade, neste caso, Bree.
Com a angstia de Bree, possvel observar o cruzamento de temticas, tais como:
identidade, sexualidade e gnero. A capa do DVD do filme no Brasil evidencia que a narrativa
cinematogrfica seguir as dualidades sociais apresentadas a ela. A fotografia que estampa a capa
do DVD apresenta a protagonista do filme hesitando em relao a uma atitude simples: usar o
sanitrio masculino ou feminino. Esse cenrio descreve a dualidade que esse corpo vivencia
quando se depara com as suas memrias.
A estrada (discursiva) nos parece ser a melhor metfora sobre a vida da personagem. Os
caminhos entre o passado e a inveno de si enunciam a trajetria de Bree. No processo de fazerse mulher, vrias de suas vivncias foram editadas para aqueles que possuam o estatuto de
46
governar sua vida, decidir sobre sua veracidade feminina e, com ela, autorizar a
transgenitalizao: a psicloga e o psiquiatra.
As opinies alheias eram para Bree o termmetro de sua feminilidade. A forma de sua
individualidade, na condio de mulher estava cotidianamente sujeita avaliao dos outros, da
vizinhana, da clnica mdica e da famlia. Quando ela desempenhava seu papel de mulher,
implicitamente solicitava ao observador que lhe levasse a srio e que lhe reconhecesse como uma
legtima mulher, aquela que nunca foi outra coisa seno mulher. As aes do seu 'eu' estavam
condicionadas s necessidades que ela possua em estabelecer um corpo legvel aos 'espectadores'.
Atravs de seu comportamento, buscava, na cultura, o veredito daquilo que ela afirmava como
sendo acessrios de uma mulher. Suas aes buscavam distanci-la de qualquer evidncia sobre
'anormalidade', a exemplo do dilogo que estabelece com sua irm antes do jantar familiar: no
sou uma travesti, sou uma transexual.
A travestilidade era para Bree, tal como para a professora Tiresia, estranha ou um projeto
mal sucedido de 'mulher'. Cabe dizer que tal noo acerca da travestilidade indica a persistncia
da ideia de encenao e/ou falsidade dessa identidade, ao passo que imprime transexualidade um
estatuto de 'verdade', uma vez que as transexuais seriam 'verdadeiras mulheres', semelhana de
suas congneres com vaginas 'originais'. Contudo, o comportamento de Bree, ao insistir que sua
performance feminina seja levada a srio por seus/suas interlocutores/as, aponta para a
precariedade de todas as identidades, demonstrando que, em consonncia com os postulados do
ps-estruturalismo, a sexualidade foge aos fundamentos estticos e essencialistas prprios de uma
viso dualista do mundo.
No incio do filme, a discrio de Bree parece ser a tnica dada ao seu corpo, exceto na
utilizao da forte maquiagem. Com ela, Bree esconde as possveis marcas de sua masculinidade
no rosto. A eficcia da ao era auxiliada pela ocultao do volume do pnis e com a utilizao de
hormnios femininos. Seus passos so curtos, a cabea em alguns momentos coberta com chapu,
o leno esconde o pescoo, os cabelos quase sempre penteados, a boca desenhada com batom e o
corpo modelado, em curvas, com as vestimentas. Todos os arranjos confirmam uma 'perfeita'
mulher. A prpria entrevista de Bree com o psiquiatra nos desenha a engenharia de seu corpo
feminino, como se pode verificar no trecho:
-
Bree: No.
Bree: Eletrlise normal, trs anos de terapia hormonal, cirurgia de feminilizao facial,
reduo de testa, reconstruo de queixo e cirurgia traqueal.
47
Tal como assevera Ferdinand Saussure (1970) sobre a arbitrariedade dos signos, que os mesmos so resultado de
um procedimento que atende a uma vontade alheia aos objetos, aos prprios signos antes de sua nomeao,
entendemos como parcial e, portanto, arbitrria, a imposio, por parte de uma episteme regida pela
48
uma fronteira que to cultural quanto cientfica e justamente a sua diferena que delimita o
contorno de sua 'normalidade'.
Chamamos a ateno, ainda, para outra 'fronteira' que orienta a 'normalidade' de Bree: a
religio. Em certo momento, a protagonista se assume missionria da 'Igreja do Deus
Onipotente'. Ao dialogar com os discursos judaico-cristos, Transamrica inquire sobre a
legitimidade que tal discurso tem para decretar a normalidade de uns/umas e a anormalidade de
outros/as, minando a confortvel posio que a religio ocupa nas sociedades humanas.
Ao desejar a transformao em sua jurisdio corporal, Bree passa a ser designada como um
sujeito ignbil, ou seja, aquele que deseja expelir do corpo o excremento que o torna diferente,
que o faz aberrao e que o leva ao lugar literal do masculino: o pnis. A cirurgia parece ser a
expulso de elementos estranhos. Entretanto, a biografia/memria justamente onde esse
estranho se estabelece. Em uma das cenas finais, no momento do banho, Bree toca sua genitlia
para confirmar a existncia de uma vagina, que a faz mulher, ou o corpo estranho (pnis), que
denuncia um passado 'incoerente'.
A construo de um 'eu' ignbil estabelece as fronteiras do corpo de Bree. Toda a narrativa
do filme sobre o caminho que ela percorre para obter a coerncia entre a sexualidade, o
sexo/gnero e a identidade sexual. Com o filme Transamrica, podemos perceber que o corpo
representa a materializao da sexualidade. sobre ele que se estabelecem o limite e as projees
desejveis. Nesse aspecto, o corpo funciona como uma base significante de condensao das
subjetividades, servindo como ponto de reconhecimento de si e de outros tudo feito a partir da
diferena.
As afirmaes realizadas por Stuart Hall (2003) nos ajudam a compreender a configurao
vivida por Bree e Tody. As identidades so diferentes em distintos momentos dos sujeitos. Ainda
que paream unificadas em torno de um 'eu', em ns existem verses contraditrias atuando em
diferentes posies.
Identidades sexuais e de gnero no so caractersticas descritivas nem prescritivas e,
tampouco, possuem uma estabilidade natural e cultural. Ento, tanto em Transamrica quanto nos
cotidianos das professoras Nu e Tiresia, no h identidade de gnero ou sexualidades anteriores
s performances, quer dizer, so elas que possibilitaro as emergncias das identidades. E sero,
portanto, as relaes arbitrrias entre as performances de gnero que viabilizaro a transgresso
operada pelas personagens deste texto.
compulsoriedade heterossexual, de regras que determinam o que vem a ser e o que no vem a ser, por exemplo,
uma mulher.
49
Foi em direo a Los Angeles que Bree, em um determinado momento, se v sem o carro,
sem os hormnios femininos, sem a maquiagem, sem o chapu e o leno no pescoo, ou seja, sem
suas 'tecnologias' de mulher, que a personagem vivencia novamente a dupla transgresso
feminilidade e transexualidade. Bree, uma das mltiplas possibilidades de alteridades, nos obriga
a repensar a cultura heteronormativa e sobre como ela marca nossos corpos.
com os sujeitos 'incoerentes' que repensamos a identificao (essa vinculada 'fantasia
sobre a identidade'), como forma de no aprisionar os corpos a uma identidade unificada ou
unitria. Essa variabilidade performativa (em que os desejos ou as fantasias sobre uma
determinada identidade realizam performances de identificao, ou seja, leituras sobre a
identidade) pressupe o exerccio de liberdade. E esse precisamente o motivo pelo qual a
identificao de Bree desestabiliza e incomoda.
Transamrica uma celebrao metamorfose da identidade. Sua narrativa operou para
alm dos deslocamentos identitrios de Bree e Tody, preocupando-se com as condies de
possibilidade de suas prticas, mas no deixando de observar como o entendimento de
determinado discurso operou como verdade, provocando alteraes em seus corpos. Bree,
parodicamente, celebra que a identidade incompleta. Com esse entendimento, que trazemos as
narrativas das professoras Nu e Tiresia a este artigo.
50
J com a professora Nu, a resposta da escola foi totalmente distinta e o fato ocorreu no
somente porque se tratava de espaos e tempos diferentes. Ao contrario de Tiresia, Nu inicia sua
trajetria na escola quando ainda adotava vestimentas e nome masculinos. Foi aps participar das
aes de formao continuada de professoras/es desenvolvidas pela ONG gacha de Direitos
Humanos Somos, com financiamento pelo Ministrio da Educao, que Nu foi reconhecida como
travesti e, posteriormente, se autorreconheceu transexual. Para a professora, sua relao com a
escola regulava sua projeo. Sobre isso, ela nos conta:
Aos 32 anos, eu assumo que sou Nu. Eu no sabia que eu queria. Eu me via, mas ao mesmo
tempo tinha medo de me transformar. Eu tinha medo do que poderia acontecer. O medo no com
a minha transformao. Mas, o que poderia acarretar isso na minha vida profissional [...] Quanto
eles foram escola [A ONG que ofereceu o curso de formao continuada] conheceram o
Roberto. Mais frente, a Snia [a responsvel pela ONG] me contou que quando chegou na
escola, identificou que eu era um travesti. Talvez porque eu era meio andrgina. A escola no
havia se dado conta de que tinha uma travesti dentro dela e nem eu [risos]. Foi uma fase antes da
minha operao. Eu fui primeiro para a Europa, na casa de uma amiga [...] que eu comecei a
construir essa outra identidade. Foi l que surgiu o nome Nu. Ns entramos num consenso para
escolher o nome.
Quando no dilogo com a professora Tiresia pergunto sobre seus entendimentos sobre
mulher, magistrio e, sobretudo, sobre suas cirurgias, ela me respondeu:
51
[As cirurgias] era a necessidade de adequar a minha mente ao meu corpo. A minha mente
feminina. Mas, o que adianta no ter meus seios e no ter um bumbum? Somente botar
roupa feminina, ficar caricata. Minha mente tinha que ser condizente com o meu corpo.
Eu no queria ficar caricata, porque eu sou uma mulher.
Ainda que Tiresia e Nu, com o uso de tcnicas protticas e investimentos corporais, tenham
celebrado certa feminilidade, a exemplo daquele realizado por Bree, seus corpos permaneceram
com a marca que, segundo elas, no lhes permitiria o encontro com a sua integralidade feminina:
o pnis. Seus corpos, tanto para elas quanto para os demais em seus espaos de sociabilidades,
transitam na ilegibilidade social e jurdica de gnero, o que as tolhe de exercer a prtica cotidiana
da docncia e de suas ocupaes nos espaos pblicos. Entretanto, paradoxalmente, a insero
profissional no servio pblico que garante Tiresia e Nu a possibilidade de negociar nos
espaos polticos das escolas e, mais amplamente, na sociedade. Tiresia descreve que anda com
seu contracheque porque ao ser abordada pela polcia pode contra-argumentar a necessidade do
policial tocar em seu corpo. Para ela, o contracheque uma forma de se defender:
[...] muitas pessoas pensam que ns fazemos programa. [...] Eu sempre mostro quando a
polcia me aborda e quer me fazer a revista. Os policiais, com a desculpa de procurar droga,
ficam apalpando meus seios e apalpam meu bumbum. Eu no deixo. [...] Eu pego meu
contracheque e pego minha identidade e mostro. Sou funcionria pblica e est aqui meu
documento. Eles j veem que eu no sou travesti de pista.
52
53
Compreendo que a escola faz parte da cadeia de instituies que regula e produz
significados sobre os corpos. Seus currculos so instrumentos que visualizam os corpos como
superfcies em que so inscritos ou impressos os valores culturais. Talvez, nesse entendimento de
currculo, se esconda a velha e conhecida metfora jesuta de que as mentes das crianas so como
'tbulas rasas', que placidamente aguardam seu preenchimento com os ensinamentos do/a mestre.
O que se destaca nas narrativas de Nu e Tiresia a ideia de que as relaes de formao e
coero no privilegiam ou so elaboradas e executadas por um sujeito. Elas so engenharias que
envolvem todos os sujeitos da escola. Em outras palavras, vrios/as assumem a tarefa de
assegurar o controle sobre o outro, sobre os lugares ocupados e, logicamente, sobre as projees
de si na escola.
Nesse sentido, o retorno profissional da professora Nu foi possvel com a (auto) vigilncia e
auxlio da legislao estadual. Ela descreve que:
A direo da escola ficou com medo. Mas, os alunos estavam curiosos pra ver o professor
depois da cirurgia. Eu cheguei da Europa no incio de maro j com cabelinho comprido e
brinquinho na orelha. Fui construindo aos pouquinhos. O salto alto, o vestido e a bolsa
Louis Vitton vieram depois da cirurgia. Quando eu retornei escola depois das primeiras
cirurgias, em agosto, os alunos j sabiam das transformaes. O corao estava a mil. Me
perguntaram como eu estava e como era que eles deveriam me chamar. No respondi, eles
j sabiam que o nome era Nu. Eu no disse aos alunos que ia fazer cirurgia. O professor
que ficou no meu lugar que falou. Ele trabalhou a questo do preconceito. Eles ficaram
meio em estado de choque. Quando cheguei, falei com eles e colei em todas as paredes da
escola a lei estadual 11.832, que trata da discriminao. No estado temos essa lei. Ento, a
diretora disse: faa-se cumprir a lei. Ela colou por toda a escola. A diretora ficou
preocupada com a reao dos pais. Mas, se acontecesse algo, ela estava com a lei em cima
da mesa.
Nas narrativas de Nu e Tiresia verifico que, para a fabricao de suas identidades, elas
tomaram emprestado o ensinamento dos movimentos curriculares sobre o feminino aprendido,
atravs de inmeras tecnologias educativas, que as interpelaram. Sem que, com isso, tenham
deixado de utilizar as 'verdades' produzidas sobre a transexualidade. Entretanto, diferentemente
da professora Nu, a permanncia de Tiresia no espao da escola foi mediada pelo seu empenho
profissional, sua capacidade de convencimento e de estabelecer com os/as estudantes laos de
solidariedade.
[...] Eu quero mostrar que no se deve julgar as pessoas pela orientao que ela tenha e,
sim, pela dignidade, ou seja, respeitar cada um na sua individualidade e no querer colocar
coletividade em todos. Vamos ver, so todos os coletivos homogneos e iguais? No. Cada
um tem uma heterogeneidade, uma diferena [...] Na minha sala de aula meus alunos so
respeitados pela classe, pelo sexo, pela cor, pela sua diferena e opinio sobre o mundo. Eu
sempre falo a eles que o limite de qualquer fala a felicidade do outro. Na minha sala de
aula eu sou o ponto de referncia, se eles discriminarem um homossexual em sala de aula,
estaro me discriminando. [...] No primeiro dia de aula eu explicava o que era ser uma
transexual. Eu dizia e queria apenas que eles me respeitassem porque eu iria respeitar cada
um deles. Quando a gente se formou na dcada de [19]80, o professor era colocado num
pedestal. Nas escolas antigas, tinha aquele negcio alto em que o professor ficava em cima
54
Quando os limites foram desobedecidos, Tiresia foi sujeita s sanes, conforme podemos
verificar em sua narrativa:
Eu era alvo de ateno em toda a escola, isso sempre me incomodou. Mas, eu no podia
fazer nada. Eu me acostumei com o preconceito. [...] Pergunta para essas pessoas se elas
querem conviver conosco. Eu nunca fui convidada para nenhuma festa de professor. Quer
dizer, eu nunca tive contato social com heterossexuais. Eles no me aceitavam. E dizem
que o preconceito hoje est menor. No est! Com meus alunos eu nunca tive problema
porque eu no sou caricata. Roupas femininas e cabelo, j chocam. Claro que tm alunos
que falavam mal por trs. O que eu fazia nas minhas provas? Nunca ficava sozinha com o
aluno, os trs ltimos ficavam comigo e saam juntos. Era para evitar comentrios. Eu no
dava margem pra ter problemas. [...] Na verdade, o governo me aposentou porque depois
de dois anos de licena mdica, eles automaticamente me aposentaram. [...] Eu havia
conseguido a readaptao ao trabalho, s que eu fiz uma cirurgia no glteo e tomei duas
anestesias, porque a prtese arrebentou na hora de colocar e o mdico no tinha outro par
de prteses.
Como nos ensinou Michel Foucault (2007), se entendemos os discursos como inscrio de
coisas e as coisas como a materialidade de sentidos culturais, tal dinmica de disciplinamento e
controle do corpo/coisa/sentido, da projeo de desejo/identidade/sexualidade, em suas ltimas
instncias, significa o governo e a vigilncia sobre o que foi dito com o discurso e inscrito no
corpo do sujeito. Assim sendo, o corpo o principal espao de produo e expresso da cultura,
no qual a sexualidade e o gnero so significados. Nesse sentido, cito Guacira Lopes Louro, que
diz:
Esse alinhamento (entre sexo-gnero-sexualidade) d sustentao ao processo de
heteronormatividade, ou seja, produo e reiterao compulsria da norma
heterossexual. Supe-se, segundo essa lgica, que todas as pessoas sejam (ou devam ser)
heterossexuais da que os sistemas de sade ou de educao, o jurdico ou o miditico
sejam construdos imagem e semelhana desses sujeitos. So eles que esto plenamente
qualificados para usufruir desses sistemas ou de seus servios e para receber os benefcios
do Estado (2009, p. 87).
Ainda que na ps-modernidade a sexualidade produza vrios estilos de vida, essas mesmas
configuraes convivem com situaes arcaicas que obrigam as professoras a
experienciarem uma rede complexa de desejos e apresentaes, aproximando-as de
determinados modelos heterossexuais. Assim, as expectativas de gnero para Bree, Tiresia
e Nu funcionam como uma priso e um limite criatividade corporal. Como sinalizou
Weeks (1998), Ao longo do sculo XX, as pessoas tem se definido, cada vez mais, atravs
da definio de seu sexo. A pergunta que devemos nos fazer o porqu da sexualidade ter
se convertido to importante definio do eu e da normalidade (p. 39-40)12.
12
durante el siglo XX, la gente se ha definido cada vez ms a travs de la definicin de su sexo. La pregunta que
debemos hacernos es por qu la sexualidad se ha vuelto tan importante para nuestra definicin del yo y de la
normalidad (p. 39-40). (Traduo livre)
55
A hostilidade vivida por Tiresia e Nu foi capaz de gerar inmeras situaes de violncias e,
algumas, no so apresentadas nas narrativas. Isso porque esto inscritas na mais profunda
intimidade e, por isso, foram vivenciadas no silncio. Silncio carregado de sentidos, como nos
lembra Eni Orlandi (1997). A prpria descrio de Tiresia acerca do comportamento das
mulheres no contexto atual, em nossa opinio clivada de certo conservadorismo, exemplifica a
narrativa de uma pessoa que, interpelada pelos julgamentos e hostilidades emanados do
pensamento heterocentrado, se v obrigada a buscar, em um referencial amplamente midiatizado
de mulher, as bases de sua performance de gnero.
A discriminao no somente demarca e busca naturalizar, com o uso da violncia simblica
e at mesmo fsica, a diferena. Ela afirma tanto o 'direito' e a pretensa superioridade daquele que
discrimina quanto a desvalorizao e deslegitimao pblica daquele que discriminado. As
identidades mediadas pelas expectativas de gnero e pelas sexualidades configuram-se nas
hierarquizaes e posies sociais e, portanto, refletem-se nos movimentos curriculares. Isso me
leva a defender a ideia de problematizar os conhecimentos que so eleitos para serem ensinados
nas escolas.
Consideraes Finais
Nas experincias vividas pelas professoras ou naquelas protagonizadas pela personagem do
filme Transamerica, que inspirou a reflexo terico-metodolgica deste texto: Bree possvel
observar os mecanismos que iro converter leis sociais em leis incorporadas. Essas leis se
constroem e se reproduzem nos significados de gnero e em suas inter-relaes com outras
identificaes (raciais, classistas, profissionais, religiosas, etc). Outro fator que me parece
importante que a vontade ou conhecimento desses mecanismos no so suficientes para
suspend-los. Eles esto inscritos no mais profundo dos corpos e essas estruturas criam
disposies nos sujeitos. Esto inscritos nos seus inconscientes (inconsciente, no sentido de
56
13
No original, em espanhol: El sujeto est, pues, siempre atravesado por el poder [], pues la dominacin
heterosexual no es una simple visin mental, se ejerce tambin a travs del cuerpo. Cmo revolucionar entonces el
poder simblico? No basta con liberar las conciencias como decan los movimientos feministas y gays de los aos
1970, sino que hay que modificar las "disposiciones" ("principio intencional de determinacin del comportamiento",
es decir las estructuras sociales que condicionan el comportamiento) ajustadas a las estructuras de dominacin. Es,
pues, necesario, para revolucionar la violencia simblica de la dominacin heterosexual, modificar las estructuras
sociales que condicionan las estructuras cognitivas, no slo las estructuras cognitivas, pues stas estn
determinadas por el poder. Hay que luchar contra esa determinacin, contra ese acondicionamiento social para
erradicar la dominacin heterosexual, pues es el quien permite la reproduccin del orden de las cosas.
57
Referncias
BENTO, Berenice. Transexuais, corpos e prteses. Revista Labrys estudos feministas. No. 4,
ago/dez, 2003.
BHABHA, Hommi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
BRITZMAN, Deborah. Educacin precoz. In. STEINBERG, S.; TALBURT, S (eds). Pensando
HALBERSTAM, Judith. In a queer time and place: transgender bodies, subcultural lives. New
York: New York University Press, 2005.
HALL, Suart. A identidade cultural na ps-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
______. Da dispora: identidades e mediaes culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG,
2006.
HEILBORN, Maria Luiza. Ser ou estar homossexual: dilemas de construo da identidade social.
In: PARKER, Richard e BARBOSA, Regina. Sexualidades Brasileiras. Rio de Janeiro: Relume
Dumar, 1996.
LAMAS, M. Cuerpo: diferencia sexual y gnero. Debate feminista.Vol. 10 (sept. 1994)
LARROSA, Jorge. Narrativa, identidad y desidentificacin. In: LAROSSA, Jorge. La experiencia
de la lectura. Barcelona: Laertes, 1996.
58
62
Nesse sentido, o percurso que tomei na escrita foi o de, tendo sido levada aos textos de
Silvio Gallo e Regina Maria de Souza (2004), Daniel Lins (2005), Edvaldo Couto (2009) e tantos
outros, apontar elementos que me permitiram pensar modos como as experincias dos corpos, dos
gneros e das sexualidades se implicam e esto implicadas com a escola e a educao escolar. E foi
nesse e com esse desejo que escrevi o texto.
Rastros do Outro
Na introduo do livro Educao do preconceito: ensaios sobre poder e resistncia,
Silvio Gallo e Regina Maria de Souza (2004) recorrem letra da msica Estrangeiro, de
Caetano Veloso, para comporem a pea de apresentao dos autores/as dos captulos que
constituem o livro. Iniciam a introduo com a msica, (de)compem-na e, ao mesmo tempo, o
conjunto dos demais textos, para alm da introduo do livro. Aprisiona os/as leitores/as em
suas teias. Ele e ela nos arremessam sobre a ideia do outro. As intencionalidades pelas quais Silvio
e Regina nos lanam a tal ideia so imediatamente desenhadas quando, no dilogo com a letra da
msica de Caetano, nos falam:
O outro, o diferente, o no-mesmo: so distintos nomes para a mesma realidade que nos
habita, nos desloca, nos incomoda mas ao mesmo tempo, apreendemos com paixes
distintas e contraditrias [...] O outro e no ao mesmo tempo; o outro o estranho,
que desperta medo, mas tambm desperta curiosidade. Em sua diferena, o outro
aquele/aquilo que amamos e odiamos a um s tempo (GALLO; SOUZA, 2004, p. 11).
63
Reafirmam Gallo e Souza (idem), ao apresentarem o captulo escrito por Milton Jos de
Almeida14:
[...] buscamos no outro aquilo que desejamos. A diversidade do outro; a estranheza do
outro; a ameaa do outro, mas tudo controlado, dentro das redomas de vidro de uma
exposio monitorada. [...] Despojamos o outro de tudo aquilo que nele odiamos;
preservamos no outro tudo aquilo que especularmente amamos. [...] Em suma, tornamos o
outro no mesmo velho conhecido, o borramos e depois apagamos as suas diferenas
(ibidem, p.14).
No captulo, Almeida (2004) trafega e conduz o/a leitor/a por imagens presentes em
exposies de museus e zoolgicos diversos, e destaca o uso da tcnica da perspectiva utilizada
por esses espaos para representar artefatos e seres humanos parecidos com o que somos (op.
cit.). O exerccio de Almeida o da conduo para a imaginao dos lugares e cenas que descreve
como pistas. As pistas indicadas so o caminho utilizado na arquitetura do texto para dar a pensar
no racismo. E ele descreve as cenas, as imagens e faz imaginar. Na descrio da cena, adentra e
conduz o/a leitor/a na produo da exposio, conduz aos pores, apropriando-me da metfora de
Veiga-Neto (2012, p. 66) L, revela a perspectiva como estratgia de produo do binmio
Sujeito-Objeto, de produo de verdade e como arma visual com a qual podemos violentar o real,
cientificamente, virtuosamente. E assinala:
Ao representar em linhas, luzes, sombras, cores o real presenciado, a perspectiva faz com
que a sua prpria subjetividade adquira estatuto de objetividade, criando e atestando como
verdade popular e cientfica a existncia incontestvel do binmio Sujeito-Objeto, sem o
qual as cincias modernas tanto humanas quanto as outras no poderiam existir
(ALMEIDA, 2004, p. 67).
A clula Sujeito-Objeto, conduzida pela perspectiva, [...] infiltrou-se nos pares CivilizaoColonizao, Civilizado-Selvagem, Nacional-Estrangeiro, O Semelhante-O Outro (ibidem).
Se de um lado, Almeida (op. cit.) destaca os modos como esses pares ocuparam e ocupam
lugar na produo e disseminao do racismo, de outro, possvel afirmar que tambm, e ao
14
O captulo intitula-se Investigao visual a respeito do outro e iniciado na p. 28 do livro GALLO, Slvio; SOUZA,
Regina Maria de. Educao do preconceito: ensaios sobre poder e resistncia. So Paulo: Alnea, 2004.
64
mesmo tempo, esses pares marcaram os corpos e as sexualidades. Afinal, o racismo opera sobre
eles.
Gallo e Souza (2004) recuperam a escola e a apresentam como uma das exposies descritas
por Almeida. A escola tambm um espao artificial, um mundo dos sonhos em que vemos o que
desejamos, dizem ele/a (p.14). um dos espaos produzidos para tentar assegurar que o outro
responda e apresente o que desejamos. Gallo e Souza (idem, p. 15) advertem-nos de que no
poderia ser diferente. Nela vemos acontecer o apagamento do outro, o borramento da diferena,
por meio de suas polticas inclusivas, de suas prticas de tolerncia, de sua afirmao do
multiculturalismo. possvel, tambm, ver na escola o controle, o despojamento, a preservao e
a verdade do outro transformado em mesmo:
Sim, a escola pode ser parceira de um processo poltico e social mais amplo, o de deixar
morrer, simbolicamente, esse outro em que, com tantos outros, no podemos nos mirar de
modo especular. Esses outros que, enterrados em um mesmo espao, acabam se
embaralhando no fluxo dos movimentos dos corpos e mentes considerados normais. Assim
confundidos, perdem a visibilidade de suas diferenas; e nossos olhares apaziguados no se
incomodam mais com eles, a no ser nos vos momentos em que podemos estranh-los em
meio a um conjunto de outros que falam a nossa lngua, ouvem apenas com os ouvidos,
andam com duas pernas (no sentados em cadeiras de rodas) e pensam submetidos nossa
lgica cartesiana. Atos de borrar as diferenas, mas sem apag-las, para que continuemos
seguindo tolerantes com esses outros anormais (GALLO; SOUZA, 2004, p.15).
65
Assim, o autor reafirma [...] que a tolerncia supe que o objeto tolerado moralmente e
necessariamente censurvel (p. 80).
A educao escolar no Brasil nos ltimos tempos, por meios de suas polticas inclusivas, de
sua afirmao do multiculturalismo, tem proposto prticas de tolerncia como mecanismo para o
dilogo com o outro. o que lemos e aprendemos com Skliar (2004).
66
violaes de direitos humanos contra LGBTs, envolvendo 1.713 vtimas e 2.275 suspeitos
(BRASIL, 2012).
Ainda pensando na noo de tolerncia, tomo Miskolci (2012), que pontua que [...] tolerar
muito diferente de reconhecer o Outro, de valoriz-lo em sua especificidade, e conviver com a
diversidade tambm no quer dizer aceit-la. A noo de diversidade, do ponto de vista terico,
problematizada pelo autor. E assim o faz quando assinala que esta uma noo articulada a uma
concepo problemtica e esttica de cultura.
uma noo de cultura muito fraca, na qual se pensa: h pessoas que destoam da mdia e
devemos toler-las, mas cada um se mantm no seu quadrado e a cultura dominante
permanece intocada por esse outro. Na escola, seria como se dissssemos, estaremos na
mesma sala de aula, mas voc no interfere na minha vida e eu no interfiro na sua e no
interferimos na de fulano (MISKOLCI, 2012, p. 50).
67
subjetividades, certos modos de ser e de estar no mundo que se tornaram hegemnicas. Corpos
dceis e teis foram produzidos, [...] em outras palavras, sujeitos equipados para funcionar com
eficincia dentro do projeto histrico do capitalismo industrial (SIBILIA, 2012, p. 43).
Os modos de ser e estar no mundo que se tornaram hegemnicos dizem respeito a modos
como foram pensados e produzidos os corpos, os gneros e as sexualidades, reduzidos a
dimenses
fragmentadas,
aprisionadas
binrias.
Generalizada
naturalizada,
68
Notas de pesquisa de campo da autora. A pesquisa, ainda no concluda, foi impulsionada por inquietaes
apresentadas por professoras/es e alunas/os de graduao e do Curso de Especializao em Ensino de Cincias
sobre o trabalho com o tema corpo humano e sexualidade, ocorrido em salas de aula do ensino fundamental.
69
foradas pelos critrios expostos no Edital de Convocao para inscrio no Processo Seletivo de
Avaliao e Seleo de obras didticas para o Programa Nacional do Livro Didtico/ PNLD 2012
Ensino Mdio16, que assinalam o papel da obra e da biologia escolar na abordagem complexa do
tema e na participao de processos formativos que visem superao das discriminaes e
preconceitos de toda natureza, dentre eles, os relativos aos gneros e s sexualidades.
No se trata de negar a importncia e o reconhecimento do conhecimento biolgico acerca
do sexo e da reproduo, mas de desvelar que a Biologia escolar participa da atuao sobre os
corpos, os gneros e as sexualidades. Ela utiliza-se, inclusive, da no incorporao de saberes
contemporneos da biotecnologia, das cincias de sua referncia, na produo de corpos e de
sexualidades.
Cabe ressaltar que os editais do PNLD atendem a um arcabouo legal e normativo que regula a educao escolar
nos ltimos tempos.
70
Estes passam a ser dispositivos de controle, e neles o poder mais disseminado dissolvido. Na
sociedade de controle, estaramos passando das estratgias de interceptao de mensagens ao
rastreamento de padres de comportamentos..., aponta Rogrio Costa (2004, p. 63), que ainda
reitera: Somos humanamente definidos como membros de mltiplas redes (idem, p. 166).
neste tempo que Couto (2009) afirma que:
As tcnicas de maximizao de si mesmo tambm promovem com-fuses na sexualidade.
Agora tudo, absolutamente tudo, sexual e todos esto prontos e tecnologicamente potentes para
jogos e aventuras. Os esteretipos sexuais esto em toda parte. A poltica, a cincia, os esportes,
toda cultura est no sexo. A estetizao geral. O sexo se estetiza na publicidade e na pornografia
que a tudo contaminam e seduzem. Mas quando tudo passa a ser sexual, como escreve Baudrillard
(1990, p. 15), porque nada mais sexual: o sexo perde toda determinao e a com-fuso passa a
ser uma lei nas variantes triviais da encantao sexual (COUTO, p. 10).
Assim, Couto prope que o mais correto falarmos em sexualidade; passemos a falar em
sexualidades, no plural: As interfaces ps-humanas aceleram o prazer diante das com-fuses dos
gneros, da diversidade sexual e da indiferena do sexo como gozo. Tradicionais fronteiras como
masculinidade e feminilidade, homem e mulher, se hibridizam (idem).
Como diz Couto (2009), na era em que vivemos, do ciborgue, ps-humano, assistimos
Medicina acrescentaria a Biotecnologia transformar o corpo em uma mquina de alta
performance. Para ele, nesta era, est em questo [..] no a fuso corporal da mquina e da
carne, mas os condicionamentos promovidos pela publicidade e mdias em geral (p.5).
Esses condicionamentos, engenhosamente controlados, significam os corpos e as
sexualidades, e produzem rituais, linguagens e cdigos nunca antes pensados. Corpos e
sexualidades espetacularizados, significados pelas culturas digital e informacional, e por elas
alterados.
Na sociedade do espetculo, a virtualizao da cultura reformula e redimensiona de modo
radical a nossa maneira de ser e estar no mundo (idem). O humano tem se tornado quimera,
mosaico hbrido e teorizado. Abriram-se outros campos e espaos de sentir e viver os corpos e as
sexualidades. Espaos con-fusos, como sugere Edvaldo Couto.
Em sua reflexo, Couto (ibidem) relembra-nos que o projeto moderno do sujeito valorizou a
individualidade, a autonomia das aes, a autodeterminao e a autenticidade de si mesmo. Valores que,
para ele e outros/as autores/as, favoreceram a organizao de lutas polticas e modos de
existncias. Na sociedade do espetculo, tais valores sucumbiram, e, assim, o humano cedeu lugar
ao ps-humano:
71
Desde a metade dos anos 1990 que a expresso ps-humano se tornou corrente em
publicaes e exposies de arte. embora tenha conotaes diferentes, de modo geral usada para
se referir a uma realidade de construo e reconstruo do corpo como parte de um circuito
integrado de informaes e matrias. O entrelaamento de componentes humanos e no humanos,
orgnicos e inorgnicos, chips e tecidos. s vezes, substitudo pelo termo transhumano, sempre
no sentido de que a condio atual um humano mais que humano. [...] o que constitui o humano
passa por profundas transformaes (COUTO, 2009, p. 8).
Assim, o ps-humano diz respeito [...] condio humana expandida pelas tecnologias
(idem). Nesse contexto, fabricam-se modos de existir diversos daqueles das sociedades
disciplinares. A escola, presa ao ideal moderno, espanta-se em meio a essas profundas alteraes.
Desconhece o/a aluno/a e o/a professor/a que a vo adentrando com as atualizaes das
experincias sexuais no mais presas ao corpo ou ao sexo.
A pesquisa realizada por Suzana da Conceio de Barros (2014), em seu doutoramento,
apresenta o espanto, a perplexidade da escola e, tambm, da famlia, diante de experincias
sexuais espetacularizadas e midiatizadas por seus/as alunos/as. Experincias ex-postas,
encurraladas pela mdia, pela polcia. Suzana tomou o sexting na adolescncia e a rede de
enunciaes produzida pela mdia sobre esse fenmeno e apresentou suas condies de
emergncia. Ela afirma que crianas, adolescentes e adultos vm aderindo prtica do sexting no
Brasil e no mundo, e assim define:
[] o sexting pode ser entendido como o compartilhamento e postagem de: mensagens
erticas, fotos de corpos nus e seminus com poses sensuais, vdeos que mostram relaes
sexuais. o envio de materiais que apresentam contedos sexuais, sensuais e erticos, por
meio das diversas tecnologias, tais como: smartphone, iphone, tablets, computadores, entre
outros, e em sites de redes sociais (Facebook, Twitter etc.) (BARROS, 2014, p. 22).
Barros (idem) situa o surgimento da expresso sexting nos Estados Unidos da Amrica
(EUA) e apresenta trs pesquisas realizadas com adolescentes, uma nos EUA, 2008, outra na
Europa e a terceira no Brasil, 2009. Em todas as pesquisas, foi identificada a prtica do envio de
mensagens com conotaes erticas, corpos nus e seminus, sendo mais preponderante entre as
meninas. Os/as adolescentes, mesmo sem a inteno inicial de divulgar suas mensagens
abertamente na internet, por vezes tiveram-nas disseminadas em toda a rede, por terceiros.
Em sua tese, Barros (2014), alm de apontar informaes acerca do sexting, situa o tipo e
caractersticas da sociedade na qual esse fenmeno emerge, a interpelao e confluncias entre os
tipos de sujeitos que nela emergem e a implicao com as tecnologias digitais:
72
O sexting pode ser pensado tambm como a espetacularizao da sexualidade e dos corpos.
Essa uma das novas experincias de sexualidade que tm sido significadas pela cultura digital e
informacional, e por elas alteradas.
O trabalho de Suzana Barros (idem) faz pensar a relao entre o sexting e o regime de
visibilidade. Nessa relao, destaca-se a participao das tecnologias digitais na constituio,
proliferao e sedimentao desse regime. Particularmente, no modo como o corpo, a sexualidade,
a intimidade e a visibilidade foram entrelaadas e expandidas nas sociedades atuais. Ela evidencia
ainda que a prtica do sexting est relacionada a linhas que compem o dispositivo das
sexualidades:
As tecnologias digitais podem ser entendidas como clares, luzes ou mquinas de fazer
ver, so elas que possibilitam a produo de fotos e vdeos de conotao
sexual/ertico/sensual, ou seja, so elas que visibilizam a prtica do sexting, e, portanto,
esto relacionadas s linhas de visibilidade (BARROS, 2014, p. 32).
73
casos de polcia, assim nos narra Barros (idem) por meio da grande produo de notcias
veiculadas pela mdia acerca do sexting.
Diante das notcias do sexting e envolvida por elas, a escola convocada a dizer algo sobre
as prticas, especialmente porque arrolada em sua produo. Os dados apresentados por Barros
(ibidem) demonstram como a grande mdia publiciza e culpabiliza a escola. A mesma mdia e
tecnologias apropriadas para produzir o sexting acusam e pedem esclarecimentos escola. Assim,
a escola atormentada, junto com ela seus/as gestores/as e famlias.
[...] Vdeo Polmico denuncia casal de adolescentes fazendo sexo oral em banheiro de
escola; Adolescentes fazem vdeo porn em escola: assista reportagem com aluno; Polcia
j sabe quem divulgou vdeo de alunos fazendo sexo oral em sala de aula; Adolescentes
fazem vdeo pornogrfico em escola do interior de So Paulo: Gravao foi feita dentro da
sala de aula e se espalhou [...] (BARROS, 2014, p.74).
A escola, como outras instncias sociais, atormentada por esses novos tempos, se depara
com sexualidades sem corpo, espetacularizadas. Onde estaria o corpo organizado, disciplinado?
Este encontra-se em vias de desaparecimento, seno desaparecido. A escola e a famlia,
instituies sociais mais prximas, responsabilizadas pela educao e formao das crianas,
parece no ter acompanhado o processo de desaparecimento do corpo e da sexualidade.
Embora possamos dizer que as grandes teias comunicacionais nos faam pensar que as
revolues sociotcnicas foram e so largamente divulgadas, estas parecem ter passado,
propositadamente, ao largo de certos adultos, e, dentre eles, grande nmero de educadores/as. A
produo sociotcnica dos corpos e das sexualidade invadiu os universos e os corpos dos
indivduos. Ocupou, sorrateiramente, os espaos micros. No mais por meio da geometria da
rvore, mas por meio da rede. De modo difuso, entrou nas casas, nas escolas, invadiu o corpo, o
humano, ou controlou no corpo o humano.
74
75
fissuras so abertos, fossos e fissuras que podem ser vistos como as instabilidades constitutivas
dessas construes, como aquilo que escapa ou excede a norma, como aquilo que no pode ser
totalmente definido ou fixado pelo trabalho repetitivo daquela norma (p. 164).
Seguindo sua argumentao, Butler apresenta sua compreenso acerca da performatividade
como citacionalidade e, como resultado desta, discorre:
O regime da heterossexualidade atua para cirscunscrever e contornar a materialidade do
sexo e essa materialidade formada atravs de e como uma materializao de normas
regulatrias que so, em parte, aquelas da hegemonia sexual (ibidem).
A autora, com as formulaes acima, prope que importante pensar sobre [] como e
para que finalidade os corpos so construdos, [] como podemos pensar a matria dos corpos
como uma espcie de materializao governada por normas regulatrias (BUTLER, 1999, p.
170-171). Tais normas teriam, em sua compreenso, a finalidade de assegurar o funcionamento da
hegemonia da heterossexualidade.
Consideraes finais
Para finalizar o texto, entendo que, no campo dos estudos de gnero, corpo, sexualidade e
educao, h vrias apostas. Uma delas a de que no abrimos mo da escola, mas entendemos
que para que ela possa ascender a outros universos cabe pens-la estabelecendo outras redes.
Como bem alerta Sibilia (2012), h uma crescente e profunda incompatibilidade entre os modos de
ser e estar no mundo os valores, premissas e ambies ainda em curso no espao escolar, como
compreendidos pelos autores/as mencionados/as neste texto.
Para tanto, a minha aposta acompanha a aposta de Lins (2005), quando diz que:
Ao contrrio, no contexto de uma pedagogia dos sentidos, pedagogia rizomtica, nmade,
os saberes tornam-se sabores porque permitem as inteligncias, s crianas, aceder a um
universo outro: ser bruxo com os bruxos, compartilhar da compreenso dos mistrios do
nascimento, do amor, da vida, da morte, sem drama, sem histeria, sem dvida, mas com
fantasia criativa acoplada reflexo e no induo.
76
Desse modo, seria por meio de [] discursos criativos do desejo e do gozo, sob o signo
das cincias, poesia e msica, artes e amizade [] e da inaugurao e efetivao do cuidado de si
e dos outros, outrem como acontecimento, e no como condenao ou fatalidade (ibidem, p. 1232),
que inventiva e afetivamente deslocaramos a escola, os corpos e toda e qualquer forma de
sexualidade e de humano. E os deslocaramos para lugares alegres e agradveis, pois
S se experimenta por amor, s se aprende por amor, s se ensina por amor, s se escreve
por amor, s se faz amor por amor. preciso muito trabalho para no viver idiota, para
no morrer idiota. Aprender tambm aprender a escrever, e a escrita uma carta de
amor. Ora, o amor da ordem do experimento e no do programa. Experimentar significa
tambm participar ativamente, engajar-se no sentido em que o pensamento no
simplesmente espectador ou contemplador, mas participa de maneira ativa daquilo que
tenta. Enfim, na experimentao, o pensamento engaja-se num processo do qual
desconhece a sada e o resultado, e nisso que ele est profundamente vinculado
experincia do novo. O novo no a eternidade, a inveno. (LINS, 2005, p. 1254)
A escola pode ser essa inveno. Esta , neste instante, a ltima aposta.
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GRACIELA ALONSO
UNIVERSIDAD NACIONAL DE COMAHUE NEUQUN,
ARGENTINA
Introduccin
A causa de eso, y de muchas otras razones,
estoy convencido que los educadores liberadores
no son misioneros, no son tcnicos, no son simples profesores.
Deben hacerse cada vez ms militantes.
Deben convertirse en militantes en el sentido poltico de la palabra.
Algo ms que un activista.
Un militante es un activista crtico. (FREIRE, P., 2014, p. 84)
Las reflexiones que dan origen a este escrito parten del proyecto de Investigacin:
Gneros, sexualidades y cuerpos de la Formacin Docente. En dicho proyecto estudiamos desde
un abordaje cualitativo las significaciones y prcticas de docentes de Institutos de Formacin,
sobre las temticas enunciadas en el ttulo.
A partir de dicho trabajo, exponemos la siguiente afirmacin provisoria: Las
intervenciones pedaggicas de docentes, en las instituciones de formacin de formadorxs,
sobre gneros, sexualidades y cuerpos, potenciadas por las voces y cuerpos de estudiantes y por la
militancia social, junto con la creacin de espacios curriculares especficos, estn posibilitando
niveles crecientes de institucionalizacin de dichas temticas.
Esto se va dando sobre la base de la existencia en el pas, de un campo de produccin y
debate en creciente configuracin y por la presencia de un activismo militante de docentes en las
discusiones curriculares17, en la produccin de encuentros de intercambio y en el mantenimiento
de un estado permanente de debate y deliberacin en pos de realizar y reclamar aquello que,
desde una opcin crtica, las instituciones educativas estn llamadas a hacer: no sostener prcticas
17
En este escrito hacemos referencia especficamente, a docentes de las Provincias de Neuqun y Ro Negro
(Patagonia Argentina).
82
reproductivas que avalen las discriminaciones producto del entronque entre heteropatriarcado,
racismo y capitalismo.
Consideramos que es importante problematizar la propia institucionalizacin de las
temticas, la entrada del Estado (va las reformas curriculares, capacitaciones docentes, etc.) y el
lugar de la militancia, manteniendo las tensiones necesarias entre estos niveles.
Abordaremos en este trabajo reflexiones sobre las prcticas docentes que fueron
posibilitando la institucionalizacin de las temticas, algunas particularidades del momento actual
y aportaremos reflexiones sobre la tensin entre institucionalizacin y activismo social.
18
En este escrito la utilizacin del femenino cuando se habla de docentes refiere a quienes participaron de alguna
instancia del proyecto de investigacin.
83
84
Entendemos que hay relaciones entre saberes situados e involucramiento o implicacin, que
seran algunos de los elementos configurantes del vnculo pedaggico en la Formacin Docente.
Las docentes dan cuenta de una suerte de recorrido que va de lo que llaman situaciones
emblemticas emergentes hasta provocar situaciones o dispositivos que deliberadamente buscan la
aparicin pblica de la disrupcin.
Cuando narran las situaciones emblemticas emergentes, dicen que fueron muy o sper
impactantes, que las pusieron contra las cuerdas, que la propia situacin se les impuso, que se les vino
y ante eso no saban qu hacer, qu contestar, qu decir, pero que algo tenan que hacer. Asumen
que ninguna se desentendi de la cuestin y que sus primeras respuestas fueron intuitivas.
Posteriormente reconocen haber pedido ayuda a docentes con ms experiencias en estas
temticas y a partir de all, retomaron el tema con argumentos contextualizados y tericos en la
propia clase o generando otros espacios institucionales. De alguna manera, esto da cuenta de una
Pedagoga situada, que al decir de Freire (2014), pudo darse en ese momento, en el momento en
que docentes y estudiantes lograron correrse de la mera transferencia de saberes.
Luego de estos inicios, comenzaron a introducir deliberadamente situaciones para
posibilitar la emergencia de relatos por parte de lxs estudiantes, que permitieran vincular
experiencias subjetivas con el contenido de sus espacios curriculares, dando cabida en estas
tramas de saberes a las construcciones histricas de las matrices de gneros, cuerpos y
sexualidades.
Lo novedoso no sera tanto el apelar a las vivencias personales en el trabajo pedaggico,
sino que se consideren especficamente experiencias asociadas con las relaciones de gnero
(violencia, abusos, silenciamiento de orientaciones sexuales, sometimiento en las relaciones
hetrosexuales) para ser evidenciadas y reflexionadas colectivamente, en la utopa de formar
educadorxs crticxs, apasionadxs, involucradxs. Es decir, considerar que el texto puede ser la
vida.
Este pasaje entre lo que ellas llaman un abordaje catico, es decir cuando situaciones no
previstas se desatan en las aulas, y estos otros, organizados, pensados, dan cuenta del
involucramiento, de la implicacin que algunas docentes comienzan a tener, o vienen teniendo,
con temticas en las que el cuerpo de/en la formacin docente gana en materialidad, en
concretud. Por otra parte, el relato de estas docentes se constituye en un analizador construido
que hace hablar" lo que de lo contrario quedara oculto.
85
Las situaciones emblemticas, cuando pueden ser escuchadas y abordadas, colisionan con
los mandatos sociales acerca de los contenidos de la Formacin Docente, de lo que
tradicionalmente se considera que es objeto de estudio, porque se le da entrada, justamente, a las
demandas de lxs jvenes en formacin, se le da entrada al cuerpo poltico. En este sentido, y en
esta lnea de pensamiento, estas docentes se convierten coyunturalmente en portadoras de lo
desviante o descarriado. All es donde el vnculo pedaggico se re configura o puede
reconstituirse desde una posicin que privilegia lo situado de las necesidades y lo implicado de las
posiciones.
Nos parece interesante explorar otros elementos reconfigurantes de vnculos pedaggicos
en la Formacin Docente, como por ejemplo, la experiencia y las interpelaciones, incorporadas
como mandatos.
El campo del feminismo ha sido muy prolfero en relacin la conceptualizacin de las
experiencias, tal como lo refleja el trabajo de Ana Mara Bach (2010). Una de las dimensiones de
este concepto est asociada a la constitucin, semitica e histrica de la subjetividad; Bach ubica
aqu a Teresa De Lauretis, para quien la subjetividad, no es un proceso individual, sino que es
inseparable de la actividad social y de la sexualidad. Sostiene Bach, analizando la produccin de
Teresa de Lauretis que la sexualidad marca no slo la dimensin social sino tambin la
experiencia personal de la condicin de las mujeres (BACH, A. M., 2010:34); en este sentido, De
Lauretis (segn BACH, A.M., 2010, p.35):
[] concibe la experiencia como un proceso continuo e inacabado por el que se construye
la subjetividad. La experiencia sera el efecto de la interaccin subjetiva con el mundo, no
mediante ideas o valores externos, causas materiales, sino con el compromiso personal,
subjetivo en las actividades, discursos e instituciones que dotan de importancia (valor,
significado y afecto) a los acontecimientos del mundo.
86
87
19
Este apartado se realiza tomando en consideracin las respuestas a un cuestionario realizado en el marco del
proyecto de investigacin- a docentes de las provincias de Neuqun y Ro Negro a cargo de un seminario,
introducido por la reforma curricular. Este seminario, denominado en Neuqun, Derechos humanos: educacin sexual
integral y relaciones de gnero y en Ro Negro, Gneros y Sexualidades, comenz a dictarse en 2011. El cuestionario fue
enviado por e-mail y completado por quienes tenan a cargo el seminario y en algn caso, por quienes formaban
parte del equipo; posteriormente realizamos una jornada de intercambio, en base al anlisis de dichos cuestionarios,
con docentes de nivel terciario de ambas provincias. En esa oportunidad, entregamos materiales en formato digital
para formacin docente y trabajo ulico.
88
A partir de esta experiencia iniciada en 2011, realizamos una indagacin, de la cual daremos
cuenta brevemente, de situaciones institucionales vivenciadas como obstaculizadoras y
potenciadoras, por parte de docentes a cargo de los seminarios20.
Con respecto a la descripcin de situaciones que potencian el desarrollo del espacio, se
enfatiza positivamente la interaccin con otras/os docentes, con otros espacios curriculares y la
articulacin con otras instituciones (por ejemplo de salud y justicia), as como con organizaciones
feministas o del movimiento LGBTTI (lesbianas, gay, bisexuales, travestis, transexuales,
intersexuales). Tambin se valora la existencia de marcos normativos que encuadran y colaboran
en las decisiones de los desarrollos curriculares de cada espacio (Ley Nacional de Educacin
Sexual Integral; Lineamientos curriculares nacionales; nuevos diseos curriculares provinciales).
En las descripciones de situaciones que obstaculizan el desarrollo del espacio encontramos
reiteradas referencias a tensiones institucionales asociadas a los desafos de los formatos de taller
20
El cuestionario contuvo los siguientes tems: Edad, Ttulo de grado, Institucin que lo expidi; Cargos/hs ctedras
en la institucin; Relato sobre experiencia de formacin (en general y vinculada al seminario); Cmo accede a este
espacio curricular; Cmo considera que es percibido este espacio curricular en la institucin; Describir situaciones
en donde se pongan de manifiesto dificultades/conflictos durante el desarrollo del seminario (subjetivas, con
estudiantes, con otras/os docentes); Describir situaciones (instituciones u otras) que colaboraron potenciando el
espacio curricular; Realizacin de consideraciones acerca de la conformacin interdisciplinar del equipo, teniendo
en cuenta potencialidades y dificultades; Solicitud de adjuntar al cuestionario el programa del seminario.
89
21
A partir de la nocin de obstculo epistemolgico de Bachelard, Pichn plantea que en el acto de aprender tambin
puede operar un obstculo epistemoflico que es la ansiedad ante el cambio. En el progreso del conocimiento
emerge como dificultad el temor a lo nuevo y est relacionada con implicancias del orden afectivo. Es decir, es una
dificultad interna que opera en el sujeto en el proceso de apropiacin instrumental de la realidad, y le impide
interactuar con el objeto de conocimiento, ya sea para acercarse o alejarse de l. (Ritterstein, 2008, p.3).
90
Dicen por all estos chistes: yo voy a ir a la prctica las clases sern los sbados despus de las
12 de la noche, de lo cual se puede leer que no hay nada que ensear ni trasformar sino que la
sexualidad se ejercita por simple reproduccin de lo trasmitido a lo largo del tiempo.
Tratamos de realizar una simple distincin entre una percepcin de institucionalizacin a
travs de manifestaciones que dieran cuenta de su aceptacin o rechazo; la mayor cantidad de
entrevistadxs consideran el proyecto legitimado, considerando adems que es aceptado o por lo
menos tolerado, en el conjunto de profesionales que llevan adelante las tareas de formacin. Las
percepciones de rechazo son menos significativas que aquellas que expresan indiferencia.
Si tomamos los programas de los seminarios como otro paso, nivel, estadio de la
institucionalizacin del espacio en las instituciones concretas, pero tambin en la configuracin
del campo, es posible reflexionar acerca de los siguientes puntos (seguramente entre otros). Los
programas remiten al documento de la reforma curricular, tomando de dicho documento
elementos para la propia fundamentacin de la propuesta. Ac hay que tener en cuenta que las
reformas para el nivel terciario de las provincias de Ro Negro y Neuqun cuentan con un amplio
consenso en los institutos de formacin docente. A este consenso se arriba desde distintas
estrategias mediadas por tensiones particulares, pero sea como fuere, el resultado es que, al
menos en este campo especfico, hay dilogo con la propuesta oficial. Como dijimos en el apartado
anterior, las argumentaciones escritas en los documentos curriculares provienen de docentes que,
desde hace muchos aos, trabajan las temticas terica y prcticamente.
Las voces de estxs docentes tienen un reconocimiento tcito en los textos, dado que no
aparecen sus nombres, pero a travs de sus expresiones lxs lectorxs de cada documento
reconocen a sus autorxs.
Hay coincidencias metodolgicas en cuanto a privilegiar espacios de reflexin que
involucren las propias subjetividades (representaciones de estudiantes y docentes) y la teora,
mediada por la seleccin de bibliografa.
Habra que decir que quizs, en algunas enunciaciones, aparece como una suerte de etapas o
concepcin en ciclos o progresiva en el abordaje de las sexualidades (primero esto y luego
aquello). Por otra parte, si bien se menciona el anlisis de los estereotipos, la vinculacin de ellos
con las relaciones de poder social aparece enunciado en pocas fundamentaciones. En algunos
programas aparece la relacin con grupos sociales externos a las instituciones e incluso se
menciona en la programacin la participacin de ellos en las clases.
Un lugar en el que claramente se nota el avance de estas propuestas en relacin a otros
momentos histricos, es la institucionalizacin del desplazamiento de la concepcin biologista
91
clsica en el abordaje de las sexualidades y los cuerpos. Ac se ha ganado una batalla epistmica
de muchsima importancia y efectos.
Otro punto a destacar es la concepcin de derechos que aparece en varias fundamentaciones
de programas. Este derecho aparece enunciado como finalidad, en trminos de tener derecho,
por ejemplo, a una sexualidad plena y tambin en trminos de conocer los derechos legales que
tenemos por ser sujetas/os de derechos de gnero. En el caso de la reforma de Neuqun el
nombre del seminario comienza con Derechos Humanos, pero en las fundamentaciones aparece
con menor desarrollo y no se problematiza, por ejemplo, la concepcin de Derechos Humanos en
su universalidad.
En cierta relacin con lo anterior, una cuestin que no tiene suficiente presencia en las
fundamentaciones es la falta de articulacin entre el abordaje de las sexualidades, los cuerpos, los
gneros y particularidades tnicas, raciales, de clase, generacionales (excepto en uno o dos casos,
pero que despus no presentan correlacin con los contenidos ni con la bibliografa).
El sistema capitalista y heteropatriarcal aparece como incoloro. Es desde este punto desde
el cual, a lo mejor, habra que entrar en un dilogo crtico con el documento de la reforma, que
sera entrar en un dilogo crtico con nosotrxs mismxs, mediadxs por la reflexin terica y por el
reconocimiento epistmico de otros saberes con los cuales poder entrar enterxs a las aulxs y a
nuestra propia historia latinoamericana.
Para concluir
Podramos enmarcar el logro de que en las Mesas Curriculares de las provincias de
Neuqun y Ro Negro, se hiciera lugar al planteo sobre la institucionalizacin de un espacio
propio para trabajar perspectivas tericas acerca de los gneros, cuerpos y sexualidades, en
aquello que Fraser (1997) denomin como polticas de reconocimiento.
Estas polticas toman como base un conjunto de injusticias culturales, simblicas que se
dan en un mundo profundamente desigual. Son injusticias arraigadas en los patrones sociales de
representacin, interpretacin y comunicacin. Su solucin requiere polticas transformativas de
redistribucin econmica y de reconocimiento social. En el mbito de la formacin docente se
puede trabajar en la problematizacin de los ncleos duros de la construccin androcntrica,
sexista, heterosexista y racista del mundo y de nuestras sociedades en particular. Pero, como
decamos ms arriba sin descuidar el anlisis crtico a las posiciones que se consolidaron con el
neoliberalismo, en tanto la identidad y la diferencia se constituyeron en ejes de polticas estatales
que no se hicieron cargo de los efectos de su configuracin en un sistema capitalista y colonial.
92
CRENSHAW, Kimberle (2002). Documento para o encontro de Especialistas em aspectos da discriminao racial
relativos ao gnero. En Estudos Feministas. Ao 10, 1er semestre, pp. 171-188. DORLIN, Elsa (2009). Sexo, gnero
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Aproximaciones crticas a las prcticas terico-polticas del feminismo latinoamericano. Vol. 1., pp: 19-38. Buenos Aires:
En la frontera.
93
diferencia desigualada y redistribucin / reconocimiento, nos parece que permite realizar miradas
crticas y problematizadoras en la configuracin del campo de estudios de gneros, cuerpos y
sexualidades.
La tarea de las instituciones educativas es desnaturalizar las opresiones y las
discriminaciones como forma de no reproducir la hegemona social. A partir de esto y para esto,
la articulacin con las organizaciones sociales es el paso para el cambio.
94
Referencias
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una pedagoga transformadora. Buenos Aires, Argentina: Siglo Veintiuno Editores. 2014
95
100
Tal como a diferena, a identidade uma relao social. Isso significa que sua definio est
sujeita a vetores de fora, de relao de poder. Elas no so simplesmente definidas; elas so
impostas. Elas no convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias, elas
so disputadas (SILVA, 2007, p. 81) e atravessadas por diferentes divises e antagonismos que
produzem uma variedade de diferentes posies de sujeitos (HALL, 2006, p. 17) e efetivadas
atravs de uma srie de procedimentos discursivos tendentes a aumentar a distncia entre os
signos, a exacerbar a diferena, a fazer funcionar a diferena, radicalizando-a no ato mesmo de
enraiz-la no dado biolgico [...] ou no dado cultural dito irredutvel (PIERUCCI, 1990, p.
14). Assim, as identidades so fabricadas por meio da marcao da diferena, tanto pelo meio
simblico, quanto pelas formas de excluso social. A identidade, pois, no o oposto da
diferena: a identidade depende [grifo do original] da diferena (WOODWARD, 2007, p. 39-40).
Considerando esses aspectos na perspectiva da diversidade sexual, as identidades tendem a
ser naturalizadas, cristalizadas, essencializadas. So tomadas como dados ou fatos da vida social
diante dos quais se deve tomar uma posio (SILVA, 2007, p. 73) e, em geral, quando h uma
posio aceita socialmente e pedagogicamente, no ultrapassa a mera questo da tolerncia
constantemente questionada pelos Estudos Culturais, por pressupor a manuteno das relaes
de poder, porque quem tolera algum que supostamente se encontra em um nvel hierrquico
superior a determinada(s) identidade(s) (PIERUCCI, 1990), isso o que todo mundo j sabe
desde sempre, no choca ouvido algum, apenas confirma o j sabido e, pior ainda, legitima que a
diferena seja enfocada e as distncias, alargadas (FURLANI, 2009b, p. 15) em uma estreita
relao de poder e domnio de uma identidade sobre as outras.
101
Por comungar com autores/as como Alpio de Sousa Filho (2013a, 2013b, 2009a, 2009b), Arianna Sala (2007a,
2012) e Rogrio Diniz Junqueira (2007, 2009a, 2012) buscamos fazer uso do termo opo sexual em detrimento de
orientao sexual, pois assim como os/a autores/a acreditamos e defendemos a ideia de que a manifestao da
sexualidade um processo em construo e vivida individualmente, portanto ela cambiante e pode ocorrer por
orientao ou por uma pluralidade de opes, escolhas, eleies e preferncias que coincidem com determinados
perodos da vivncia do erotismo, da sensualidade e do desejo e no simplesmente pela imposio de uma cultura
nacional. Ao nos conscientizarmos que essa pluralidade nos caracteriza como sociedade e como indivduos somos
impelidos/as a procurar novas formas de configurar um fator de enriquecimento e de desestabilizao de sistemas
de representaes que hierarquizam termos e identidade(s) como verdadeiros, naturais e inevitveis, estigmatizam
identidades contrrias e subvertem outros conceitos.
102
culturais e todo esse jogo de diferenas prescrito pela funo do autor, tal como a recebe de sua
poca ou tal como ele, por sua vez, a modifica (FOUCAULT, 2007, p. 29).
Para Scott (1995, p. 72), atravs dos sculos, as pessoas utilizaram de modo figurado os
termos gramaticais para evocar os traos de carter ou traos sexuais e, quando fazemos
referncia ao termo gnero, seu uso implicou uma ampla gama tanto de posies tericas quanto
de simples referncias descritivas s relaes entre os sexos (SCOTT, 1995, p. 73). H de se
considerar que o gnero no uma simples categoria analtica; mas o fazer e desfazer de corpos
num mundo de contestaes, em uma estreita relao de poder (HARAWAY, 2004; WEEKS,
2010).
Assim, padres de sexualidade feminina so, inescapavelmente, um produto do poder dos
homens para definir o que necessrio e desejvel um poder historicamente enraizado
(WEEKS, 2010, p. 56), seria melhor dizer: gnero um campo primrio no interior do qual, ou
por meio do qual, o poder articulado (SCOTT, 1995, p. 188) e que, em seu estudo descritivo, o
termo gnero acaba sendo um conceito associado ao estudo das coisas relativas s mulheres.
Porm, o termo tem sido empregado numa variedade de abordagens na anlise do gnero e
desenvolvimento da sexualidade e uma das suas aplicabilidades pode ser:
[...] anterior emergncia do humano, ao considerar uma criana, por exemplo, de um ser
neutro para um ele ou ela, torna a garota uma garota e a traz para o domnio da
linguagem e do parentesco atravs da interpelao fundante de gnero. Porm, esse
tornar-se garota, no se encerra na sua concepo ou nascimento, mas reiterada por
vrias autoridades, ao longo de vrios intervalos de tempo, na tentativa de reforar ou
contestar esse efeito naturalizado. Essa nomeao , ao mesmo tempo, o estabelecimento
de uma fronteira e tambm a inculcao repetida de uma norma (BUTLER, 2010, p. 161).
Nesse aspecto, o conceito de gnero se refere construo social do sexo biolgico e foi
criado para distinguir a dimenso anatmica biolgica da dimenso social, baseando-se no
raciocnio de que h machos e fmeas na espcie humana. No entanto,
[...] a maneira de ser homem e de ser mulher realizada atravs de inmeras
aprendizagens e prticas, nas mais distintas situaes, empreendida de modo explcito ou
dissimulada por um conjunto inesgotvel de instncias sociais e culturais. um processo
minucioso, sutil, sempre inacabado. Famlia, escola, igreja, instituies legais e mdicas
mantm-se, por certo, como instncias importantes nesse processo constitutivo (LOURO,
2008, p. 18).
103
A identidade de gnero ento pode ser considerada como sendo algo que no dado e, sim,
constitudo e vivenciado ativamente por cada homem e mulher a partir dos elementos fornecidos
por sua cultura, ou pelo fato de algum se sentir masculino e/ou feminino, num processo contnuo
e dinmico, no dado no nascimento e, a partir da, marcado para sempre, ou seja, uma
construo cultural/social e histrica, uma aquisio, uma performance, uma atuao. Isso quer
dizer que no h um elo imediato e inescapvel entre os cromossomos, o rgo genital, o aparelho
reprodutor, os hormnios, enfim, o corpo biolgico em sua totalidade, e o sentimento que a
pessoa possui de ser homem ou mulher. evidente que esse processo identitrio no
determinista (MOORE, 2000; BUTLER, 2009).
A vivncia da identidade de gnero:
[...] estruturante da trajetria pessoal e constitui-se na complexa combinao de muitos
elementos de cunho subjetivo e da relao com o outro. Isso ocorre desde o nascimento a
partir da sexuao e da erotizao do corpo. Inclui, portanto, fatores de natureza bastante
distintas: do aprendizado, da descoberta e da inveno (SAYO, 1997, p. 113 -114).
De tal modo que temos que ultrapassar as fronteiras do binarismo de gnero macho/fmea,
masculino/feminino, ditos indivduos Trans, ou aqueles que sentem pertencer ao gnero oposto
ao seu, ou a ambos ou at mesmo a nenhum dos dois sexos masculino e feminino, como as
pessoas Travestis, Transexuais e Transgneros, que se identificam como sendo do sexo oposto
em uma base temporria ou permanente e que convivem harmoniosamente ou conflituosamente
com o sexo biolgico dado com o nascimento (GATTI, 2003; VILA, GROSSI, 2010;
SCHULMAN, 2013).
Assim, h pessoas que nasceram com rgo sexual masculino pnis e se sentem
femininas, ou nasceram com rgo sexual feminino vulva, e percebem-se como gnero
masculino, como exemplo as mulheres travestis, os homens travestis, as mulheres transexuais e
os transhomens/transexuais masculinos24 (BRASIL, 2009). De uma forma sintetizada, porm no
24
Para vila, Grossi (2010, p. 01) a transexualidade masculina a escolha de sujeitos designados biologicamente
como mulheres, mas que buscam se identificar, atravs da nominao, vestimenta e transformaes corporais, como
pertencentes ao gnero masculino e o inverso se aplica para as mulheres transexuais que nasceram biologicamente
104
25
como homens, porm, identificam-se como pertencentes ao gnero feminino e manifestam tal preleo atravs de
modificaes corporais assumindo caracteres do gnero feminino.
Podemos denominar como transgenitalizao, readequao de sexo ou redesignao sexual a cirurgia de
transformao plstico-reconstrutiva da genitlia externa e interna com propsitos teraputicos de adequar a
genitlia ao sexo psquico. Neste caso, o processo de readequao voltado para as cirurgias de
neocolpovulvoplastia (cirurgia de redesignao do sexo masculino para o feminino) e neofaloplastia (cirurgia de
redesignao do sexo feminino para o masculino) (BERGESCH, CHEMIN, 2009).
105
26
Braga (2009; 2010) define como comunidade escolar aquela composta pelos/as pais/mes, professores/as, direo,
equipe pedaggica, administrativa e funcionrios/as.
106
Adotamos a expresso LGBTQIAfobia com a inteno de sublinhar que a intransigncia social em relao
homossexualidade masculina (ideia implcita noo de homofobia) no da mesma ordem do desrespeito que
atinge lsbicas (oprimidas por uma lesbofobia que, alm de homofbica, machista e sexista), nem do repdio que
sistematicamente atinge travestis e transexuais, cujas existncias ferem de morte os binarismos macho-fmea,
homem-mulher, o que as torna vtimas preferenciais do terrorismo de gnero. Acredita-se que ao adotar um termo
nico, como a LGBTQIAfobia evita-se o uso repetitivo das expresses Lesbofobia, Transfobia, Travestifobia,
Tansgnerofobia, Gayfobia, Bifobia, Bignerofobia, Queerfobia, Intersexofobia, Aliadofobia e Assexofobia, o que
cansaria o/a leitor/a (SCHULMAN, 2013).
107
o campo do discurso e do poder na escola sustentado naquilo que pode ser considerado como
normal e desviante, e colocam em xeque a prpria humanidade e direitos daqueles/as que
ultrapassam as barreiras do binarismo de gnero masculino/feminino (BUTLER, 2010).
Os/as E.T. no passam incgnitos/as pelo incmodo natural que apresentam ao
conformismo generificado. Ao arquitetarem seus corpos, suas maneiras de apresentar-se,
expressar-se e agir na escola, tendem a enfrentar obstculos para se matricular, participar das
atividades pedaggicas, ter suas identidades respeitadas, fazer uso das estruturas escolares (como
os banheiros) e preservar sua integridade fsica (JUNQUEIRA, 2012, p. 78) em um sistematizado
processo de Transfobia pedaggica.
Se, inicialmente, a escola tida como o local da incluso, da convivncia das diferenas, do
acesso livre e democrtico ao conhecimento para os/as E.T., o processo de escolarizao
tambm um mtodo de penitncia e aborto de suas expectativas de vida e conquistas sociais
(SILVA, 2008).
Nesse vis, o sistema escolar no consegue alcanar a unidade almejada, pois h corpos que
escapam ao processo de (re)produo dos gneros inteligveis e imutveis e da dicotomia
hierarquizada; essa transgresso pe em risco toda uma estruturao, por desobedecerem aos
cdigos de gnero e, ao mesmo tempo, revelarem as possibilidades de transformao dessas
mesmas normas. Esse processo de subterfgio carcerrio dos corpos sexuados marcado por
anseios, dores, conflitos e medos (BENTO, 2011).
Em estudo realizado por Bohm (2009), ao entrevistar travestis sobre sua trajetria
acadmica, muitas delas afirmaram no ter dado prosseguimento aos estudos mediante a
problemtica com que se deparavam em seu cotidiano. Elas apontam como impedimentos desde o
simples ato para entrada na escola, como o livre acesso a seus espaos previamente organizados
no para elas e a intransigncia de grande parte da comunidade escolar de sua permanncia
neste local.
O grupo de E.T. apontou como dificuldades cotidianas no processo de escolarizao a
[...] efetivao de matrcula, instituda a partir de aes intransigentes no observadas em
relao s demais matrculas; relatam desde a imposio de regras de vestimenta ou de
impedimentos para o uso do nome social at a submisso a um torturante cotidiano de
piadas, agresses verbais e at mesmo fsicas; denunciam o isolamento e a segregao
impostos pelos colegas e tambm, muitas vezes, pelos professores. Tal contexto produz
uma crescente tenso nas relaes escolares, consistindo desafio, muitas vezes, sequer
identificado como parte do trabalho escolar, no sentido de incluso e permanncia nas
instituies de tais sujeitos (BOHM, 2009, p. 59).
108
Como defende Junqueira (2012, p. 73), notamos facilmente a intensa generificao dos seus
espaos e de suas prticas, e o quanto as fronteiras de gnero so obsessivas e binariamente
demarcadas. Atitudes, comportamentos, maneira de agir, como se vestir, entre outras
manifestaes pessoais do exerccio da identidade de gnero, so alvos de interveno por parte
da comunidade escolar, com o propsito de naturalizar e subverter condutas culturais de como
ser homem ou mulher. Tais prticas so arbitrariamente empregadas com os/as E.T. a servio
do processo de heterormalizao atravs de
[...] uma incluso em que a condio que eles abram mo de suas identidades e se
enquadrem em determinados padres de comportamento; padres estes que no tm nada
a ver com o papel de um aluno se comportar, fazer o dever, estudar, etc. mas com
papis de gnero. Padres de gnero que no constam em nenhuma lei ou norma escolar.
Padres de gnero que so acriticamente reproduzidos pelas escolas e esto baseados to
somente nas concepes pessoais dos educadores. Obrigar um aluno ou aluna a modificar o
seu jeito ntimo de ser, de falar, de se fazer bonito para poder estudar, condicionar um
direito que incondicional. abuso de poder. desrespeito. E sinal de que o educador
ainda no entendeu que a identidade sexual daquele aluno no uma firula ou uma
brincadeira, mas parte constitutiva da sua prpria personalidade (BORTOLINI, 2008a,
s/p).
Outra vertente desse desentendimento entre comunidade escolar est condicionada recusa
em chamar a estudante travesti pelo seu nome social e essa postura ensina e incentiva os/s
demais alunos/as a adotarem atitudes de hostilidade e de desrespeito s diferenas em geral
pode ser destacada como um smbolo de desempoderamento, uma vez que implica desapropriar o
sujeito de seu prprio nome (MOSCHETA, 2011, p. 52).
Junqueira (2012) questiona por que to difcil e perturbador garantir o direito de uma
pessoa ser tratada da forma que ela se sente confortvel e, sobretudo, humana,
independentemente do lugar e da ocasio. uma simples questo de respeito e humanidade. Esse
um dos meios mais eficientes de se traduzir a pedagogia do insulto no currculo em ao em
processos de desumanizao, estigmatizao e excluso e, assim, de reforar ulteriormente os
ditames que a pedagogia do armrio exerce sobre todo o alunado (JUNQUEIRA, 2012, p. 78).
O nome social no um capricho de um/a aluno/a travesti, transexual e transgnero/a
ele representa a valorizao da dignidade humana, o reconhecimento poltico da legitimidade de
sua identidade social, previsto pela Secretaria de Estado da Educao SEED na Orientao
Pedaggica n 001/2010 DEDI/SEED (PARAN, 2010).
O nome social o reconhecimento de pertencimento da identidade de gneros das/dos
travestis e transexuais. Sendo assim, fica institudo o uso do mesmo, a fim de garantir o
acesso e a permanncia dessa populao em todos os estabelecimentos de ensino da Rede
Pblica Estadual do Paran e, principalmente, para possibilitar a garantia do direito
constitucional educao pblica e de qualidade a todas/os as/os cidads/os (PARAN,
2010, p. 01).
109
O/A E.T. dever receber tratamento respeitoso e tico de acordo com sua identidade de
gnero (feminina ou masculina), por todas as pessoas envolvidas no ambiente escolar, desde seu
primeiro contato e em todos os espaos e relaes rotineiras. A comunidade escolar, incluindo
professores/as, pedagogos/as, diretores/as, alunos/as, funcionrios/as, devem garantir um
tratamento solidrio em todos os ambientes e ocasies ao longo do processo de escolarizao
desses sujeitos (PARAN, 2010).
Chamar o/a travesti no feminino ou no masculino uma deciso poltica e acadmica que
veio do movimento social que se organizou mais recentemente, principalmente depois dos
anos 80, porque o que vai se considerar que o gnero como construo social, como
aquilo vivido no cotidiano, como a maneira que o/a travesti, transexual ou transgnero se
apresenta e lida com as pessoas; ao estabelecer suas relaes, que vai ser definidor de
quem a pessoa e no a sua genitlia. Essa definio biolgica, naturalizante menos
relevante, levando em conta que ns enquanto humanos somos seres sociais (PELCIO,
2013, s/p.).
110
E quando o assunto transpe os muros da escola e chega at a famlia, tanto o/a E.T.
quanto a escola passam a sofrer fortes interferncias em seu funcionamento e no cumprimento
dos direitos ao livre acesso. Assim, os/as educadores/as no so os/as nicos/as a verem com
alguma preocupao o aparecimento em cena daquilo que podemos chamar de aliengenas ou
simplesmente, eles/as, isto , esses outros/as que se apresentam em nossas salas de aula.
111
Os pais e as mes tambm tm expressado esse tipo de preocupao, assim como tem feito,
de forma mais geral, a esfera pblica convencional (a opinio pblica). Tem havido
recentemente uma onda crescente de pnico moral, cujo foco o suposto desvio da
juventude contempornea no apenas sua diversidade ou sua diferena, mas, mais
radicalmente, sua alteridade, e a ameaa que isso apresenta para o/a observador/a, para o
olhar do ego, para o olhar do sujeito, para o eu. Esse desvio oficialmente representado e
construdo no como a mudana que to claramente parece ser, mas como uma questo de
deficincia, de incompletude e de inadequao. O tom fortemente apocalptico e a
mudana concebida como patologia (GREEN, BIGUM, 1995, p. 212).
Num cotidiano escolar como esse, to hostil, no nos surpreende que alguns/mas
educadores/as se refiram a problemas de desempenho escolar, manifestados em absentesmo,
reprovaes sucessivas, abandono etc. pelo/a E.T. (GIS, SOLIVA, 2011, p. 43).
O que nos espanta que tais afirmativas desconsideram a desmotivao que os/as impelem
diante da recusa da comunidade escolar em entender o gnero como constituinte da identidade
desses sujeitos, a tirania a que so submetidas/os para se adequarem a inmeras regras de
comportamento de gnero, a estigmatizao dessas pessoas caracterizadas como desviantes e,
em alguns casos, anormais, numa sociedade em que prevalece o binarismo e a
heteronormatividade, destituindo dessas pessoas as possibilidades de viverem suas identidades da
maneira como lhes bastar. Tudo isso contribui certamente para a cristalizao de um sentimento
nesses/as alunos/as de que no deveriam estar ali, pois so um incmodo permanente e que a
nica forma de superar todos esses obstculos sair da escola. Aqui nos vemos frente ao
complexo conceito de formao de identidade e subjetivao das diferenas, que podem ser
formulados a partir de diferentes perspectivas. Aproximando a teoria dos Estudos Culturais,
compreendemos que os/as E.T. possuem identidades plurais e que a intolerncia as suas
diferenas podem lev-los/as a distintas direes e nem sempre os caminhos que lhes so
apontados so os da continuidade do processo de escolarizao (LOURO, 1997; HALL, 2007;
SILVA, 2007; BORTOLINI, 2008a).
Considerados/as como as principais vtimas do processo de evaso escolar, eles/as
dificilmente conseguem concluir seus estudos, sendo foradas(os) a abandonar a escola, j que,
diferentemente de adolescentes gays e lsbicas, tm mais dificuldade em esconder sua diferena,
tornando-se as vtimas mais visveis dessa violncia escolar (DINIS, 2011, p. 43).
No pretendemos com isso apontar a evaso sob um manto de invisibilidade, uma vez que o
que chamamos at aqui de evaso compulsria traduzido pelo desejo de eliminar e excluir
aqueles que contaminam o espao escolar. H um processo de expulso, e no de evaso
(BENTO, 2011, p. 555) ocasionado pela rejeio cotidiana ao modo de se vestir, s formas de agir
e se portar, ao descumprimento de preceitos essenciais, como o uso do nome social e o livre
trnsito entre os espaos que compem a escola e isso inclui os demais estudantes LGBTQIA
(JUNQUEIRA, 2009b).
112
Para no finalizar
A escola, ao desconsiderar os graves efeitos de subjetivao produzidos pelas suas
estratgias de invisibilidade e de discursos literrios, religiosos, ticos, biolgicos, mdicos e
jurdicos, que (re)produzem identidades e diferenas, quando faz referncia identidade de
gnero, torna utpica a possibilidade de atuao da escola como coadjuvante na promoo da
cultura do respeito ao/a aluno/a LGBTQIA, colocando-o/a em situaes vexatrias de
vulnerabilidade, obrigando-o/a a evadirem-se da escola, por no terem seus direitos bsicos
respeitados, sujeitando-o/a informalidade ou situaes degradantes de sobrevida, quando no
conseguem colocao no mercado de trabalho pela desqualificao profissional, aliada ao
preconceito e discriminao.
A situao tende a se agravar quando se trata de Estudantes Trans. Esses/as no passam
imunes ao processo de generificao ao arquitetarem seus corpos de acordo com a sua identidade
de gnero e so vtimas constantes do processo colonizador de heteronormatizao compulsria,
atravs de um conjunto de estratgias sistematizadas e que se manifestam atravs da Transfobia
pedaggica.
A necessidade da adoo de atitudes positivas de enfrentamento Transfobia e demais
fobias direcionadas s mltiplas sexualidades, atravs do estabelecimento escolar, prescinde da
regulao intermediria entre o conjunto de signos, valores, condutas, cdigos morais e ticos da
comunidade escolar e os preceitos que regem a comportamento do/a indivduo LGBTQIA, que
podem ser temporalmente alargados e mltiplos.
113
Defendemos aqui a ideia de que a gnese que mantm o equilbrio nessa relao o respeito.
No pretendemos com esse discurso negar a (co)existncia da(s) diferena(s), mas o direito de as
pessoas serem diferentes e que essa diferena possa ser vista como algo que caracteriza a espcie
homo sapiens no simplesmente como algo a ser tolerado, uma vez que essa espcie de
benevolncia atribui aos sujeitos, com variveis graus de preconceitos, uma dose de afabilidade,
pela compaixo que caridosamente destinam a pessoa LGBTQIA, ao permitir a sua existncia
margem bvio , sem evidenciar a relao de poder que sustenta essa atitude.
O que no podemos esquecer de que esses atos de negativao se assemelham s distintas
navalhas usadas no assassinato de milhares de pessoas LGBTQIA no Brasil, o que pode fazer de
ns educadores/as, profissionais diplomados/as e especializados/as empunhar distintas armas
contra pessoas Lsbicas, Gays, Bissexuais, Bigneros, Travestis, Transexuais, Transgneros,
Queer, Questionadores, Intersexos, Indecisos, Assexuados e Aliados.
Com o intuito de transpor as barreiras da LGBTQIAfobia e evitar tal genocdio, precisamos
ter a conscincia da multiplicidade de sexualidades existentes e que cada sujeito tem a sua forma
de existir no mundo atravs da sua sexualidade e/ou erotismo e, para isso, carecemos pensar
cotidianamente em estratgias educacionais e polticas pblicas de combate e enfrentamento s
diversas formas de assdio e opresso a que so submetidos/as os/as essas pessoas na sociedade
brasileira e, nesse embate, a escola tem papel de destaque no reconhecimento e valorao dos
direitos.
Nesse sentido, defendemos a efetivao de programas continuados de contestao sobre
temas como LGBTQIAfobia, sexualidades, discriminao, preconceito, identidade de gnero,
violncia de gnero, transexualidade, etc., pautados no apenas na incluso de professores/as, mas
tambm de toda a comunidade escolar, de forma a evitar que o/a aluno LGBTQIA seja vtima da
tirania e expulso compulsria do processo de escolarizao.
Numa parfrase a Foucault (2007), acreditamos que talvez a escola j tenha comeado a dar
seus primeiros passos nesse sentido, talvez estejamos muito longe desse propsito, talvez no
cheguemos nunca a esse objetivo e, s vezes, nos fica a dvida se estamos indo na direo certa.
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CAPTULO 3
CORPO-ARTE, CORPO-ESPORTE,
CORPO-CONSTRUO:
O QUE PODEMOS FAZER COM O CORPO,
NO CORPO, A PARTIR DO CORPO, PELO
CORPO, ENTRE CORPOS...
Introduo
H doze anos, venho pesquisando no Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola (GESE), da
Universidade Federal do Rio Grande - FURG, as seguintes temticas: corpos, gneros e
sexualidades nos espaos educativos, em especial no escolar. Durante esse perodo, algumas
mudanas ocorreram. Fui percebendo na instituio escolar uma reconfigurao acerca do
tratamento conferido aos/s alunos/as que so/eram considerados/as anormais. Passei a
questionar: quem /era o/a aluno/a que incomodava na sala de aula?; quem o/a professor/a
mencionava nos cursos oferecidos pelo GESE como corpo anormal?; que sanes esses/as
alunos/as recebiam?; que procedimentos eram dirigidos aos corpos desses/as alunos/as?
As marcas dos acontecimentos inscrevem-se nos corpos de alunos e alunas, que rompem
com padres, sejam estes de gnero, sexo, raa, gerao, entre outros aspectos, construdos e
aceitos socialmente. Isso faz com que esses sujeitos passem a carregar a marca da anormalidade
em seus corpos. Assim, por meio da linguagem, so (re)inventados e (re)significados no espao
escolar. Para Foucault, os corpos so entendidos como "superfcie de inscrio dos
acontecimentos (enquanto que a linguagem os marca e as ideias os dissolvem), lugar de
dissociao do Eu (que supe a quimera de uma unidade substancial), volume em perptua
pulverizao" (2004, p. 22).
Essas inquietaes instigaram-me a produzir algumas problematizaes, as quais, por meio
da escrita deste texto, no tenho como pretenso a busca de respostas, mas, sim, a mobilizao do
pensamento, pensar o impensado; ou seja, problematizar como a instituio escola, que busca o
tratamento de todos/as com igualdade tem procedido com os/as que fogem das normas e
padres estabelecidos. Para Paula Henning (2009, p. 181):
124
Assim, com o propsito de fazer com que os anormais no escapem a esse poder da norma, a
escola tem se utilizado de discursos dos diferentes campos de saber Psicologia, Medicina,
Psiquiatria, Biologia, Educao, entre outros que estudam os sujeitos para classificar o normal e
o anormal. Esses discursos pem em funcionamento estratgias de regulao que governam
nossas vidas e nossos corpos, determinando nossas posturas e escolhas; tornando-nos sujeitos
neste mundo contemporneo.
Assim, com as provaes que tm emergido nas aes promovidas pelo GESE, busco, neste
texto, discutir como alguns/algumas alunos/as constituem-se como anormais e que estratgias a
instituio escolar utiliza para a normalizao de seus corpos.
125
Para Foucault (2002), antes do sculo XVIII, existiam os estranhos, sobre os quais a
Cincia no debruava seu olhar. Por isso, eles eram banidos da sociedade, como, por exemplo, o
leproso. Com a intitulada sociedade de normalizao, foram desenvolvidos saberes, atrelados s
relaes de poder, que buscam conhecer, desbravar o outro, para enquadr-lo na norma. Assim,
mesmo o denominado anormal (e no mais estranho, pois j o conhecemos e o classificamos com
os discursos cientficos) est sob o abrigo da norma. Este somente chamado de anormal porque
estabelecemos uma norma que o analisa e o classifica como algum que escapa aos padres. Para
auxiliar nessa empreitada, as instituies de sequestro, como a escola, buscam sempre normalizlo, levando-o o mais prximo possvel do que chamamos de normal.
Com a passagem da sociedade de soberania para esta, intitulada por Foucault de
normalizao, verificamos a mudana de um discurso de direito para um discurso da regra, da
disciplina, da norma. Se antes, na sociedade de soberania, as penalidades aplicavam-se ao corpo
por meio de um sistema de coao, interdio e obrigao; agora, na sociedade da normalizao, a
preocupao no mais com o sofrimento do corpo, mas, sim, com uma economia dos direitos.
Com esse novo aparato tecnolgico, as penas passaram a dirigir-se no mais ao corpo para
produzir bens e riquezas, mas ao corpo para govern-lo.
Para Marcio Fonseca (2013),
a normalizao disciplinar demarca espaos a serem ocupados, controla o tempo em que os
indivduos realizam suas atividades, estabelece sequncias e ordenaes dessas atividades
em funo de objetivos precisos, conduzindo ao adestramento e ao controle permanentes.
Como resultado dessa sequncia de procedimentos, torna-se possvel uma separao
objetiva entre a atitude, o comportamento, o indivduo normais e a atitude, o
comportamento, o indivduo anormais. A referncia para essa distino entre o normal e
126
Essa preocupao versa sobre como esse sujeito poderia vir a se tornar. Para isso, institui-se
um conjunto de medidas que visam corrigir o indivduo, exercendo sobre ele uma srie de
diagnsticos e padres a serem seguidos e estratgias para normalizar suas aes. Evidenciando,
assim, como este deveria ser, comportar-se e atuar no mundo em que vive; no caso deste estudo,
na instituio escolar. Para Foucault (2002, p. 62),
a norma no se define absolutamente como uma lei natural, mas pelo papel de exigncia e
de coero que ela capaz de exercer em relao aos domnios que se aplica. Por
conseguinte, a norma portadora de uma pretenso ao poder. A norma no
simplesmente um princpio, [...] um elemento a partir do qual certo exerccio do poder
se acha fundado e legitimado. [...] A norma no tem por funo excluir, rejeitar. Ao
contrrio, ela est ligada a uma tcnica positiva de interveno e de transformao, a uma
espcie de poder normativo.
Para ajustar os indivduos a essa poltica de poder, necessria uma vigilncia permanente
do comportamento dos sujeitos e a produo de tcnicas de adestramento que procurem
disciplinar e tornar os corpos dos sujeitos dceis e teis. Para tanto, os corpos so
constantemente submetidos a um controle, especialmente pela interferncia nos modos de
regulao do tempo e do espao. Trata-se de um controle permanente sobre o corpo do indivduo,
que deve ser submetido a uma atividade constante. Quanto mais obediente, mais til.
Ao pensar na histria de producao de saberes sobre os corpos, Veiga-Neto e Corcini (2007)
destacam que, para Michel Foucault, as foras, as quais ele nomeou de poder, atuam sobre o que
os sujeitos tem de mais concreto e material; ou seja, seus corpos. Se foi possivel constituir um
saber sobre o corpo, foi atraves de um conjunto de disciplinas militares e escolares. E a partir de
um poder sobre o corpo que foi possivel um saber fisiolgico, orgnico (FOUCAULT, 2007, p.
148-149).
Com a produo dessa sociedade disciplinar, a preocupao est no controle; ou seja, em
como se pode ter domnio sobre o corpo dos outros, no simplesmente para que faam o que se
quer, mas para que operem como se quer, com as tcnicas, segundo a rapidez e a eficcia que se
determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dceis.
(FOUCAULT, 2009, p. 133). Segundo o autor, o indivduo uma fabricao dessa tecnologia que
se denomina disciplina. Essa articula, em seu bojo, o discurso da regra, o discurso da norma e
definir o cdigo da normalizao. Para Foucault (2009, p. 164), aparece, atravs das disciplinas,
o poder da Norma.
Regularizam-se as aes e os desempenhos do indivduo, direcionando-o, por meio de
diferentes estratgias, a seguir o princpio de uma regra, comparando-o com os demais. Assim,
127
128
129
28
29
A maior parte das narrativas apresentadas nesse texto de professoras dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental,
com a exceo de uma professora da Educao Infantil e uma dos Anos Finais. Assim, chamo a ateno para a
presena exclusiva de mulheres, sugerindo que o gnero da docncia nos Anos Iniciais predominantemente
feminino, talvez porque as atividades escolares desses anos tm como alvo as crianas.
Os cursos so: Gnero e Diversidade na Escola, nas modalidades extenso e aperfeioamento.
130
Nas narrativas apresentadas, possvel verificar, num primeiro momento, que os meninos
que fogem aos atributos considerados como masculinos sofrem uma srie de sanes e uma
vigilncia permanente, produzindo-se, assim, um entrelaamento entre as identidades de gnero e
as sexuais. Evidencia-se esse entrelaamento nas narrativas apresentadas, em que os meninos que
apresentam comportamento e atitudes, constitudos como do gnero feminino, tais como ser
carinhoso, gostar de abraos e carinhos, apresentar alguns trejeitos ditos femininos, so vistos
como homossexuais.
A identidade entendida como normal a heterossexual. Em relao a esta, os meninos
narrados so ditos como homossexuais; e, ento, identificados como anormais. Nas narrativas das
professoras, esses alunos que possuem comportamentos que escapam ao que se espera do gnero
131
categoria
desviante
bichinha
afeminado
para
enquadrar
os
alunos
no
comportamento/atitude esperado conforme o seu sexo. Para Silva (2000, p. 4), a fora da
identidade normal tal que ela nem sequer vista como uma identidade, mas simplesmente como
a identidade. A norma, nesse sistema comparativo, possibilita abordar os desvios e determinar o
que normal (heterossexualidade) e o que anormal (homossexualidade).
Essas narrativas mostram como se entrecruzaram os olhares e as denncias, para modificar
e reencaminhar os alunos/as sexualidade anormal, por meio de pequenas tcnicas de coero
das condutas, colocando sob suspeita e vigilncia a identidade sexual.
As meninas, nas narrativas dos/as profissionais da educao, tambm foram alvo de
diversos mecanismos disciplinares, com o intuito de traz-las para a norma, para assegurar que os
atributos entendidos como femininos sejam mantidos.
Na minha escola, esse ano se matricularam duas irms, uma bem feminina, a outra bem
masculina; de cabelo curto, sem brinco, parecia um menino. A diretora da escola achou
muito estranho, e na entrevista com a me, ficou indagando vrias coisas e descobriu que a
me havia perdido um menino, e chegou concluso de que era por isso que a menina era
masculinizada. Essa menina fez amizade com outra menina, que tambm parecia um
menino, at cortou o cabelo dela bem curtinho. Para meu espanto, a professora dessas
meninas resolveu me contar que estava fazendo reforo positivo, dava de presente para as
meninas anis, falava que as coisas de meninos eram muito feias, que elas ficariam lindas
de cabelo comprido, at prometeu de presente uma boneca. Ela ainda comentou que fica
pensando se essas meninas so lsbicas? (Relato P6 Anos Iniciais)
Eu tenho uma aluna de 4 anos que acha que menino, ela ficou me questionando por que
no dia do futebol eu deixo as meninas jogarem, e no dia que tem bal eu no deixo os
meninos fazerem? Ela tambm disse que odeia coisas de princesas, cala legging, usar
brinco, ela s usa brinco quando vai nos aniversrios, que uma combinao com a me,
vestido nem pensar. J falou que o nome dela era Joo e nas brincadeiras ela gosta de ser
motorista, pai, jogador de futebol e outras coisas que me deixam apavorada. Eu no sei o
que fazer com essa menina, fico dizendo para ela brincar com as meninas, elogio quando
ela vem para aula com uma roupa rosa, tento algumas coisas para ver se ela melhora e para
de dizer que menino. Meu medo que se a gente deixa a coisa continuar assim ela se
transforme numa machorra, numa lsbica. (Relato P7 Educao Infantil)
Nessas experincias narradas, foi possvel ver operando algumas estratgias utilizadas pelas
professoras numa tentativa de produzir determinados tipos de sujeitos, ao buscarem inscrever nos
corpos dessas meninas determinados atributos sociais femininos, como: cabelos longos,
brinquedos e brincadeiras (bonecas, futebol, bal), gestos delicados, roupas (os vestidos e leggins),
os adereos (brincos e anis). Nas narrativas, torna-se visvel o funcionamento de diversos
132
As duas prximas narrativas so sobre uma aluna travesti e uma aluna transexual,
ambas assim intituladas por suas professoras quando narraram suas histrias nos cursos
oferecidos pelo GESE. Essas alunas, alm de romperem com a identidade dita normal,
provocaram uma discusso sobre as novas identidades nesse espao, j que, at recentemente,
esses sujeitos no estavam presentes nessa instituio. A sua entrada no espao escolar
desestabilizou a ordem social, desorganizou as estruturas da escola e borrou as fronteiras entre
homem e mulher. Assim, as certezas tornam-se interrogveis; e as posies de sujeitos, mltiplas.
Eu tinha um aluno travesti que ficava quietinho no canto e no incomodava, mas, neste
ano, tenho outro, que no para quieto. Fica desfilando pela sala de aula com a calcinha
aparecendo. Falei com a diretora da escola, pedindo que tomasse alguma providncia, pois
a situao estava incontrolvel. A diretora chamou o estudante e disse que se ele quisesse
permanecer na escola teria que se comportar, parar de se exibir e esconder a calcinha.
(Relato P8 Anos Finais)
As aulas comearam. Nessa tarde, recebi somente 15 alunos, faltava o primeiro da
chamada, um menino. J estvamos com mais de uma semana de aula, quando ele apareceu
na escola. Chegou acompanhado de sua me, entraram e foram direto secretaria, onde ela
anunciou para a secretria e para a coordenadora pedaggica que seu filho se veste como
menina e assim gosta de ser reconhecido. Veio escola para estudar, mas se algum
comeasse a falar algo, trat-lo com deboche ou violncia (fsica ou verbal), ela iria
processar a escola, professora, funcionrios e at mesmo pais dos alunos. [...] Surgiu um
fato, que no foi na sala de aula, e sim no recreio, local observado pela direo, mas como
foi com o gay do 4 ano B (como se referem ao garoto), quem tem que resolver a
professora dele. O que refora ainda mais a ideia de que a escola tenta se eximir de alguns
assuntos que lhes so pertinentes. [...] Em certa ocasio, outro membro da equipe escolar
queixou-se para a coordenao pedaggica que ASR no poderia ir para a escola com
roupas de menina e que era papel da professora repreend-lo por isso, e no deix-lo vir
assim. (Relato P9 Anos Iniciais)
133
Louro salienta que essas alunas entendidas como anormais transgridem as fronteiras de
gnero e sexualidade, que atravessam ou que, de algum modo, embaralham e confundem os sinais
considerados prprios de cada um desses territrios so marcados como sujeitos diferentes e
desviantes (2004, p. 87) [grifo da autora]. Por essa transgresso, acredito que muito difcil a
escola, enquanto uma instituio que busca a igualdade, saber como proceder com essas alunas e,
assim, tentar se eximir de alguns assuntos ou mesmo se ela quiser permanecer na escola tem que se
comportar.
Essas falas reportam-me pesquisa de doutorado de Deise Longaray, que investigou os
enunciados e as prticas de si que constituem os/as sujeitos/as gays, travestis e transexuais nos
espaos educativos. A autora destaca que
no corpo e por meio deste que se busca o reconhecimento e a afirmao de si. Sendo
assim, os corpos das transexuais e travestis perturbam, incomodam, desestabilizam porque
promovem fissuras na norma estabelecida socialmente. Embora muitos atos sejam
performativos, as inscries corporais de travestis e transexuais so tambm entendidas
como subversivas e essas, portanto, tornam-se indicadores de classificao, hierarquizao,
de ordenao, de normalizao. Entretanto, a partir da criao dessas outras
possibilidades, da construo de outros modos de ser que os sujeitos constituem-se e
(re)inventam-se (2014, p. 171-172).
Assim, as narrativas indicam que os corpos dessas alunas so alvo de controle. Esses
passam a ser capturados por estratgias de normalizao e disciplinamento. sobre o corpo
desses sujeitos que se exerce toda uma maquinaria, com o intuito de transforma-lo, de modificalo, de torna-lo normal.
134
Nas narrativas apresentadas, foi possvel perceber como as palavras das professoras foram
potentes na produo das subjetividades desses/as alunos/as e como essas palavras foram, de
alguma forma, produzindo esses sujeitos, enquandrando-os/as como alunos/as que fogem das
posies de sujeito para eles/as esperadas. De acordo com os marcadores sociais atribudos a cada
gnero, criam-se expectativas a respeito do comportamento considerado apropriado aos homens e
s mulheres. Apresentar outras inscries no corpo para a forma como vivemos a nossa
masculinidade e feminilidade faz com que sejamos enquadrados como anormais.
Louro (2000) aponta para a seguinte realidade: a escola est absolutamente empenhada em
garantir que os seus meninos e meninas se tornem homens e mulheres verdadeiros que
correspondam s formas hegemnicas de masculinidade e feminilidade (p. 49) [grifo da autora].
Nesse sentido, a escola participa da constituio dos sujeitos, fabricando suas identidades de
gnero e suas identidades sexuais, legitimando determinadas identidades e prticas sexuais,
reprimindo e marginalizando outras (LOURO, 2007, p. 31).
As palavras das professoras tambm funcionaram como praticas disciplinares, que atuaram
como estratgias para a homogeneizao da multiplicidade de alunos/as presentes nas escolas;
todos/as iguais, fazendo as mesmas coisas, agindo da mesma maneira. Ou seja, para eles,
necessrio que tenham atitudes de meninos ou meninas esperadas pela sociedade.
Foucault (2003) ressalta que a escola, bem como outras instituicoes fabrica, hospital,
manicmio, asilo, priso , um espaco institudos nao para excluir os sujeitos, mas para
enquadr-los, fixa-los, disciplin-los, control-los em aparelhos de normalizao, objetivando
ligar o indivduo a um processo de producao, de formacao ou de correo dos produtores. Tratase de garantir a producao ou os produtores em funo de uma determinada norma (Ibid., p. 114).
Assim, com base nas normas, a escola busca capturar os sujeitos que escapam zona de
normalizao, buscando corrigi-los, ajust-los, a fim de traz-los para essa zona, que constituda
por uma medida comum, como, por exemplo, a heterossexualidade. Na sociedade da
normalizao, a observao, a anlise e a classificao operam no sentido de incluir e no de
excluir, pois a norma abriga todos/as por um princpio de igualdade e de conformidade.
As situaes narradas pelas professoras levam-me a pensar que, no espao escolar, a
sexualidade integrou e fez funcionar diversas estratgias que ressignificaram, (re)produziram e
regularam as identidades de gnero e sexuais. Entre as estratgias, atuaram as micropenalidades,
os encaminhamentos, as conversas, as transferncias; a marcao do normal em relao ao sexo e
idade; as denncias, por exemplo.
135
136
adolescente com a sexualidade aflorada, a famlia nuclear, entre tantos outros presentes na
sociedade.
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sujeitos/as gays, travestis e transexuais. 2014. Tese (Educao em Cincias: Qumica da Vida e
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137
Este texto fruto de um jeito de ir por a, em dilogo com a epgrafe de Jos Rgio exposta
acima. O por a ao qual me refiro reveste-se de implicao terica e poltica com a anlise das
normas definidoras dos corpos (in)humanos. Deste modo, brinco com a proposio de criar
desumanidades, visto que invoco a dizibilidade dos sujeitos que ocupam as margens sociais e,
para isso, tomo algumas situaes no mbito das prticas corporais e esportivas, especificamente
aquelas relacionadas ao futebol, como exemplos para breves anlises no decorrer deste texto.
Implicada com a produo terica feminista e, em certa medida, desconfiada-atenta com os
modos atravs dos quais o gnero regula, organiza e define o que conta como narrvel, vivvel e
concebvel em relao aos sujeitos, constru (e sigo construindo) uma trajetria por a, um jeito
de cruzar os braos e desfazer-me cotidianamente de campos epistemolgicos que naturalizam
as desigualdades sociais; possibilidade de negar-me a ir por aqui, principalmente considerando a
fora dos discursos biolgicos na definio dos corpos e/ou as pautas de gnero estritamente
identitrias, as quais atuam discursivamente nos jogos de definio de quem est (ou no)
abrigado pelas polticas de Estado.
142
H, aqui, o intento de olhar de mau jeito como caminho para analisar a atuao das
normas de gnero no campo das prticas esportivas e sua contribuio na produo dos corpos
vivveis.
Penso que este o esprito de queering o currculo: passar dos limites, atravessar-se,
desconfiar do que est posto e olhar de mau jeito o que est posto; colocar em situao
embaraosa o que h de estvel naquele corpo de conhecimentos. (LOURO, 2004, p. 64).
143
30
31
32
Do ponto de vista da hiptese produtiva, a cultura no , nunca, inocente (BRITZMAN, 2001, p. 104).
Considerando o carter educativo da cultura e a educao como uma prtica cultural (SILVA, 2007), efetivamente,
no est posta aqui uma concepo de neutralidade do conhecimento e da educao.
O conceito de estratgia tratado como o conjunto dos procedimentos utilizados num confronto para privar o
adversrio dos seus meios de combate e reduzi-lo a renunciar luta, conforme as contribuies de Michel
Foucault (1995, p. 247). Para ele, o conceito de estratgia importante para a compreenso das relaes de poder,
visto que h a possibilidade de que a operao poltica se d atravs do confronto entre adversrios. Dessa forma,
poder e estratgia se consubstanciam numa atrao recproca.
Para Judith Butler, em entrevista a Baukje Prins e Irene Meijer (2002), um compromisso terico queer revisa o
papel crtico tradicional (abrangente e poderoso para enunciar solues com relao s mazelas sociais) para
apont-lo como uma forma de evidenciar, visibilizar e desnaturalizar as formas de conhecimento estabelecidas que,
aparentemente, no esto diretamente associadas aos seus papis de gesto dos sujeitos na modernidade. Essa
tarefa se torna possvel tambm, na posio da autora, atravs do reconhecimento do funcionamento das relaes
de saber e poder atravs dos seus pontos de ruptura.
144
sujeito como uma srie dinmica de relaes sociais33 (BUTLER, 2009b, p.162). Essa posio
me permite empreender anlises sobre os campos de inteligibilidade atravs dos quais os sujeitos
tornam (im)possveis e (ir)reconhecveis34 no mbito dos espaos esportivos. Significa dar conta
de um tipo de movimento investigativo que tenta cerc-lo[s] e examinar as camadas que o[s]
envolvem e o[s] constituem (VEIGA-NETO, 2003, p. 138).
A relao entre normas de gnero e reconhecimento potente para Judith Butler como
modo de viabilidade do sujeito social. Para ela, precisamos analisar as condies sociais que
tornam possvel o reconhecimento do sujeito como uma vida vivvel, desejvel e que importa para
as polticas de Estado, para a vida em sociedade e, com isso, podemos dizer, para os espaos das
prticas corporais e esportivas. Para essa autora, o reconhecimento no uma condio a priori
para qualquer sujeito em espaos democrticos. Butler indica que:
Me da la impresin de que hay normas sexuales y de gnero que de una u otra forma
condicionan qu y quin ser reconocible y qu y quin no; y debemos ser capaces de
tener en cuenta esta diferente localizacin de la reconocibilidad (2009a, p.324).
de
corpos
matizados
performativamente
nas
tramas
de
gnero
e,
33
145
35
146
gnero (masculino e feminino36) tanto como produtos epistemolgicos quanto como base binria37
de uma lgica heteronormativa.
Nessa linha argumentativa (e poltica), a problematizao do sexo e do gnero implica a
exibio das fraturas internas dos movimentos feministas e de minorias sexuais. Com relao aos
primeiros, h um afastamento das vertentes fundacionalistas38 do gnero citadas por Linda
Nicholson (2000), ao tensionar os limites das anlises construcionistas de gnero que se baseiam
no biolgico (sexo). So vertentes39 que podem enfatizar e operar com o sistema sexo-gnero,
aproximando-se de um determinismo biolgico escamoteado por uma contribuio da cultura.
Dessa forma, opto por uma coleo de compromissos intelectuais com as relaes entre
sexo, gnero e desejo sexual (SPARGO, 2006, p. 8) ao assumir uma disposio queer de
investimentos poltico-analticos para a produo deste texto. (Re)Inscrevo este lugar terico na
relao com uma anlise breve dos regimes de inteligibilidade dos corpos que funcionam
regulando as prticas corporais e esportivas, em especial, o futebol profissional brasileiro. Para
isso, assumo o conceito de gnero como um fazer performativo (BUTLER, 1990), como uma srie
de aes normativas constritivas que adjetivam o sujeito em masculino ou feminino de forma
distinta de um tom voluntarioso do prprio sujeito. Essa posio tensiona a dade masculinofeminino, tratando-a como um efeito da distino sexual binria (o sexo), a qual assumida como
base elegvel e inteligvel para se reconhecer o que um corpo que importa, e, ao mesmo tempo,
indica a afirmao de uma coerncia entre sexo-gnero-sexualidade. Dessa forma, trato de um
tom feminista que investe na fissura da coerncia sexo-gnero-sexualidade, bem como disputa o
conceito dessas supostas unidades.
O movimento de pensamento exposto nesta seo a condio terico-poltica a partir da
qual as anlises sobre situaes recentes do futebol profissional expostas na mdia sero
analisadas como pistas do funcionamento das normas de gnero neste campo esportivo
intensamente veiculado no contexto social brasileiro o que veremos na seo a seguir. Destaco,
entretanto, que no h aqui a pretenso de centralidade nas discusses sobre esporte na
36
37
38
39
Apesar dessa posio de questionamento do gnero binrio, em funo dos limites da linguagem, optei pela escrita
desta tese utilizando expresses com os marcadores os/as por exemplo, professores/as.
Um rumo binrio perigoso posto quando a luta poltica (pela emancipao ou pela legitimidade de um dos polos)
se sustenta nas premissas de um regime normativo pelo qual se reivindica a ampliao dos espaos e das
possibilidades de existncia e legitimidade social.
Linda Nicholson nomeia essas vertentes, especificamente, de fundacionalismo biolgico (2000, p. 12).
Essas posies, em certa medida, so oriundas de um feminismo como o citado por Snia Maluf et al. (2011), ao
narrar os debates postos em um encontro feminista latino-americano no qual, na plenria final, grupos de
mulheres trans feministas reivindicam sua participao e reconhecimento como mulheres feministas. Situaes da
arena academia-militncia, agendas coletivas, verses de sujeitos femininos que propem compreender as
dinmicas discursivas pelas quais se produzem sujeitos legtimos, com demandas aceitas dentro do contexto
feminista (p. 672) e permitem indagar o que mesmo a categoria mulher.
147
contemporaneidade, visto que este ensaio pontual em relao aos exemplos do futebol
profissional como mote para pensarmos na atuao da heteronormatividade.
148
masculino. Suas falhas profissionais foram amplamente divulgadas pela imprensa esportiva
brasileira como a no marcao de um pnalti, o qual seria a favor da equipe azul celeste, e ainda o
acionamento de um impedimento indevido para a mesma equipe40. Aps a partida que originou
estas falhas, um dirigente do Cruzeiro Esporte Clube afirmou seu incmodo com o resultado do
jogo e, tambm, se referiu aos erros da arbitragem verbalizando a seguinte afirmao em relao a
rbitra citada: Se ela bonitinha, que v posar na [revista] Playboy. No futebol tem que ser boa
de servio (PICHONELLI, 2014).
Essa enunciao junto s menes pregressas sobre a beleza da rbitra em partidas da
mesma competio41 e, tambm, s diversas imagens veiculadas pela mdia esportiva com foco no
corpo escultural da rbitra (inclusive, em posies que visibilizam o seu quadril e glteos de
modo mais acentuado) evocam certa dizibilidade sobre os corpos (im)possveis, (in)desejveis
e/ou (in)adequados para o campo esportivo profissional do futebol masculino brasileiro. Esta
modalidade em seu emaranhado econmico, poltico e social compe tramas normativas de gnero
que podem evidenciar o funcionamento das relaes de poder das sociedades contemporneas
ocidentais (e da brasileira) na demarcao das vidas viveis.
Retomando o exemplo citado, posiciono a efervescncia de ditos, ou melhor, uma
dizibilidade sobre a mulher profissional no campo do futebol masculino como modo de
visibilidade das normas e dos seus campos discursivos que funcionam conformando os sujeitos
sociais. Normas de gnero apontam para o estreitamento das possibilidades de reconhecimento
deste sujeito mulher no espao profissional da arbitragem, prioritariamente, na sua atuao junto
ao futebol masculino de rendimento.
Refiro-me ao gnero binrio atuante nessa modalidade esportiva. E o faz evocando uma
masculinidade ativa e naturalmente viril como estilos generificados naturais a atletas desta
modalidade esportiva. Na vida social e no campo esportivo, uma masculinidade autorizada a
manifestar os seus instintos sexuais publicamente, os quais podem ser expressos a partir de
manifestaes que posicionam o corpo da mulher como objeto do desejo heterossexual masculino,
seja atravs de manifestaes verbais, seja atravs da veiculao de imagens de corpos femininos a
partir de posies que insinuam o desejo heterossexual, como no exemplo da rbitra citada.
Um dos meios de constituio dessa posio identitria posicionada como referncia no
futebol profissional se d pela contraposio. Ou seja, atravs da narrao generificante
40
41
149
150
Contribuindo com esta discusso, Judith Butler afirma que, se algumas vidas so
consideradas merecedoras de viver, de proteo e de ser choradas, e outras no, ento esta
maneira de diferenciar as vidas no pode ser entendida como um problema de identidade, nem
sequer de sujeito42 (BUTLER, 2009b, p. 163). Falamos de regulao dos corpos nos Estados
nao. Assim, a argumentao posta por Butler (ibidem) ajuda a circunscrever os meios e os
modos do jogo argumentativo que permite problematizar as relaes de saber-poder contingentes
e definidoras do que conta como uma existncia habitvel e possvel no campo das prticas
corporais e esportivas, especificamente o futebol profissional brasileiro.
42
43
If certain lives are deemed worth living, protecting, and grieving and others not, then this way of differentiating
lives cannot be understood as a problem of identity or even of the subject.
Na dissertao de Gustavo Bandeira (2009), o autor discute como h um currculo de masculinidade colocado em
ao nos estdios de futebol a partir da atuao das torcidas de duas equipes do futebol profissional masculino. Nas
suas anlises, o autor argumenta que as "garantias" da heterossexualidade acontecem no movimento repetitivo de
construo do torcedor adversrio como homossexuais, desviantes e/ou inferiores.
151
Juiz, viado! uma enunciao corriqueira. No lugar do juiz, fcil substituir o nome de
qualquer jogador, tcnico e/ou dirigente que desagrade a torcida em sua atuao. Estas atuaes
so rotineiras nos estdios. No se estranha esta atuao (de gnero) dos/das torcedores/as,
inclusive, estas manifestaes so ensinadas, sem qualquer questionamento, aos/s torcedores/as
infantis44.
Essas expresses performativas repete[m] como um eco outras aes anteriores e
acumula[m] a fora da autoridade mediante a repetio ou a citao de um conjunto anterior de
prticas autorizantes45 (BUTLER, 1993, p. 226-227). Isso significa considerar que as
manifestaes das torcidas em estdios de futebol no esto alheias aos movimentos sociais de
constituio do sujeito. Neste espao, recitam-se normas que constringem os corpos nos limites
das ontologias acessveis, dos esquemas de inteligibilidade disponveis
46
(BUTLER, 1993, p.
224).
De forma coextensiva s aes do gnero binrio que reitera, tanto a produo de uma
feminilidade bela e duvidosa profissionalmente no campo da atuao no futebol profissional, como
a compulsoriedade da heterossexualidade, h movimentos (hetero)normativos que demarcam a
abjeo nas manifestaes do contexto analisado. A constrio conformadora de uma
masculinidade viril e, naturalmente, heterossexual funciona, aliando-se rejeio de uma srie de
elementos identificatrios que no devem perfazer o universo, as prticas e, muito menos, uma
suposta essncia do sujeito masculino. Nessa linha de pensamento, a produo do sujeito vivel e
reconhecvel se d tambm pela via da negao, da diminuio, da desqualificao da diferena.
Investe-se repetidamente na produo de uma masculinidade padro atravs da produo
dessa unidade ausente de elementos considerados prprios da feminilidade e/ou das experincias
no heterossexuais no mbito da sexualidade. Uma essencializao do outro utilizada para
rejeio a uma aproximao perigosa com atos e aes postos como prprios do outro-no viril
(BORRILLO, 2010, p. 90) o sujeito feminino e/ou o sujeito homossexual.
Consideraes finais
As cenas tratadas brevemente neste texto evidenciam as tticas da operacionalizao da
heteronormatividade nos espaos destinados para as prticas corporais e esportivas. evidente
44
45
46
Ver reportagem sobre pais que ensinam filhos a xingar jogadores croatas de viadinho em jogo da Copa do Mundo
no Brasil disponvel em http://www.geledes.org.br/na-abertura-da-copa-pais-ensinam-filhos-xingar-croata-deviadinho/. Acesso em 20 de junho de 2014.
that action echoes prior actions, and accumulates the force of authority through the repetition or citation of a
prior, authoritative set of practices.
the limits of available ontologies, available schemes of intelligibility.
152
que a construo das normas de gnero eficaz nesses contextos, especificamente, nos estdios e
espaos do futebol profissional masculino brasileiro.
Esse funcionamento da heteronorma engrenado por discursos que posicionam uma srie
de participantes deste contexto, como jogadores, torcedores/as, rbitros/as, dirigentes, equipe
tcnica das equipes, profissionais da imprensa, etc. Posies que, como analisado, so perpassadas
por concepes binrias de gnero e por hierarquizaes no plano da experincia dos corpos com
a sexualidade. Esta rede discursiva e operacional produz certa essencializao da inadequao
feminina atuao profissional no futebol profissional masculino brasileiro, salvo em algumas
excees como nos cargos de nutricionista e psicloga das equipes profissionais. Ao mesmo
tempo e junto a este movimento de demarcao do outro feminino que deve ser posicionado como
alheio ao masculino referncia do futebol profissional, a recitao de injrias homofbicas
rotineiras nos estdios aparecem para constituir esta zona de abjeo que tanto contribui na
produo daquilo que no se quer no futebol profissional masculino o homossexual, como
permite a recitao e o escape a estas normas como acionado pelas torcidas queer. Estratgias
normativas que, ao fim e ao cabo, naturalizam a heterossexualidade.
Ao mesmo tempo e junto a esse movimento heteronormativo potente nos espaos de prtica
do futebol profissional masculino brasileiro, recentemente, evidencia-se a manifestao
organizada de torcidas que questionam a homofobia, o racismo, a transfobia e o sexismo comuns
aos cnticos e aos modos de exaltar o amor por um clube de futebol. As torcidas queer, como so
enunciadas, ocuparam as redes sociais com expresses como gente que gosta de futebol, mas no
xinga o adversrio com ofensas homofbicas e machistas (SABINE, 2014, p.2).
O Palmeira Livre47, de torcedores/as da Sociedade Esportiva Palmeiras, a torcida
Queerlorado48, de torcedores/as do Esporte Clube Internacional, e/ou a torcida Galo Queer49, de
torcedores/as do Clube Atltico Mineiro so exemplos que movimentam a afirmao pblica do
rechao s desqualificaes e hierarquizaes de gnero, de sexualidade e de raa postas em
movimento nos modos de torcer comuns aos estdios em jogos de futebol profissional no Brasil.
Segundo Judith Butler, a afirmao pblica da homossexualidade realizada pelos
movimentos sociais de direitos LGBTTI (e/ou, podemos dizer, pelas torcidas que destacam a sua
pauta das sexualidades) constitui-se como uma estratgia poltica e epistemolgica importante,
47
48
49
Movimento anti-homo e transfobia, contra o racismo e todo tipo de sexismo (os machismos e misoginias em
especial), destinado torcida que mais canta e vibra. Porque paixo pelo Palmeiras no tem nada a ver com
intolerncia descrio disponvel na pgina da torcida Palmeiras Livre nas redes sociais. Disponvel em
https://www.facebook.com/PalmeirasLivre/info. Acesso em 17 de julho de 2014.
Disponvel em https://www.facebook.com/pages/QUEERlorado/164289153730713?fref=ts . Acesso em 17 de
julho de 2014.
Disponvel em https://www.facebook.com/pages/Galo-Queer/260183954118767?fref=ts. Acesso em 17 de julho
de 2014.
153
pois pe em debate o que se considera como uma realidade e o que se considera uma vida
humana50 (BUTLER, 2004, p. 30).
Certamente, a visibilidade dessas torcidas aparece como uma toro mnima na lgica
heteronormativa que funciona nos espaos de prtica do futebol profissional masculino. Talvez,
este caminho de evidncia das heteronormas, de apropriao das suas prprias manifestaes para
recitao irnica dos seus modos de funcionamento cotidianos no campo das prticas corporais e
esportivas, juntamente com uma visibilidade consequente que mexe com as condies
performativas e normativas para o reconhecimento dos corpos, talvez, nos leve alm.
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50
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155
CAPTULO 4
CORPOS, RESISTNCIAS,
SEXUALIDADES
52
Nesse ponto Butler faz uma nota para assinalar um conjunto de importantes indagaes feministas do campo da
biologia que fazem crticas fundamentais aos modelos biolgico, gentico, cellular, assim como tambm ao prprio
discurso biolgico e cientfico em relao ao corpo, ao sexo, ao gnero e a biologia. Destaco entre as feministas
citadas por Butler Sandra Harding, Evelyn Fox-Keller e Donna Haraway, que radicalizou a crtica, tanto do
modelos biolgicos, como de uma epistemologia do pensamento moderno, em geral. (Butler, 2000, p. 151)
Sobre a histria da dualidade dos sexos veja-se LAQUEUR, 1992.
162
163
164
Depois:
O gnero (feminilidade/masculinidade) no um conceito, nem ideologia, nem performance:
trata-se de uma ecologia poltica. A certeza de ser homem ou mulher uma fico
somatopoltica produzida por um conjunto de tecnologias de domesticao do corpo, por
um conjunto de tcnicas farmacolgicas e audiovisuais que fixam e delimitam nossas
potencialidades somticas, funcionando como filtros que produzem distores
permanentes da realidade que nos rodeia. (2008, p. 89)
Aquilo que se estabeleceu como identidade de gnero e orientao sexual, Preciado chama
de resultados caractersticos dessa tecnologia de gnero, isto , sentir-se, entender-se, saber-se,
identificar-se como homem, mulher, heterossexual ou homossexual, no est para alm de uma
fico somtica e tecnolgica produzidas no interior de um programa operativo oriundo das
tecnologias de produo do gnero.
Com esse conjunto heterognero de definies sobre gnero, sexopoltica e era
farmacopornografia, Preciado estabelece um programa de reflexes que radicaliza a crtica
noo de gnero. A questo colocada no mais sobre definio culturalista do gnero, seus
paradoxos e consequncias polticas. Se Butler realizou a critica ao pressuposto cultural do
gnero, denunciando a sua ineficcia epistemolgica e o risco poltico, Preciado alargou a
linguagem para demonstrar um gnero que dispositivo de fabricao de corpos sexuados e
desejantes. Butler recorreu a definio de um gnero que performativo e Preciado afirmou um
gnero que fico somtica e poltica, e faz funcionar os sistemas normativos e
heteronormativos. Ambas realizaram gestos foucaultianos da crtica como diagnstico, isto , a
dvida das evidncias e a toro que invertem a pergunta da origem abjeo para a continuidade
da normalidade. O gnero performatividade coloca em xeque o sistema heteronormativo e a
farmacopoltica desvenda os mecanismos produtores de certezas sobre os corpos, os gneros e os
desejos.
As (in)evitveis capturas...
Entre os movimentos sociais contemporneos, feminista e LGBT (Lsbicas, Gays,
Bissexuais e Trans*)53, acirraram-se os debates e as reivindicaes promovidos pelos movimentos
53
Embora a sigla LGBT tenha sido produzida no mbito das polticas pautadas nas identidades de gnero e
orientaes sexuais, para esse texto incorporada uma nomenclatura produzida por parte dos movimentos sociais,
165
sociais que tratam das questes de gnero e sexualidade, com nfase no mais no conceito de
minoria social, mas na ideia de diversidade sexual e de gnero.54 As abordagens tericas e
polticas empregadas pela maioria significativa dos grupos sociais organizados em torno da
questo da diversidade sexual indicam que as estratgias tm se estabelecido no campo jurdico da
conquista de direitos. Isto , uma nfase recai sobre a conquista e o reconhecimento de direitos
individuais e dos grupos abarcados por tais movimentos sociais, remetendo, sobretudo, ao campo
do reconhecimento de identidades especficas e dos direitos individuais, isto , o direito de
lsbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis.
A partir da dcada de 1990, os movimentos homossexuais cresceram e se dividiram em
diferentes grupos marcados pelo recorte das identidades sociais e jurdicas, tendo como foco as
demandas especficas de cada grupo ou identidade especfica. A partir desse processo de diviso e
multiplicao dos grupos sociais, comea a ocorrer uma radicalizao das polticas especficas para
as diferentes identidades de gnero e orientaes sexuais no Brasil. Com a criao dos diferentes
grupos sociais representativos de cada identidade singular, as siglas proliferaram e se
transformaram. Por um lado, a multiplicao das siglas e a inverso da ordem de prioridade das
letras representativa das lutas, embates e conquistas no interior dos prprios grupos. Por outro
lado, conforme as siglas se estabelecem, observam-se as especificidades e a consolidao das
alianas no campo social e jurdico com o Estado.55
No contexto dessa nova relao entre o Estado e os movimentos LGBT, esses ltimos so
convocados a exercer o papel de consultores do Governo Federal na criao e consolidao de
polticas pblicas especficas para esse e outros segmentos da populao. Essa aliana entre
Estado e movimentos sociais LGBT comeou a se formar nos anos 2000, com o Governo do
Presidente Lus Incio Lula da Silva, que criou secretarias especiais, com estatuto de ministrio,
tais como a Secretaria Especial de Poltica para as Mulheres SEPM e a Secretaria de Direitos
Humanos SDH alm de implementar, com a ajuda dos movimentos LGBT, o programa Brasil
sem Homofobia.56 Se, por um lado, observa-se um conjunto importante de conquistas sociais
54
55
56
isto , o neologismo trans*. Isso significa um conjunto de subjetividades e prticas sociais que incluem as
experincias transexuais, travestis, trangneros entre outras e marca a ideia de movimento e de trnsito.
importante observar que na ltima dcada o conceito de minoria ou minoria social foi abandonado, tanto nas
produes tericas quanto nas prticas discursivas das polticas pblicas, como tambm nas dinmicas dos grupos
sociais organizados, em nome do conceito de diversidade sexual. Diversidade sexual o tema-conceito utilizado
hoje tanto para a reivindicao de direitos, como para a elaborao de polticas pblicas de igualdade e de combate
violncia contra a populao LGBT.
A sigla inicial, GLTB (Gays, Lsbicas, Transexuais e Bissexuais), tornou-se depois LGBT (Lsbicas, Gays,
Bissexuais e Transexuais), LGBTT (Lsbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis), LGBTTT (Lsbicas,
Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Transgneros) e LGBTTTI (Lsbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais,
Travestis, Transgneros e Intesex). (FACCHINI, 2005)
O programa Brasil sem homofobia foi criado em 2004 pelo Ministrio da Sade, no mbito do Conselho Nacional
de Combate Discriminao, e tambm pela Secretaria de Direitos Humanos, no interior do Programa de combate
violncia e discriminao com GLTB e promoo da cidadania homossexual, em colaborao com a Secretaria de
166
para a populao LGBT, por outro lado, observa-se tambm que essa aliana passou a ser o meio
exclusivo da escuta, do dilogo e do estabelecimento de polticas e aes de combate ao
preconceito e violncia. Mesmo se essas relaes nunca se solidificam por completo, pois sempre
h avanos e recuos na relao do Estado com os movimentos LGBT, observa-se no cenrio
poltico brasileiro a consolidao de polticas LGBT exclusivamente encaminhadas por grupos
sociais organizados em torno das identidades sexuais e de gnero, os quais se concebem como
sujeitos identitrios que reivindicam direitos.
Por certo, inicia-se a uma importantssima dinmica poltico-social em que esses novos
sujeitos de direito e as novas identidades abarcadas por esses movimentos reivindicam direitos
sociais e individuais que lhes foram negados em razo da identidade de gnero e da orientao
sexual. Por outro lado, contudo, atualmente j possvel considerar e antever alguns dos riscos
produzidos por esse processo no que diz respeito possvel normalizao dessas identidades. A
tal risco tambm se acrescenta a perda do potencial crtico, criador e transformador da ordem
social e sexual, que caracterizara a originalidade dos movimentos homossexuais at meados da
dcada de 1980. A partir de uma perspectiva terica de inspirao foucaultiana, faz-se preciso
interrogar a produo das identidades envolvidas nos processos de identificao dos sujeitos,
tomando como referncia a ideia de uma atualizao contempornea dos dispositivos biopolticos
de controle, regulao e veridico presentes nas formas atuais de governanento das diferentes
populaes ou grupos sociais. A partir dessa perspectiva terica foucaultiana, podemos observar
como a produo de novas identidades e novos sujeitos de direitos est associada produo de
novos mecanismos de controle e regulao de corpos, modos de vida, prticas sexuais e sociais.
(CSAR, 2010)
Segundo Foucault, a formao das chamadas identidades sexuais decorre de processos
histricos iniciados no sculo XIX, engendrados no interior daquilo que o autor denominou como
o dispositivo da sexualidade (FOUCAULT 1984). O autor demonstrou que o sexo e as prticas
sexuais se constituram como parte do dispositivo da sexualidade, estabelecido como uma rede de
saberes-poderes atuando sobre os corpos e populaes e produzindo normatizaes e
normalizaes de modos de vida. Assim, o sexo foi delimitado como o ponto de injuno
fundamental entre o corpo e as prticas de controle das populaes no sculo XIX. Nesse
processo de estabelecimento de fronteiras, a sexualidade foi o instrumento de separao que criou
delimitaes entre as prticas sexuais bem educadas e as demais, as quais, por sua vez, ocupariam
lugar indefinido ou bem demarcado para alm das fronteiras da normalizao e da normalidade. O
sexo bem educado ou normatizado, isto , as prticas heterossexuais, monogmicas, consolidadas
Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade SECAD do Ministrio da Educao. (CONSELHO Nacional
de Combate Discriminao, 2004)
167
168
58
Em geral, as conquistas das transexuais ficam praticamente restritas ao procedimento cirrgico de redesignao
vaginal (construo da neo-vagina). O acolhimento governamental desse procedimento e dos processos
teraputicos paralelos foi uma conquista de indiscutvel importncia. Entretanto, no conjunto heterogneo de
transexuais, travestis, transgneros e intersex, nem sempre o procedimento mdico-cirrgico a escolha que
corresponde experincia de corpo, gnero e sexualidade desses indivduos. (SANTOS, 2010)
Marie-Hlne BOURCIER (2007) vm abordando a questo da homossexualidade disciplinada em relao
homoparentalidade e ao direito ao casamento.
169
170
projetos, constituem-se como sujeitos de suas prticas ou recusam, pelo contrrio, as prticas que
lhes so propostas. Eu acredito solidamente na liberdade humana. (FOUCAULT, 1994, p. 693)
Outras reflexes de Foucault em meados dos anos 80 sugerem que suas ltimas pesquisas
sobre a antiguidade greco-romana jamais deixaram de ter em mente suas virtuais implicaes
para o nosso tempo. Assim, respondendo a uma questo sobre os direitos dos gays em outra
entrevista, Foucault chama a ateno para o aspecto criativo, extra-jurdico, do movimento gay,
ao recordar os importantes efeitos liberadores implicados nos movimentos polticos do final dos
anos 60 e incio dos anos 70. Por certo, ele reconhece que tais movimentos contriburam para
assegurar o direito do indivduo de escolher sua sexualidade. No entanto, a despeito daqueles
ganhos jurdicos, Foucault tambm afirma que seria preciso dar um passo adiante no sentido de
estimular a criao de novas formas de vida, de relaes, de amizade, na sociedade, na arte, na
cultura, novas formas que se instaurem atravs de nossas escolhas sexuais, ticas e polticas.
Devemos no somente nos defender, mas tambm nos afirmar, e nos afirmar no somente
enquanto identidade, mas enquanto fora criativa. (FOUCAULT, 1994, p. 736) Para Foucault, a
modificao das possibilidades de vida o que realmente importa na considerao daqueles
movimentos: Mais do que defender que os indivduos tm direitos fundamentais e naturais,
deveramos tentar imaginar e criar um novo direito relacional que permitisse que todos os tipos
possveis de relaes pudessem existir e no fossem impedidas, bloqueadas ou anuladas por
instituies empobrecedoras do ponto de vista das relaes. (FOUCAULT, 1994, p. 310) O
momento de multiplicao e maior visibilizao dos movimentos gays tambm aquele no qual
Foucault ministrou os seus ltimos cursos no Collge de France sobre a esttica da existncia, no
sendo casual, portanto, que no momento em que Foucault refletia sobre a questo da amizade no
mundo antigo, tambm apresentasse as relaes de amizade como possibilidade de resistncia
poltica contempornea, capaz de instaurar novas formas de relao entre as pessoas. Nesse
contexto, Foucault afirma estar interessado em:
(...) uma cultura que inventa modalidades de relaes, modos de vida, tipos de valores,
formas de troca entre indivduos que sejam realmente novas, que no sejam homogneas
nem se sobreponham s formas culturais gerais. Se isso for possvel, a cultura gay no ser
ento simplesmente uma escolha de homossexuais por homossexuais. Isso criar relaes
que podem ser, at certo ponto, transpostas para os heterossexuais. (FOUCAULT, 1994,
p. 311)
171
percepo
biolgica,
responsvel
por
delimitar
fronteira
entre
os
sujeitos:
172
teoria queer recusa a incorporao da alteridade no modelo hegemnico da norma sexual e social,
argumentando que essa seria uma ao originria das polticas de tolerncia, que assumem a
existncia do binmio normal/anormal e, portanto, tendem a pacificar e normatizar, na medida
do possvel, a alteridade. Ao contrrio disso, a teoria queer questiona as condies de possibilidade
do conhecimento que produz a norma sexual e social.
No apenas como diagnstico, a teoria queer constitui ela mesma a possiblidade de novos
modos de vida e existncia, chamando a ateno para as experincias de no captura e contraconduta em relao ao corpo, ao desejo e s prticas sexuais e sociais. Todos os movimentos
sociais que abrem mo das identidades sociais e jurdicas em nome das experincias abre caminho
para uma vida queerizada. Cabe lembrar que movimentos como a Marcha das Vadias, o
transfeminismo e as inmeras experincias de escrita e prticas de vida que propem e praticam
uma queerizao da vida, dos corpos, dos desejos e, sobretudo, das experincias, realizam prticas
de liberdade, resistncia e contra-conduta. Queerizar a vida significa [to] take a walk on de wild
side... baby... (Lou Reed)
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173
FERNANDO POCAHY
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UERJ
Sacudido pelo pensamento de Judith Butler (2004a [1997]), interesso-me por pensar
Como as normas que governam os discursos chegam a habitar o corpo? Como as normas que
produzem e regulam o sujeito do discurso habitam e modelam a vida corporal do sujeito?
(p. 222). Mas no somente isso. Interesso-me em pensar como essas disputas se oferecem a
178
Assim, o que tenho alcanado com esse tipo de cartografia so experincias particulares que
no servem para revelar muita coisa sobre os sujeitos que delas participam. E tampouco se
pretendem a tal. Elas apenas nos ajudam a compreender a complexidade da vida na esteira dos
discursos que nos fazem dizer o que somos e nos fazem viver o que vivemos. As interpelaes
performativas que ora se assentam sobre a injria e a desqualificao no caso do envelhecimento60
e (homos)sexualidade, meu principal objeto de estudo nos ltimos 10 anos, posso dizer,
deslizaram no interior das cenas que pude acompanhar, indicando pistas sobre a artificialidade ou
a ficcionalidade do corpo. Nesse sentido, tornou-se mais compreensvel a perspectiva de Judith
Butler sobre performatividade como algo que no simplesmente uma prtica ritual: um dos
59
60
Estas inquietaes iniciaram no mestrado em Psicologia Social e Institucional da UFRGS, onde produzi um
pesquisa-interveno com jovens vinculados ao nuances grupo pela livre expresso sexual. Na sequncia, sob a
orientao da professora Guacira Lopes Louro no doutorado em Educao na UFRGS me arrisquei em
problematizaes sobre o envelhecimento a partir de experimentaes orgisticas. Na formao em ps-doutorado
junto ao PPG em Antropologia Social da UFSC produzi novamente uma pesquisa sobre a interseccionalida
juventudes e sexualidade. Atualmente, conduzo a pesquisa Gnero e (Homo)Sexualidade na UERJ,
problematizando formas de regulao e resistncia na experincia do envelhecimento, sexualidade e o viver com
HIV/AIDS. Essa pesquisa conta com o financiamento do CNPq. Alm disso, venho orientando junto ao PPG em
Psicologia da Universidade de Fortaleza dois estudos sobre envelhecimento: o trabalho de Francisco Francinete
Leite Jr sobre envelhecimento e travestilidade e o trabalho de Karoline Sampaio, sobre heterossexualidade e
envelhecimento em bailes de ficha.
Segundo Le Breton (2008 [1990], p. 145), no rastro dos jogos modernos, construiu-se a velhice como grau zero de
seduo: a pessoa idosa porta seu corpo maneira de um estigma, onde a ressonncia do estigma mais ou menos
presente segundo a classe social qual a pessoa pertence e segundo a qualidade da rede familiar. Compreendo a
idade como uma categoria poltica, histrica e contingente, assim como o so o gnero, a classe social, a sexualidade
ou a raa. Mas no de forma isolada, pois o marcador etrio e geracional dificilmente pode ser pensado sem essas
interseces. O que significa dizer que a idade organiza a vida ao conferir status de humanidade em diferentes
formas e condies poltico-culturais no mesmo instante em que gnero e sexualidade se tornam visveis e possveis
nesta trama discursiva (ao fixar as possibilidades para cada idade da vida).
179
rituais maiores pelos quais os sujeitos so formados e reformulados (2004a [1997], p.247). As
prticas sexuais em si mesmas dizem muito pouco ou quase nada sobre os corpos-sujeitos. Elas
dizem, por outra parte, algo sobre como as normas governam os discursos e como esses tomam o
corpo como lugar de poder-saber, relaes de poder que sempre passam pelo corpo
(FOUCAULT, 2001 [1977]).
Eu me volto ao corpo para procurar outras pistas na compreenso de como as hierarquias
que definem a vida e as possibilidades de experimentao da sexualidade so produzidas. Sabemos
que o corpo que importa em nossas sociedades ocidentais contemporneas e o corpo que porta
uma medida inteligvel o corpo de uma superfcie lisa, branqueada, viosa, gil e heterossexual.
Esses so os referentes quase incontestveis para a inteligibilidade e o reconhecimento que
encontramos por meio dos escombros do projeto da Modernidade - na sua ambio de criar a
raa humana.
No creio que haja corpo sem forma, como no h corpo sem norma. Essa superfcie que
denominamos corpo ser sempre apreendida pela linguagem - que no nunca organizada fora de
uma relao de poder/saber e no est nunca fora do jogo de disputas de significados. Segundo
Judith Butler (2004a [1997]), ns fazemos coisas com a linguagem, ns produzimos efeitos com
a linguagem, mas a linguagem tambm a coisa que ns fazemos. A linguagem o nome de nossa
atividade: s vezes, o que ns fazemos (o nome da ao que ns realizamos) e o que ns efetuamos,
o ato e suas consequncias (p.31)
Mas que tipo de possibilidades poderiam levar essas experincias ditas dissidentes na aposta
de um corpo como resistncia e como uma heterotopia? Que tipo de consequncias/efeitos podem
ser abrangidas/os desde esses atos-formas corporais, em performances cingidas pelo gnero,
sexualidade e idade/forma-aparncia corporal? Sigo urdido pelo pensamento de Judith Butler
(2005a, b, c, d): essas cenas dissidentes, esses corpos dissidentes podem oferecer condies de
ressignificao dos discursos porque agenciam o desgoverno de uma norma. No instante da
insurgncia de novos atos de linguagem (fala, estilizao, gestualidade, forma), oferecendo-nos
desde a instaurao de novos contextos para que esses corpos habitem condies de possibilidade
de ressignificao do corpo, da linguagem e confronto s hierarquias estticas, podemos pensar
que falar/fazer/produzir algo em termos de linguagem um ato corporal em si (2004a [1997],
p.30).
Como afirma Judith Butler (op.cit.), todo ato discursivo sempre um ato corporal. E um
corpo forcludo em si a materialidade de efeitos de discursos que o tornam esse fora, no
mesmo instante em que esse fora o faz ser o que uma nova morada discursiva. No corpo,
habitam discursos que produzem nossas formas de ser e de perceber o mundo, no mesmo instante
180
181
Um bar para homens idosos e rapazes ditos apolneos, uma sauna para maduros, algo ali
dentro desses espaos j desarranja o que esperado para um corpo de homem e, sobretudo, para
um corpo que portava as marcas da velhice. A primeira transgresso j estaria no ato de estar l
e de ocupar um espao no convencional para um idoso como o clube esportivo, a universidade
para a terceira idade, o baile, o sindicato, o jogo de xadrez na praa. De outra parte, a ruptura com
o bloqueio discursivo da heterossexualidade compulsria tambm outra evidncia de uma
contestao. Mas, de toda sorte, esses no seriam espaos radicalmente inesperados para o idoso
do ponto de vista do exerccio da sexualidade. Afinal, se a sexualidade para o idoso tributria,
em nossos dias, de um paradigma de sade, em que viver bem viver fazendo sexo, esses sujeitos
estariam de certa forma na vanguarda da sujeio biopoltica. Mas a pergunta que fica : com
quem, como e em que condies se pode pensar o exerccio pleno da sexualidade para os idosos?
Com quem podem/devem transar os velhos?
O corpo que vem me permitindo certas experimentaes epistemolgicas um corpo
corajoso. Coragem que sempre fsica, j dizia Foucault ("il n'est de courage que physique" ). Um
tipo de coragem que pode ser bem representada diante da fora que a expresso encontra,
bastante utilizada no campo e, sobretudo, nos locais mais marcadamente LGBT: Coragem! cuja
sonoridade da pronncia em alguns desses contextos se faz com um acento e prolongamento da
palavra sobre a segunda slaba e sem pronunciar a ltima consoante, para significar um certo
desprezo diante de alguma atitude que algum toma ao confrontar um institudo. Como a fora
de um idoso em habitar lugares que no deveria mais habitar, isto , quando algum fora dos
padres ousa recusar a interpelao e enfrentar as moralidades que determinam hierarquias,
vontades, desejos, percepes de si. O confronto de Cndido, um dos meus interlocutores e
amigos de bar, pareceu-me evidenciar essa disputa pela homoerotiCidade:
(...) o que esse velhinho quer? E quando eu ouo isso, viro e respondo: o mesmo que tu
[fixa o olhar espantado, movimenta a cabea levemente inclinada para trs e, serenamente,
responde interpelao:]. A diferena que tu tem cabelo preto e eu branco [abre um sorriso,
olhos brilhantes] (Cndido).
Meu corpo o contrrio de uma utopia (...) ele o lugar absoluto, o pequeno fragmento de
espao com o qual em um sentido estrito eu fao corpo. Essa frase de Michel Foucault (2009,
p.10), presente em uma radioconferncia de 1966, esfola a pele e faz arder o corpo. O texto Le
corps utopique inquieta. Uma utopia um lugar fora de todos os lugares. uma promessa, um
passo que no encontra corpo para alm do desejo. onde podemos pensar em um corpo
incorporal. Essa a aposta de Foucault diante do corpo utpico. Ele afirma: a utopia um lugar
fora de todos os lugares (...) um lugar onde eu teria um corpo sem corpo, um corpo que seria
belo, lmpido, transparente, luminoso, veloz, colossal em sua potncia, infinito em sua durao,
182
183
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______. Le corps utopique. Les htrotopies. [1966], [1967]. Paris: Nouvelles ditions lignes,
2009.
LE BRETON, David. Anthropologie du corps et modernit. [1990]. Paris: PUF, 2008.
E AGORA, BERNARDO?!
CORPOS INFANTIS, SEXUALIDADES E
VIOLNCIA CONTRA CRIANAS
Agora no, Bernardo! um livro para a infncia escrito por David McKee (2010) que traz
como protagonista o menino Bernardo que, insistentemente, mas, sem xito, tenta estabelecer um
dilogo com seu pai e sua me, pedindo ateno e cuidado. Acaba sendo devorado por um monstro
no jardim de sua casa.
Ao parafrasear o ttulo do livro e com ele fazer trocadilhos (alm de ironiz-lo!), busco
evidenciar os propsitos do texto, ou seja, discutir sobre a temtica da violncia contra crianas,
articulada com relaes entre corpos e sexualidades na infncia. Pretendo, sobretudo, questionar a
possibilidade de as prprias crianas encontrarem estratgias e condies de se autocuidar e se
autoproteger, com base nas discusses da pesquisa realizada com elas nos ltimos anos.
Outro fato instigante, e no menos proposital da escolha do livro e do jogo de palavras
escolhidas para o ttulo, a relao estreita entre a histria narrada nesse livro com a terrvel
violncia sofrida na vida real pelo menino Bernardo61, que lhe ocasionou a trgica e prematura
morte na infncia. O nome do personagem o mesmo do menino que teve a vida ceifada pela
violncia fatal, vtima do descaso de adultos e instituies que poderiam proteg-lo. Sabemos que
muitos Bernardos e muitas Isabelas62 so vtimas dos mais diversos tipos de violncia no Brasil.
Uma significativa parcela de crianas vulnerabilizada e vitimada por muitas pessoas adultas,
tendo, em muitos casos, os corpos usados como objeto de desejo de outrem e, em casos extremos,
vindo a bito. possvel pensar, antes da violncia fatal, nessas e em muitas outras crianas, em
estratgias de resistncia de parte das prprias crianas vtimas e no vtimas? O que cabe a elas
61
62
Bernardo Uglione Boldrini, 11 anos, foi encontrado morto e enterrado dia 14 de abril de 2014 no municpio de Frederico
Westphalen, no norte do estado do Rio Grande do Sul. Leandro Boldrini (pai), Graciele Ugulini (madrasta) e Edelvania
Wirganovicz (amiga de Graciele e sua cmplice) foram denunciados/as por homicdio qualificado. O irmo de Edelvania
Evandro Wirganovicz acusado de ocultao de cadver. Os quatro esto presos na data da escrita deste texto.
Retirado do site: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/caso-bernardo-boldrini/noticia/2014/06/policia-indiciaquarto-suspeito-por-homicidio-no-caso-bernardo.html Acesso em: 24 jun. 2014.
O caso Isabella Nardoni refere-se morte da menina brasileira Isabella de Oliveira Nardoni, de cinco anos de idade,
arremessada do sexto andar do Edifcio London no distrito da Vila Guilherme, em So Paulo, na noite de 29 de
maro de 2008. O caso teve grande repercusso no Brasil. Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatob,
respectivamente pai e madrasta da criana, foram condenados/as por homicdio doloso triplamente qualificado; no
momento, cumprem pena em regime fechado pelo crime. Dados retirados do site: http://g1.globo.com/saopaulo/caso-isabella/ Acesso em: 24 jun. 2014.
188
fazer nessas situaes? Algum tipo de conduta? Estratgia de fuga? Onde, como, com quem
podem buscar ajuda? Como podemos pensar estratgias de resistncia com/para as crianas?
possvel pensar no conceito de resistncia nesses casos? Na situao ocorrida com o menino
Bernardo, as pessoas adultas estavam em condies de ouvi-lo e proteg-lo? comum as pessoas
acreditarem nas crianas que buscam ajuda? As crianas encontram espao para esse tipo de
discusso na famlia e na escola? Encontram artefatos culturais, como livros, filmes/vdeos, sites,
entre outros, que propiciem discutir sobre formas de se autocuidar e se autoproteger? Enfim... mil
perguntas, mltiplas questes. Em vez de silenciamento e indignao diante desses casos, e de
tantos outros que no ganham notoriedade na mdia, nessas situaes, nas quais tambm
morremos um pouco e aos poucos, podemos sair da paralisia habitual e, pelo menos, pensar a
respeito, tentar pensar diferentemente diante dessa terrvel problemtica, levar a questo a ser
pensada pelas e com as crianas...
Neste artigo prope-se discutir as questes e temticas apresentadas os corpos infantis, as
sexualidades na infncia e a violncia contra crianas , sem a pretenso de esgot-las, buscando
questionar, refletir, ponderar a partir de fatos e de discusses levantadas em pesquisas63
realizadas para, posteriormente, na ltima parte, apresentar as estratgias de resistncia
produzidas coletivamente com as crianas.
63
No decorrer do texto trago tambm vrias discusses das seguintes pesquisas: XAVIER FILHA, Constantina.
Gnero e sexualidade em livros infantis: anlises e produo de material educativo para/com crianas (2008-2012), apoio
Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq); _____. Representaes de violncia dentro
e fora da escola nas vozes de crianas, (2012, 2013) com apoio do CNPq; _____. Violncias contra crianas e
adolescentes: representaes de educadores/as e alunos/as de escolas municipais de Campo Grande/MS que participaram do
projeto Escola que Protege (2007-2013). E de projetos de extenso: "Produo de Filme de Animao com crianas
2012" e "Produo de Filme de Animao com crianas 2013", ambos com apoio da Pr-Reitoria de Extenso,
Cultura e Assuntos Estudantis da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, com apoio financeiro e pagamento
de bolsa de extenso a acadmicas (Edital Paext). Alm desses projetos, tambm trago a experincia como
professora na formao docente em um projeto de Extenso denominado Escola que Protege (2006-2008), no qual se
discutiu sobre a violncia na escola e fora dela, bem como sobre a experincia como professora na disciplina
optativa no curso de Pedagogia da UFMS, ministrada no ano de 2013, denominada "Violncia contra crianas e
adolescentes e o papel das instituies educativas" (68h/a) e na disciplina obrigatria Educao, sexualidade e gnero
tambm oferecida no mesmo curso.
189
No livro, Bernardo tenta insistentemente estabelecer um dilogo com o seu pai e sua me.
Ele e ela esto o tempo todo ocupados/as, desenvolvendo atividades cotidianas em casa. O
menino tenta alertar sobre um monstro no jardim; no entanto, ningum o ouve, nem lhe d a
ateno devida. Ele devorado pelo monstro. Mesmo assim, ningum nota o acontecido. O
monstro confundido com o menino Bernardo. Agora o monstro que tenta dizer que ele no o
menino, tambm sem xito. A histria acaba com o monstro indo para o quarto do Bernardo para
dormir e ocupar o lugar do protagonista da histria.
A histria de Bernardo reflete a histria de muitas crianas vtimas de violncia em nosso
pas. Muitas delas conseguem dar mostras de que esto sofrendo algum tipo de violao de
direitos; tentam buscar ajuda, dizer de alguma maneira o que esto sofrendo, mas nem sempre as
pessoas adultas a quem se dirigem conseguem parar para ouvi-las ou para acreditar nelas, ou
mesmo para entender os sinais e as informaes que tentam passar. Sabemos no ser fcil lidar
com esse tema; ao mesmo tempo, no deveria ser tratado de forma simplista ou maniquesta;
requer, pelo contrrio, uma anlise complexa de dimenses tico-polticas e, sobretudo, uma
escuta sensvel, respeitosa e acolhedora de parte dos adultos em relao s crianas. Todas as
pessoas como cidads, a partir do Estatuto da Criana e do/a Adolescente (1990), so socialmente
responsabilizadas pelo cuidado com os direitos das crianas; no entanto, os dados indicam que
ainda fazemos o que os pais do protagonista do livro fizeram: tapamos os olhos e os ouvidos para
essa dura e trgica realidade.
A questo da violncia contra a criana necessita de uma perspectiva multidimensional, tal
como j tratei em vrios outros artigos64, com aspectos conceituais, legais, pedaggicos,
psicolgicos, sociais, culturais, histricos, entre outros, visto que se trata de um fenmeno de
muita complexidade. Deve, tambm, ser pensada como produto social e histrico, fruto de
discursos de um determinado perodo. O que hoje definimos como violncia nem sempre foi visto
e tido como tal. Isso nos leva a pens-la como construo social. Impe-nos, portanto, refletir que
nem sempre o que, na atualidade, consideramos violncia, especialmente contra crianas e
64
XAVIER FILHA, Constantina. O despertar de um homem e as marcas do silncio, na violncia contra crianas
e adolescentes: gnero e relaes de poder. In: SILVA, Paulo Vincius Baptista; LOPES, Jandicleide Evangelista;
CARVALHO, Ariane. Por uma escola que protege: a educao e o enfrentamento violncia contra crianas e
adolescentes. Ponta Grossa/Curitiba, PR: Editora UEPG/Ctedra UNESCO da Cultura da Paz/UFPR, 2008.
Id. Violncias contra crianas e adolescentes em Anjos do Sol. In: ______. (Org.). Sexualidades, gnero e
infncias no cinema. Campo Grande, MS: Editora da UFMS, 2014.
Id. "O segredo aprendendo a lidar com o abuso sexual": violncia sexual problematizada no cinema de animao.
In: ______. (Org.). Sexualidades, gnero e infncias no cinema. Campo Grande, MS: Editora da UFMS, 2014.
Id. Violncia sexual contra crianas: aes e omisses nas/das instituies educativas. In: ______. (Org.).
Sexualidades, gnero e diferenas na educao das infncias. Campo Grande, MS: Editora da UFMS, 2012.
190
adolescentes, seria, em outras pocas, assim considerado, especialmente porque nem sempre a
criana foi tida como sujeito de direitos.
Outro aspecto a enfatizar, tambm a partir desse conceito, que a violncia uma produo
humana. Para entend-la como construo histrica, social, cultural e, portanto, humana,
necessitamos de uma base conceitual e reflexiva para desconstruir representaes habituais,
justamente para minar perspectivas que se fundamentam em aspectos essencializantes,
moralizantes e/ou maniquestas.
Guerra situa a violncia contra crianas e adolescentes nas relaes entre os sujeitos:
[...] todo ato ou omisso praticado por pais, parentes ou responsveis contra crianas e/ou
adolescentes que sendo capaz de causar dano fsico, sexual e/ou psicolgico vtima
implica, de um lado, uma transgresso do poder/dever de proteo do adulto e, de outro,
uma coisificao da infncia, isto , uma negao do direito que crianas e adolescentes tm
de ser tratados como sujeitos e pessoas em condio peculiar de desenvolvimento.
(GUERRA, 1998, p. 32).
Vrios elementos esto presentes nesse conceito de violncia65. Todos so relevantes. Como
violao de direitos humanos, trata-se de uma forma extremada de dominao. Nesses casos, de
acordo com o conceito foucaultiano, parece no haver relao de poder entre os sujeitos envolvidos
nessa situao, visto que, especialmente as crianas, no tm nem liberdade nem possibilidade de
resistncia ou estratgias de fuga. H casos, ainda assim, de crianas que conseguem pelo menos
mostrar os sinais da violncia a que so submetidas, demonstrar algum tipo de resistncia ou de
fuga, pela possibilidade de liberdade que existe nessas relaes de violncia. Quando isso ocorre,
porm, nem sempre so levadas a srio ou respeitadas pelas pessoas adultas de seu convvio,
inclusive por educadoras66 e educadores. Como foi o caso do menino Bernardo, que denunciou
Promotoria da Infncia seu prprio pai pelas violncias sofridas. Nesse caso, o menino tentou
lutar, muito lamentavelmente em vo, junto a familiares e a autoridades, com as possibilidades
que tinha pelo direito sua vida.
65
66
A violncia contra crianas e adolescentes pode ser tipificada por: negligncia, abandono, violncia psicolgica,
violncia fsica e violncia sexual (dentre elas, a explorao sexual comercial). H alguns documentos e materiais
educativos oficiais que utilizam do termo 'abuso sexual'. Optamos por violncia, porque consideramos violncia
todas as formas.
O Estatuto da Criana e do/a Adolescente (Lei Federal n. 8.069/1990), nos artigos 13, 56 e 245, prope a conduta
dos/as profissionais da educao em casos de suspeita e/ou confirmao de casos de violncia contra crianas e
adolescentes. Artigo 13: Os casos de suspeita ou confirmao e maus-tratos contra criana ou adolescente sero
obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuzo de outras providncias
legais. Artigo 56: Os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicaro ao Conselho Tutelar os
casos de: I maus-tratos envolvendo seus alunos; II reiterao de faltas injustificadas e de evaso escolar,
esgotados os recursos escolares; III elevados nveis de repetncia. Artigo 245: Deixar o mdico, professor ou
responsvel por estabelecimento de ateno sade e de ensino fundamental, pr-escola ou creche, de comunicar
autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmao de maus-tratos
contra criana ou adolescente: Pena multa de trs a vinte salrios de referncia, aplicando-se o dobro em caso de
reincidncia.
191
Ouvir as vozes das crianas: o que meninas e meninos tm a nos dizer sobre
violncias, corpo e autocuidado
A pesquisa Representaes de violncia dentro e fora da escola nas vozes de crianas, com o
apoio do CNPq, realizada em 2012 e 2013, ocorreu em uma escola pblica municipal na cidade de
Campo Grande/MS, organizada em dois momentos: o primeiro, com encontros com e nos quais
se pretendia ouvir as crianas sobre o que consideravam e entendiam por violncia contra elas e
sobre direitos que consideravam ter. A segunda perspectiva, terico-metodolgica, compreendeu
a pesquisa participante com encontros sistemticos para discutir as informaes coletadas no
primeiro momento da pesquisa e para produzir coletivamente livros para a infncia e filmes de
animao.
Realizamos a pesquisa nessa mesma instituio desde o ano de 2010, com outro estudo,
tambm apoiado pelo CNPq. A turma selecionada foi o 5 ano do Ensino Fundamental. Em 2012,
participaram 72 alunos/as, entre crianas e adolescentes (68 dos 5 anos A e B; 4 adolescentes do
6 e 7 anos, que j haviam participado dos projetos nos anos anteriores). Todos foram
autorizados/as por escrito por seus/suas responsveis. Tambm elas/eles foram convidadas/os a
assinar, e assinaram um documento no qual manifestavam seu interesse e desejo em fazer parte da
67
68
Para aprofundamento, ver: DEL PRIORI, Mary. Histria das crianas no Brasil. 7. ed. So Paulo: Contexto, 2010.
Outra legislao, recentemente votada e sancionada, foi a Lei Menino Bernardo (tambm conhecida como Lei da
Palmada), que garante o direito da criana e do adolescente de ser educado/a sem castigos fsicos ou tratamento
cruel ou degradante.
192
pesquisa. Algumas pessoas no quiseram participar e tiveram sua deciso respeitada. As idades
mdias das que foram autorizadas e das que se dispuseram espontaneamente a participar dos
encontros eram, em aproximadamente 80%, na faixa de 9 a 12 anos de idade, faixa etria
considerada infncia. Em 2013, continuamos a pesquisa na mesma escola com outra turma do 5
ano do Ensino Fundamental. Nesse ano e nesse turno, havia somente uma turma. Como
anteriormente, participaram, tambm, nos momentos dos pequenos grupos no perodo vespertino,
os/as alunos/as de anos anteriores que desejassem continuar no projeto. Foram 41, entre
crianas e adolescentes, os que participaram e foram autorizados/as pelos pais/mes e
responsveis e tambm assinaram a ficha de autorizao para participar.
Na primeira etapa, aps a apresentao da pesquisa e de seus objetivos direo e s
professoras da turma, organizamos coletivamente o cronograma dos encontros com as crianas.
Alguns deles ocorreram com a turma toda e contaram com a presena da professora, j que, em
sua maioria, ocorriam durante o perodo de aula das crianas. Em outros momentos, dividimos a
turma em pequenos grupos. Os demais alunos/as ficaram com a professora na sala de aula, sem
prejuzo das questes curriculares. Em outros momentos, tambm nos encontramos na prpria
escola em perodo extraturno. O objetivo dessa primeira etapa da pesquisa foi ouvir das crianas:
Nos encontros, especialmente na sala com toda a turma, aps um momento de discusso
geral, as crianas eram convidadas a redigir, de forma escrita, ou por desenho, o que sabiam a
respeito sobre as seguintes temticas, cada uma delas realizadas em encontros especficos:
193
Os filmes realizados nesses projetos foram os seguintes: Queitylia em perigos reais (9 min), em 2012; Direitos das
crianas: uma aventura intergalctica (8 min.) e Joo e Maria: dos contos realidade (9 min.), produzidos em 2013.
194
Dados coletados do relatrio do disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, no ano
de 2013, indicam o perfil das vtimas da explorao do trabalho infantil: Perfil das vtimas: 42,24%, sexo feminino;
40,09%, masculino; idades: 27, 55%, de 12 a 14 anos; 23,43%, de 8 a 11 anos; 19,90%, de 15 a 17 anos e 10,11%, de 4
a 7 anos (28 desses casos foram denunciados no estado de Mato Grosso do Sul; outros seis com crianas de zero a
trs anos de idade). Perfil do/a agressor/a: 46,60%, feminino; 39,68%, masculino. Relao suspeito/a-vtima: me
29,81%; pai 13,79%. Os dados, tal como a preocupao das crianas, revelam que essa ainda uma realidade para
muitas crianas exploradas no trabalho infantil, por exemplo, no trabalho domstico e em outros espaos.
195
Um aspecto a destacar na pesquisa diz respeito violncia sexual. As crianas relataram ter
ouvido casos e saber que esse problema existe, mas sem maiores aprofundamentos. Urge pensar
ser essa uma das violncias mais trgicas contra as crianas, se que se pode estabelecer alguma
hierarquia nesse assunto; no entanto, uma das mais silenciadas por seu envolvimento com
sexualidade, corpo, entre tantos outros aspectos que contribuem para a cultura do silncio. Os
nmeros que envolvem esses casos revelam ser esta uma realidade que necessita de cuidado e
ateno constantes de parte da sociedade.
De acordo com o relatrio do disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia
da Repblica, no ano de 2013, segundo as denncias registradas, so os seguintes os dados de
violncia sexual/abuso71 sexual de crianas:
Dos 40% dos casos de violao, em 10% dos casos o local da violao a casa da vtima;
em 31, 75%, na do/a suspeito/a.
71
Segundo o prprio relatrio da Secretaria de Direitos Humanos, o ttulo empregado Dados de abuso sexual de
crianas e adolescentes nacional. Outros documentos nacionais, dentre eles o Guia Escolar. Mtodos para
identificao de sinais de abuso e explorao sexual em crianas e adolescentes (2004) tambm utilizam o termo
abuso sexual. Optei, por isso, por deixar aqui os dois termos violncia e abuso , apesar de optar pelo primeiro.
196
197
situao trouxe consequncias para o menino, que ficou impedido pelo padrasto de ver a me,
tendo de ir morar com a av materna. Esta narrativa foi muito emocionante e nos fez refletir
sobre as possibilidades de resistncia e estratgias de fuga das prprias crianas em situaes de
violao de direitos. Essa foi a deixa para a nossa prxima temtica, a do autocuidado e
autoproteo, ou seja, perguntar s crianas como elas se cuidam, cuidam de seus corpos e os
protegem.
198
se cuidam no usando roupa curta, "no se oferecendo", "no saindo sozinha noite". Outra frase
muito recorrente, dita e escrita pelas meninas, era de que "no deixo nenhum estranho me tocar";
"no me envolvo com ningum que no conheo" e "no ando sozinha". Em 2013, somente um dos
meninos disse que no deixava ningum tocar em seu corpo.
Por que as meninas pensam assim? E os meninos? Tais representaes so importantes
para refletir sobre a constituio identitria de umas e outros? De que maneira pode o corpo ser
veculo de prazer? De desprazer? De controle? De cuidado? De proteo? De vigilncia? Como as
relaes de autocuidado e autoproteo esto sendo construdas por elas e eles? As meninas, em
geral, utilizam a representao socialmente utilizada de que a menina/mulher violentada deve ter
'provocado' o homem. Por isso, dizem cuidar do seu prprio corpo para no provocar os homens a
"quererem" viol-las. Devem se 'controlar' e 'vigiar' para no ser alvos da violncia. Observamos,
nessas frases, uma vigilncia sobre o corpo feminino e, ao mesmo tempo, uma culpa feminina pela
'seduo' de seu corpo sobre um possvel 'violador'. Estabelece-se, assim, uma perversa relao de
violncia de gnero, em que a vtima duplamente violada.
Outro aspecto a ser destacado em relao ao cuidado do corpo e gnero foi que somente os
meninos, sobretudo no ano de 2012, disseram se autoproteger com lutas marciais e golpes, alm
de pedir ajuda a familiares e a pessoas adultas de confiana. "Eu protejo o meu corpo lutando a arte
marcial karat km-shi-kai para minha defesa pessoal" (Pablo, 9 anos) ou, "eu me protejo lutando, eu j
lutei Karat e capoeira e assim que me cuido e me protejo" (Carlos, 11 anos). Os meninos, conforme as
respostas da pesquisa, se acham mais fortes e agressivos do que as meninas. Este aspecto dificulta
a muitos deles buscar ajuda em situao de violncia, por considerarem ter condies de se
autoproteger com lutas, como se fossem super-heris. Pesquisas indicam que, em situaes como
essas, os meninos-vtimas demoram mais tempo do que as meninas para buscar ajuda. Alm disso,
o medo de serem considerados homossexuais tambm faz com que a violncia perdure por mais
tempo, revelando os vrios lados perversos da violncia. Vejamos aqui o paradoxo que se instala
nesta situao. A autoproteo por eles propalada no passa de uma carapaa para afirmar a
masculinidade e no para buscar ajuda e, com isso, conseguir se libertar das teias de uma situao
de violncia.
Nessa mesma atividade, tambm percebemos que o perigo sempre parece vir de fora e nunca
de dentro da famlia, desconsiderando os altos ndices segundo os quais a maioria dos/as
agressores/as composta de pais/mes ou demais pessoas que tm relao de parentesco com a
criana, fato atestado pelos dados do relatrio de 2013 que destaquei anteriormente. O disque
199
10074 passou a ser debatido e indicado com um importante aliado das crianas, em caso de
suspeita e confirmao de violncia. Outras estratgias de autocuidado e autoproteo tambm
foram pensadas coletivamente para assegurar que seus direitos pudessem ser garantidos. Com
isso, no isentamos os adultos da responsabilidade de cuidar e proteger as crianas, mas
oferecemos a elas a possibilidade de cuidar de seu prprio corpo, de descobri-lo, de buscar ajuda
em caso de violao, de dizer no, de pensar a respeito sobre sadas nem sequer imaginadas.
Crianas tm direitos?
O ltimo eixo temtico das discusses foi sobre os direitos das crianas. Inicialmente, cabia
perguntar se elas sabiam que tinham direitos, ou no. Inicialmente, manifestaram dvidas: umas
achavam que sim, outras, que no. Ao certo, no sabiam dizer quais seriam seus direitos.
Apresentamos, em seguida, os dez princpios da Declarao Universal dos Direitos da Criana
(1948). Lemos cada um deles e sobre eles discutimos separadamente. As crianas iam se
espantando ao ver que ao mesmo tempo em que tinham direitos garantidos em lei, muitas sofriam
toda sorte de violncia, muitas delas no chegando a resistir e a ir a bito. Em seguida a essas
intensas discusses, as crianas, nos dois anos da pesquisa, escolhiam o direito que mais lhes
aprazia para o desenhar e sobre ele escrever.
No ano de 2012, as meninas escolheram o quarto, o sexto e o dcimo princpios75. Os
meninos ficaram entre o terceiro e o sexto.
Em geral, as crianas, nesse ano, escolheram princpios que lhes diziam respeito e a suas
vidas cotidianas. Ressaltaram o cuidado familiar como um dos principais para seu pleno
desenvolvimento; refletiram sobre os vrios preconceitos sofridos dentro e fora da escola e
exigiram direito sade, alimentao e proteo da famlia e do Estado para ter uma
identidade nacional e uma vida plena sem violncia.
No ano de 2013, as meninas optaram pelos princpios76 primeiro, terceiro, quarto, sexto,
oitavo, nono e dcimo.
74
75
O disque 100 funciona diariamente das 8h00 s 22h00, inclusive nos finais de semana e feriados. As denncias
recebidas so encaminhadas aos rgos competentes, priorizando o Conselho Tutelar como porta de entrada nos
casos de violao de direitos de crianas e adolescentes.
PRINCPIO 3 Desde o dia em que nasce, toda criana tem direito a um nome e a uma nacionalidade, ou seja, ser
cidad de um pas; PRINCPIO 4 As crianas tm direito a crescer com sade. Toda criana tambm tm
direito a alimentao, habitao, recreao e assistncia mdica. PRINCPIO 6 Toda criana deve crescer em
um ambiente de amor, segurana e compreenso. As crianas devem ser criadas sob o cuidado dos pais, e as
pequenas jamais devero separar-se da me, a menos que seja necessrio. O governo e a sociedade tm a obrigao
de fornecer cuidados especiais para as crianas que no tm famlia nem dinheiro para viver. PRINCPIO 10 A
criana dever ser protegida contra qualquer tipo de preconceito, seja de raa, religio ou posio social. Toda
criana dever crescer em um ambiente de compreenso, tolerncia e amizade, de paz e de fraternidade universal.
Retirado do site: http://www.canalkids.com.br/unicef/declaracao2.htm Acesso em: 26 set. 2012.
200
As crianas, aos poucos, foram se apropriando dos seus direitos, argumentando sobre
possveis sadas em situaes de violao, colocando-se no lugar de outras pessoas que sofrem
violncias, pensando em possibilidades e estratgias de autocuidado e autoproteo.
Todos esses aspectos foram apresentados e debatidos nos grupos na sala de aula e,
sobretudo, nos grupos menores, com vistas a discutir e tambm a produzir o argumento e o
roteiro do filme de animao, alm do argumento e de ideias para os livros infantis. Sobre esses
ltimos, descrio e comentrios na ltima parte do artigo.
77
78
PRINCPIO 1 Toda criana ser beneficiada por esses direitos, sem nenhuma discriminao por raa, cor, sexo,
lngua, religio, pas de origem, classe social ou riqueza. Toda e qualquer criana do mundo deve ter seus direitos
respeitados! PRINCPIO 8 Seja em uma emergncia ou acidente, ou em qualquer outro caso, a criana dever
ser a primeira a receber proteo e socorro dos adultos. PRINCPIO 9 Nenhuma criana dever sofrer por
pouco caso dos responsveis ou do governo, nem por crueldade e explorao. Nenhuma criana dever trabalhar
antes da idade mnima, nem ser levada a fazer atividades que prejudiquem sua sade, educao e desenvolvimento.
Retirado do site: http://www.canalkids.com.br/unicef/declaracao2.htm Acesso em: set. 2012.
Em outra pesquisa, tambm com apoio do CNPq, produzimos, no mbito do projeto, o livro: XAVIER FILHA,
Constantina. As aventuras da Princesa Pantaneira. Campo Grande: Editora Life, 2012.
Preservei os termos abuso sexual e trabalho infantil encontrados nos livros.
201
lidarem com sentimentos e, com isso, saberem lidar com as adversidades da violncia psicolgica.
Somente dois livros trazem em seus ttulos e seus propsitos a discusso da violncia sexual.
Utilizando do termo abuso sexual para esse intento, inclusive no ttulo. Ambos so tradues de
outras realidades.
O primeiro Meu corpo especial: um guia para que a famlia converse sobre abuso sexual de
Cynthia Geisen (2007). Trata-se de uma traduo do ingls, escrito por uma pastora e capel que
trabalha com vtimas de violncia sexual. O livro apresenta preceitos cristos para falar da
importncia do corpo da criana, do direito privacidade, do cuidado e das formas de proteo
criana em situao de abuso sexual, sem entrar em detalhes.
O segundo Abuso sexual, no! , de autoria de Delphine Saulire (2006), uma traduo
francesa. O livro se volta ao pblico leitor com uma linguagem mais direta sobre o tema da
violncia sexual, apresentando cinco casos cujos/as protagonistas so trs meninas e dois
meninos. Em um dos casos, por exemplo, o padrasto de Ana quer tocar seu corpo e beij-la. O
livro apresenta trs possveis condutas a Ana, indo desde a obedincia at a denncia da situao.
A narrativa adotada pelo livro de questionamento, levando o pblico leitor a ponderar as
possibilidades de ao e identificao dos/as agressores/as pelas personagens, situando-as na
posio das vtimas, para que possam saber como reagir em situao real.
Os poucos livros79 apresentados indicam que, apesar dos nmeros alarmantes de violncia
contra crianas, entre elas a sexual, h um dficit sobre o tema para o pblico infantil. Inmeras
questes podem ser levantadas a partir desses indcios. Uma delas de se silenciar o assunto para
preservar a inocncia infantil, seja por eventualmente achar que isso no assunto de criana,
seja por achar que elas no esto interessadas nisso ou que no iriam entender nada a respeito.
No foi o que encontramos em nossa pesquisa com as crianas que fizeram parte de nossos
estudos; pelo contrrio, elas se mostraram vidas pela discusso a respeito da violncia. Foram
elas que trouxeram as informaes sobre casos de violncia sexual, inclusive com exemplos de
vtimas masculinas.
Em meio a todas essas profcuas, labirnticas, mltiplas, complexas e possveis discusses
estabelecidas entre adultos e crianas na pesquisa, considerando a pouca produo escrita sobre o
tema, produzimos coletivamente trs livros.
O livro Meninas e meninos tm direitos (2014) apresenta texto elaborado inicialmente por
mim, com base em vrias discusses apresentadas ao longo dos encontros da pesquisainterveno com as crianas. As ilustraes so das crianas. O texto, em determinado momento
79
Nos ltimos anos foi lanado outro livro, que no fez parte da referida pesquisa que o Segredo Segredssimo de
Odvia Barros (2011).
202
da pesquisa, foi apresentado ao grupo para ser por ele apreciado e discutido. Os direitos
selecionados pelas crianas foram os mesmos j selecionados nos momentos referidos de
discusso: direitos de brincar e de se divertir como quiserem; de ter liberdade de brincar com
meninas e meninos; de viver sem discriminao; de ser protegidas de qualquer tipo de preconceito
e de violncia na escola e em qualquer outro lugar; de ter famlia de muitos jeitos; de crescer em
ambiente de respeito, segurana e cuidado; de no ser exploradas e de no ter de trabalhar antes
da idade mnima; de ser bem alimentadas; de ter um nome, uma nacionalidade e documentos; de
ter proteo e socorro; de receber proteo; de ter sade e assistncia mdica; de ter uma boa
escola pblica; de comemorar todo aniversrio; de sonhar, ter liberdade, ser feliz e respeitadas; de
falar e ser ouvida e de viver em um mundo feliz e de paz para todas as pessoas! 80
O livro Viver sem violncia um direito (2014) apresenta vrias violncias sofridas por
crianas e adolescentes tambm a partir do que elas destacaram ao longo da pesquisa, como:
violncia fsica (tapas, socos e pontaps). O caso da menina que tirou a figurinha da geladeira
ganhou destaque no livro, com o seguinte texto: Uma menina tirou uma figurinha da porta da
geladeira: apanhou, apanhou... apanhou muito do seu pai. Algum filmou e todo mundo ficou
sabendo (p. 7). A explorao do trabalho infantil de meninas no trabalho domstico e de meninos
como cuidadores de carro, ou pedindo dinheiro na rua tambm foi apresentada no livro, como
igualmente o abandono e a negligncia no cuidado de crianas. Situaes de preconceito, como
racismo, homofobia, gordofobia e xingamento tiveram o devido destaque. Outra violncia a
violncia sexual. O menino apresentado como vtima de violncia sexual. Seu agressor e
violador pode ser do sexo masculino ou do feminino. Esse um elemento inovador no livro
infantil. No encontramos tais informaes em nossas pesquisas. So assuntos pouco explorados e
de difcil acesso ao pblico das crianas. Tambm trazemos as meninas como vtimas de violncia
sexual, tanto de homens quanto de mulheres, inclusive na internet. Ao final do livro, convocamos
as pessoas leitoras e leitores, especialmente a criana ou adolescente vtima a denunciar toda e
qualquer violncia, sugerindo trs possibilidades: a primeira, a de buscar ajuda de uma pessoa
adulta de sua confiana; a segunda, a da ligao gratuita do disque 100, e/ou, terceira, a de
procurar o Conselho Tutelar de sua cidade.
Os dois livros foram ilustrados pelas crianas e adolescentes que participaram dos
encontros da pesquisa em 2013. importante destacar que todo o processo foi dialgico, reflexivo
e constituiu de um ir e vir com as imagens e textos, com as vrias verses do livro discutido com
o grupo.
80
203
O ltimo livro da trilogia81 Do meu corpo eu cuido e protejo (2014) ilustrado por Lorena
Martins. Nasceu das discusses e das informaes coletadas na primeira etapa da pesquisa. Seu
objetivo mediar discusses sobre corpo e construir a possibilidade de autocuidado e
autoproteo pela prpria criana. Inicia-se instigando o/a leitor/a a pensar sobre o seu prprio
corpo, sobre suas possibilidades de brincar, pular, descobrir o mundo e de sentir prazer. A partir
de imagens que expressam cenas cotidianas, descreve cuidados e tipos de proteo do corpo
infantil. No livro foram expostas possibilidades de pensar os corpos e sobre como pr em prtica
tais sugestes para aprenderem a se cuidar e a se proteger. Para a construo desse repertrio
corporal e reflexivo estabeleci vrios pressupostos ao longo da narrativa: o primeiro deles de
que o corpo pertence criana. S ela tem o direito de o descobrir, de receber e de lhe dar carinho,
especialmente em determinada partes desse corpo. Outro pressuposto o de a criana possa ter
direito de conhecer o prprio corpo, atribuindo nomes s suas partes, comumente mais conhecidos
por apelidos. Estes so muito bemvindos. Fazem parte de nossas intimidades, mas saber os
nomes prprios de algumas partes, especialmente das mais ntimas, importante no caso de
eventuais necessidades de comunicao de violao ou abuso. Em consequncia, a criana pode
receber carinho, mas cabe a ela fazer carinho em determinadas partes do seu corpo. S a ela cabe o prazer
da descoberta, da possibilidade da vivncia dos inmeros prazeres corporais. O outro pressuposto
de que o segredo deve ser ponderado. Ter segredos bom, mas bom saber que h segredos que
no devem ser guardados, em especial os que violam os corpos das crianas. Neste caso, o livro
instiga a criana a buscar ajuda de uma pessoa adulta. Se essa pessoa no acreditar na criana, o
livro sugere: Se ela [pessoa adulta] no acreditar, procuro outra pessoa, at algum me ajudar
(XAVIER, 2014c, p. 17).
Por fim, a ltima sugesto do livro que a criana deve se cuidar e proteger, mas, sobretudo, que
deve ser cuidada e protegida. Traz diversas sugestes de autoproteo, como: dizer no; contar os
segredos que no devem ser guardados e buscar ajuda. Termina com a informao de que ela tem
direito a crescer com alegria e de descobrir seu corpo e o mundo e de que nem todas as pessoas
adultas so agressivas ou alimentam o propsito de violentar crianas.
O que trazem de novidade esses livros? Muitas coisas, a comear pela temtica da violncia
contra a criana como pauta de discusso. Em segundo, por se tratar de uma obra coletiva, escrita
por crianas e pessoas adultas, ou a partir de temticas e ideias delas. Esse certamente um dos
aspectos de maior originalidade dessas obras. Elas estariam recheadas de significados com o
suporte dos sentimentos, das vivncias, condutas, saberes e poderes das crianas, que, com isso,
81
Alm dos trs, foi publicado um quarto livro, que trata da trajetria das pesquisas sobre a experincia de produo
de filmes de animao: XAVIER, Tina. Princesa Pantaneira em: brincando no mundo mgico do cinema. Campo
Grande, MS: Editora da UFMS, 2014.
204
em outras realidades e contextos, podem dialogar com o material escrito por seus pares, mesmo e
at por serem outras crianas.
Enfim... [...] todas as leituras so possveis. No vejo maior inconveniente se um livro, ao
ser lido, lido de diferentes maneiras82. Foucault nos faz pensar que a obra aberta e que a
leitura pode levar a questionamentos de aspectos de nossas vidas, das vidas de outras pessoas, de
pensar em outras realidades e em mundos melhores e mais dignos para as crianas. Esse foi o
propsito das obras. Outro aspecto a destacar a possibilidade de resistncia que eles
demandaram, tanto em relao ao processo de construo, em meio a intensas redes e relaes de
saber e poder de pessoas adultas e crianas, bem como de produzir livros em editoras perifricas,
das que no tm tradio em produes nesse nicho. Outras resistncias dizem respeito
produo de livros sobre assuntos nem sempre considerados de interesse das crianas e,
sobretudo, pela possibilidade de elaborar com elas o processo de produo e por poderem ler esse
material com estratgias de resistncia em situaes de violao de seus direitos.
Com exceo das situaes extremadas de violncia (apesar de sabermos que elas existem, e,
por isso, passamos o artigo todo falando sobre o assunto), ns nos constitumos nas relaes de
poder e nelas possvel estabelecer estratgias de resistncia, como afirma Foucault (2004). Para
o autor, "se h relaes de poder em todo o campo social, porque h liberdade em todo lado" (p.
277); ou ainda: Nas relaes de poder, h necessariamente possibilidade de resistncia (p. 277).
As resistncias foram desenhadas em nossa vivncia na pesquisa em meio a intensas e
acaloradas discusses com as crianas, com vistas possibilidade de produo coletiva. Foi
tambm com tal objetivo que com elas se pensaram as formas de se autocuidar e autoproteger.
No temos a pretenso de achar que os livros sero capazes de resolver as complexas situaes de
violncia contra crianas; pensar assim seria encontrar frmulas mgicas para assuntos to
diversos. Endossando palavras de Foucault (2004, p. 293), diria, como ele: [...] gostaria que eles
fossem lidos por eles mesmos, com suas imperfeies e suas eventuais qualidades.
Agora sim, Bernardo! seria a frase que poderamos ouvir e dizer com e pelas crianas que
sofrem, que querem contar seus sofrimentos e sobre eles falar. Muito h o que se fazer... algumas
coisas j estamos fazendo com elas e para elas...
82
205
Referncias
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Editorial, 2011.
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escola que protege. Ponta Grossa/Curitiba, PR: Editora UEPG/Ctedra UNESCO da Cultura
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Sexualidades, gnero e infncias no cinema. Campo Grande, MS: Editora da UFMS, 2014.
XAVIER, Tina. Meninas e meninos tm direitos. Ilustraes crianas e adolescentes do projeto
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______. Viver sem violncia um direito. Ilustraes crianas e adolescentes do projeto de
pesquisa. Campo Grande, MS: Ed: UFMS, 2014b.
206
XAVIER, Tina. Do meu corpo eu cuido e protejo. Ilustraes Lorena Martins. Campo Grande,
MS: Ed: UFMS, 2014c.
CAPTULO 5
DESAFIOS E POTENCIALIDADES DA
RELAO CORPO, GNERO E
SEXUALIDADES
Embalada por essas reverberncias e pelo conforto relativo que reinstauraram em mim,
retornei, ento, agenda de pesquisa que tem dado sustentao ao meu trabalho de ensino,
pesquisa e orientao na ps-graduao, nos ltimos 10 anos, para olh-la de novo, de outros
ngulos e, assim, ensaiar algumas respostas para essas indagaes: com e a partir dessa agenda, e
tomando a relao entre gnero, sexualidades e corpo como foco, o que poderia indicar como
possveis realizados e como desafios que continuam a nos confrontar? Aqui, nesta promessa de fala
antecipada em forma de texto delineio ento, em formato de resumo ampliado, trs conjuntos
de questes que, desde esse lugar, podem contribuir para o debate proposto para esta mesa.
212
Para isso, preciso indicar que a agenda de pesquisa a que me refiro tem privilegiado o
exame de polticas pblicas (especialmente as que so hoje nomeadas como sendo de incluso
social e que englobam as reas da Educao, da Sade e do Desenvolvimento Social),
problematizando-as como instncias de produo de gnero e, mais especificamente, de gesto de
formas de viver em famlia e de experienciar a parentalidade. Preciso indicar tambm que, nessa
agenda, polticas tm sido abordadas como artefatos centrais de organizao e regulao social,
que promovem seus objetivos por meio da normatizao e administrao de vrias esferas da vida
cotidiana dos sujeitos aos quais se direcionam, educando-os para pensar, sentir e agir de certos
modos e no de outros83. Conceb-las dessa maneira tem nos autorizado a assumir que um dos
modos de conhecer suas formas de funcionamento e alguns de seus efeitos passa pelo exame de
relaes de poder colocadas em ao nas proposies programticas dos governos que as
promovem, os quais, atravs de suas instituies e nas prticas assistenciais e educativas a elas
vinculadas, investem de determinadas maneiras sobre a populao-alvo e sobre os sujeitos
gestores e tcnicos que implementam tais polticas; como decorrncia, elas instituem modos de
viver a vida para essa populao e, tambm, processos de conhecer e modos de gerir e
desenvolver o trabalho em instituies e servios pblicos que, de forma articulada, devem
produzir o que, nelas, se entende como incluso social (acesso a bens e servios, sade,
educao e ao trabalho). Nesse sentido que se torna possivel dizer que as polticas incidem sobre
as redes de significao de gnero dos contextos em que emergem, ao mesmo tempo em que so
atravessadas e afetadas por elas. E que elas esto implicadas com a produo de sujeitos e de
corpos marcados, entre outras coisas, pelo gnero e pela sexualidade. Ou seja: as polticas so
generificadas.
Utilizamos o conceito de gnero afastando-nos de abordagens que focalizam subordinaes
e desigualdades como sendo derivadas de diferenas biolgicas e/ou de caractersticas culturais
estritas vinculadas a mulheres e a homens, para assumir que o social e a cultura, lato sensu, so
constitudos, atravessados e organizados por discursos instituntes de feminilidades e de
masculinidades que, ao mesmo tempo, os produzem e ressignificam. Isso implica considerar,
dentre outras coisas, que as instituies sociais, os smbolos, as normas, os conhecimentos, as leis,
as doutrinas e as polticas de uma sociedade so constitudas e atravessadas por pressupostos de
gnero, ao mesmo tempo em que esto implicadas com sua produo, manuteno e
ressignificao Demanda compreender, tambm, a multiplicidade de formas pelas quais o gnero,
de forma relacional e interseccional, opera produzindo sujeitos e corpos traduzidos/marcados pelo
83
213
gnero e pela sexualidade, e so estas dimenses do conceito que temos privilegiado em nossas
anlises84.
No contexto brasileiro e, especialmente, nos textos normativos e programticos das
polticas de incluso social que temos acompanhado mais de perto, tem sido possvel localizar,
sobretudo na ltima dcada, alguns deslizamentos discursivos interessantes, quais sejam: a
insero explcita das dimenses de gnero e raa como condicionantes de desigualdades sociais e,
portanto, a indicao de que estas precisam ser levadas em conta no seu enfrentamento85, a
substituio crescente do termo me pelo termo famlia e a utilizao preferencial do termo
vulnerabilidade social, para designar o que at ento era nomeado como situao de risco.
Temos examinado alguns desses deslizamentos e seus efeitos em vrias dessas polticas86,
desde ento87. E desse exame emergem os trs conjuntos de questes indicados aqui e que
pretendo desenvolver e compartilhar de forma mais extensiva no evento:
-
O primeiro deles refere-se noo de famlia que vem sendo privilegiada nos
documentos normativos de tais polticas e nos contextos de implementao das
polticas que temos examinado. Pode-se dizer que, do ponto de vista programtico,
polticas e programas de incluso social tem como alvo preferencial famlias situadas
abaixo do que se chama linha de pobreza com diferentes tipos de formao e que, com
diferenas sutis, incorporam noes mais abertas e flexveis de famlia para substituir,
pelo menos no plano formal, a noo de famlia nuclear. So conceitos de famlia
bastante abrangentes e produtivos, tendo em vista que incluem noes como gnero e
raa/cor, pressupem a presena de homens e mulheres no necessariamente
vinculados por laos consanguneos ou conjugais, e pessoas de diferentes geraes em
uma mesma estrutura familiar. Alm disso, a referncia explicita s relaes de gnero
poderia estar remetendo ao deslocamento de funes usualmente atribudas a homens e
mulheres nessas relaes. Isso pode ser tomado tanto como uma decorrncia de estudos
que apontam a fragilidade e os efeitos de poder da noo de famlia nuclear quanto,
sobretudo, como uma resposta s crticas de movimentos sociais como os movimentos
feministas. E sua adequao , em parte, reiterada por nossas pesquisas, que revelam,
por exemplo, uma grande instabilidade dos vnculos conjugais nesses ncleos
84
85
86
87
MEYER, 2011.
cf, por exemplo, Brasil; SPM, 2004.
Programa Bolsa Famlia, Primeira Infncia Melhor, Programa Sade da Famlia, Programa Mais Educao,
Programa Primeiro Emprego, Programa de Ateno Integral Famlia, Educao Social de Rua (SESRUA) - atual
Ao Rua -, Programa Sade na Escola e Territrios da Paz, dentre outros.
Dissertaes e teses que problematizaram polticas e programas direcionados para a incluso social, desenvolvidas
pelo grupo na Grande Porto Alegre/RS KLEIN, 2003, 2010; FERNANDES, 2008; ANDRADE, 2008;
DALIGNA, 2011; DAMICO, 2011; ALVARENGA, 2012 , alm das pesquisas de MEYER et al., 2008; e
MEYER et al, 2014, financiadas com bolsa PQ do CNPq.
214
familiares. Ao mesmo tempo, o que (ou pode ser) considerado famlia no cotidiano dos
servios, pelos agentes que os implementam e seus/suas usurios/as, varia muito em
relao no s s diferentes situaes encontradas, mas tambm s diferentes vivncias
e aprendizagens desses sujeitos sobre famlia e suas relaes, como sugerem as
entrevistas realizadas. Fazendo eco indagao de uma das tcnicas que entrevistamos:
Que famlia a gente pode chamar de famlia? [...] na realidade no existe um modelo
ideal de famlia 88 o que se poderia discutir e problematizar em relao a esta questo?
-
reafirmar
lugares,
funes
relaes
socialmente
construdas
como
Por ltimo, e retomando o que se tem considerado como famlia, nessas polticas, bem
como os modos pelos quais a incorporao de gnero tem funcionado nelas, vale a pena
perguntar-se de forma mais abrangente: que corpos importam nos processos de
operacionalizao da incluso social que se busca com essas polticas?
88
89
Parte das reflexes elencadas neste tpico esto publicadas em MEYER, KLEIN e FERNANDES, 2012.
Parte das reflexes sistematizadas neste tpico compe artigo, em processo de avaliao: MEYER, KLEIN,
DALIGNA e ALVARENGA. Vulnerabilidade, gnero e polticas sociais: a feminizao da incluso social.
215
Referncias
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KLEIN, Carin. ...um carto [que] mudou a nossa vida? Maternidades veiculadas e institudas no
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216
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imperativos e promessas de incluso social. Ensaio Avaliao e Polticas Pblicas em Educao (no
prelo)
MEYER, Dagmar; KLEIN, Carin; DALIGNA, Maria Claudia; ALVARENGA, Luiz Fernando.
Vulnerabilidade, gnero e polticas sociais: a feminizao da incluso social. Submetido Revista
Estudos Feministas, para publicao.
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SHORE, Cris; WRIGHT, Susan. Antropology of policy: critical perspectives on governance and power.
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SRGIO CARRARA
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO - UERJ
Para uma reflexo mais alentada sobre esse aspecto ver CARRARA E SIMES (2007).
Acompanhando as proposies de WEEKS (1989), o conceito de poltica sexual foi incorporado reflexo para
definir todo tipo de interveno (atravs de leis, campanhas sanitrias, programas educativos ou decises jurdicas)
promovida pelo Estado ou sob a sua chancela com o duplo objetivo de: (i) regular as prticas ertico-sexuais e as
expresses da sexualidade e (ii) gerir certos fenmenos relativos a essas prticas, como a reproduo e as doenas
sexualmente transmissveis. Ao menos quanto sua abrangncia, o conceito de poltica sexual abarca mltiplas
dimenses da gesto social do ertico e do sexual. Fruto do enfrentamento ou da coalizo de diferentes atores
sociais ao longo de determinado perodo de tempo, a natureza de tais polticas complexa, incorporando interesses
distintos e refletindo simultaneamente representaes e valores sociais os mais diversos: idias cientficas
(sobretudo teorias mdicas), crenas religiosas, valores morais, princpios jurdicos, posies polticas etc. Portanto,
no de se estranhar que haja inconsistncias e contradies no mbito de uma mesma poltica sexual, mesmo que
a anlise possa identificar os sentidos ou linhas de fora predominantes.
220
poltico, marcado pela tenso entre tradies mais liberais ou mais autoritrias; (iii) o campo
cientfico, no qual crucial o grau de difuso de certas teorias mdico-psicolgicas sobre a
sexualidade e o modo como interagem com perspectivas sociolgicas; e finalmente (iv) o campo
societrio, em que se organizam com ritmos e perspectivas diferentes movimentos sociais
articulados em torno de identidades scio-sexuais e de gnero, como o movimento feminista e o
movimento LGBT e um mercado segmentado mais ou menos vigoroso voltado a um pblico
LGBT.92 No caso brasileiro, tais campos tm se interagido de um modo particularmente tenso
nos ltimos dois sculos. O presente artigo trata dessa interao, especialmente no que diz
respeito s relaes entre ativismo e reflexo acadmica, procurando discutir o modo pelo qual,
em seu mbito, sexualidade, gnero e corpo autonomizam-se progressivamente, desarticulando-se
e rearticulando-se em arranjos bastante singulares.
221
94
A expresso cidadanizao foi originalmente cunhada por DUARTE et al. (1993), em artigo que abordava as aes
que organizaes no-governamentais desenvolviam, nos anos 1980, em bairros populares do Rio de Janeiro.
Tratando-se de um amplo projeto de incorporao social e poltica de categorias sociais marginalizadas, apoiado
sobre o triplo processo de individualizao, racionalizao e responsabilizao, parece-me que o conceito pode
tambm ser aplicado ao que vem acontecendo, desde as ltimas dcadas do sculo XX, em diferentes pases
ocidentais, com as chamadas sexualidades e expresses de gnero no-normativas.
222
quanto nos direitos humanos (a falta de reconhecimento legal dessas unies deixaria legalmente
desamparada certa parcela da populao brasileira).
Em tenso mais ou menos intensa, segundo o contexto, com a tradio jurdico-poltica (ora
articulando-se a governos autoritrios, ora opondo-se a eles), o cristianismo, cuja face mais
influente politicamente no continente continua sendo a Igreja Catlica, tem sido fundamental
tanto no que tange configurao de valores e disposies culturais mais amplas, compartilhados
pela populao de um modo geral, quanto na configurao de leis e de polticas, principalmente as
que envolvem a famlia, o casamento e a reproduo. influncia da Igreja Catlica, vem se
somar mais recentemente o avano notvel das denominaes evanglicas, cujos representantes
organizados no parlamento tendem a atuar em conjunto quando se trata de questes relativas
sexualidade, obstruindo sistematicamente a aprovao de leis que visem, por exemplo,
descriminalizao do aborto, a criminalizao da homofobia ou ao reconhecimento legal das
unies civis entre pessoas do mesmo sexo.95
Em tenso com esses dois primeiros campos, o campo cientfico, no qual se destaca o
discurso mdico-psicolgico, tem desempenhado papel crucial no estabelecimento das polticas
sexuais. No Brasil, sua atuao tem sido especialmente significativa. Diferentemente de outros
pases do continente, a Repblica apareceu no final do sculo XIX sob forte inspirao do
positivismo comteano, com sua nfase na cincia como uma espcie de religio oficial do Estado.
E o discurso mdico sobre a sexualidade variou segundo a hegemonia de diferentes teorias. Em
pases como o Brasil, ao longo de grande parte do sculo XX, foi dominante a ideia de que o
instinto sexual era algo imperioso. Os mdicos recomendavam o exerccio (hetero)sexual regular
para homens e mulheres como forma de manuteno da sade. Tanto o excesso quanto a
abstinncia sexual teriam efeitos nocivos para o organismo, uma vez que atingisse a maturidade
sexual e enquanto durasse a vida reprodutiva. Em outros contextos nacionais, o carter incuo da
abstinncia sexual para a sade ganhou adeptos em maior nmero, com importantes
conseqncias para a definio de certo estilo de poltica sexual (CARRARA, 1996).
Corolrio da naturalizao do desejo sexual, na forma de um instinto ou necessidade
fisiolgica primria, os mdicos brasileiros, como os de outros pases, trabalharam arduamente
para ancorar a homossexualidade no corpo, construindo para homens e mulheres homossexuais
uma corporalidade especfica, marcada pela presena anmala de sinais considerados particulares
a cada sexo. Isso se expressa de modo exemplar no livro Homossexualismo e Endocrinologia, de
autoria do mdico brasileiro Leondio Ribeiro e publicado em 1938 (RIBEIRO, 1938). O trabalho
de Ribeiro no deixa de ser um extenso catlogo desses sinais corporais deslocados, na tentativa
95
Para isso, ver, entre outros, NATIVIDADE (2006); MACHADO e PICCOLLO (2010); VITAL E LOPES (2012).
223
96
97
Para uma discusso mais ampla sobre a eugenia no Brasil, ver, entre outros, STEPAN (1996).
Michel Foucault foi quem desenvolveu essa ideia de modo mais influente, explorando como, ao longo do sculo
XIX, homossexuais foram construdos como espcie (FOUCAULT, 1982).
224
gays,
lsbicas,
travestis,
transexuais,
transgneros,
transformistas,
crossdressers, entre muitas outras. A visibilidade dessas experincias e sua expresso no plano
poltico rompiam no apenas com o carter inclusivo da categoria homossexualidade, mas
98
Para verses sobre esse processo, ver FACCHINI (2005) e SIMES & FACCHINI (2009).
225
traziam tona o fato de que as articulaes entre corpo, gnero e sexualidade no se adequavam
bem aos modelos produzidos pelos saberes biomdicos.
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100
101
102
Alm de ser um dos editores do Lampio da Esquina, Peter Fry j vinha desde o incio da dcada de 1970,
aproximando-se da temtica, atravs de pesquisa realizada em terreiros de Belm. Para isso, ver entrevista
www.clam.org.br/uploads/arquivo/entrevista%20peter%20final_trajetorias%20intelectuais.pdf.
A tese seria defendida, na Universidade de So Paulo, em 1986, com o ttulo O Militante Homossexual no Brasil
da Abertura, uma etnografia a respeito dos movimentos sociais na dcada de 70.
A nica exceo o Cdigo Penal Militar, que ainda adota o termo pederastia e que atravs do seu art. 235 prev
punies s prticas libidinosas. Embora essas no se refiram exclusivamente homossexualidade, acabam sendo
aplicadas nesse sentido. A pesquisadora Maria Celina DArajo descreve como a intolerncia homossexualidade
aparece em depoimentos de militares brasileiros, bem como as estratgias empregadas para isolar e afastar
homossexuais que tenham sido descobertos nas Foras Armadas. Ver DArajo (2003).
A OMS apenas o faria em 1993.
227
cultural tais relaes eram elaboradas, inclusive no sentido de compor identidades idiossincrticas
e corporalidades especificas.
Seja criticando uma concepo da homossexualidade mais imediatamente orgnica
(doena) ou mais psicolgica (perturbao mental ou psiquica), podemos dizer que o discurso
contrrio patologizao, de modo geral, contribua para um processo de desincorporao da
homossexualidade e de crtica ao paradigma da inverso sexual. Nesse sentido, assumir a
homossexualidade significava romper com certa concepo, muito viva nas classes populares,
segundo a qual o mundo social estaria composto de homens, mulheres, bichas e sapates.
Na arena pblica, o esteretipo do homossexual efeminado comeava a ceder o passo imagem do
homossexual plenamente viril, indistinguvel dos homens heterossexuais. A virilizao da
homossexualidade masculina e a feminilizao da homossexualidade feminina, vistas por alguns
militantes como estratgica para desestabilizar antigos esteretipos, talvez tenha funcionado
desde o incio como estratgia de adequao desses novos personagens aos valores morais
englobantes, ou seja, de construo de certa respeitabilidade social. E essa estratgia passava
necessariamente pelo corpo, ou melhor, pela instaurao de uma nova corporalidade que, ao
menos no caso da homossexualidade masculina, podia inclusive exceder, no que se refere
exibio de sinais de virilidade, at mesmo o que era convencionalmente esperado dos homens
normais, ou seja, heterossexuais.
importante ressaltar que o processo de desmedicalizao da homossexualidade, iniciado
nos anos 1980, no nem homogneo, nem deve ser considerado imune a reveses, nem exclui
necessariamente novas tentativas de ancorar corporalmente as diferentes orientaes sexuais e
expresses de gnero. Atualmente, por exemplo, a determinao do Conselho Federal de
Psicologia vem sendo alvo de ataques de psiclogos ligados a grupos religiosos evanglicos.
Incorporando a ideia de que a homossexualidade no uma caracterstica inata aos indivduos e
sob a argumentao de que quem sofre por sua orientao sexual tem o direito a ser cuidado,
tais grupos organizam-se politicamente para anular a Resoluo acima referida. A resposta a essa
argumentao ainda est sendo forjada no mbito do movimento, mas importante notar que
alguns de seus lderes tm tendido a adotar uma concepo inatista da homossexualidade como
forma de se contrapor a ela. Em geral, alinham-se a novas concepes cientficas que continuam
a acreditar na existncia de um corpo singularmente homossexual, construdo agora no mais
com base nos sinais exteriores de feminilidade e masculinidade, mas no plano da gentica ou do
funcionamento cerebral. Nesses termos, no sendo doena, a homossexualidade no deixa de ser
228
considerada uma variao natural da espcie humana e gays e lsbicas se caracterizariam por um
funcionamento corporal diferente de homens e mulheres heterossexuais.103
Como apontou o socilogo Peter Conrad (CONRAD 2007), outro potencial vetor de
remedicalizao da homossexualidade desenhou-se com o advento da AIDS, que, na imprensa,
apareceu no Brasil, com em outros pases, como cncer gay, uma doena que devia ser explicada
a partir de supostas singularidades de um corpo homossexual ou, ao menos, de certa utilizao
homossexual o estilo de vida gay de um corpo masculino. interessante notar que foi
exatamente no momento em que a desconstruo da homossexualidade como doena ou distrbio
obtinha conquistas fundamentais no plano das instituies profissionais na rea da sade, que a
emergncia de uma outra doena, cuja histria remete-se s prticas sexuais entre pessoas do
mesmo sexo, a AIDS, abre novas perspectivas de organizao e de ao poltica. Contrariando as
expectativas iniciais, os impactos sociais da AIDS contriburam decisivamente para promover a
organizao do movimento homossexual e dar maior visibilidade social s experincias de
lsbicas, gays, travestis, transexuais e bissexuais. E foi ao longo das duas ltimas dcadas que,
simultaneamente emergncia de um pink market mais ou menos afluente nas principais cidades
brasileiras, o movimento LGBT brasileiro ganhou a enorme visibilidade social que hoje possui.
As paradas do orgulho tm sido o termmetro de tal visibilidade e organizao.
Mas, talvez, um dos impactos mais significativos da epidemia da AIDS foi o de ter dado
oportunidade para que, em torno da luta contra o preconceito e a discriminao que a
acompanhavam, se consolidasse no pas o movimento de travestis e transexuais, sujeitos antes
marginalizados e invisibilizados no mbito do movimento homossexual brasileiro. Foi no incio
dos anos 1990 que apareceram no Brasil as primeiras organizaes de travestis com objetivos
polticos. O evento inaugural desse tipo de ativismo ocorreu em 1992, quando um grupo de
travestis que se prostitua na Praa Mau, regio porturia da cidade do Rio de Janeiro, reuniu-se
para formar a Associao de Travestis e Liberados (ASTRAL). O apoio para a criao da
ASTRAL veio de um projeto de preveno das DST e AIDS chamado Sade na Prostituio
que realizava reunies com profissionais do sexo no Instituto Superior de Estudos da Religio
(ISER), local onde passaram a se realizar as reunies da nova associao.104 A influncia das
polticas pblicas de combate a epidemia da AIDS parece ter sido crucial tambm na constituio
103
104
Para um discusso crtica das recentes teorias cientficas sobre a gnese orgnica da homossexualidade ver NUCCI
(2010).
Em 1995, que, pela primeira vez, organizaes de travestis participaram formalmente de um espao do movimento,
no VIII Encontro Brasileiro de Gays e Lsbicas, quando se criou a Associao Brasileira de Gays, Lsbicas e
Travestis (ABGLT). O termo travesti passou ento a fazer parte oficialmente da sigla e tambm da designao
dos encontros nacionais, como o que aconteceu em 1997, chamado de EBGLT (Encontro Brasileiro de Gays,
Lsbicas e Travestis) (SIMES; FACCHINI, 2009).
229
nos anos seguintes de outras organizaes de travestis e transexuais que logo se articulariam em
redes nacionais.105
No contexto de emergncia do ativismo travesti e transexual, as relaes entre corpo,
gnero e sexualidade ganham novos contornos. Evidencia-se, de um lado, que a desmedicalizao
no ocorre de modo homogneo para todas as minorias sexuais e que, a despeito da luta pela
despatologizao da transexualidade (BENTO, 2012), o discurso mdico/psicolgico ainda
prepondera, condicionando a produo de direitos de certos grupos, como o caso dos e das
transexuais.106 De outro lado, crtica ao preconceito que atinge orientaes sexuais noconvencionais, soma-se a reivindicao pelo direito de ter um corpo (mais feminino ou mais
masculino) que seja congruente com o gnero com o qual os sujeitos se identificam. As bandeiras
de luta do movimento trans se organizam assim em torno do respeito identidade de gnero e
no apenas orientao sexual. Nesse contexto, o corpo adquire uma singular importncia, no
mais como lcus onde as origens dos desvios em relao s normas de gnero e sexualidade
deviam ser encontradas (geralmente com o intuito de cur-los ou elimin-los), mas como espao
de expresso de certas identidades sociais e identificaes subjetivas. A medicina e a psiquiatria
no so agora chamadas para fazer com que indivduos permaneam por toda a vida exibindo os
sinais corporais e comportamentais que se esperam deles dado o sexo que lhes foi atribudo ao
nascer, mas para colocar sua tecnologia ao servio da construo de corpos e de sexos que sejam
congruentes com mltiplas experincias de gnero.
Considerando esse panorama mais geral, podemos afirmar que, do ponto de vista da prpria
definio de seu objeto, o campo de estudos scio-antropolgicos sobre a homossexualidade
acompanhou e participou ativamente desse complexo processo social e poltico, refletindo e dando
intelegibilidade s mltiplas articulaes entre gnero, corpo e sexualidade que a crescente
visibilizao de novos sujeitos sociais trazia cena. Podemos dizer que esse campo sofreu duas
grandes fraturas que conduziram exploso de sujeitos, temas e abordagens que hoje o
caracteriza. Em relao a uma possvel histria poltico-epistemolgica, esses dois grandes
divisores poderiam ser chamados de a emergncia gay-lsbica, que ocorre entre os anos 1970 e
1980, e a emergncia trans, que situaramos na passagem do milnio. No demais lembrar que
o contexto do primeiro divisor o da configurao de uma linhagem de estudos que tomaram
como objeto principalmente a homossexualidade masculina, sendo simultneo prpria
105
106
230
Vale lembrar que as pesquisas sobre lsbicas nos Brasil comeam a surgir um pouco mais tarde, a partir da virada
dos anos 1980 para 1990 (por exemplo, Portinari, 1989; Muniz, 1992; Heilborn, 2004[1992]). Embora tenham
aumentado nos anos 2000, continuam a ser em menor nmero do que os estudos dedicados a homossexuais
masculinos.
231
mais claramente e os impasses e problemas que colocaria aos pesquisadores ainda informados por
categorias que se prendiam a modelos anteriores de compreenso das relaes entre corpo,
gnero e sexualidade.
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A incluso explcita da no discriminao por orientao sexual em artigos da Constituio Federal vem sendo
demandada desde a sua elaborao em 1988 e hoje tramita no Congresso Nacional uma proposta de emenda da
Constituio nesse sentido e, embora ainda no tenha sido possvel modificar o texto da Constituio Federal,
importante lembrar que consta do Plano Nacional de Direitos Humanos a recomendao para que seja produzida
legislao visando proibir todo tipo de discriminao, incluindo a que se der em razo de orientao sexual. No
mbito do direito criminal, cabe destacar que vem-se caminhando de modo geral na direo da maior
criminalizao da homofobia e da violncia contra minorias sexuais. J h vrios anos est em curso a reforma do
Cdigo Penal que prev, entre outras mudanas importantes, a punio a situaes de discriminao ou preconceito
por orientao sexual e outro tornando crime a rejeio de doadores de sangue pelo mesmo motivo.
Segundo os dados da ABGLT, atualmente temos mais de setenta municpios com algum tipo de lei nesse sentido.
E, no plano estadual, a proibio de discriminao por orientao sexual consta de trs constituies (MT, SE e
PA), havendo legislao especfica em mais cinco estados (RJ, SC; MG, SP, RS), alm do Distrito Federal.
A Constituio de 1988 no incorporou a condenao explicita da discriminao com base na orientao sexual e
definiu o casamento como um contrato estabelecido entre um homem e uma mulher. Porm, se gays, lsbicas,
travestis e transexuais podem ser considerados rfos da Constituio de 1988, o impacto da nova Carta para eles
no tem sido desprezvel, dado o nmero de importantes decises que, baseadas em seu esprito, vm sendo
tomadas por juzes e tribunais (Carrara e Vianna 2008).
232
Trata-se do ISER Instituto Superior de Estudos da Religio, onde o projeto era coordenado por Sean Patrick
Larvie. Contvamos com financiamento da Fundao Heinrich Boll e da Fundao Ford.
Essa iniciativa se desenvolveu no mbito do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos,
implantado no Instituto de Medicina Social com o apoio da Fundao Ford e que tinha com um de seus objetivos
centrais impulsionar o dilogo entre pesquisadores, ativistas e formuladores ou gestores de polticas pblicas.
233
113
De fato esse dilogo foi mediado pela antroploga Regina Facchini, que, ao longo dos anos 2000, articulava sua
atuao profissional uma intensa atividade militante na cidade de So Paulo.
234
questo iria ser recolocada em aplicaes posteriores do questionrio. Mas isso obviamente no
resolvia o problema uma vez que a expresso sexualidade no englobava necessariamente
identificaes de gnero. A dificuldade parecia residir no fato de que, quando o questionrio foi
formulado, os pesquisadores e os militantes no concebiam claramente a possibilidade de existir,
por exemplo, um homem transexual gay, ou seja, algum que, considerado mulher ao nascer,
tivesse posteriormente assumido uma identidade masculina e desejasse sexualmente outros
homens. De fato, no havia ainda se criado uma linguagem mais apropriada para abarcar tais
experincias.
Esses intrincados entrelaamentos entre gnero e sexualidade tambm tornariam, ao longo
da realizao dos surveys, bastante problemtica uma outra varivel: o sexo de quem respondia
ao questionrio. No primeiro deles, no Rio de Janeiro, o sexo do respondente no foi
perguntado, pois se acreditava, por exemplo, que categorias como gay/homossexual, e
lsbica iriam se referir respectivamente a homens e a mulheres. Alm disso, supunha-se que
travestis e transexuais haviam sido identificadas como homens ao nascer, uma vez que, no
campo social e poltico, homens transexuais permaneciam quase inteiramente na sombra, apesar
de j existirem, naquele momento, relatos importantes sobre esse tipo de experincia, como o do
escritor Joo Nery. Mesmo precrios, os dados iniciais revelaram, entretanto, que um nmero
significativo de lsbicas e travestis preferia identificar-se, por exemplo, como gay ou
homossexual.
Como, para uma srie de anlises, todas as mulheres, independente de sua auto-identificao
(se gays, lsbicas, homossexuais ou entendidas), deviam ser agrupadas, era crucial saber o
sexo de quem respondia. Nos dois surveys subseqentes, Rio de Janeiro e Porto Alegre, ficou a
cargo dos entrevistadores anotar o sexo do respondente. Contudo, alm dos problemas ticos
que implicava atribuir um sexo aos sujeitos independentemente de sua opinio, muitos
entrevistadores simplesmente se esqueciam de fazer esse registro. A pesquisa tropeava naquilo
que para muitos pode parecer o mais concreto, visvel e indiscutvel: o corpo. A questo foi ento
reformulada, o que nos fez refletir sobre que significava, em certos contextos, perguntar qual o
sexo de algum. No caso de pessoas que transitavam atravs das categorias de sexo/gnero,
como travestis e transexuais, por exemplo, essa pergunta poderia ter vrias respostas,
dependendo do ponto de suas trajetrias pessoais a que o pesquisador se referia, do modo como se
percebiam ou como eram socialmente percebidas. Frente a isso, a partir do survey realizado em
So Paulo, decidiu-se que a pergunta seria formulada de uma maneira diferente: Com que sexo
voc foi registrado ao nascer?. Por razes bvias, uma questo como essa, colocada a algum que
considere sua masculinidade ou feminilidade como auto-evidentes, continuava a causar
embaraos, mas foi a maneira encontrada para dar conta do problema. Enfim, naquele contexto,
235
uma das variveis menos polmicas em pesquisas quantitativas, o sexo, era uma das mais
complexas.
Assim, como fica evidente no relato acima, a reflexo terica que vinha se adensando a
partir das crticas feminista e queer, problematizando ainda mais a relao antes vista como
unidirecional entre corpo (sexo), sexualidade (orientao sexual) e gnero (identidade), vinculavase a um processo social e poltico no mbito no qual se tornavam cada vez mais evidentes as
mltiplas formas como esses planos podiam se articular, forjando diferentes sujeitos, desejos e
projetos.
As reflexes desenvolvidas apontam para o conjunto de desafios colocados tanto para os
que se dedicam a refletir sobre as relaes entre corpo, gnero e sexualidade, quanto para os que
se dedicam principalmente a lutar pela afirmao de direitos atravs da militncia, pois mostram o
conjunto de mudanas que esse campo vivenciou em um curto perodo de tempo e a rapidez com
que as categorias utilizadas se constroem e se dispersam. Mostram ainda que diferentes estilos de
militncia e de pensamento esto em constante interao, e que o ponto de vista dos mltiplos
atores sociais que viabilizam o trabalho de investigao socioantropolgica e que participam dessa
teia de negociaes e compromissos incorpora-se, de um modo ou de outro, nos fatos que
produzimos, configurando nosso discurso sobre eles.
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