O Que É Justiça III
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O Que É Justiça III
Resumo: A questo da justia constitui um tema clssico da teoria do direito. O presente artigo se prope verificar como tal questo foi tratada nas
obras de dois grandes pensadores do direito no sculo XX: Hans Kelsen e
Niklas Luhmann. O objetivo ser averiguar como os dois autores relacionam direito e justia, para apontarmos, em seguida, que respostas os mesmos conferem pergunta: o direito precisa da justia?
Palavras-chave: Filosofia do Direito. Teoria da Justia. Positivismo Jurdico. Teoria dos Sistemas. Hans Kelsen. Niklas Luhmann.
EL DERECHO NECESITA DE LA JUSTICIA?
REFLEXIONES SOBRE EL TEMA EN KELSEN Y LUHMAN
Resumen: La cuestin de la justicia constituye un tema clsico de la
teora del derecho. El presente articulo se propone analizar como tal
cuestin fue tratada en las obras de dos grandes pensadores del derecho
en el siglo XX: Hans Kelsen y Niklas Luhman. El objetivo ser estudiar
como los dos autores relacionan derecho y justicia, para apuntar, a
continuacin, que respuestas los mismos nos dan a la pregunta: el
derecho necesita de la justicia?
Palabras-llave: Filosofa del Derecho. Teoria de la Justicia. Positivismo
Jurdico. Teora de los Sistemas. Hans Kelsen. Niklas Luhman.
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Introduo
A hiptese central do positivismo jurdico, qual seja, a negativa de
uma coincidncia necessria entre a moral e o Direito, encontra-se claramente estabelecida como tese central nas formulaes kelsenianas. a
tese da separao. Por outro lado, partindo de um paradigma cientfico bastante diverso de Kelsen, tornando problemtica qualquer rotulao
positivista1, Niklas Luhmann opera com a ideia de uma diferenciao funcional-estrutural entre o subsistema jurdico e os demais subsistemas sociais.
Assim, uma pergunta se impe a partir dos dois autores escolhidos para a anlise: o Direito necessita da Justia? Diferenciao funcional
(Luhmann) e separao (Kelsen) autorizam doutrina equivaler o socilogo alemo ao jurista austraco na questo do delicado imbricamento entre
Direito e Justia? Responder a ambos os questionamentos: eis o propsito
do presente ensaio.
1. Justia e Direito em Kelsen
Dentro do estudo dos valores, Kelsen inclui o tema da Justia. Tal
anlise no faz parte da Cincia Jurdica proposta na Teoria Pura do Direito e que teria como princpio metodolgico a descrio das normas jurdicas: o direito positivo. Portanto, na viso kelseniana, o problema da Justia
no constitui objeto da Cincia Jurdica. Pertence ao campo da tica e da
Filosofia, porque o objeto a ser conhecido (normas de justia) no so normas jurdicas. So normas morais.
O juzo de valor segundo o qual uma ordem jurdica justa ou
injusta relativo. No pode servir como caracterstica que distinga o Direito
A teoria do direito de Luhmann , pois, antipositivista, na medida em que leva em considerao tais elementos de justia definidores do direito; mas positivista, ao contrrio, na medida em
que tematiza propriamente estes elementos livres de justia que efetivamente tematiza. In:
HFFE, Otfried. Justia Poltica. Fundamentao de uma filosofia crtica do Direito e do Estado.
Traduo de Ernildo Stein. Petrpolis: Vozes, 1991, p. 143. Essa dicotomia tpica do pensamento de Luhmann, baseado que est na ideia de paradoxo e de seu gerenciamento. Contudo,
pode-se referir no ideia de positivismo e sim de positividade jurdica, essencial para o entendimento da evoluo das sociedades, e, portanto, da complexidade social que influencia o Direito
conexo. Essa ideia j est presente no que alguns autores denominam de primeira fase luhmanniana
a funcionalista. No caso do Direito, a obra especfica para a temtica LUHMANN, Niklas.
Sociologia do Direito I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
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demais, sem respeitar de forma alguma o pluralismo inerente ao ser humano. Logo, tem-se outra norma de carter formal, incapaz de estabelecer um
conceito absoluto de justia4. No por outra razo o tema do laicismo to
importante para uma democracia. Uma sociedade teocrtica e democrtica
ao mesmo tempo constitui uma impossibilidade evidente.
Tm-se, ainda, as normas de justia fundadas no princpio da liberdade e as fundadas no princpio da igualdade. O fazer tudo o que se
deseja geraria um caos social. Para que se viva em comunidade, h uma
reconfigurao: a liberdade deve ser exercida sob a ordem normativa. Essa
concepo de liberdade pressupe o contrato social. Nele a ordem normativa
foi estabelecida devido um acordo das vontades dos que a ela se submetem.
A justia como igualdade no preceitua que todos so iguais, mas que os
homens so faticamente diferentes e que certas desigualdades devem ser
faticamente desconsideradas, por irrelevantes.
Nesse mote, Andityas Matos afirma que o princpio da igualdade
nada mais do que uma consequncia lgica da generalizao das normas
jurdicas, representada na seguinte estrutura: verificado certo pressuposto,
deve-se ter uma consequncia determinada5. Essa generalizao das normas jurdicas nada mais do que uma oposio ao arbtrio do monarca ou
tirano, que diante de idnticas situaes fticas decide de maneira diversa.
Logo, a generalizao um mecanismo, uma tcnica social que visa garantir a previso de aplicao de uma norma jurdica e, consequentemente, a
segurana jurdica:
Conclui-se que a generalidade da norma , em si mesma, uma
viso ainda que formal de justia. o ponto de chegada de um processo
histrico e o ponto de partida de uma normologia. Como opo da civilizao jurdica ocidental, representa uma mundividncia que, buscando afastar-se do arbtrio, aflora na necessidade social e psicolgica de se proporcionar aos jurisdicionados certa segurana jurdica6.
Empreendida a anlise das normas de justia do tipo racional,
MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do direito e justia na obra de Hans Kelsen.
p. 169.
5
MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do direito e justia na obra de Hans Kelsen.
p. 176-180.
6
MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do direito e justia na obra de Hans Kelsen.
p. 180.
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a uma anlise do princpio da igualdade. A justia concebida como igualdade complexa. Luhmann define a igualdade como um conceito formal (uma
diferena), que depende da existncia de outra vertente, a desigualdade: a
igualdade sem desigualdade no tem sentido e vice-versa. Se o igual deve
ser tratado igualmente, o desigual tem que ser tratado como desigual. Tratase, portanto, de um esquema de observao que sugere o desenvolvimento
de normas e preferncias, mas que em si no fixa, em ltima instncia, a
preferncia pela igualdade. (...) S quando a igualdade se transforma de
uma forma em uma norma quando se pode compreender o papel especfico do princpio da igualdade no direito da sociedade moderna. O papel do
princpio formal da igualdade, para Luhmann, unicamente descrever a
autopoiesis do sistema. O salto lgico reside na interpretao da forma como
norma17.
A frmula de contingncia depende de circunstncias histricas e
depende das condies scio-estruturais. O princpio aristotlico de justia
distributiva pressupe uma sociedade estratificada na qual irrefutvel que
os homens se diferenciam por nascimento em livre/no livre. Dessa forma,
a expresso suum cuique adquire sentido18. Luhmann pergunta se pode
haver justia sem sistema (jurdico) e sem indicaes histricas (nas quais
se pode reconhecer o igual e o desigual), para as decises de cada caso. S
se pode falar de justia no sentido de complexidade adequada na tomada de
decises consistentes. O adequado da complexidade resulta da relao do
sistema jurdico com o sistema social.
A complexidade interna, por seu turno, somente responde exigncia de justia enquanto seja compatvel com a consistncia no momento
da tomada de decises19. A justia pode se designar como consistncia da
tomada de deciso. O problema reside na questo de se um caso concreto
se decide de uma maneira justa. Com isso, perde sentido a velha exigncia
da justa medida e da media entre duas reclamaes extremas. A deciso
se baseia na possibilidade de delimitar o caso especfico frente a outros
casos, recorrendo a regras de deciso que, por sua vez, podem considerarse justas quando selecionam consistentemente entre casos iguais e desiguais. Sendo assim, a justia no pode ser concebida como virtude20.
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Consideraes Finais
Como corolrio necessrio da tese kelseniana da separao entre
o Direito e a Moral, h a proposio segundo a qual os sistemas jurdicos
no possuem uma moralidade imanente. Eles podem ser vlidos juridicamente e injustos moralmente ao mesmo tempo (a depender da concepo
de moralidade adotada). Segue-se o que Norbert Hoester chama de tese da
neutralidade: o conceito de direito deve ser definido prescindindo-se de seu
contedo. Desse modo, ocorre estreita separao entre a atribuio de validade jurdica e a formulao de valoraes tico-normativas. No centro do
positivismo jurdico est a tese da neutralidade21.
Em Luhmann, de outro lado, encontra-se uma abordagem da questo da justia dentro da frmula de contingncia. Oferece uma verso mais
acabada de sua teoria da justia, pondo a questo nos seguintes termos: No
obstante, el sistema jurdico no tiene por qu desistir de la idea de justicia.
Lo que se tiene que reconsiderar es tan slo la ubicacin terica de esta
idea.22 O prprio sistema jurdico se auto-observa como justo. Na democracia a questo relevante, face impossibilidade de separar-se a falha
capital do positivismo jurdico a questo da legalidade e da legitimidade.
Como aponta Leonel Severo Rocha, a democracia a possibilidade da
tomada de decises sempre diferentes, inserindo a sociedade no paradoxo
comunicativo da inveno23. A pretenso de justia um tema central para
aferio da legitimidade do sistema jurdico.
Resta evidente que a resposta ao primeiro questionamento (o Direito necessita da Justia?) lanado na introduo (a) no para Kelsen e
(b) sim para o socilogo alemo. Luhmann rechaa a hiptese de neutralidade entre Direito e Justia, uma vez que dentro da sociedade tudo comunicao, e, por conseguinte, existe uma co-irritao entre Direito e Justia
demonstrada pela frmula da contingncia.
Consequentemente, o segundo questionamento negativo. Kelsen
e Luhmann restam diferenciados na questo do imbricamento entre Direito
e Justia. , portanto, um grande erro asseverar que este se assemelha
21
HOESTER, Norbert. Em defensa del positivismo jurdico. Traduo de Ernesto Garzn Valds.
Barcelona: Gedisa, 2000, p.16.
22
LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad.p. 286.
23
ROCHA, Leonel Severo. Trs matriz es da teoria jurdica. In: Anurio do Programa de Psgraduao em Direito da UNISINOS mestrado e doutorado, 1998/99, p. 136.
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Ver a respeito: MARTINEZ, Jess Igncio. El principio de igualdad y la produccin de diferencias em el derecho. In: Anuario de Derechos Humanos. Editora Universidad Complutense de
Madrid, n. 06, 1990, pp. 193-213.
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___. La differenziazione del diritto. Contributi alla sociologa e alla teoria del
diritto. Milo: Il Mulino, 1990.
___. Sociedad y sistema: la ambicin de la teora. Introduo de Ignacio Izuzquiza.
Traduo de Santiago Lpez Petit y Odrote Schmitz. Barcelona: Paids, 1990.
___. Sociologia do Direito I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
___. Sistemas sociales. Lineamentos para uma teora general. Traduo de Silvia
Pappe e Brunhilde Erker. Mxico: Universidad Iberoamericana; Barcelona: Anthropos
Editorial, 1998.
___. El derecho de la sociedad. Traduo de Javier Torres Nafarrate, com a colaborao de Brunhilde Erker, Silvia Pappe e Luis Felipe Segura. Mxico: Herder;
Universidad Iberoamericana, 2005.
MARTINEZ, Jess Igncio. El principio de igualdad y la produccin de diferencias em el derecho. In: Anuario de Derechos Humanos, Editora Universidad
Complutense de Madrid, n. 06, 1990, pp. 193-213.
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redalyc.uamex.mx/redalyc/pdf/101/10102304.pdf Acesso obtido em 15/02/2008.
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e as possibilidades da circularidade. Passo Fundo: UPF, 2005.
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