Mário de Sá-Carneiro - Indícios de Oiro (1937) Seleção
Mário de Sá-Carneiro - Indícios de Oiro (1937) Seleção
Mário de Sá-Carneiro - Indícios de Oiro (1937) Seleção
Salom
Insnia rxa. A luz a virgular-se em mdo,
Luz morta de luar, mais Alma do que a lua...
Ela dana, ela range. A carne, alcool de nua,
Alastra-se pra mim num espasmo de segrdo...
Tudo capricho ao seu redr, em sombras ftuas...
O arma endoideceu, upou-se em cr, quebrou...
Tenho frio... Alabastro!... A minh'Alma parou...
E o seu corpo resvala a projectar esttuas...
Ela chama-me em Iris. Nimba-se a perder-me,
Golfa-me os seios nus, eca-me em quebranto...
Timbres, elmos, punhais... A doida quer morrer-me:
Mordoura-se a chorar - ha sexos no seu pranto...
Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me
Na bca imperial que humanisou um Santo...
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Eu no sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermdio:
Pilar da ponte de tdio
Que vai de mim para o Outro.
(Lisboa, fevereiro de 1914)
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Esta inconstancia de mim prprio em vibrao
que me ha de transpr s zonas intermdias,
E seguirei entre cristais de inquietao,
A retinir, a ondular... Soltas as rdeas,
Meus sonhos, lees de fogo e pasmo domados a tirar
A trre d'ouro que era o carro da minh'Alma,
Transviaro pelo deserto, muribundos de Luar E eu s me lembrarei num baloiar de palma...
Nos osis, depois, ho de se abismar gumes,
A atmosfera ha de ser outra, noutros planos:
As rs ho de coaxar-me em roucos tons humanos
Vomitando a minha carne que comeram entre estrumes...
Apoteose
Mastros quebrados, singro num mar dOuro
Dormindo fgo, incerto, longemente...
Tudo se me igualou num sonho rente,
E em metade de mim hoje s mro...
So tristezas de bronze as que inda choro
Pilastras mortas, marmores ao Poente...
Lagearam-se-me as nsias brancamente
Por claustros falsos onde nunca ro...
Desci de mim. Dobrei o manto dAstro,
Quebrei a taa de cristal e espanto,
Talhei em sombra o Oiro do meu rastro...
Findei... Horas-platina... Olor-brocado...
Luar-nsia... Luz-perdo... Orquideas pranto...
.........................
pantanos de Mim jardim estagnado...
Paris, 28 de Junho de 1914
Distante Melodia...
Num sonho dIris, morto a ouro e brasa,
Vem-me lembranas doutro Tempo azul
Que me oscilava entre vus de tule
Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa.
Ento os meus sentidos eram cres,
Nasciam num jardim as minhas ansias,
Havia na minhalma Outras distancias
Distancias que o segui-las era flres...
Sugesto
As companheiras que no tive,
Sinto-as chorar por mim, veladas,
Ao pr do sol, pelos jardins...
Na sua mgoa azul revive
A minha dr de mos finadas
Sobre setins...
Taciturno
H Ouro marchetado em mim, a pedras raras,
Ouro sinistro em sons de bronzes medievais Joia profunda a minha Alma a luzes caras,
Cibrio triangular de ritos infernais.
No meu mundo interior cerraram-se armaduras,
Capacetes de ferro esmagaram Princesas.
Toda uma estirpe rial de herois d'Outras bravuras
Em mim se despojou dos seus brazes e presas.
Heraldicas-luar sobre mpetos de rubro,
Humilhaes a liz, desforos de brocado;
Bazilicas de tdio, arnezes de crispado,
Insignias de Iluso, trofus de jaspe e Outubro...
Vislumbre
A horas flbeis, outonais Por magoados fins de dia A minha Alma gua fria
Em nforas d'Ouro... entre cristais...
Brbaro
Enroscam-se-lhe ao trono as serpentes doiradas
Que, Csar, mandei vir dos meus viveiros de frica.
Mima a luxria a nua Salom asitica...
Em volta, carne a arder virgens supliciadas...
Mitrado de oiro e lua, em meu trono de esfinges
Dentes rangendo, olhos de insnia e maldio
Os teus coleios vis, nas infmias que finges,
Alastram-se-me em febre e em garras de leo.
Sibilam os rpteis... Rojas-te de joelhos...
Sangue e escorre j da boca profanada...
Como bailas o vcio, torpe, debochada
Densos sabbats de cio teus frenesis vermelhos...
Mas ergues-te num espasmo e s serpentes domas
Dando-lhes a trincar teu sexo nu, aberto...
As tranas desprendeste... O teu cabelo, incerto,
Inflama agora um halo a crispaes e aromas...
Embalde mando arder as mirras consagradas:
O ar apodreceu da tua perverso...
Tenho medo de ti num calafrio de espadas
A minha carne soa a bronzes de priso...
Arqueia-me o delrio e sufoco, esbracejo...
A luz enrijeceu zebrada em planos de ao...
A sangue se virgula e se desdobra o espao...
Tudo loucura j quanto em redor alvejo!...
Trao o manto e, num salto, entre uma luz que corta,
Caio sobre a maldita... Apunhalo-a em estertor..
.................................................
ngulo
Aonde irei neste sem-fim perdido,
Neste mar oco de certezas mortas?
Fingidas, afinal, todas as portas
Que no dique julguei ter construdo...
Barcaas dos meus mpetos tigrados,
Que oceano vos dormiram de Segredo?
Partiste-vos, transportes encantados,
De embate, em alma ao roxo, a que rochedo?...
nau de festa, ruiva de aventura
Onde, em Champanhe, a minha nsia ia,
Quebraste-vos tambm, ou porventura,
Fundeaste a Oiro em portos de alquimia?...
.....................................................................
Chegaram baia os galees
Com as sete Princesas que morreram.
Regatas de luar no se correram...
As bandeiras velaram-se, oraes...
Detive-me na ponte, debruado.
Mas a ponte era falsa e derradeira.
Segui no cais. O cais era abaulado,
Cais fingido sem mar sua beira...
Por sobre o que Eu no sou h grandes pontes
Que um outro, s metade, quer passar
Em miragens de falsos horizontes
Um outro que eu no posso acorrentar...
Barcelona, setembro de 1914
Atapetemos a vida
Contra ns e contra o mundo.
Desamos panos de fundo
A cada hora vivida.
Desfiles, danas embora
Mal sejam uma iluso...
Cenrios de mutao
Pela minha vida fora!
Quero ser Eu plenamente:
Eu, o possesso do Pasmo.
Todo o meu entusiasmo,
Ah! que seja o meu Oriente!
O grande doido, o varrido,
O perdulrio do Instante
O amante sem amante,
Ora amado ora trado ...
Lanar as barcas ao Mar
De nvoa, em rumo de incerto ...
Pra mim o longe mais perto
Do que o presente lugar.
... E as minhas unhas polidas
Idia de olhos pintados
Meus sentidos maquilados
A tintas desconhecidas
Mistrio duma incerteza
Que nunca se h-de fixar...
Sonhador em frente ao mar
Duma olvidada riqueza...
Num programa de teatro
Suceda-se a minha vida:
Escada de Oiro descida
Aos pinotes, quatro a quatro!...
3
Embora num funeral
Desfraldemos as bandeiras:
S as Cores so verdadeiras
Siga sempre o festival!
Quermesse eia! e rudo!
Loua quebrada! Tropel!
(Defronte do carrossel,
Eu, em ternura esquecido...)
Fitas de cor, vozearia
Os automveis repletos:
Seus chauffeurs os meus afetos
Com librs de fantasia!
Ser bom... Gostaria tanto
7
Meu alvoroo de oiro e lua
Tinha por fim que transbordar...
Caiu-me a Alma ao meio da rua,
E no a posso ir apanhar!
Paris, julho e agosto de 1915
Cinco Horas
Minha mesa no Caf,
Quero-lhe tanto... A garrida
Toda de pedra brunida
Que linda e fresca !
Um sifo verde no meio
E, ao seu lado, a fosforeira
Diante ao meu copo cheio
Duma bebida ligeira.
(Eu bani sempre os licores
Que acho pouco ornamentais:
Os xaropes tm cores
Mais vivas e mais brutais.)
Sobre ela posso escrever
Os meu versos prateados,
Com estranheza dos criados
Que me olham sem perceber...
Sobre ela descanso os braos
Numa atitude alheada,
Buscando pelo ar os traos
Da minha vida passada.
Ou acendendo cigarros,
Pois h um ano que fumo
Imaginrio presumo
Os meus enredos bizarros.
(E se acaso em minha frente
Uma linda mulher brilha,
O fumo da cigarrilha
Vai beij-la, claramente)
Um novo fregus que entra
novo actor no tablado,
Que o meu olhar fatigado
Nele outro enredo concentra.
o carmim daquela boca
Que ao fundo descubro, triste,
Na minha idia persiste
E nunca mais se desloca.
Cinge tais futilidades
A minha recordao,
E destes vislumbres so
As minhas maiores saudades...
(Que histria de Oiro to bela
Na minha vida abortou:
Eu fui heri de novela
Que autor nenhum empregou...)
Nos cafs espero a vida
Que nunca vem ter comigo:
No me faz nenhum castigo,
Que o tempo passa em corrida.
Passar tempo o meu fito,
Ideal que s me resta:
Pra mim no h melhor festa,
Nem mais nada acho bonito.
Cafs da minha preguia,
Sois hoje que galardo!
Todo o meu campo de aco
E toda minha cobia.
Paris, setembro de 1915
pice
O raio do sol da tarde
Que uma janela perdida
Refletiu
Num instante indiferente
Arde,
Numa lembrana esvada,
minha memria de hoje
Subitamente...
Seu efmero arrepio
Ziguezagueia, ondula, foge,
Pela minha retentiva...
E no poder adivinhar
Porque mistrio se me evoca
Esta idia fugitiva,
To dbil que mal me toca!...
Ah, no sei porqu, mas certamente
Aquele raio cadente
Alguma coisa foi na minha sorte
Que a sua projeo atravessou...
Tanto segredo no destino de uma vida...
como a idia de Norte,
Preconcebida,
Que sempre me acompanhou...
Paris, agosto de 1915