O Leviata Adventista Edegard Silva Pereira
O Leviata Adventista Edegard Silva Pereira
O Leviata Adventista Edegard Silva Pereira
Por
Edegard Silva Pereira
1
Edegard Silva Pereira concluiu o ensino médio no Instituto
Adventista do Uruguai. Formou-se em Teologia no Colégio
Adventista do Prata, Argentina. Em 1965 deixou seu país, o
Uruguai, para exercer a atividade pastoral no Brasil. Foi pastor
nos distritos de Castanhal, PA; Macapá, AP; Presidente
Prudente, SP; Freguesia do O, Vila Matilde, Casa Verde,
Ipiranga e Brooklin Paulista na Cidade de São Paulo. Fez
mestrados em Ciências da Religião e em Comunicação Social na
Universidade Metodista de São Paulo. Poucas pessoas têm se
dedicado, como ele, ao estudo da organização da Igreja
Adventista do Sétimo Dia. Este trabalho é o resultado de mais
de três décadas de experiência, reflexão e pesquisa.
2
ÍNDICE
Prefácio ................................................................................................... 4
Introdução ............................................................................................... 6
1. Apresentação do Monstro..................................................................... 8
2. A Astúcia do Leviatã........................................................................... 16
3. O Mito do Modelo Divino................................................................... 25
4. Exame da Função Administrativa........................................................ 34
5. Exame do Processo e do Comportamento Administrativos................. 49
Epílogo..................................................................................................... 68
3
PREFÁCIO
4
trabalho original. Suprimi as notas de rodapé e escolhi outro título geral.
Acrescentei os capítulos “Apresentação do Monstro” e “O Mito do Modelo
Divino”, mudei os títulos dos capítulos e reescrevi parte do texto.
Espero que o leitor encontre nestas páginas uma compreensão do que
realmente é a organização da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
5
INTRODUÇÃO
6
Meu objetivo aqui é mostrar o seguinte: 1) a forma de governo da
IASD foi constituída usando o modelo de organização oferecido pela
sociedade norte-americana —uma versão moderna do Leviatã—, porém
mantendo certas particularidades; 2) é uma forma mista de governo
eclesiástico, composta por burocracia e representação política.
A análise da forma de governo da IASD tem como procedimento o
seguinte: num primeiro momento, se concentra no modelo real oferecido
pela sociedade norte-americana, e no modelo imaginário com o qual a IASD
procura justificar a sua forma de governo. Num segundo momento, focaliza
a função administrativa a fim de descobrir as caraterísticas que a identificam
com a burocracia e, depois, focaliza o processo e o comportamento
administrativos para encontrar a relação que existe entre burocracia e
representação política.
Minha intenção é convidar o leitor a abandonar algumas “evidências”,
a desfazer-se de deslocamentos conceituais que geram confusões e
equívocos. Não tenho a preocupação de agradar ou desagradar a quem quer
que seja. Em certos momentos, será preciso ferir, de passagem, alguma
forma de pensar, ou tomar a liberdade de desmentir outra, porém sem
intenção polêmica.
A organização da IASD é compreendida só quando é confrontada com
seu modelo real, e quando é vista como uma questão política e social.
Aqueles que a enfrentam como sendo apenas um fenômeno religioso e a
confrontam unicamente com o modelo imaginário apresentado pelo Manual
da IASD, jamais conseguirão entendê-la.
O título deste livro foi inspirado em Leviatã, obra clássica de Thomas
Hobbes. Esse autor usa a imagem do Leviatã para apresentar, genialmente, a
idéia do poder constitutivo da sociedade. As páginas que seguem partem
dessa imagem para caracterizar a forma de governo da IASD.
Portanto, minha primeira tarefa tem que ser esta: explicar o que
significa a imagem do Leviatã para Hobbes e justificar minha apropriação
dessa imagem para caracterizar a organização da IASD.
7
Capítulo 1
APRESENTAÇÃO DO MONSTRO
DEFINIÇÃO DO MONSTRO
8
resumo enriquecido com contribuições de outros autores de renome e que já
assinala a identidade da forma de governo da IASD com o monstro.
Segundo Hobbes, esse gigantesco autômato foi criado para unir a
multidão de indivíduos isolados em um corpo político. No capítulo 17 de
Leviatã, a criação do monstro coincide com a constituição da multidão em
um corpo político. Hobbes explica como se constitui o corpo político: “É
como se cada homem dissesse a cada homem: ‘Cedo e transfiro meu direito
de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de
homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de
maneira semelhante todas as ações’. Feito isto, à multidão assim unida numa
só pessoa se chama República, em latim civitas. É esta a geração daquele
grande Leviatã”.
Ou seja, o corpo político existe quando as vontades de todos são
depostas numa única vontade, e haja um depositário da personalidade
comum. “O depositário desta personalidade —são palavras de Hobbes— é
chamado soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os
restantes são súditos.” E acrescenta: este soberano pode ser “um único
homem ou uma assembléia cuja vontade é tida e considerada como vontade
de cada homem em particular”. Portanto, a essência do Estado é ser ele
soberano. E o Leviatã é a imagem do Estado que exerce o poder soberano.
Primeira identidade entre a forma de governo da IASD e o
Leviatã – Segundo o Manual da IASD, os adventistas criaram sua
gigantesca máquina administrativa com o mesmo propósito: coordenar e
unificar os indivíduos que professam o adventismo mundo afora em um
único corpo. O soberano dos adventistas, o depositário da vontade comum, é
a Assembléia da Associação Geral ou a Comissão Executiva da Associação
Geral entre as assembléias. É para esses grupos de homens que os
adventistas transferiram seu direito de governar a si mesmos em assuntos
religiosos. (Examinaremos e comprovaremos esta e as outras identidades
aqui mencionadas nos capítulos seguintes).
9
funcionários substitui o governo dos nobres. Em busca de bases ideológicas
que conferissem legitimidade ao poder absoluto, os monarcas faziam derivar
diretamente de Deus sua autoridade —a noção de “direito divino”— sobre
os homens e as coisas incluídas nos limites de seus domínios.
Mas é o conceito de soberania que provoca uma profunda mutação no
pensar o político e faz surgir o Leviatã; conceito que nada mais tem em
comum com o da realeza. O poder soberano não caiu do céu. Surge como a
nova instância artificial que coordena e unifica os indivíduos num corpo
único. Com essa nova instância —segundo Alexis de Tocqueville em O
Antigo Regime e a Revolução—, o Estado “assume outras prerrogativas,
ocupa outro lugar, afeiçoa-se a outro espírito, inspira outros sentimentos”. O
povo já não é mais uma mera congregação geograficamente determinada e
organizada de acordo com a pluralidade dos poderes locais, como era no
estágio anterior.
A forma de governo da IASD está dentro desse novo espírito do poder
soberano. Nada tem a ver com as formas tradicionais de governo
eclesiástico. Substituiu o governo dos clérigos pela hierarquia dos
funcionários (os níveis de administração). A Associação Geral exerce um
poder centralizado e burocratizado que está muito acima dos poderes das
igrejas locais, das Associações e das Uniões. Através das Divisões, expande
seu poder por todas as partes.
O conceito de soberania leva a um deslocamento do conceito de
poder: “poder” é o cimento do corpo político. Tal conceito Hobbes o faz
derivar do “estado de natureza”, situação hipotética em que os homens
viveriam se não existisse a sociedade e o Estado. No estado de natureza,
cada indivíduo procuraria satisfazer suas aspirações: os outros são
concorrentes que precisam ser eliminados ou subjugados. Não existiria
propriedade nem lei, mas a guerra constante que essa situação provoca não
só impede qualquer desenvolvimento (agrícola, industrial e científico),
como também provoca temor constante de morte. O que compele o homem
a sair desse caos político. E a razão lhe sugere os meios de manter um
entendimento recíproco, de conviver. Comandados pela razão, todos
concordam em renunciar ao direito ilimitado (durante o estado de natureza)
sobre todas as coisas. Contudo, o acordo não é suficiente para garantir a
tranqüilidade: é preciso um poder irresistível, com força de repressão, capaz
de atemorizar os homens e fazê-los seguir suas determinações. Esse poder,
constituído graças a um pacto voluntário dos homens, é o Estado, que, por
isso mesmo, segundo Hobbes, representa todos os homens.
Em Paz Perpétua, Kant também faz derivar o conceito de soberania
da natureza humana. Coloca o problema da constituição de um Estado da
maneira seguinte:
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passionais, eles constituam obstáculo uns aos outros, de modo que, na
vida pública, seu comportamento seja como se estas más disposições
não existissem.
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Relações de poder já existiam muito antes do surgimento do Leviatã e
continuarão existindo até o fim dos séculos. As melhores definições de
poder são as de Max Weber. Para ele, poder é “a probabilidade de que uma
ordem com um determinado conteúdo específico seja seguida por um dado
grupo de pessoas”. E poder enquanto fator sócio-político “significa toda
oportunidade de impor a sua própria vontade, no interior de uma relação
social, até mesmo contra resistência, pouco importando em que repouse tal
oportunidade”.
Segundo o conceito weberiano, o poder se explicita de uma maneira
muito precisa: sob o modo da ordem dirigida a alguém o a um grupo de
pessoas que, presume-se, devem cumpri-la. É o que Max Weber chama de
Herrschaft, termo que Raymond Aron traduziu como dominação,
conservando a raiz alemã Herr (= dominus = senhor).
É importante que os seguintes aspectos fiquem claros: 1) Que poder é
o mesmo que coerção, dominação, arbítrio, enfim, o uso da força, da
violência. 2) Que no Estado moderno, o uso da força está fundado
geralmente no direito, e serve —em tese— para garantir a segurança externa
e a concórdia interna de unidades políticas particulares. 3) Que o poder
possui um caráter dissimétrico, não igualitário, hierárquico. Para que uns
tenham poder, os demais não podem tê-lo. Daí que o poder seja exercido
sempre por uma elite que domine, enquanto os demais são excluídos do
poder.
Ao que já foi dito sobre o poder soberano, acrescentamos o seguinte: é
um poder comum capaz de agregar indivíduos iguais; iguais em sua
submissão. É um poder que está muito acima de qualquer outro poder dentro
de uma unidade política particular. Possui um caráter inelutável: é um poder
assentado em si mesmo e independente das inclinações e das virtudes
humanas. Trata-se de um poder perpétuo (sem solução de continuidade) e
incontestável (não está submetido a nenhum outro poder).
Para constituir a sociedade como uma comunidade orgânica, o
soberano precisa submeter todas as vontades à sua própria vontade. Para tal,
ele se encarrega de estipular normas e valores que podem ser manipulados
juridicamente, determinar os direitos e deveres de cada um, e usar a força
repressiva para evitar qualquer deslize das engrenagens da máquina
administrativa. E agrega os indivíduos mediante a matriz ordem/obediência.
Daí que há muito tempo ser cidadão é igual a ser obediente.
Terceira identidade entre a forma de governo da IASD e o Leviatã
– Ser membro da IASD é igual a ser obediente ao poder soberano exercido
pela Associação Geral. Este poder comum, onipresente —se expande em
todas as partes através das Divisões—, controla, manipula e disciplina os
indivíduos a fim de criar adeptos obedientes, o que faz atribuindo-se o
monopólio de estabelecer normas, determinar os direitos e deveres de cada
um e usar uma forma da força repressiva para evitar deslizes: a temível
“disciplina eclesiástica”.
Convém notar que poder e poder soberano nada tem a ver com o
“poder” concedido pelo Espírito Santo aos cristãos. Paulo o define como
12
“capacidade” e aparece nas comunidades cristãs como diversos “dons” que
capacitam os receptores para contribuir com a edificação da Igreja. Em parte
alguma do Novo Testamento se afirma que os dirigentes da Igreja
receberiam poder do Céu para dominar seus irmãos na fé. O poder (a
dominação) que as autoridades eclesiásticas exercem é o poder do leviatã
adventista, e nada tem a ver com a capacidade que o Espírito Santo outorga
para “edificar” a Igreja.
Há tanto tempo o poder é reconhecido (por muitos como uma
fatalidade) que nos força a submeter-nos a ele. Na sociedade civil, os
cidadãos aceitam ser confiados ao soberano em troca da sua segurança, e da
certeza de que ele dará condições de todos portarem-se como sujeitos
racionais. O preço a pagar pela utilidade do poder é a cumplicidade
inevitável entre o cidadão e o soberano que existe na relação de poder
estabelecida entre ambos: o cidadão como dominado/protegido e o soberano
como dominador/protetor.
Na IASD, a cumplicidade dos membros com o poder eclesiástico tem
outros motivos: os membros aceitam ser confiados ao poder eclesiástico em
troca de sua salvação e da certeza de que ele dará condições para que todos
vivam a vida cristã. Mas os detentores do poder eclesiástico pensam de
outra maneira: a máquina administrativa é a condição para a conservação e o
funcionamento da denominação. E concluem: se suprimimos a máquina
administrativa, suprimiremos junto a denominação. Para evitar isto e outros
problemas relacionados com o estabelecimento e a manutenção da ordem
interna, os administradores da IASD tendem a tornarem-se dominadores, a
cuidar mais da máquina administrativa que das pessoas.
Os efeitos da referida submissão podem ser desagradáveis, devido ao
fato de que o poder, tanto no Estado quanto na Igreja, se tenha
burocratizado, tecnicizado e sofisticado a ponto de tornar os indivíduos
obedientes malgrado seu. Logo, os indivíduos podem sentir-se tentados a
não consentir com o poder soberano. Mas todos sabemos que atentar contra
esse poder significa colocar-se numa situação de perigo. Sua violência é tão
monstruosa que poucos ousam revoltar-se.
O LEVIATÃ DOMESTICADOR
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exemplo as latino-americanas, com raras exceções), o Estado domina
descaradamente os cidadãos, em alguns países de forma brutal.
Enquanto o Estado totalitário integra o indivíduo pela dominação
aberta, esmigalhando-o com a máquina administrativa, o Estado
democrático o integra fabricando-o pela domesticação, mediante suas
pedagogias disciplinares (ensino, exército, polícia, justiça, igrejas, mídia...).
As obras de Noam Chomsky mostram como o sistema de propaganda dos
centros de poder usam a mídia para domesticar o pensamento, fabricar
consensos e ilusões necessárias para a gestão social. Mas a domesticação
não é um dado humano. Refere-se ao esforço em que o homem “civiliza”
animais.
Quarta identidade entre a forma de governo da IASD e o Leviatã
– A IASD cria e domestica seus membros e obreiros mediante a socialização
psicológica e por suas pedagogias disciplinares — propaganda
denominacional, escola sabatina, instituições educacionais, processos de
treinamento, entre outras.
O que é esse “indivíduo” criado pelo Leviatã, que o considera como
um animal (ou fera) que deve ser domesticado? O indivíduo “melhorado”
pela domesticação é uma caricatura de ser humano, uma criatura
enfraquecida e menos danosa por estar aprisionada entre forças apavorantes.
Sua vida está empobrecida e se vê impedido de seguir seu próprio caminho,
de ser uma pessoa completa. E o indivíduo “melhorado” pela domesticação
da IASD é uma caricatura do que deveria ser o cristão. A situação deste
último é pior que a do cidadão, pois foi submetido a uma dupla
domesticação — a do Estado e a da IASD.
Alexis de Tocqueville, na conclusão de sua obra A democracia na
América (1835-1840) consegue antever como seria o poder e como seriam
os “indivíduos” em nosso tempo:
Após ter assim tomado em suas mãos poderosas cada indivíduo e após
ter-lhe dado a forma que bem quis, o soberano estende os braços sobre
toda a sociedade; cobre-lhe a superfície com uma rede de pequenas
regras complicadas, minuciosas, uniformes, através das quais os
espíritos mais originais e as almas mais vigorosas não conseguiriam
aparecer para sobressair na massa; não dobra as vontades, amolece-as,
inclina-as e as dirige; raramente força a agir, mas opõe-se
freqüentemente à ação; não destrói, impede o nascimento; não
tiraniza, atrapalha, comprime, enerva, arrefece, embota, reduz, enfim,
cada nação a nada mais ser que uma manada de animais tímidos e
industriosos, cujo pastor é o governo.
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cortês e benevolente, na surdina desenvolvem sua capacidade de violência,
de coerção.
O Leviatã —o poder irresistível que cria e manipula o cidadão— é a
condição sine qua non para haver sociedade, comunidade política. Ele é a
vontade comum à qual devem submeter-se todas as vontades. Sem seu poder
soberano ninguém teria a confiança necessária para sentir-se membro de
uma sociedade.
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Capítulo 2
A ASTÚCIA DO LEVIATÃ
ORIGENS DA IASD
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continuou anunciando o regresso de Cristo sem marcar data. Desse grupo
participavam Tiago White, que mais tarde se tornou o primeiro presidente da
IASD, e sua esposa, Ellen G. White, que se tornaria a líder carismática da
IASD, devido a que se lhe atribui possuir o “dom de profecia”.
Os primeiros passos na organização das congregações locais foi dado
em 1861, em Michigan. A organização da administração geral aconteceu em
1863, e recebeu o nome de Associação Geral. Depois a máquina de governo
da IASD se desenvolveu paulatinamente até atingir o ponto no qual se
encontra na atualidade.
O fato da organização da IASD ter adotado o sistema representativo
do tipo presidencialista (em vez de “bispos”, é dirigida por “presidentes”),
escolher as autoridades eclesiásticas mediante eleições, ter um quadro de
funcionários subalternos —os “departamentais”— que, à semelhança dos
ministros de Estado, auxiliam o presidente executando deveres oficiais
específicos, já indica que é uma cópia do modelo oferecido pela sociedade
norte-americana. (Sobre as doutrinas políticas e sociais norte-americanas,
com as quais a IASD está em sintonia, ver Wright Mills, A Elite do Poder;
Talcott Parsons, The Social System e o artigo “On de Concept of Political
Power” in Politics and Social Structure).
Mas, o Manual da IASD ignora o modelo real oferecido pela
sociedade norte-americana e, em sua versão teísta da organização, apresenta
um modelo ideal, com o qual pretende passar a idéia de que a forma de
governo da IASD caiu do céu.
Isso fica claro examinando as bases religiosas e metafísicas dessa
versão teísta da organização, aparentada com a versão teísta de Rousseau.
OS FUNDAMENTOS
17
OS FUNDAMENTOS BÍBLICOS
Assim como não pode haver um corpo humano vivo e ativo sem que
seus membros estejam organicamente unidos e funcionem juntos sob
um controle central, não pode haver uma Igreja viva que cresça e
prospere sem que seus membros estejam organizados num corpo
unido, e todos eles desempenhem os deveres e as funções confiadas
por Deus, sob a direção de uma autoridade divinamente constituída.
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Note-se a semelhança destas inferências com as expressões usadas por
Hobbes para apresentar o Leviatã. Pelo que já foi visto no capítulo anterior,
fica claro que o Manual da IASD segue pelo caminho aberto por Hobbes,
trilhado por Kant e os teórico do Iluminismo.
Porém, sua intenção parece não ser outra senão defender a
organização num sentido genérico. Não tem nenhuma preocupação em
justificar o que é de fato a forma de governo da IASD. E não poderia ser de
outra maneira, pois burocracia e representação política são métodos
administrativos impossíveis de se justificar pela Bíblia. O que o Manual da
IASD faz é substituir a justificação da forma de governo eclesiástico pela
racionalização teórica.
O método que usa é bem conhecido nos centros do poder, e que Jean-
François Revel lembra em seu libro O Conhecimento Inútil nos seguintes
termos: “os dirigentes e a imprensa do Estado enganam a sociedade; mas os
governos não conduzem sua política segundo suas próprias mentiras. Eles
estão diante de outros documentos”. É isso mesmo o que vemos nos dois
capítulos mencionados do Manual da IASD. Os argumentos parecem estar
calçados na Bíblia, mas os deslocamentos conceituais em relação a essa
fonte indicam que os dirigentes seguem outros documentos.
19
12.4-6). Os discípulos estão unidos entre si porque ELE é o único que
atua através deles, e não através de uma associação de serviço que
organizam. [Atenção para esta última frase]. Na pesquisa afirmou-se
seguidas vezes que Paulo estivesse partindo do mito gnóstico sobre o
homem primitivo. O pensamento de Paulo, porém, tem sua origem em
sua compreensão da Ceia do Senhor, como mostra 1 Co 10.17 (cf §
40, II). Na Ceia, Cristo oferece seu próprio corpo, sua pessoa,
tornando-se assim ativo no presente nos membros da Igreja. Dessa
forma ele os transforma em seu soma [‘corpo’ em grego], ou seja,
numa ‘pessoa global’, no organismo de membros atuantes, na Igreja
como seu corpo.
Mas, seja como for, uma coisa é clara: a Igreja como corpo de Cristo
não é mera sociedade de homens. Partindo de pressupostos
sociológicos não é possível compreender o que significa e quer
significar a ‘assembléia de Deus em Cristo’. O ponto decisivo é a
comunhão com Cristo. (“Igreja”, in Gerhard Kittel, editor, A Igreja no
Novo Testamento, São Paulo, ASTE, 1965, pág. 29).
20
mero exponente del gobierno proprio de Cristo. Mas Jesucristo
gobierna en sua palabra mediante el Espíritu Santo, de manera que el
gobierno eclelsiástico es idéntico a las Sagradas Escrituras, pues éstas
dan testimonio de Cristo. Por consiguiente, la Iglesia se hallará de
continuo ocupada con la exégesis y aplicación de las Escrituras. Si la
Biblia se convierte en un libro muerto, com su cruz sobre la tapa, y
cantos dorados, es que está dormitando el gobierno eclesiástico de
Jesucristo; y la Iglesia dejando de ser, entonces, una, santa y universal,
para dar lugar a la amenaza de que irrumpa en ella lo profano y
disgregante. (Bosquejo de Dogmática, Buenos Aires, La Aurora &
México, Casa Unida de Publicaciones, 1954, págs. 231 e 232).
21
forma de governo —se é que o tinha— da igreja apostólica? Qual é o
sentido e a função dos ministérios carismáticos? Qual é a relação entre esses
ministérios e a organização centralizada? Qual é a relação entre unificação
em Cristo e unificação mediante uma máquina administrativa? Quais são os
princípios divinos que fundamentam a organização eclesiástica centralizada,
o sistema representativo? Questões de peso como essas precisam ser
explicadas.
OS FUNDAMENTOS EXTRA-BÍBLICOS
22
A conclusão do raciocínio é esta: “A ordem é a lei do Céu, e deve ser a
lei do povo de Deus na Terra”. Portanto, a Igreja deve ser “uma contínua
representação de outra [realidade], mesmo do mundo eterno, de leis que são
mais elevadas que as terrestres”. Ou seja, a Igreja deve refletir a ordem e o
sistema divinos. Essa versão teísta aponta para o seguinte: a essência da
ordem é divina. Em certo sentido, adota o conceito de poder transcendental
da monarquias dos séculos XVII e XVIII.
O escopo desse raciocínio formulado com conceitos religiosos e
metafísicos é sacralizar a organização em sentido genérico, e não justificar o
que realmente é a organização adventista. Limita-se a declarar tais conceitos
sem demonstrá-los. Aborda a questão de maneira ingênua, isenta de senso
crítico. Não diz como é o sistema de ordem do Céu, nem quem foi lá para
saber como é esse sistema. Não especifica como era a forma de governo do
antigo Israel nem o da Igreja do Novo Testamento. E não mostra a relação
que tudo isso tem com centralização, burocracia, hierarquia e representação
política.
Sobre a organização de Israel, o Manual da IASD limita-se a
transcrever um trecho de Ellen G. White, no qual esta autora menciona a
distribuição da chefia feita por Moisés. Não explica como uma organização
tribal e a distribuição da chefia no âmbito militar podem servir de exemplo
para uma organização eclesiástica moderna. Sabemos que o antigo Israel
mudou várias vezes de forma de governo. No período pré-monárquico era
uma confederação igualitária de tribos. (Amplamente estudada por Norman
K. Gottwald em The Tribes os Yahweh. A sociology of the religion of
liberated Israel, 1250-1050. B. C. E. Orbis Books, Maryknol, Nova York,
1979). Depois adotou o regime monárquico. E, no período pós-exílico, criou
o sistema baseado no Sinédrio. Qual desses sistemas de ordem adotados por
Israel está de acordo com o suposto modelo divino? Por quê?
Sabemos também que a Igreja apostólica, à qual se refere o Novo
Testamento, tinha uma forma dualista: a judaico-cristã de Jerusalém e a
gentílico-cristã das comunidades fundadas por Paulo; que estas duas formas
tinham relação com o sistema da Sinagoga; e que, após a destruição de
Jerusalém pelo romanos, sobreviveu apenas a forma gentílico-cristã. Ao
fundarem a Igreja, os apóstolos a organizaram usando como modelo a
Sinagoga, dirigida por um conselho de “anciãos”. E a Sinagoga, pelo menos
a daquele tempo, não tem nada a ver com centralização, burocracia,
hierarquia e representação política. Qual dessas versões serve como modelo,
a judaico-cristã ou a gentílico-cristã? (Ver Jean-Louis Leuba, Institución y
Acontecimiento, Salamanca, Sígueme, 1969, o capítulo V, “El dualismo
eclesiástico”. Também Karl Barth, “La Iglesia, Congregación Viviente de
Jesucristo, el Señor Viviente”, in ISEDET, Cuadernos Teológicos, Tomo
XII, número 3, Julio/Septiembre de 1963, Buenos Aires, La Aurora, págs.
153 a 161. E Norberto Bertón, “La Estructura de la Congregación en el
Nuevo Testamento”, in ISEDET, Idem, págs. 162 a 190).
Deslocamentos conceituais e omissões como os mencionados até aqui,
não são exclusividade dos adventistas. São usados por outras igrejas para
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justificar suas respectivas organizações de dominação. A Igreja Católica, por
exemplo, inventou o primado de Pedro e a sucessão apostólica para
justificar sua organização, que é uma cópia da estrutura de dominação do
Império Romano. Segundo 1 Cor. 3:11, a Igreja foi edificada sobre Jesus. Os
apóstolos são o fundamento porque transmitem o testemunho primitivo a
respeito de Jesus. Eles são o fundamento da Igreja e não base de uma
seqüência de dignatários eclesiásticos. Compreendido dessa maneira correta,
o dito de Mat. 16:18 que se acha inscrito na parte interna da cúpula da
catedral de São Pedro em Roma, refuta a pretensão do papado, pois ele
designa a Pedro da rocha sobre a qual está fundada a Igreja, e não a sucessão
episcopal romana. O dito afirma de Pedro o que foi atribuído a todos os
apóstolos, conforme Efe. 2:20 e Apoc. 21:14. O Manual da IASD não age
diferente da Igreja Católica. Comete um grave deslocamento conceitual
quando deduz uma organização de dominação de textos bíblicos.
Parece estar claro que o escopo da versão teísta da organização
adventista é ocultar o fato de que a estrutura da IASD tem relação com a
estrutura da sociedade norte-americana, apresentando-a como tendo relação
com a “ordem divina” encontrada na organização de Israel, da Igreja
primitiva e no Universo.
De onde vem esses conceitos religiosos e metafísicos da versão teísta
da organização apresentada pelo Manual da IASD? A resposta a esta
questão é dada no capítulo seguinte.
24
Capítulo 3
O MITO DO MODELO DIVINO
25
A FUNÇÃO DO MITO
Mito e poder
O simbolismo mítico conduz também a uma objetivação de
sentimentos sobre as relações de poder. Os deuses dos povos antigos eram
personificações das forças da natureza e das forças humanas, sobretudo da
força da coesão social. Os panteões politeístas da religião cananéia, egípcia,
mesopotâmica, grega e romana (parte importante do mundo em que foi
escrita a Bíblia), eram representações simbólicas das relações de poder
estabelecidas pela simbiose entre religião e política.
Nas sociedades antigas, cada uma de acordo com seus mitos, o rei
tinha uma relação íntima com a divindade, como seu lugar-tenente. Os
deuses são os "proprietários" do mundo e do cosmo, e o rei os representa.
Conseqüentemente, o rei é o senhor absoluto de sua terra e sua palavra é
definitiva. Os mitos sociais faziam cada povo ver em seus deuses nacionais
a deificação de si mesmo em sua unidade como corpo social.
Está claro que esse outro mundo que serve como modelo não existe de
fato. Ele é uma representação simbólica da forma de vida social e política
dos seres humanos. Não é o mundo divino, e sim a divinização da
representação simbólica da relações de poder estabelecidas na sociedade
humana.
A necessidade do mito é também explicada pelo desejo de dominar
que faz parte do homem. Porém, este desejo encontra um obstáculo: a lei de
natureza que leva a todo ser humano a reconhecer os outros como seus
26
iguais. Então, o homem dominador recorre ao mito a fim de criar,
artificialmente, sua superioridade com relação aos outros, fazendo seu poder
derivar de um suposto mundo divino.
No passado, as elites religiosas e as elites governamentais falavam ao
povo através dos mitos. Diziam: “Nosso poder vem dos deuses. A
organização de nossa sociedade segue o modelo divino. Os deuses querem
que assim seja”. O mesmo acontece com a versão teísta da organização
apresentada pelo Manual da IASD. O modelo divino que usa como
referência é uma representação simbólica da máquina administrativa da
IASD. Uma maneira da elite dominante adventista dizer: “Nossa forma de
governo está de acordo com o modelo divino. Deus quer que ela seja
assim”.
Mas tal versão teísta não está calçada diretamente nos mitos antigos, e
sim na forma que lhes foi dada pelo racionalismo cristão medieval.
27
mundo passou a ser visto como um conjunto, uma unidade, um objeto
imenso à disposição do homem. O que transforma o desejo de dominar num
desejo cosmicamente ampliado. No século XVII começa a se armar a
investida decisiva contra a dicotomia do mundo com os primeiros surtos da
filosofia e da ciência modernas.
Mas é a revolução burguesa que cria condições para que a dicotomia
entre numa crise radical e muito violenta. O projeto burguês quer abolir os
dois mundos a fim de que comece a humanidade do homem. Um exemplo
dessa crise é “a morte de Deus”, isto é, a idéia de que não existe mais um
Deus a quem devemos imitar. Esta crise, paradoxalmente, é positiva, pois
mostra que o homem está em processo de transformação.
A necessidade de fazer Deus desaparecer resulta de sua identificação
com o modo de agir das divindades da dicotomia, com a ambigüidade do
passado. O mito de Prometeu nos leva ao cerne do problema gerado pela
interferência dos deuses. Ele é punido porque aprendeu a lidar com o fogo.
Isto significa que os deuses agem como se tivessem ciúmes do ser humano.
Sempre que este consegue dominar algum elemento da natureza, sofre a
vingança divina para impedi-lo de tomar conta deste mundo. Essa
ingerência seria como se o problema continuasse indefinidamente, como se
a solução fosse o desaparecimento dos deuses. Esta solução era apresentada
pelo teatro da Grécia antiga, um verdadeiro culto religioso. A função da
máquina teatral grega era fazer aparecer e desaparecer os deuses. Na época
da ascensão da burguesia, o Vaticano era —e ainda é— uma réplica cristã do
mundo divino da dicotomia, e o alto clero havia assumido um
comportamento nos moldes dos deuses mitológicos: em nome de Deus, só
aceitava a organização da sociedade no sentido transcendental, teológico da
doutrina dos dois mundos. A “morte de Deus” e a “descristianização” da
Europa resultam do esforço do homem para livrar-se da ingerência “divina”,
que o impede de realizar o velho desejo de dominar.
Removida a ambigüidade, há uma transformação não só da técnica, da
filosofia, da ciência, mas também do poder. O desejo de dominar, de ser
senhor continua nesse processo de derrocada da dicotomia. Porém, já não se
pensa o poder como sendo algo transcendente, uma dádiva divina. Agora é o
que é: coisa dos homens. (As relações e rupturas entre os pensamentos
políticos antigo e moderno estão no livro de Hannah Arendt, Entre o
Passado e o Futuro, Editora Perspectiva.)
O mito havia sustentado o poder transcendente da realeza durante
milênios. Chegou à Europa dos tempos modernos com algumas mutações
provocadas pela influência do cristianismo. A mais importante é esta: o
poder do Príncipe não deriva mais dos deuses pagãos, mas de Deus. A
monarquia absoluta governa com base no “direito divino dos reis”. Dentro
dessa linha de pensamento, surge o Leviatã —o Estado monstruoso,
artificial e mecânico—, cujo poder soberano imita a Deus: é um poder
único, absoluto, perpétuo, irresistível e onipresente que agrega as pessoas; é
o criador do súdito obediente; arroga-se o monopólio de atribuir, cancelar,
instituir e redistribuir os direitos e os deveres de cada um, dando normas e
28
leis. As teorias racionalistas do Estado o apresentam como o reino da
verdade sobre a terra, a encarnação da justiça, o instrumento da verdadeira
liberdade e outros epítetos desse tipo.
A Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789) —
ambas inspiradas nos ideais democráticos do Iluminismo— contribuem
decisivamente para uma mudança radical na forma de pensar o político, de
organizar a sociedade no Ocidente e geram as condições para a ascensão da
burguesia. O Estado burguês derrota o regime absolutista e o mito do poder
transcendente. Não diviniza o poder — no Estado democrático, o poder de
Estado é concebido apenas como o poder de Estado. Não usa um modelo
divino — as estruturas da sociedade são uma criação humana, pertencem a
este mundo. Por isso, não existe a simbiose entre religião e política, da qual
depende a sobrevivência do poder transcendente. Há separação entre Igreja
e Estado. E valores judaico-cristãos —como liberdade, igualdade e
fraternidade— foram secularizados e são manipulados juridicamente.
Numa época na qual não se admite a trapaça de se exercer o poder em
nome de Deus e constituir a sociedade de acordo com um modelo divino, o
Manual da IASD insiste em apresentar sua versão teísta da organização, que
confunde poder eclesiástico com poder de Deus, e organização eclesiástica
com ordem divina. Não percebe que os tempos mudaram, que as pessoas já
não são tão ingênuas. As mais lúcidas não aceitam que o leviatã adventista
—a estrutura monstruosa, artificial e mecânica da IASD— seja uma cópia
da ordem do mundo divino.
Por tudo o que foi visto até aqui, concluímos que a versão teísta da
organização adventista está dentro da linha de pensamento mítico que
começa na doutrina dos dois mundos, avança nos mitos sociais, adquire
traços racionais no racionalismo grego clássico e é introduzida no
cristianismo pelos pensadores medievais.
Os ideólogos adventistas enveredaram pelo caminho do mito depois
de descobrirem que era impossível justificar a monstruosa máquina
administrativa com princípios bíblicos.
A QUESTÃO NA BÍBLIA
29
um deus, por um herói. (Para saber mais sobre esses mitos veja Juan
Errandonea Alzuguren, Edén y Paraiso. Fondo Cultural Mesopotámico en
el Relato Bíblico de la Creación, Madrid, Marova, 1966; e Oswald Loretz,
Criação e Mito: Homem e Mundo Segundo os Capítulos Iniciais do
Gênesis, São Paulo, Paulinas, 1979.)
O uso de expressões e elementos imaginativos tomados desses mitos
pelas narrativas do Gênesis serve para formular idéias radicalmente
diferentes do que essas mesmas imagens significavam nos mitos; ou, dito de
outro modo, serve para tornar evidente que esse livro está em conflito com
as idéias contidas nos mitos. Sua intenção, segundo Gerhard von Rad
(Teologia do Antigo Testamento), é realizar uma enérgica purificação do
pensamento mítico e obter um grau máximo de concentração no puramente
teológico. Logo, se queremos entender o Gênesis, é preciso projetar seu
conteúdo sobre o fundo cultural do Antigo Oriente Médio.
O ponto de partida da investida da Bíblia contra o poder transcendente
e as formas de vida baseadas na doutrina dos dois mundos é a teologia da
criação do Gênesis. Nesta teologia tem início uma linha de severa crítica ao
poder, que termina o Apocalipse. Por razões óbvias, esta linha de
pensamento jamais é estudada e comentada, em seu verdadeiro sentido, na
IASD. A teologia da criação é ignorada pelos adventistas porque se dedicam
a defender o criacionismo, uma corrente filosófica que passa por alto as
verdadeiras intenções das narrativas sobre as primeiras origens. Até o
Comentário Bíblico oficial da IASD faz isso. Portanto, convém darmos uma
olhadela, a grandes passos, nos conceitos mais relevantes apresentados
nessa linha de severa crítica ao poder.
Nos relatos da criação, Deus é apresentado como Aquele que nos faz
ser e, por isso mesmo, Ele constitui o centro de nossas vidas. Dependemos
dEle por completo porque aquilo que sustenta nosso ser não vem de nós
mesmos. Portanto, o Criador de todos os seres e coisas deste mundo é o
único soberano do homem. Sua soberania é soberania de amor. Ele usa seu
poder criador cósmico por puro amor a Suas criaturas.
Ao contrario dos mitos da criação dos povos vizinhos de Israel, nas
narrativas do Gênesis Deus não usa nenhuma substância divina para criar o
homem. (Não usa, por exemplo, lágrimas do deus sol, como se dizia no
Egito, nem sangue de um deus abatido, como no mito babilônico.) Usou
unicamente elementos tirados da terra. O homem é um ser terreno (ou
“terroso”). Foi criado para ser um ser humano (humano vem de humus =
terra). Tanto o mundo quanto o homem não tem e não podem ter nada da
natureza divina, pois foram criados fora de Deus e distintos de Deus; e
assim devem continuar existindo. Disso, as narrativas concluem: o
misterioso desejo de “ser como Deus” (Gên. 3:5), inspirado pela dicotomia,
é ilegítimo; e transformar este planeta num mundo cheio de deuses pela
divinização da forças da Natureza ou da coesão social, como faziam os
povos antigos, fogem à realidade, ao desígnio original de Deus.
Segundo Gên. 3, o mal surgiu no mundo no momento em que o
homem decidiu imitar a Deus. Na narrativa, comer da fruta proibida e querer
30
ser como Deus é a mesma coisa. Refere-se ao poderoso e ilegítimo impulso,
suscitado misteriosamente pela serpente, de auto-elevação da esfera do
humano para a esfera do divino. A imitação de Deus é a causa de todos os
males porque provoca a ruptura do homem com sua natureza humana e com
aquilo ao qual ele pertence e o define. Nas Escrituras, a vida boa é o
resultado da obediência ao desígnio original de Deus. Jamais é vista como
nas formas de vida fundadas na dicotomia — o resultado da imitação de
Deus ou de se ter o mundo divino como modelo.
Quanto ao governo do mundo, o desígnio de Deus é este: Deus tem
domínio sobre o homem e este tem domínio sobre os animais (Gên. 1:26). E
o governo do mundo não é dado a grandes indivíduos ou a um grupo de
indivíduos, mas à comunidade humana na multiplicidade de seus membros
(Gên. 1:28). Porque todos tem a mesma condição humana, esta igualdade de
estado não admite que alguém se sinta superior ao ponto de querer dominar
seus semelhantes. O homem é “imagem” e “semelhança” de Deus (não igual
a Deus) quando representa o Criador, exercendo o domínio na Natureza com
amor, fazendo que a vida, no sentido de Deus, seja possível.
As narrativas mostram que o homem sempre é cerceado nessa sua
vontade de domínio, pois descobre que no mundo residem forças que ele
não pode dominar e que sua dominação é destruidora. São exemplos disto a
expulsão do paraíso, o assassinato de Abel por Caim, a corrompida geração
pré-diluviana, o mundo das nações em eterno conflito, entre outros.
A narrativa de Gên. 11:1-9 investe contra o poder derivado da
divindade usando um exemplo histórico, concreto: o reino de Babilônia,
caracterizado pela utilização conjunta da religião e da política como pilares
sustentadores de uma estrutura que oficializa a auto-elevação, isto é, a
pretensão dos potentados de terem um poder derivado de Deus.
É o que a narrativa denota com a menção conjunta da torre e da
cidade. Com certeza a torre é um zigurate, uma torre-templo de patamares, o
lugar sagrado da religião dos semitas habitantes da Baixa Mesopotâmia. Os
babilônios chamavam-na de Etemenanki (Casa do fundamento do céu e da
terra). Tinha sete patamares; o mais alto era o santuário de Marduke (o Bel
ou Merodaque da Bíblia), o deus estatal de Babilônia. Periodicamente,
durante as grandes festas religiosas do Ano Novo, os potentados com seus
pomposos séquitos, provenientes de todos os reinos, compareciam para
escalar a grande torre-templo, a fim de tocar as mãos de Marduque e assim
receber poder para governar por muitos anos. Marduque era o deus do poder
e a torre-templo era a fortaleza e o santuário do poder.
O Etemenanki constitui um dos mais notáveis símbolos da auto-
elevação do homem do plano humano para o plano divino no exercício do
poder político. Expressava a primazia do rei e do reino de Babilônia no
mundo. Segundo Apocalipse 18, o espírito de Babilônia vai estar presente
no mundo das nações até o fim dos tempos, inspirando um poder
transcendente que rivaliza com a soberania de Deus.
A investida atinge seu ponto alto no Gênesis quando as narrativas
falam das origens de Israel: um povo criado pelo mesmo Criador do mundo
31
para servir aos demais povos (a eleição da descendência de Abraão é para o
serviço). Israel deveria ser uma bênção para as nações. “Servir” e “ser
bênção” são novidades no mundo das nações, no qual a autopreservação
induz cada povo a impor-se sobre os demais numa guerra contínua de todos
contra todos, e as nações poderosas subjugam, dominam e até destoem as
mais fracas.
Agora damos um salto até o Novo Testamento, para ver os momentos
em que testemunha o rompimento de Jesus com a doutrina dos dois mundos.
Inspirado por esta tradição, o homem antigo distingue entre o mundo divino
e o mundo humano, o que o faz dividir os seres e coisas em categorias
superior e inferior, sagrada e profana, pura e impura. Para Jesus, todos os
seres e coisas naturais deste mundo são criação de Deus. Portanto, não há de
se distinguir entre pessoas, animais ou coisas superiores e inferiores,
sagradas e profanas, puras e impuras. Por esse motivo, Ele e Seus discípulos
não praticavam os ritos judaicos de purificação (Marc. 7:1-23; Mat. 15:1-
20). Em uma visão, o apóstolo Pedro é ensinado a não usar os padrões da
dicotomia, adotados pelos judeus, para fazer distinções desse tipo entre
pessoas (Atos 1l:1-17).
Quanto à questão do poder, Jesus a levou às últimas conseqüências:
renunciou ao poder, ensinou e viveu o amor como sendo a antítese do poder.
O hino atribuído à igreja primitiva, transcrito pelo apóstolo Paulo em Fil.
2:6-11, fala assim da posição de Jesus frente à questão: Jesus Cristo
renunciou ao poder que lhe era próprio da natureza divina para tornar-se ser
humano; tornou-se ser humano no sentido de Deus ao não insistir em ser
igual a Deus; adotou a natureza de um servo humilde e foi obediente a Deus
até a morte; por isso, Jesus Cristo é reconhecido como o Senhor (ou seja,
tornou-se Senhor pelo caminho oposto ao traçado pela dicotomia). E o
apóstolo Paulo mostra —verso 5— no que consiste ser cristão: "Tenham
entre vocês o mesmo modo de agir que Cristo Jesus tinha”.
As mil formas de relações de poder que formigam na IASD —a
maioria das quais não temos consciência— são uma expressão do modo de
agir de Jesus? Esta é uma questão que merece ser pensada e discutida.
A renúncia do poder não era só para Jesus. No dito de Mat. 20:25-28,
Ele exige que seus seguidores não se dediquem a dominar uns aos outros
como acontece entre os pagãos. Em vez disso, dá o seguinte mandamento:
"Amem uns aos outros assim como eu os amei." E acrescenta: "Se tiverem
amor uns pelos outros, todos saberão que vocês são meus seguidores" ( João
13:34 e 35, compare com o verso 1, última parte). No Novo Testamento, não
é o poder que conta e sim o amor. Por exemplo, o verdadeiro conhecimento
de Deus consiste em amar, porque Deus é amor (1 João 4:8); o amor é o
dom supremo, só tem valor diante de Deus aquilo que é feito por amor (1
Cor. 13).
Com a renúncia ao poder, Jesus abre o caminho para uma relação sã
com Deus que, por sua vez, abre o caminho para uma nova relação com o
próximo e para uma nova relação social de seus seguidores entre si. Para
construir uma relação sã com Deus, Jesus usa sua imagem exclusiva de
32
Deus como Pai, e que suplanta a imagem judaica e pagã de Deus como um
imperador sentado em seu trono, impondo sua vontade a todos,
determinando tudo mediante leis imutáveis. A imagem de Deus como Pai
(Jesus chama carinhosamente a Deus de “Paizinho”) sugere uma relação de
amor com Deus em vez de uma relação de poder. Jesus quer que as pessoas
confiem em Deus como uma criança confia em seu amoroso pai. Na nova
relação com Deus, não tem valor o que é feito por obrigação, porque é
norma ou está prescrito na lei. Só tem valor o que é feito por amor a Deus e
ao próximo.
Na relação com o próximo, Jesus exige de seus seguidores a
demonstração de amor. E, para Jesus, “amar” não significa simpatizar com
alguém. Significa demonstrar amor por aqueles que se tornaram próximos
através de uma situação histórica específica, como na parábola do bom
samaritano (Luc. 10:30-37) — quando Deus põe no caminho alguém que
necessita de auxílio abnegado. Ou como no dito sobre o grande julgamento
final (S. Mateus 25:34-40): “Porque tive fome e me destes de comer; tive
sede e me destes de beber; era forasteiro e me hospedastes; estava nu e me
vestistes; enfermo e me visitastes; preso e fostes ver-me.” O amor ao
próximo que Jesus exige é o amor ilimitado, que aparece no amor ao
inimigo (Mat. 5:44) e no perdão total (Mat. 6:12; Luc. 17:4).
A nova relação social entre os seguidores de Jesus está baseada no
conceito “servir” (Mat. 20:25-28). Entre os discípulos valem outras regras
do que no campo do político. Para os poderosos o amor é uma fraqueza, e o
poder é uma virtude dos que são superiores. Mas, para Jesus, quem renuncia
ao poder e enfrenta o mal demonstrando amor, abre-se ao reino de Deus.
O golpe mortal contra a dicotomia, consequentemente contra o desejo
inspirado por ela de imitar o mundo divino, aconteceu quando Deus inverteu
o sentido desse desejo ilegítimo e se fez ser humano em Jesus Cristo.
Através da pessoa e da atividade de Jesus, que renuncia ao poder em favor
do amor, Deus resgata e estabelece para sempre o valor e o significado da
humanidade. Jesus Cristo é a única pessoa que define para sempre, nele
mesmo e em sua atividade, o que significa ser um ser humano no sentido de
Deus.
É muito significativo que essa linha de severa crítica ao poder termine
no Apocalipse com a destruição do monstro do poder, que se opõe a Cristo,
e o estabelecimento definitivo do reino escatológico de Deus, mediante a
destruição dos reinos deste mundo, que seguem o monstro e disputam a
soberania com Deus.
O mundo divino da dicotomia, que a versão teísta dos adventistas tem
como modelo de organização da sociedade, é uma mera auto-representação
coletiva. Esse mundo não existe na realidade. Existe apenas na forma de
grandes arquétipos, grandes imagens, que habitam o inconsciente coletivo e
o inconsciente individual de grupos e de pessoas que ainda não se libertaram
da arcaica doutrina dos dois mundos, amplamente combatida na Bíblia.
Como os adventistas deslizaram para todos esses deslocamentos
conceituais que geram confusões e equívocos?
33
A resposta mais plausível é esta: quando a Igreja prioriza seu sistema
de ordem, os princípios bíblicos, principalmente as exigências de Jesus, são
deturpados ou deixam de ser fundamentais. E isto tem suas conseqüências.
A organização torna-se um fim em si. A pregação do evangelho é
substituída, em parte, pela propaganda denominacional e pela promoção de
atividades institucionalizadas. Doutrinas particulares são elaboradas,
mediante uma cuidadosa seleção de temas e de textos bíblicos, para
estabelecer e manter a identidade da organização. E o pior de tudo: “ser”, no
sentido de Deus, exigido por Jesus, deixa de ser o mais importante. Cede
lugar para “fazer”, no sentido das atividades institucionalizadas, que pode
levar os funcionários ao farisaísmo, a viver de aparências.
Por isso tudo, fica claro que o leviatã adventista usa como disfarce
conceitos de um mundo imaginário — o mundo divino da dicotomia. Como
o monstro realmente é? Enfrentamos esta questão nos próximos capítulos,
os quais fazem aparecer a verdadeira face do monstro examinando primeiro
a função administrativa e, depois, o processo e o comportamento
administrativos.
34
Capítulo 4
EXAME DA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA
PROCEDIMENTO E DEFINIÇÕES
35
A definição de burocracia de Max Weber é o resultado de uma análise
histórica comparativa. Ele percebeu a tendência geral das grandes
organizações modernas —no Estado, nas empresas privadas, nas
organizações eclesiásticas e partidárias— para a burocratização. Mesmo
odiando a burocracia, porque a considerava um estorvo para o liberal, ele
não pode deixar de reconhecer a inevitabilidade do controle burocrático nas
grandes organizações modernas.
É importante perceber que essa definição refere-se a um tipo ideal de
burocracia. Para chegar a esse tipo ideal, Max Weber simplificou e exagerou
a realidade empírica a fim de constituir um modelo e favorecer a clareza dos
conceitos. Portanto, nenhuma administração moderna é burocrática no
sentido estrito e completo da definição. Cada caso concreto pode carecer de
um ou vários dos elementos caraterísticos, ou pode possui-los em grau
diferente. Não é raro encontrar casos mistos, nos quais a burocracia está
associada a outras formas de administração. Este é o caso da forma de
governo da IASD: a burocracia está associada à representação política.
Nossa análise é orientada não só no sentido de encontrar coincidências
da burocracia da IASD com o tipo ideal de burocracia apresentado por Max
Weber, mas também no sentido de estabelecer a originalidade da burocracia
adventista. É preciso ter presente que a natureza da IASD impõe certos
limites a sua aproximação com os modelos burocráticos dominantes na
sociedade, devido ao fato de que uma certa distância separa a sociedade
civil da religiosa.
Como indica o título deste capítulo, a análise foi limitada à função
administrativa. Esta refere-se ao processo decisório e à influência exercida
pelas autoridades eclesiásticas sobre os demais participantes desse processo.
O procedimento consiste em mencionar os principais postulados de Max
Weber, e apresentar exemplos concretos que comprovam que tais postulados
foram adotados na forma de governo da IASD.
ÁREAS DE JURISDIÇÃO
36
2. A autoridade de dar ordens necessárias à execução desses deveres
oficiais se distribui de forma estável, sendo rigorosamente delimitada
pelas normas relacionadas com os meios de coerção, físicos,
sacerdotais ou outros, que possam ser colocados à disposição dos
funcionários ou autoridades.
3. Tomam-se medidas metódicas para a realização regular e contínua
desses deveres e para a execução dos direitos correspondentes;
somente as pessoas que têm qualificações previstas por um
regulamento geral são empregadas.
37
Para entender o conceito de poder legitimado, é preciso começar pelo que
Max Weber entende por poder: “a possibilidade de que um homem, ou um
grupo de homens, realize sua vontade própria numa ação comunitária até
mesmo contra a resistência de outros que participam da ação” (pág. 211).
Segundo David Berry, nessa definição “a posse do poder implica não
apenas a capacidade do indivíduo de controlar suas próprias atividades, mas
também de controlar as atividades de outros. Poder nesse sentido é poder de
algumas pessoas sobre outras.” E mais adiante ele esclarece: “o poder torna-
se autoridade quando o seu exercício é considerado legítimo, certo e
apropriado pelos que são submetidos a ele” (Idéias Centrais em Sociologia,
Rio de Janeiro, Zahar, 1976, pág. 137 e 143).
É importante ter em conta que o conceito weberiano de autoridade
burocrática inclui a apropriação centralizada de todos os instrumentos de
administração, especialmente dos recursos financeiros e dos meios de
coerção. É exatamente isso o que acontece na administração centralizada da
IASD.
Max Weber não vê o poder burocrático como uma espécie de fator
externo, físico ou material que determina as relações sociais. Não é
entendido como força física, e sim como relação social. O tipo de autoridade
caraterístico da burocracia é o de autoridade legal-racional, no qual o poder
é considerado legítimo porque está de acordo com regras ou normas escritas.
Ou seja, o poder burocrático das autoridades da IASD não é uma espécie de
fator externo, como o poder dado por Deus ou por Jesus Cristo para a
salvação, mas o poder que elas se arrogam nas regras ou normas que elas
mesmas elaboram. Esta é sua verdadeira base de legitimidade. Tampouco é
uma autoridade voltada para a salvação do ser humano. É, por princípio,
uma autoridade voltada para a dominação. Segundo Max Weber, a
burocracia é a “dominação do funcionário” (nos regimes autoritários é a
“ditadura do funcionário”).
Max Weber (The Theory of Social and Economic Organization, Nova
York, Free Press, 1947, pág. 328) distingue três tipos de autoridade de
acordo com sua base de legitimidade. Trata-se de uma tipologia para fins de
classificação. Ou seja, são “tipos ideais”, que na prática não aparecem como
tipos puros, e sim combinados.
1. Autoridade tradicional. É caraterística das estruturas centralizadas
despóticas. O poder se torna legítimo porque está de acordo com
as tradições. A primeira edição do Manual da IASD (1932) era
uma compilação das normas e práticas tradicionais das igrejas
adventistas dos EUA, e que haviam sido levadas a outras partes do
mundo pelos missionários adventistas. Tais normas e práticas
seguem o sistema presidencialista e parlamentar dos EUA.
2. Autoridade legal-racional. Caraterística da burocracia moderna. O
poder é considerado legítimo porque está de acordo com regras ou
normas escritas. Este é o tipo de autoridade mais usado atualmente
na função administrativa da IASD.
38
3. Autoridade carismática. Constitui a antítese das anteriores porque
se baseia apenas no carisma pessoal. Conforme já vimos, Ellen G.
White é a líder carismática da IASD, e o Manual da IASD está
fundamentado nas idéias e orientações dadas por ela em seus
escritos.
O seguinte parece claro: a autoridade legal-racional é exercida
atualmente de acordo com normas e práticas estabelecidas inicialmente pela
autoridade tradicional dos pioneiros e pela autoridade carismática de Ellen
G. White, no começo da organização da IASD.
A função administrativa burocrática da IASD pode resumir-se assim
de acordo com as normas administrativas: de modo geral, regula as relações
do homem com o sobrenatural. De maneira mais específica, regula a prática
da religião de acordo com seu ponto de vista; promulga a doutrina que
defende; seleciona, forma e socializa especialistas religiosos e
administradores; determina a ordem hierárquica entre eles; estabelece a
base, a extensão e a natureza da autoridade religiosa sobre os membros e de
seu poder territorial; controla os períodos administrativos, instituições,
prédios, objetos religiosos e todos os bens adquiridos pela comunidade
adventista.
Os estatutos, as praxes e normas denominacionais determinam que a
função administrativa se realize principalmente mediante três funções, que
são de competência dos funcionários (inclui as autoridades religiosas,
consideradas na burocracia como “altos funcionários”) em qualquer sistema
burocrático moderno. São as seguintes:
1. Função regulamentária. Determina os objetivos, as atividades
regulares para alcançá-los, as áreas de jurisdição, os
procedimentos institucionais, cria normas que estabelecem deveres
e direitos.
2. Função executiva. Consiste em nomear, supervisionar, sancionar,
dirigir e transferir subordinados. Elaborar e justificar orçamentos.
Realizar ou autorizar despesas. Celebrar contratos. Efetuar
compras. Representar a área de jurisdição perante terceiros.
Procurar cercar-se de “servidores” que lhes garantam lealdade.
3. Função jurisdicional. É a intervenção, de maneira semelhante à
judicial e dentro das respectivas áreas de jurisdição, em assuntos
de natureza pendenciosa, tais como insubordinação, desonestidade,
heresia, quebra de princípios éticos e de regulamentos, conflitos
entre funcionários. Para resolver tais assuntos, os funcionários têm
à disposição meios de coerção.
O processo decisório embutido na função administrativa também é
completamente controlado pelas autoridades eclesiásticas e seus
funcionários subalternos. As autoridades eclesiásticas dirigem a assembléia
e a comissão executiva, formadas em sua maioria por funcionários
subalternos, principalmente nos níveis superiores de administração.
Isso tudo mostra a extensão do poder que o leviatã adventista exerce
através dos funcionários da IASD.
39
ATIVIDADES REGULARES E CONTÍNUAS
Distribuídas de forma fixa como deveres oficiais, em todas as
áreas de jurisdição
Hierarquia Cargo Deveres oficiais
Autoridades ou Secretário Preparação e arquivamento de
altos documentos administrativos
funcionários Ecônomo Controle financeiro
(administradores)
Presidente Exerce a autoridade máxima na área
Funcionários Ação missionária Coordena a ação proselitista
subordinados Assistência social Coordena o serviço de assistência aos
(secretários necessitados
departamentais) Assuntos Promove a liberdade religiosa e as
cívico-religiosos relações entre autoridades civis e
religiosas
Comunicação Coordena a comunicação interna e
externa
Educação Coordena e orienta o sistema
educacional
Escola sabatina Coordena o estudo regular da Bíblia
Jovens Coordena a atividade dos jovens
Ministerial Coordena e orienta a atividade pastoral
Mordomia Promove a arrecadação de dízimos,
ofertas e donativos
Publicações Coordena o sistema de vendas e
distribuição de publicações
Saúde Coordena a difusão de princípios de
saúde e assistência aos doentes
Temperança Coordena a atividade de combate ao
fumo, alcoolismo, drogas e outros
vícios
Auxiliares Diversos: secretárias, Auxiliam as autoridades eclesiásticas e
contabilistas, etc. seus subordinados em seus respectivos
deveres oficiais
Estas nomenclaturas eram as usuais quando este trabalho foi escrito.
40
de cada nível e entre os níveis de administração. Neste último caso, cada
nível está subordinado ao imediatamente superior.
Max Weber (pág. 230) assinala que esse sistema oferece aos
governados a possibilidade “de recorrer de uma decisão de uma autoridade
inferior para a sua autoridade superior, de forma regulada com precisão”. É
isso o que o Manual da IASD (pág. 46) faz:
41
segrega a atividade oficial como algo distinto da esfera da vida
privada.
42
exclusiva como também não permite outra ocupação fora do horário de
trabalho regular.
Por fim, a sexta caraterística:
CENTRALIZAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO
43
A situação de centralização e descentralização é muito complexa na
estrutura burocrática da IASD. Seria demorado e enfadonho estabelecê-la
com precisão em todos os detalhes. Portanto, nos contentamos com uma
visão geral.
Os cinco níveis de administração da IASD formam os seguintes pares
de relações: Associação Geral/Divisão, Divisão/União, União/Associação e
Associação/Igreja local. O sistema permite só essas relações e nessa ordem,
tanto no sentido ascendente como no descendente. Por exemplo, o par de
relação Associação Geral/Igreja local não é possível, porque o sistema não
estabelece uma relação entre ambos níveis. A relação entre eles é indireta,
isto é, através dos pares de relações intermediários. Tais pares de relações
constituem o sistema hierárquico de mando e subordinação, e a forma como
é distribuída a autoridade eclesiástica com base territorial.
A hierarquia tem base territorial. Cada nível de administração abrange
o território do nível imediatamente inferior, e controla suas atividades. Deste
modo, o sistema opõe os poderes de funcionários cuja autoridade oficial se
estende sobre um território mais vasto, aos poderes de funcionários cuja
autoridade está limitada a territórios menores.
A centralização ocorre no sentido ascendente da estrutura: cada nível
centraliza uma parte fundamental do controle administrativo, do poder
decisório, dos recursos financeiros e da jurisdição territorial com relação ao
nível imediatamente inferior. A descentralização acontece no sentido
descendente. Vejamos dois exemplos dessas tendências opostas de um
mesmo contínuo.
O primeiro, é o par Associação/Igreja local. O controle centralizado
das comunidades locais pela Associação é possível porque esta tem como
prerrogativa exclusiva a administração do dízimo, a nomeação de pastores e
a propriedade dos prédios. A descentralização acontece porque a realização
das atividades que visam a alcançar os objetivos religiosos da Associação
ficam a cargo das comunidades locais.
O segundo, é o par Associação Geral/Divisão. A Associação Geral é a
máxima autoridade. Sua jurisdição territorial é global, e deve atender os
interesses mundiais. É o único nível de administração que pode estabelecer
normas gerais para a IASD. Mas a centralização pura e simples na
Associação Geral em Washington, DC, não conseguiria superar os interesses
regionais e que podem constituir uma ameaça à unidade. Por outro lado,
teria dificuldades para adaptar seu programa mundial às particularidades de
cada região. Através da Divisão, a Associação Geral centraliza a
administração das Uniões, ao mesmo tempo que se descentraliza para
adaptar-se às particularidades regionais.
A descentralização não enfraquece a centralização, pelo contrário, a
torna viável.
A organização adventista, assim como seu modelo, o Leviatã, não
seria o que é sem a burocracia. Os que governam a IASD dividem a
autoridade em níveis hierárquicos de administração que controlam tudo,
inclusive a forças responsáveis pela continuidade do poder.
44
JUSTIFICAÇÃO DA BUROCRACIA
Ezequiel viu muitas rodas cruzando-se uma com as outras. Alto, acima
destas rodas, ‘havia algo semelhante a um trono’ (Eze. 1:26). Ezequiel
10 registra uma cena semelhante, introduzindo a forma de uma mão
humana que guia os seres celestes que impelem as rodas (ver verso 8).
Esta mão representa a mão do Onipotente. O ‘trono’ e a ‘mão’ fizeram
com que houvesse perfeita harmonia onde havia aparente confusão.
45
A maquinaria dos eventos humanos e da organização da Igreja requer
muitas facetas e aparentes complicações. Os problemas com os quais
os líderes da Igreja se deparam não são simples, exceto para os
ignorantes e inexperientes. A despeito das complicações que surgem, a
‘mão’ que guia as rodas pode ser vista e nela podemos confiar. (Rodas
dentro de Rodas, in Revista Adventista, Setembro de 1979, págs. 12 e
13).
46
antigo) e que por isto se encontrava na obrigação de justificar, a seus
próprios olhos e diante dos outros, sua situação nova e sem precedentes. O
profeta presta contas de um acontecimento que o revestiu duma missão, dum
saber e duma responsabilidade, e que o lançou sozinho diante de Deus. Isto
obrigou o profeta a provar a legitimidade de sua posição de exceção face à
multidão”.
O seres celestes e as rodas servem para transportar o trono de Deus à
terra, no meio de uma tempestade, para entregar a vocação profética a
Ezequiel.
A revelação feita ao profeta não tinha por objetivo fazê-lo aceder ao
conhecimento das realidades internas do mundo divino. Ela se concentra
sobre o acontecimento histórico, presente e futuro, pertencente ao círculo
restrito da vida de Israel. Por isso, ao descrever a “glória de Deus”, Ezequiel
mostra-se completamente isento de qualquer espécie de preocupação
especulativa sobre o mundo celeste. A sua prudente descrição do mundo
transcendente está repleta de figuras humanas que servem ao desígnio
divino.
Conforme o resumo precedente, é descabida a interpretação
organizacional dada ao texto bíblico em questão. Acredito que nenhum
exegeta sério abordaria o texto nesse sentido, porque as Escrituras, em geral,
e os profetas, em particular, não se ocupam das “formas” de governo em si
mesmas. Tratam sim da bondade ou justiça, ou seus opostos, das estruturas
sócio-políticas que prevaleciam na época.
A preocupação dos autores bíblicos é mostrar que Deus está presente
na História também para julgar os acontecimentos sócio-políticos e
reivindicar sua soberania. Tal julgamento não tem como referência a
“forma” em si mesma como os povos estavam organizados, mas se são
justas ou não, de acordo com o conceito bíblico de justiça. Mas que a visão
do profeta Ezequiel sugere uma estrutura burocrática moderna de governo
eclesiástico está fora de cogitação.
O único que se pode admitir, é que a referida visão oferece uma
imagem ambientada na forma monárquica de governo — Deus é
apresentado como um “rei”, sentado em seu “trono” e sendo transportado
por seu “carro real” do mundo celeste. Mas isto não significa que Ezequiel
esteja recomendando a monarquia. Os adventistas não admitem a forma
monárquica de governo eclesiástico.
A interpretação organizacional da visão de Ezequiel apresenta outras
dificuldades. Não é evidente que o texto estabeleça primeiro um momento
de “aparente confusão” no movimento dos querubins e das rodas, e, depois,
um outro momento de “perfeita harmonia” estabelecida pela intervenção da
“mão de Deus”. O texto se refere apenas a uma ação harmoniosa dos seres
celestiais e das rodas (Eze. 1:12, 19-21). Parece estranho admitir que a
“glória de Deus” irrompe primeiro de maneira desorganizada e depois se
organiza. A narrativa tem todas as caraterísticas de uma irrupção e não de
um esquema que começa em confusão e termina em organização.
47
Walter R. Beach afirma que a “mão” de Eze. 10:8 “representa a mão
do Onipotente”, e que ela e o “trono” (de Deus) estabeleceram harmonia
onde havia aparente confusão. Porém, no texto se trata de mão de querubim
e não de mão de Deus. O texto faz distinção entre “mão de Deus” (Eze. 1:3;
3:14, 22 e outros) e a “mão dos querubins” (Eze. 1:8; 10:7, 8, 12, 21). Ou
seja, Ezequiel é explícito quando fala de uma ou de outra “mão”. A confusão
entre as “mãos” criada por Walter R. Beach se resolve lendo juntos os
versos 7 e 8 de Eze. 10: trata-se da mão dos querubins. E nada se diz quanto
a elas serem usadas para por ordem na confusão das rodas. (Tampouco diz
que havia confusão nas rodas).
E o mais importante: os quatro querubins e as quatro rodas são o meio
de transporte celestial do trono de Deus. A confusão não estava nas “rodas”,
mas na mente do profeta. Num primeiro momento, ele não compreendeu o
que eram essas rodas vivas e os seres celestiais que as comandavam. Só
mais tarde (Eze. 10:13, 20), ele percebe que se tratava do “carro” real que
transporta o trono de Deus. Assim como o rei terreno tem o seu carro real,
Deus tem o seu para transportar seu trono. A diferença entre ambos carros é
que o de Deus tem rodas vivas e é “puxado” não por cavalos, mas por
querubins e viaja no meio de uma “tempestade”.
A pergunta pertinente é: que relação tem a imagem de um meio de
transporte do mundo celestial com a organização eclesiástica?
Nenhuma! Trata-se de uma interpretação forçada, inadequada e
incoerente, que só é possível valendo-se do método exegético de Origens de
Alexandria, cujo principio fundamental é este: o texto diz uma coisa, mas o
seu significado é outro. Usando o método alegórico de interpretação
podemos fazer com que as Escrituras digam o que queremos que elas digam.
48
organização burocrática e representativa foi colocada como artigo de fé!
Este tipo de coisas são insuportáveis para os teólogos sérios.
Não vamos discutir aqui essa questão, e sim apresentar um resumo do
comentário de Karl Barth (Bosquejo de Dogmática, págs. 223 a 235) sobre o
Símbolo Niceno, que serviu de modelo para a IASD elaborar seu “voto
batismal”. Esse comentário não foi superado, e fornece conceitos que podem
ser o ponto de partida para uma discussão séria.
Para Barth, a Igreja é fundamentalmente Gemeide (= comunidade, no
sentido de “congregação” convocada mediante o chamamento do Espírito
Santo, para participar da Palavra e do Sacramento de Cristo). É uma reunião
de seres humanos que pertencem a Cristo, realizada pelo Espírito Santo.
Acontece em obediência a um desígnio superior e não por um acordo
celebrado entre seus componentes. É nisto que as comunidades cristãs
diferem das comunidades naturais ou históricas.
Credo ecclesiam significa “creio na existência da Igreja”, isto é, que a
congregação à qual pertenço é uma santa Igreja universal, porque na Igreja
os indivíduos e as congregações estão unidos um a outros em Jesus Cristo,
pelo Espírito Santo, não por uma organização.
Desse modo, credo ecclesiam não significa a divinização de nenhuma
criatura, porque não se faz da Igreja o objeto da fé; não se acredita na Igreja,
e sim que nessa congregação acontece a obra do Espírito Santo. Dentro
desta linha correta de pensamento, não se pode aceitar que a organização da
Igreja se torne objeto de fé, e se diga “Creio na organização da Igreja”, que,
no fundo, significa dizer “Creio no leviatã adventista, criado para governar a
Igreja”...
49
Capítulo 5
EXAME DO PROCESSO E DO
COMPORTAMENTO
ADMINISTRATIVOS
PRELIMINARES
50
O processo administrativo consiste no exercício do poder
governamental não diferenciado (não faz distinção, como no caso da IASD,
entre poder executivo, poder legislativo e poder judiciário). Ou seja, é o
poder que, ao mesmo tempo, elabora normas administrativas, as aplica a
caso particulares e ordena ou proíbe atos determinados, entre outros. Esta
concentração total dos atributos do poder em mãos de um só indivíduo ou de
um grupo de indivíduos —o soberano— é uma caraterística do poder
absoluto.
A expressão “comportamento administrativo” refere-se ao
comportamento humano restrito ao âmbito de uma organização,
especialmente ao comportamento que implica a adoção de decisões e o
exercício de uma influência calculada sobre terceiros.
51
representação era outorgada de maneira diversa, segundo o caso. Podia ser
por indicação do rei, hereditária ou eletiva.
Contudo, em nenhum desses lugares e momentos, desenvolveu-se uma
teoria e uma doutrina da representação política. Isto acontece só no século
XVIII, na época da Revolução Francesa. O mandato representativo tem sua
origem na doutrina francesa. Os primeiros conceitos dogmáticos dessa
doutrina são exposto por Emmanuel-Joseph Sieyés (1748-1836) em seus
trabalhos. Em seus conceitos revolucionários, supõe que se representa o
povo como um todo, e que os representantes devem ser eleitos mediante o
sufrágio.
Não se pode deixar de mencionar a Jean-Jacques Rousseau (1712-
1778), cujos conceitos e teorias políticas inspiraram a Revolução Francesa e
as revoluções na América espanhola. Especialmente em seu Do Contrato
Social, Rousseau defende a idéia de que os representantes políticos
representam a vontade geral.
A idéia clássica de representação política teve sua origem em 1789,
nos Estados Gerais da França. O mandato representativo é concebido como
sendo o vínculo estabelecido entre a totalidade dos representantes, porque
eles representam a soberania do povo em seu conjunto. É fácil perceber que
a democracia está implicada neste conceito.
No século XIX, a idéia clássica de representação política sofreu
algumas alterações ao ser vinculada com os segmentos da sociedade. No
sistema de partidos políticos —que defendem os interesses das classes
sociais— surgem pessoas que entendem representação como um método
para designar os integrantes dos organismo do governo. Tais integrantes
recebem seus poderes da Constituição e não dos eleitores. Os sistemas
corporativos e institucionais estabelecem o vínculo representativo entre as
instituições e os representantes, isto é, há representação das instituições e
não da vontade geral. Estes conceitos favorecem mais a burocracia que a
democracia, e são os adotados pela IASD. A Comissão Executiva, por
exemplo, é formada por titulares dos departamentos e das instituições, que
representam as atividades regulares da IASD. A representação das igrejas
locais é mínima, geralmente por um representante que é substituído
anualmente, enquanto os outros permanecem durante todo o período
administrativo.
Este breve resumo é suficiente para mostrar que a forma
representativa de governo da IASD é uma cópia da representação política,
que teve sua origem no mundo civil e nele se desenvolveu e se
universalizou. A representação política também é um fato universal no
governo eclesiástico. Em maior ou menor grau, é usada em conjunto com as
formas mais tradicionais de governo eclesiástico — monárquica, episcopal,
presbiteriana sinodal e congregacional.
52
Em sua versão teísta da organização, Ellen G. White fornece as
diretrizes e os fundamentos para a representação política na IASD. As mais
importantes foram transcritas no Manual da IASD para fundamentar certos
procedimentos administrativos. Segue um resumo de tais diretrizes e
fundamentos. A ordem na qual são apresentadas é a que eu considero a mais
adequada.
As principais diretrizes se fundamentam em três idéias:
1. Jesus Cristo habita em seu povo, por meio do Espírito Santo
(Testimonies for the Church, vol. 5, pág. 107; Testemunhos para
Ministros e Obreiros Evangélicos, págs. 15-19 e 25).
2. “Deus está dirigindo um povo, não uns poucos indivíduos
dispersos, aqui e ali, um dos quais crê uma coisa, outro outra”
(Testimonies for de Church, vol. 1, pág. 207).
3. Deus fala através de seu povo (Atos dos Apóstolos, págs. 163-164).
Dessas idéias, Ellen G. White deduz três diretrizes fundamentais:
1. “A maioria da igreja é um poder que deve reger seus membros
individuais.” (Testimonies for de Church, vol. 5, pág. 107). O
raciocínio implicado nesta diretriz é o seguinte: se Deus habita em
seu povo, o dirige e fala por ele, a Igreja deve ser governada tendo
como base a vontade manifestada pela maioria de seus membros.
Segundo o Manual da IASD (pág. 45) a autoridade da Igreja
repousa em seus membros. Essa diretriz não é encontrada na
Bíblia. É, isto sim, um princípio das democracias modernas que
atribuem a soberania ao povo ou grupo.
2. Cada membro da Igreja tem participação na escolha dos “oficiais”
mediante o sistema representativo (Testemunhos Seletos, vol. 3,
págs. 240 e 241). Em todos os níveis de administração da IASD,
as eleições das autoridades eclesiásticas e de seus funcionários
subalternos são sempre realizadas pela forma indireta. A
Assembléia de representantes indica a Comissão de Nomeações.
Esta, por sua vez, indica os ocupantes dos cargos, cuja aprovação
ou não depende da Assembléia. Na realidade, é só nas
comunidades locais que a totalidade dos membros tem a
oportunidade de constituírem a Assembléia. Eles participam da
Assembléia da Associação mediante representantes escolhidos
pelas comunidades locais. Nos outros níveis de administração —
União, Divisão e Associação Geral— os representantes são, em
sua maioria, autoridades e funcionários.
3. O consenso da maioria dos membros da Igreja, devidamente
convocados através do sistema representativo, dever ser
considerado como “a voz de Deus”, isto é, como a máxima
autoridade. Esta diretriz é expressada de diversas maneiras por
Ellen G. White. Um exemplo é este: “O mais alto poder abaixo do
Céu, concedeu o Senhor a Sua Igreja. É a voz de Deus em Seu
povo reunido na qualidade de uma Igreja, que deve ser respeitada”
(Testemunhos seletos, vol. 1, pág. 395). Mas, ela atribui esse poder
53
exclusivamente à Associação Geral, porque é o organismo que
representa toda a IASD. Esta diretriz não encontra paralelo na
Bíblia. Porém, condiz com o slogan repetido freqüentemente nas
democracias modernas: “A voz do povo é a voz de Deus”. O que
realmente acontece é que a “voz do povo” se transforma na
Associação Geral em a voz das autoridades eclesiásticas e de seus
funcionários subalternos, pois são estes os que compõem a
Assembléia e a Comissão Executiva desse nível de administração.
Esta versão teísta contém idéias fundamentais da doutrina francesa
sobre representação política. O mais provável é que os pioneiros adventistas
não as tenham recebido diretamente das fontes francesas, e sim do ambiente
cultural dos EUA. No período de formação dos EUA, havia uma
identificação entre os protestantes norte-americanos, descendentes dos “pais
peregrinos”, e a doutrina francesa. Esta foi amplamente difundida nas
colônias pelos imigrantes que fugiam das perseguições religiosas na Europa.
Sabemos que essa doutrina foi fundamental na constituição do sistema
representativo norte-americano.
O sistema representativo funciona na IASD entre os períodos
administrativos, quando há eleição das autoridades e funcionários. Na
comunidade local e na Associação, elas acontecem de acordo com o
conceito de representação popular. Nos outros níveis de administração, a
eleição é feita conforme o conceito de representação corporativa. Durante os
períodos administrativos, o processo administrativo se realiza dentro do
sistema burocrático como acontece no Estado e nas grandes corporações.
A burocracia foi adotada na IASD como solução para os novos
problemas administrativos decorrentes do crescimento constante do número
de membros, de sua expansão no mundo e da necessidade de elaborar e
manter em dias seus estatutos e normas administrativas. As exigências legais
obrigaram à organização adventista a contratar juristas com formação
universitária. A presença obrigatória e a participação constante desses
juristas contribuiu para a introdução da burocracia na estrutura da IASD.
Nos dias de hoje, os juristas e os administradores exercem muito mais
influência do que os teólogos nas questões técnicas de administração
eclesiástica.
Neste ponto, passamos a analisar como a burocracia entra em
concorrência com o sistema representativo, e como tende a corroê-lo e
desagregá-lo dentro da estrutura da IASD.
O confronto entre burocracia e representação política revela que são
incompatíveis em certos aspectos fundamentais. (Veja o quadro na página
seguinte.) A burocracia limita e até impede que se concretizem conceitos
básicos da representação política.
De acordo com o sistema representativo, a organização adventista está
constituída por uma hierarquia de assembléias e comissões executivas
apoiadas numa base: as igrejas locais. Teoricamente, é nessas congregações
onde se encontra a origem de todas as delegações e mandatos. Na prática, a
54
pressão da base atinge apenas a Associação. Os outro níveis de
administração têm uma completa independência das igrejas locais.
A burocratização não alterou a estrutura original da IASD, mas
modificou profundamente o processo e o comportamento administrativos.
No Manual da IASD há expressões que são condizentes com o sistema
representativo, favorável a uma sociedade igualitária. Afirma que todos os
participantes da IASD são “um em Cristo” (Gál. 3:28), e que “jamais deve
existir entre os seguidores de Cristo qualquer preferência de casta,
nacionalidade, raça ou cor” (pág. 24). E reconhece a “igualdade de
ordenação de todo o ministério” (pág. 45).
Mas, a burocracia requer uma sociedade de classes. Por isso, os
adventistas do sétimo dia estão divididos em quatro classes: 1) autoridades
eclesiásticas — chamadas “administradores”, 2) funcionários subalternos —
chamados “departamentais”, 3) pastores e 4) leigos.
De acordo com diretriz original, o sistema representativo da IASD é
contrário às formas monocráticas de autoridade. Ellen G. White a expressa
assim: “Deus não estabeleceu entre os Adventistas do Sétimo Dia, nenhuma
autoridade suprema para dirigir toda a corporação, ou qualquer seção da
obra. Ele não estipulou que a responsabilidade da direção recaísse sobre uns
poucos homens. As responsabilidades são divididas entre grande número de
homens competentes” (Testemunhos seletos, vol. 3, pág. 240). Este grande
grupo é formado pela hierarquia de assembléias e comissões executivas de
todos os níveis de administração.
Porém, a tendência monocrática da burocracia debilita a autoridade
desses organismos corporativos e fortalece o poder das autoridades
eclesiáticas, principalmente o dos presidentes, levando a uma quebra do
princípio de igualdade de todo o ministério. Além de presidirem os
organismos corporativos, os presidentes possuem um poder de iniciativa que
não é dado aos demais pastores. Certos aspectos de sua função lhes confere
uma autoridade crescente sobre seus pares. Geralmente, eles tiram o
máximo proveito da posição hierárquica e do poder burocrático de que
dispõem. E, assim, se estabelece a cadeia típica de dominação da burocracia:
o “senhor” de um nível de administração é dominado pelo “senhor” do nível
imediatamente superior.
55
REPRESENTAÇÃO BUROCRACIA
Igreja: igualdade de estado Igreja: autoridades,
de todos os participantes funcionários, pastores e
membros leigos
56
Na Assembléia da Associação, é o presidente da União quem preside a
Comissão de Nomeações, encarregada de indicar as autoridades
eclesiásticas (presidente, secretário e ecônomo) e seus funcionários
subalternos (departamentais), enquanto o secretário e o ecônomo da União
presidem outras comissões. Cada uma dessas autoridades submete à votação
na Assembléia as decisões de suas respectivas comissões. Deste modo,
exercem sua influência na etapa mais significativa do processo decisório da
Associação.
O presidente da Associação é nomeado em primeiro lugar, e será
sempre um pastor que conte com o apoio do presidente da União.
Imediatamente este submete a indicação à votação da Assembléia, e convida
o presidente recém-eleito da Associação para participar da Comissão de
Nomeações. A partir desse momento, todas as demais nomeações serão
influenciadas também pelo novo presidente da Associação.
No período entre as assembléias, o processo decisório funciona
geralmente do seguinte modo: antes de cada reunião da Comissão
Executiva, as autoridades eclesiásticas preparam a agenda. Esta “pré-mesa”
permite às autoridades eclesiásticas selecionar os itens que serão
apresentados à Comissão Executiva, estudá-los previamente e pensar em
soluções. Na maioria dos casos, os membros da Comissão Executiva não
têm outra alternativa senão pedir informações adicionais e aprovar as
propostas feitas pelas autoridades eclesiásticas. Como a Comissão Executiva
está composta —pelo menos no Brasil— principalmente pelos funcionários
subalternos, estes se sentem na obrigação de apoiarem a vontade das
autoridades eclesiásticas.
Nos EUA, a Comissão Executiva da Associação está composta, em
sua maioria, por representantes das igrejas locais. Os funcionários têm,
geralmente, um ou mais representantes. Ou seja, prevalece o conceito de
representação das bases. No Brasil, como em quase toda a América Latina,
esse organismo está formado, em sua maioria, por funcionários. As igrejas
locais são representadas por um ou dois membros leigos, geralmente
escolhidos pelas autoridades eclesiásticas. Portanto, prevalece o conceito de
representação corporativa (de atividades e instituições).
CARATERÍSTICAS DO PROCESSO E DO
COMPORTAMENTO ADMINISTRATIVOS
57
essencialmente diversas” na pessoa do magistrado (para aplicá-las à
estrutura da IASD basta substituir “magistrado” por “autoridade
eclesiástica”). Elas são: 1) a vontade própria do magistrado, que busca seu
próprio proveito particular; 2) a vontade comum dos magistrados, também
chamada vontade de corpo, que opera unicamente em benefício do governo;
e 3) a vontade geral do povo, ou vontade soberana, que deve ser a única
regra para as outras vontades.
Rousseau entende que a vontade soberana (a do povo) é a mais fraca.
Depois segue a vontade do corpo. Sendo a mais forte a vontade particular.
Por isso cada magistrado é primeiramente ele próprio, depois magistrado e,
por último, cidadão ou membro do povo. E disto conclui que tal gradação
opõe-se inteiramente à exigida pela ordem social do povo. Esta crítica à
realidade imediata, leva em conta os impulsos egoístas da personalidade
humana, os interesses particulares e corporativos que, em nome da “ordem
natural”, investem contra a vontade coletiva e usurpam a soberania da
sociedade. (Rousseau, Coleção Os Pensadores, 1978, pág. 80).
Da polarização entre os interesses particulares e os gerais, nenhuma
sociedade ou organização está livre. Portanto, não é de se estranhar que na
IASD prevaleçam a vontade própria e a vontade do corpo das autoridades
eclesiásticas sobre a vontade geral.
A explicação do ponto de vista da burocracia é dada por Maurício
Tragtenberg (Burocracia e Ideologia, Ed. Ática, 1980, págs. 186 a 219),
quando afirma que a burocracia surgiu na sociedade humanística liberal
como mediação entre os interesses particulares e os gerais. Porém, com o
passar do tempo, e devido a certas circunstâncias, a burocracia dedicou-se a
exercer um poder político de dominação. Defendendo seus interesses
pessoais e os dos proprietários, os altos funcionários usurparam o poder da
maioria e impuseram seus interesses. Por isso, a oferta de igualdade de
direitos e oportunidades para todos, feita pela burocracia, é um idealismo
utópico. No campo político, a burocracia separa a tomada de decisões da
vontade dos governados da mesma forma como o capitalismo separa o
capitalista e os administradores dos meios de produção. Daí que quem
executa as ordens não tem o direito de saber porque o faz, nem se quer ou
não executá-las; apenas é obrigado a cumpri-las.
Para Max Weber, a burocracia é propícia à hegemonia dos altos
funcionários (no nosso caso, das autoridades eclesiásticas). E isto se deve ao
exercício do poder, por esses funcionários, na estrutura burocrática.
Parafraseando a definição clássica de Max Weber, podemos definir o poder
que as autoridades eclesiásticas exercem em todos os níveis de
administração da IASD, do seguinte modo: “é a possibilidade de que uma
autoridade eclesiástica, ou um grupo de autoridades eclesiásticas, realize sua
vontade própria numa ação comunitária da Igreja, até mesmo contra a
resistência de outros que participam da ação”.
2. Alienação e isolamento. Segundo Rousseau, a representação
política é um poder intermediário introduzido entre a autoridade soberana (o
povo) e o governo. A representação política exime os cidadãos de participar
58
diretamente no serviço público, e eles se dedicam a seus interesses pessoais.
Ou seja, a representação política favorece a frouxidão e o amor à
comodidade, pois implica uma troca, por parte dos cidadãos, de sua
participação direta e pessoal nos serviço público por dinheiro. Passemos a
palavra a Rousseau:
59
Mas é preciso ver também o outro lado da moeda: quando o sistema
constitui representantes e se apropria de uma boa fatia dos recursos
financeiros, parece demais aos membros que a IASD ainda peça o serviço
cristão pessoal e direto. É assim que a organização adventista aliena e isola
os membros da Igreja.
E de fato, já foi constatado que aproximadamente 10% dos membros
da IASD participam do serviço cristão, apesar dos esforços constantes por
parte da organização para elaborar planos que os incentivem a participar. No
livro Serviço cristão há vigorosos apelos de Ellen G. White para que os
membros da IASD vençam o isolamento e se dediquem ao serviço cristão. O
terceiro capítulo desse livro tem uma certa sintonia com os motivos da
alienação mencionados por Rousseau.
O processo e o comportamento administrativos dos adventistas gera
alienação e isolamento em dois sentidos: dos membros com relação à
estrutura de administração e desta com relação aos membros. Vejamos os
aspectos mais significativos.
3. Hierarquia. Como acontece em qualquer outra burocracia moderna,
a IASD distribui a autoridade de forma hierárquica, com postos e níveis
superiores e inferiores, nos quais a subordinação obedece ao grau de
autoridade da escala hierárquica, baseada em áreas fixas de jurisdição.
Os adventistas levaram às últimas conseqüências a administração
como trabalho exclusivo. As autoridades eclesiásticas dedicam a maior parte
do tempo à administração técnica. Elas não têm, como acontece em outras
denominações cristãs, suas respectivas igrejas locais para desempenhar
ofícios pastorais. Suas atividades administrativas formam um universo
separado das igrejas locais e da obra evangélica. E isto se deve ao fato de
que as igreja locais formam o nível inferior da organização e são áreas de
jurisdição dos pastores. Ou seja, existe uma separação entre função
administrativa e função evangélica. As autoridades eclesiásticas não
participam diretamente da função evangélica e os pastores não participam
diretamente da função administrativa (só quando são nomeados para ocupar
cargos administrativos).
4. Escritórios e centralização. O centro de atividade das autoridades
eclesiásticas e de seus funcionários subalternos são sempre os escritórios.
Estes, como assinala Max Weber, são uma caraterística da burocracia
moderna. No caso da IASD, os escritórios não servem só para ser o centro
da atividade administrativa, guardar os arquivos de documentos e
expedientes, segregar a atividade administrativa como algo distinto da vida
privada dos funcionários, também servem para separar os administradores
dos não-administradores. Os escritórios, como sinônimo de conhecimento
técnico especializado em administração, são o lugar separado, isolado desde
o qual as autoridades eclesiásticas e seus funcionários subalternos defendem
sua posição privilegiada. Por esse motivo, os prédios dos organismos
administrativos são exclusivamente escritórios, e estão separados de igrejas,
instituições e tudo o mais.
60
5. Segredo. O segredo é uma das caraterísticas mais notáveis do poder,
e que as autoridades eclesiásticas o levaram às últimas conseqüências no
processo e no comportamento administrativos da IASD. As sessões
pertinentes ao processo decisório são sempre sessões secretas. A maioria das
decisões tomadas nessas sessões são conhecidas só pelas autoridades
eclesiásticas, e, às vezes, pelos seus funcionários subalternos, permanecendo
arquivadas em segredo. Não é costume dos organismos administrativos
apresentarem relatórios financeiros periódicos para todos os participantes.
Esses relatórios são fornecidos só para os níveis superiores de
administração, ou durante a Assembléia, quando são apresentados em forma
técnica e com poucos detalhes. Só as autoridades eclesiásticas tem acesso ao
Livro de Praxes, que fica guardado a sete chaves para que os “obreiros” não
conheçam seus direitos e estes possam ser manipulados. A imensa maioria
dos membros das igrejas locais não sabe o que acontece nos níveis de
administração da IASD.
Para Max Weber (págs. 269 e 272), o segredo é um meio de poder nas
burocracias. Ele explica como o segredo é usado nesse sentido:
61
7. Despolitização. Uma das caraterísticas dos adventistas do sétimo
dia, principalmente dos não-administradores, é sua aversão pelo político,
que geralmente consideram algo mau em si, um campo em que os cristãos
não devem entrar. Muitos confundem política com politicagem.
Oficialmente, a IASD se mantém afastada do político tanto quanto possível.
Não tem nenhuma contribuição positiva que oriente a ação política e social.
Não existe a compreensão de que a Igreja é uma instituição pública, e que
sua vida pública está inserida no político. Aqui uso “político” ou “política”
tanto no sentido mais amplo, referindo-se à vida total dos povos como
entidade coletivas, quanto no sentido mais restrito, relacionado com o poder.
Não uso esses termos no sentido ainda mais restrito de “luta partidária”.
Tampouco existe a compreensão de que a IASD é um grupo político
— entre outros, tem uma forma de governo, uma estrutura de administração
com base territorial, períodos administrativos definidos e realiza eleições.
Mais surpreendente ainda é o fato de que a maioria dos membros leigos não
sabem precisar qual é a forma de governo da IASD nem descrever sua
estrutura.
Quatro são as causas da despolitização dos adventistas:
a) Os administradores são os únicos politizados e eles excluem os
demais participantes do processo administrativo pelo
comportamento que está sendo analisado. E assim, deixam o
caminho livre para manipularem, com considerável autonomia, o
corpo de crentes.
b) A mensagem adventista tem certas caraterísticas que contribuem
para a despolitização: promove engajamentos só do tipo individual
e só destaca aspectos individuais da fé. As virtudes cristãs são
apresentadas de forma abstrata — nunca se diz o que elas
significam aqui e agora. (Um estudo nesse sentido encontra-se em
Edegard Silva Pereira, Persuasão numa Revista Religiosa, in
Simpósio, ASTE, Dezembro de 1982, págs. 116 a 133). O cunho
apocalíptico da mensagem enfatiza que o mundo é mau, está
ficando cada vez pior e em breve será destruído por Deus. Remete
os fiéis a um “mundo do outro mundo” que não se sabe como é
nem onde está. Os adventistas encontram-se numa condição
contraditória: têm de viver neste mundo, mas sua fé os aliena da
realidade. Não é de se estranhar que muitos se sintam perdidos e
encontrem “segurança” no isolamento, em guetos formados,
geralmente, em torno de instituições educacionais adventistas.
c) A teologia adventista é uma teologia clássica, tradicional, marcada
pelo idealismo e pela incapacidade de perceber os dados positivos
dos fatos e situações sociais. Não consegue tratar dos problemas
políticos a não ser sob a forma de questões vinculadas com a ética.
Mas, a perspectiva ética, por causa de sua natureza abstrata,
conduz necessariamente a reflexão teológica ao moralismo. Ou
seja, faz a teologia deformar-se num idealismo ético.
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d) O principal meio de socialização dos membros, a Escola Sabatina,
está dentro da linha traçada pelos itens anteriores. O estudo da
Bíblia é orientado para que os participantes tenham uma
compreensão do que significa existir como indivíduo religioso,
muitas vezes de uma comunidade cristã provinciana, empenhada
em travar sua guerra dogmática particular. O que se busca é
manipular, condicionar, adestrar os indivíduos para que consintam
com a forma de governo eclesiástico e sejam obedientes. Mas, esse
condicionamento não só aliena o indivíduo, também empobrece
sua vida e impede que ele seja uma pessoa completa.
8. Propaganda ufanista e triunfalista. Um bom exemplo desse tipo de
propaganda dirigido ao meio interno é o artigo de Walter R. Beach Perigos e
Correntes Contrárias à Organização (in Revista Adventista, Julho de 1979,
págs. 38 a 40). Vejamos dois trechos:
Por tudo o que foi visto até aqui neste estudo, sabemos que algumas
frases desses trechos (as que terminam com o sinal de exclamação entre
parênteses) não são verdadeiras. A atual forma de governo da IASD não tem
nada a ver com o padrão apostólico nem com o padrão da Igreja primitiva; a
autoridade final não pertence aos membros, e sim às autoridades
eclesiásticas; sofreu tantas mutações, que está longe de ser a forma
escolhida pelos pioneiros. Verdadeira é a afirmação de que o cimento da
IASD é sua máquina de governo, centralizada na Associação Geral,
detentora do poder soberano.
Seria impossível para Walter R. Beach provar que o Novo Testamento
fala que a autoridade final pertence aos membros, que fala em sistema
representativo, Associação, União, Divisão e Conferência Geral... O
propagandista não precisa falar a linguagem das Escrituras, basta fazer de
conta que fala de acordo com elas. Tampouco precisa provar nada. A
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propaganda requer que apenas se afirme categoricamente aquilo que se
defende.
Segundo J. A. C. Brown, em seu livro Técnicas de Persuasão (Rio de
Janeiro, Zahar, 1976) a propaganda funciona assim:
VANTAGENS E DESVANTAGENS
64
3) a racionalização expressa mediante “regras calculáveis” permite a
“calculabilidade” dos resultados.
A organização adventista usufrui parcialmente as vantagens técnicas
da burocracia, devido às limitações impostas pelo sistema representativo.
Ou seja, não é um tipo puro de burocracia. Outro aspecto limitador
encontra-se nas igrejas locais. Nestas, com exceção do pastor, todos os
demais cargos e funções são do tipo voluntário, não remunerado. Este tipo
de trabalho está menos sujeito aos esquemas administrativos superiores. Daí
ser menos preciso, contínuo e unificado. Há omissões, demoras e falta de
exatidão na realização dos diversos deveres.
Mas, para que existam essas vantagens técnicas, é preciso pagar muito
caro. Elas são uma resposta da burocracia à cultura moderna, cada vez mais
complicada e especializada, e que exige o perito despersonalizado,
rigorosamente objetivo. A administração “racional” elimina os traços
pessoais e subjetivos. Ou seja, aproxima o comportamento dos funcionários
ao comportamento de um robô frio e calculista. Max Weber assinala a
desumanização como a principal desvantagem da burocracia:
65
distritos. Como tais distritos são formados por várias igrejas locais, tornou-
se impossível aos pastores atender às necessidades das pessoas. Os pastores
foram obrigados a pensar cada vez mais como administradores que como
pastores no sentido bíblico. A burocratização da atividade pastoral requer
que os pastores trabalhem calçados na “calculabilidade” dos resultados, de
maneira despersonalizada e rigorosamente objetiva. E assim, os pastores
tiveram sua autoridade aumentada, pois à autoridade da Palavra, foi-lhes
acrescentada a autoridade burocrática. Mas, essa é uma caricatura de pastor.
Contudo, estes efeitos negativos da burocracia não conseguem anular os
efeitos positivos da Palavra e da ação humanizadora do Espírito. Por isso, na
IASD existem também pessoas maravilhosas.
A ANTI-ADMINISTRAÇÃO
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7. Os administradores transformam o “poder de função” em “poder
de exploração”. Cuidam de estabelecer crescentes privilégios
exclusivos para si mesmos, que custam muito dinheiro.
8. Surgem os administradores que viajam muito e trabalham pouco.
A anti-administração já levou à falência grandes corporações e faz
Estados passarem por agudas crises. Abra o jornal de hoje e verá que neste
momento empresas aparentemente sólidas estão falindo e Estados estão com
sua economia em situação crítica. Na IASD, os efeitos destrutivos da anti-
administração são mais visíveis na má índole de alguns administradores, não
tanto como falência ou crise financeira.
A anti-administração acontece, segundo Max Weber (págs. 31, 260 e
seguintes), porque a burocracia tem uma tendência para a formação e a
manutenção de uma casta autoritária e irremovível de mandarins,
distanciada das pessoas comuns que não têm treinamento especializado,
diplomas ou cargos administrativos. A casta de mandarins se defende
adotando o sistema de despojos (distribuem os cargos e favores a pessoas
que lhes dão apoio irrestrito, independente de suas habilitações ou méritos
para ocuparem tais cargos). O resultado é o oposto do esperado: limitação
das oportunidades, aumento das irregularidades e falta de eficiência técnica.
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EPÍLOGO
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Também subverte a questão que Jesus considera primária e decisiva
quando disse: “Buscai, em primeiro lugar, o reino de Deus...” (Mat. 6:33).
Em vez de buscar o reino de Deus, a IASD buscou o Leviatã para constituir
um reino de autoridades eclesiásticas. A ironia: em vez de ser porta-voz da
nova relação social exigida por Jesus, a organização da IASD tornou-se
porta-voz das relações de poder do Leviatã.
A forma de governo da IASD é ambígua e contraditória. Uma coisa é
sua base no ideal do cristianismo; outra coisa são a forma e os mecanismos
institucionais postos em ação para atingir esse ideal. Na realidade, o que a
IASD fez foi erradicar e desvincular a forma e os mecanismos institucionais
de suas bases cristãs, vinculando-os às bases da civilização ocidental, a fim
de realizar-se de uma forma social homogênea com a sociedade ambiente de
sua origem.
Uma questão que não foi examinada e que fica em aberto, é a
contaminação da IASD pela ideologia do capitalismo moderno, que
seguramente ocorreu ao usar a sociedade norte-americana como modelo de
organização. O exame desta questão revelará outros aspectos no quais a
organização adventista subverte suas bases cristãs.
É possível enfrentar e derrotar o leviatã adventista?
Trata-se de uma tarefa muito difícil. Existem poderosos obstáculos
que protegem o monstro. Vou mencionar os principais.
Primeiro obstáculo: a desburocratização é praticamente impossível. A
burocracia possui fortes mecanismos de sobrevivência. Vejamos o que Max
Weber (págs. 264 e 265) diz nesse sentido:
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conduzida pelas autoridades eclesiásticas, o que evita qualquer deslize das
engrenagens da máquina administrativa. Os outros níveis de administração
são o reino dos mandarins, inatingível por membros leigos e pastores
distritais.
Terceiro obstáculo: a propensão do leviatã adventista é a mesma do
Estado: atomizar o corpo social em individualismo. E o indivíduo alienado,
isolado é um ser enfraquecido. A pouca ou nenhuma participação efetiva das
bases na administração da IASD favorece a continuidade do despotismo
administrativo.
Quarto obstáculo: o “creio na organização da IASD” do voto batismal
transformou a organização de dominação em artigo de fé. Nada é mais
temível que isso, porque, se para o Estado a desobediência à lei é crime,
para as autoridades eclesiásticas a desobediência é sacrilégio.
Quinto obstáculo: o ufanismo que faz a IASD apresentar-se como
sendo a única Igreja verdadeira. (Todas as demais recebem o rótulo de
“apostatadas”.) Disto, a maioria dos membros conclui que a forma de
governo da IASD também é “a verdadeira” e se eximem questionar o
sistema. Mas a verdade é esta: nenhuma outra denominação cristã se afastou
tanto dos padrões evangélicos ao constituir sua forma de governo como a
IASD.
Sexto obstáculo: os meios de coerção. Vou dar um exemplo notável
dos meios de coerção de que dispõem as autoridades eclesiásticas: o
isolamento de Ellen G. White na Austrália — o lugar mais distante, no outro
lado do mundo, que a Associação Geral encontrou em 1891 para mantê-la
afastada do principal centro administrativo da IASD e de seus líderes. (Ver
C. Mervyn Maxwell, História do Adventismo, 1982, pág. 265 e seguintes.)
Os motivos de seu isolamento na Austrália foram estes: 1) ela
combatia o excesso de centralização e o “poder régio” (poder despótico) que
se arrogavam os dirigentes; e 2) sua autoridade carismática constituía a
antítese da autoridade legal-racional, típica da burocracia moderna.
Ela não desejava ir para a Austrália. Era viúva e com 63 anos de idade.
Mas foi. Não tinha outra saída, pois ela mesma tinha ensinado que Deus
expressava Sua vontade através da Associação Geral. Em 1901, recém
chegada de volta aos EUA, ela teve que enfrentar a Assembléia da
Associação Geral em Battle Creek. Suas palavras revelam o clima que
esperava encontrar: “Eu não desejava ir a Battle Creek. Temia que as cargas
que eu teria de suportar me custassem a vida.” (Ver também General
Conference Bulletin, 1901, pág. 43.) Nessa Assembléia, ela defendeu “uma
reorganização” fundada “num princípio diferente” do poder régio — “o
amor como o que Jesus nos revelou.”
Desde os começos, a IASD teve a tendência de desviar-se da “ordem
evangélica” defendida pelos pioneiros. Declarações como as que se
encontram nas páginas 319 a 327 de Testemunhos para Ministros e Obreiros
Evangélicos, indicam que Ellen G. White era contrária à administração
autocrática. Recomenda que as decisões sejam tomadas em “comissões de
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conselho”. Defende a idéia de que os dirigentes deveriam agir como
“conselheiros” e não como “autoridades”.
Eis um exemplo dos conselhos que dava aos dirigentes:
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também com isso sempre novos aspectos de sua pessoa que correspondam à
estrutura do reino de Deus.
Já que o leviatã adventista é praticamente indestrutível, o que é
possível fazer para reduzir seu poder sobre os membros da IASD?
O problema propriamente político da IASD consiste em saber quem a
governa, como são recrutados os que a governam, como o poder é exercido,
qual é a relação entre os que a governam e os governados. Portanto, o
mínimo que se pode fazer é escolher os chefes menos piores, ou o tipo de
chefia que se considera o mais coerente possível com a natureza da Igreja.
O que torna o poder do leviatã adventista infinitamente perigoso não é
o fato dele mandar, controlar, mas o fato de que pode tomar conta da IASD,
e privar seus membros de qualquer iniciativa, até do desejo de tomarem
iniciativa. Max Weber (pp. 31, 32, 260 e seguintes) percebeu que as ordens e
proibições das organizações autoritárias deixam os indivíduos, sujeitos a
elas, incapazes de autodireção. Também percebeu a eficiência grandiosa do
homem livre, criado pelas associações voluntárias, nas quais o indivíduo
tem que provar a sua igualdade com os outros, sua capacidade de decisão
autônoma, seu bom senso e sua atitude responsável, em vez de sua
capacidade para acatar as ordens de autoridade. Portanto, os membros leigos
da IASD estarão menos submetidos à dominação do monstro se formarem
associações voluntárias, cujas atividades se realizem fora das instituições
adventistas. Convêm lembrar o seguinte: a Igreja é, em tese, uma associação
voluntária, e os seguidores de Cristo deveriam ser homens livres.
A grande ironia constatada na análise: a IASD, que deveria ser um
agente da libertação em Jesus Cristo, transformou-se em uma máquina de
dominação.
(FIM)
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