Cristiane Albuquerque Web - 01
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Junho de 2008
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BANCA EXAMINADORA
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RESUMO
Esta dissertação pretendeu investigar o processo de construção da religiosidade em
adeptos e freqüentadores da filial carioca do Centro Espírita Obras de Caridade Príncipe
Espadarte (a Igrejinha). A Igrejinha faz parte de um sistema religioso sincrético
(Barquinha) que surgiu no estado do Acre e que utiliza em seus rituais uma beberagem
psicoativa, ayahuasca (conhecida popularmente por daime), como sacramento. Através do
tipo específico de trabalho mediúnico aí desenvolvido, que é vinculado ao uso do daime e
direcionado por entidades espirituais da linha de umbanda (os pretos-velhos), foi possível
mapear a formação de uma religiosidade que é agenciada pelo grupo, mas vivenciada
individualmente. Esta, por sua vez, foi investigada através da observação participante e por
meio da pesquisa sobre a formação do centro bem como de seus membros. A experiência
do pesquisador em campo a partir de uma ótica “nativa” atuou também como uma eficaz
ferramenta metodológica. Em um contexto de pós-modernidade onde o trânsito religioso
abre espaço para um fluxo constante de relações entre indivíduos de diferentes grupos, a
Igrejinha formou-se a partir de buscas e encontros entre pessoas que, muito mais que uma
religião, passaram a experienciar uma religiosidade.
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ABSTRACT
This dissertation undertook to investigate the process of religiosity building on
members and visitors of Rio de Janeiro subsidiary of Centro Espírita Obras de Caridade
Principe Espadarte (the Igrejinha). The Igrejinha is part of a brazilian syncretic religious
system (Barquinha) and it uses in its rituals the psychoactive beverage, ayahuasca
(popularly known by daime) as sacrament. Through specific medium work done there,
linked to the use of daime and directed by spiritual entities of umbanda (the pretos-velhos),
it was possible to map the formation of a religion that is enabled by the group, but
experienced individually. This, in turn, was investigated by participant observation and
through research on the formation of the centre as well as its members. The experience of
the researcher in the field from a "native" perspective acted also as an effective tool
methodology. In a context of post-modernity where the religious transit opens space for a
steady flow of relations between individuals of different groups, the Igrejinha was formed
up from searches and meetings between people, so much more than a religion, this people
began to experience a religiosity.
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Para José Luiz de Albuquerque, vovô Zequinha, com todo meu amor.
in memorian
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AGRADECIMENTOS
Este trabalho é fruto de meu encontro com a antropologia, mas muito mais que isso
é fruto de meu encontro com a Barquinha de Frei Daniel, com minha própria
espiritualidade, enfim, é fruto do meu encontro comigo mesma. Só tenho a agradecer a
Deus e a todos aqueles que seguraram minha mão e me apontaram o caminho rumo a um
mundo onde o amor é o bem maior e a firmeza é sinônimo de fé.
Agradeço a todos que fazem parte da linha da Barquinha e principalmente aos
membros do Centro Espírita Obras de Caridade Príncipe Espadarte (a Barquinha da
Madrinha Chica) por terem me recebido de portas abertas. Sou grata primeiramente a
Madrinha Chica por ter permitido a pesquisa e por me acolher como uma verdadeira filha
no seio de sua igreja. A Cléia pelo apoio e o carinho de sempre desde o nosso primeiro
encontro até os dias de hoje. Ainda agradeço a Mônica, Rosângela (no Acre) e a própria
Cléia, por terem me hospedado em suas casas nas minhas viagens a campo. Enfim, sou
grata aos amigos que formei durante minha aventura antropológica/espiritual e com os
quais só tenho a aprender. Especialmente quero agradecer a Frei Daniel por sua luz e força
no cumprimento da missão que lhe foi entregue e que divide com todos nós.
Agradeço a Rodrigo Grünewald por ter me apontado o caminho da Igrejinha de
Niterói e por ter acreditado em mim como pesquisadora. Aos meus queridos amigos
antropólogos Waleska, Marcos e Ana Sávia pelos conselhos teóricos e metodológicos que
foram de grande valia para o encaminhamento deste trabalho. Sou grata ainda a CAPES
pelo investimento nesses dois anos de pesquisa.
Agradeço a minha família por sempre apoiar e confiar em meus projetos de vida.
Finalmente agradeço a Deus por me presentear com a beleza de uma Barquinha que muito
mais que um objeto de estudo passou a ser minha casa, minha religião.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO_______________________________________________________ 10
1 - As Religiões da ayahuasca ____________________________________________ 19
A ayahuasca e o transe mediúnico __________________________________________ 19
Antecedentes __________________________________________________________ 23
2 - Metodologia _______________________________________________________ 31
3 - Os capítulos ________________________________________________________ 34
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CONCLUSÃO________________________________________________________ 158
BIBLIOGRAFIA ______________________________________________________ 164
ANEXO______________________________________________________________ 169
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INTRODUÇÃO
Meu primeiro contato com a ayahuasca* aconteceu a cerca de cinco anos quando
estava cursando jornalismo e nem imaginava que um dia iria adentrar ao mundo da
antropologia e menos ainda ao mundo religioso e espiritual. Foi através do Encontro para a
Nova Consciência (encontro macro-ecumênico realizado todos os anos na cidade de
Campina Grande-PB durante o período de carnaval) que tomei daime pela primeira vez. Fui
ao centro daimista Céu de Campina1 por curiosidade em experimentar o chá que seria
servido a visitantes naquela ocasião. Não estava procurando a “verdade” sobre a criação do
universo, a existência humana ou sobre Deus e muito menos tinha pretensões etnográficas
com relação àquele grupo desconhecido. Tudo isso estava distante... pelo menos era o que
eu imaginava.
Depois desse primeiro contato freqüentei a igreja esporadicamente e, fascinada pelo
ritual do grupo e sua cosmologia, parti para leituras especificas para tentar perceber melhor
como tudo aquilo funcionava. Procurei entender por dentro (participando dos trabalhos) e
por fora (lendo o que encontrava a respeito) aquele mundo novo. Encontrei um vasto
material publicado a respeito do Santo Daime e, dentre toda essa gama de novas
informações, me deparei com a Barquinha e sua cosmologia diversificada.
Em meio a leituras cada vez mais freqüentes sobre religiões usuárias de ayahuasca
fui apresentada, através de um casal de amigos, a Rodrigo Grünewald2 que na época era
professor de um deles. Rodrigo, juntamente com este casal, costumava se reunir em sua
casa para tomar daime e cantar alguns salmos (canções) pertencentes à Barquinha. Fui
convidada em um desses encontros a participar do pequeno “ritual doméstico” passando a
* Neste trabalho além de fazer uso da nota de roda-pé para apresentar alguns termos, optei por anexar um
glossário com a intenção de proporcionar ao leitor uma maior possibilidade de entendimento do texto. A
palavra ayahuasca, bem como algumas outras, podem ser encontradas nos dois espaços.
1
A igreja Céu de Campina, localizada no município de Lagoa Seca-PB, é um dos muitos centros espalhados
pelo Brasil que está ligado a uma outra religião de origem acreana que também faz uso da ayahuasca como
sacramento, o Santo Daime.
2
Desde 1995 Rodrigo visita com certa freqüência a igreja da Barquinha ligada ao primeiro centro desta
religião. O Centro Espírita e Culto de Oração Casa Jesus Fonte de Luz, com sede no Acre, possui uma
extensão na cidade do Rio de Janeiro. Desde seus primeiros contatos coma doutrina, Rodrigo mantém um
bom relacionamento com seus membros, mas não só aqueles ligados ao chamado Centro-Mãe, o primeiro
deles, e sua extensão no Rio, mas com todos os demais que ele conheceu em suas visitas ao Acre.
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partir daí a freqüentá-lo esporadicamente. Desde então me interessei cada vez mais pela
Barquinha, vislumbrando como seria vivenciar um trabalho espiritual em uma igreja desta
linha.
A idéia de um lugar onde a igreja fica ao lado do gongá3 e o mesmo trabalho pode
perpassar os dois espaços, me instigou também a procurar adentrar ao mundo das Ciências
Sociais. No entanto, para a seleção do mestrado na Universidade Federal de Campina
Grande me afastei um pouco dos textos que discorriam sobre as religiões vindas da região
amazônica e escrevi um projeto que tratava de identidades cruzadas na umbanda.
Principalmente por sua característica performática, esta expressão religiosa me chamava à
atenção desde algum tempo. Então após algumas visitas esporádicas a um terreiro de
umbanda localizado em Lagoa de Roça - PB, o qual um tio meu é filiado há anos, observei
a heterogeneidade e ambigüidade presentes na formação da identidade daqueles adeptos, já
que muitos ali se afirmavam católicos e/ou umbandistas dependendo do espaço social em
que estivessem transitando.
No início do segundo semestre em 2006, já cursando o mestrado na UFCG e tendo
como orientador o próprio Rodrigo Grünewald, decidi finalmente fazer pesquisa
relacionada à Barquinha. Mas, dessa vez, não como alguém que mesmo não conhecendo in
loco simpatizou com a Casa, mas como pesquisadora formal ligada a uma instituição de
Ensino Superior. Então cá estou eu, tateando num mundo novo, onde ao aprender a fazer
ciência me vi aos poucos adquirindo uma identidade religiosa a partir do encontro com o
outro. É através dessa religiosidade construída no campo que proponho neste texto também
chamar a atenção para subjetividade da experiência do etnógrafo como dimensão
constitutiva de análise.
Este trabalho de pesquisa é, portanto, fruto de minha experiência junto à filial do
Centro Espírita Obras de Caridade Príncipe Espadarte localizada em Niterói-RJ. Dirigida
3
A palavra gongá é de origem banto e é utilizada no ritual de umbanda para denominar o "altar sagrado"
existente dentro do terreiro. Este altar ou gongá, como é chamado, é composto de imagens de santos católicos,
caboclos, pretos-velhos e outras. Já na Barquinha o gongá é o espaço onde entidades espirituais incorporadas
trabalham na assistência aos consulentes. Nas Obras de Caridade, um dos mais importantes trabalhos
espirituais que acontecem nesta religião, ocorre uma movimentação do espaço religioso que perpassa a igreja
e o gongá. Ambos os espaços são utilizados simultaneamente para a realização do mesmo trabalho. Aqui
podemos perceber um encontro, através da junção dos espaços religiosos, de influências católicas, kardecista
e afro-brasileiras em um mesmo momento ritual.
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A igreja de Niterói é também chamada de Igrejinha por alguns adeptos. Em alguns momentos do texto usarei
esse termo para me referir ao centro.
5
Soares caracteriza o espaço alternativo como um sincretismo semântico de experiências religiosas e
místicas, criando um sistema homogeneizador, e por isso um local de encontros. O mais característico destas
experiências é o nomadismo de seus sujeitos. Para ele, estes sujeitos seriam “andarilhos espirituais”, um
público assim entendido estaria mais disposto a aventuras espirituais do que doutrinas religiosas rigorosas. O
experimentalismo é o valor maior da busca incessante por novas posições do conhecimento religioso. Este
tipo de fiel alternativo seria um “peregrino devotado a busca de sabedoria” (Soares, 1994:206).
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práticas religiosas que é novo, mas o conteúdo cultural mais abrangente que atribui um
sentido peculiar, para o crente de tipo novo, a sua relação com sua crença e, portanto, ao
seu engajamento religioso - que é também social” (ibid:210). E o mais importante ainda
seria a legitimidade deste fenômeno entendido dentro da idéia de que: “A ‘nova
consciência’ atualiza a experiência e a concepção do convívio íntimo e franqueado com a
pluralidade religiosa” (ibid:211).
Fundada em 1945 pelo maranhense Daniel Pereira de Mattos em Rio Branco-AC, a
Barquinha é uma doutrina religiosa sincrética que faz uso de uma bebida sacramental
chamada de ayahuasca ou daime6. Após a morte de seu fundador em 1958 sofreu processos
de fissões que deu origem a novos centros também chamados de igrejas. Um deles é o
Centro Espírita Obras de Caridade Príncipe Espadarte liderado por Francisca Gabriel e mais
conhecido como Barquinha da Madrinha Chica com sede em Rio Branco-AC e núcleos em
Niterói-RJ e Salvador-BA. A dirigente dos trabalhos em Niterói é neta da Madrinha Chica.
A Barquinha assim como o Santo Daime e a União do Vegetal (UDV) são doutrinas
religiosas sincréticas e urbanas caracterizadas principalmente pelo do uso ritual do daime.
A antropóloga Sandra Goulart agrupa a Barquinha, bem como as outras duas expressões
religiosas sob o nome geral de “Tradição Ayahuasqueira” já que se tratam de diferentes
linhas7 de uma mesma tradição religiosa que nasceu na região amazônica. Segundo a autora
6
Além dos termos daime e ayahuasca a bebida é popularmente conhecido como vegetal e hoasca. Esta
beberagem psicoátiva é produzida a partir do cozimento de duas espécies de plantas nativas da Floresta
Amazônica. O chá, considerado sagrado pelos grupos usuários, constitui-se em seu principal elemento ritual
e simbólico.
7
De acordo com Goulart (2004:8) o pesquisador Clodomir Monteiro da Silva (1983) foi quem utilizou pela
primeira vez o termo linha para designar os grupos do Santo Daime, da União do Vegetal e da Barquinha
enquanto variantes doutrinárias no interior de uma mesma tradição religiosa. “Ele foi seguido por outros
estudiosos nesta via de interpretação, como por exemplo, Fernando de La Rocque Couto (1989, pp. 42-67 e
244). Tanto Monteiro como La Rocque Couto entendem que a distinção entre as linhas é feita através de
diferenciações no tocante ao conteúdo das narrativas míticas, às formas rituais e ao conjunto de entidades que
integram cada panteão”. Porém é preciso esclarecer aqui que embora eu também utilize o termo “linha” para
me referir as três ramificações do tronco que compõem o universo das chamadas “Religiões Ayahuasqueiras”,
entendo cada uma delas como religiões distintas uma da outra. Quando me refiro a Barquinha especificamente
utilizo o termo “vertente” para distinguir seus diferentes centros. Resumindo: adoto a palavra tronco para me
referir ao conjunto das “Religiões da Ayahuasca”; ramificação ou linha para designar cada uma das três
religiões que compõe este tronco; e vertente para fazer as subdivisões dentro de uma mesma religião (os
centros). Finalmente uso a palavra núcleo quando me refiro a determinado centro que possui além da matriz
uma ou mais extensões (filiais). A Barquinha de Niterói é um núcleo/filial do Centro Espírita Obras de
Caridade Príncipe Espadarte cujo núcleo/matriz está localizado em Rio Banco-AC. Esta por sua vez é uma
das vertentes que compõem a ramificação da religião/linha da Barquinha.
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vinculado ao trabalho específico com os pretos-velhos8) que lhe dão sustentação e que
devem ser articulados para caracterizá-la. O processo de preparação mediúnico é enfocado
aqui, portanto, como ação, que, dotada de sentido, é realizada pelos atores sociais dentro de
um contexto específico que, por sua vez, é entendido como o reservatório cultural onde se
dá essa ação. (Geertz, 1978)
Na igreja de Niterói as pessoas se identificam com o contexto constituído pela
práxis que sistematiza o processo de preparação mediúnico especifico do centro. A
religiosidade está relacionada, portanto, ao sentido que emerge das ações do conjunto dos
adeptos dentro desse contexto. Então, para estudá-la tendo por fio condutor o processo de
preparação mediúnico, é preciso focar o sentido que os membros da igreja dão aos
processos estruturantes do contexto o qual possam se identificar. Nesta perspectiva, parto
do pressuposto de que a práxis é o elemento determinante tanto da produção desta
religiosidade específica do grupo bem como a motivação central da adesão de novos
indivíduos ao mesmo e adequação aos seus códigos morais. É importante salientar ainda
que não descarto a possibilidade de identificação por outros motivos, mas creio que o tipo
especifico de preparação mediúnica que a casa oferece é um dos maiores impulsionadores
da adesão.
A procura e o encontro com esse espaço religioso acolhem inúmeras buscas
pessoais em torno da valorização de uma religiosidade que está ligada a aspectos
relacionados ao trabalho mediúnico, ao uso do daime e a aproximação com a umbanda
através dos pretos-velhos. Esta tríade é evidente no Rio de Janeiro, principalmente em
jovens das camadas médias urbanas. Portanto a religiosidade especifica agenciada na
Barquinha de Niterói acomoda a um só tempo e em um só espaço estes três aspectos que
contribuem para a formação do grupo.
O foco da pesquisa está, portanto, em investigar o tipo de religiosidade agenciada na
extensão do Centro Espírita Obras de Caridade Príncipe Espadarte localizada em Niterói-
RJ, tendo em vista a tríade que se sobressai, relacionando-a ao debate sobre o trânsito
8
Os chamados pretos-velhos são considerados entidades espirituais em ritos religiosos e sua atuação remonta
à história da origem da umbanda. Acredita-se que sejam espíritos de escravos que dominam o conhecimento
da magia, uma das habilidades que determinam sua função ritual. (Souza, 2006)
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A igreja é localizada em Niterói, mas como a maioria de seus adeptos, visitantes e freqüentadores é morador
da cidade do Rio de Janeiro não vejo nenhum problema em usar termos como: “Barquinha do Rio” ou
“Barquinha Carioca”.
10
Estive no Acre em maio de 2007 acompanhando um grupo de quatro adeptos da Barquinha carioca que, na
ocasião, objetivavam aderir formalmente a casa através da cerimônia ritual chamada de fardamento e que só
acontece no Acre.
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assegurada pela observação participante, passa a ser evocada durante toda a interpretação
do material etnográfico e por isso cumpre uma função estratégica no ato de elaboração do
texto. Seguindo essa perspectiva procuro estabelecer uma conversa entre os sujeitos da
pesquisa, o material bibliográfico a mim disponível bem como a parcela de subjetividade
experimentada por mim em campo. Subjetividade esta a qual o pesquisador, principalmente
quando se trata de pesquisa com grupos usuários de enteógenos11, normalmente é sujeitado.
Fiz quatro visitas a campo. A primeira, em Niterói, ocorreu entre fins de dezembro
de 2006 e meados de fevereiro de 2007. Fui apresentada ao grupo por um amigo que é
adepto da doutrina. Durante o período em que lá estive procurei manter um relacionamento
de cordialidade, de amizade mesmo com os meus sujeitos de pesquisa. A utilização de
relatos pessoais por meio da entrevista semi-estruturada e da conversa informal me
possibilitaram esboçar algumas idéias no que tange as experiências individuais (mais
intimistas) assim como suas relações com o coletivo.
Meu retorno a campo, o qual havia sido planejado para acontecer no mês de maio,
teve o itinerário modificado. Soube, por meio de alguns adeptos, que a dirigente da
extensão em Niterói estaria, justamente durante este período, embarcando para o Acre,
juntamente com um grupo de fiéis que pretendiam oficializar a adesão através do
fardamento. O fardamento aqui representa um compromisso oficial com a doutrina cujo
ritual deve ser realizado pela presidente do centro, Francisca Gabriel. Resolvi então seguir
para Rio Branco12 e acompanhar este processo de fardamento que acredito ser a
11
A palavra Enteógeno é um termo cunhado por Gordon Wasson e equipe que pretende enfatizar a idéia de
que existem plantas usadas como “inebriantes xamanicos” (Albuquerque, 2005:7). Grunewald (apud
Albuquerque, 2005:7) entende enteógeno como “o advento de Deus no homem”. Ao contrário de alucinógeno
que produziria nada mais que alteração de percepção, o enteógeno produziria a “comunhão e êxtases”. En
significa dentro; Téo: Deus; Geno de Gênese: nascimento. Daí conclui-se que Enteógeno significaria
literalmente nascimento/adevento de Deus no homem. De acordo com Sena Araújo (2005) o seu uso
corresponde a um dos exercícios do ser humano para transcender e entrar em contato com seres e elementos
do sagrado. No entanto, nem sempre o uso de plantas psicoativas foi associado ao sagrado, mas sim a
aspectos de sociabilidades, o caráter festivo e mesmo terapêutico das substâncias. O daime é considerada pela
maioria dos autores que trabalham com o tema relacionado a religiões usuárias de plantas sacramentais como
sendo um enteógeno.
12
Durante o período em que estive no Acre (um mês, dentro da romaria de nossa Senhora) fiquei hospedada
na casa do casal Rosângela e Edson. Rosângela é uma adepta antiga da “Missão” que resolveu acompanhar a
Madrinha Chica desde a fundação do seu centro. Edson é um carioca que está no Acre há pouco mais de sete
anos e que também é adepto ao centro. Ambos são fardados e atuam em um dos principais trabalhos
espirituais da casa: As Obras de Caridade.
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1 - As Religiões da ayahuasca
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De acordo com Micea Eliade (1989) o termo “xamã” difundiu-se entre os antropólogos no início do século
XX para designar certos indivíduos que, de acordo com as sociedades as quais viviam, possuiriam poderes
mágico-religiosos. A palavra é de origem dos povos Tungues da Sibéria e significa “alguém que está
excitado, comovido ou elevado”. Sua utilização também foi necessária para diferenciá-lo de outros termos
como mago, curandeiro, bruxo e, até mesmo, médium. O xamã pode ter características destes, mas se
diferencia por ser, segundo o autor, um tipo de sacerdote inspirado que, em transe extático, pode fazer viagens
entre os mundos ordinário e espiritual com intuito de trazer benefícios à comunidade a qual pertence. Seria
então um “mestre do êxtase” exercendo a função de mediador das relações entre os seres humanos e o mundo
dos espíritos. O xamanismo por sua vez, consistiria na subida do espírito do xamã até mundos extraordinários,
enquanto que a descida de uma entidade espiritual ao corpo do médium seria caracterizada como um
fenômeno de possessão. A antropóloga Sandra Goulart (2004) relaciona o termo xamanismo com a pajelança
indígena amazônica.
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Foi no século XIX que o botânico inglês Richard Spruce, após uma viagem pela
Amazônia entre 1849 e 1864, identificou a bebida usada por alguns grupos indígenas
14
A noção de psicoativo se refere a um conjunto de plantas e também de substâncias químicas que agem
sobre a mente e a psique do sujeito, provocando neles uma alteração (Seibel e Toscano, apud Goulart,
2004:8). As substâncias psicoativas estão sujeitas a diversos tipos de classificações, as quais tem, aliás,
mudado significativamente ao longo da história e do desenvolvimento da ciência ocidental. “No começo do
século XX, por exemplo, o farmacólogo Ludwig Lewin as dividiu em cinco categorias diferentes: excitantia,
hypnotica, phantastica, euphorica e inebriantia. Já nos anos cinqüenta, J. Delay e outros cientistas
propuseram uma outra classificação para esse tipo de substância, agora baseada numa divisão em três grupos:
psicoanalépticos, que são os excitantes; os psicolépticos, que são os sedativos; e os psicodislépticos, que se
referem aos alucinógenos” (ibid).
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daquela região (preparada através da infusão de duas espécies vegetais) que lhe chamou a
atenção por sua capacidade de alterar a consciência e a percepção daqueles que a ingeriam.
Denominada por um termo de origem quíchua, que de acordo com alguns autores significa
“vinho das almas” ou “vinho dos mortos”, a ayahuasca tem como um de seus integrantes
um cipó trepadeira que passou a ser conhecido cientificamente por Banisteriopsis Caapi anos
mais tarde. Analises em laboratórios realizadas na primeira metade do século XX
identificaram que a planta contém os alcalóides15 harmina e harmalina. Além do cipó, a
bebida é composta de folhas de outra planta, Psychotria Viridis, um arbusto denominado
popularmente de Chacrona ou Rainha que contém um alto grau de N, N-dimetiltriptamina
(DMT).
A propriedade psicoativa da Ayahuasca se deve à presença da DMT nas folhas da
Rainha. Esta substância é produzida naturalmente em doses pequenas no organismo
humano, mas é metabolizada pelo próprio organismo por meio de uma enzima digestiva
conhecida como monoaminoxidase (MAO). No entanto como o cipó contém alcalóides que
possuem a capacidade de bloquear os efeitos da MAO, este permite a absorção de certas
doses de DMT, promovendo, assim sua ação psicoativa intensificada e prolongada. O cipó,
juntamente com as folhas são cozidos e fervidos, seguindo um processo ritual complexo. O
resultado final é um chá considerado sagrado, a ayahuasca, principal elemento ritual e
simbólico, consumido nas cerimônias dessas religiões urbanas que juntas compõem a
chamada Tradição Ayahuasqueira.
Quanto aos efeitos da ayahuasca, concordo com Mercante (2006:5) quando este
coloca que mesmo que os compostos químicos presentes na bebida sejam importantes para
a obtenção de seus efeitos, o daime “is only partially responsible for opening the doors of
consciousness (...) and perceptions. Daime does not by itself create the reality in which
15
De acordo com a nota do glossário do trabalho de Terence McKenna (O Alimento dos Deuses, 1995) os
alcalóides são representados por uma grande família de compostos biologicamente ativos, incluindo todos os
esteróides, os alucinógenos indóis e muitos hormônios, feromônios e outros reguladores biológicos. Este autor
explica que os tecidos da Banisteriopsis Caapi (uma das plantas usadas na composição da ayahuasca)
possuem alcalóides do tipo harmina. Além da harmina encontrada no cipó, foram isolados outros alcalóides
como a betacarbolina, harmalina e tetrahydroarmina.
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people perceive themselves immersed during the ritual (…). The ceremony itself is an
essential active element (…)16”.
Antecedentes17
No século XIX e posteriormente na primeira década do século XX a Amazônia vive
um período que ficou conhecido como ciclo da borracha em que, atraídos pela
possibilidade de ganhos financeiros e fugidos da seca que assolava sua região, levas de
nordestinos migravam para a região amazônica para trabalhar nos seringais na extração do
látex18 para a confecção da borracha. A partir daí tem início à fase de exploração e
povoamento do futuro estado do Acre.
Para infortúnio daqueles que desembarcavam na região desconhecida da Amazônia
com intuito, na maioria dos casos, de conseguir um montante razoável em dinheiro e depois
retornar aos seus estados de origem, os destinos dos chamados seringueiros19 foram
marcados por histórias de sofrimento e exploração. Segundo Martinelli,
16
Optei por traduzir todos os trechos que estejam em inglês. Tendo em vista uma melhor compreensão do
leitor optei por repetir na nota de roda-pé a frase ou o parágrafo (quando houver necessidade) que precede a
tradução. A partir desse primeiro exemplo todos os outros casos o seguirão: Quanto aos efeitos da ayahuasca,
concordo com Mercante (2006:5) quando este coloca que mesmo que os compostos químicos presentes na
bebida sejam importantes para a obtenção de seus efeitos, o daime “é apenas parcialmente responsável por
abrir as portas aos estados alterados de consciência (...) e de percepção. O daime por si só não é capaz de criar
uma realidade na qual as pessoas percebam a si mesmos em meio ao ritual (...) A própria cerimônia é um
elemento ativo essencial nesse processo”. Tradução minha.
17
As informações contidas neste tópico foram retiradas principalmente de fontes bibliográficas como:
Oliveira, Rosana Martins de (2002); Steil, Carlos Alberto (2001); Luna, Luis Eduardo (1995); Goulart, Sandra
(2004); Araújo, Esmeralda Queiroz de (1999); Araújo, Wladmyr Sena (1999); Mercante Marcelo (2002 e
2006), além de mais informações contidas no Álbum Comemorativo referente ao centenário da chegada de
Daniel Pereira de Mattos ao estado do Acre (2005), data que reuniu todos os centros desta linha no intuito de
festejar tal acontecimento.
18
A havea brasiliense é a planta de onde é retirado o látex.
19
De acordo com a historiadora Rosana Martins de Oliveira (2002:59) o termo seringueiro é uma categoria
usada para denominar o nordestino que foi inserido na economia extrativa do látex na Amazônia. “Na
condição de coletor do látex, fabricava as pélas de borrachas que eram entregues ao dono do seringal, o
seringalista, que comercializava com as casas aviadoras de Manaus e Belém para serem exportadas. Os
seringueiros eram trabalhadores do seringalista, presos as dívidas da viagem do Nordeste para os seringais,
sem direito de plantar ou criar animais, eram obrigados a consumir os gêneros alimentícios, como conservas,
que eram vendidas pelo seringalista no barracão de sua propriedade”.
23
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“(...) Chegavam esses pobres em levas, amontoados nos porões dos navios.
Chegavam a Belém e Manaus, onde as casas aviadoras, que financiavam o
empreendimento das selvas acreanas, os contratavam. Postos nas gaiolas
perfazem a última etapa da viagem até a sede do seringal ou barracão. Neste
barracão mora o patrão mais conhecido por coronel, que exercia praticamente o
domínio absoluto em suas terras e sobre seu pessoal. No barracão recebia o
‘brabo’ (o seringueiro novo) todas as ferramentas e apetrechos para a colheita da
seringa. Era-lhe lido e também explicado o regulamento que vigorava nos
seringais. As proibições eram as mais absurdas e ridículas, como: proibição de
plantar, fazer agricultura, caçar, pescar, etc. Tudo isso para que o seringueiro não
se distraísse do seu trabalho principal que era a coleta da borracha (...)”
(Martinello apud Oliveira, 2002:27).
Além do número crescente de nordestinos recém chegados ao Acre, que até meados
do século XIX se constituía basicamente de populações indígenas, desembarcavam também
nessa região pessoas de outras nacionalidades tais como espanhóis, portugueses e sírio-
libneses formando, a partir do encontro entre esses diversos grupos, a sociedade acreana.
De acordo com Oliveira (2002) a primeira fase de ocupação do Acre ocorreu no
contexto da romanização da Igreja Católica, que rompeu com o catolicismo tradicional
brasileiro20 entre 1880 a 1920. Esse processo de reforma religiosa promovida pela Igreja
Católica, teve sua repercussão em todo território nacional, inclusive nos seringais da
Amazônia e em particular no estado do Acre. O intuito dos Bispos reformadores “era
substituir o ‘catolicismo colonial’ pelo catolicismo universalista, segundo o modelo
romano” objetivando centralizar o controle religioso da sociedade brasileira nas mãos dos
clérigos romanos.
A religiosidade neste país sempre foi marcada pelo encontro de diversas tradições, e
o catolicismo aí constituído não poderia ser diferente. Esse catolicismo mestiço, luso-
brasileiro que se destaca principalmente na zona rural, toma forma a partir do cruzamento
de culturas distintas tendo a frente os leigos, beatos que marcavam através de uma vida
devocional e de fé, sua história no interior do Brasil. De acordo com Steil (2001:119), as
possibilidades de organizar um universo de representação a partir de elementos
20
O catolicismo brasileiro desde o início da colonização estava assentado sobre organizações e lideranças
leigas, enquanto o catolicismo romano tem como base a autoridade do Papa e por extensão dos bispos e
padres.
24
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25
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tradicional, mas organizam suas práticas religiosas de acordo com as condições oferecidas
pelo novo espaço social.
Aliado a essa bagagem religiosa popular, o conhecimento (adquirido a partir do
contato com o nativo) de praticas rituais e/ou religiosas que utilizavam algumas espécies de
plantas regionais, incluindo a produção da ayahuasca, impulsionou esses sujeitos a darem
início à criação de novas práticas religiosas no Brasil, posteriormente denominadas por
alguns autores (Goulart, 2004) como Religiões Ayahuasqueiras.
Raimundo Irineu Serra, um maranhense que desembarca no Acre em 1912 para
trabalhar no corte da seringa, encontra, alguns anos mais tarde, dois conterrâneos (os
irmãos Antônio e André Costa) os quais haviam conhecido, através do contato com nativos,
o uso da ayahuasca. De acordo com Oliveira (2002), pós experimentar a bebida por convite
destes no Círculo de Regeneração e Fé – CRF (fundado pelos irmãos Costa em Brasiléia-
AC e constituindo-se o primeiro centro urbano a fazer uso desta bebida), Irineu resolve
filiar-se ao grupo, permanecendo nele até desentender-se com um dos irmãos, André Costa.
Na década de 1930, assenta-se como agricultor nos arredores de Rio Branco, em um
local que ficou conhecido por Vila Ivonete. Conhecido como rezador e curador, passa a
atender a população rural daquela localidade através do uso da ayahuasca (a partir de então
batizada de daime21), fundando posteriormente, o Centro de Iluminação Cristã Universal -
CICLU mais conhecido por (Alto Santo). Oficializado em 1962 como centro esotérico, o
CICLU rompe em 1971 com o Circulo Esotérico Comunhão do Pensamento22 de São Paulo
e transforma-se na instituição atual, dando início a Doutrina23 do Santo Daime.
Após a morte do Mestre Irineu (como é chamado pela comunidade daimista), na
década de 70, desentendimentos internos ocasionaram separações e criações de novos
21
Segundo alguns autores a palavra expressa, de acordo com os fiéis, a um rogativo perante o poder divino da
bebida. Algo como “daí-me força, daí-me amor” são cantadas em hinos da doutrina.
22
De acordo com informações colhidas no site http://pt.wikipedia.org, o Círculo Esotérico da Comunhão do
Pensamento (CECP) é uma entidade brasileira dedicada ao estudo das doutrinas espiritualistas como a cabala
e o supermentalismo. Definida como uma "sociedade brasileira de estudos espirituais",visa principalmente o
desenvolvimento das forças mentais latentes em todo ser humano. Fundado pelo português António Olívio
Rodrigues em 1909, é a mais antiga escola de esoterismo ainda em atividade no Brasil. A página da
Wikepedia informa ainda que Irineu Serra foi um dos esoteristas importantes ligados a entidade
23
Para evitar maiores confusões entre as religiões ayahuasqueiras, neste texto opto por me referir à Doutrina
do Santo Daime usando “D” maiúsculo, enquanto para me referir à doutrina da Barquinha e da UDV usarei a
letra em seu formato minúsculo.
26
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centros. Esse foi o caso do Centro Eclético de Fluente Luz Universal Raimundo Irineu
Serra24, fundado pelo amazonense Sebastião Mota de Melo25, que se difundiu em nível
nacional e também no exterior.
Nos anos 70 Sebastião Mota organiza sessões independentes do CICLU na Colônia
500026, mudando-se em 1980 para o município de Boca do Acre e em seguida desloca-se,
juntamente com a comunidade (que nessa época já comportava um grande número de
pessoas), para uma área loteada pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),
as margens de um igarapé de nome Mapiá.
De acordo com Sena Araújo era possível observar em meados de 1970, ainda na
Colônia 5000, um interesse maior por parte de pessoas pertencentes à classe média,
principalmente jovens do Brasil e do exterior, que buscavam um novo estilo de vida.
24
O Centro Eclético de Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra ou CEFLURIS faz parte da linha do
Santo Daime e caracteriza-se por ser a principal organização responsável pela expansão nacional e
internacional da doutrina daimista.
25
Padrinho Sebastião como ficou conhecido, passou a tomar daime em 1965, quando procurou Mestre Irineu
para curar uma doença de fígado. Curado freqüentou o Alto Santo, onde passou também a receber
(mediunicamente) hinos. Algum tempo depois foi autorizado por Irineu Serra a produzir daime na Colônia
5000, destinando metade da produção para o Alto Santo (Sena Araújo, 1999:41).
26
Localizada no Km 5 da estrada que liga o município de Rio Branco à cidade de Porto Acre, era residência
de Sebastião Mota de Melo e sua família.
27
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deles no estado do Acre, a UDV é uma das linhas que mais se expande tanto dentro como
fora dos limites do território nacional.
Após ter freqüentado por anos o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal, o
maranhense Daniel Pereira Matos em 1945 resolve seguir seu próprio caminho dando início
a linha da Barquinha também na região do Rio Branco. Esta herda basicamente daquela o
uso do sacramento (daime), aspectos do catolicismo popular e das religiões afro-brasileiras.
Com morte de seu fundador em 1958, a casa que era conhecida como Capelinha de São
Francisco, passa a se chamar Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de
Luz, sofrendo posteriormente processos de cisões e dando origem a novos grupos27. Todos
esses novos centros seguem a mesma linha de trabalho espiritual (dentro de uma mesma
doutrina), porém independem um do outro. O Centro Espírita Obras de Caridades Príncipe
Espadarte (mais conhecido como Barquinha da Madrinha Chica e meu objeto estudo)
acrescenta ao conjunto ritual desta linha um trabalho diferenciado no que diz respeito às
entidades do panteão umbandistico.
A trajetória de Frei Daniel na formação de sua doutrina, bem como o processo que
levou a criação da Barquinha da Madrinha Chica e sua extensão no Rio de Janeiro serão
melhor detalhados mais adiante.
Segundo Sena Araújo (1999), a Barquinha seria a missão religiosa criada por Daniel
Pereira de Mattos com a finalidade de viajar dentro de três planos cosmológicos (céu, terra
e mar) através da “luz do santo daime” objetivando prestar a caridade a todos aqueles que
procuram a casa em busca de alívio para as suas mazelas. Os adeptos vêem nessa bebida
uma forma de entrar em contato com o mundo espiritual onde serão preparados por
“entidades de luz”. As chamadas “Obras de Caridade” são o principal trabalho da missão,
tornando-se o eixo central dos os trabalhos da igreja. Aí existe uma forte propensão para os
rituais de cura, tendo o fenômeno da incorporação vinculado à idéia de caridade como um
dos pontos altos dos trabalhos dessa linha. As Romarias (herança do catolicismo lusitano)
representam uma manifestação de limpeza com sentido escatológico uma vez que prepara o
27
Existem atualmente seis centros reconhecidos pela linha: O Centro Espírita e Culto de Oração Casa de
Jesus Fonte de Luz, o Centro Espírita Obras de Caridade Príncipe Espadarte (a Barquinha da Madrinha
Chica), Centro Espírita Fé, Luz, Amor e Caridade (o terreiro de Maria baiana), Centro Espírita Daniel Pereira
de Mattos, Centro Espírita Santo Inácio de Loyola, Centro Espírita de Obras de Caridade Nossa Senhora
Aparecida.
28
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fiel para o julgamento final. Os Bailados (extensão dos trabalhos iniciados na igreja) que
acontecem no coreto (ou terreiro) têm finalidade de homenagear as entidades que prestam a
caridade na Casa. No centro da Madrinha Chica as festas de terreiro assumem também uma
função de doutrinar aquelas entidades que acabam de chegar à missão, bem como de
reforçar o aprendizado daqueles adeptos que estão em processo de desenvolvimento no que
se refere ao processo de incorporação mediúnica.
Em Rio Branco são realizados trabalhos ordinários todas as quartas (preparo),
sábados (Obras de Caridade), domingos, no caso do centro da Madrinha Chica, (rosário em
louvor a Nossa Senhora) e no dia 27 de cada mês (trabalho de prestação de contas). Durante
as romarias em que alguns santos católicos são homenageados, os fiéis costumam
reunirem-se todos os dias em penitência, realizando verdadeiras peregrinações espirituais
em busca do autoconhecimento e da prestação da caridade. Normalmente as Bailados
acontecem no final de cada romaria ou datas festivas (geralmente aquelas que
homenageiam algum santo católico), mas outras comemorações podem ocorrer em ocasiões
eventuais dependendo da indicação do presidente de cada centro.
Diferentemente das duas linhas anteriores (Santo Daime e Barquinha), que
demonstram ter relações bastante estreitas entre si, a União do Vegetal teve um
desenvolvimento mais autônomo. A UDV, como é conhecida, foi criada por José Gabriel
da Costa28, nordestino natural de Feira de Santana-BA que chegou à Amazônia em 1943
para trabalhar como “soldado da Borracha29. Entrou em contato com a bebida em 1959
através de alguns seringueiros que não tinham nenhuma ordenação doutrinária religiosa e
habitavam a fronteira do Brasil com a Bolívia, sendo considerados por Gabriel como
“mestres da curiosidade”, por fazerem uso do chá apenas por curiosidade.
A UDV surge como uma ordem hierárquica que objetiva trabalhar em benefício das
pessoas que a procuram. Denominada como uma sociedade (somente os sócios podem
28
De acordo com Sandra Goulart (2004) inicialmente o nome do centro fundado por Gabriel da Costa era
Associação Beneficente União do Vegetal. Em 1970, um pouco antes de seu falecimento, o nome foi mudado
para Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (CEBUDV), sendo oficialmente registrado com essa
designação. Até o falecimento do Mestre Gabriel (1971), as duas denominações, UDV e CEBUDV, se
reportavam a um único grupo. Porém, após a sua morte, surgem uma série de cisões que darão origem a
outros grupos que reivindicam, também, o nome UDV.
29
A expressão “soldado da Borracha” se refere aos trabalhadores nordestinos que foram recrutados e levados
para trabalhar nos seringais amazônicos do Brasil na época da Segunda Guerra Mundial.
29
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participar de todas as sessões), a doutrina não está compreendida em livros, mas preservada
por um organismo interno que se reúne com freqüência para impedir distorções nos ensinos
doutrinários. Aqui a bebida sagrada é chamada de Oasca ou Vegetal.
Diferentemente das duas linhas que a precedem: o Santo Daime e a Barquinha, a
UDV não costuma fazer separação rigorosa entre homens e mulheres nas sessões, além de
haver uma ausência de imagens de santos e a prática de bailados. Os efeitos do chá aqui é
denominado borracheira.
De acordo com Esmeralda Araújo (1999), após a estruturação do primeiro núcleo
em Rio Branco, mestre Gabriel muda-se para Porto Velho-RO onde chegou a falecer. A
atual sede da UDV está localizada em Brasília no Distrito Federal. Outros tantos núcleos
estão espalhados ao redor do mundo.
Goulart (2004:13) emprega a noção de campo de Bourdieu para se referir às três
linhas urbanas ayahuasqueiras (Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal) como sendo
diferentes partes de um mesmo campo religioso que lutam para definir quais são as
práticas, ou seja, as formas legitimamente religiosas deste espaço. No entanto, embora
concorde com a autora de que as três linhas aqui tratadas formam um mesmo campo, o da
“tradição ayahuasqueira” (que se forma através do uso ritual da ayahuasca), não creio que
este pode ser considerado como um mesmo campo religioso já que estamos falando de
religiões distintas. Acredito que o Santo Daime assim como a UDV e a Barquinha podem
ser considerados como pertencentes ao mesmo campo quando falamos em “tradição da
ayahuasca” e não quando nos referimos a campo religioso. Estas três ramificações do
tronco ayahuasqueiro estão definidas em espaços diferenciados e por isso mesmo creio que
não travam lutas com vistas em legitimar suas práticas religiosas. Estas por sua vez são
legitimadas pelos adeptos de cada uma das religiões separadamente e existem
independentemente de uma ou de outra.
Além do uso sacramental da ayahuasca por estas três grandes doutrinas religiosas,
existem atualmente outros grupos que operam com este poderoso psicoativo descoberto na
região amazônica. De acordo com Marcelo Mercante
“(…) new groups are frequently appearing, which blend symbols, music, and
ritualistic structure borrowed from these three original movements. There are as
well, many nonreligious uses of Ayahuasca in Brazil, although all of them are
30
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related to some kind of ceremony or therapy. Ayahuasca has been used by groups
of actors, in Vedanta meditations (from the east Indian Vedic tradition), in
therapy for homeless people, by musicians, by practioneers in body therapies,
psychotherapies, and group therapies, by African-Brazilian religions, by the so-
called “neoshamanism” movement, and sometimes in combination with other
psychoactive plants (see Labate, 2004). However, the study of these newer and
various forms of employing Ayahuasca is only at its outset” (Mercante,
2006:25)30.
2 - Metodologia
30
“(…) freqüentemente novos grupos estão aparecendo com uma mistura de símbolos, músicas e estruturas
rituais emprestadas desses três movimentos religiosos originais. Embora sempre haja uma relação com algum
tipo de cerimônia terapêutica, no Brasil existe também o consumo não religioso da ayahuasca. Esta bebida
vem sendo usada por grupos de teatro, na meditação Vendanta (vinda da Tradição Védica do oeste indiano),
em terapias para desabrigados, por músicos, praticantes de terapia corporal, fisioterapeutas, por grupos
terapêuticos, por grupos religiosos afro-brasileiros, pelo chamado movimento do ‘neo-chamanismo”, e
algumas vezes é usada em combinação com outra planta de efeito psicoativo (ver Labate, 2004). No entanto,
o estudo das novas e variadas formas de empregar o uso da ayahuasca está apenas em seu início” (Mercante,
2006:25). Tradução minha.
31
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Niterói. A intensificação dos trabalhos nestas datas favoreceram a pesquisa, pois consegui
nestes períodos um certo acumulo de material para análise.
Visando observar a formação da religiosidade dos adeptos da Barquinha carioca,
busco neste trabalho uma alternativa para a etnografia monológica (onde o autor apenas
descreve a “realidade” do outro) que é a de produzir uma etnografia dialógica (Clifford,
1998). Neste tipo de etnografia, aquele que escreve e interpreta o faz trazendo a voz do
sujeito, o ator social, para o corpo do texto: “Um modelo discursivo de prática etnográfica
traz para o centro da cena a intersubjetividade de toda fala, juntamente com seu contexto
performativo imediato” (Clifford, 1998:43). A relação de proximidade alcançada com
minha hospedagem na casa dos praticantes e a freqüência em todos os trabalhos foram
elementos facilitadores para a produção deste modelo intersubjetivo.
A observação participante foi empregada exclusivamente no âmbito do próprio
grupo religioso, visando, contudo empreender seu arredor, como o universo de trabalho,
moradia e lazer dos praticantes. Entendo que através do relato oral (depoimentos,
entrevistas individuais ou coletivas), é possível chegar “aos valores inerentes aos sistemas
sociais em que vivem os informantes. (...) Aspectos importantes de sua sociedade e do seu
grupo, comportamentos e técnicas, valores e ideologias podem ser apanhados através de sua
história”. (Queiroz, 1988:28).
Durante minha permanência em campo pude fazer uma observação dos espaços
ritualísticos. Através de entrevistas semi-estruturadas e da conversa informal realizada com
adeptos fardados, freqüentadores assíduos e visitantes esporádicos, foi possível montar um
quadro geral da trajetória da Barquinha da Madrinha Chica ao Estado do Rio de Janeiro. O
roteiro das entrevistas versou sobre questões ligadas à formação do grupo, perfil dos
adeptos, relações com outros grupos daimistas, procedimentos rituais que envolvem
aspectos cosmológicos e doutrinários (relacionados a forma específica como se dá o
desenvolvimento mediúnico) e as diferenças entre o núcleo em Niterói e a matriz no Acre.
As entrevistas foram realizadas com um ou dois representantes de cada subgrupo
que eu mesma classifiquei. Aqui temos: 1) Pessoas fardadas há bastante tempo; 2) Fardados
recentes; 3) Aquelas que estão se preparando para o fardamento; 4) Freqüentadores que são
adeptos de outras casas religiosas; 5) Visitantes esporádicos; 6) Pessoas que estão
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apreendendo a lidar com a mediunidade; 7) Membros que fazem partes das chamadas
Obras de Caridade; 8) Dirigente dos trabalhos do grupo (Cléia Ferreira).
Os relatos forneceram elementos suficientes para mapear o processo de adesão à
Igrejinha através da formação de um tipo específico de religiosidade. Esta religiosidade
aparece em tais relatos como sendo marcas divisórias, que determinam o surgimento de
uma nova vida. Como pude observar, os diferentes ritos funcionam como ritos de
passagem. Tal qual descreve Van Gennep (apud Araújo, 1999) sobre ritos de iniciação, os
freqüentadores encontram-se num estado liminar que os sucessivos rituais levam a
promoção de sua adesão.
Participei ativamente das atividades da casa, desde trabalhos rituais a serviços
domésticos como ajudar na faxina da igreja. Tive com os sujeitos da pesquisa um
relacionamento amistoso, incluindo encontros fora do ambiente religioso. Essa participação
ativa nos rituais junto aos membros do grupo me fez atinar para questões que envolvem a
experiência do pesquisador no campo.
Michael Taussig (apud Rose, 2006) afirma que não existe uma experiência padrão
com o uso da ayahuasca e que em certos momentos é preciso que o pesquisador assuma sua
história e descreva as próprias experiências com o vegetal como dimensão constitutiva da
análise. Então para tentar entender a dinâmica ritualística daquele grupo era preciso que eu,
a cada sessão, comungasse do sacramento juntamente com os adeptos, já que o daime
dentro daquele espaço social envolve toda uma construção simbólica, cosmológica e
doutrinária. Logo
“(...) a auto experimentação por parte do pesquisador é uma fonte de dados
essencial no que diz respeito as investigações científicas (...) A informação não
pode ser recolhida de fora, mas procede do interior do sujeito” (Mabit, Apud
Rose:2006)
Procuro então neste trabalho usar minha própria experiência, dentro do contexto da
Barquinha da Madrinha Chica, como ferramenta para mapear o processo de preparação
mediúnico de maneira a traduzir este fato social em um texto etnográfico. Através dos
relatos orais e de minha vivência em campo busco analisar o fenômeno da mediunidade na
Igrejinha do Rio de Janeiro, fazendo algumas referencias a matriz no Acre, quando houver
necessidade. A intenção é investigar como acontece o processo de identificação com a
33
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doutrina por esse víeis. Como já coloquei anteriormente não descarto a possibilidade de
identificações por outros motivos, mas creio que o tipo especifico de preparação mediúnica
que a casa oferece é um dos maiores atrativos. No entanto é preciso sempre ter em mente
que esse processo preparatório está vinculado aos demais elementos da Casa como as
preces, os salmos cantados e o daime, por exemplo.
Concordo com Mercante (2006) quando afirma que “experiential observation can
produce valid information only if the researcher has had some training in the spiritual
tradition being researched31” (ibid:46). Por isso procuro ainda desenvolver meu texto, a
partir do espaço social que analiso, tanto como pesquisadora quanto como "nativa" (já que
estou vivenciando pessoalmente o processo de integração à doutrina).
3 - Os capítulos
31
Concordo com Mercante (2006) quando afirma que “a observação participante só pode produzir
informações válidas se o observador tem algum treinamento na tradição espiritual pesquisada”(Mercante,
2006:46)). Tradução minha.
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causas eficiente, primeira e última dos demais fenômenos sociais. Dessa forma, segundo
Aguiar (2002:612), o verdadeiro significado e sentido da religião deveria ser buscado na
estrutura da sociedade.
Marx viu na religião um tipo de conhecimento alienado e alienador do real processo
histórico. Para ele o fenômeno social das religiões - a religiosidade, a sacralidade, os ritos,
as crenças e os dogmas são reduzidos a reflexos de um espírito desfocado (ibid:614).
Aguiar ainda aponta que este fenômeno, por ser estruturado em classes e, portanto, incapaz
de autentico entendimento da totalidade, produziria formas alienadas de compreensão do
mundo.
Esta singular visualização proposta por Marx de que as classes e as relações entre
elas (particularmente as econômicas) determinam o curso da História e as consciências,
definindo deste modo o que seria coletivamente falso ou verdadeiro, é a base de sua
construção teórica do materialismo histórico. Desse modo, segundo Aguiar (ibid), Marx
restringe o estudo histórico-social das religiões à analise dos vínculos circunstanciais
imediatos, buscando desvendar-lhes os significados funcionalmente ideológicos.
Em resumo o papel social das religiões para Marx seria primordialmente o de
construir atores sociais conformados de forma a atenderem as demandas funcionais das
estruturas de classes. A religião para ele não seria nada mais que algo parecido com um
“narcótico”. Por isso acreditava que com a eliminação das classes, ela não teria mais razão
de ser.
Para entender a forma como Durkheim encarou essa questão é necessário introduzir
alguns pontos principais de sua teoria sociológica. A idéia central deste autor (2002) é a de
que o homem (o individuo) é fruto da sociedade. Procurou demonstrar que essa última é
uma realidade sui generis, pois segundo ele os homens ao se agregarem dão origem a um
outro ser de outra espécie que constitui uma individualidade psíquica de um novo gênero,
diferentemente das formas individuais. Para averiguar e sistematizar esta realidade
percebida propõe uma nova disciplina: a Sociologia – a qual argumentaria a favor da
realidade da sociedade frente a seus membros considerados individualmente.
Para tanto conceitua o fato social (objeto e base científica da sociologia) que se
caracteriza por ser tudo aquilo que acontece na sociedade, sendo, pois geral (independente
em relação as suas manifestações individuais), exterior (se realiza fora das consciências
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“Por certo cada um contém qualquer coisa dessa resultante, mas ela não está
inteira em nenhum. Para saber o que é na realidade, deve-se considerar o
agregado em sua totalidade”(Durkheim Apud Aguiar, 2002:617)
39
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Assim como Marx (diferente de Durkheim), Weber faz distinção de princípio entre
Religião e Sociedade. No entanto para ele a religião pode ter efeitos tanto de reforço e
justificação dos ordenamentos sociais existentes, como de crítica a subversão destes
últimos. O foco da atenção de Weber desloca-se, portanto sobre os efeitos que
determinadas imagens religiosas do mundo, mediante as respectivas normas éticas, têm
sobre as respectivas sociedades, em particular sobre o agir econômico. Reconhece no
fenômeno religioso o caráter de um universo de sinais e símbolos que têm leis próprias, no
41
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qual se expressa como genuína experiência humana. Aguiar (2002) nos diz que na
concepção de Weber a cosmovisão religiosa não se restringe a correlações funcionais como
a economia e/ou a política de uma época ou um sistema social. Constitui-se, define-se pelo
sagrado, pelo divino, pela justaposição da fortuna, da graça. Os cultos, os ritos, crenças,
objetos e pessoas sagradas operam na direção de justificarem Deus em suas comunidades.
Assim como Weber, Georg Simmel procura dar maior atenção ao indivíduo em seus
estudos de sociologia. Este autor procura ligar a questão da diferenciação social e religiosa
à perspectiva da experiência religiosa do indivíduo a partir da vida cotidiana e das relações
sociais. Para ele a Religião é um produto histórico-social da religiosidade. Esta, por sua
vez, é um modo de ser do homem, mesmo que não seja incorporada numa fé. (Martelli,
1995).
A partir daí podemos constatar que Simmel tenta destacar o indivíduo na sua relação
com a religiosidade e que esta não tem necessariamente que se relacionar com divindades
ou algo de sobrenatural. Ela seria algo inerente ao homem. Simmel sustenta que a
religiosidade pode dar forma às relações sociais originalmente não religiosas como é o caso
do patriotismo por exemplo (carrega-se de uma tal intensidade emotiva a ponto de assumir
uma totalidade religiosa).
Coloca que o valor absoluto do indivíduo constitui a base para afirmação histórica
de um novo tipo de religiosidade, que é por excelência, individual: o misticismo. O místico
seria aquele reconciliado com a própria vida pelo “a priori” religioso, a ponto de não
necessitar de uma religião (ibid:254). A individualização encontra no misticismo uma
maior abertura, consequentemente novas possibilidades de afirmação que é tendência na
contemporaneidade por meio de novos movimentos religiosos, as chamadas Novas
Religiosidades.
Simmel pretende deixar claro que a religião é considerada uma atividade cultural,
assim como a ciência, diferentemente da religiosidade que seria “uma analogia existente
entre atitudes semelhantes, permitindo que o simbolismo religioso adquira precisas funções
sociais no plano individual. A fé na transcendência revela-se como uma ‘força sociológica’,
capaz de ligar faculdades diferentes e numerosas que lhes são semelhantes e de dar forma a
Religião como prática social” (ibid:248/249).
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“ (...) a religião se tornou cada vez mais um objeto flutuante, desprovido de toda
ancoragem social em uma tradição fecunda ou em instituições estabelecidas. Em
lugar e em vez da comunidade solidária agregada por representações coletivas (o
sonho de Durkheim), surgiu uma rede a maneira Georg Simmel, difusa e
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“Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é
interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser
ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes, descrito
como constituindo uma mudança de uma política de identidade (de classe) para
uma política de diferença” (Hall, 1997:22).
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paroxismo em sua complexidade que esta termina por se dissolver numa infinidade de
divisões e subdivisões” (ibid:5). Acredito que muito mais que tentar capturar esse “Outro”
difuso, fragmentado, dividido em diversos campos de pertencimento, seria mais viável
trabalhar com os processos que formam as relações existentes entre o Outro (ou os Outros)
e o Eu (ou o Nós), já que todos esses sujeitos possuem várias facetas que se entrecruzam.
Hall (2000) afirma que atualmente está sendo efetuada uma completa desconstrução
das perspectivas identitárias. Em seu artigo intitulado “Quem precisa de uma identidade?”
ele traz à tona uma perspectiva desconstrutivista (crítica aos essencialistas) que “coloca
certos conceito-chave ‘sob rasura’” (Hall, 2000:103). Nesta perspectiva,
“o sinal de rasura (X) indica que eles não servem mais – não são mais ‘bons para
pensar’ – em sua forma original, não re-construída. Mas uma vez que eles não
foram dialeticamente superados e que não existem outros conceitos, inteiramente
diferentes, que possam substituí-los, não existe nada a fazer a não ser pensar com
eles – embora agora em suas formas destotalizadas e desconstruídas, não se
trabalhando mais com o paradigma no qual eles foram originalmente gerados”
(ibid:104).
Um outro ponto que Hall chama a atenção está em observar onde e em relação a
qual conjunto de problemas emerge a irredutibilidade do conceito de identidade. O autor
acredita que a resposta, neste caso, está em sua centralidade para questão da agência (o
elemento ativo da ação individual) e da política. Ao falar de “agência”, não procura
expressar nenhum desejo de retomar uma noção não-mediada e transparente do sujeito
como autor centrado da política social, nem tampouco pretende adotar uma abordagem que
“coloque o ponto de vista do sujeito na origem de toda historicidade – que, em suma, leve a
uma consciência transcedental” (Foucault Apud Hall, 2000:105). E ainda concorda com
Foucault quando diz que “o que nos falta, nesse caso, não é ‘uma teoria do sujeito
cognoscente’, mas uma teoria da prática discurssiva”.
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Ao se referir ao conceito de sociedade, ele coloca que esta “seria uma abstração
indispensável para fins práticos, altamente útil também para uma síntese provisória dos
fenômenos, mas não um objeto real que exista para além dos seres individuais e dos
processos que eles vivem” (ibi:08). Deste modo, para este autor, a sociedade é, “algo
funcional, algo que os indivíduos fazem e sofrem ao mesmo tempo, e que, de acordo com
esse caráter fundamental, não se deveria falar de sociedade, mas de sociação” (Simmel,
Cultura Filosófica, 1911, apud Waizbort, 2000:18). Ao desvincular vida (ontologia) de
conteúdo (social), Simmel procura “abrir a possibilidade de uma imagem de mundo multi-
determinado, que seja focalizada nas mais diferentes perspectivas” (Waizbort, 2000, 28).
Assim, “se antes se acentuavam os conteúdos (pontos de chegada, resultados), agora que se
acentuem os processos” (ibid).
A partir daí acredito que o conceito de identidade assim como o de sociedade
representa uma abstração que pode ser usada para fins práticos, mas que não alcança a
complexidade das relações sociais experimentadas individualmente.
Assim como a religião, a identidade (seja individual ou coletiva) reclama
classificações já que ambas assumem a política da distinção social através das
classificações e da homogeneização. Aqui é preciso sempre “dar nomes aos bois”. Por
outro lado a religiosidade faz o caminho inverso: o de desmobilizar o apelo de síntese,
comprometendo as distinções com as experiências e trajetórias pessoais. Enquanto a
primeira quer homogeneizar (identidade homóloga), a outra quer especificar
(especificidade-diferença).
Neste texto, faço uso do termo identificação para caracterizar um tipo de
religiosidade especifica com a qual os fiéis se reconhecem. Esta identificação com a
Igrejinha de Niterói, no entanto não está completa e se faz também a partir do encontro com
o outro por meio da delimitação de fronteiras e de circulação continua através delas.
Devido ao processo subjetivo em que essa religiosidade é acionada, no lugar de trabalhar
com os termos identidade ou mesmo identificação, optei por empregar no critério de
análise a afirmação da diferença através daquilo que chamo de “uma religiosidade
especifica” que é experimentada em grupo, mas vivida individualmente por seus membros.
Através do modo como se processa a formação da religiosidade vivenciada dentro
de um contexto específico na Barquinha de Niterói foi possível chegar no tipo singular de
48
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32
É estruturada a medida em que forma propriedades reais dos grupos e sistemas sociais e, é estruturante a
medida em que depende de regularidades da reprodução social.
49
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estruturadas. Ele concebe esses diversos sistemas simbólicos como campos, entendendo
estes como espaços onde ocorre uma espécie de jogo, no qual há uma constante disputa no
que se refere ao poder de definir as regras desse jogo (Bourdieu 1990, p. 119). Contudo, a
análise desse jogo envolve a demarcação de causas externas ao campo, as quais remetem à
estrutura social mais ampla” (Goulart, 2003:20).
A teoria do espaço social, proposta por Bourdieu (2001), tem como fundamento,
portanto a representação do mundo social como um espaço multidimensional, construído a
partir de princípios de diferenciação. Este espaço social é constituído por vários campos
que por sua vez, possuem uma estrutura própria e mantêm uma relação de relativa
independência frente aos demais campos. O que os caracteriza, de um modo geral, são as
disputas, as lutas simbólicas travadas no seu interior.
O espaço social e as diferenças que nele se desenrolam, espontaneamente, tendem a
funcionar simbolicamente como um conjunto de grupos caracterizados por estilos de vida
diferentes. O conhecimento das categorias que tornam esse mundo social possível é o que
está em jogo na luta política, “luta ao mesmo tempo teórica e prática pelo poder de
conservar ou transformar o mundo social, conservando ou transformando as categorias de
percepção deste mundo” (Bourdieu, 2001:142). A religião “desempenha a função simbólica
de conferir à ordem social um caráter transcendente e inquestionável. Aí reside sua eficácia
simbólica e, ao mesmo tempo, sua função eminentemente política” (Oliveira, 2003:180).
A partir daí, é possível afirmar, de um modo geral que, a “tradição ayahuasqueira”
surge como um campo (obviamente inserido na sociedade mais ampla) que abrange as
religiões do Santo Daime, Barquinha e UDV. Essas linhas religiosas se subdividem em
grupos menores que são os chamados centros ou igrejas. Estes por sua vez estão
posicionados, relacionando-se e diferenciando-se por meio de contrastes e mediações que
envolvem disputas. Por isso é essencial compreender o processo de construção de fronteiras
e limites entre eles, vinculando-se tais delimitações à definição da sua identidade.
A noção de campo de Bourdieu (2001) pode ser utilizada como um instrumento
metodológico para perceber como a Barquinha da Madrinha Chica emerge, a partir de uma
história de tensões, e se afirma como religião autêntica, legítima, que alcança a
institucionalização. Assim como esta noção pode iluminar os processos que levam sua
estruturação a partir de remodelagens em sua trajetória ao estado do Rio de Janeiro. Para
50
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evitar que o pesquisador seja iludido pelos efeitos do trabalho de naturalização que todo
grupo tende a reproduzir em vistas de se legitimar, Bourdieu (ibid) aconselha a
reconstrução de um trabalho histórico de que são produto as divisões sociais e a visão
social dessas divisões.
A Barquinha da Madrinha Chica nasceu na região da Floresta Amazônica (Acre) e
chegou a uma grande cidade, onde as relações sociais acontecem em um fluxo bem mais
dinâmico. Os recentes membros do Rio de Janeiro, ao entrar em contato com este espaço
social, assimilam seus códigos, cosmologia, etc que daí por diante irão figurar efetivamente
em suas vidas cotidianas. No entanto, ao mesmo tempo em que essa religião oferece aos
recém chegados toda estrutura, por outro lado, ganha com o contato recente, contornos
novos, se reestrutura para atender as necessidades de seus mais novos fiéis.
A disseminação das religiões da ayahuasca, e especificamente da linha da
Barquinha, (objeto do presente estudo) para outras regiões, além da Amazônica, “coloca
com mais agudez a questão dos relacionamentos dessas religiões com a sociedade mais
ampla — um relacionamento já presente em suas origens, e que é parte integrante de sua
dinâmica contemporânea” (Goulart, 2003:16). Desta forma, de um modo geral, um estudo
sobre a linha da Barquinha representada pelo centro da Madrinha Chica no Rio de Janeiro
pode contribuir para a reflexão de discussões sobre a religiosidade na pós-modernidade.
51
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CAPÍTULO 2 – A Barquinha
2.1 - A história de Daniel
“Ele via seres de luz que lhe entregavam um livro azul e diziam: ‘Essa é uma
missão que te mandaram cumprir sobre a terra’” (Texto divulgado no Álbum
comemorativo do centenário do Mestre Daniel e organizado pela presidência do
Centro Espírita e Culto de Oração Casa Jesus Fonte de Luz, 2005:42).
Ainda na infância e após a morte de seu pai, Thomás Pereira, ingressa na Marinha
do Brasil, onde permanece um bom tempo como aprendiz. Já adulto, desembarca no Acre
em 1905, retornando ao estado só em 1907 quando resolve dar baixa como Segundo
Sargento, passando a morar definitivamente em terras acreanas.
Inicialmente trabalhou como seringueiro, mas de acordo com populares Daniel era
um homem de várias habilidades, chegando a desempenhar profissões como: sapateiro,
cozinheiro, músico, barbeiro, alfaiate, carpinteiro, marceneiro, artesão, poeta, pedreiro e
padeiro. Mas o filho de Ana Francisca era conhecido mesmo por ter fama de boêmio.
Homem de estatura média, rosto comprido, voz grossa, negro de cabelos crespos e bastante
educado34, Daniel fazia composições musicais que falavam de paixão, da busca pela mulher
amada, cantando e tocando em instrumentos que ele próprio fabricava. Não omitia sua
paixão pela vida boêmia e deleitava-se nas noites festeiras do bairro do Papôco, onde
morava desde que chegou a Rio Branco.
33
Existe discordância entre os autores quanto ao ano do nascimento de Daniel.
34
Informações conseguidas através de entrevista realizada por Sena Araújo (1999:46) na cidade de Rio
Branco Acre em 1995.
52
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35
De acordo com Alex Polari (adepto da Doutrina do Santo Daime e autor de vários livros sobre esta
religião), a "miração" é um termo que foi cunhado na tradição do Santo Daime pelo Mestre Irineu para
designar o estado visionário que a bebida produz. Explica que o verbo "mirar" corresponde a olhar,
contemplar e dele deriva-se o substantivo "mirante", que é um local alto e isolado onde se pode descortinar
uma vasta paisagem. Sustenta que a palavra "miração" une contemplação mais ação (mira+ação), o que
expressaria de maneira clara o fato de os “miradores” serem pessoas plenamente conscientes da viagem do Eu
no interior da experiência visionária, característica do êxtase xamânico. Afirma que “o momento culminante
do trabalho é quando dentro da força do sacramento, recebemos as visões, as quais denominamos mirações.
Na miração não somos meros expectadores da nossa visão. Ao invés disso somos protagonistas de uma ação
que se passa num mundo real e ao mesmo tempo numinoso. Nesse estado é que somos convidados a
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“O livro Azul lhe foi entregue por dois anjos, bem como o esclarecimento do seu
significado, que representava o Hinário36 que ele haveria de criar, a própria
doutrina a ser ensinada juntamente com o uso do Daime e toda ritualística dos
trabalhos” (Texto divulgado no Álbum comemorativo do centenário do Mestre
Daniel:44).
A partir daí Daniel compreende sua missão, a missão que lhe era mostrada ainda na
infância e posteriormente em noites de embriagues nas ruas do Papôco. Mas agora, através
do daime, esta missão lhe parecia clara, inteligível.
De um boêmio bêbado que havia se afastado da família pelo vício, transforma-se em
um homem religioso que busca seu caminho através da “luz do santo daime”. Aqui é
possível visualizar um momento de passagem, de mudança em que para se conseguir o
equilíbrio foi preciso passar por estágios diferentes: de separação, de liminaridade e de
agregação37.
Após acompanhar o amigo que outrora lhe socorrera ajudando-o a repor sua
estabilidade física e espiritual, Daniel resolve seguir seu próprio caminho por perceber que
sua missão seria fundar uma linha de trabalho própria. Com apoio do Mestre Irineu, que lhe
oferece uma boa quantidade de daime, segue Daniel para um lugar da zona rural de Rio
Branco dando início aos seus trabalhos, a sua missão.
A missão
O seringal Santa Cecília, desabitado e de propriedade do senhor Manuel Julião, foi o
local escolhido por Daniel para erguer uma capelinha, daquelas de beira de estrada que o
povo acreano já estava acostumado. Naquele mesmo ano de 1945 estava pronta a casinha
apresentar nosso conhecimento e aprender um pouquinho mais. O que decidimos e vivemos nesse plano,
parece ter uma forte influência naquilo que consideramos ser nosso estado usual de consciência e de
realidade”(http://www.xamanismo.com.br/Lua/SubLua1185897462It009).
36
Conjunto de hinos (canções) “recebidos” por meio de contato mediúnico que tem como objetivo difundir a
mensagem doutrinária.
37
Sena Araújo (1999:48) seguindo Van Gennep fala desses três estágios em um processo de transformação do
indivíduo. Coloca que a situação de transição compreende três momentos específicos: a separação (saída do
estado anterior), a liminaridade (o estado de passagem propriamente, em que a pessoa se acha no estado
anterior e posterior) e a agregação (quando se dá a entrada do novo estado).
54
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rústica de taipa e assoalhos de madeira que mais tarde ficaria conhecida como Capelinha de
São Francisco.
Foi justamente na Capelinha onde recebeu as primeiras instruções38, através de
salmos provenientes de inspiração mediúnica, que Daniel, a partir do seu trabalho junto à
comunidade, funda uma nova doutrina religiosa na cidade do Rio Branco baseada no uso
ritual da ayahuasca. Seu trabalho, o qual chamava de Obras de Caridade, consistia
principalmente em prestar atendimento a todos que o procuravam. Costumava “rezar
crianças e adultos”, ensinar remédios com plantas medicinais, prescrever chás e banhos
com ervas e fazer aconselhamentos. Nas sessões que aconteciam no interior da pequena
igreja, tomava daime e cantava os salmos recebidos39. Em datas específicas realizava
trabalhos como: Batismo de entidades e espíritos pagãos e Doutrina de almas penitentes40.
A maioria das pessoas que o procuravam para alcançar alguma cura ou mesmo para
participar dos trabalhos espirituais sofriam por problemas financeiros, de saúde, familiar, de
dependência alcoólica, etc. Muitas delas passaram a segui-lo em sua missão, compondo um
grupo fixo que crescia com o correr do tempo. Dentre as pessoas que se juntaram a ele
naquela época é possível destacar nomes como: Antônio Geraldo da Silva, Manuel Hipólito
de Araújo, Francisca Campos do Nascimento (a Madrinha Chica - fundadora e presidente
do Centro Espírita Obras de Caridade Príncipe Espadarte cuja extensão em Niterói-RJ é
objeto desse estudo), além de Francisco Gabriel (esposo desta última).
38
Posteriormente as instruções mediúnicas tornaram-se um trabalho oficial da Barquinha, acontecendo em
todos os centros às quartas-feiras.
39
Na Barquinha os chamados salmos (ou hinos) são canções cuja inspiração tem origem mediúnica com
função de instruir os fiéis. A linha do Santo Daime opta por denominar tais canções por hinos, mas ambas as
terminologias (de acordo com informações obtidas em conversas informais com adeptos da Barquinha) têm o
mesmo significado pelo menos na linha de Frei Daniel.
40
Na Barquinha da Madrinha Chica, ambos os trabalhos só acontecem em Rio Branco na presença da
dirigente do centro. De acordo com os fiéis o objetivo do Batismo de entidades e espíritos pagãos é trazer os
seres, que foram previamente doutrinados, em um lugar do plano astral (chiqueirador), para receber a “luz de
um batismo” através de um nome cristão. Já na Doutrina de almas (espíritos de pessoas falecidas) acontece
um encaminhamento daquelas que quando “encarnadas” não cumpriram com seus deveres espirituais. Essas
almas já estariam passando por um processo de aprendizado “aos pés do santíssimo cruzeiro” e a partir de
então elas poderiam seguir seu desenvolvimento “rumo aos pés de Cristo”.
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Mestre Daniel, como passou a ser chamado por seus seguidores, além do trabalho de
assistência aos necessitados, curava e preparava seus companheiros41 para trabalhar no
atendimento junto à comunidade. Francisca Gabriel (como também é conhecida a Madrinha
Chica) foi o primeiro aparelho42 a receber essa preparação. Além dela, foram preparadas
outras médiuns como Maria Baiana, Inês Maia Porto, Francisca Maia, Maria Ferrugem e
Dona Chiquita.
Segundo Margarido:
41
Este preparo consistia em desenvolver as habilidades mediúnicas do fiel até que este tivesse em condições
de prestar a caridade com a ajuda de uma entidade espiritual benéfica.
42
De acordo com Souza (2006) aparelho é um termo usado para designar o médium, que é visto como
“aparelho” das energias espirituais, alcançando as “ondas” que emitem para poder transmiti-las em forma de
mensagens.
43
Pesquisador do Departamento de Patrimônio Histórico do Acre.
56
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Na década de 1950 Daniel casa-se oficialmente com uma de suas seguidoras, Maria
Souza, a Maria Ferrugem, e com ela tem um filho, Francisco, o Graúna. Após o fim deste
relacionamento enamora-se da jovem Francinete Oliveira com quem vive por um ano,
tendo com esta mais um filho, Francisco44.
No ano de 1957 o Mestre Daniel começa a preparar a irmandade da Capelinha de
São Francisco para uma suposta viagem que precisaria fazer brevemente “Era um tipo de
viagem ambígua, considerada por alguns um retorno para a terra natal, São Luís do
Maranhão. Mas algumas pessoas interpretavam como a sua possível “desencarnação”, já
que o mesmo se encontrava há algum tempo enfermo de um problema iniciado em sua
garganta, que se agravou em 1958. Ao adoecer, entrou em penitência de 90 dias, afirmando
sempre que ao final faria a viagem” (Sena Araújo, 1999:50).
Conversei informalmente com o Sr Francisco Gabriel45, o Padrinho Chico, e ele me
falou que certa noite, num trabalho de terreiro, Daniel pediu para que todos os presentes
participassem da gira. Afirmou que aquele que não girasse provavelmente não estaria mais
ali no próximo ano. No entanto ele próprio (Daniel) não entrou no circulo giratório formado
pelos presentes. Seu Francisco naquele instante lhe questionou por que ele permanecia de
fora, em pé no centro da gira. Ele responde com um sorriso: ”Eu sou Daniel”. No ano
seguinte, nesta mesma data, o homem que não havia girado juntamente com os demais
havia desencarnado meses antes. Foi, então, num fim de tarde do dia 8 de setembro do ano
de 1958 que o Mestre Daniel, debilitado com a doença, fez sua passagem para o mundo
espiritual. No entanto, de acordo com seus seguidores, continuou se fazendo presente, de
uma outra forma, em um outro plano.
Quando criança Daniel sonhou com anjos e brincou bastante nas ruas de São Luís.
Depois de adulto, ainda jovem, fazia músicas e sonhava com anjos. Mais velho dizia poder
vê-los e fundou uma doutrina. Doutrina que deixou de presente para todos os seus irmãos e
irmãs e na qual é mestre, Mestre Daniel, fundador da linha da Barquinha.
44
Francisco, o filho do terceiro relacionamento (com Francinete Oliveira) tinha apenas oito meses quando
Daniel faleceu.
45
Segunda visita a campo já no estado do Acre.
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2.2 - O Centro Espírita e Culto de Oração Casa Jesus Fonte de Luz e suas
dissidências
46
Sandra Goulart (2003) informa que o consumo da ayahuasca, no Brasil, já esteve sob ameaça de proibição
legal em diversas ocasiões. Em 1985, ele chegou, inclusive, a ser suspenso, sendo a ayahuasca incluída, pela
Dimed (Divisão Nacional de Medicamentos), na lista de substâncias psicotrópicas proibidas durante um
período de quase um ano. O episódio levou o antigo CONFEN (Conselho Federal de Entorpecentes) a
constituir uma comissão, formada por especialistas de diferentes áreas, para avaliar o uso que diferentes
comunidades religiosas faziam da ayahuasca. Após alguns meses de avaliação, que envolveram visitas,
observação, entrevistas nestas comunidades, o CONFEN liberou provisoriamente o consumo do chá. A
liberação definitiva veio apenas dois anos depois, em 1987, quando a comissão instituída pelo CONFEN
concluiu seus trabalhos, com a recomendação de que a ayahuasca fosse consumida para fins religiosos e
ritualísticos. Mas, desde então, ocorreram várias outras situações em que as religiões ayahuasqueiras se viram
ameaçadas de proibições, suspensões, punições legais etc. De acordo com matéria publicada na Folha Online
do dia 05 de maio deste ano, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, encaminharia ao Iphan (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) um pedido de reconhecimento do uso do chá ayahuasca em rituais
religiosos como patrimônio imaterial da cultura brasileira.
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conflito foi de proporções internas, mas decisivas. Em 1978, após passar um período de dez
anos sem pôr os pés fora do centro devido a uma penitencia que cumpria, Antônio Geraldo
resolve fazer uma viagem à terra em que passou grande parte da sua infância, o Rio Grande
do Norte. Na volta ao Acre foi recebido com a notícia de que o vice-presidente, Manuel
Araújo, que havia ficado na direção dos trabalhos em sua ausência, deveria permanecer
presidindo o centro. Antônio Geraldo, então, se desligou da igreja que havia passado a
presidir depois da morte de Daniel e fundou um novo centro: o Centro Espírita “Daniel
Pereira de Mattos” também regido de acordo com os ensinamentos deixados pelo fundador
da missão. Atualmente, este centro é presidido por Antônio Geraldo Filho que assumiu a
posição após a morte de seu pai.
O amazonense, Manuel Hipólito de Araújo, presidiu o Centro Espírita e Culto de
Oração Casa Jesus Fonte de Luz de 1978 (quando Antônio Geraldo se desliga do centro)
até sua morte em 2005 quando seu filho Francisco Hipólito assumiu a presidência.
O Padrinho Manuel, como é chamado por muitos, durante algum tempo serviu no
Exercito no estado do Ceará, sendo designado como soldado combatente na Itália. Ao
retornar ao Brasil em 1942 e liberado das Forças Armadas, resolveu se estabelecer no Acre
onde passou a trabalhar na Secretária de Saúde. Anos mais tarde foi aconselhado por um
colega de trabalho a procurar resolver alguns problemas pessoais, relacionados ao
alcoolismo, com um velho maranhense que ouvia falar. A partir daí passou a seguir na
doutrina com o Mestre Daniel. Segundo Sena Araújo,
O local onde um dia foi construída a Capelinha de São Francisco pelas mãos do
próprio Daniel, transformou-se em uma igreja de alvenaria, passando a se chamar Centro
Espírita e Culto de Oração Casa Jesus Fonte de Luz. Com o passar dos anos sofreu
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O Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz passou a ser
conhecido pelo nome de Barquinha e assim também ficaram conhecidos os demais centros
frutos das cisões ocorridas no decorrer do tempo. A origem desse nome ainda não foi
totalmente esclarecida.
De acordo com Sena Araújo (1999) grande parte do hinário do mestre Daniel refere-
se ao mar, a viagens em uma nau e a seres aquáticos, sendo um dos principais elementos
sagrados a Barca, a Barquinha. Este autor continua explicando que esta Barca teria, para
seus integrantes, dois significados distintos; representa a própria missão deixada por
Daniel, além de expressar o percurso de cada um dentro dessa missão.
Em uma conversa informal com Rosana de Oliveira, historiadora e adepta do centro
dirigido por Francisco Hipólito (em minha visita ao Acre) esta me explicou que o nome
Barquinha surgiu através do comentário de um jornalista que morava nos arredores do
centro quando comparou a estrutura arquitetônica da igreja a um barco.
Acredito que, nesse caso, o nome veio a calhar, já que a missão é permeada por uma
cosmologia que faz referencias sucessivas à barca (missão) que navega pelo “Mar Sagrado”
(o daime), atravessando os três mistérios (planos cosmológicos – céu, terra e mar) visando
recolher os espíritos sofredores (todos aqueles que recorrem à missão) para que possam
seguir viagem (aderir à doutrina) exercitando o autoconhecimento e prestando a caridade
aos necessitados.
Mesmo firmada com base em elementos de práticas religiosas tais como
catolicismo, esoterismo, umbanda e xamanismos, os adeptos, na maioria das vezes, se
assumem como “espíritas apostólicos cristãos”. Nas palavras de Manuel Hipólito a
47
O Álbum comemorativo do centenário da chegada do Mestre Daniel ao Acre juntamente com o sexagésimo
aniversário da missão foi organizado por Francisco Hipólito de Araújo Neto, presidente do Centro Espírita e
Culto de Oração “Casa Jesus Fonte de Luz”.
61
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Barquinha seria uma “religião de doutrina Espírita Apostólica Cristã. Espírita – pois se
pratica o espiritismo, ou utiliza a comunicação com os espíritos para se desvendar os
mistérios que rondam a vida material; Apostólica – pois se faz dessa vida espiritual um
apostolado em torno da existência de Cristo e Cristã – pois se ama a Deus sobre todas as
coisas e ao próximo como a si mesmos”. (Esmeralda Araújo, 1999:22).
Os espaços míticos dividem-se em três planos cosmológicos, o céu, a terra e o mar.
O Céu, o primeiro na escala evolutiva hierárquica, se encontra acima dos demais, sendo
habitado por seres divinos. Desse plano emergem as ordens superiores que serão
consideradas pelos fiéis como instruções a serem cumpridas. O Astral, considerado como
pertencente ao plano celestial, estaria bem próximo ao Céu, sendo habitado por seres
igualmente iluminados, mas que ainda estariam em um processo e preparação e por isso, só
alguns deles, teriam permissão para entrar em contato com os seres humanos ou ainda
prestarem assistências a entidades menos desenvolvidas. Conforme Sena Araújo
“O Astral rege dois planos que ficam mais abaixo: a terra e o mar. Nesses dois
planos é possível encontrar entidades boas, boas e más ao mesmo tempo e más.
São entidades dos encantados das florestas como os caboclos, pretos-velhos,
indígenas e exus e os encantados do mar como sereias, golfinhos polvos, cobras
d’água, príncipes, princesas, reis, rainhas, fadas, etc” (1999:91).
A geografia mítica da Barquinha, construída por meio das mirações dos fiéis é rica e
diversificada. Estes espaços míticos são, para estes últimos, tão reais quanto o espaço
físico, material. Porém, longe de confundi-los, o fiel percebe o entrecruzamento entre
ambos a partir de uma influência recíproca.
Todos os centros da linha da Barquinha dividem o mesmo sistema cosmológico e
doutrinário deixado por Daniel. Este, por sua vez, estruturou a doutrina a partir das
instruções contidas no Livro Azul que lhe foi entregue por dois anjos em uma miração
quando ainda freqüentava a linha do Mestre Irineu. No entanto, entre os seis grupos que
funcionam atualmente, existem algumas diferenças marcantes. Porém, para o presente
estudo, me detenho apenas no processo de formação do Centro Espírita Obras de Caridade
Príncipe Espadarte através de sua extensão no Rio de Janeiro e sua relação com o chamado
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“centro mãe”, o primeiro deles, o Centro Espírita e Culto de Oração Casa Jesus Fonte de
Luz.
48
Desde seu último parto, o terceiro até então, Francisca Gabriel adoeceu. Era uma doença misteriosa que
atacava principalmente sua pele. Sem que os médicos detectassem sua mazela, com o corpo coberto de
furúnculos e sentindo muitas dores físicas e emocionais, ela não mais saia de casa devido sua aparência que
chegava a causar incômodo nas outras pessoas.
63
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Príncipe Espadarte, na terra é Dom Simião e, Soldado Guerreiro Príncipe da Paz no plano
Astral. Antonieta do Nascimento, sua filha mais velha, era uma criança bem pequena nessa
época, mas lembra com clareza desses primeiros anos da mãe junto à missão de Daniel.
“Eu tinha cinco anos quando ela começou. Quando eu comecei a entender e ela
táva iniciando né essa missão. Por motivo de ... ela tava doente né aí então ela
procurou ... Os médicos desenganaram ela e ela veio. Papai trouxe ela pra
conhecer o Mestre Daniel, pra fazer uma cura e então ela veio e ele (Daniel) foi
e rezou nela e prometeu a ela que ia ficar boa. Depois que recebeu a cura, ela
disse que se ficasse boa né ela - até antes de receber a cura - ela disse que se
ficasse boa ela ia prestar obras de caridade. Ai ela ficou. Foi quando ela
iniciou. Depois de sete anos foi que ela ficou boa. E nesse tempo ... há pouco
tempo que ele (Daniel) tinha iniciado a igreja porque ele era ... ele tinha vindo
da igreja de Irineu Serra né. Então ele ... praticamente eles (Daniel e Dona
Chica) iniciaram quase juntos né. Ele iniciou com ela quase quando ele recebeu
a missão”. (Rio Branco, 27 de maio de 2007).
Em fins de 1990, depois de ter atuado por 34 anos como uma das principais
médiuns do então Centro Espírita e Culto de Oração Casa Jesus Fonte de Luz, Dona Chica,
por motivos de ordem política, deixa o centro, que na época era dirigido por Manuel
Hipólito, para dar início a sua própria forma de trabalho no Centro Espírita Obras de
Caridade Príncipe Espadarte que fundou juntamente com outros adeptos dissidentes, os
quais resolveram acompanhá-la em sua caminhada. Embora Goulart (2004:149) afirme que,
pelo fato de os trabalhos espirituais de Francisca Gabriel serem bastante requisitados pelos
fiéis e visitantes (tanto na igreja quanto em sua própria casa) Manuel Hipólito (dirigente do
Centro-Mãe) teria percebido nela uma ameaça à sua posição de liderança, me parece que o
processo de cisão expressava questões de outra natureza e relacionadas a diferenças de
concepções e de práticas acerca do desenvolvimento mediúnico, de tipos de transe ou
formas de manifestações de determinadas entidades. Enfim, a Madrinha Chica organiza sua
igreja como uma vertente da linha deixada por Daniel Pereira de Mattos, mas acrescenta a
esta um toque peculiar que a aproxima cada vez mais das religiões afro-brasileiras com
destaque para umbanda49.
49
Sandra Goulart acredita que (2004) as associações entre o centro de Francisca Gabriel e cultos afro-
brasileiros resultam, em parte, da ligação que alguns de seus familiares têm ou tiveram com religiões como o
candomblé e a umbanda.
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Manuel Hipólito, depois de anos usando o tabaco nos trabalhos com os pretos-velhos, percebeu que o fumo
era um vício prejudicial à saúde e decidiu que as entidades que atuavam no centro que dirigia não deveriam
mais trabalhar com esse tipo de artifício. (Goulart, 2004).
66
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posicionamentos nesse mundo, de suas identidades sociais. Compreende-se a partir daí que
uma das formas elementares do poder político consiste no poder quase mágico de nomear e
de fazer existir pela virtude da nomeação.
“Ele tava iniciando lá (na igreja dirigida por Manuel Hipólito), mas aí como o
trabalho dele era de desenvolvimento (mediúnico) e lá não consentia ... então o
Soldado Guerreiro (Dom Simeão) trouxe ele ... foi quando ele iniciou aqui com
ela (a Madrinha). Foi que desenvolveu ele”
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sociedade como um todo) caracteriza a criação de novos grupos. Assim, também surgiu o
Centro Espírita Obras de Caridade Príncipe Espadarte no contexto das religiões ayahuasca.
Nos parâmetros de Bourdieu, a linha da Barquinha seria um campo religioso
construído a partir de princípios de diferenciação, sendo ainda formado por centros aí
posicionados e cada qual com suas peculiaridades fisiológicas e morfológicas. Porém, todos
eles, de certa forma, mantêm uma relação de interdependência entre si, já que têm em
comum a mesma base de representação do mundo social que, neste caso, seria a própria
doutrina deixada pelo fundador, Mestre Daniel.
Rosangela, uma adepta da Barquinha que optou por deixar a igreja de Manuel
Araújo para seguir Chica Gabriel, em entrevista quando questionada sobre a diferença entre
o chamado centro-mãe e a casa da Madrinha responde:
“A única coisa que é diferente (entre ambas as casas) é que nós (Igreja dirigida
por Chica Gabriel) trabalhamos com os preto-velhos no gongá e eles (os
pretos-velhos) fumam cachimbo, só isso, mas é a mesma linha, é o mesmo
trabalho”. (Rio Branco, 01 de junho de 2007)
51
Esse termo é utilizado devido ao destaque que é dado aos Pretos-velhos nos rituais da Barquinha da
Madrinha Chica.
68
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“Eu acho que de certa ... inconscientemente as coisas já eram assim ...
ordenadas né porque eu passei um ano lá (Centro Espírita e Culto de Oração
Casa Jesus Fonte de Luz), mas esse ano que eu passei no Manuel Araújo eu
não tinha tanta aproximação com a Madrinha Chica. Tinha normal como tinha
com toda a irmandade né, mas eu gostava muito dela e sempre quando
terminava os trabalhos lá a gente dáva uma passadinha na casa dela e tal. Já
rolava várias coisas de longos anos, de longas datas entre eles, aquelas guerras
políticas mesmo de padrinhos, madrinhas ... Então por conta disso ... Ninguém
sabia disso né, mas a gente gostava muito dela e eu fui pelo carisma dela, pela
bondade dela, pela integridade dela, por ser uma pessoa justa né. Que eu nunca
vi ela falando mal de ninguém, quem quer que fosse. Mesmo as pessoas que
maltratavam ela, eu nunca vi ela falando mal, então eu achava ela uma pessoa
íntegra nesse sentido e ... eu fui e fiquei”. (Rio Branco, 28 de maio de 2007).
“The first Romaria they followed at the Casinha was the Romaria for Saint
Sebastian (January 1 to 20), in 1991. Many of the members of that starting
community were not developed mediums at the Casa de Oração, simply because
there were no space for them to work there. The group of mediums working at the
Casa de Oração is restricted only to those working at the Obras de Caridade
ceremonies. In the new Center, there was a new opening for the opportunity for
many more of the community to have their mediumship developed” (Mercante,
2006:107)52.
52
“A primeira romaria cumprida na Casinha foi a romaria de São Sebastião (01 à 20 de Janeiro), em 1991.
Muitos dos membros que estavam iniciando a comunidade não eram médiuns desenvolvidos na Casa de
Oração, simplesmente porque lá não havia um espaço para que eles pudessem trabalhar. Na Casa de Oração o
grupo de médiuns desenvolvidos é restrito para o trabalho nas Obras de Caridade. No novo Centro foi
disponibilizado um espaço maior para que mais médiuns da comunidade tivessem a oportunidade de
desenvolver suas capacidades mediúnicas”. (Mercante, 2006:107).
69
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A igreja atual, que foi desenhada por um dos adeptos, começou a ser construída em
1993, sendo inaugurada em maio de 1996. A partir daí a Casa começa a ser reconhecida
como mais um centro da linha da Barquinha, tornando Francisca Gabriel também uma
reconhecida líder espiritual. Em 31 de dezembro de 2000 a Madrinha, juntamente com a
irmandade, adota um fardamento especifico53 para simbolizar os “marinheiros” aos quais
dirige no Centro Espírita e Obras de Caridade Príncipe Espadarte.
Atualmente o centro da Madrinha Chica em Rio Branco está com 17 anos de
existência com o número de 150 pessoas cadastradas dos quais 130 são fardadas. Em sua
administração temos: Dona Chica Gabriel na presidência, Alcimar (seu filho) como Vice-
presidente e Guedes na tesouraria. No que diz respeito ao espaço físico organiza-se em
cinco principais lugares: o terreiro, o cruzeiro, a igreja, o gongá e a casa de feitio (onde é
produzido o daime). De acordo com os membros os trabalhos aí realizados seguem todas as
orientações deixadas pelo Mestre Daniel.
Os rituais na igreja acontecem em volta da mesa em formato de cruz que permanece
em frente ao altar onde está disposta uma diversidade de santos católicos. Ao redor da mesa
existem duas filas de cadeiras de cada lado e outras duas (cadeiras) em uma das
extremidades da mesa, aquela que representa os pés da cruz, em frente para o altar. Apenas
os membros fardados devem sentar-se à mesa, onde homens permanecem do lado direito e
mulheres no oposto. A presidente da sessão, Francisca Gabriel senta-se aos pés da cruz do
lado de seu filho João Batista (Joca) que lhe auxilia nos trabalhos. Ele toca (violão) e canta
a maioria dos salmos nas sessões. De acordo com os fiéis, é neste espaço (tendo como foco
a mesa) onde é gerada toda a “força” (um tipo de corrente energética transpessoal) que dá
estruturação aos trabalhos realizados na Casa. Nos trabalhos oficiais54 os membros efetivos
usam uma vestimenta (farda) branca durante os encontros realizados no interior da igreja
que lembra aquelas usadas na Marinha, consistindo em calça e camisa de mangas longas,
além de um quepe.
53
De acordo com Cléia o fardamento foi direcionado aos adeptos que “iniciaram o compromisso com a
Madrinha desde o início”. Ela própria se fardou também neste ano.
54
Os trabalhos oficiais são as Obras de Caridade, Prestações de Contas, os festejos e trabalhos da Semana
Santa.
70
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“Na quinta-feira é atendimento das Obras de Caridade aos irmãos que vem no
sábado pela primeira vez e se consultam com o preto-velho ai se tiver alguma
demanda55, algum trabalho assim ... mais forte aí eles (os pretos-velhos)
marcam pra quinta-feira pra atender” (Rio Branco, 01 de junho de 2007).
55
Um trabalho de magia negra realizado por terceiros com objetivo de prejudicar determinada pessoa.
72
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56
A igreja da Baixinha (Flor da Montanha) localizada em Lumiar é responsável pela criação de uma vertente
da linha do Santo Daime. Conhecida pelo nome de Umbandaime abriu um espaço maior nos rituais deixados
pelo Mestre Irineu para se trabalhar aspectos relativos as religiões afro-brasileiras como umbanda e
candomblé.
57
O Céu do Mar (localizado no bairro de São Conrado no Rio de Janeiro) é uma ramificação da linha deixada
por Irineu Serra.
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58
A palavra “liberdade” é bastante usada pelos próprios adeptos para se referir ao tipo de trabalho espiritual
que ali é realizado, embora o termo esteja bem mais ligado a uma questão de procedimento administrativo do
que de “liberdade” no sentido literal da palavra. Na Barquinha da Madrinha Chica é dado às entidades pretos-
velhos mais autonomia pra trabalhar na casa. Eles fumam cachimbo, usam pemba (um tipo de giz) para riscar
ponto (fazer desenhos que simbolizam o trabalho espiritual que estão realizando em determinado momento)
no gongá, etc.
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As técnicas usadas foram: a entrevista semi-estruturada e a História de Vida através da conversa informal.
Apenas as entrevistas foram gravadas. No entanto, em alguns casos, o ritmo que esta tomava ficava a cargo do
entrevistado. Algumas histórias de vida foram relatadas a partir de entrevistas.
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A Dinda
No dia 26 de Abril de 1977 nasce em Rio Branco mais uma neta da Madrinha
Francisca, Willicléia Ferreira do Nascimento. Cléia, como ficou conhecida, morou no Acre
até os cinco anos de idade, quando se mudou com a família para Natal no Rio Grande do
Norte. Aos 13 anos de idade retornou a cidade de origem e aos 14 tomou daime pela
primeira vez na igreja (que acabara de entrar em processo de estruturação) dirigida por sua
avó.
Em conversa informal, Cléia relembra com alegria esses primeiros momentos de sua
história dentro da doutrina de Frei Daniel. Nessa época os encontros aconteciam na
Casinha, localizada ao lado da residência de seus avós, que sempre estava com lotação
máxima. Ela achava tudo muito divertido e gostava de sentar, juntamente com a tia mais
nova, próximo a Madrinha durante os trabalhos de mesa.
Com 16 anos casou-se com Carlos Renato em uma cerimônia realizada por sua avó,
Francisca Gabriel. Com ele aprendeu bastante sobre os trabalhos desenvolvidos no centro,
mas foi através dos ensinamentos da Vó da Calunga (preta-velha que incorpora em sua tia
Neide) que aprofundou cada vez mais seus conhecimentos, prosseguindo assim seu
desenvolvimento espiritual e mediúnico.
Sobre essa época Cléia conta:
“ (...) Então ... eu ia mais pra acompanhar a minha mãe (Antonieta) que é a
filha mais velha da nossa Madrinha, a Vó Francisca, visitando a igreja com
quatorze anos de idade. Então eu comecei a tomar o daime com a minha tia que
é mais nova que eu três anos. Tomava o daime sem ter entendimento algum, mas
pra conhecer também (...) Dentro dessa caminhada com o daime com pouco
tempo veio o lado do meu desenvolvimento, o lado mediúnico na festa de
terreiro e foi quando aumentou meu interesse de tomar daime né por eu sentir a
presença dos seres, as entidades se aproximando, principalmente as crianças,
os erês. A primeira incorporação foi com a Jureminha que é meu erê. E ai eu fui
tomando o daime e tendo um entendimento com quatorze anos, quatorze, quinze
... Com dois anos tomando daime eu tava já num processo mais ... vamos dizer
que mais ... não sei se posso dizer elevado ... mas já numa fase de
desenvolvimento boa. Com dezesseis anos já tinha um entendimento maior do
que que era realmente o daime, diferenciar a incorporação de um trabalho de
mesa. Comecei a me identificar mais com esse trabalho da parte de
concentração, aprender a rezar, essa disciplina de rezar, conhecer os hinos,
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salmos, gostar de cantar. Então eu aprendi muita coisa com tudo isso, com o
daime em si. Então eu casei dentro dessa caminhada com dezesseis anos
(inaldível) também teve uma participação ... pelo meu marido na época ser uma
pessoa mais antiga na casa e ter um entendimento maior né. Ele já fazia parte
das Obras de Caridade, então isso me ajudou muito porque eu entrei no salão
também como cambone60 pra ajudar os pretos-velhos. Ajudei a Vó Maria Joana
(entidade/preta-velha que incorpora em Carlos Renato) por pouco tempo. E
ajudei uma preta-velha que pra mim foi quem me ajudou muito no meu
desenvolvimento que é a Vó da Calunga. Eu tenho ela como madrinha, minha
madrinha na realidade na casa . É uma preta-velha de muita força no salão de
cura. Então essa foi a parte em que foi acontecendo meu lado mediúnico dentro
dessa caminhada. Com dezesseis anos, dezessete, dezoito anos eu já estava
incorporando já outras entidades, além do erê, que eram caboclos dentro do
terreiro e começando minha incorporação com a Vó Maria Clara que é a preta-
velha que até hoje presta Obras de Caridade”. (Rio de Janeiro, 10 de outubro
de 2007)
Construindo um barquinho
A despretensiosa vinda do casal, Cléia e Carlos Renato, ao Rio de Janeiro não
apenas mudou suas vidas por completo como também mudou a vida de muitos cariocas
“moderninhos” que nem de longe podiam imaginar que trocariam as “noitadas” na Lapa e
em Santa Tereza pelo prazer de rezar e cantar numa igrejinha cristã funcionando na varanda
de uma casa em Niterói.
60
Assistente das entidades espirituais incorporadas nos médiuns nas Obras de Caridade.
61
Grande parte da Irmandade carioca se refere a Cléia carinhosamente como Dinda (madrinha).
78
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O inicio de tudo foi bem difícil. Durante uma entrevista no apartamento que morava
no Catete, Cléia conta como a igrejinha foi tomando forma62:
“(...) Eu não esperava. Não tinha essa pretensão. Sei que o Cacá (Carlos
Renato) também não tinha essa pretensão de ter uma igreja firmada, um
compromisso firmado no Rio de Janeiro, um trabalho da Barquinha em si. Tudo
começou por pura necessidade de tomar o daime porque nós estávamos
distantes da doutrina e por sentir saudade, necessidade de estar com as
entidades com as quais a gente prestava caridade (...)
Eu vim para o Rio de Janeiro, não por conta do trabalho espiritual, mas pelo
lado pessoal, pra estudar. Nessa caminhada eu passei a tomar daime em casa,
nesse quartinho aqui, nesse apartamento, atendendo uma irmã que tava
necessitada (...) Essa irmã já tinha sido atendida pela vó (a preta-velha Maria
Clara) lá em Rio Branco na nossa igreja. Aí eu vim embora pra o Rio e essa
irmã me procurou aqui em casa e eu falei pra ela que se ela tivesse um lugar
que eu pudesse tomar um daime com ela, rezar e chamar a vó eu podia fazer
isso com ela. Então esse trabalho começou com essa irmã, aqui em casa nesse
quartinho de empregada que tem no fundo da casa. Então ela (a preta-velha)
veio atender essa irmã. Eu não tinha lugar pra fazer o trabalho e aí elas
marcaram e foram na praia. Esse trabalho aconteceu na praia. A preta-velha
prestou a caridade, ela alcançou o que ela queria e ela colocou que esse
trabalho de caridade não poderia ficar somente num quartinho de empregada e
que ela ia lutar pra que a gente tivesse um lugar pra prestar caridade com os
pretos-velhos. Ela achou importante. O Rio de Janeiro ia necessitar de ter esses
irmãos trabalhando nas Obras de Caridade.
(...) Essa irmã era da Flor da Montanha (centro da Baixinha), a Helena. E aí
ela me apresentou a Baixinha, me levou até igreja da Flor da Montanha e
através dessas pessoas alguns irmãos chegaram até a gente.
(...) Eu conheci vários irmãos da doutrina do Mestre Irineu e o trabalho foi
crescendo. Essas pessoas sentiam necessidade de receber um atendimento com
os pretos-velhos (...)
(...) Então o Cacá fazia os trabalhos, cantava os hinos e eu ajudava ele nas
orações e no momento do atendimento, no caso só tinha eu e ele, eu ia pra o
salão atender os irmãos e ele continuava os trabalhos com os hinos. Ainda era
com fitas porque a gente ainda não cantava. A gente colocava as fitas, dava
pausa, fazia as preces, as orações e depois que terminava o ritual com os hinos
ele ia também trabalhar, ajudar com o vô Leôncio (preto-velho que incorpora
em Carlos Renato). Nisso foram chegando pessoas e pessoas (...)
(...) Daí surgiu a oportunidade da gente fazer os trabalhos em uma casa (em
Santa Tereza) que é de uma irmã que está em Rio Branco que é a irmã Celene.
E nessa casa, dentro dos trabalhos de Obras de Caridade, a gente conheceu a
62
Nos textos transcritos uso o símbolo (...) para indicar que a fala do entrevistado tem continuidade (seja
antes ou depois daquilo que foi transcrito). As falas incluídas nos blocos normalmente pertencem todas a
mesma entrevista, no entanto alguns trechos são reorganizados por mim com intuito de dar um
direcionamento cronológico aos fatos já que no diálogo é normal que as pessoas dêem “saltos no tempo”,
retornando ao assunto posteriormente dificultando, dessa forma, o entendimento do leitor. As palavras em
negrito e entre parentes são grifos meus que poderão ajudar na compreensão das falas.
79
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irmã Andréia e desse trabalho com a Andréia a gente chegou até a casa dela e
hoje é o centro que a gente ta realizando os trabalhos (...)
(...) Com todas as dificuldades, morando nesse apartamento pequeno foi aqui
mesmo que aconteceu nessa varanda ... O preto-velho Leôncio vinha aqui
mesmo e chamava de poleiro. Era muito engraçado sair do terreiro no chão e
barro (no gangá em Rio Branco) e ta aqui pendurado num apartamento no
sexto andar. Então realmente há uma diferença grande. Hoje eu sou mais que
grata porque temos um lugar nessa imensidão que é essa cidade, mas tem um
lugar que tem tudo: terra, mata, floresta. Tem tudo. Tenho mais que agradecer
porque é um grande presente pra quem começou nesse quartinho hoje ter um
terreiro grande, a coisa se expandiu. Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo”.
(Rio de Janeiro, 5 de fevereiro de 2007)
No entanto, antes mesmo da viagem de Cléia e Carlos Renato para o Rio de Janeiro
Sidney, que havia conhecido a igreja da Madrinha no Acre, costumava se reunir com
amigos em sua casa em Maricá (Rio de Janeiro) para tomar daime e ouvir salmos da
Barquinha. Andréia (adepta fardada que trabalha nas Obras de Caridade) me contou que a
primeira vez que participou de um trabalho da linha foi nesta casa durante uma visita da
Madrinha ao local. Fardada há anos na Doutrina do Mestre Irineu, no Céu do Mar, ela se
encantou pelo que viu em seu primeiro encontro com Chica Gabriel.
“Esse tempo que eu conheci a Barquinha foi um tempo que eu ainda era da
linha da Doutrina do Mestre Irineu e Padrinho Sebastião. Era muito feliz,
graças a Deus, mas tinha a questão das minhas entidades né. Na realidade nem
eu tinha consciência disso não ... Eu não tinha consciência disso! E então
chegou um momento dentro dos meus trabalhos espirituais que tudo se fechou.
Tudo se fechou. Tomava daime assim e via meus caminhos todos fechados, uma
dificuldade muito grande e nesse tempo eu nem sabia quem era a Madrinha
Chica Gabriel, nem o fundador, enfim. Muitas pessoas olhavam pra mim e
diziam ‘pô, você tem a cara da Chica Gabriel, do povo da Dona Chica Gabriel’
e eu dizia ‘pô ... vocês podem saber né, mas eu não sei. Não conheço né. Então
fica difícil dizer algo’. Mas as pessoas me diziam isso. E aí num trabalho difícil
que eu tive esses anos atrás (na linha do Santo Daime) né uma entidade se
apresentou pra mim (em miração) que foi minha cabocla Jurema e tá comigo
até hoje. Ela me disse o seguinte: ‘Enquanto suas terras e toda essa casa aqui’63
que é a casa que hoje a gente tem, a Barquinha ‘não for de caridade sua vida
não vai pra frente’. E aquilo me assustou muito. Me assustou porque pra mim
eu já fazia a caridade. Eu seguia dentro do Céu do Mar, eu fazia todos os
63
Andréia se refere ao terreno onde está localizada sua casa (a qual abriga atualmente a sede do núcleo da
Barquinha em Niterói). Este terreno é uma propriedade pertencente à família de Ivan (marido de Andréia).
Dentro do terreno, além da casa (onde acontecem os trabalhos de mesa), existem os demais espaços que são
usados pela igreja: o gongá (ao lado da casa), o espaço do cruzeiro que fica um pouco acima do gongá e o
terreiro onde estão construindo a sede definitiva da igreja). Está programada a visita de um topógrafo ao local
para avaliar a parte das terras que cabe a Ivan para que elas possam passar legalmente para seu nome. Quando
Andréia recebeu o “aviso” no referido trabalho ela ainda não morava em Niterói.
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trabalhos, todos os meus compromissos oficiais ... era uma irmã da casa como
eu sou aqui. Ia para os trabalhos. Quando eu não podia ir por causa dos meus
filhos o Ivan (marido) ia e nós nos revesavamos. Nós tivemos três filhos então
primeiramente as crianças e nós nos revesavamos para que pudéssemos cumprir
os nossos compromissos com a igreja. Mas aquilo ficou na minha memória e
dalí pra frente nós tivemos muitas dificuldades espirituais, o Ivan ficou
desempregado, enfim. E nesse finalzinho de 1999 pra 2000 (...) nós já
morávamos nessa casa (em Niterói), eu soube do trabalho da Francisca
Gabriel, da Madrinha Chica, que estava no Rio né. E eu fui conhecer os
trabalhos dela em Maricá. A Madrinha estava fazendo um trabalho, fui lá
conhecer o trabalho e realmente foi uma coisa que me deu medo (...) Eu fui lá
tomei daime e de repente eu olhei o povo bailando assim ... que eles fizeram
uma festa depois do trabalho de mesa e eu me encantei com aquilo e eu me
assustei. Me assustei porque eu vi que alguém tocou uma corneta e eu tava
escutando essa corneta e era uma chamado! Então aquilo me apavorou! Me
apavorou assim ... eu estava no Céu do Mar a quase dez anos já de casa. Tive
meus filhos quase todos lá. Antes de eu engravidar de eu ir morar com o Ivan eu
já tomava daime lá ... eu fiquei com medo. Fiquei com medo porque foi uma
coisa muito forte, além de mim ... além de mim! Além das minhas forças.
Chegou o momento que não se tem pra onde fugir ... foi bem por ai. E aí foi
quando eu conheci a Madrinha Francisca. Gostei dela. A impressão que eu tive
é que ela veio no Rio de Janeiro e jogou uma tarrafa e eu fui no meio dessa
puxada que ela fez no Rio de Janeiro” (Niterói, janeiro de 2007).
“Na verdade ele não era um irmão da doutrina em si, um oficial, mas alguém
que conheceu o trabalho no Rio de Janeiro com um irmão daqui da nossa igreja
(a matriz) que foi de férias, levou o daime com algumas fitas, com os salmos e
eles tomaram o daime e daí ele veio visitar nossa Barquinha, nossa central. Ele
(Sidney) levou um daime com ele pra tomar né como medicamento. Ele tinha um
problema de saúde e passou a fazer alguns trabalhos. Só que não se adequou a
Casa, então ele teve dificuldade porque não tava preparado pra levar o
trabalho porque não tinha o conhecimento. Ele não tinha um preparo pra levar
a frente um trabalho assim por não ter muito conhecimento. Então foi uma coisa
que durou pouco (...) Na verdade não foi pra frente. Ele não conseguiu um
número de irmãos, ele não tinha experiência, ele não tinha preparo pra isso e
não deu certo. Nunca foi oficializado” (Rio Branco, 29 de maio).
81
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“(...) Era nesse esquema: eles (Cléia e Carlos Renato) alugavam uma casa no
final de semana ou iam pra casa de alguém e marcavam um trabalho ‘a gente
vai tomar um daime’, ‘vai cantar um salmo’, ‘vai fazer uma gira’. Aí foi assim
que eu conheci o formato do trabalho da Barquinha (...)” (Rio de Janeiro, 5 de
fevereiro de 2007/ Entrevista com Alessandra)
A partir daí Alessandra torna-se uma fiel escudeira de Cléia e as duas juntas formam
uma dupla cujo laço de amizade excede o espaço da igreja. Ela foi uma das pessoas que
sempre esteve ao lado de Cléia, mesmo quando as coisas estiveram difíceis na história da
Barquinha de Niterói. Ainda sobre os primeiros tempos, já em Santa Tereza, Alessandra
conta:
“Na casa de Santa Tereza a gente tinha o espaço pra fazer o trabalho e paralelo
a isso, a casa era imensa, mas tinham outros moradores aí começou a ficar
inviável, começou a ficar meio conflituoso sabe. Às vezes a gente tava fazendo
lá em cima na varanda (o trabalho) e lá em baixo tinha uma festa, um forró. Até
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que chegou uma fase que ... não sei detalhes, mas que não se pode mais fazer
trabalho lá. Foi aí que ficamos sem lugar pra fazer trabalhos ... uns meses (...)
Aí nessa época a gente tomava daime no apartamento (do casal). Quando era
um dia grande (trabalho oficial) a gente tomava daime só quatro cinco pessoas
no máximo. Ou até tomava daime na praia, na praia do Pepino”.
Tânia Rosa por sua vez entrou em contato com a Barquinha através de um trabalho
de Cura que a Madrinha Chica, juntamente com seu filho Joca, realizou no centro da
Baixinha em prol da recuperação desta última que havia sofrido um Acidente Vascular
Cerebral (AVC). Tânia era fardada na Doutrina do Santo Daime há cerca de dez anos
quando optou por seguir a linha de Frei Daniel.
“(...) Veio o Joca e depois veio a Madrinha e foi assim que eu conheci a
Barquinha e me encantei pelo negócio porque eu vi que a veia da mediunidade
tinha alguma coisa a mais (...) Depois de várias coisas que me aconteceram eu
fui parar em Rio Branco, passei dois meses lá na matriz mesmo e nessa fase eles
(Cléia e Cacá) távam sem lugar pra fazer o trabalho (no Rio de Janeiro) e tinha
a casa de uma amiga que é a Andréia e é onde o trabalho é feito hoje e eu pedi a
casa dela”. (Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2007/ Entrevista com Tânia
Rosa)
Tânia conhecia Andréia há algum tempo e serviu como ponte entre o grupo carioca
da Barquinha que estava se formando e a atual sede da igreja que funciona na residência de
desta última em Niterói. Sobre essa conversa entre as duas Andréia relembra o por quê de
ela ceder sua casa ao casal quase desconhecido64:
“Quando eu fui pra Rio Branco65 minha casa ficou fechada. Minha casa ficou
fechada porque eu não sabia qual era o tempo que eu ia ficar lá. Eu sai meio
assim ‘ vou ali e só Deus sabe quando eu volto, mas não pretendo demorar’
entendeu? E quando eu cheguei em Rio Branco ... cheguei em fevereiro (...)
Minha casa estava fechada e eu não sabia que eles estavam com problemas de
falta de um lugar pra realizar os trabalhos no Rio. Aí a Tânia, (...) veio me falar
que Cacá táva precisando de uma casa e que minha casa tava fechada (...).
Antes dessa história toda eu já tinha sonhado com um gongá (...). Minha vó (a
vó da Andréia que já havia falecido) ela voltou (em sonho) e ela falava de um
gongá (...) Mas aí eu falei ‘ e aí? Eu não sei o que é um gongá’ porque eu era
do Daime. Eu nunca fui na linha de Umbanda, eu nunca segui, eu nunca tive
preparo em outra casa (...) E a vó Natalina falava (...) ‘Eu vou fazer uma
64
Andréia conheceu Cléia em trabalhos que freqüentou da linha da Barquinha durante o período em que Dona
Chica esteve no Rio de Janeiro. A Carlos Renato foi apresentada na Igreja do Céu do Mar.
65
Ivan, que é engenheiro civil, conseguiu um emprego em Rio Branco e morou lá com a família por volta de
um ano.
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viagem e quando eu voltar aqui se eu achar esse gongá cheio de teia de aranha
eu nunca mais volto aqui’ (...) Quando eu cheguei em Rio Branco que eu fui
entender o que era um gongá. Quando eu vi aquela quantidade de preto-velho
trabalhando, prestando Obras (de caridade) e o mestre Irineu me mostrou esse
gongá em um sonho (...) Aí quando chegou setembro a Tânia chegou lá pra
fazer a romaria de São Francisco. Ela falou nessa questão da casa e eu falei
que poderia emprestar com certeza. ‘A eles eu empresto’. Aí eu conversei com e
Madrinha, conversei com o Cacá por telefone, dei o endereço do meu pai, meu
pai veio aqui com ele (na casa), abriu a casa e tudo e eles começaram a fazer
trabalho aqui e eu continuei em Rio Branco (...) E quando eu voltei não deu
outra coisa. Fiz quase os trabalhos do ano todo, cumprindo aqui (a Barquinha
de Niterói funcionando já na casa de Andréia) e no Céu do Mar. O Cacá e a
Cléia sabiam do meu compromisso com a Doutrina. Eles sabiam que eu podia
optar ou não por me fardar aqui dentro da Barquinha. Se eu optasse por
continuar na Doutrina isso aqui não existiria assim, em termos. Não ia dar pra
conciliar”. (Niterói, Janeiro de 2007).
A tempestade
Até aqui fiz um breve resumo, nas palavras dos próprios personagens, da história do
nascimento da igrejinha de Niterói. A partir de agora procuro aprofundar, sem me estender,
no desenrolar dos fatos que levaram o grupo (que acabara de se formar) a sobreviver
perante as adversidades.
Carlos Renato esteve à frente dos trabalhos no Rio de Janeiro desde que sentiu a
necessidade de tomar daime com sua esposa e companheira de missão, Cléia do
Nascimento. Ele como primeiro médium a ser preparado pela Madrinha, como um aparelho
experiente nas Obras de Caridade estava apto a assumir esse posto. Mas na verdade o que
acontecia era um trabalho em conjunto em que Cacá dispensava uma maior atenção aos
chamados trabalhos de mesa enquanto Cléia se responsabilizava tanto pelo que ocorria no
salão das Obras de Caridade como no terreiro.
Em Niterói as pessoas começaram a participar dos encontros com maior freqüência.
Cada vez mais chegavam novos visitantes e estes, por sua vez, traziam amigos em uma
próxima visita. A casa já contava com um bom número de fardados, sendo Alessandra a
84
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primeira a se fardar. Depois dela fardaram-se: Iledo Júnior (irmão de Cacá), Tatiana, Tânia
Rosa e sua mãe (que hoje não mais freqüenta a igreja), Ivan, Andréia e Patrícia. No entanto
o uso da farda só foi autorizado após a cerimônia de consagração que aconteceu em 2003
no dia de Nossa Senhora Aparecida (12 de outubro)66. Andréia conta que nessa data a
Madrinha
(...) fez um ritual com Dom Simeão, o fundador (Frei Daniel) e todas as
entidades dela. Consagrou todos os irmãos e abriu os trabalhos oficiais. Foi
nesse ano que o Vinte e Sete (ritual de Prestação de Contas) passou a ser um
trabalho de farda no Rio de Janeiro. A partir daí todos começaram a usar
farda”. (Niterói, Janeiro de 2007)
Daniel Rolin conheceu a Igrejinha no ano seguinte durante a romaria de São José.
“Eu conheci a casa através de uma amiga que trabalhava comigo e aí eu fiquei
sabendo do santo daime (o chá). E eu tinha curiosidade. Fui mais por
curiosidade do que por necessidade. Já conhecia a umbanda e aí quando eu
comentei com ela que eu conhecia (a umbanda) e queria conhecer o santo
daime ela ... falou que sabia de um lugar perfeito pra gente. Aí eu fui conhecer
(...) A primeira vez que eu tomei o daime na Barquinha ... eu tomei o daime e aí
passou um tempo assim ... e eu vi tudo tão errado (nesse momento fez reflexões
a respeito de seu cotidiano) ... Aí começou o salmo do Santo Poder Curador e
aí o Cacá canta e tudo ... e eu senti como se fosse vários pretos-velhos ao meu
redor (...) Aí bateram no meu joelho e falou assim: ‘você quer ser atendido por
uma entidade?’ (...) E aí eu fui atendido pela Vovó Maria Rosa (preta-velha que
incorpora em Tânia). (Rio de Janeiro, 26 de outubro de 2007)
O rumo que sua vida estava tomando não agradava Daniel. Seja na parte
profissional, afetiva ou mesmo de saúde as coisas caminhavam com dificuldade, então em
meio à romaria ele fez um pedido ao “Patriarca da Sagrada Família”: para que sua vida
tomasse um outro encaminhamento.
66
Por esse motivo o núcleo passou a ser chamado também de igrejinha de Nossa Senhora Aparecida
85
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Mal sabia Daniel que durante esse meio tempo que deixou de freqüentar a
Barquinha uma tempestade havia se formado ao redor do grupo.
Tentando dar continuidade aos trabalhos em Niterói, Cléia optou por permanecer no
Rio de Janeiro, no entanto esta não foi uma missão fácil para a neta da Madrinha Chica.
Mesmo com experiência de muitos anos na linha da Barquinha, ela se sentiu pouco à
vontade para realizar os trabalhos sem a parceria de Carlos Renato. Aos vinte seis anos de
idade, em uma cidade como o Rio de Janeiro, sem emprego, longe da família e vivenciando
uma separação conjugal, Cleia tentava “arrumar forças para cuidar dos irmãos” da Igrejinha
de nossa Senhora Aparecida.
Daniel relembra essa época falando de seu retorno a Barquinha depois da romaria de
São José que havia cumprido.
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“Muitos irmãos saíram né. Houve uma debandada. E aí nós (ele e Mariana)
ficamos indo pra Barquinha... Foi um período muito difícil. A Cléia não
conseguia nem conversar direito com as pessoas. Aí ela foi lá pra o Acre (...)”
(Rio de Janeiro, 26 de outubro).
Após um período de sofrimento intenso, Cléia resolve seguir para Rio Branco numa
viagem na qual ela mesma não tinha certeza se voltaria. Na Casa da avó ela encontrou
apoio na família, nos irmãos da igreja e dentro dos próprios trabalhos espirituais. Foi em
um desses trabalhos que teve uma visão. Nessa visão ela servia daime aquele casal recém
chegado à igrejinha de Niterói. Cléia, naquela miração, servia a “santa luz” justamente a
Daniel e Mariana. Foi nesse momento que resolveu voltar e dar continuidade ao trabalho
que começou com os cariocas naquela cidade.
Ao saber do motivo que trouxe Cléia de volta Daniel se emociona.
“Quando ela voltou ela falou que tinha tido uma miração ... Ela mirou que ela
tava no Rio de Janeiro e que ela servia o daime pra mim e pra Mariana. E aí
isso ... me tocou muito. Coisa pequena né, mas me tocou muito e aí eu ... enfim...
falei: ‘é aqui mesmo que eu tenho que ficar’”.
“Quis estar no Rio de Janeiro com os irmãos unicamente, pelos irmãos, pela
missão, pela doutrina (...) Eu vim decidida a dar continuidade aos trabalhos
com os irmãos porque eu sabia que eles não tinham condições ainda de realizar
os trabalhos sozinhos e eu vim com essa intenção (...) Pra mim seria muito
difícil eu estar em Rio Branco por um problema pessoal meu ... e que esse
trabalho já existia no Rio de Janeiro, pessoas que necessitavam da doutrina, do
trabalho de Obras de Caridade. Então mesmo com minha separação, vivendo
tudo isso no meu lado pessoal, eu deixei ... tentei separar o máximo que eu
podia , deixar de lado minha dor, meu sofrimento com a separação e resolvi
lutar com os irmãos, levar o trabalho a frente, confiando em Deus, confiando na
doutrina de Frei Daniel e prossegui com o trabalho que o Cacá fazia. Eu já
conhecia o trabalho, acompanhava ele né dentro do trabalho. Então ... foi difícil
pra mim. Foi difícil para os irmãos se adaptarem, mas hoje eu presto trabalho,
faço compromisso, confio plenamente em Deus, confio no poder do daime em si
e presto esse trabalho por puro amor e principalmente pela missão da Irmã de
Caridade (a Madrinha Chica), pelo que ela representa na missão de Frei
Daniel e pra mim ... Vou usar uma palavra das entidade: vó Maria Clara
sempre fala isso que ‘esse lugar, essa casa é um pequeno jardim e que nesse
jardim a Irmã de Caridade colocou a semente dela e essa semente ta sendo
germinada, crescendo’. Então é mais que prazeroso cumprir com esse
compromisso, levantar, estear essa bandeira em nome dela pela caridade que
ela presta ainda nessa terra ao mundo em si. Então representar ela, ter ela no
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Rio de Janeiro nos ajudando, nos orientando que mesmo ela morando no Acre,
mas a gente tá cumprindo com um compromisso que ela até hoje cumpre (...) A
história dela é uma história de muita luta. Por ela eu cumpro com esse trabalho.
Não tenho medo do Rio de Janeiro. Não tenho medo do que possa acontecer no
futuro comigo. Eu sei que a responsabilidade de cumprir esse trabalho é muito
grande e eu sou realmente nova ainda (...). Mas me coloco só como mais uma
irmã. A história é que os irmãos do Rio de Janeiro não tiveram a oportunidade
que eu tive de morar no Acre e de acompanhar o trabalho lá morando na fonte
(na matriz) (...) Hoje o mais importante pra mim é a missão. Então assim eu não
sinto dificuldade de cumprir isso (...) porque eu me entreguei verdadeiramente à
missão. Abracei, como diz mestre Daniel, a caridade. A minha história aqui no
Rio de Janeiro é só essa (...) Essa irmandade pra mim é mais que uma família.
Tenho filhos. Tenho 29 anos, mas meus filhos são os irmãos né. Então minha
vida ta voltada pra isso” (Rio de Janeiro, 5 de fevereiro de 2007).
Andréia me contou que mesmo Cléia sendo a pessoa mais preparada para ocupar o
lugar de Cacá, ela não impôs sua liderança ao grupo, isso aconteceu “naturalmente”.
“(...) a Cléia sentou à mesa como todos nós, cantando os salmos no lugar dela,
que é aquele lá onde a Alessandra senta (lado esquerdo junto à cabeceira). Não
sentou na cabeceira da mesa (espaço reservado ao dirigente). Só que chegou
um tempo que a gente viu que precisava realmente daquele lugar ter uma
representação e eu também achei que seria ela realmente. Ta sentada ali graças
a Deus! Somos jovens e temos os problemas que todo mundo tem, mas estamos
buscando cumprir com esse compromisso que a Madrinha nos confiou. Ela
(Dona Chica) teve aqui né e consagrou essa casa de Nossa Senhora Aparecida”
(Niterói, Janeiro de 2007).
De volta ao barquinho
Eu comecei a fazer trabalho de campo no mês de Janeiro e foi justamente neste ano
de 200767 que Carlos Renato resolveu retornar a igrejinha.
Conheci Cacá em maio durante minha visita ao Acre, um pouco antes de seu retorno
ao Rio de Janeiro. Nesse meio tempo em Rio Branco tive pouco contato com ele. Mas pude
perceber que não participava de todos os trabalhos, no entanto sempre que estava presente
se destacava nos rituais, seja cantando salmos nos trabalhos de mesa ou atuando nas Obras
de Caridade com o Vô Leôncio. Sempre sorridente parecia conquistar as pessoas as quais se
dirigia.
67
Na realidade como já informei anteriormente participei de alguns trabalhos em fins de dezembro de 2006,
mas o encaminhamento mais ordenado do trabalho de campo só se deu a partir da romaria de São Sebastião
em 2007.
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Max Weber (1991:279-290) emprega a palavra carisma para se referir a forças extraordinárias as quais já
foram chamadas de mana, prenda, maga. Coloca que o carisma pode ser um dom vinculado ao objeto ou a
pessoa que por natureza o possui podendo também desenvolvê-lo.
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Acredito que a Barquinha da Madrinha Chica, bem como seu núcleo carioca, se caracteriza não só por ser
uma religião salvacionista, mas por ser amplamente permeada pela emotividade.
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Pelo que eu pude observar tal retorno ocasionou um certo alvoroço nos fiéis. Os
mais antigos estavam felizes, os mais novos desconfiados e eu me perguntava “e agora
como vai ser isso? Quem vai dirigir os trabalhos? Cléia? Cacá? Os dois?”. No entanto, não
posso afirmar se minhas dúvidas também seriam preocupações dos adeptos porque eles
realmente não falavam a esse respeito, mas era notório pela movimentação, agitação,
conversas “aqui e ali” que a volta de Carlos Renato traria mudanças a Igrejinha. E foi
realmente o que aconteceu.
Nos trabalhos de mesa, Cléia senta-se à cabeceira e canta a maior parte dos salmos
desde que assumiu a posição de dirigente. É também ela que se responsabiliza pelas festas
no terreiro. Nas Obras de Caridade, quando precisa se dirigir ao salão pede para outra
pessoa cantar em seu lugar. Com o retorno de Carlos Renato seus deveres continuam os
mesmos, no entanto, ela aprecia a ajuda bem vinda daquele que outrora tanto lhe ensinou.
Sentado a direita da cabeceira, Cacá divide com Cleia a função de cantar nos
trabalhos de mesa. No terreiro ajuda naquilo que for preciso e nas Obras de Caridade
trabalha com seu preto-velho dando assistência aos irmãos. A preta-velha que ele
“aparelha”, a Vó Maria Joana, tem consagrado os trabalhos juntamente com a vó Maria
Clara. Juntos novamente, Carlos Renato e Cleía procuram prestar a caridade, passando os
ensinamentos recebidos na Missão de Frei Daniel para todos aqueles que procuram ou
seguem a linha da Barquinha em Niterói.
Através dos depoimentos até aqui expostos é possível afirmar que a história do
surgimento da Igrejinha está intrinsecamente ligada as histórias de vidas de seus dirigentes,
bem como de seus adeptos e freqüentadores mais antigos.
Pouco tempo após a chegada de Cléia e Carlos Renato no Rio de Janeiro, estes
passaram a sentir necessidade de reproduzir experiências religiosas as quais faziam parte de
seu cotidiano no Acre. Para tanto precisaram adaptar seu habitus a nova situação. Através
de rituais domésticos que realizavam no interior de um pequeno apartamento no Catete,
deram início a história de mais um núcleo da Barquinha da Madrinha Chica. A
institucionalização do centro de Niterói se deu, portanto a partir de práticas de religiosidade
trazidas por fiéis que, se encontrando fora de seu ambiente de culto, criam uma instituição a
partir de sua experiência pessoal em um novo contexto social.
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O psicólogo (e antigo adepto da Barquinha) Alex coloca que o interesse pela igreja
vai muito além da simples curiosidade ou busca pelo experimentalismo místico. Para ele o
trabalho mediúnico vinculado ao uso do daime é um dos principais motivos da procura pela
casa e conseqüentemente de uma posterior adesão a ela.
“A gente recebe um grupo jovem. A grande maioria das pessoas que vão lá (na
igreja) geralmente são pessoas que já conheceram o daime em algum outro
lugar; pessoas de classe média, de uma faixa etária relativamente jovem que
conheceram o daime anteriormente, mesmo que tenham sido poucas
experiências. É difícil a gente receber pessoas que nunca conheceram o daime,
a não ser que tenham sido levadas por alguém que o conhecem. Geralmente o
que acontece muito é que a gente tem um grande contingente de pessoas que são
de outras igrejas de daime, mas igrejas que não trabalham com espiritismo, que
não trabalham com incorporação, que não trabalham com entidades. E são
pessoas que sentem falta disso e vai se difundindo a idéia de que a Barquinha é
um grupo que tem espaço pra se desenvolver esse tipo de trabalho. Então essas
pessoas acabam buscando, visitando, ficando curiosas, conhecendo por conta
própria muito do trabalho mediúnico que na Barquinha acontece. Eu acho que é
um dos principais motivos da chegada das pessoas na Barquinha: é a busca do
trabalho com os guias, com as entidades, com os pretos-velhos. Acho que é uma
das questões principais: pessoas que sentem falta desse trabalho, pessoas que
tem afinidade com a umbanda, com o candomblé que já tomam daime, mas que
se sentem muito limitados dentro das casas que estão e que não tem espaço pra
isso. E algumas casas até criticam essa necessidade que essas pessoas tem e as
pessoas ouvem falar que existe a Barquinha, que se toma daime que tem um
trabalho espírita mediúnico e acabam batendo, buscando lá e encontrando
determinadas coisas”. (Rio de Janeiro, fevereiro de 2007).
Através destas palavras seria possível cogitar que mesmo a Barquinha sendo
procurada por motivos diversos, seria pela forma especifica de se trabalhar a mediunidade
que grande parte das pessoas se identificaria com o grupo. A partir da identificação à este
espaço religioso específico, esta demanda particular encontra na Igrejinha um lugar de
adesão, seja ela oficial (por meio da escolha pelo fardamento) ou não (onde acontece uma
adesão informal digamos assim). Acredito, pois que seja justamente através dos relatos de
freqüentadores assíduos e membros oficiais que será possível percorrer os caminhos que
levam a construção desse espaço religioso específico: a Barquinha da Madrinha Chica no
Rio de Janeiro.
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Luiz se interessou pelo tipo de daime supostamente mais “forte” que seria servido
em Niterói e por isso quis conhecer o centro, no entanto em sua primeira experiência na
linha da Barquinha não sentiu os efeitos do chá, mas contrariando suas próprias
expectativas, retornou a casa várias vezes por descobrir nela um tipo de trabalho que
descreve como “fino” que diferiria daquele que estava acostumado no Céu do Mar. O
primeiro contato com os pretos-velhos também lhe chamou a atenção e o estimulou em
suas visitas posteriores.
Na ocasião desta entrevista, mesmo com poucos meses de freqüência no centro,
Luiz já ansiava por se fardar. Este desejo foi realizado em Janeiro de 2008 durante a
romaria de São Sebastião quando viajou para o Acre juntamente com duas outras adeptas
para formalizar a adesão através da cerimônia do fardamento. A respeito de sua decisão
pelo Centro da Madrinha Chica comenta:
“É difícil definir com palavras ... eu acho que o que me fez ficar na casa foi
mais .... sentimental mesmo. O que eu sinto nos trabalhos, o que eu percebo, o
que eu já ganhei assim ... Sem contar com a família que eu fiz lá. Criei um
vínculo de amizade pô muito grande muito bom”
70
O endereço do site é:www.barquinha.org.br
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Além da curiosidade foi a intuição que levou Humberto a tomar daime pela primeira
vez e na Barquinha da Madrinha Chica. Afastado da igreja católica já há algum tempo, o
bancário que se considerava uma pessoa nervosa e estressada, encontra finalmente a
serenidade após visitar a igrejinha de Niterói durante a Semana Santa.
Humberto se fardou em Maio de 2007 juntamente com outros três colegas: Thainá,
Alex e Fernando. Ele me contou que fez a opção pelo fardamento por ter se afeiçoado ao
tipo de trabalho realizado pela casa. A farda representaria dessa forma um compromisso
pessoal com este trabalho o qual, segundo suas palavras, em determinado momento se faz
necessário que seja assumido formalmente. Sobre sua relação com a doutrina de Frei Daniel
coloca:
“É uma missão sagrada, é uma grande casa de caridade, uma missão que veio
de cima (...) E dentro dessa missão se ensina a amar a Deus de verdade. Não
que em outros lugares não ensinem também, mas aqui pela quantidade de
trabalho, pela intensidade de trabalho, pelo santo daime, pela disciplina que se
tem que ter entendeu? Tomar o santo daime é você comungar da luz do amor de
Deus e a missão é isso, é ensinar. É uma grande escola pra nós irmãos, pra
quem vem de fora ... de doutrina, de preparo pra você seguir ... e a compreensão
da vida eterna né porque ... quem não trabalha na espiritualidade acha que a
vida é só essa parte da matéria que a gente ta e ... a missão de Frei Daniel traz
muito claro isso, a responsabilidade que é, do que você trás em outras vidas, da
sua família – sua herança espiritual e o que vai ser da sua vida na eternidade. A
cobrança que muitas pessoas começam a receber quando fazem a passagem a
gente começa a receber aqui na vida né pra aprender e zelar. A missão pra mim
é isso – uma grande escola sobre vida eterna. Ensina você a se encaminhar na
espiritualidade, seguir a vida eterna livre e salvo de qualquer perigo porque
essa vida é fácil. A gente seguir ou não seguir, acreditar em Deus ou não
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acreditar, fazer o bem ou fazer o mal ... é fácil né? Deus dá o livre arbítrio, mas
também te dá a doutrina, então segue quem quer ... quem acha que deve seguir
... e é cobrado na vida. Nessa doutrina a gente é cobrado na vida material pra
não pagar na eternidade. Então quem freqüenta a missão é, como a Madrinha
diz, agraciado. Como Frei Daniel disse: ‘é agraciado de ter uma missão porque
é um preparo pra passagem pra morte e pra vida eterna’ (...) Foi na doutrina
que eu aprendi a amar a Deus. Tô aprendendo ainda porque as vezes a gente
acha que amar a Deus é fácil né? Eu acho que ... na minha concepção não é
bem assim. É difícil porque requer sacrifício, requer abrir mão de muita coisa.
Ter uma vida reta como cristão é muito difícil (...) porque pra amar mesmo e
seguir a linha do ensinamento (...) requer sacrifício, requer abrir mão de muita
coisa da vida material que nos prejudica. Então eu acho que não é fácil é difícil
amar mesmo a Deus de coração e eu tô aprendendo ainda né. Tô em
desenvolvimento. O daime cobra, o daime ensina, o daime mostra o caminho
pra você seguir e quem quiser seguir segue”.
Humberto compara a doutrina a uma escola onde se aprende amar a Deus, praticar a
caridade e ter disciplina. Através do daime e da freqüência constante nos trabalhos a pessoa
recebe um tipo de preparo espiritual intensivo. No entanto tudo aquilo que lhe é ensinado
lhe é exigido proporcionalmente. Por isso é necessário manter a disciplina não só perante a
missão como também perante a vida cotidiana. O objetivo da casa é ajudar todos os
necessitados rumo ao caminho da salvação. Porém para poder alcançar esta “graça” será
preciso sanar as dividas carmicas71 através do trabalho intenso no caminho do bem e da
caridade.
A partir daí é possível afirmar que a opção pela farda além de envolver o teor
afetivo propriamente dito está permeada por histórias de escatologias salvacionistas. Na
Barquinha de Niterói esses dois fatores confluem e se fundem para atuar na formação do
adepto. Nos rituais, o daime pode ser considerado como um veículo que viabiliza o
aprendizado do fiel a partir da intensificação de sua emotividade dentro do sistema
cosmológico e doutrinário apresentados. Normalmente os ensinamentos recebidos são
aplicados em seu dia-a dia com vistas em alcançar um possível perdão dos pecados que por
sua vez o levaria ao caminho da salvação.
Diferentemente dos dois casos acima citados, a estudante Thainá chegou à
Barquinha por insistência do pai. Jorge é fardado na igreja Flor da Montanha e freqüenta
assiduamente a Igrejinha carioca. Ao voltar de uma viagem ao Acre insistiu para que a filha
conhecesse o trabalho da linha do Mestre Daniel.
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No dicionário Aurélio a palavra carma significa conjunto das ações do homem e de suas conseqüências.
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“Meu pai me levou. Assim ... eu já era fardada na Doutrina há uns doze anos
(na Baixinha). Ele sempre me pedia ... que ia me levar, levar minhas irmãs e ai
eu falava que não e tal. Eu falava: ‘que Barquinha o que?! Pra ter que voltar a
tomar Daime?!’”. (Rio Branco, 25 de maio de 2007).
Tanto ela como suas irmãs cresceram assistindo os rituais na Baixinha já que seus
pais eram ambos fardados neste centro. Na infância gostava de ir a igreja, mas com o
decorrer do tempo as coisas pareciam perder o sentido.
“Tinha muito tempo que eu não tomava daime e eu não queria (...) Eu não
gostava de tomar daime (...) Ai um dia do nada ele (o pai) me chamou ... Era dia
de Nossa Senhora Aparecida, dia 12 de outubro, dia das crianças. Aí eu fui.
Quis ir e gostei. Aí depois desse dia nunca mais deixei de ir. Hoje em dia
freqüento mais que ele”.
“Eu acho que por conta ... do seguimento ... Eu acho que essa coisa com a reza.
A importância das rezas que traz mais firmeza pra a gente poder seguir nosso
caminho dentro da própria doutrina. Até mesmo pra ter mais segurança na
nossa vida, as coisas que a gente ... consegue ... perceber melhor assim. E
também o nosso preparo das entidades, a segurança que os pretos-velhos
trazem, todos os compromissos que eles passam ”
Assim como Luiz os Pretos-velhos chamaram sua atenção, mas não exclusivamente
pelas longas e confortantes conversas no gongá até tarde da noite, mas pelos compromissos
que estes lhe colocam: os banhos de ervas normalmente são muitos e diversificados, mas
foi através do habito de rezar que a jovem adepta conseguiu conectar-se finalmente aos
ensinamentos que o daime pode proporcionar.
Fardada na Barquinha há pouco mais de um ano, Thainá se alegra em tomar “a santa
luz” na igreja que escolheu para dar continuidade a sua caminhada espiritual. Jorge, por
outro lado, preferiu continuar na Doutrina junto com a Baixinha na Flor da Montanha. No
entanto sua escolha não o impede de freqüentar a igreja em Niterói sempre que possível.
Durante o período em que estive em campo sete pessoas se fardaram na casa. Como
já coloquei anteriormente tive a oportunidade de assistir a cerimônia do fardamento de
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Humberto, Fernando, Alex e Thainá que aconteceu no dia 31 de maio de 2007 no Acre. Em
um outro momento, desta vez em Niterói, pude presenciar a partida de outros três fiéis para
Rio Branco rumo ao compromisso formal. Luiz, Mônica e Júlia vestiram a farda pela
primeira vez no dia 20 de Janeiro de 2008 na romaria de São Sebastião. De volta a igreja
carioca, agora como soldados, eu não pude deixar de notar a mudança significativa no
semblante de todos aqueles que partiram da Igrejinha com uma certa insegurança, mas que
retornaram a ela com a firmeza dos grandes guerreiros.
“Foi um processo lento, chorei muito. Foi uma peia enorme pra mim porque
(...) eu fiz um juramento (na linha do Santo Daime) e na mesa fiquei de pé: ‘Eu
não vou me mudar. Não posso porque chega o momento que a farda não te
pertence’. Depois que você se farda mesmo, o que eu entendo né, seu
compromisso é para com Deus. Não ta no seu domínio. Isso pra aquele que se
farda ordenado por uma ordem divina. Agora os que se fardam simplesmente
pelo ego ou pelo querer deixam o chinelo aqui e vão embora. Agora quando
aquela pessoa se farda realmente dentro de um Mistério realmente guiado por
Deus: ‘seu lugar é aqui, seu caminho é aqui, aqui você vai prestar sua caridade
dentro dos trabalhos, se curar e ajudar os irmãos que chegarem nessa casa’ aí
seu fardamento não te pertence mais. Você não pode dizer assim: ‘Agora eu vou
mudar viu mestre Irineu e vou trabalhar lá com o Frei Daniel porque
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simplesmente eu fui chamada lá’. Tá entendendo? (...) ‘Quem não zela uma
(farda) não zela duas. Quem não zela a primeira não zela a segunda. Então
como é que eu vou assumir um compromisso no qual vou ter de deixar de
cumprir outro? Outra coisa, como é que eu vou destapar um santo pra cobrir
outro?’ E aí a Vó Candura (preta-velha) me botou pra cambonar, adversa a
muitas pressões porque eu não era fardada lá. Eu era fardada na Doutrina e ela
me botou pra cambonar no empurrão mesmo: ‘Tu precisa disso. Você não sabe
o que vem pela frente. Você não sabe o que te espera’. E me jogou dentro do
gongá e aconteceu de tudo eu simplesmente cambonando. Às vezes eu falo que o
amor que a gente tem por uma entidade, o carinho e o zelo é um caminho
infinito de amor porque te abre muitas coisas, muitos ensinamentos que eu
recebi naqueles três meses. Não foi muita coisa que eu cambonei não. Foram
uns três, quatro meses. Não foi mais que isso não. Me sentia perdida, é claro. É
como se eu tivesse falando português e você falando alemão. Então ... foi difícil
pra mim. (...) Quando chegou no final desse ano o Ivan voltou a trabalhar aqui
(no Rio de Janeiro). Eu tive que vir embora. Aí eu cheguei pra Madrinha e fui
sincera com ela (...) ‘Eu só vou fazer (o fardamento) eu tomando o daime e na
minha jornada eu ver realmente que isso vai acontecer’(...) E aí na realidade eu
já tinha visto que tinha que me fardar e me doía muito porque meu amor pelo
Mestre Irineu é muito grande né, continua sendo. Mas no final eu tive que vir
embora e eu falei com a Madrinha né ‘Madrinha vou embora. Enfim, não vou
me fardar. Eu vou voltar pra o Rio de Janeiro, eu vou pra minha igreja (Céu do
Mar) porque é muito fácil tomar essa decisão aqui dentro da Barquinha, aqui
no âmago (na matriz em Rio Branco), mas eu tenho que voltar lá, acender
minha vela lá nos pés do cruzeiro’” (Rio de Janeiro, janeiro de 2007).
Fardada a cerca de dez anos na igreja do Céu do Mar, foi realmente difícil e
doloroso afastar-se da Doutrina do Mestre Irineu. Após voltar da temporada no Acre,
mesmo freqüentando todos os trabalhos com Cléia e Cacá em Niterói, só depois de um ano
que Andréia decidiu se entregar aquela intuição, aquele “chamado” rumo a Barquinha.
“(...) Eu estava passando por esse balanço. Eu nunca escondi, mas chegou o
momento realmente que não deu pra continuar no Céu do Mar. Não pelas
pessoas, não pelos padrinhos, meus amigos da Doutrina, enfim. Os respeito
muito. (...) Então por respeito a casa, por amor a onde hoje em dia eu sigo eu
me pus nessa condição de seguir meu caminho até o dia em que Deus assim
determinar. (...) A Irmã de Caridade me confiou ... não foi só minha vontade não
... de dizer assim: ‘Ah de repente você ficou onde era mais vantajoso pra você’.
Muita gente ia pensar isso né. ‘Afinal de contas você é dona de uma casa onde é
a igreja, onde é a Barquinha, a única Barquinha na linha da Francisca
Gabriel’. Não. Não é isso não. Na realidade cômodo seria pra mim viver como
eu vivia. Eu ia lá (no Céu do Mar) fazendo meus trabalhos e tudo bem e não
teria essa responsabilidade aqui. Tem a Cléia que ta a frente, mas somos todos
nós uma equipe né. A Cléia é a dirigente e eu rogo a Deus que ela esteja nessa
função por muito tempo. É um crescimento pra ela, um crescimento pra gente.
Somos um grupo muito jovem e isso é difícil (...) Acho que eu sou a mais velha,
a irmã mais velha e eu tenho trinta e sete anos e o Ivan tem quarenta e sete (...)
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É um grupo muito jovem. É uma igreja muito nova. A Cléia tem vinte e nove
anos. Então não é fácil ... Foi muito difícil minha decisão. Eu chorei muito”.
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satisfeita e a reafirma a cada dia. No entanto acredita que a opção pela farda deve estar
imbuída por uma determinação divina que provavelmente pode ser percebida durante a
“viagem astral” com o uso do daime. Na visão dela é só dessa forma que o fardamento faria
sentido. Então no memento em que o insistente “chamado” lhe foi finalmente confirmado
Andréia vestiu a nova farda e preparou-se para trabalhar em alto mar junto a Frei Daniel.
No caso de Tânia Rosa, ela havia se fardado há dez anos na linha do Santo Daime
quando foi apresentada ao trabalho da Barquinha. Conta que pouco antes da visita da
Madrinha Chica a Flor da Montanha, alguém lhe alertara a respeito da presença de uma
entidade (preta-velha) que lhe acompanhava e necessitava de desenvolvimento.
“Então quando a Barquinha chegou juntou uma coisa com a outra (...) Não foi
uma coisa que eu fui procurar. Eles chegaram na casa que eu freqüentava e eu
fui levada. Me apaixonei com tanta beleza, tanto primor”. (Rio de Janeiro, 28
de fevereiro de 2007).
Decidir mudar de farda também foi complicado para Tânia, no e entanto ela já havia
passado por um processo de mudança de igreja. Fardou-se no Céu do Mar, mas por
entender que precisava desenvolver sua mediunidade procurou a umbanda da Baixinha e
posteriormente passou a freqüentar a Flor da Montanha.
“Fiquei cinco anos no Céu do Mar sendo que com dois anos de fardada eu
comecei a incorporar. Eu abri a mediunidade. Aí eu fiquei freqüentando
simultaneamente a Baixinha porque ela tem um trabalho de desenvolvimento da
umbanda (...) Enquanto eu tava no Céu do Mar eu ia só pra parte da umbanda
(na Baixinha). Eu ia nas giras cumprir aquele calendário ali de umbanda, mas
os trabalhos oficiais de hinário eu fazia no Céu do Mar. Aí quando eu fui ...
digamos assim ... espiritualmente proibida de freqüentar o Céu do Mar, aí eu
me filiei como fardada do Santo Daime à igreja da Baixinha. Então eu passei a
ser da umbanda e do Santo Daime. Aí fiquei mais uns quatro anos mais ou
menos e foi quando eles (o grupo da Barquinha) vieram com o trabalho pra
Baixinha72”.
Tânia escolheu seguir a Barquinha não só por ter se interessado pelo ritual, mas
também por perceber que esta, além de se caracterizar pela forte propensão aos trabalhos
72
O uso do fardamento na Doutrina do Mestre Irineu segue um padrão em todas as igrejas da linha, então
quando alguém resolve trocar de centro continua usando a mesma farda. No caso de Tânia que se mudou para
a Baixinha, ela continuou usando a farda que vestia no Céu do Mar quando nos trabalhos de mesa, no entanto
na parte de umbanda precisou colocar um fardamento especifico para o tipo de trabalho.
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O carioca Alex, já citado neste texto, é um adepto antigo da Barquinha que tomou
daime pela primeira vez em uma igreja ligada a Doutrina do Mestre Irineu, o Alto Santo.
No ano de 1989, em visita a família no Acre, foi levado pelo primo para experimentar o chá
e conhecer o ritual.
“Voltando pra o Rio de Janeiro, isso era ainda 89, eu conheci aqui o Philippe
que tinha ido lá ao Acre um pouco antes da ocasião que eu fui e tinha recebido
o telefone dele lá. Eu entrei em contato com ele e ele me disse que tava
iniciando aqui (no Rio de Janeiro) um grupo de trabalho ligado a outra linha,
que era a linha da Barquinha, que aqui no Rio de Janeiro, nessa ocasião, ainda
não existia nenhuma casa fazendo trabalho nessa linha. Aí comecei. Eu fui lá
num apartamento bem pequeno no bairro de Botafogo aqui no Rio de Janeiro.
Tinha cinco ou seis pessoas só no grupo. Eu comecei lá com ele. A partir daí o
grupo cresceu, foi se desenvolvendo. Em 1990 eu fui a Rio Branco me fardar e
fiquei depois do meu fardamento durante doze anos lá73”. ( Rio de Janeiro,
fevereiro de 2007).
“ (...) Depois de eu passar doze anos lá (na filial do centro do Manuel Hipólito
no Rio de Janeiro) eu ... enfim ... é ... resolvi por uma série de motivos me
afastar e me aproximar, me integrar num outro grupo da Barquinha que já
existia aqui no Rio de Janeiro há algum tempo. Era o grupo ligado a Madrinha
Francisca que desenvolve um trabalho em Niterói. Na ocasião eu já tinha
ouvido falar algumas vezes (do grupo de Niterói) e tive oportunidade de
conhecer e gostei, me identifiquei. (...) Na ocasião era o Cacá o dirigente junto
com a Cléia e eu fui lá, tive um relacionamento bom com todo mundo, com o
Cacá especialmente. Conversei um pouco sobre a minha história e fui muito
bem recebido lá e lá fiquei. Tô há três anos lá. Então contabilizando desde o
73
Como já foi dito anteriormente a Barquinha tem dois centros de representatividade no Rio de Janeiro: o
núcleo ligado ao centro da Madrinha Chica em Niterói e aquele ligado ao Centro Espírita e Culto de Oração
Casa Jesus Fonte de Luz na capital. É a respeito da formação deste último que Alex fala. De acordo com ele
Philippe organizou e dirigiu o grupo nos primeiros tempos, mas foi Marília, sua ex-mulher, que deu
continuidade aos trabalhos e prossegue em sua direção até os dias de hoje.
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período em que eu me fardei tem quinze anos. Se for contar o período anterior
já vai pra dezessete anos74”.
Como já foi dito, a Barquinha é uma religião nascida na floresta amazônica que
sintetiza traços do catolicismo popular, do kardecismo, do xamanismo indígena e de
religiões afro-brasileiras com destaque para a umbanda. No entanto entre as três principais
igrejas que compõem a linha75 existem consideráveis diferenças. É no contexto ritual da
74
Na ocasião desta entrevista Alex ainda não havia se fardado na igreja da Madrinha Chica. O fardamento
veio a acontecer três meses depois durante o mês de maio. Diferentemente da linha do Mestre Irineu onde em
todas as igrejas é usada a mesma farda, na linha da Barquinha isso não acontece e quando um adepto muda de
centro também muda de farda e deve passar por todo o processo que envolve a decisão pelo novo fardamento.
75
Dentre os seis centros hoje reconhecidos pela linha da Barquinha três se destacam pela popularidade. São
eles: o Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz, o Centro Espírita Obras de Caridade
Príncipe Espadarte (a Barquinha da Madrinha Chica) e o Centro Espírita Daniel Pereira de Mattos.
104
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casa dirigida por Chica Gabriel que a antropóloga Sandra Goulart (2004) percebe uma
maior influência da umbanda. Alex, por sua vez, aponta para esta mesma tendência tendo
em vista o destaque dado ao desenvolvimento mediúnico voltado para o fenômeno da
incorporação. Por outro lado, na visão deste adepto que perpassou pelas duas igrejas, a
direção do centro-mãe procuraria se assemelhar cada vez mais à doutrina kardecista.
Visando esclarecer tais afirmativas a respeito de ambos os centros, farei aqui um breve
resumo dessas religiões mediúnicas que ajudam a compor o universo da Barquinha, o
kardecismo e a umbanda.
105
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A umbanda é uma religião brasileira nascida por volta de 1908 no estado do Rio de
Janeiro. Formada por elementos comuns a Barquinha, se caracteriza por apresentar aspectos
da religiosidade afro-brasileira, do catolicismo popular, da pajelança indígena e do
espiritismo kardecista. Perseguida por décadas pela igreja católica, pela polícia e imprensa
além de outros seguimentos da sociedade, era identificada como religião de negro, bárbara,
demoníaca e, portanto patológica. Teve seu apogeu entre o final dos anos 1950 e início da
década de 1980 e atualmente comemora um século de existência permeada por movimentos
de revitalização que perpassam o espaço de outras religiões bem como de demais formas de
religiosidades.
Muitos de seus lideres federativos tentaram estruturá-la a partir de uma hierarquia
central, homogeneizando seus preceitos e ritos. No entanto a “umbanda se desenvolveu
fragmentariamente, a partir das iniciativas de seus adeptos constituindo seus templos,
centros, tendas e terreiros, tal como designavam seus locais de culto, a depender de sua
proximidade ou distanciamento da cosmologia africana” (Alves Júnior, 2007:5).
Segundo Alves Júnior a luta contra as constantes perseguições e a favor da
legitimação deixou marcas em sua cosmologia aproximando-a cada vez mais do espiritismo
kardecista. Renato Ortiz (1999), por sua vez, sustenta que o que aconteceu foi uma tentativa
de “embraquecimento” promovida por parte de seus integrantes a partir da camuflagem de
seus elementos marcadamente africanos em favor daqueles mais ocidentalizados. No
entanto diferentemente do que se poderia imaginar a antropóloga Diana Brown (Brown
apud Beraba, 2008) constatou que os fundadores dessa religião eram majoritariamente de
classe média. Insatisfeitos com o espiritismo kardecista que praticavam e observadores dos
centros de macumba76 que funcionavam nas favelas passaram a preferir os espíritos e
divindades africanos e indígenas presentes nesta última, considerando-os mais competentes
“do que os altamente evoluídos espíritos kardecistas na cura e no tratamento de uma gama
muito ampla de doenças e outros problemas” (ibid).
76
De acordo com a pesquisadora Tina Jensen (2001) além do Espiritismo Kardecista, a umbanda tem um
importante predecessor na macumba. O termo macumba se refere a várias misturas de religiões afro-
brasileiras com outras que se originaram no sudeste brasileiro, especialmente no Rio de Janeiro. “Macumba é
também um termo depreciativo para baixo espiritismo. Acredita-se que a macumba se originou no Rio de
Janeiro e sua imediações, onde a população dos ex-escravos eram em grande escala do Congo, da Angola e de
Moçambique e foram agrupados de acordo com a nações”. (Jensen, 2001:5)
106
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77
Assim como Durkheim, Weber concebe a magia no pólo da amoralidade, no entanto não a opõe
radicalmente a religião como fez o outro. Para ele “enquanto formas de crença em poderes e seres superiores
ambas se igualariam, opondo-se apenas em termos das atitudes diferenciadas para com estes poderes,
respectivamente de coerção e apropriação. Desta forma, não se excluiriam necessariamente em casos
concretos, podendo combinar-se de formas variadas”. (Negrão,1996:23).
78
Durkheim acredita que a magia está para a amoralidade assim como a religião para a moralidade. A moral
para este autor difere do amoral da mesma forma que o interesse coletivo difere daquele exclusivamente
individual.
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suas divindades através do transe” (ibid:69) de possessão que por sua vez atua como um
dos principais elementos do ritual. Em princípio, de acordo com Ortiz, existem quatro
gêneros de entidades espirituais que compõem o panteão umbandista: os espíritos de luz
(caboclos, pretos-velhos e crianças) e os espíritos das trevas79 (exus). A forma como cada
terreiro manuseia tais forças sobrenaturais vai depender de uma proximidade maior ou
menor entre o espiritismo kardecista e as religiões afro-brasileiras, ou seja, de seu grau de
ocidentalização.
Para entender a multiplicidade dos cultos mediúnicos, Cândido Procópio desenvolve
em seu trabalho intitulado Kardecismo e Umbanda de 1961 a idéia de um continuum
religioso que se deslocaria entre dois pólos, tendo ambas as religiões por extremidades e
entre elas uma infinidade de gradações. Visualiza no kardecismo o “pólo branco, ocidental
e impregnado de ética cristã” enquanto a umbanda é percebida como seu oposto “negro e
mágico”. Criticado por Negrão (1996) por favorecer o pólo kardecista e por Ortiz (1999)
que não acredita na existência de um continuum entre ambas, Procópio tem seu grande
mérito na idéia em si de continuum religioso.
Negrão (1996) coloca que é possível através do continuum demonstrar a
complexidade do campo religioso analisado, “sem apelar a tipologias sempre
insatisfatórias”. Para este autor apesar da validade e utilidade do conceito do ponto de vista
metodológico, haveria a necessidade de redefinir a questão dos pólos. Ortiz por sua vez
usou a idéia de Procópio para compreender os ritos umbandistas a partir dos conceitos de
pólo mais ou menos ocidentalizados. Já para autores como Brumana e Martinez (apud
Negrão: 1996), quando falam a respeito da umbanda, a questão não está simplesmente na
maior ou menor ocidentalização, mas na aceitação ou não da feitiçaria em seus ritos.
Concordo com Souza (2006) quando afirma que o campo espírita se configura a
partir da diversidade de combinações, que podem aparentemente demonstrar contradições,
mas evidenciam crenças e práticas plásticas que sustentam sua mobilidade. O continuum
descrito por Cândido Procópio pode atualmente ser observado em diversas modalidades
rituais.
79
Segundo Ortiz, esta divisão corresponde a concepção cristã que estabelece uma dicotomia entre o bem e o
mal.
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Para este estudo, acredito que a idéia de continuum religioso pode ser útil para
marcar as diferenças, em um primeiro momento, entre as igrejas dirigidos por Chica
Gabriel e o centro-mãe além de suas respectivas filiais no Rio de Janeiro e, por outro lado
as distinções entre a igrejinha de Niterói especificamente e centros ligado ao Santo Daime
(como a Baixinha por exemplo). Para isso acredito que é possível usar a idéia de Procópio
Ferreira de uma possível aproximação em menor ou maior grau aos rituais do kardecismo
ou a umbanda, no entanto é preciso deixar claro que tal escolha é unicamente metodológica
já que todas as igrejas citadas, independente da linha, caracterizam-se por sintetizar as duas
religiões mencionadas.
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nem dizendo que isso seja algo de melhor ou pior, mas são diferenças que quem
vai, quem observa quem conhece as duas casas vê”.
Como já foi colocado neste texto, a liberdade que Alex fala diz respeito à forma
como a Madrinha Chica administra sua igreja. Tanto no Acre como em Niterói, aos
médiuns que trabalham nas Obras de Caridade é disponibilizado um espaço para que
possam realizar trabalhos com suas respectivas entidades de maneira, digamos assim, mais
personalizada. Existe uma abertura para que cada preto-velho possa aplicar seus
conhecimentos (supostamente adquiridos em vidas passadas, sejam terrenas ou espirituais)
contribuindo assim com o objetivo da casa que é de prestar a caridade. No entanto para que
tal abertura possa existir é necessário a vigilância dos dirigentes, a Madrinha no Acre e
Cléia no Rio. Observar o trabalho das entidades em conjunto com os médiuns faz parte do
próprio desenvolvimento de ambos já que a presença, tanto de um como do outro, na
doutrina se justifica pela necessidade em ascender espiritualmente através da caridade.
Para Alex tal especificidade do seguimento de Chica Gabriel dentro da linha da
Barquinha (que diferiria significativamente da igreja de Manuel Hipólito) é um dos motivos
que justifica tanto seu afastamento do Centro Mãe bem como sua posterior aproximação à
igreja da Madrinha.
Não encontrando um espaço para que pudesse desenvolver suas capacidades
mediúnicas a ponto de trabalhar efetivamente com as entidades que lhe “acompanhavam”,
este “marinheiro” resolveu se alistar em um outro setor da mesma Barca. É bom deixar
sempre claro que a linha da Barquinha é uma só, pois todos seguem o mesmo comandante,
Frei Daniel, no entanto ao longo dos anos a Barca foi se reconstruindo, recebendo novos
compartimentos. Esses compartimentos são os novos centros cada qual com suas
características especificas, mas todos sem exceção fazem parte do mesmo Barquinho, da
mesma doutrina. A religião aqui é a mesma, mas a forma como a religiosidade é
experienciada muda consideravelmente. O espaço (termo usado pelos adeptos para se falar
da forma como o desenvolvimento mediúnico é administrado), ausente numa, é um
diferencial na outra.
Foi no gongá da Madrinha Chica que Pai Jacinto passou a trabalhar na assistência.
O preto-velho gosta de conversar bastante: aconselhando e curando todos os que o
procuram. Na Barquinha de Niterói ele aprende o ofício da caridade e, juntamente com seu
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“Acaba que esse grupo de pessoas que toma daime é o mesmo grupo de pessoas
que se encontra fora dos trabalhos ... pra ter uma vida social. Acaba que a
gente cria laços de amizade. São muitos trabalhos. O grupo ta se vendo sempre
todos os fins de semana praticamente. A faixa etária é a mesma a gente se
encontra fora pra programas que a gente tem afinidade”. (Rio de Janeiro, 5 de
fevereiro de 2007).
Já Luiz me falou que a juventude dos dirigentes foi algo que lhe cativou logo nas
primeiras visitas ao centro. A esse respeito diz:
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(sendo este último constituído em sua maioria por pessoas de “meia idade”) quanto na
forma de lidar com o desenvolvimento mediúnico de seus adeptos (em que há uma
resistência por parte dos filiados do centro-mãe em preparar novos médiuns para os
trabalhos na assistência).
Acredito que a jovem Barquinha carioca da Madrinha Chica, assim como sua matriz
no Acre, representa a heterodoxia enquanto que o centro dirigido por Francisco Hipólito e
sua filial estejam voltadas a um direcionamento mais ortodoxo. Mesmo sendo parte de uma
mesma religião entre os centros existem diferenças marcantes. Na Igrejinha de Niterói os
fiéis encontram uma forma singular de trabalhar a mediunidade e conseqüentemente de
vivenciar, cada um a seu modo, um tipo específico de religiosidade. Esta religiosidade por
sua vez não está terminada, mas é construída continuamente pela agencia daqueles que se
engajam nela.
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Débora é uma dessas boas amigas que Cléia conquistou a partir do encontro entre os
dois centros. Esta atriz e fisioterapeuta, que conheceu o daime após ter freqüentado
seguimentos místicos, assistiu de perto a gestação e o nascimento da Igrejinha de Niterói e
hoje se orgulha por também fazer parte dessa história. De família católica, essa garota da
“zona sul” fala sobre seu trânsito entre algumas religiões mediúnicas antes de chegar a
Barquinha.
“Eu já freqüentei um centro espírita Kardecista. Mas acho que foi pouquíssimas
vezes que eu fui lá e aí logo depois ... um tempo depois, antes de freqüentar o
Daime (linha do Santo Daime), eu freqüentei a Ieve81 que é um centro esotérico
que eles juntam várias linhas. Tem muita influência da linha oriental também
(...) É muito legal. Eles trabalham atuados (incorporados) também com as
entidades (...) Eles fazem uma incorporação que é assim mais sutil (...) Eles te
dão uma consulta. Aquela entidade passa vários tratamentos pra você fazer. É
muito legal (...) Eles me fizeram um trabalho que foi maravilhoso (...) Foi muito
bom. Eu até tive vontade de continuar lá, mas depois que eu conheci o daime (a
bebida) eu senti um chamado muito forte. Principalmente quando eu conheci a
umbanda da Baixinha que justamente juntava o trabalho das entidades com o
daime. Foi onde eu me encontrei aí eu fiquei lá” (Rio de Janeiro, 8 de fevereiro
de 2007).
80
Na época que esta entrevista foi realizada havia um certo “mal estar” entre o centro da Baixinha e o
CEFLURIS. No entanto não consegui obter informações precisas a respeito dos motivos que levaram a
Baixinha a entrar em atrito com a instituição. O fato é que durante aquela época na Flor da Montanha se
tomava daime vindo da Barquinha da Madrinha Chica.
81
A IEVE (Irmandade Espiritualista Verdade Eterna) é uma instituição sem fins lucrativos, de direito
privado que tem como um de seus objetivos: o estudo, a pesquisa, a divulgação de conhecimentos numa visão
holística, alusivos às questões místico-espiritualistas e esotéricas, através de abordagens inter, multi e
transdiciplinares (informações retiradas no site: http://hpm.com.br/ieve.html).
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Mesmo identificando-se ao trabalho da Ieve, foi tomando daime pela primeira vez
em uma igreja da linha do Mestre Irineu que Débora sentiu algo determinante, um tipo de
“chamado”. Mas só se entregou inteiramente a vida religiosa após conhecer o Umbandaime
da Baixinha, pois este unia em um mesmo ritual as características que mais lhe agradavam
nas casas anteriores: um trabalho intenso com as entidades incorporadas através da luz do
daime.
Fardada na Flor da Montanha, estava satisfeita por finalmente se “encontrar” em
uma casa que supria suas necessidades espirituais. No entanto após ser apresentada a linha
da Barquinha passou a freqüentá-la de uma maneira tal que chegou ser considerada pelos
membros da Igrejinha como uma “verdadeira marinheira”, embora não tenha aderido ao
fardamento. Então qual seria o diferencial do centro da Madrinha que chamou tanto a
atenção de Débora a ponto desta fazer questão de estar presente na maioria dos trabalhos
em Niterói?
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deu início a um aprendizado mediúnico que passou a refletir em seu trabalho com a
Baixinha.
“Eu sinto uma chamada de minha preta-velha (Tia Catarina), uma necessidade
dela ‘vir mais em terra’ (incorporar) pra poder trabalhar mais. Eu sinto
necessidade dela. E lá na Barquinha ela tem esse espaço (...) Eu sinto ela mais
inteira lá (...) Ela se sente também muito a vontade, aprende muito. Eu acho que
eu aprendo muito com ela. Nós aprendemos juntas assim com o trabalho da
Barquinha entendeu? A coisa da reza nos trabalhos, a maneira de como atender
as pessoas ... o desenvolvimento da entidade de um modo geral. Quando eu
recebo a preta-velha lá é como se fosse uma nova escola. Uma escola diferente,
uma escola com novos mistérios, novos horizontes (...) E reflete muito nos
trabalhos com a Baixinha, tanto nos hinários como nos atendimentos e na gira
(...) É uma outra estrada que se junta”.
Nessa nova escola Débora aprende a lidar com as entidades de uma maneira distinta
daquela que estava habituada no centro da Baixinha. Acredita que através do habito de
rezar, estimulado pelos rituais da Barquinha, é criado um tipo de sintonia mais precisa entre
ela e esses seres espirituais que por sua vez facilitaria seu desenvolvimento mediúnico
dentro dos rituais de ambas as casas82. A conexão energética/espiritual de que fala
vinculada ao trabalho intenso com os pretos-velhos lhe proporcionou uma aproximação
mais íntima com Tia Catarina, tornando os trabalhos no gongá de Niterói essenciais para o
caminhar espiritual de ambas.
No entanto para poder transitar com diplomacia entre os dois centros ela precisa ter
discernimento e atenção para com as diferentes situações as quais lhes são apresentadas.
Este é o caso do trabalho com Tia Catarina. A preta-velha encontrou na Barquinha um
espaço maior, mas nem por isso poderá atuar na assistência, já que Débora optou por
manter o fardamento na Flor da Montanha. Mesmo freqüentando assiduamente os rituais na
Igrejinha desde sua formação, por não aderir formalmente a casa, a ela é vetada a atuação
como aparelho nas Obras de Caridade. Por outro lado a preta-velha poderá conversar
informalmente com os adeptos da Barquinha ou mesmo da Baixinha que por ventura
estejam visitando a igreja.
82
O aprendizado mediúnico vinculado ao habito de rezar é um dos pontos que se repetem não só nas falas de
Débora como também nas falas de vários outros fiéis. Seria o ritual da oração uma ferramenta para
desenvolver a mediunidade? Como isso aconteceria? No próximo capítulo, em que procuro fazer a etnografia
do desenvolvimento mediúnico, este assunto será aprofundado.
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diferencial importante para a formação do tipo de religiosidade que existe neste núcleo
carioca e de seus adeptos individualmente. Muito mais que visitantes comuns essas pessoas
tornaram-se membros informais da Igrejinha, marinheiros sem farda que mesmo filiados a
uma outra linha ajudam a escrever a história do “Barquinho Santa Fé” na cidade de Niterói.
119
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A Barquinha da Madrinha Chica era pra mim até bem pouco tempo a protagonista
de uma história que me fascinava ler. Hoje, bem mais que um nome em uma folha de papel,
é luz, som, calor ... lembranças que trago e levarei comigo por toda vida. O “estar lá” é bem
diferente de ler sobre “lá”. O campo traz a vida real, as pessoas de “carne e osso”, a
experiência “nua e crua” a quem se embrenha por esses caminhos. O pesquisador passa a
ser parte do campo, assim como este, de alguma forma, é assimilado por aquele que vai em
busca de uma descoberta científica e volta, muitas vezes, carregado de uma vivência que
vai muito além daquilo que nossa ciência ocidental é capaz de explorar.
Pretendo aqui relatar minha experiência neste espaço mágico de encontros e
descobertas, procurando expor minhas dúvidas, angustias, anseios, medos, aprendizados,
felicidades, enfim uma parte daquilo que pude experimentar com aqueles que até então não
passavam de personagens longínquos em um mundo distante. Com formação em
jornalismo e tendo defendido uma monografia cuja pesquisa foi totalmente bibliográfica,
me senti outra vez como criança aprendendo com esforço e curiosidade os segredos dos
primeiros passos do trabalho de campo.
Dei início a esta empreitada buscando entender o processo de adesão à Barquinha
carioca. No decorrer do tempo foquei no desenvolvimento mediúnico como “carro chefe”
que permitiria ao adepto experimentar um tipo de religiosidade especifica. Escrevendo este
texto hoje percebi que só pude atinar para este último aspecto porque vivi e ainda estou
vivendo pessoalmente um processo de identificação por esse víeis. A verdade é que me vi
83
Neste capítulo utilizo minha experiência pessoal na Igrejinha para operacionalizar a idéia de que a
religiosidade acionada neste centro está intimamente vinculada a identificação da maioria das pessoas com o
tipo específico de preparo mediúnico realizado e direcionado pelos pretos-velhos. Acredito que minha história
de vida é válida para este fim já que a partir de uma iniciação no trabalho de desenvolvimento mediúnico
dentro da casa, iniciou-se em mim um processo de identificação que solidificou-se com o passar do tempo.
Hoje me sinto uma adepta informal e posso garantir que também sou reconhecida pelos demais membros
como uma “irmã da casa”. Além de minha história de vida utilizei relatos de outros adeptos, mas optei por me
colocar mais enfaticamente no texto por acreditar que a subjetividade do meu relato como
pesquisadora/médium/adepta traria bons frutos ao trabalho acadêmico. No entanto quero deixar claro que
nessa fase do texto me coloco muito mais como adepta de que como pesquisadora. Por esse motivo como
título do quinto capítulo uso a palavra: “auto-etnografia”. Embora não a tenha ouvido anteriormente, creio que
é uma boa palavra para dar sentido ao que me proponho a fazer: 1) etnografar a experiência de transformação
do pesquisador em adepto durante a pesquisa de campo; 2) mapear o desenvolvimento mediúnico e relacioná-
lo a construção de uma religiosidade especifica acionada na Igrejinha;
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aos poucos me transformando no objeto da minha própria pesquisa e acredito que isso pode
ser um fator positivo para a investigação. O fato de me identificar com a casa, a ponto de
procurar desenvolver minhas faculdades mediúnicas, me facilitou a compreensão de
determinadas ações que poderiam passar despercebidas aos olhos de um pesquisador que se
posicionasse metodologicamente mais afastado. A partir daí resolvi então fazer uma
etnografia também de minhas próprias experiências dentro da casa junto com o grupo.
Colocando os termos dessa maneira parece até que vou escrever um diário pessoal
sobre minhas aventuras mediúnicas. Mas esse não é o caso. Só me coloco no corpo do texto
por notar na minha própria história com a Barquinha mais um exemplo no que diz respeito
ao processo de identificação com a doutrina.
Em minha primeira visita a campo que ocorreu entre fins de dezembro de 2006 e
início de fevereiro de 2007, decidi participar de uma romaria do início ao fim. Por ser um
período de trabalho intenso, acreditei que essa seria uma boa oportunidade para colher
material de campo. Para tanto escolhi a romaria de São Sebastião que vai do dia primeiro
de Janeiro ao dia vinte deste mesmo mês. Desembarquei no Galeão poucos dias antes do
início da romaria, aproveitando os trabalhos oficiais de fim de ano84. Mas ao pisar naquela
igreja percebi que, simultaneamente a pesquisa de campo, estava dando início a um outro
trabalho: o desenvolvimento mediúnico dentro dos rituais da casa sob a luz do “santo
daime”.
A igrejinha de Niterói está localizada numa das partes mais altas de um terreno
acidentado do bairro Muriqui Pequeno85. Como informei anteriormente, funciona na
varanda da residência de um casal de adeptos (Ivan e Andréia) enquanto a construção
definitiva está sendo erguida a alguns metros de distância dali no mesmo terreno.
84
Os trabalhos de fim de ano a que me refiro são: A comemoração do Natal, a festa no terreiro em
homenagem a Cosme e Damião, Prestação de Contas no dia 27, trabalho de limpeza e o trabalho da passagem
do ano.
85
Fronteira entre os municípios de Niterói e São Gonçalo. O endereço completo é: Rua Aristides de Melo,
Lote 7, Casa 12, Bairro Muriqui, CEP 24330030 Niterói - RJ
121
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Foi num fim de tarde do dia 23 de dezembro que avistei no alto a igrejinha de cor
azul. Não dava para enxergá-la muito bem lá de baixo porque o lugar é rodeado por
árvores, mas deu pra perceber a movimentação das pessoas. Eu não estava sozinha naquele
dia. Uma amiga me acompanhava. Conheci Débora em Campina Grande dois anos antes.
Ela veio à Paraíba acompanhando seu namorado, Alex, que nessa época já era meu
amigo86. Tornamos-nos amigas e quando eu cheguei no Rio de Janeiro para fazer a
pesquisa de campo ela se ofereceu para me acompanhar naquela minha primeira visita.
Nós subimos uma escada esculpida no barro que levava até a casa. Alex estava me
esperando e foi ele quem me apresentou ao grupo. A varanda tem um formato que lembra a
letra L. Logo na entrada (naquilo que comparo com a parte horizontal da letra L) é possível
ver uma mesinha que contém um livro com assinaturas. Seguindo o espaço em formato de
L, em sua parte vertical estão distribuídas cadeiras de cor branca onde se acomodarão todos
os presentes não fardados. Em seguida existe uma mesa em formato de cruz destinada aos
membros fardados. Sobre esta mesa coberta com uma toalha branca estão dispostas várias
imagens de santos. Finalmente logo após a mesa surge o altar, exibindo uma maior
variedade de santos. Do lado direito do altar, a parede comporta dois quadros: uma pintura
de Jesus Cristo e outra de Iemanjá, além de um relógio. Do lado esquerdo é possível ver o
gongá, já que a varanda, sendo aberta deste lado, apoiada por colunas, dá acesso à parte de
fora. Aqui são realizados os trabalhos de mesa, onde são cantados os salmos da doutrina
que, de acordo com os adeptos, dão sustentação aos demais trabalhos realizados na Casa.
O gongá é um terreno de chão batido ao ar livre, em cujo centro é composto por um
“encimentado” de formato elipsal onde as entidades incorporadas costumam “riscar ponto”.
Ao redor desse espaço encontram-se bancos usados nos atendimentos, jarras com flores,
velas e imagens de pretos-velhos. Um pouco acima do gongá está o cruzeiro de cerca de
dois metros, fincado no chão e rodeado por uma estrutura que não passa de trinta
centímetros de altura e onde os fiéis deixam velas após fazerem suas orações. Seguindo
numa trilha bem curta, descendo a ladeira, está o terreiro onde são realizados os bailados.
O terreiro fica em frente a construção onde estão erguendo a igreja. É um local de
chão batido e também ao ar livre. Normalmente em dias de festas é decorado com imagens
86
Alex foi aluno do mesmo Programa de Pós-Graduação ao qual estou vinculada. Nós nos conhecemos por
intermédio de Rodrigo Grünewald em fins de 2004.
122
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que podem ser de santos católicos, orixás, caboclos, pretos-velhos, crianças ou encantados.
No terreiro as entidades podem incorporar e bailar até o fim da festa.
Ao ser apresentada a Cléia, a jovem dirigente dos trabalhos em Niterói, fiquei
impressionada com sua idade e jovialidade. Imaginava encontrar alguém mais velho nessa
função, mas logo percebi que o grupo era formado por pessoas bem jovens, salvo algumas
exceções. Ela foi bastante simpática comigo e me deixou a vontade para que eu realizasse a
pesquisa. Após conversas com outros integrantes escutei um barulho de sino. O trabalho
estava iniciando.
Já era noite e duas filas se formaram em frente ao altar. Os homens se posicionaram
do lado direito e mulheres no oposto, o daime seria servido. Porém antes foi rezado um Pai
Nosso. O copo foi entregue a primeira pessoa de cada fila no mesmo instante em que era
dita a frase “Deus lhe guie” tendo como resposta “Para sempre, amém”. O pequeno copinho
de café não comporta a mesma quantidade de daime para todas as pessoas. Os encarregados
de servir a bebida costumam colocar uma quantidade segundo o considerado ideal para
cada um. De acordo com algumas conversas informais que tive com adeptos, essa
quantidade ideal é determinada por motivos diversos, incluindo peso e a altura da pessoa.
Outro desses motivos, e que está mais ligado com a parte espiritual, é abertura mediúnica
vinculada a falta de preparo para direcioná-la. Alguém que tem a mediunidade considerada
“aberta” ou “sensível” teria uma capacidade maior de captar uma série de energias do plano
espiritual, inclusive energias negativas. Então se essa pessoa não tem um desenvolvimento
mediúnico adequado para lidar com essas forças ela pode passar por desconfortos intensos
na sessão e provavelmente não conseguirá entender o que está se passando, podendo não
captar com clareza os ensinamentos que a experiência proporciona. Após sentir o gosto
amargo do daime, homens e mulheres procuravam lugar para sentar e a “viagem” tem
início.
A sessão começa com as pessoas rezando: Pai Nosso e Ave Maria. Após as orações
é entoado o “Culto Santo87”. Em seguida uma variedade de outros salmos são cantados
sendo estes intercalados por orações. Quando o daime começou a fazer efeito em mim não
87
Tanto a introdução como o encerramento da maioria dos trabalhos de mesa é feita a partir da execução dos
salmos: Culto Santo, Casa de Jesus, Soldado de Ordem e Forças Armadas. Os trabalhos de instrução
prescindem desta abertura e apenas reforços são chamados.
123
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mais conseguia prestar atenção naquelas músicas ou rezas. A nitidez da miração confundia
meus pensamentos, pois aquelas visões pareciam se misturar a realidade física. Não existia
mais fronteiras entre o sonho e o “real”, o espiritual e o material.
Eu já havia tomado daime algumas vezes antes como já foi dito anteriormente, mas
naquele dia parecia que era a primeira vez. E foi realmente. Não no que diz respeito a
bebida em si porque ela é a mesma em todos os centros da Tradição Ayahuasqueira, mas o
que mudou, a partir dali, foi minha própria relação com o daime. Foi a partir daí que
consegui perceber o mundo espiritual (mais ou menos) de acordo com a concepção que
aqueles adeptos o entendiam: como um espaço real, um espaço que existe não como algo
totalmente imaterial, mas que interage com o nosso próprio plano de matéria. Segundo
Mercante
“The spiritual space is not one identified with the psychological or the physical
side of life. However, the physical and psychological planes are contained within
the spiritual space. The spiritual space comprises many dimensions, and the
unfolding of those dimensions happens in accordance with the breadth of the
awareness of the observer/participant in the spiritual space. The exploration of
that space would be the process of spiritual development itself, and each
dimension of life is contained in the spiritual space”. (2006:35)88
A bebida é a mesma, mas a experiência durante o trabalho espiritual ali realizado foi
completamente diferente daquelas que experimentei nas sessões que freqüentei na igreja
daimista ligada ao CEFLURIS, Céu de Campina e mesmo nos encontros na casa de
Rodrigo. Até bem pouco não conseguia entender as minhas reações físicas ao ingerir o chá.
Obviamente que eu estava ciente de que se tratava de um psicoátivo, considerado por
muitos como alucinógeno que podem acarretar uma serie de reações fisiológicas como
vômitos, diarréias, etc. Mas, além disso, entendi que, de alguma forma, existia algo mais
88
O espaço espiritual não deve ser identificado com a parte física ou psicológica da vida de uma pessoa. No
entanto, os planos físicos e psicológicos estão contidos no espaço espiritual. Este abrange muitas dimensões, e
o desdobrar dessas dimensões, na percepção do observador/participante, acontece de acordo com o menor ou
maior grau de abertura de consciência que o mesmo mantêm com o espaço espiritual. A exploração desse
espaço poderia ser relacionada ao próprio processo de desenvolvimento, e cada dimensão da vida está
conectada com o plano espiritual. (2006:35)
124
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(além do efeito físico propriamente dito) e percebi que esse algo mais se relacionava com o
ritual. Na Barquinha pude visualizar com maior clareza as nuances desse fenômeno.
Após o trabalho de mesa, a preta-velha Tia Maria (entidade que incorpora em
Alessandra) começou a “rezar as crianças” na varanda em formato de L (em sua parte
horizontal) já que naquela noite estava chovendo um pouco e como o espaço do gongá
localiza-se em céu aberto, o atendimento ali se torna inviável.
Enquanto observava Tia Maria fazer seu trabalho, Alex me aconselhou a apresentar-
me formalmente a entidade, aproveitando para lhe falar a respeito da pesquisa que pretendia
realizar naquela Casa. A preta-velha estava sentada em um banquinho de madeira fumando
seu cachimbo enquanto rezava. Depois que terminou o trabalho com as crianças me
encaminhei até ela sendo convidada a sentar-me em um outro banquinho que estava a sua
frente. Naquele momento eu realmente não consegui pensar na pesquisa, mas apenas na
experiência que acabara de passar a pouco.
A conversa que havia planejado seria direta e sucinta, no entanto ela tomou um
outro encaminhamento, tornando-se complexa e demorada. Poucos instantes após sentar-
me naquele banquinho destinado a assistência reconheci mais uma vez o efeito do daime.
Não ingeri outra dose (tomei a bebida uma única vez no início do trabalho de mesa), mas ao
sentar em frente à preta-velha notei a percepção dos sentidos aflorar novamente. Pela
primeira vez consegui perceber com maior precisão a presença de seres espirituais. Não sei
explicar com palavras a razão de tais conclusões. Acredito que elas digam mais respeito ao
ramo dos sentidos que da razão (como nós a entendemos). O que posso dizer é que tudo
aquilo alcançou um nível de realidade inimaginável.
Ao notar uma certa alteração em minha respiração Tia Maria começou a fazer
algumas orações; pontos de umbanda foram entoados; demais pretos-velhos se
aproximaram para ajudar naquele trabalho que eu não conseguia entender. E foi justamente
nesta noite do dia 23 de dezembro que descobri que “carregava” comigo entidades
necessitadas de ajuda e entendi que precisava ajudá-las.
Só depois de um tempo notei a presença de um homem sentado ao lado de Tia
Maria. Era um tipo de assistente (cambone) que anotava tudo que ela me aconselhava a
fazer posteriormente: tomar banho com algumas ervas, rezar bastante, evitar bebidas
125
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alcoólicas durante a romaria, etc. Humberto me entregou o papel com as anotações que
mais parecia uma receita médica.
Ao final da consulta, permaneci alguns minutos refletindo sobre tudo que tinha
acontecido comigo em um período de tempo tão curto, mas que por outro lado parecia tão
imensamente longo. A pesquisadora de primeira viagem vai a campo cheia de ansiedades e
receios e “cai no santo”89. De família católica e familiaridade recente ao universo espírita,
afro-brasileiro e ayahuasqueiro me senti como Alice no País das Maravilhas, descobrindo
um mundo repleto de possibilidades.
Cerca de meia hora depois resolvi procurar uma carona para poder voltar para a casa
de uma tia onde eu estava hospedada. Essa tia morava em Piratininga-Niterói. No entanto,
naquele dia não consegui carona porque a maioria das pessoas mora no Rio de Janeiro e
este bairro não faz parte da rota de quem vai “pegar a ponte Rio-Niterói”90. Notando meu
insucesso, Andréia me convidou para dormir em sua casa (onde funciona a igreja) todas as
vezes que houvesse trabalho. Agradeci o convite e achei uma boa idéia porque isso ajudaria
a me familiarizar com os adeptos e com o dia-a-dia do Centro.
Mas o que eu quero colocar aqui é que, depois desse meu primeiro dia no campo
tive noção de que muito além de uma pesquisa etnográfica, eu começava a vivenciar os
encantamentos e dificuldades de um mundo novo que se desvendava aos meus olhos. Este
mundo, mais que um espaço a ser etnografado, passaria a ser um espaço a ser vivido
intensamente. Então segui com minha pesquisa procurando me aprofundar cada vez mais
nos trabalhos desenvolvidos pela casa.
A partir daí passei a procurar entender melhor, aspectos rituais que, num primeiro
momento, não eram prioridade na minha pesquisa. Esse foi o caso da mediunidade e de
tudo que se referia a ela como a incorporação, por exemplo. Ao ir a campo “é preciso saber
exatamente o que se quer saber e isso só pode ser conseguido graças a um treinamento
sistemático em antropologia social acadêmica” (Evans-Prichard, 1978:298). No meu caso,
o meu intuito era fazer a etnografia do grupo e apresentar aquela nova ramificação da
Barquinha da Madrinha Chica ao público de cientistas sociais e a comunidade em geral.
89
“Cair no Santo está relacionado ao transe mediúnico.
90
Grande parte dos membros e freqüentadores da Barquinha em Niterói mora no Rio de Janeiro e precisam
atravessar a ponte que liga as duas cidades para poderem estar presentes nos trabalhos.
126
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Não passava pela minha cabeça adentrar sobre o tema da mediunidade e menos ainda vivê-
la tão intensamente. No entanto, minhas experiências durante o desenvolvimento mediúnico
aos poucos foram se tornado o foco de meus relatos no diário de campo. Então comecei a
me preocupar, pois imaginava que meu aprendizado como médium de incorporação dentro
de um grupo o qual eu estava fazendo uma pesquisa acadêmica não teria a menor
relevância para um trabalho científico.
No entanto, segundo Evans-Prichard, muitas vezes o próprio campo nos diz aquilo
que é ou não relevante para a nossa pesquisa e segundo este autor todo saber é relevante
para a pesquisa, “podendo – embora não sendo considerado como antropologia –
influenciar a direção de nossos interesses e, através destes, nossas observações e a maneira
de apresentá-las. Além disso, pode-se dizer que, desde que nosso objeto de estudo são seres
humanos, este trabalho envolve toda nossa personalidade, cabeça e coração” (ibid:300).
A posição a qual me encontrava no campo era um tanto inusitada se pensada com
relação ao trabalho de distanciamento do cientista social para com o grupo que resolve
estudar. Se por um lado precisava me aproximar o máximo possível do modo de vida
daquelas pessoas, seus hábitos, crenças, tanto para me familiarizar com elas como para dar
andamento ao meu processo de desenvolvimento mediúnico, por outro precisava me
distanciar para conseguir a objetividade que um estudo científico exige.
Vi-me como que presa em um nó entre o estranhar e o naturalizar. Como estrangeira
precisava procurar algum tipo de familiarização com o grupo pra tentar entender sua forma
de ver e viver o mundo. Como alguém classificada pelos próprios adeptos por médium de
incorporação (e eu acredito nessa classificação) precisava me distanciar para poder realizar
uma observação científica “imparcial”. Tal situação me pareceu um tanto quanto
contraditória. Eu não era uma cientista social que etnografava seu próprio grupo, tendo aí
que estranhá-lo. Também não cabia na posição da pesquisadora forasteira que de tão
afastada do grupo em questão busca se aproximar o máximo para tentar entender sua visão
de mundo. Eu era alguém que, pela primeira vez no campo, sem qualquer contato anterior
com os ditos nativos, me vi rapidamente como um deles tendo, no entanto, a tarefa nas
mãos de escrever objetivamente sobre minha experiência junto a eles. Experiência essa que
foi permeada por grande carga de subjetividade.
127
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Agora é preciso esclarecer aqui que quando digo que me vi como um deles, não
quero com isso afirmar que me transformei no “outro”. Quero dizer que mergulhei em seu
mundo, em suas crenças, procurando ao máximo evitar aquele tipo de racionalização
cartesiana a que nos acostumamos. Segundo Da Matta,
91
Da Matta (1978) usa esse termo para se referir aquele elemento que se insinua na prática etnológica, mas
que não estava sendo esperado. Assemelharia-se a um blues, cuja melodia ganha força pela repetição de suas
frases de modo a cada vez mais se tornar perceptível. Insinua-se no processo de trabalho de campo, causando
surpresa ao etnógrafo.
128
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cabeça”, falo literalmente já que os efeitos psicoativos da ayahuasca ocorrem por meio da
ingestão do chá que, por sua vez, cai na corrente sanguínea levando as substâncias
“expansoras de consciência” ao cérebro, provocando, a partir daí, segundo os adeptos
dessas religiões ayahuasqueiras, o contato com o mundo espiritual.
Aos poucos, com o aprendizado dentro da doutrina, fui sendo introduzida cada vez
mais nos rituais da casa. Em algumas ocasiões fui convidada pela dirigente dos trabalhos a
sentar-me à mesa junto aos fardados. Claro que não era um trabalho oficial92, mas fiquei
feliz por receber um voto de confiança daqueles que haviam me conhecido há tão pouco
tempo e na condição de pesquisadora. Naquele instante “mágico”, me imaginei como
fardada com toda as atribuições, seriedade e disciplina que a posição exige perante o ritual.
92
Aqueles trabalhos que fazem parte do calendário regular da igreja.
129
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Era exatamente assim que me sentia, como uma espécie de “duplo” alienada e
inserida em dois mundos simultaneamente. Assim como Evans-Pritchard com os Azande,
dentro do horizonte de idéias que vivia na Barquinha, eu as aceitava e acreditava nelas.
Acreditar ou não no universo do “outro” faz diferença ao meu ver, pois “se não achamos
sustentáveis as premissas psíquicas em que se baseiam tais crenças, ficamos diante do que é
senso comum para o povo estudado, mas incompreensível para nós. (Ibid:304). No entanto
era preciso não naturalizar tais crenças, pois ao enveredar por esse caminho, o pesquisador
correria o risco de escrever um relato factual e não antropológico. Temendo incorrer nesse
“erro”, procurei a imparcialidade, a neutralidade onde não existiam. Não estava neutra,
intocada, muito pelo contrário tinha sido completamente tocada pela experiência e
precisava escrever sobre ela.
De acordo com Gilberto Velho (1978) uma das mais tradicionais premissas das
ciências sociais é a necessidade de um distanciamento mínimo que garanta ao investigador
condições de objetividade em seu trabalho. No entanto parte da comunidade acadêmica
acredita que o envolvimento inevitável com o objeto de estudo não constitui um defeito ou
imperfeição para a escrita etnográfica.
Ao planejar ir a campo julguei que a observação participante seria útil para narrar o
contexto geral no qual estariam inseridos os sujeitos da pesquisa. Acreditava que tentando
me misturar a eles nesse contexto, poderia aproximar-me mantendo um certo grau de
distanciamento que é considerado essencial para o estudo científico. No entanto a
experiência com o daime (dentro dos rituais) me mostrou que eu não teria outra opção,
além de fazer um relato em que me incluísse no corpo do texto porque a observação que eu
fazia era a partir de dentro, não como pesquisadora utilizando determinada ferramenta, mas
como alguém que é identificada como médium pelos próprios sujeitos da pesquisa e que
acaba se percebendo e se assumindo como tal.
No início de minha aventura antropológica não conseguia entender o sistema de
pensamento dos adeptos, seus códigos e regras, mas com minha participação nos rituais
tudo aquilo começou a tornar-se inteligível pra mim. “Para se proteger dos maus espíritos,
antes de cada trabalho é bom rezar no cruzeiro, pedir proteção aos guias de luz”. Quando
ouvi esse tipo de comentário pela primeira vez, através de um dos freqüentadores, não dei a
menor atenção, pois há um bom tempo que não dava muito crédito a oração como defesa
130
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espiritual. Para a minha surpresa, ao experimentar momentos difíceis após ingerir o daime
nas sessões, passei a apelar para o poder das orações. Nunca em toda minha vida rezei
tanto. Rezava todas as noites, antes, durante e depois dos trabalhos. Rezava sempre que
sentia necessidade. A reza realmente funcionava naquele contexto, então o mais inteligente
a fazer era aderir a ela e rezar.
As considerações
Quando o etnógrafo aceita “mergulhar de cabeça” na experiência, passa a ser
afetado pelas mesmas forças que afetam o nativo. Ele não se põe no lugar do “outro”, mas
vive toda carga emocional e cognitiva vivenciada pelo “outro”. As dúvidas, curiosidades,
medos, prazeres, angustia, etc próprias do nativo despontam com o mesmo nível de
relevância para o pesquisador. O pesquisador, longe de se pôr no lugar do Outro, é jogado
para este lugar, de onde não será possível sair como num passe de mágica, voltando para
casa por exemplo.
Descobri-me médium de incorporação na Barquinha de Niterói. Vivi uma série de
conflitos numa terra distante, junto a uma gente que eu não conhecia, a mercê de um mundo
sensorial completamente novo. Ao retornar a minha casa na Paraíba não engavetei tudo
aquilo que vivi como se fosse uma roupa velha. Mesmo que quisesse seria impossível.
“Aqui” assim como “lá”, continuo a ser uma médium de incorporação que precisa para o
seu desenvolvimento procurar ter atenção ao plano espiritual que nos cerca, mesmo estando
longe de toda aquela estrutura que me guiava. “Aqui” assim como “lá”, continuo uma
pesquisadora que busca experiência na teoria antropológica e também nas minhas próprias
vivencias junto aqueles que abriram suas portas para mim e que me receberam como uma
igual.
Minha primeira visita a campo me mostrou que o etnógrafo pode ser transformado
pelo “outro” e que isso é um ponto pertinente no relato antropológico já que “a ‘realidade’ é
sempre filtrada por determinado ponto de vista do observador” (Velho, 1978:42). Então o
rigor científico deve ser percebido enquanto “objetividade relativa, mais ou menos
ideológica e sempre interpretativa” (Ibid:43), pois
“O antropólogo apresenta sua interpretação, que, por mais que possa ter uma
certa responsabilidade acadêmica, é mais uma versão que concorrerá com outras
131
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93
Nesses rituais não se desenvolvem trabalhos mediúnicos de incorporação.
132
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Limpando a casa
Foi no ano de 2007 na Igrejinha de Niterói durante a romaria de São Sebastião que
iniciei meu desenvolvimento mediúnico. Embora não tivesse a menor consciência disso
esse processo teve seu ponto de partida logo em minha visita de apresentação.
Foram bem difíceis esses primeiros tempos em que não conseguia entender ou
controlar minhas reações fossem elas físicas ou emocionais. Os momentos de alteração
comportamental experimentados diversas vezes em meio ao transe ritualístico (durante as
sessões de mesa, os trabalhos de terreiro e principalmente aqueles realizados no gongá)
normalmente me deixavam confusa e envergonhada. Eu não tinha qualquer controle sobre a
experiência mediúnica vivenciada durante os rituais ali realizados. E para alcançar este
controle precisei em primeiro lugar adotar a “lógica do nativo” e atentar para a purificação
de minhas “esferas espirituais”. Só a partir daí passei a ter uma idéia do processo o qual
estava se realizando em mim.
No começo desse desenvolvimento espiritual/mediúnico normalmente as pessoas
passam por um período conturbado entendido por muitos adeptos como um tipo de
limpeza. Esta limpeza a que me refiro não está ligada a um ritual específico94, mas a um
processo de purificação (durante as sessões com o daime) em que para alcançar o equilíbrio
do espírito a pessoa precisaria expurgar “energias negativas” para poder dar passagem às
“energias positivas” fazendo com que estas atuem com maior eficácia e possam
efetivamente contribuir para o caminhar espiritual de cada um.
Segundo Cléia este tipo de limpeza acontece em diversos momentos nos trabalhos
com o daime e é refletida na vida cotidiana.
94
Na Igrejinha pude destacar cinco tipos diferentes daquilo que os adeptos costumam chamar de “limpeza”:
1) a primeira seria o processo pelo qual as pessoas (após tomar o daime durante as sessões) passam para
expurgar as “energias negativas”. Neste caso a limpeza acontece tanto em um nível espiritual (que muitas
vezes pode ser constatado por meio das mirações) como em um nível físico (através de diarréias ou vômitos,
etc); 2) o segundo tipo de limpeza, normalmente realizada pelos pretos-velhos, consiste em formas rituais
diversificadas que podem ser executadas individualmente. No geral consiste no ato da entidade incorporada
dar um “passe” no consulente. 3) o terceiro se caracteriza por ser um “passe” coletivo realizado no gongá
durante o trabalho de mesa e seguido por uma defumação; 4) o quarto é um ritual que acontece normalmente
no pequeno terreiro. Antes ou em meio a gira as cabeças das pessoas são molhadas com águas de ervas; 5) O
quinto é a defumação do ambiente (igreja, residências, etc).
133
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“Então na mesa (no trabalho de mesa) você passa a ter um certo conhecimento,
você recebe uma limpeza pra ir melhorando cada vez mais, tornar-se uma
pessoa melhor. Então o daime em si é uma escola. Você senta à mesa pra
assistir uma aula. Uma aula de ensinamentos, de bons modos, de como se
conduzir tanto dentro da casa (igreja) quanto em sua vida pessoal. Então é meio
que ... um preparo (...) Então as próprias entidades se aproximam de você,
passam as mensagens (...), mas tudo reflexo do trabalho espiritual de
contemplação com os hinos, com as orações que é fundamental” (Niterói, 10 de
Outubro de 2007).
134
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“Quando a pessoa abre mediunidade ela não sabe o que é que tem, o que ta
incorporando, como é que pára, como é que não pára ... não tem controle sobre
aquilo né (...) Geralmente as entidades (de baixa freqüência energética) vêm.
Nos trabalhos (sessões) elas vêm pra receber uma luz, pra descarregar o
aparelho porque as vezes o salão ta pesado e aquela pessoa como médium ela
acaba virando uma esponja das energias negativas que estão li, enfim (...)
Conforme ela vai desenvolvendo passa a ter os movimentos mais sutis. A
entidade vem mais doutrinada, mais disciplinada e não atrapalha tanto o
trabalho. Não chama a atenção tanto no trabalho (...) O médium com o tempo
domina aquilo, os seres (negativos) não encostam (...) Todas as suas entidades
(guias de luz) elas vão te guarnecendo. Elas ficam a tua volta. Então não é mais
qualquer coisinha que vai chegar e vai te arrebatando. Você tem um controle.
Elas (as entidades protetoras) trazem isso né. Só vem (energias negativas) se
for um caso que tenha que vir, que faça parte mesmo” (Rio de Janeiro, 28 de
fevereiro de 2007).
135
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95
Durante minha segunda visita à Niterói que ocorreu entre setembro e início de outubro de 2007 fiquei
hospedada na residência de Mônica. Casada com Vínícius (freqüentador assíduo da Igrejinha) e mãe de dois
filhos, esta antropóloga que havia me conhecido a tão pouco tempo me recebeu em sua casa como se estivesse
recebendo uma velha amiga. Hoje me sinto à vontade para dizer que construímos uma amizade que, embora
recente, tem a solidez daquelas de longa data.
96
De acordo com Souza (2006) a Arca da Montanha Azul (dirigida por Philippe Bandeira de Melo, que foi o
primeiro dirigente da extensão da Barquinha do Manuel Araújo no Rio de Janeiro) é um grupo religioso que
procura aproximar dogmas distintos através de uma cerimônia por vezes ecumênica, onde, dependendo da
ocasião, cantam-se mantras hindus ou budistas, hinos cristãos, da umbanda, do Santo Daime e da Barquinha.
136
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97
Os rituais domésticos realizados na casa de Rodrigo aconteciam em um pequeno cômodo azul claro com
detalhes em amarelo e branco e ornamentado prioritariamente com uma variedade de imagens de santos
católicos. O local, cuja lotação máxima era de seis pessoas, era chamado de saletinha pelos freqüentadores.
137
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No estudo feito por Souza (2006) sobre os pretos-velhos ela coloca que estas
entidades98 são reconhecidas como “espíritos de escravos” cujo culto faz parte da cultura
popular religiosa brasileira, estando presente em diferentes religiões do campo espírita.
Acredita-se que estes sejam
De acordo com Souza (ibid:3) embora vigore também a representação do culto aos
pretos-velhos como sobrevivência de antigas práticas africanas aos ancestrais, o rito de
umbanda (em que figura como um dos elementos principais) foi interpretado por muitos
autores como degradação das tradições africanas. Contribuiu para essa concepção a idéia de
que a figura do preto-velho representaria “o escravo dócil e aculturado, em oposição à
existência de escravos que mantiveram suas culturas de origem, conservando, por exemplo,
a prática religiosa de seus antepassados, cristalizada nos candomblés contemporâneos”
(ibid:2).
Tina Jensen por sua vez coloca que a atitude dos participantes (da linha de
umbanda) em relação à herança africana seria caracterizada pela ambigüidade. “Elas eram
positivas e negativas, oscilando da tentativa de dissociá-los das tradições religiosas
africanas até sua atitude distintamente paternalista para com a África, a quem classificavam
com a imagem de humilde escrava. Os negros brasileiros eram aceitos porque afinal tinham
alma branca” (Jensen, 2001:10). Para ela as únicas instâncias de identificação positiva da
influência africana da umbanda tem a ver com os pretos-velhos (que seriam vistos como
pessoas simples e humildes, mas espíritos (muito evoluídos), e com a África como um
continente histórico e sofredor. No entanto
98
Originalmente cultuados na macumba e posteriormente na umbanda os pretos-velhos (escravos) assim
como os caboclos (índios brasileiros) simbolizam dois arquétipos genuinamente nacionais em meio ao
panteão religioso afro-brasileiro.
138
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ponto chamando Dom Simeão para proteger o Salão durante toda a cerimônia. Nesse
momento só as pessoas que estiverem usando farda podem compor a gira, enquanto os
demais cantam e batem palmas do lado de fora. O som dos atabaques e do violão
acompanham as vozes dos fiéis que ecoam em meio a noite estrelada. Ao termino deste
primeiro ponto é rezado uma Salve Rainha.
Normalmente enquanto os fardados sobem até a casa de Andréia para trocar a farda
por algo que esteja mais de acordo com o ritual, o daime começa a ser servido aos demais.
Homens de um lado e mulheres de outro, todos tomam a “santa luz” para homenagear as
criancinhas. Após a volta dos adeptos oficiais ao terreiro a gira recomeça, dessa vez com
todos os presentes fazendo parte dela. Tem início uma seqüência de pontos para Ogum99 e
os primeiros médiuns começam a incorporar.
Tudo corria bem naquela noite. As entidades infantis pareciam se divertir com as
brincadeiras e os doces, no entanto no decorrer da festa novamente precisei de auxílio para
controlar meu transe mediúnico, já que não conseguia exercer qualquer domínio sobre ele.
Segundo os fieis, devido a minha inexperiência como médium de incorporação eu permitia
a passagem de seres espirituais não evoluídos fazendo com que estes atuassem no meu
“aparelho”.
Mais uma vez a figura dos pretos-velhos foi essencial para restabelecer meu
equilíbrio. Tia Maria precisou “aparelhar” em Alessandra em meio a algazarra das
entidades infantis incorporadas nos médiuns, me levou para fora da gira com intuito de
“encaminhar” para o “chiqueirador100” aquele espírito que se fazia presente. Com a ajuda
de alguns adeptos experientes ela alcançou seu objetivo me livrando daquela sensação
99
Segundo Mercante (2006) uma das peculiaridade das festas na Barquinha da Madrinha Chica em relação
aos demais centros desta mesma linha é que enquanto estas últimas só executam pontos próprios, a primeira
faz uso do repertório da umbanda.
100
Durante a consulta no gongá é comum que os pretos-velhos precisem fazer um tipo de remoção das
energias negativas do consulente. Normalmente tais energias estão relacionadas a entidades inferiores que,
por algum motivo, estejam acompanhando tal pessoa. Através de uma técnica usada na Igrejinha e
denominada “passagem”, estes espíritos são transportados (um a um) do cliente para o cambone ou mesmo
para o “aparelho” do próprio preto-velho, quando é o caso. Nessas ocasiões as entidades negativas são
enviadas para uma região no plano espiritual chamada de “chiqueirador” onde receberão um preparo realizado
por entidades evoluídas para que um dia, se forem merecedoras, possam voltar e receber um batismo cristão
dentro dos rituais da casa.
140
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incômoda. A partir daí pude voltar para a gira tranqüila e aliviada para juntamente com os
outros fiéis homenagear as criancinhas em torno de Cosme e Damião.
O preto-velho Pai Cipriano (Toinho) conversou longamente comigo após o festejo.
Ele disse que esses seres me importunavam porque eu estava espiritualmente desprotegida
já que as minhas “entidades protetoras” estariam temporariamente mais afastadas visto que
minha fé em Deus oscilava. Era preciso proteção espiritual para que episódios como o que
acabara de acontecer não se repetissem constantemente. Para isso eu precisava contar com
o auxílio de minhas “entidades pessoais”, aquelas que foram designadas por ordens
celestiais a me acompanhar durante minha vida terrena. Trabalhando em conjunto, através
da prestação da caridade, poderíamos caminhar juntas rumo à evolução espiritual. Para
tanto, meu desenvolvimento mediúnico seria de fundamental importância para eu aprender
a lidar com minhas capacidades sensoriais de modo a entrar em harmonia com as
forças/energias do plano espiritual.
Assim como Pai Jacinto havia me dito anteriormente, Pai Cipriano reforçou a
necessidade de exercitar a oração. O primeiro passo seria reservar um pequeno espaço em
casa para colocar imagens de santos (aqueles do agrado da pessoa) e reservar obviamente
pelo menos um horário do dia para se dedicar ao compromisso de rezar. De acordo com os
fiéis durante os períodos de romaria haveria uma necessidade ainda maior de dedicação às
preces, já que é justamente nessa época que os planos espiritual e material estariam ainda
mais interligados devido ao trabalho de caridade realizado pela Barquinha no resgate das
almas sofredoras e dos espíritos rebeldes. Estar em dia com as orações fortificaria o espírito
de cada fiel individualmente dando-lhe forças para enfrentar as possíveis adversidades de
cada sessão, habilitando-o assim a trabalhar em conjunto com a “corrente” de maneira a
poder receber e prestar a caridade de uma forma mais consciente.
Diferentemente de minha atitude de inércia para com os conselhos de Pai Jacinto,
resolvi pôr em prática as advertências de Pai Cipriano, já que agora, em um outro contexto
a partir dos trabalhos freqüentes com o daime e dentro de uma igreja da Barquinha, eu
experimentava uma confusão de sentimento que por sua vez me impulsionou a procurar ter
uma atitude mais responsável para com os seres espirituais e para comigo mesma. Na
semana seguinte fui ao centro da cidade de Niterói com Andréia e comprei um rosário de
São Miguel. Foi assim que comecei a rezar.
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Quando decidi visitar a Barquinha para fazer trabalho de campo acreditava que
minha vida corria bem, pois gozava de boa saúde e não tinha maiores dificuldades em
minhas relações pessoais ou profissionais. No entanto, ao tomar daime naquela igreja passei
a me enxergar através de um outro parâmetro e percebi que estava doente e precisava de
cura. Ao conversar com os pretos-velhos no gongá soube do diagnostico: era
médium/aparelho e precisava desenvolver. Segundo os “vôs”, para aquelas pessoas que tem
a mediunidade aflorada seria benéfico o aprofundamento de suas capacidades através do
aprendizado continuo dentro dos rituais. No entanto não se trataria de uma obrigação e sim
de uma escolha.
Para os adeptos, as doenças (independente da origem) são compreendidas como
resultado de algum tipo de desequilíbrio que provavelmente estaria ligado ao plano
espiritual. O objetivo da casa estaria em estimular a consciência de cada um da necessidade
de reformulação do cotidiano para que possam ser capazes de perceber suas próprias
deficiências e direcionar suas ações de modo harmonioso. A saúde depende do equilíbrio
entre corpo, mente e espírito. Quando um é afetado todos, sofrem as conseqüências.
Na Igrejinha, os pretos-velhos cumprem a função de curar são assim chamados de
seres curadores, “entidades de luz” que através de suas preces e da magia de suas ervas
prestam a caridade a fim de socorrer os necessitados restabelecendo-lhes o equilíbrio. A
essas entidades ainda é dispensada a função de auxiliar os “irmãos” que buscam através do
conhecimento a transformação e o desenvolvimento espiritual. Esses bons e alegres
velhinhos de fala mansa, coluna curvada e cachimbo na mão são professores nessa
doutrina. São entidades que curam e ensinam a curar. Rezam e ensinam a rezar. Amam e
ensinam a amar.
101
A maioria dos adeptos e freqüentadores assíduos costumam levar ao centro pequenos livros de orações. Os
mais comuns são: Orações do Povo de Deus da editora Vozes e Devocionário de São Miguel Arcanjo da
editora Canção Nova. Normalmente eles são usados nas orações individuais que alguns fiéis costumam fazer
em frente ao cruzeiro antes e após os trabalhos de mesa.
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monótono, mas logo depois descobri que essa era uma excelente técnica para ajudar na
proteção durante as sessões contra os “espíritos perturbadores”, bem como um facilitador
para deixar fluir a miração. Com o passar dos dias fui equilibrando gradativamente o meu
transe mediúnico e a partir daí pude aproveitar melhor os ensinamentos passados nos
trabalhos de mesa em que é fundamental manter a concentração. Em dia de ritual
costumava chegar mais cedo para poder rezar no cruzeiro e ajudar no que fosse preciso.
Gostava de ficar lá, conversar com as pessoas, varrer o gongá. Já me sentia em casa. Em
minha casa espiritual.
Foi em uma dessas tardes quentes de janeiro que vi pela primeira vez Cléia
realizando sozinha um ritual na igreja. Esse é um tipo de plantão em que a dirigente do
centro põe em pratica um ritual de guarnição com vistas em assegurar o bom andamento da
sessão que acontecerá logo mais a frente. Segundo ela:
Em dias de trabalho, porém além desse plantão ao qual Cléia se refere existe um
outro que guarnece a entrada da Igreja. Esta por sua vez é mantida com duas velas acesas,
disposta uma de cada lado, indicando também um pedido de proteção. Dessa forma,
segundo ela, as “entidades-guardiãs” não deixam os “intrusões” entrar para atrapalhar o
andamento do ritual.
“O plantão da entrada existe porque assim ... você tá vindo da rua carregado
com suas coisas (suas energias), seu dia a dia ... normal. Corre, corre,
trabalho, estresse da sua casa, coisas desse tipo. Então assim pra você entrar
na casa de Deus né ... ela (a igreja) tem os guardiões. No caso a gente pede
proteção dos arcanjos, pede proteção do guia chefe da casa que é o Soldado
Guerreiro Príncipe Dom Simeão, Ogum que é São Jorge. A gente pede a
cobertura pra os irmãos que estão chegando passarem por ali” (Niterói, 10 de
outubro de 2007).
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A partir da fala de Cléia acredito que ao passarem pela porta de entrada as pessoas,
de certa forma, já estariam recebendo um tipo de limpeza, já que boa parte de suas cargas
negativas permaneceria do portão para fora. De acordo com os fiéis apenas as entidades
permitidas pelos guardiões acompanham a pessoa até o interior da igreja. Tal permissão só
seria concedida se tais entidades fossem merecedoras de obter um tratamento. Em caso
positivo elas seguem durante a sessão de mesa esperando o momento certo para se
apresentarem aos pretos-velhos no salão das Obras de Caridade (juntamente com o aparelho
ao qual estão ligadas) para dar início ao processo que leva a cura de ambos.
Foi ao meio dia de um sábado que assisti de longe o ritual solitário da jovem
dirigente que cumpria seu compromisso com o plantão horas antes do ritual de Obras de
Caridade ter início.
As Obras de Caridade102 são as cerimônias mais populares na Igrejinha. Acontecem
aos sábados e têm o objetivo de atender a comunidade (todos que procuram a casa em
busca de auxílio). Em dias como esse, em que os visitantes e freqüentadores esporádicos se
multiplicam, a igreja fica lotada. O ritual tem início no momento em que são ouvidas as
badaladas do sino convidando a todos para em fila beber o daime. As 19:30 o trabalho de
mesa dentro da igreja segue seu curso.
Frei Daniel deixou uma seqüência de salmos que devem ser cantados
preferencialmente durante as Obras de Caridade, no entanto é permitida a execução de
outros tantos recebidos pelos adeptos. Os salmos são divididos em três sessões.
A primeira é sempre igual e não existem variações. Começa com o Culto Santo, em
seguida são cantados os salmos: Casa de Jesus, Soldado de Ordem, Forças Armadas,
Reforços Invisíveis e, finalmente Troco-troco (que representa uma onomatopéia do som
que o cavalo produz ao trotar). Esses hinos abrem o culto e trazem os reforços espirituais
do plano astral para proteger a igreja e os participantes no desenrolar da cerimônia. Só após
a execução desses cânticos Cléia abre oficialmente os trabalhos proferindo palavras de
conforto, as quais assegura aos presentes a proteção espiritual por meio do auxílio Divino.
Nesse momento tem início o chamado às entidades curadoras que praticam a caridade e
102
Para esta parte do texto em que descrevo as Obras de Caridade faço uso de fontes como: minha experiência
em campo, informação dos adeptos, além do texto de Mercante (2006) em que descreve o mesmo ritual,
porém na Matriz.
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trabalham na assistência. São cantados Cruz Bendita, Virgem Mãe da Caridade e Poder
Curador, de importância central nos trabalhos de caridade - mas não só esses são
importantes e nem sempre aparecem nessa ordem. A partir daí a dirigente passa a convocar
os pretos-velhos, um por um, para “receber o aparelho” (para incorporar no médium) e se
encaminhar ao gongá.
Logo que os pretos-velhos incorporados se encaminham ao gongá, acontece a
segunda sessões de salmos. Esta tem espaço para variações, no entanto continua primando
pelo tema de reforço e proteção. A primeira seqüência é voltada aos membros da Igrejinha
e a segunda é direcionada aos visitantes e freqüentadores. Normalmente nessa fase são
cantados: Diana e os Caçadores, Santo Anjo Gabriel, Príncipe Juramidan e Santo Anjo da
Guarda, que trazem reforços específicos às Obras de Caridade.
A terceira e última sessão é composta pelos salmos: Luz e Caridade e Pai
Onipotente, além de outros. Ao final desta seqüência, Cléia encerra a cerimônia entregando
todos os trabalhos realizados naquele dia “as mãos de Deus” e agradece em seu próprio
nome e em nome dos presentes pela proteção recebida. Porém antes do ritual ser concluído
mais um salmo é cantado, Chuvas de Luz (que entrega as Obras de Caridade). Por fim, o
trabalho é fechado com Santo Anjo Gabriel e o Culto Santo.
No entanto é bom deixar claro que mesmo com o trabalho concluído na igreja,
muitas vezes no gongá o atendimento tem continuidade. Acredito que isso acontece porque
as Obras de Caridade são realizadas em dois espaços diferentes: na mesa e no banco do
preto-velho. Então em meio a consulta, dependendo do caso, a entidade opta por dispensar
um tempo maior a determinado consulente excedendo assim os limites de tempo do rito de
mesa.
Normalmente os assistentes dos pretos-velhos, os chamados cambones, preparam o
ambiente de trabalho das respectivas entidades as quais assistem um pouco antes do ritual
de mesa ter início. No geral esse serviço consiste em: limpar o gongá; distribuir os
banquinhos dos “guias” bem como aqueles usados pela assistência; organizar as cestas
(onde estão acomodadas as ferramentas de trabalho de cada entidade), etc. No momento em
que os pretos-velhos são convocados para atuarem no salão das Obras de Caridade é para o
gongá que os cambones se dirigem antes mesmos que os velhinhos possam chegar lá. Com
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espada103 e rosário104 nas mãos, esses jovens assistentes esperam ansiosos seus sábios
professores.
Quando Vó Cambinda (Andréia) se apresenta no “salão das Obras”, Mariana já está
apostos para saudá-la, pedir-lhe benção e colocar-lhe a espada e rosário em volta de seu
pescoço. Antes de sentar porém, a preta-velha constata a presença de uma vela acesa ao
lado de seu banquinho representando um pedido de proteção. Ao se acomodar recebe das
mãos de sua dedicada assistente seu cachimbo já aceso. É hora de “arregaçar as mangas” e
dar início a mais um dia de trabalho na assistência dentro das Obras de Caridade.
Foi em uma dessas sessões que Mariana foi até a igreja e perguntou se eu gostaria
de conversar com um preto-velho. Eu disse que sim porque embora estivesse
experimentando um certo controle durante o transe, ainda me sentia insegura e naquele
momento em especial eu passava por dificuldades dentro do trabalho.
Antes de começar a chamar a clientela105 é costumeiro que o preto-velho permaneça
um tempo quieto fumando seu cachimbo, enfim se concentrado com vistas no trabalho que
vem a frente. Quando está pronto pede ao cambone para chamar o primeiro a ser atendido.
As pessoas continuam todas sentadas dentro da igreja e só vão até o gongá quando
questionadas pelos assistentes se desejam conversar com um preto-velho. Em algumas
ocasiões, quando a igreja recebe um número de pessoas ainda maior, os cambones (antes
mesmo do trabalho de mesa começar) anotam o nome daquelas que querem se consultar.
Cada entidade atende uma pessoa por vez. Provavelmente eu não fui a primeira naquele dia
já que entre a saída dos “guias” da igreja até o instante em que Mariana falou comigo já
havia se passado um bom tempo.
Mais uma vez em frente a um preto-velho sentia um turbilhão e emoções as quais,
acredito eu, a força do daime ajudava a aflorar. Imagino que no gongá o trabalho aconteça
em um outro tom, com outras nuances em relação aquele desenvolvido na igreja. Mesmo
103
Um tecido branco em formato retangular que simboliza o “mistério” de cada entidade.
104
Um tipo de colar produzido por várias contas e usado comumente pelos católicos para rezar quatro terços
(também chamado de rosário).
105
Na Igrejinha normalmente as pessoas que procuram a assistência tem preferência por determinado preto-
velho, daí o motivo de eu fazer uso da palavra “clientela”. A linha da Barquinha é uma doutrina religiosa que
prega a caridade sem pedir nada em troca. É preciso não confundir ou relacionar o termo usado aqui com
algum tipo de relação comercial.
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fortemente conectado com o trabalho de mesa, penso que este é o lugar onde é permitido
manifestarmos nossos “monstros pessoais106”, pois é aí que estes serão devidamente
doutrinados e transformados. Normalmente no gongá os meus “monstros” apareciam.
No geral, o ritual na assistência consiste em uma conversa inicial entre o preto-
velho e o consulente a respeito de suas aflições e, se for sua primeira vez na casa, é
questionado sobre os motivos que o levaram a procurar ajuda. Após essa etapa, o “passe”
tem início. Normalmente utilizando sua espada o guia limpa as energias do cliente. Ele a
retira de seu pescoço e a faz circular várias vezes por cima da cabeça do outro, passando-
lhe ainda por sobre o peito e nas costas. Durante esse processo o tecido retangular é
sacudido fortemente indicando a execução de uma limpeza. Os velhinhos costumam ainda
rezar, além de borrifar a fumaça de seus cachimbos curadores na cabeça, mãos, costas, e
peito do consulente. O cambone sempre está à disposição do preto-velho para lhe auxiliar
naquilo que venha a precisar.
Olhando para vó Cambina eu novamente pedi auxílio para melhor lidar com o
fenômeno da mediunidade. Gostaria de deixar registrado que essa cena se repetiu várias
vezes durante minhas idas e vindas a campo. Após encaminhar entidades, rezar em mim e
por mim, me aconselhar, etc, a vó costumava rir ao final de nossas longas consultas.
Achava engraçado o começo do aprendizado. Costumava dizer que ela, assim como
Andréia, já haviam passado por isso e que é sempre parecido com todo mundo. “O começo
é sempre difícil minha filha”. Ouvindo suas palavras eu confortava meu coração por saber
que outras pessoas já haviam passado pelo “início de tudo” e que superaram muitas de suas
dificuldades. Com a vó Cambinda e os demais pretos-velhos aprendi que além de Deus e
dos bons espíritos, sejam “encarnados” ou “desencarnados”, para meu aprimoramento
espiritual e desenvolvimento mediúnico precisaria contar com um engajamento pessoal, ou
seja, comigo mesma e dar início a uma nova fase na minha vida.
106
Uso este termo para me referir tanto a comportamentos como sentimentos condenáveis pelo grupo e que
são alimentados por muitos de nós, bem como entidades espirituais consideradas atrasadas que podem causar
o mal as pessoas. No entanto o trabalho no gongá não se resume a exorcizar esses “monstros pessoais”, ele vai
muito além daquilo que é colocado nesse texto.
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107
Daniel tem naturalidade paraense, mas como vive no Rio de Janeiro desde a infância acredito que dentro
do contexto desse trabalho posso denominá-lo de carioca sem problema algum.
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proteção e fortificação. Rezar tornou-se uma necessidade que me aproximou cada vez mais
da doutrina de Frei Daniel e da Igrejinha da Madrinha Chica. De acordo com Clifford
Geertz:
“As disposições que os rituais religiosos induzem, tem seu impacto mais
importante fora dos limites do ritual, na medida em que refletem de volta,
colorindo, a concepção individual do mundo (...) Ninguém vive fora dos fatos
cotidianos, mas a experiência religiosa proporciona uma nova maneira de encarar
o cotidiano” (Geertz, 1989:135).
Seguindo este autor (que analisa a religião como “sistema cultural” e as coisas
sagradas enquanto “símbolos”108), sustento que o fiel encontra no sistema de significações
produzido na Igrejinha um novo sentido para acontecimentos que vivencia em seu
cotidiano. Como instrumento de defesa, o habito de rezar passou a fazer todo o sentido para
mim a partir do momento que passei a experimentar, dentro de um determinado contexto
religioso, certas situações até então incompreensíveis. Foi através de um sistema de
ressignificação proposto pelo centro que passei a entender aquilo que os fiéis chamam de
abertura mediúnica.
Após um ano freqüentando o núcleo de Niterói, Daniel segue para Rio Branco para
receber o fardamento. Foi durante as comemorações do aniversário de 60 anos da missão e
também do centenário da chegada do Mestre Fundador ao Acre que ele vestiu a farda
branca e tornou-se um “marinheiro” oficial na Barquinha da Madrinha Chica.
Entre sua primeira visita a Igrejinha, passando pelo fardamento à entrada nas Obras
de Caridade como “aparelho” oficial, muitas barreiras pessoais precisaram ser ultrapassadas
para que seu aprendizado mediúnico seguisse seu curso. Segundo Daniel o “início tudo” foi
bem difícil, mas tinha consciência de que para assumir uma vida espiritual baseada na
caridade precisava mudar de postura perante suas ações cotidianas. Era normalmente
durante os trabalhos de mesa através do daime que recebia as instruções de como deveria
“caminhar na espiritualidade”. Assim como eu, após experimentar momentos difíceis
durante os rituais, Daniel seguiu as instruções recebidas e passou a dedicar-se a oração.
108
De acordo Emerson Giumbelli (2003) com esta teoria, Geertz defendia a cultura como um sistema de
símbolos, os quais se articulam e veiculam uma rede de significados.
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Rezar, muito mais que um habito, tornou-se para ele um uma ferramenta usada com fins em
sua própria doutrinação bem como na doutrinação das “entidades que o acompanham”.
Sobre isso comenta:
“A Barquinha ela é muito ... fina. O trabalho mediúnico ele é muito fino. Então
eu vejo que na reza você está se doutrinando, mas você muitas vezes tá
doutrinando também as suas entidades com as suas orações (...) Fui
aprendendo a ter devoção, a ter fé. Me apeguei a São José de uma maneira
surpreendente na minha vida”. (26 de outubro de 2007).
150
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109
No centro da Madrinha, os rituais de Doutrinação das Almas e de Batismo de Pagãos sãos executados
somente por ela mesma. No Rio de Janeiro ambos só acontecem quando Chica Gabriel está presente para
realizá-lo. O primeiro é dedicado essencialmente à salvação de pessoas já falecidas que em vida de matéria
não cumpriram suas missões espirituais e por isso carecem iluminar-se para poderem alcançar a salvação. O
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em Cléia. Após alguns meses finalmente incorporou nesse jovem “marinheiro” que, entre
outros tantos ensinamentos recebidos na Igrejinha, aprendeu a “aparelhar”. Hoje,
juntamente com a preta-velha, segue seu caminho espiritual/mediúnico prestando Obras de
Caridade no gongá de Niterói.
Foi justamente na romaria de São Sebastião durante minha primeira visita a campo
que a preta-velha foi convocada a prestar serviço nas Obras de Caridade. Daniel ficou
surpreso, mas feliz por poder fazer parte desse processo. O cambone da Vó Maria Clara
(que após os atendimentos no gongá se concentrava para sintonizar as boas energias da vó
Jacinta110) deixou seu posto de assistente para seguir como mais um “aparelho” oficial
dentro do “salão das Obras”.
Seu desenvolvimento mediúnico assim como o desenvolvimento mediúnico dos
demais adeptos não está limitado a um momento ou espaço ritual especifico na Igrejinha,
pelo contrário, este perpassa todas as práticas rituais aí oferecidas. O aprendizado do fiel
consiste em transitar por entre os diversos ritos respeitando o direcionamento e a dinâmica
de cada um. O trabalho dos pretos-velhos aliado ao uso do daime dentro dos rituais ajuda o
aprendiz a tomar consciência de seu próprio processo de desenvolvimento, tornando-o
assim capaz de formular perguntas e encontrar respostas para caminhar rumo a evolução
espiritual.
Daniel assim como os outros tantos jovens membros, freqüentadores e visitantes
que transitam na Igrejinha encontram nela uma forma de vivenciar um tipo de religiosidade
que é acionada dentro de um contexto peculiar. O processo de desenvolvimento mediúnico
intensificado pelo daime e operacionalizado pelos pretos-velhos imprime um sentido as
ações exercidas pelos fiéis dentro e fora dos limites da igreja. O habito da oração como
proteção espiritual, dentro desse contexto, chama atenção por figurar como uma espécie de
“elo da corrente” que aproxima cada vez mais o adepto à igreja bem como intensifica a
relação entre seus membros.
segundo é dedicado a entidades que podem ter encarnado nesse plano de matéria ou não. Aqueles que se
apresentam no Batismo no geral se dividem em dois grupos: seres anteriormente enviados ao “chiqueirador”
para receber uma preparação com fins em elevar seu grau de evolução; e as entidades pessoais dos fieis (os
guias protetores) que se aproximam para receber a luz do batismo.
110
Muitos cambones que são médiuns de incorporação normalmente após seu trabalho no atendimento junto
ao preto-velho dispensam algum tempo para entrar em contato com seus guias e principalmente com seus
próprios pretos-velhos. Muitos deles incorporam e ficam lá sentados em seus banquinhos, fumando seus
cachimbos e fazendo suas orações.
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A prece
Eu costumava rezar quando tinha por volta de quatro ou cinco anos. Minha mãe me
ensinou a fazer isso antes de dormir. Lembro da oração ao Anjo da Guarda e do Pai Nosso
e depois era “cair no sono”. Com o passar do tempo esse habito se resumiu a fazer o sinal
da cruz antes de deitar e por fim optei por excluí-lo de meu cotidiano definitivamente.
No entanto, aos vinte e nove anos fui apresentada à Barquinha da Madrinha Chica,
me identificado a esta logo em seguida. Porém descobri que para “navegar” nessa
“embarcação” com equilíbrio e firmeza era preciso reaprender algo que havia sido banido
do meu dia-a dia: o ato de rezar. Para mim isso não foi nada fácil pois, além de eu não
entender quase nada da prática da oração, simplesmente não gostava dela. Achava uma
perda de tempo rezar “o terço” por exemplo. Não conseguia entender a repetição. Aprender
a dedicar alguns minutos do meu dia com vistas neste fim foi um suplicio que com o passar
do tempo tornou-se um prazer.
Além de mim outros adeptos tiveram uma certa resistência inicial à prática da
oração. Este é o caso do iluminador teatral João Franco que, assim como eu, havia relegado
o habito de rezar ao esquecimento. Este mineiro que já foi “coroinha” chegou ao Rio de
Janeiro no início dos anos 70, ainda na infância. Sua adolescência se deu em meio a
explosão das idéias socialistas que agitavam o país daquela época. Gradativamente o garoto
interiorano e religioso tornou-se um homem revolucionário e sem religião. João se afastou
não só da pratica do catolicismo, mas de qualquer outro tipo de religiosidade.
Já freqüentando a Igrejinha, diferentemente de mim que era impaciente as práticas
das repetitivas orações executadas pelos fiéis durante o ritual, João vivia um dilema pessoal
de cunho ideológico que colocava a oração em xeque. Segundo ele após um processo de
mudança pessoal/ideológica a partir desse encontro com o centro, reconstruiu sua
religiosidade e redescobriu a alegria de rezar novamente. Sobre isso comenta:
“Quando eu vim de Minas pra o Rio durante os anos 70 o Brasil vivia uma
guerrilha e eu me identifiquei muito com o socialismo naquele momento. Por
isso a igreja católica que pra mim tinha uma importância muito grande deixou
de ter. Então a minha adolescência e juventude foi num contexto ideológico
onde a religião não tinha espaço (...) E eu não pensava muito sobre isso. A
oração não fazia parte da minha vida. Agora essa base existia. Existia muito
forte na minha formação e quando eu comecei a freqüentar a Barquinha a
primeira coisa que aconteceu foi esse dilema pessoal/ideológico (...) Eu pensei
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‘o que que eu faço com isso?’ A oração no inicio (de sua freqüência no centro)
foi uma coisa que me incomodou um pouco. Aquele excesso ... não tinha
necessidade daquilo (...) E hoje em dia eu percebo que a oração talvez seja uma
das coisas mais importantes do desenvolvimento espiritual porque eu acho que
ali a gente de fato vai tecendo, digamos assim, a rede espiritual entre nós, as
nossas entidade e as entidade espirituais com as quais a gente se comunica
sejam elas dos santos que a Barquinha cultua, o próprio Jesus, a Virgem Maria,
o Espírito Santo, São Miguel Arcanjo, São João Batista, São Sebastião, as
outras entidades da casa todas né, Mestre Daniel, a Madrinha Chica” (Niterói,
18 de março de 2008).
Para João, o habito de rezar ajuda a criar uma rede entre os planos espiritual e
material que interliga o adepto as suas “entidades pessoais” bem como as demais entidades
que guarnecem ou visitam a casa. O tecer dessa rede foi relacionado ao desenvolvimento
espiritual de cada um. Nesse caso a oração cumpriria a função, além de proteger o fiel
contra possíveis energias negativas, serviria também como um tipo de fio condutor entre as
pessoas e os seres espirituais.
Acredito que o processo de construção dessa rede através da prática da oração está
além do objetivo de conectar os fiéis ao mundo dos espíritos, mas cumpre também uma
função sociológica especifica, a de criar laços duradouros entre estes e a Igrejinha. Em
todos os rituais, sem exceção, as orações são praticadas. No trabalho de mesa elas
acontecem durante boa parte do tempo já que os salmos entoados são intercalados por
preces; nas giras aparecem normalmente na abertura e no fechamento; no gongá são
largamente usadas pelos pretos-velhos; e no Rosário são o elemento principal do rito. Já as
orações pessoais tornam-se mais intensificadas de acordo com o envolvimento de cada
adepto ao centro. De acordo com João na proporção em que os “Mistérios” do plano
espiritual são penetrados pelo fiel, o habito de rezar passa a ser necessário ao
aprofundamento da consciência de si e do mundo que o cerca. Nesse contexto é possível
afirmar que as preces diárias muito mais que um tipo de obrigação individual torna-se um
meio seguro e eficaz ao aprofundamento espiritual e possivelmente ao desenvolvimento
mediúnico.
Tanto antes como ao termino dos rituais de mesa é possível ver alguns adeptos
rezando individualmente aos pés do cruzeiro. Para eles tal ato representa, no primeiro caso,
um pedido de proteção para o trabalho que está para ser realizado e, no segundo, um
momento de concentração individual direcionado pelo uso da prece. Minhas primeiras aulas
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“Na prece o crente age e pensa e ação e pensamento estão estreitamente unidos,
brotam em um mesmo momento religiosos, num único e mesmo tempo (..) A
prece é uma palavra. Ora, a linguagem é um movimento que tem um objetivo e
um efeito; é sempre no fundo um instrumento de ação. Mas age exprimindo
idéias, sentimentos que as palavras traduzem para o exterior e substantificam.
Falar é ao mesmo tempo agir e pensar: eis porque a prece pertence a crença e ao
culto” (Mauss apud Menezes, 2003: 121/122).
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CONCLUSÃO
Navegando na metrópole
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religiosos que irão atuar no nível da cultura e do conhecimento” (ibid:116). A partir dessa
perspectiva, é possível afirmar que “a pluralidade e a fragmentação religiosa são frutos da
própria dinâmica moderna em que a secularização e a diversidade estão associadas
diretamente a um mesmo processo histórico” (ibid). Esta tendência por sua vez, aponta para
uma diluição de fronteiras que se estenderia para além do campo religioso.
Esse ambiente de fluidez, hibridismos, empréstimos, trocas e apropriações propicia
o surgimento de variadas formas de privatizações religiosas onde o popular e o emocional
podem se expressar com legitimidade. De acordo com este autor a experiência da emoção
está no centro da religiosidade contemporânea. Para ele “esta valorização emocional, por
sua vez (...) sobrepõe-se à dimensão racional ou teológica das instituições religiosas na
modernidade”, fazendo com que os crentes, sejam eles pós-modernos ou pertencentes a
cultos populares, “se mobilizem muito mais pelo sensível e pela emoção do que pelos
dogmas e verdades de fé”. (ibid:123). O importante aqui é reconhecer o papel da
experiência religiosa na construção da religiosidade individual e coletiva, pensando
tradição e modernidade não como um contraste, mas como possibilidades de “arranjos entre
elementos de diferentes origens, vivenciados em experiências pessoais e coletivas que
ultrapassam a possibilidade de controle das instituições religiosas” (ibid:126).
A procura pela Barquinha da Madrinha Chica em Niterói ocorre de acordo com o
interesse e necessidade de cada um. Algumas pessoas, freqüentadoras ou não daquilo que
Soares chamou de espaço alternativo, chegam à doutrina através da curiosidade, fixando-se
nesta após algum tempo; outras costumam procurar a casa para curar-se de doenças físicas
e demais tipos de perturbações. Por vezes, estas perturbações são entendidas pelo grupo
como um sinal de possessão111 por espíritos maléficos. A algumas dessas pessoas é
aconselhado um tratamento espiritual contínuo dentro dos rituais da casa através do
desenvolvimento mediúnico. Normalmente os médiuns de incorporação são convidados a
trabalhar nas Obras de Caridade. De fato, o centro da Madrinha Chica proporciona a todos
os adeptos, sejam eles recém-chegados a casa ou fiéis mais antigos a possibilidade de
desenvolver suas capacidades mediúnicas e de participar efetivamente dos trabalhos mais
importantes realizados pelo centro. O número de médiuns que fazem parte das Obras de
111
De acordo com Lewis (1971) uma pessoa está possuída por espírito quando acredita efetivamente que está
sendo manipulada por tais entidades e quando a sociedade a qual pertence endossa essa crença.
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Caridade, por exemplo, não é rigidamente estabelecido. Este número varia de acordo com a
quantidade de médiuns que estão preparados e que podem e querem atuar na assistência.
De acordo com alguns fiéis com os quais conversei informalmente, as primeiras
experiências mediúnicas são, com freqüência, perturbadoras e, muitas vezes, carregadas de
um sofrimento intenso, pois acontecem, na maioria dos casos de maneira descontrolada em
resposta provavelmente a aflições pessoais geradas pela inexperiência do médium. A
função da Casa é a de ajudar este tipo de pessoa a desenvolver suas capacidades em
benefício próprio e em benefício dos necessitados.
Através de seu sistema ritualístico que envolve uma carga emotiva expressiva112, o
novo adepto vai alcançado gradativamente o equilíbrio. Nessa fase ele vivencia um tipo de
experiência de fragmentação ou experiência de caráter negativo (Rodrigues e Caroso, 1998)
representada pelo desequilíbrio, mas que também “é o ponto de partida para a
‘desfragmentação’, isto é, para a construção ou reconstrução da sua própria religiosidade. A
partir desta perspectiva concordo com Lewis (1971) quando sustenta que “aquilo que
começa como uma incontrolada, não solicitada e involuntária ‘doença’ se desenvolve em
um exercício religioso voluntário e progressivamente mais controlável”. O equilíbrio
espiritual é percebido como um desenvolver do auto conhecimento da desconstrução e
reconstrução da pessoa num processo que é desencadeado no contato com o meio social. A
partir daí é possível verificar que neste centro a forma ritualística carregada de emotividade
adotada para alcançar o equilíbrio através do desenvolvimento mediúnico, está intimamente
relacionada com a estruturação da religiosidade do fiel.
O foco no afeto é altamente desenvolvido na linha da Barquinha, no entanto as
narrativas salvacionistas ainda têm um peso importante em sua constituição. Se por um lado
esta religião desenvolve um ritual moderno caracterizado pelo afeto, por outro reafirma um
modelo doutrinário tradicional baseado em escatologias de salvação.
Um dos objetivos das romarias, por exemplo, está centrado na purificação dos
adeptos rumo a uma outra vida, tendo em vista que aqueles que delas participam tendem a
se preparar material e espiritualmente para o dia do Juízo Final. “Esta afirmativa está
112
A emoção é característica da maioria dos rituais desta linha, desde os trabalhos de mesa (onde são cantados
os salmos que formam a base da doutrina), como nos trabalhos de Obras de Caridade (muitas vezes
carregados por um teor dramático latente), assim como nos bailados realizados nos dias festivos em
homenagem as entidades que trabalham na casa.
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presente no discurso dos fardados que falam que as calamidades que estão assolando o
planeta são nada menos que sinais da destruição final, quando a barca (a missão) irá ao
encontro de Jesus que por sua vez virá sobre a terra para julgar os vivos e os mortos” (Sena
Araújo, 1999:204). Assim, “para os fiéis a morte física é apenas uma transferência deste
plano para um plano superior. As romarias reforçam esta afirmação, porque seus
participantes trabalham de forma aguçada em benefício do espírito e dos semelhantes,
portanto a morte torna-se uma passagem, um renascimento” (ibid:207).
A dinâmica entre o discurso escatológico/existencial e a parte afetiva do ritual
também foi destacada para pensar o processo de construção da religiosidade desses adeptos.
O que eles buscam na igreja estaria ligado ao teor afetivo/emotivo ou se aproxima mais das
retóricas de salvação? Creio que as colocações feitas por Luis Eduardo Soares (1994)
referindo-se a doutrina do Santo Daime são também cabíveis no contexto da Barquinha.
Para ele a doutrina em questão
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BIBLIOGRAFIA
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Sites
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(Parte II) In: www.neip.info. neip.info/downloads/resenha_plantas_papo.pdf Originalmente
publicado em: http://www2.uol.com.br/pagina20/11122005/papo_de_indio.htm, 2005
GEERZT, Clifford. O futuro das religiões. http://agreste.blogspot.com/2006/05/ofuturo-
das-religioes.html, 2006.
SANTOS, Rafael G dos. Aspectos culturais e simbólicos do uso dos enteógenos.
Disponível em www.neip.info, 2005
Outros sites:
A BARQUINHA (Madrinha Francisca) – Centro Espírita e Obras de Caridade Príncipe
Espadarte - www.abarquinha.org.br
WIKIPÉDIA (a enciclopédia livre) – www.wikipedia.org
www.xamanismo.com.br/Lua/SubLua
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GLOSSÁRIO*
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Gongá – É o altar sagrado da umbanda, que guarda as imagens de suas entidades, dos
orixás e de santos católicos. Na Barquinha é o espaço físico onde as entidades incorporadas
prestam atendimento.
Hinário – Conjunto de hinos recebidos mediunicamente. Diz-se que são ensinados pelas
entidades, tanto sua letra quanto a entonação.
Incorporação – Descida das entidades espirituais ao corpo do médium. É comum a
utilização do termo “aparelhar” ou “atuar” guias.
Irradiação – Desprendimento da energia do corpo humano e das entidades. Acredita-se
que o corpo pode desprender energias de modo que, através da mentalização, pode-se
enviá-las direcionando-as para o seu receptor.
Limpeza – Diferentes processos rituais cuja função é afastar espíritos maléficos.
Médium/mediunidade/ médium de incorporação – Termo usado para as possibilidades
de comunicação com o plano espiritual. O médium é a pessoa que se comunica e a
mediunidade é a capacidade de se comunicar. Diz-se que existem diferentes tipos de
mediunidades: a de ouvir, a de ver e a de possibilitar um espírito utilizar o corpo, sendo
porta-voz da entidade.
Miração - A "miração" é um termo que foi cunhado na tradição do Santo Daime pelo
Mestre Irineu para designar o estado visionário que a bebida produz. O verbo "mirar"
corresponde a olhar, contemplar.
Passe - Ato de impor as mãos sobre determinados pontos do corpo, procurando transmitir
energias espiritual. Ou seja, diante de alguém que se considera estar em desequilíbrio, o
médium utiliza as energias de seu corpo e de seus guias espirituais para equilibrar o outro.
Pemba - A pemba é uma espécie de giz de cores diferenciadas, usado para traçar símbolos
rituais no chão, em diversos objetos ou no corpo.
Pontos – são formas de se conectar com o mundo espiritual. Podem ser em forma de cantigas:
“Pontos cantados”, que são músicas usadas com intuito de realizar um contato com as
entidades, como se fossem um convite para chegar ou ir embora. Cada entidade ou um
agrupamento possui cantigas próprias. Os “Pontos riscados” são feitos em forma de símbolos e
seu uso está relacionado a manutenção da entidade em terra e à manipulação de energias
cósmicas para a produção da magia. Ambos remetem a um sentido: comunicação.
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* Alguns termos aqui usados também podem ser consultados em Souza, 2006.
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Mestre Daniel:
fundador da linha da Barquinha
Sede do Centro Espírito e Obras de Trabalho de mesa - Sede do Centro Espírito e Obras de
Caridade Príncipe Espadarte Caridade Príncipe Espadarte
Rio Branco, AC Rio Branco, AC
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O gongá – Niterói, RJ
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