Volume 9
Volume 9
Volume 9
Dezembro 2012
ib.usp.br/revista
Revista da Biologia
Publica textos de todas as reas da Biologia, abordando questes gerais (ensaios e revises) e especficas (artigos experimentais originais, descrio de tcnicas e resumos expandidos). H espao tambm para perspectivas pessoais sobre questes biolgicas com relevncia social e politica (opinio). A Revista da Biologia gratuita e exclusivamente on-line. Sua reproduo permitida para fins no comerciais. ISSN1984-5154 www.ib.usp.br/revista
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Editor Executivo Carlos Rocha Coordenadores Agustn Camacho Daniela Soltys Pedro Ribeiro Rodrigo Pavo Editor cientfico Maria Elice Brzezinski Prestes Consultores cientficos Camile correa Daniel Lahr Gildo Santos Hamilton Haddad Leopoldo barletta Pedro Jose Da Gloria Editores grficos Juliana Roscito Leonardo M. Borges
Contato
revistadabiologia@gmail.com Revista da Biologia Rua do Mato, trav. 14, 321 Cidade Universitria, So Paulo So Paulo, SP Brasil CEP 05508-090
Imagem da capa: Haeckel, E. 1862 Die Radiolarien (Rhizopoda Radiaria), Berlin. Plate . Disponvel em http:// caliban.mpiz-koeln.mpg.de/haeckel/radiolarien/
Editorial
Maria Elice Brzezinski Prestes Departamento de Gentica e Biologia Evolutiva, Instituto de Biocincias, Universidade de So Paulo Grupo de Pesquisa em Histria da Biologia e Ensino (HBE) Grupo de Pesquisa em Histria, Teoria e Ensino de Cincias (GHTC)
com muita satisfao que atendemos ao convite de Revista da Biologia para um nmero especialmente voltado a temas de Filosofia e Histria da Biologia. A Biologia a mais nova dentre as cincias a trazer o seu objeto de investigao, a vida, para a abordagem histrica e filosfica, como ocorreu mais precocemente com a Fsica, a Matemtica e a Qumica. Sendo um campo de investigao que se institucionalizou nas ltimas dcadas, particularmente a partir dos anos 1960 e 1970, constitui-se, talvez, em uma novidade aos prprios bilogos. Da a maior relevncia de iniciativas como a dos editores da revista, aos quais agradecemos a oportunidade. Dos sete artigos aqui reunidos, trs deles tratam de temas j clssicos da Filosofia da Biologia se que a juventude da rea permite fazer uso de tal expresso. O artigo de Ricardo Santos do Carmo e colaboradores focaliza a explicao teleolgica na biologia. Remete-se particularmente teoria das funes de Robert Cummins, expressa em artigo de 1975, cuja relevncia se deve ao papel arquitetnico, e no meramente metodolgico, que possui na formao das teorias, como assinalado por Franois Duchesneau em seu Philosophie de la Biologie, de 1997. Fernanda Meglhioratti e colaboradores argumentam em favor da abordagem hierrquica e sistmica para a construo da autonomia da Biologia. Com novas tintas tericas, desenvolvem o importante tema da autonomia que marca o livro de Ernst Mayr, Biologia, cincia nica, de 2004. O artigo encabeado por Nei Freitas Nunes-Neto aborda a interface entre sistemas naturais e sujeitos cognoscentes como locus da emergncia da complexidade. A aproximao que os autores fazem com o empirismo construtivo de van Fraassen ilumina o tipo de contribuio que a filosofia da cincia em geral pode trazer s questes particulares da Biologia. Note-se que estes trs artigos no so trabalhos individuais, mas refletem a vigorosa contribuio rea que vem sendo desenvolvida de modo integrado a uma cultura maior de discusso e colaborao no grupo de pesquisa de Charbel Nio El-Hani, no Instituto de Biologia da UFBA. O artigo de Guilherme Francisco Santos sobre o importante conceito de monera formulado por Ernst Haeckel no final do sculo XIX lana luz a outro tema central da Filosofia da Biologia, o da individualidade. A anlise minuciosa das fontes primrias de Haeckel, indisponveis em nosso idioma, fideliza o mais estrito rigor filosfico metodologia da Histria da Cincia. Como no caso dos artigos precedentes, essa pesquisa integra referenciais para a rea que vm sendo desenvolvidos junto ao grupo de pesquisa de Maurcio de Carvalho Ramos, na Faculdade de Filosofia da USP. O artigo encabeado por Fernando Moreno Castilho, filiado linha de pesquisa da historiadora da biologia Lilian Al-Chueyr Pereira Martins, trata do tema mais que central da biologia, o conceito de seleo natural. Ao elucida-lo conforme proposto em duas obras de Darwin, o artigo sinaliza para o alerta historiogrfico de que a teoria de Darwin diferente da teoria evolutiva atual. Os dois artigos restantes, encabeados por Eduardo Crevelrio de Carvalho e Taysy Fernandes Tavares so exemplos do que vem sendo feito pelo Grupo de Pesquisa em Histria da Biologia e Ensino do IB-USP. Eduardo retoma as investigaes sobre a gerao espontnea no sculo XVIII, destacando-a como uma das controvrsias mais acirradas daquele sculo. Por sua vez, Taysy aborda o estudo de caso de Robert Hooke luz da etiqueta historiogrfica de pseudo-histria, problematizada por Douglas Allchin. Como diversos outros, os grupos aqui representados so integrantes da Associao Brasileira de Filosofia e Histria da Biologia, ABFHiB. Criada em 17 de agosto de 2006, a ABFHiB tem o objetivo de ampliar a difuso dos estudos de Filosofia e Histria da Biologia no contexto brasileiro, propsito esse que vem sendo cumprido por meio de atividades regulares, como a organizao dos encontros anuais no ms de agosto e as publicaes do Boletim de Histria e Filosofia da Biologia e da revista Filosofia e Histria da Biologia. Embora oferea uma amostra da pesquisa atual que vem sendo realizada no Brasil em Filosofia e Histria da Biologia, esta pequena coleo de ensaios est longe de servir de panormica do que h. Outros grupos de pesquisa, muitos dos quais tambm filiados ABFHiB, vm sendo formados em nosso pas e oferecem aportes igualmente promissores para a rea. A voc leitor, encerro com votos de boa leitura!
Volume 9(2)
ndice
Lazzaro Spallanzani e a gerao espontnea: os experimentos e a controvrsia
Lazzaro Spallanzani and spontaneous generation: the controversy Eduardo Crevelrio de Carvalho, Maria Elice Brzezinski Prestes experiments and
the
As concepes evolutivas de Darwin sobre a expresso das emoes no homem e nos animais 12
Darwins evolutionary conceptions on the expression of emotions in man and animals Fernando Moreno Castilho, Lilian Al-Chueyr Pereira Martins
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Is it legitimate to explain in teleological terms in biology? Ricardo Santos do Carmo, Nei Freitas Nunes-Neto, Charbel Nio El-Hani
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Artigo
Programa de Ps-Graduao Interunidades em Ensino de Cincias, Universidade de So Paulo Departamento de Gentica e Biologia Evolutiva, Instituto de Biocincias, Universidade de So Paulo 3 Grupo de Pesquisa em Histria da Biologia e Ensino (GPHBE) 4 Grupo de Pesquisa em Histria, Teoria e Ensino de Cincias (GHTC)
Contato dos autores: 1 edu.carvalho@usp.br, 2 eprestes@ib.usp.br Resumo. Este artigo aborda as pesquisas realizadas pelo naturalista italiano Lazzaro Spallanzani (17291799) sobre a gerao espontnea. Como se trata de uma ideia que no mais aceita, ela costuma ser abordada com ironia em relatos histricos anacrnicos. Nesses casos, desconsidera-se que foi defendida por muitos estudiosos da natureza, durante muitos sculos. O objetivo deste trabalho o de analisar, aps um panorama histrico das ideias de alguns dos principais autores envolvidos com o tema, os experimentos de Spallanzani sobre a gerao, no contexto das teorias do sculo XVIII e particularmente da controvrsia entre Spallanzani e John T. Needham (1713-1781). Sero traadas tambm consideraes sobre elementos de natureza epistmica e no-epistmica que participam da soluo, ou no, das controvrsias cientficas. Palavras-chave. Controvrsias cientficas, gerao espontnea, Lazzaro Spallanzani. Abstract. This article discusses the researches performed by the Italian naturalist Lazzaro Spallanzani (1729-1799) on spontaneous generation. For this is an idea no longer accepted, the theme is often dealt with irony by anachronistic historical reports. In such cases, it discredits that the idea has already been held by many researchers of nature, through many centuries. The goal of this work, after presenting a historical overview of ideas of the main authors concerned with the issue, is to analyze the experiments of Spallanzani on the generation in the context of the Eighteenth Century theories and the controversy between Spallanzani and John T. Needham (1713-1781). There will be also a brief discussion of the epistemic and non-epistemic elements that participate in the solution, or not, of scientific controversies. Keywords. Scientific controversies, spontaneous generation, Lazzaro Spallanzani. Recebido 17abr11 Aceito 01set11 Publicado 15dez12
Introduo
Na segunda metade do sculo XVIII, o debate sobre a origem da vida tornou-se bastante intenso entre filsofos e naturalistas que investigavam o problema da gerao1. Naquele momento, as opinies sobre o modo pelo qual os organismos vivos se reproduzem eram muito diversas. De modo geral, os estudiosos intitulavam-se como defensores de uma entre duas grandes teorias que procuravam explicar o fenmeno: a epignese e o pr-formismo ou preexistncia. A epignese apoiava-se na ideia de que os organismos so formados gradualmente aps a fecundao, a cada instante do prprio processo reprodutivo. O pr-formismo baseava-se em que todas as partes e a estrutura do organismo vivo j existem nos germes que lhes do origem.
1 O termo gerao no possua uma conotao nica nessa poca, mas englobava reproduo, regenerao e origem dos seres vivos.
A compreenso sobre a origem mesma dos organismos viventes, por sua vez, tambm variou conforme diferentes pocas. Uma hiptese, muito antiga, era a da gerao espontnea, segundo a qual os organismos so formados a partir de matria inanimada. Outra hiptese era a de que todo ser vivo provm de um progenitor preexistente (e at o aparecimento das teorias evolutivas do sculo XIX, esse progenitor foi criado por Deus). Em meados do sculo XVIII perodo em que foram realizados os experimentos tratados neste trabalho a ideia da gerao espontnea passou a ser bastante criticada, especialmente por estar relacionada doutrina pag que atribua foras e poderes natureza. A Igreja catlica apoiava justamente o oposto, a gerao unvoca2, ou seja,
2 Na poca utilizava-se o termo gerao unvoca para a doutrina que explicava a origem dos seres vivos a partir de germes ou progenitores semelhantes a eles. O oposto seria gerao equvoca, em que a gerao desses animlculos era espontnea (Prestes e Martins, 2010, p. 81).
que todos os organismos esto presentes no germe de um dos progenitores (Prestes e Martins, 2010, p. 81). Em sntese, os adeptos da teoria da epignese aceitavam a gerao espontnea, enquanto os defensores da teoria da pr-formao a negavam. A aceitao do sistema pr-formista at meados do sculo XVIII deveu-se, em grande medida, ao seu potencial para um entendimento mecnico da alma e do esprito e, portanto, do relacionamento de Deus com seu mundo mecnico (Pinto-Correia, 1999, p. 49). Esta pesquisa traz uma anlise da contribuio do naturalista italiano Lazzaro Spallanzani (1729-1799) a esses debates. Aps uma breve apresentao das pesquisas realizadas no sculo XVIII e, mais particularmente, da controvrsia que Spallanzani estabeleceu com John Turberville Needham (1713-1781), ser feita uma anlise mais detalhada da ltima obra em que Spallanzani tratou do tema, as Osservazioni e sperienze intorno agli animalucci delle infusioni, in ocasione che si esaminano alcuni articoli della nuova opera del Sig. Di Needham (Observaes e experincias sobre os animlculos das infuses, ocasio em que so examinados alguns artigos da nova obra do Senhor Needham).
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co. Para isolar o caldo do ar exterior, fechou-o com uma tampa de cortia. Ele esperava esclarecer se os animlculos que surgiam aps algum tempo nessas infuses eram produzidos a partir de algo que vinha de fora, ou se eles eram provenientes da prpria substncia infusa. Needham manteve o frasco durante algum tempo sobre carvo quente. Mais tarde, exps os frascos ao calor do sol durante alguns dias. Abriu-os e retirou gotas do caldo para examinar ao microscpio, encontrando uma grande quantidade de animlculos que se moviam. O mesmo resultado foi obtido com outras infuses de substncias animais e vegetais. Com esse resultado, Needham sups ter encontrado uma evidncia favorvel ao aparecimento espontneo de animlculos nas infuses. Alm disso, ele procurou explicar que o fenmeno ocorria devido s foras ativas da natureza, que ele chamou de fora ou poder vegetativo. Needham contou com o apoio de Buffon, pois sua interpretao se harmonizava com a teoria das molculas orgnicas do naturalista francs. Buffon acreditava que, na ocasio da morte de um animal, suas molculas orgnicas continuavam a existir, podendo constituir indivduos mais simples do aquele do qual se originaram. Assim, para Buffon, os glbulos mveis (microrganismos) observados por Needham ao microscpio tinham se originado das molculas orgnicas do carneiro (Martins, 2007, p. 28). Shirley Roe acrescenta que embora sua teoria da gerao tenha se baseado nos fenmenos revelados pelo microscpio, John Needham generalizou suas concluses para construir uma teoria epigentica universal. Alm disso, incorporou aspectos metafsicos teoria. No entanto, como o homem religioso que era, a sua metafsica nunca foi de orientao materialista, e sempre foi cuidadosamente colocada em um contexto religioso. Mesmo assim, Needham foi forado a defender seus pontos de vista contra a acusao de atesmo (Roe, 1983, p. 160). importante ressaltar que o experimento de Needham foi extremamente importante, pois introduziu novas ideias tcnicas, como a utilizao de recipientes fechados contendo lquidos expostos ao da alta temperatura seguido do exame de seu contedo (Prestes e Martins, 2010, p. 82).
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Alm disso, experimentou diferentes materiais para fechar os frascos e observou que a quantidade de animlculos que apareciam tinha uma relao direta com a entrada do ar que no havia sofrido a ao do fogo (Prestes e Martins, 2010, p. 85). Em recipientes que foram mantidos abertos, os animlculos eram abundantes; nos fechados com algodo, eram menos abundantes; eram raros nos tapados com madeira e ausentes nos lacrados com a chama de um maarico (Prestes e Martins, 2010, p. 85). Spallanzani realizou o experimento em frascos lacrados em 19 frascos, com diversas matrias infusas, como pedaos de carne ou sementes de vegetais, e obteve em todos eles o resultado que esperava: as infuses no se turvaram e ali no apareceram animlculos (Prestes e Martins, 2010, p. 85). Spallanzani publicou o resultado de suas investigaes em 1765 em sua obra Saggio di osservazioni microscopiche concernenti il sistema della generazione de Signori di Needham e Buffon (Ensaio de observaes microscpicas sobre o sistema da gerao dos Senhores Needham e Buffon). Em 1769, o Saggio foi traduzido para o francs e publicado com o ttulo Nouvelles recherches sur les dcourvertes microscopiques, et la gnration des corps organiss (Novas pesquisas sobre as descobertas microscpicas e a gerao dos corpos organizados). Trata-se de uma edio que contm, alm da traduo, cerca de 100 pginas de notas de Needham comentando os experimentos de Spallanzani. Nessas notas, Needham seguiu considerando a existncia de uma fora vegetativa que podia produzir animlculos a partir de um vegetal morto. Tambm apresentou, dentre outras, duas importantes objees aos procedimentos experimentais de Spallanzani: este no teria aquecido excessivamente as infuses, destruindo a fora plstica ou poder vegetativo das matrias infusas? No podia o calor excessivo ter corrompido a pequena quantidade de ar existente na parte vazia dos recipientes?
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de que o fogo diminua a elasticidade do ar. Spallanzani imaginou que se o dimetro do pescoo dos frascos fosse ainda mais estreito, tornando-se um tubo quase capilar, este poderia ser fechado hermeticamente muito rapidamente, antes do ar interior tornar-se rarefeito. Por isso, refez os experimentos com frascos de gargalo bem fino e acreditou ter contornado o problema. Para a sua surpresa, o que encontrou foi que o ar contido no interior dos frascos no havia sofrido perda, mas ganho de elasticidade em relao ao ar exterior. Isto porque, desta vez, ao quebrar o pescoo do frasco na frente da chama de uma vela, essa chama tendia na direo oposta ao frasco, indicando a sada do ar (e no era atrada no sentido do gargalo do frasco, como ocorria antes). Para explicar esse fenmeno, cogitou: No nego que aquele excesso de elasticidade no seja derivado em parte de um fluido elstico presente j nos vegetais, e que possui natureza aparentemente distinta do fluido areo. (Spallanzani, 1998 [1776], p. 28) Com esses procedimentos, Spallanzani considerou ter rechaado a segunda objeo de Needham10. Por consequncia, afirmou que a noo de fora vegetativa no passava de uma quimera. Alm disso, Spallanzani considerou ter fornecido resultados de observaes e experimentos que provavam que os animlculos so gerados a partir de germes preexistentes e no a partir das matrias das sementes.
As controvrsias cientficas
Aps analisar os experimentos apresentados por Lazzaro Spallanzani em resposta s objees de John T. Needham, bem como o contexto em que se desenvolveu a controvrsia, pode-se perceber que ambos eram experimentadores competentes. Needham desenvolveu experimentos inovadores e Spallanzani introduziu anlise de novas variveis, diversificando as sries experimentais. Um aspecto que no pode ser ignorado diz respeito s interpretaes que Needham e Spallanzani chegaram diante dos resultados obtidos. Os resultados obtidos por meio de longas sries de experincias foram interpretados com base em concepes epistemolgicas distintas, ambas aceitveis naquele perodo. Needham partilhava da concepo epigentica, Spallanzani, do pr-formacionismo. Ambos acreditaram ter fornecido evidncias experimentais a seu favor, e ambos no abandonaram seus sistemas. No sentido kuhniano pode-se dizer que apesar de terem realizado experimentos semelhantes, os resultados foram interpretados com base em paradigmas incomensurveis. O debate sobre a origem dos organismos das infuses no se encerrou naquele sculo, e a contenda se estendeu ao longo do sculo XIX. Foi revivido por Flix
10 Apesar disso, a objeo de Needham de que o ar ficava viciado pela ebulio prolongada, era difcil de descartar, porque naquela poca, se sabia pouco sobre a composio do ar e sobre o tipo de alterao que sofria sob ao do calor (Prestes e Martins, 2010, p. 93).
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Pouchet (1800-1876) e Louis Pasteur (1822-1895), sendo que este ltimo costuma ser lembrado por ter realizado uma srie de experimentos brilhantes que teriam mostrado que a gerao espontnea no possvel. Sobre esta questo cabe esclarecer que o aparato experimental montado por Louis Pasteur e seus famosos frascos de pescoo-de-cisne seguiu de perto os experimentos de Spallanzani. Alm disso, importante reconhecer que a controvrsia sobre a gerao espontnea no foi resolvida nem mesmo com Pasteur, pois outros pesquisadores continuaram se dedicando ao tema, como o mdico escocs Charlton Bastian (1837-1915) (Martins, 2009, p. 96). Compreender uma controvrsia cientfica exige o exame da natureza das diferenas que separam os proponentes dos dois lados da contenda. preciso examinar, alm dos experimentos e da lgica que os engendra, as tcnicas de argumentao persuasiva que se desenvolvem no interior dos grupos que constituem as comunidades cientficas de cada poca. Episdios histricos que se desenvolvem em torno de controvrsias cientficas propiciam anlise valiosa para a compreenso de aspectos da natureza da cincia. Permitem perceber que, muitas vezes, as tomadas de deciso em favor de uma ou outra hiptese so influenciadas por questes no-epistmicas, como as que regem a comunicao entre diferentes grupos de pesquisa. Alm disso, o conhecimento que emerge de uma controvrsia cientfica no necessariamente melhor ou mais elaborado que o anterior. Nem mesmo segue uma trajetria linear em que teorias mais simples so substitudas ou incrementadas por outras mais elaboradas. Uma controvrsia cientfica nem mesmo garante que uma determinada concepo seja abandonada em detrimento de outra, e isso ocorre, segundo Feyerabend, porque os critrios pelos quais as teorias so avaliadas no seguem sempre ou exclusivamente uma ordem lgica ou racional. Algumas controvrsias persistem durante perodos relativamente longos ou podem mesmo ser retomadas aps algumas dcadas ou sculos, como se deu no caso da gerao espontnea. Uma controvrsia pode comear com um problema especfico, porm rapidamente se expande a outros problemas e revela divergncias profundas. Estas envolvem tanto atitudes e preferncias opostas como desacordos sobre mtodos vigentes para solucionar os problemas. Os contendentes acumulam argumentos que creem aumentar o peso de suas posies frente s objees do adversrio, tendendo assim, se no a decidir a questo, pelo menos a inclinar a balana da razo a seu favor (Dascal, 1994, p. 79).
Agradecimentos
A segunda autora agradece o apoio da FAPESP.
Referncias
Pinto-Correia C. 1999. O ovrio de Eva: a origem da vida. Rio de Janeiro: Campus. Dascal M. 1994. Epistemologia, controvrsias e pragmtica. ib.usp.br/revista
Artigo
Contato dos autores: 1meglhioratti@gmail.com, 2charbel.el-hani@pesquisador.cnpq.br, 3anacaldeira@fc.unesp.br Resumo. Alguns autores tm sustentado que o conceito de organismo, de forma geral, perdeu seu papel na Biologia, devido crescente nfase nos aspectos moleculares e ao fato de a biologia evolutiva darwinista no ter atribudo por um longo tempo um papel explicativo claro ao organismo em sua estrutura conceitual. Entretanto, o conceito de organismo pode ser considerado fundamental para a demarcao da Biologia como cincia autnoma e com objeto de pesquisa prprio. Buscando contribuir para o debate sobre o conceito de organismo, discutimos nesse trabalho como o organismo pode ser concebido em uma abordagem hierrquica e sistmica da Biologia, como uma unidade autnoma, com capacidade de agncia, coletiva e evolutivamente construda, e possuindo propriedades que emergem no nvel orgnico. Palavras-chave. Autonomia, hierarquia biolgica, organismo. Abstract. Some authors have maintained that the concept of organism has lost, generally speaking, its role in Biology, due to the increasing emphasis on molecular aspects and the fact that the Darwinian evolutionary biology for a long time has not ascribed a clear explanatory role to the organism in its conceptual structure. However, the concept of organism can be regarded as being fundamental to the demarcation of Biology as an autonomous science, with its own research object. Seeking to contribute to the debate on the concept of organism, we discuss in this work how the organism can be conceived in a hierarchical and systemic approach to Biology, as an autonomous unit with the capacity of agency, collectively and evolutionarily constructed, and possessing properties that emerge at the organic level. Keywords. Autonomy, biological hierarchy, organism. Recebido 20mai11 Aceito 10set11 Publicado 15dez12
Introduo
Quando falamos sobre seres vivos, tipicamente nos referimos a eles utilizando o termo organismo. Como a Biologia a cincia da vida, poderia parecer bvio que as pesquisas biolgicas tivessem como um de seus principais objetos de estudo o organismo. Paradoxalmente, vrios autores tm argumentado que o conceito de organismo, de forma geral, perdeu seu papel central na Biologia, devido crescente nfase nos aspectos moleculares e ao fato de a biologia evolutiva darwinista no ter atribudo um papel explicativo claro ao organismo em sua estrutura conceitual (Lewontin, 1978, 2002; Goodwin, 1994; Feltz, 1995; Webster e Goodwin, 1999; El-Hani e Emmeche, 2000; Ruiz-Mirazo e col., 2000; Gutmann e Neumann-Held, 2000; El-Hani, 2002; Seplveda e col., 2011). Como consequncia, segundo Lewontin (2000), os organismos passaram a
ser entendidos como entidades passivas, decorrentes da interao entre genes e ambiente: Os seres vivos so vistos como sendo organismos determinados por fatores internos, ou seja, os genes. [...] O mundo fora de ns coloca certos problemas, que no criamos, mas que apenas experimentamos como objetos. Os problemas so: encontrar um cnjuge, encontrar alimento, vencer as competies com os rivais, adquirir uma grande parte dos recursos do mundo, e se tivermos os tipos certos de genes, seremos capazes de resolver os problemas e deixar mais descendentes. Portanto, com essa viso, so realmente nossos genes que esto se propagando atravs de ns mesmos. (Lewontin, 2000, p. 17) Nessa formulao, criticada por Lewontin, o organismo, enquanto entidade real que age sobre o meio, mo-
dificando-o, ocupa um papel secundrio. Como afirmam Ruiz-Mirazo e col. (2000), as pesquisas biolgicas enfatizam nveis de organizao mais restritos que aquele no qual se encontra o organismo, como vemos, por exemplo, na biologia molecular e em formulaes gene-cntricas da teoria evolutiva, ou mais inclusivos, como em outras formulaes da biologia evolutiva e na ecologia. Tem sido usual, na biologia contempornea, no pensar o organismo como totalidade e, assim, este no abordado mediante a investigao de propriedades que emergem no nvel orgnico de complexidade. Nesse sentido, Webster e Goodwin destacam a necessidade de: [...] reafirmao do organismo como o prprio objeto da pesquisa biolgica: um objeto real, existindo em seu prprio modo e explicado em seus prprios termos.(Webster e Goodwin, 1999, p. 495) Estes autores ressaltam, pois, a importncia da compreenso do organismo como elemento central do conhecimento biolgico. Nesse contexto, fundamental perceber que a reduo extrema dos fenmenos biolgicos s anlises moleculares e aos estudos da constituio qumica e fsica das clulas pode fazer com que a Biologia perca seu status de cincia autnoma. Apesar de as pesquisas moleculares e das interaes entre a Biologia e campos distintos do conhecimento, como a Fsica e a Qumica, serem fundamentais para o desenvolvimento do conhecimento biolgico, os fenmenos biolgicos no podem ser explicados somente a partir de uma abordagem reducionista da Biologia. Os sistemas vivos tm modos de organizao que lhes so prprios e que no devem ser perdidos de vista na explicao dos processos vitais, no obstante a necessidade de tambm investigar as bases fsicas e qumicas de tais processos. Alm disso, eles devem ser estudados levando em considerao a existncia de propriedades que emergem no organismo devido a certos tipos de padres organizativos. Portanto, o enfoque no organismo ajuda a caracterizar a Biologia como uma cincia autnoma, delineando seus contornos em relao aos outros domnios da cincia. Por exemplo, pode-se questionar como a Biologia se distingue da Qumica. A resposta a essa pergunta pode ser pautada pela definio dos diferentes objetos de estudo dessas cincias. Assim, apesar da nfase atual nos componentes moleculares dos sistemas vivos, a Biologia tem como foco de estudo (ou, ao menos, deveria ter) o organismo, ou seja, como o organismo se constitui mediante as interaes moleculares e ambientais. Na Qumica, por sua vez, o foco da investigao recai sobre as molculas, como elas so constitudas e interagem umas com as outras. Nesse cenrio, torna-se fundamental explicar claramente o que o organismo. Pepper e Herron (2008) consideram que, apesar da existncia de tentativas de conceituar o organismo e da importncia fundamental dessa conceituao em algumas reas da Biologia, foram realizadas poucas tentativas para uma definio mais consistente desse conceito. Portanto, de modo a contribuir com o debate, busca-se neste texto explicitar um conceito de organismo mediante uma abordagem hierrquica e sistmica
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conceito de auto-organizao, ou seja, formao e organizao de uma estrutura ordenada a partir da interao das partes do prprio sistema. Moreno (2004) sustenta que os seres vivos tm uma forma particular de auto-organizao, a qual ele designa por autonomia coletivamente organizada. O termo autonomia utilizado para designar um sistema capaz de ser mantido de forma adaptativa, exercendo suas aes dentro de um ambiente varivel. A ideia de autonomia requer uma identidade distinta, pressupondo no somente a distino entre sistema e ambiente, mas tambm a possibilidade de esta distino ser realizada pelo prprio sistema. Para Moreno (2004), as primeiras formas autnomas poderiam ter surgido no ambiente pr-bitico, apresentando um grau elevado de autonomia, por serem sistemas extremamente fechados em si mesmos, mas limitados quanto possibilidade de aumento de complexidade. No entanto, para a evoluo de sistemas vivos diversificados, seria necessria a insero de sistemas autnomos individuais em redes de conexo com outros indivduos, da emergindo nveis superiores da organizao biolgica, como comunidades e ecossistemas. Decorre dessa explicao a ideia de autonomia coletivamente organizada, na qual os seres vivos constituem um tipo especial de autonomia, aberta evolutivamente, e no restrita ao mbito individual. Os organismos possuem uma conexo histrico-coletiva e esto inseridos em um meta-sistema mais amplo, permitindo a origem de sistemas ecolgicos capazes de reciclar componentes necessrios sustentao da organizao individual de base. Assim, ao preo da perda de uma autonomia completa no nvel individual, a meta-organizao biolgica permitiu a articulao de formas de vida de modo indefinidamente sustentvel. Etxeberria e Moreno (2007, p. 30) refinam o conceito de autonomia nos seres vivos mediante a associao da autonomia capacidade de agncia. Estes autores procuram diferenciar o que o sistema, o ser, e o que sua agncia, o fazer. Para eles, a identidade do sistema deve aparecer como uma organizao estvel da qual derivam aes para o exterior do sistema, devendo-se distinguir entre processos constitutivos e interativos. Essa distino por eles exemplificada mediante o fenmeno de bombeamento ativo de ons nas clulas: [...] o bombeamento ativo de ons necessrio para manter o funcionamento da clula (que, do contrrio, explodiria como consequncia de uma crise osmtica). Mas este bombeamento, que implica uma forma de trabalho, porque um transporte da clula contra um gradiente de concentrao, requer uma sub-organizao interna de diferentes reaes encadeadas. A clula mantm seu funcionamento graas ao bombeamento de ons (processo interativo), o qual requer um mecanismo interno (processo constitutivo), que, por sua vez, em escala temporal mais ampla, depende indiretamente da correta realizao do processo de bombeamento. Em outras palavras, ainda que, em ltima instncia, o fazer do sistema (re)genere recursivamente seu ser, tem de haver uma dupla escala temporal no processo, que permita falar de um sistema com
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Consideraes finais
O destaque dado capacidade de agncia na formulao do conceito apresentado permite compreender o organismo como tendo um papel ativo no seu ambiente, contrapondo-se viso do mesmo como ente passivo, tal como encontramos tanto numa abordagem reducionista da biologia, quanto, de modo geral, na teoria sinttica da evoluo.
Agradecimentos
O desenvolvimento do trabalho foi parcialmente financiado pela CNPq.
Referncias
El-Hani CN. 2002. Uma cincia da organizao viva: organicismo,
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Artigo
As concepes evolutivas de Darwin sobre a expresso das emoes no homem e nos animais
Fernando Moreno Castilho1, Lilian Al-Chueyr Pereira Martins2
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Introduo
Dentre os trabalhos de Charles Robert Darwin (18091882), o Origem das espcies (1859) o mais conhecido. Entretanto, nesta obra ele no lidou com o homem. Ele tratou deste assunto em duas publicaes posteriores: a Origem do homem e a seleo sexual (1871) e a Expresso das emoes no homem e nos animais (1872). A anlise da Origem das espcies mostra que nesta obra Darwin apresentou como principal meio de modificao das espcies a seleo natural. Entretanto, sugeriu tambm outras possibilidades, tais como a seleo sexual e a herana de caracteres adquiridos pelo uso e desuso, por exemplo (Martins, 2006, pp. 263-264; Carmo, 2006). Bem menos conhecida que a Origem das espcies, A expresso das emoes no homem e nos animais composta por 13 captulos. Neles, Darwin tratou dos princpios gerais da expresso, os meios de expresso nos animais, as expresses especiais de animais, expresses especiais do homem: sofrimento e choro; desnimo, ansiedade, tris-
teza, abatimento e desespero; alegria, bom humor, amor, sentimentos de ternura e devoo; reflexo, meditao, mau humor, amuo e determinao; dio e raiva; desdm, desprezo, nojo, culpa, orgulho, desamparo, pacincia, afirmao e negao; surpresa, espanto, medo e horror; preocupao consigo mesmo, vergonha, timidez e modstia. Ele apresentou descries detalhadas de expresses manifestadas mediante situaes comportamentais que observara, ou relatadas por seus correspondentes, acompanhadas de figuras, gravuras e fotografias, utilizadas para reforar seus argumentos (Castilho, 2010, pp. 5-6). Segundo Alfred Russel Wallace (1823-1913), nesta obra Darwin apresentou de modo sistemtico o resultado de suas investigaes feitas a partir da observao das paixes e emoes nos animais sobre as causas dos fenmenos mais variados e complexos apresentados pelos seres vivos, reconhecendo os fatores fisiolgicos e psicolgicos envolvidos nos inmeros movimentos complexos e contraes musculares (Wallace, 1873, p. 113). Ele assim descreveu o livro:
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acima das sobrancelhas e ao redor da boca; algumas dessas expresses chegam a ser praticamente as mesmas, como o choro de certos tipos de macacos e a risada de outros, durante a qual os cantos da boca so repuxados para trs e as plpebras franzidas. (Darwin, 1871, vol. 1, p. 191)
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4. Quando se concentra ou tenta resolver algum problema, ele franze o cenho ou enruga a pele abaixo das plpebras inferiores? 5. Quando abatido, desce os cantos da boca e eleva a extremidade interna das sobrancelhas pela ao desse msculo que os franceses apelidaram de msculos de sofrimento? Nesse estado, as sobrancelhas fazem-se levemente oblquas, com um pequeno inchao em sua extremidade medial; e o meio da testa fica enrugado, no toda a sua extenso, como quando se elevam as sobrancelhas exprimindo surpresa? 6. Quando satisfeito, brilham seus olhos, enruga-se a pele em volta destes e retraem-se os cantos da boca? 7. Quando um homem olha para outro com desprezo ou ironia, ergue-se o canto do lbio superior por sobre o canino do lado pelo qual ele o est encarando? 8. Pode uma expresso de obstinao e tenacidade ser reconhecida principalmente pela boca firmemente fechada, pelo cenho baixo e pelas sobrancelhas levemente franzidas? 9. O desdm exprimido por uma leve protruso dos lbios e discreta expirao com o nariz empinado? 10. Manifesta-se o nojo virando-se o lbio inferior para baixo e elevando-se levemente o lbio superior com uma sbita expirao, como um vomitar incipiente ou cuspir? 11. O medo extremo expresso aproximadamente da mesma maneira que o fazem os europeus? 12. O riso pode chegar ao extremo de fazer com que lacrimejem os olhos? 13. Quando um homem quer demonstrar que no pode impedir algo ou que ele mesmo no consegue fazer alguma coisa, ele encolhe os ombros, vira para dentro os cotovelos e estende as mos para fora com as palmas abertas; e as sobrancelhas so erguidas? 14. As crianas, quando emburradas, fazem bico ou protraem fortemente os lbios? 15. Expresses de culpa, malcia ou cime podem ser reconhecidas, ainda que eu no consiga defini-las? 16. Balana-se a cabea verticalmente na afirmao e horizontalmente na negao? (Darwin, 1872, pp. 16-17). Alm das respostas do questionrio enviadas pelos seus colaboradores, Darwin, baseou-se tambm nas informaes obtidas em livros de viagens escritos por outros naturalistas (Darwin, 1872, p. 23).
As concluses de Darwin
Baseando-se em suas prprias observaes, bem como naquelas feitas por outros autores com os quais tinha um contato mais prximo ou se correspondia, aos quais deu o devido crdito, Darwin tirou algumas concluses. A seu ver, devido grande semelhana existente entre as expresses faciais e os gritos inarticulados emitidos pelo homem e pelos animais quando expostos s mesmas condies, essas caractersticas teriam sido adquiridas, provavelmente, como herana de alguma forma silvestre de parentesco prximo, o que se harmonizava com sua tese da descendncia de um ancestral comum (Darwin,
Agradecimentos
Os autores agradecem Secretaria de Educao do Estado de So Paulo, ao CNPq e FAPESP. Artigo baseado na dissertao de mestrado de FM Castilho. LAP Martins bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.
Referncias
Carmo VA. 2006. Concepes evolutivas de Charles Darwin no Origin of species e de Alfred Russel Wallace em Darwinism: um estudo comparativo. Dissertao. [Mestrado em
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Artigo
Ernst Haeckel (1834-1919) foi um bilogo alemo cujo pensamento exerceu profunda influncia no cenrio cientfico e intelectual da segunda metade do sculo XIX e do incio do sculo XX. Tal influncia foi devida especialmente sua original concepo morfolgica e sua profunda e incansvel defesa do evolucionismo e do monismo. Haeckel buscou construir uma teoria biolgica geral que conjugava, por um lado, o seu prprio desenvolvimento de uma srie de noes da tradio morfolgica, a qual tinha como algumas de suas expresses principais as formulaes dos Naturphilosophen alemes e de Goethe, e, por outro lado, o evolucionismo e o darwinismo nascente. Um dos conceitos constitutivos da morfologia evolucionista de Haeckel o conceito de monera. Dentro de seu grande projeto, a noo de monera ocupa um papel central, pois direciona e influencia a construo de suas teorias biolgicas em aspectos e temas variados, tais como a gerao espontnea, a individualidade biolgica e a dinmica da evoluo geral dos organismos1. Procuraremos
1 Na obra contempornea de Blsche, temos um relato biogrfico sobre Haeckel e uma descrio geral de sua obra onde se expe o conceito de monera haeckeliano e o lugar por ele ocu-
apresentar a seguir o sentido geral e alguns dos aspectos principais do conceito de monera de Haeckel, salientando, ao final, a questo da individualidade biolgica2.
pado em sua teoria (Blsche, 1891, ver principalmente o captulo sobre a Morfologia Geral, p. 172-251). Numa obra recente, Richards nos apresenta uma anlise e interpretao da vida e da obra de Haeckel na qual o conceito de monera discutido no quadro da sua proposta de uma morfologia evolucionista (Richards, 2008, ver a seo Haeckels Darwinism, especialmente p. 137-40). 2 Dentro da sua proposta de representao do sistema evolutivo dos seres vivos atravs de rvores genealgicas, Haeckel incluiu as moneras na base do reino neutro dos protistas, criado por ele ao lado dos reinos animal e vegetal. Nesse reino dos protistas, as moneras constituem a primeira de suas oito divises (Haeckel, 1866, II, p. xxii e xxiii). Do ponto de vista dos organismos diretamente observados que integravam tal diviso, destacam-se as cromceas (cianofceas ou cianobactrias) e as bactrias (Haeckel, 1904, p. 192-201). importante observar ainda, como procuraremos mostrar adiante nesse artigo, que o conceito de monera de Haeckel em sentido amplo transcende a noo de organismos individuais pr-celulares, isto , no nucleados, e inclui a noo de ser vivo pr-individual, como seria o
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distino fundamental de estrutura e as imensas consequncias da advindas. As extensas pesquisas realizadas por Haeckel com as moneras e a sua noo de continuidade no processo do desenvolvimento orgnico reafirmaram a sua viso de que a base do fenmeno vital a atividade fisiolgica, independente da diferenciao estrutural. Nesses verdadeiros organismos sem rgos (Haeckel, 1889 [1868], p. 426), colocava-se em evidncia a propriedade fundamental do vivente, ou seja, a atividade ou dinamismo fisiolgico (Haeckel, 1866, I, p. 135). Haeckel destacou a importncia de compreender as caractersticas e propriedades da substncia plasmtica que constitua as moneras e de conceber esse plasma homogneo das moneras como o gerador de toda a atividade orgnica. Para Haeckel, o plasma a substncia viva, a base material das manifestaes vitais orgnicas. Ele observa que, considerando o protoplasma sob o ponto de vista qumico, Max Schultze (1825-1874) pde demonstrar a importncia e generalidade do plasma, produzindo assim uma reforma na teoria celular. Assumindo o ponto de vista de Schultze, Haeckel explica que h uma confuso entre o conceito qumico e o conceito morfolgico de protoplasma: Essa confuso provm de no ter sido formulada com clareza a oposio entre as duas partes essenciais componentes da noo moderna de clula, o ncleo e o corpo celular. O ncleo interno pareceu ser um elemento slido, formado e determinado morfologicamente. Ao contrrio olhava-se a massa mole [...] como um elemento amorfo e somente definvel quimicamente. S mais tarde se reconheceu que a composio qumica do ncleo muito prxima da do corpo da clula, e que se encarou o carioplasma do primeiro e o citoplasma do segundo como formas de uma substncia nica, o plasma. Todas as outras substncias que se encontram num organismo vivo apenas so produtos e derivados desse plasma ativo. (Haeckel, 1963 [1904], p. 128) Por isso, para Haeckel, as partes da clula so rgos especializados voltados a funes especficas da atividade orgnica e, portanto, estruturas derivadas do processo de evoluo e originadas de um organismo mais elementar cujo corpo constitui-se unicamente de protoplasma homogneo (Haeckel, 1963 [1904], p. 192). E a clula como a unidade formada por protoplasma e ncleo um desenvolvimento posterior, fruto da diviso de trabalho em partes diferenciadas. Desse modo, segundo Haeckel, pode-se afirmar que o fenmeno vital est localizado em ltima instncia no protoplasma e no na clula. Essa noo de plasma que ele assume tem consequncias diretas em sua concepo evolutiva e em sua viso da gerao espontnea. O plasma definido por suas caractersticas fsicas e qumicas e por sua atividade, as quais so devidas aos modos especiais como se ligam nela elementos da matria ordinria, principalmente devido s propriedades do carbono. Por outro lado, esta massa indiferenciada de proto158-160).
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18 Santos: Moneras e individualidade biolgica: alguns elementos do conceito de monera de Ernst Haeckel
plasma representaria a matria orgnica, ou matria viva elementar e inicial. Desse modo, por meio de sua extrema simplicidade e de suas capacidades, seria possvel entrever nas moneras tanto a base dos fenmenos vitais em geral como o ponto de passagem evolutivo do inorgnico ao orgnico, isto , a base ancestral de toda a evoluo posterior dos seres vivos. Por isso, Haeckel afirmou que: Pela homogeneidade absoluta da substncia albuminide, pela falta completa de partes diferenciadas, aproximam-se mais as moneras dos seres inorgnicos do que dos organismos e formam evidentemente a transio entre o mundo orgnico e o inorgnico, o que se conforma com a hiptese da gerao espontnea. (Haeckel, 1930 [1879], p. 309) Para Haeckel, a gerao espontnea tem o valor de um postulado lgico da histria natural cientfica que prescinda totalmente da criao como ato extraordinrio ou extranatural. Ele buscou reafirmar a tese de uma linha de continuidade entre o inorgnico e o orgnico estudando a constituio e as propriedades dos seres vivos de maior simplicidade, buscando encontrar neles traos comuns e vias de ligao com a matria inorgnica. Nessa direo, a extrema simplicidade das moneras foi concebida como um indicador desse caminho de transio. As caractersticas comuns verificadas levaram-no a afirmar que as moneras nasceram diretamente da matria inorgnica por autogonia e que, portanto, elas so o ponto de partida da origem da vida (Haeckel, 1880 [1868], II, p. 41). H uma variao na noo de monera de Haeckel que podemos caracterizar at certo ponto como uma ambivalncia de sentidos do termo, mas que marca, de fato, uma distino conceitual relevante. Tal variao verificada no tratamento alternado que Haeckel dispensa noo de monera, referindo-a tanto como indivduo orgnico original quanto como matria orgnica original. A monera ora tratada por Haeckel como o plastdeo original (o ctodo) ora identificada como a simples massa protoplasmtica primordial, no individualizada. Nos dois casos, a noo de monera se aplica a seres vivos fundamentais, mas, no primeiro caso, Haeckel identifica as moneras como as unidades orgnicas equivalentes aos ctodos (clulas sem ncleo) e, portanto, sem diferenciao estrutural interna, cujo corpo formado simplesmente por protoplasma. J no segundo caso, ele concentra-se na prpria matria vital bsica, o protoplasma, independente de qualquer individuao, ou seja, num estgio to inicial do fenmeno vital que o ser vivo resume-se a a uma simples massa contnua e homognea, isto , sem diferenciao estrutural de qualquer ordem. Nesse estgio primordial e pr-individual, a massa protoplasmtica no integra qualquer indivduo; a monera simplesmente ser vivo. Podemos acompanhar os contornos dessa relevante distino na discusso desenvolvida por Haeckel sobre o Bathibius, a monera fundamental descrita por Thomas Huxley (1825-1895). Nas moneras at ento estudadas, a substncia homognea e amorfa de protoplasma que forma os corpos em geral apresenta-se em modo individualizado, de maneira que as prprias pores singulares alcanam por crescimento certa dimenso e ento, quando excedem tal dimenso, decompem-se em duas ou mais partes. No Bathibius, ao contrrio, no se observa este incio de individualizao; seu corpo protoplasmtico mole e amorfo, que cobre em massas imensas as profundezas de mares, no apresenta nenhuma individualizao; as pores singulares no parecem atingir nenhum tamanho determinado e parecem multiplicar-se segundo as circunstncias; desagregam-se em partes quaisquer de dimenses desiguais quando o crescimento atingiu um limite em uma ou outra condio de adaptao. (Haeckel, 1876, p. 27) Assim, o ponto de partida de onde surge o indivduo orgnico, ou o primeiro ser orgnico individuado, constitui-se de um determinado estgio da prpria monera. A monera pode apresentar-se, segundo Haeckel, em duas etapas evolutivas, uma primordial como simples massa protoplasmtica pr-individual, etapa que deve preceder lgica e cronologicamente primeira individuao, e uma etapa posterior, evolutivamente derivada como plastdeos (os ctodos, ou seja, clulas no nucleadas), considerados os indivduos orgnicos em seu nvel mais elementar. Em seu trabalho Sobre Moneras e Outros Protistas, de 1870, depois reimpresso no primeiro volume dos seus Estudos Biolgicos (Haeckel, 1877), Haeckel apontou tambm tal distino, destacando que as moneras consistiam de protoplasma livre e, alm de afirmar que as enormes massas amorfas de Bathibius no apresentavam ainda individualizao, indicou que a noo de gelatina ou muco primordial (Urschleim) de Lorenz Oken (1795-1851) e dos Naturphilosophen como a matria viva primordial universal encontrava agora, com o resultado das investigaes de Huxley, a sua confirmao emprica4. Podemos verificar ainda que Haeckel claro quanto a esse ponto ao propor uma distino evolutiva para o que ele chamou de grupo das substncias plasmticas. Isto , segundo ele, h primeiro o arquiplasma, a substncia viva mais antiga e original, e depois o monoplasma, a substncia dos ctodos. Cremos que evidente que, no segundo caso, o uso do termo mono na expresso monoplasma procura indicar o advento da individualidade5. Assim, para Haeckel, a estruturao morfogentica dos organismos, bem como a prpria individuao biolgica concebida como fruto de uma atividade funcional que lhes anterior e mais elementar. A individuao orgnica concebida por ele como parte do processo de estruturao orgnica. O indivduo orgnico no prvio
4 A busca pela comprovao emprica do Bathibius ligou-se de modo direto s controvrsias e disputas sobre a existncia das moneras e da gerao espontnea (Radl, 1913, II, p. 213-5; Bizzo, 2001, p. 59-70). As negativas obtidas quanto existncia do Bathibius no abalaram, contudo, as convices de Haeckel quanto existncia das moneras, quanto ao seu papel evolutivo e autogonia (Haeckel, 1904, p. 339-45). 5 Dentro da nossa interpretao, o arquiplasma corresponderia, portanto, monera primordial no individualizada representada pelo Bathibius e o monoplasma aos ctodos.
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Artigo
Introduo
um clich entre bilogos dizer que sistemas biolgicos so intrinsecamente hierrquicos e complexos. Apesar de tais afirmaes serem muito repetidas, em variados contextos, raramente as expresses que nelas figuram so tomadas como objeto de uma anlise mais profunda. Ento cabe perguntar: o que significa complexidade nas cincias em geral, e na biologia, em particular? O que significa dizer que um sistema hierrquico? Este trabalho objetiva oferecer uma possvel resposta a estas questes. Para isso, o caminho do argumento ser o seguinte: na prxima seo, apresentaremos brevemente algumas noes gerais acerca da teoria das hierarquias, mais especificamente, por meio do modo como ela interpreta o desenvolvimento de uma pesquisa cientfica. Em seguida, exploraremos as bases filosficas desta teoria, apontando principalmente para sua natureza anti-realista. Por ora, a fim de guiar o leitor, daremos breves definies de alguns termos aqui utilizados, mesmo sendo discutidos em mais detalhes nas sees seguintes. Para
entender o que significa o anti-realismo, vale a pena esclarecer o que significa, em termos muito simples e breves, o realismo cientfico. O realismo cientfico a posio segundo a qual (i) a cincia objetiva construir um relato verdadeiro do mundo e (ii) as entidades inobservveis (aquelas que no podemos observar diretamente com nossos sentidos, como DNA, eltron etc.) so reais. Em contraponto s duas teses acima, a posio anti-realista assume (i) que, como uma atividade de construo de modelos, e no de descoberta do mundo, a cincia deve oferecer no modelos verdadeiros, mas sim modelos empiricamente adequados (isto , que capturem de modo apropriado aspectos da realidade observvel, esta a que temos acesso direto com nossos sentidos, sem intermediao de aparelhos como microscpios, por exemplo) e (ii) que as entidades inobservveis no necessariamente existem, ainda que haja termos na linguagem cientfica que se refiram a elas. Neste artigo, argumentamos que a teoria das hierarquias tem uma natureza anti-realista, que pode ser apoiada no empirismo construtivo de Bas van Fraassen,
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nalmente no ensino de biologia: celular, histolgico, orgnico etc.) Porm, como Ahl e Allen apontam, a teoria das hierarquias no est focada prioritariamente sobre nveis de organizao. Em vez disso, ela uma teoria do papel do observador e do processo de observao no discurso cientfico. uma teoria sobre a natureza de questes complexas (Ahl e Allen, 1996, p. 27). Analisemos aqui, brevemente, esta citao de Ahl e Allen, a fim de entender melhor em que consiste a teoria das hierarquias. Um termo chave nesta citao complexo. Ele se refere s questes que ns, sujeitos construtores de conhecimento, colocamos sobre o mundo nossa volta. Assim, se a complexidade algo que se atribui s questes, e no aos objetos do mundo diretamente, ento podemos pensar que h vrios graus possveis de complexidade que podem estar relacionados a um mesmo objeto, os quais dependero, claro, dos interesses, dos valores e do conhecimento prvio do observador. Assim, em ltima instncia, a complexidade do objeto depender do tipo de questo que se coloca sobre ele. Tomemos um exemplo de Ahl & Allen (1996) para ilustrar este ponto. Uma cadeira pode ser observada de um ponto de vista simples ou complexo. Uma questo simples sobre uma cadeira seria: qual o limite de carga que uma dada cadeira pode suportar sem se quebrar? Uma questo complexa seria: onde e de que maneira, em detalhes, a cadeira se quebrar? O objeto cadeira, em si mesmo, no muda a partir das questes que colocamos sobre ele. Contudo, ele pode ser visto como simples ou complexo, a depender das questes que colocamos. O tratamento da complexidade como uma propriedade das questes cientficas (e no como uma propriedade dos sistemas estudados pelas cincias naturais) nos parece uma tese importante, por estar associada ao anti-realismo da teoria das hierarquias, um argumento que desenvolveremos mais abaixo. Apesar de nossa concordncia com esta concepo sobre a complexidade, discordamos de outro ponto defendido por Ahl e Allen, embora menor. Pensamos que, ao se referir a um observador individual, estes autores assumem uma postura excessivamente subjetivista. Parece-nos equivocado falar num sujeito epistmico nico o que pode conduzir idia ingnua, mas frequente no ensino de cincias e na prpria imagem social da cincia, de que a cincia feita por poucos gnios isolados, ou ao menos, de que ela feita individual, e no coletivamente (ver Gil-Prez et al., 2001). Ao invs disso, nos parece mais adequado conceber o observador como uma comunidade, um grupo integrado de indivduos que compartilha certos valores cognitivos, epistmicos, procedimentais, maneira como pensava, por exemplo, o filsofo Thomas Kuhn (1962), ao tratar do processo de construo de um paradigma. Isto conduz, necessariamente, a uma ligeira reformulao do argumento colocado por Ahl e Allen. Tomemos o exemplo do filsofo russo Lev Vigotski (1984). Para ele, as funes mentais superiores e, por extenso, o conhecimento individual sobre certo objeto adquirido a partir de uma internalizao de algo que num primeiro momento compartilhado socialmente. Ou seja, no faz
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sentido falar na interao de um sujeito nico com determinados objetos, como se isto fosse suficiente para a construo do conhecimento. Faz mais sentido falar numa comunidade epistmica, uma comunidade de observadores capazes de construir conhecimento, sempre em interao com o mundo natural.
Figura 1. O pato-coelho. Ver perceber algo a partir de uma perspectiva cognitiva e socialmente orientada. Fonte: Jastrow (1899)
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Imagine uma rede de pesca, com uma malha de tamanho x (Fig. 2). A malha captura peixes de certo tamanho, digamos, z, mas no captura os peixes de tamanho muito menor que z, porque estes passam por entre a malha, escapando, ou peixes de tamanho muito maior que z, porque estes so grandes o bastante para que no fiquem retidos na rede. Os peixes de tamanho z so, portanto, idealmente, a imagem, enquanto os outros, muito pequenos ou muito grandes, so parte do fundo no significativo, dada a rede em questo. evidente que imagem e fundo so conceitos relativos aos estados do sistema cognitivo individual e do desenvolvimento do conhecimento cientfico numa dada poca. Por exemplo, se aceitarmos a analogia da rede como um instrumento da cognio, ento uma rede com malha mais estreita tomaria como imagem os peixes de tamanho muito menor que z, enquanto todo o resto seria
Figura 2. Uma rede de pesca, com sua malha caracterstica, como uma metfora do sistema cognitivo coletando informaes. A imagem o que a rede captura, enquanto o fundo todo o resto (Imagem retirada de Ahl e Allen, 1996, p. 56).
tratado como fundo, uma situao diferente da anterior. Estas consideraes sobre imagem e fundo, como parte da teoria das hierarquias, nos permitem comentar sobre um erro comum, que derivado de assumir que os termos usados na linguagem cientfica se referem sempre a entidades reais. Trata-se dos debates sobre a realidade de uma dada entidade intangvel. Na ecologia, por exemplo, por vezes os eclogos discutem se as comunidades ecolgicas so reais ou no. Contudo, este questionamento no faz sentido, j que entidades no so o produto apenas do mundo em si mesmo, mas so construdas por uma comunidade epistmica (os eclogos) em interaes com o mundo dos fenmenos. Cabe apontar ainda que tal viso, fortemente realista, quando usada no ensino de cincias, tende a reificar2 entidades abstratas. Sintomaticamente, mesmo no sendo assumida sua correspondncia a algo no mundo, uma entidade, como construto de uma comunidade cientfica, pode cumprir um papel til na pesquisa. Por exemplo, quando o con2 Em termos simples, reificar algo significa transformar este algo em substncia. Em outros termos, o mesmo que atribuir uma natureza material a certas entidades ou noes que no so materiais, mas sim abstratas. Para o filsofo francs Gaston Bachelard (1996), a reificao, denominada por ele substancialismo, foi um obstculo epistemolgico importante para o avano do conhecimento cientfico na idade moderna.
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ceito de gene foi introduzido por Johannsen, em 1909, ele prprio e a maioria dos geneticistas o concebiam como um termo til sem correspondente material claramente estabelecido, a ser usado como uma unidade de clculo (Johannsen, 1909. Ver Falk, 1986, Wanscher, 1975). Isso no tornou, certamente, o conceito de gene menos til, como atesta o rpido progresso da gentica clssica nos anos que se seguiram sua proposio. Em suma, ao considerar as entidades e os processos como o produto das decises de uma comunidade cientfica, em interao com o mundo natural, bloqueada desde o incio uma possvel linha no produtiva de discusso, focada em saber se a entidade ou o processo real ou no. Conforme argumentaremos mais frente, este argumento pode ser construdo dentro da teoria das hierarquias, desde que estabeleamos devidamente seus fundamentos anti-realistas, o que comearemos a fazer na prxima seo. Uma vez que as entidades e os processos de interesse estejam definidos, o prximo desafio se relaciona ao modo de operao ou s atividades que eles exibem (que daqui em diante chamaremos simplesmente de comportamentos). O comportamento capturado a partir da mensurao das mudanas nos estados da entidade ao longo do tempo. Determinar quais entidades e comportamentos so observados depende, assim, da escala dos protocolos de medida escolhidos. Uma vez que estas decises sejam feitas, o comportamento do sistema comea a fazer sentido. Uma vez que uma demarcao de entidades e/ou processos e um regime de mensurao estejam fixados, o fenmeno observado, em vez dos prprios observadores, responsvel pelas mudanas de estado. O protocolo de medidas deve capturar a frequncia (isto , a taxa de ocorrncia) dos comportamentos. Normalmente, comportamentos de baixa frequncia esto em nveis de organizao mais elevados, enquanto comportamentos de alta frequncia esto em nveis menos elevados. De certa forma, quanto a este ponto, a teoria das hierarquias formaliza uma idia intuitiva: de que coisas pequenas so mais rpidas e duram menos, enquanto coisas maiores so mais lentas e duram mais. A formalizao da intuio ocorre pela compreenso de que nveis hierrquicos num modelo podem ser ordenados de acordo com as frequncias de comportamento das entidades que os constituem. Neste sentido, totalidades tm frequncias de comportamento maiores e por isso que incluem as partes, as quais exibem frequncias de comportamento menores. Pensemos, por exemplo, num filhote de elefante e em suas clulas epiteliais. Num perodo de um ano, supondo que os comportamentos de uma clula reunidos num ciclo celular completo se estendam por 1 dia, teremos cerca de 365 ciclos celulares. Por sua vez, o elefante, que a totalidade, neste mesmo perodo de tempo de um ano, teve relativamente muito menos alteraes em seus comportamentos (por exemplo, sendo um filhote e no tendo atingido a idade reprodutiva, ele no se reproduziu), se comparado s suas clulas. Isso ocorre por que os comportamentos tm ritmos distintos, a depender do nvel de organizao considerado. A teoria das hierarquias coloca grande nfase sobre este ponto, ao
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promissos acrescentamos no que diz respeito a outros juzos, por exemplo, juzos pragmticos relativos s vias mais poderosas para o desenvolvimento de uma teoria. Assim como falamos de dois tipos de juzos que os cientistas podem ter: epistmicos e pragmticos, podemos falar tambm em dois tipos de virtudes: epistmicas e pragmticas. As virtudes so qualidades das teorias. As virtudes epistmicas, em particular, dizem respeito quelas qualidades presentes nas teorias que so razes pelas quais os cientistas as aceitam. Exemplos so a adequao emprica (que explicaremos mais frente) ou a crena de que os termos que se referem a entidades ou processos inobservveis (como DNA, eltron etc.) se referem a entidades ou processos reais. Por sua vez, para van Fraassen, as virtudes pragmticas no esto presentes no domnio da prpria construo das teorias, nem da sua aceitao, mas sim no domnio da aplicao da teoria ao mundo. Normalmente, elas ganham salincia nas atividades de explicao e previso da cincia. Estas consistem na aplicao de modelos a casos particulares, os quais, por isso mesmo, s podem ser compreendidos em contextos especficos. Para van Fraassen, os realistas vo longe demais ao usar, como razo para aceitar as teorias cientficas, a tese de que as entidades e os processos inobservveis postulados na linguagem cientfica so reais. Tais supostas entidades ou processos, para ele, no necessariamente existem, ou, ao menos, a questo da sua existncia ou no destituda de importncia no que cabe aos juzos epistmicos subjacentes aceitao de uma teoria. Isso implica que sua posio mais parcimoniosa, mais econmica do que a posio realista. Uma analogia com a crena em Deus pode ajudar neste ponto. A posio de van Fraassen similar de um agnstico, que no afirma nem nega a existncia de Deus, como fazem respectivamente os testas ou ateus, mas, em vez disso, suspende seu juzo sobre a existncia de tal entidade. Da mesma forma, para van Fraassen, irrelevante qualquer juzo sobre inobservveis no que se refere aceitao de teorias, devendo-se ser agnstico quanto aos inobservveis ao julgar tal aceitao. Todos os juzos que importam para a aceitao das teorias devem ser voltados para as entidades observveis apenas. Por sua vez, a qualificao construtivo, usada para designar a posio deste filsofo, se deve ao fato de que, para ele, a cincia uma atividade de construo de modelos, e no uma atividade de descoberta. Esta idia, similar de Thomas Kuhn (1962), significa que os modelos no so o resultado de processos de descoberta sobre o mundo, nem almejam a verdade. Do ponto de vista de van Fraassen, os modelos so construes humanas que visam interpretar, explicar, prever fenmenos, devendo apenas ser empiricamente adequados, uma exigncia menor do que a dos realistas. Assim, diz-se que uma teoria empiricamente adequada quando ela possui ao menos um modelo com sub-estruturas empricas isomorfas (i.e., em correspondncia direta) com o conjunto de todas as aparncias (fenmenos observveis). Esse isomorfismo que ao menos um dos modelos deve possibilitar o que permite, segundo van Fraassen, que a teoria d conta dos fenmenos (por
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definio, aquelas entidades ou processos observveis). Em outras palavras, necessrio que o modelo represente adequadamente estes fenmenos, constituindo uma imagem cientfica do mundo (da o ttulo do livro de van Fraassen, A Imagem Cientfica). Isso significa que todos os juzos que importam para a aceitao das teorias devem ser voltados para as entidades observveis apenas. De outro lado, juzos sobre entidades inobservveis no so necessrios, do ponto de vista de van Fraassen, para determinar a aceitao ou no de uma teoria cientfica, por certo grupo de cientistas. Vale lembrar que tais juzos podem ter outros papis, pragmticos, no trabalho cientfico, como ilustramos acima, com os juzos sobre as vias mais poderosas para o desenvolvimento de uma teoria. Pode ter sido mais poderoso, por exemplo, desenvolver a gentica em suas primeiras dcadas sem assumir uma hiptese sobre a existncia dos genes como entidades materiais. Contudo, em perodo posterior da histria da gentica, foi mais poderoso assumir a existncia material do gene, o que pavimentou, por exemplo, o caminho para a construo do modelo da dupla hlice (El-Hani, 2007). Estes no so, no entanto, juzos epistmicos, que so aqueles pertinentes, para van Fraassen, aceitao de uma teoria. Trata-se de juzos de outra ordem, conforme distino que fizemos acima. A posio de van Fraassen no cenrio filosfico atual pode ser melhor compreendida se adotarmos como referncia uma anlise empreendida por Ian Hacking (1983), para o qual h dois debates separados sobre o realismo cientfico, que frequentemente aparecem misturados nas discusses filosficas. O primeiro um debate sobre o papel que a noo de verdade tem na avaliao das teorias cientficas, ou seja, na determinao de juzos sobre sua aceitao (denominados acima juzos epistmicos). O segundo debate est relacionado ao estatuto ontolgico (isto , existencial) das entidades inobservveis postuladas na linguagem cientfica, como, por exemplo, eltron, gene ou DNA. Van Fraassen se qualifica como um anti-realista nos dois campos, ou seja, um anti-realista de entidades (os inobservveis no necessariamente existem, devendo-se ser agnstico a seu respeito) e de teorias (as teorias cientficas no visam verdade, mas apenas adequao emprica).
Consideraes finais
guisa de concluso, podemos dizer que a construo de um fundamento anti-realista para a teoria das hierarquias somente ser realizada satisfatoriamente como parte de um programa de pesquisa filosfico e, portanto, demanda muito amadurecimento. Estamos, portanto, dando apenas um passo neste sentido no presente artigo. De nosso ponto de vista, o trabalho filosfico no que concerne teoria das hierarquias deve ter um duplo objetivo, em particular no que tange biologia. De um lado, necessrio analisar e explicitar os fundamentos epistemolgicos da teoria das hierarquias (como seu vis anti3 No se deve, contudo, perder de vista que Hacking um realista de entidades, em contraste com van Fraassen. Ver Hacking (1983).
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Agradecimentos
Os autores agradecem FAPESB, CAPES e ao CNPq por financiamentos que proporcionaram a realizao deste estudo, e a Dlia Conrado e a Leopoldo Marchelli, pelas sugestes para melhoria do texto.
Referncias
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Artigo
Em um artigo publicado em Scientiae Studia, peridico das reas de histria e filosofia das cincias, Marcelo Alves Ferreira (2003) fez um comentrio interessante acerca do modo pelo qual as pessoas em geral, incluindo os bilogos, explicam os fenmenos do mundo vivo. No entendimento desse autor, isso se d da seguinte maneira: Diante do modo de reproduo de uma espcie, das propores de uma estrutura ou do padro de uma migrao, ningum honestamente se pergunta: Como as mutaes nos genes dessa caracterstica vieram a se estabelecer por seleo? A pergunta efetiva seria Em que esta caracterstica serve sobrevivncia, qual sua funo? (Ferreira, 2003, p. 190). Essas palavras expem de modo claro um ponto muito importante que tem sido seriamente discutido por bilogos e filsofos da biologia, a saber: a elaborao de explicaes teleolgicas para compreenso dos fenmenos da vida. Esse modo de explicao e o termo que o nomeia so anteriores ao prprio nascimento do termo biologia, na dcada de 1760, por Michael Hanov (cf. McLaughlin, 2002) e das instituies que caracterizam a biologia enquanto cincia, no sculo XIX. O termo teleologia, em latim, foi introduzido pelo filsofo alemo Christian Wolff
em 1728, para se referir parte da filosofia natural que explicaria os fins das coisas (fines rerum explicat), em contraste com a filosofia natural que estudaria as causas das coisas (Owens, 1968; Lennox, 1992). O uso das explicaes teleolgicas tem sido investigado nos campos da psicologia cognitiva e psicologia da educao, nos quais identificamos a defesa da tese de que a teleologia um modo inato (Atran, 1995), bsico (Kelemen, 1999) ou autnomo (Keil, 1992, 1994, 1995) do pensamento biolgico de crianas e adultos. A definio do que seja uma explicao teleolgica varia em diferentes estudos. Contudo, no domnio das cincias biolgicas, entendemos que uma explicao teleolgica caracterizada pela referncia s noes de propsito, funo, objetivo, e, de modo geral, pode ser reconhecida por expresses como papel de, contribui para, alm de outras semanticamente equivalentes. Trata-se, assim, de um modo de explicao que se caracteriza pelo conceito de finalidade, possivelmente um dos mais fortes e mais bem estabelecidos no pensamento humano (Warren, 1916). Dessa perspectiva, a referncia primria para o estudo desse conceito nas cincias biolgicas Aristteles, embora ele remonte s ideias de Scrates, conforme apre-
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causas mecnicas (ou seja, causa eficiente aristotlica) e o fizesse atravs da meno a uma lei geral. A despeito dessa mudana do quadro terico e epistemolgico, a linguagem usada na compreenso dos processos e sistemas vivos sempre recorreu a noes teleolgicas, como funo e objetivo. O ponto fulcral que precisa ser destacado, porm, que estes usos pr-darwinistas de termos teleolgicos estavam fortemente comprometidos com pressupostos de natureza teolgica ou vitalista, que, como dissemos, foram inseridos na tradio aristotlica e terminaram por ser postos de lado na metafsica da cincia moderna. nesse contexto, que alcana o sculo XIX, que enfatizamos a contribuio substancial do trabalho de Darwin para os fundamentos das cincias biolgicas, na medida em que construiu as bases para apelar a expresses teleolgicas desde um ponto de vista que no se compromete com pressupostos teolgicos ou vitalistas. No entanto, mesmo a contribuio de Darwin no foi suficiente para desfazer um dilema dos bilogos com relao teleologia. De um lado, ainda se teme a associao de um discurso teleolgico na biologia com uma metafsica inaceitvel, enquanto, de outro, percebe-se que muito se perderia em termos explicativos e heursticos se a teleologia fosse posta de lado nessa cincia. No surpreendente, portanto, que muitos cientistas (Weisz, 1971; Gregory, 2009), educadores (Schwab, 1963; Hughes, 1973; Jungwirth, 1975; Gallant, 1981), filsofos e historiadores da cincia (Cummins, 2002; Ghiselin, 2005) considerem que a biologia contempornea no deve ter qualquer compromisso com a teleologia. Contudo, ainda que posies contrrias ocupem espao na literatura principal sobre o assunto, queremos aqui enfatizar nosso entendimento de que a questo central das discusses recentes no que concerne s explicaes teleolgicas no se a biologia deve ou no fazer uso delas, mas quais so seus usos apropriados e inapropriados. Neste artigo, discutiremos sob esse ponto de vista, e de modo sucinto, dois projetos explanatrios que buscam dar conta do modo teleolgico de explicao nas cincias biolgicas: as abordagens (1) etiolgica e (2) sistmica.
Abordagem Etiolgica
Na filosofia da biologia, a importncia dessa abordagem reconhecida por colocar a teleologia e, em particular, o conceito de funo, no centro dos debates acerca da explicao cientfica. No perodo anterior a esse projeto terico, nas dcadas de 1950 e 1960, marcado pela hegemonia do empirismo lgico, a viso cannica (received view) quanto a esse assunto sustentava que uma explicao deveria ser considerada cientfica se fosse compatvel com um modo de explicao baseado em leis gerais, o qual foi formalizado no chamado modelo dedutivo-nomolgico (D-N) de explicao (Salmon, 1990). Em linhas gerais, a partir da aceitao do modelo D-N, uma explicao cientfica precisaria fazer referncia a, ao menos, uma lei geral e conter afirmaes empricas sobre fatos particulares, i.e., condies prvias relativas ao fenmeno a ser explicado. Nessa anlise formal, ento, a sentena que conta como
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uma explicao do fenmeno em pauta segue, como consequncia lgica, das afirmaes anteriores, quais sejam, as leis e as afirmaes particulares (para detalhes, ver Hempel e Oppenheim, 1948). Dessa perspectiva, as explicaes em termos teleolgicos foram questionadas quanto sua legitimidade cientfica, porque no satisfazem a todos os requisitos de um modelo de explicao baseado em leis. Por exemplo, na biologia, de modo importante, as explicaes possuem generalidade, mas no so universais (e, de fato, os bilogos no pretendem que o sejam). A crtica mais fundamental, contudo, foi a de que, nas explicaes teleolgicas, a sentena que conta como uma explicao no segue das sentenas que fazem referncia a uma ou mais leis gerais, mas, ao contrrio, estas ltimas sentenas seguem da sentena explicativa. Contudo, na medida em que o modelo D-N perdeu espao na comunidade de filsofos da cincia, aps ter recebido muitas crticas, principalmente atravs de fortes exemplos contrrios (para uma reviso crtica, ver Salmon, 1990, 1992), o debate sobre as explicaes teleolgicas voltou cena. Ao mesmo tempo em que as limitaes do modelo D-N foram sendo expostas, uma virada importante no debate acerca dos enunciados teleolgicos na biologia e em outros campos do conhecimento teve lugar a partir do artigo Functions, do filsofo Larry Wright (1973). Em particular, Wright argumentou que as atribuies funcionais so um tipo de explicao legtima, no sentido de que enunciar a funo de um trao biolgico i.e., uma estrutura, um comportamento, um processo fisiolgico , com referncia sua histria seletiva o mesmo que explicar por que o trao existe. E, por esta via, a explicao forte na medida em que distingue efeitos funcionais de efeitos meramente acidentais, i.e., os efeitos perifricos, que, porque no foram selecionados para, no explicam por que o organismo considerado possui aquele trao. Desse modo, apenas os efeitos funcionais podem explicar a presena de certos traos. Esta precisamente a tese seminal da abordagem etiolgica, conforme originalmente proposta por Wright, e, depois, modificada por diferentes autores em teorias relacionadas, como a teoria da funo prpria de Millikan (1984, 1989), Neander (1991a, 1991b, 1995) e Griffths (1992, 1993), e a teoria da histria moderna de Godfrey-Smith (1993, 1994). Em uma definio direta, no contexto atual dessa abordagem, uma funo biolgica o efeito positivamente selecionado no passado por causa de sua contribuio para aumentar as chances de sobrevivncia e reproduo de seu possuidor em um ambiente especfico. Trata-se, assim, de uma definio que sustenta a tese de que a causa para a existncia de um trao funcional o mecanismo de seleo natural. Nesse sentido, os bilogos no atribuem funo a traos no-funcionais, mas sim queles que so teis e construtivos, como comenta Godfrey-Smith (1994, p. 347) acerca do problema da origem dos traos. Embora Wright no tenha dirigido a abordagem etiolgica s questes da biologia em particular, inegvel seu vnculo com esta cincia atravs da nfase conferida seleo natural para a demarcao de uma funo (Wri-
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o embarao entre os conceitos de funo e adaptao biolgica. Na medida em que esse um mecanismo comum aos dois conceitos, no est claro quo distintos eles so (Sober, 1993). Este um problema terico que pretendemos esclarecer com a tese de doutorado de um dos autores (R. S. do Carmo) deste artigo.
Abordagem Sistmica
Na literatura filosfica, o artigo Functional Analysis, de Robert Cummins (1975), introduz uma teoria que primariamente diz respeito atribuio de funes a partes de sistemas complexos. Esse projeto explanatrio busca explicar como sistemas complexos funcionam pelo estudo das disposies ou capacidades das partes ou itens de tais sistemas, prescindindo de consideraes histricas. Em razo disso, h autores que o percebem como contrrio (Davies, 2001; Cummins, 1975, 1983, 2002), ou mesmo rival (ustar, 2007) ao projeto etiolgico. De nossa parte, tendemos a evitar essa oposio, porque h argumentos para pensarmos que ambas concorrem para definir usos apropriados do conceito de funo em dois domnios no-concorrentes da biologia, quais sejam, a biologia funcional e a biologia evolutiva (Mayr, 2005; Jacob, 1983 [1970]). Contudo, a validade da abordagem etiolgica no domnio da biologia evolutiva relativamente limitada, por seus compromissos selecionistas, bem como porque o uso explicativo do conceito de funo na biologia evolutiva se restringe aos casos em que estamos lidando com novidades evolutivas (Nunes-Neto e El-Hani, 2009; Nunes-Neto e El-Hani, 2011). Nos demais casos, no a funo que tem poder explicativo, em si mesma, mas diferenas de performance funcional de caractersticas ou comportamentos distintos dos organismos, que cumprem a mesma funo. Dito isso, vejamos, de modo sucinto, a abordagem sistmica do conceito de funo nas cincias biolgicas. Em primeiro lugar, devemos notar o argumento central proposto por Cummins (1975, 1983): as explicaes funcionais podem ser formuladas independentemente de consideraes evolutivas. Nas prprias palavras dele, uma capacidade complexa de um organismo [...] pode ser explicada mediante apelo a uma anlise funcional, independentemente de como essa capacidade se relaciona capacidade do organismo de manter a espcie (Cummins, 1975, p. 756). A centralidade deste argumento tal que Cummins (2002, p. 167) o reitera nos seguintes termos: a anlise funcional anterior a, e independente de, avaliaes de adaptatividade, i.e., se algo tem ou no uma funo, e qual aquela funo acontece de ser, inteiramente independente de se ela foi selecionada e aumentou de frequncia (Cummins, 2002, p. 166). Em segundo lugar, acrescente-se que na base deste argumento est a ideia de que a abordagem etiolgica se revela limitada, por sua insistncia em considerar a funo como algo que explica a presena de um item num dado organismo. De fato, Cummins (1975, p. 747) se declara avesso ao modo etiolgico de explicao ao qual ele negativamente atribui o rtulo teleolgico, numa compreenso limitada,
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em nosso entendimento, do significado do termo (Nunes-Neto e El-Hani, 2009, p. 121; Carmo, 2010) , entendendo-o como um ato de desespero nascido do pensamento de que no h outro uso explicativo para a caracterizao funcional na cincia. teleolgica, para Cummins (2002, p. 162), a tese de que algo existe por causa do efeito que conta como sua funo, i.e., a abordagem etiolgica. Em contraste, Cummins defende o carter no-teleolgico da abordagem sistmica das explicaes funcionais. Consoante a isso a sua proposta de que a teleologia deve ser eliminada da biologia ou de sua filosofia. Ns discordamos dessa ideia de que a perspectiva de Cummins seja no-teleolgica, como brevemente explicaremos mais adiante. Um ponto importante que Cummins aborda o assunto de uma perspectiva diferente das abordagens etiolgicas, a saber: em termos de disposies e capacidades complexas, enquadrando sua teoria numa perspectiva sistmica do mundo. Por exemplo, para Cummins (1975), se um objeto x funciona como uma bomba em um sistema s, ou se a funo de x em s bombear, ento, dizemos, ele deve ter a disposio de bombear em s. Desse modo, na viso de Cummins, atribuir uma funo a algo , ao menos em parte, atribuir uma disposio a esse algo. Exemplos de disposies so: dissolver, dilatar, elevar, bombear etc., as quais, para se realizarem dependem de condies antecedentes que as precipitem. Essas disposies, desde a perspectiva sistmica de Cummins, podem ser explicadas atravs de duas estratgias diferentes, mas complementares. No entraremos em detalhes acerca desse assunto aqui, devido sua complexidade, porm, em poucas palavras, podemos dizer o seguinte: as disposies do mundo fsico e qumico so geralmente explicadas a partir de uma explicao que recorre a leis naturais (constituindo a estratgia da instanciao ou subsuno), enquanto que as disposies do mundo biolgico, em geral, podem ser explicadas a partir da estratgia de anlise funcional2. A estratgia da subsuno consiste em submeter um caso particular, no qual um objeto manifesta certa disposio, a uma regularidade sobre aquela mesma disposio. Por exemplo, podemos explicar desta forma a disposio de uma barra de ferro de dilatar-se mediante o aumento de temperatura. Nesse caso, a explicao se d atravs da aplicao de uma regularidade da fsica, relativa dilatao (digamos, a lei da dilatao linear dos corpos), associada a informaes sobre o objeto particular em questo, como seu coeficiente de dilatao linear, a variao de temperatura a que o objeto foi submetido, a variao de seu comprimento, etc. Dito de outro modo, a regularidade cobre (ou compreende) o caso particular em questo e, em associao com as condies iniciais particulares, explica a manifestao da disposio no objeto. Trata-se, em suma, do modo de explicao formalizado no modelo D-N, discutido acima. Segundo Cummins, na estratgia analtica, que o
2 Para mais detalhes, sugerimos consultar o original (Cummins, 1975) ou trabalhos que explicam e mostram aplicaes da abordagem original de Cummins (Nunes-Neto e El-Hani, 2009; Nunes-Neto e El-Hani, 2011).
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no contexto da abordagem histrica de Wright. A funo das hemcias , de uma perspectiva etiolgica, transportar oxignio, sendo um mero acidente, uma casualidade, carrear outro gs. Em termos gerais, levar em considerao os avanos epistemolgicos do debate sobre as atribuies e explicaes funcionais em biologia tem contribuies importantes a dar para um tratamento consistente dos usos de funo no conhecimento escolar de biologia seja no ensino superior, seja no ensino mdio. Dois modos analisados aqui de explicar funcionalmente na biologia (etiolgico e sistmico) oferecem bases epistemolgicas consistentes para os usos de funo no ensino de biologia. Em particular, j temos, como parte do conhecimento escolar de biologia do ensino mdio, todos os requisitos para o emprego da abordagem sistmica.
Consideraes finais
Finalizando este artigo, queremos enfatizar que os educadores em cincia tm recusado as formulaes teleolgicas na biologia porque elas podem dificultar o entendimento pelos estudantes das relaes de causa e efeito no mundo natural e, alm disso, podem representar um modo de atribuir conscincia a seres no-humanos, se tomadas literalmente (Bartov, 1981, p. 79). Em vista dessa preocupao, encontramos diferentes autores na defesa de que a linguagem funcional no goza de legitimidade cientfica, tendo simplesmente valor metafrico (Lewens, 2004) e heurstico (Schaffner, 1993). De outro modo, sabemos tambm das tentativas de traduzir as explicaes em termos teleolgicos em uma linguagem mecnica, por exemplo, sob o pressuposto do seu carter factual, considerado ausente nas formulaes teleolgicas. Ao longo do debate acerca de dois projetos filosficos de explicao funcional, a questo da legitimidade cientfica, em nosso entendimento, est superada. Como dissemos na introduo, alm de refinar os projetos explanatrios, o ponto importante agora definir os usos apropriados e inapropriados de noes teleolgicas (e.g., funo, objetivo) na biologia. Nas salas de aula de biologia no Brasil, trs obras usadas pelos professores para o ensino dessa cincia na escola pblica brasileira fazem amplo uso dos modos etiolgico e sistmico de funo, como notamos em recente investigao (Carmo, 2010). No entanto, apesar do amplo uso mormente do modo sistmico essas explicaes, nos livros didticos analisados, carecem de fundamentos epistemolgicos consistentes para tratar das questes dos diferentes campos da biologia. Esse , pois, o principal obstculo para o ensino das vantagens e desvantagens das explicaes em termos de funo e objetivo na biologia. Por exemplo, em uma das obras analisadas, Frota-Pessoa explica que o sangue um tecido conjuntivo e que a funo das hemcias transportar oxignio, alm de parte do dixido de carbono, em quantidade maior do que faria igual volume de plasma (Frota-Pessoa, 2005, p. 142). Ao atribuir s hemcias a funo de transportar dixido de carbono (CO2), o autor nos indica que no tem na devida conta a distino entre funo e acidente construda
Agradecimentos
R.S.C. agradece CAPES pela concesso de bolsa de Doutorado; N.F.N.N. agradece FAPESB pela concesso de bolsa de Doutorado e por apoios financeiros para pesquisa; C.N.E.H. agradece ao CNPq por bolsa de produtividade em pesquisa nvel 1-C (no 301259/2010-0) e FAPESB e ao CNPq por financiamentos de projetos de pesquisa.
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Artigo
Grupo de Pesquisa em Histria da Biologia e Ensino (GPHBE) Departamento de Gentica e Biologia Evolutiva, Instituto de Biocincias, Universidade de So Paulo 3 Grupo de Pesquisa em Histria, Teoria e Ensino de Cincias (GHTC)
Contato dos autores: 1taysyfernandes@hotmail.com, 2eprestes@ib.usp.com Resumo. Esta pesquisa utiliza anlise de componentes caractersticos de narrativas mticas em trechos histricos de livros didticos. A presena desses componentes indicadora de o que Douglas Allchin denomina pseudo-histria, que deve ser evitada no ensino de cincias. O episdio histrico analisado foi o da observao da cortia realizada por Robert Hooke no sculo XVII em livros didticos de biologia, aprovados no PNLEM/2009. Os resultados encontrados mostram que embora contribua discusso metacientfica, a proposta de Allchin parece insuficiente quando aplicada sobre materiais muito breves, sendo necessrio um estudo aprofundado do episdio histrico em questo. Palavras-chave. Histria da biologia, livros didticos, pseudo-histria, Robert Hooke. Abstract. This research analyzes characteristic features of mythical narratives on historical episodes in textbooks. The presence of these components is indicative of what Douglas Allchin called pseudohistory, which should be avoided in science education. The historical episode examined in biology textbooks approved in PNLEM/2009 was the observation of cork by Robert Hooke, in the 17th century. The results show that although contributes to metascientific discussion, the proposal seems inadequate when applied to very short materials, requiring an in-depth study of the historical episode in question. Keywords. history of biology, textbooks, pseudo-history, Robert Hooke. Recebido 28mar11 Aceito 07jul11 Publicado 15dez12
Introduo A tendncia atual do ensino das cincias associa aprendizagem dos contedos propriamente cientficos, os demais componentes histricos, filosficos, sociais e culturais envolvidos na construo desse tipo de conhecimento. Essa tendncia vem sendo valorizada, ainda que com nfase distinta, em diferentes esferas: nos documentos oficiais de ensino, como os Parmetros Curriculares Nacionais (PCN), PCN+ e Proposta Curricular do Estado de So Paulo; nos trabalhos de pesquisadores das reas de ensino de cincias (Matthews, 1991, 1994; Caldeira e Caluzi, 2005) e de histria da cincia (Martins, 1990; Silva, 2006), bem como nas prticas dos prprios professores da educao bsica. O interesse dos professores de biologia em utilizar a histria de sua disciplina em sala de aula pode ser percebido pelo nmero crescente de relatos de experincia apresentados nos congressos da rea em nosso pas. Isso vem ocorrendo, por exemplo, nos encontros de histria e filosofia da biologia (EHFB) promovidos pela Associao Brasileira de Filosofia e Histria da Biologia (ABFHiB), nos encontros nacionais e regionais de ensino de biologia (Enebio e Erebio) promovidos pela Sociedade Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio) e nos encontros nacionais de pesquisa em educao em cincias (Enpec) pro-
movidos pela Associao Brasileira de Pesquisa e Educao em Cincias (Abrapec). Entretanto, os professores de biologia do ensino mdio encontram muitas dificuldades para utilizar a histria da biologia em sala de aula. Uma das razes dessas dificuldades est na prpria formao dos professores. Ainda tmida a presena de disciplinas de histria e/ou filosofia da biologia nas grades curriculares dos cursos de licenciatura em nosso pas. Outra razo a pouca quantidade de material acessvel isto , em lngua portuguesa , aprofundado, atualizado e livre de equvocos histricos. A fonte de contedo histrico disponvel para os professores acaba sendo, quase exclusivamente, aquela das introdues histricas de alguns captulos dos livros didticos, quando existem. No entanto, esses textos costumam ser bastante breves e, em geral, no so orientados pela nova historiografia da cincia. So pautados pela historiografia praticada na primeira metade do sculo XX, que se caracterizava por privilegiar a descrio de grandes personagens e de eventos ou episdios marcantes, ocorridos em datas determinadas e como fatos independentes dos demais (Martins, 1993). Alm disso, os relatos histricos de livros didticos no raro apresentam concepes histricas consideradas errneas pela historiografia atual (Martins, 1998). As discusses sobre esse problema no so novas,
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nem locais1. Em 1979, Whitaker criticou os livros didticos de ensino de fsica por conterem materiais que, embora parecessem histricos, falhavam em comunicar a histria de verdade. Sendo o objetivo primrio desses livros o de relacionar fatos cientficos, o relato histrico que eventualmente continham servia apenas como um quadro de referncia para dar sentido aos tpicos cientficos e torn-los mais facilmente lembrados nos exames. Whitaker chamou esses relatos de quase-histria e discorreu sobre os impactos negativos na formao dos alunos (Whitaker, 1979, p. 108; pp. 239-242). Mais recentemente, em 2004, Douglas Allchin retomou o acento crtico sobre o que chamou pseudo-histria contida nos livros didticos voltados aos diferentes nveis de ensino, da escola bsica superior. Com o termo pseudo-histria, referiu-se aos casos que transmitem ideias falsas sobre o processo histrico da cincia e a natureza do conhecimento cientfico, mesmo quando baseados em fatos reconhecidos (Allchin, 2004, p. 186). Na pseudo-histria, acontecimentos histricos reais so descritos de modo fragmentrio e com omisso do contexto. Alm de desenvolver a noo de pseudo-histria, Allchin tambm descreveu o que denomina falsa histria contida em livros didticos. Com esse termo, referiu-se aos casos de simples falta de acuidade histrica (datas erradas, por exemplo) ou de equvocos muitas vezes derivados de anedotas populares (o exemplo mais conhecido disso o da ma caindo sobre a cabea de Newton). Evitar os danos causados pela presena de falsa histria no ensino de cincias parece uma tarefa mais fcil. Uma possibilidade a de explicitar aos alunos a origem apcrifa desses relatos e confront-los com informao histrica mais acurada. Porm, evitar os efeitos negativos da pseudo-histria na formao dos alunos bem mais difcil ao professor do ensino mdio. O primeiro desafio que se coloca o da identificao de uma pseudo-histria. Esse tipo de relato muitas vezes pretende mostrar como a cincia funciona, mas, a depender da seleo dos fatos descritos, pode promover imagens enganosas sobre a natureza da cincia. Como um professor da escola bsica pode reconhecer esses problemas em uma narrativa histrica sem ter que se tornar um historiador da cincia profissional? Como uma sada alternativa ao professor, Allchin props a noo de concepes cientficas mticas como uma proposta pela qual os professores poderiam promover uma anlise da narrativa histrica de livros didticos com base em elementos da literatura e da retrica (Allchin, 2003). A proposta parte do pressuposto que pode ser facilmente utilizada por qualquer professor, mesmo os no familiarizados com histria da cincia ou com teoria literria.
1 Diferentemente do que ocorre na pesquisa em biologia propriamente, em que se leva em conta apenas estudos recentes, na pesquisa em histria da cincia desejvel considerar discusses anteriores que permanecem vlidas. Assim, para conhecer alguns dos diferentes argumentos favorveis, e desfavorveis, ao uso da histria da cincia no ensino de diferentes disciplinas cientficas, da escola bsica e superior, ver: Klein (1972); Duschl (1985); Brush (1989); Pumfrey (1991); Martins (1990).
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privilegiados, acima de qualquer suspeita. Em suma, reduz a natureza da cincia mxima: como a cincia descobre a verdade (id.). No sendo objetivo desta pesquisa discutir a concepo de cincia implcita na proposta de Allchin, nos detivemos em sumarizar as caractersticas dos indicadores por ele propostos. Tambm no nos preocupamos em indicar como ele construiu tal ferramenta a partir da anlise de diferentes narrativas histricas voltadas a estudos de caso como os de Gregor Mendel, Bernard Kettlewell, Alexander Fleming, Ignaz Semmelweis e William Harvey. Para isso, recomendamos, naturalmente, a leitura do artigo original de Allchin, de 2003. Assinalados os quatro indicadores gerais que pautaram a anlise inicial dos textos, passaremos descrio da parte emprica da pesquisa realizada.
Mtodo
A primeira etapa da pesquisa foi vistoriar os livros didticos de biologia do ensino mdio aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didtico para o Ensino Mdio (PNLEM/2009)4. A vistoria foi feita sobre oito dentre os nove ttulos aprovados, por estarem disponveis no acervo do Laboratrio de Licenciatura (LabLic) do IB/USP5. Foram determinados, primeiramente, quais os livros que continham relato sobre o estudo de caso selecionado, a observao microscpica da cortia feita por Robert Hooke no sculo XII. Dos oito ttulos consultados, sete continham contedo histrico sobre o tema. Trs desses livros so apresentados na forma de coleo em trs volumes (aqui identificados com as siglas 1LD, 2LD e 3LD) e quatro, na de volume nico (aqui identificados como 4LDU, 5LDU, 6LDU, 7LDU)6. Analisando a extenso e o contedo dos trechos encontrados, notou-se que a primeira variou entre 2 a 11 pargrafos, mais eventuais legendas de ilustraes; o contedo referente biografia de Robert Hooke variou de um a trs pargrafos, sendo esses os que serviram anlise aqui apresentada. Definidos os textos objeto de anlise, a primeira autora deste artigo procurou relaes com os quatro indicadores gerais de Allchin. A autora estava no incio de seu estgio no Grupo de Pesquisa em Histria da Biologia e Ensino do IB/USP, no possuindo, nesse momento, conhe4 A amostra pequena se justifica pelo objetivo primrio da pesquisa ser o de testar a ferramenta de anlise descrita por Allchin, e no o de promover uma anlise dos contedos histricos dos livros didticos em geral. 5 A identificao da edio que foi efetivamente avaliada no PNLEM finalizado em 2007 (publicado em 2008 com o ttulo de PNLEM/2009) baseou-se nas informaes disponveis no Catlogo do PNLEM/2009 (Brasil, 2008), bem como na identificao fornecida pelas editoras na capa dos livros. 6 1LD (Silva Jr e Sasson); 2LD (Amabis e Martho); 3LD (Paulino); 4LDU (Lopes e Rosso); 5LDU (Linhares e Gewandsznajder); 6LDU (Favaretto e Mercadante) e 7LDU (Laurence). O ano de publicao dessas obras imediatamente posterior sua aprovao pelo PNLEM (embora, em geral, refiram-se a ttulos que possuem edies anteriores).
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cimentos sobre histria da biologia em geral ou sobre o caso selecionado, correspondendo, nesse aspecto, ao perfil comum de um professor de biologia. O procedimento adotado foi o de fazer a leitura integral dos trechos encontrados, com o objetivo de localizar palavras ou expresses dos quatro indicadores gerais de Allchin. Dificuldades iniciais levaram ao desenvolvimento de um formato mais telegrfico para cada indicador e que contemplasse apenas alguns de seus aspectos. Essas reconstrues, que chamamos descritores foram: Monumentalidade: personagem-heri (sem defeitos e salvador da humanidade); amplificao do feito cientfico. Idealizao: personagem isolado; feito cientfico isolado. Drama afetivo: conflito dramtico entre pessoas e ideias. Narrativa explicativa e de justificao: relao direta, unvoca e linear entre o uso do mtodo e a produo de conhecimento. Na segunda etapa da pesquisa, a primeira autora empreendeu o estudo da obra Micrographia de Hooke. O livro foi analisado em sua estrutura geral, seguindo-se a leitura atenta da seo em que descrita a observao da cortia. Paralelamente, foram consultadas fontes secundrias (isto , textos de historiadores da cincia). Esses estudos permitiram a redao de uma breve biografia de Robert Hooke e de uma descrio de sua observao microscpica, apresentadas adiante. Na terceira etapa da pesquisa, foi feita uma nova avaliao dos livros didticos com o objetivo de comparar com os resultados obtidos na primeira anlise. Nessa etapa tornou-se possvel identificar, alm de equvocos factuais e distores historiogrficas, omisses que implicam a descontextualizao do episdio.
Resultados e discusso Primeira etapa: anlise dos livros didticos com os descritores de Allchin
A anlise realizada permitiu identificar um exemplo de palavra ou expresso indicadora do descritor monumentalidade: Hooke foi possivelmente o maior gnio das Cincias experimentais de seu sculo. [...] Hooke tambm foi um microscopista de grandes mritos (1LD, p. 88, grifos nossos). O leitor , nessa passagem, envolvido pela grandiosidade conferida pessoa de Robert Hooke, pelos grandes feitos do personagem elevado categoria de heri. Por sua vez, o indicador idealizao pde ser identificado nos seguintes trechos: Em 1665, o ingls Robert Hooke (1635-1703) publicou suas observaes de estruturas visveis ao microscpio de luz [...]. Essas observaes lhe valeram o crdito de descobridor das clulas (4LD, p. 55, nossos grifos); Em 1665, Robert Hooke, um cientista ingls, estava trabalhando com um microscpio rudimentar e observou uma delgada fatia de cortia; ele conseguiu,
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Figura 1. O microscpio composto representado por Hooke na Micrographia. Fonte: Hooke, 1665, prancha 1.
regulares. (Hooke, 1665, p. 112-113) A sequncia do relato mostra que a observao da cortia foi guiada pelo interesse em compreender trs propriedades fsicas dessa substncia: leveza, flutuabilidade e elasticidade. As suas observaes ao microscpio permitiram concluir que a leveza da cortia, assim como a de um favo vazio, uma esponja, uma pedra-pome ou outro semelhante, era devido a uma quantidade muito pequena de corpo slido estendido em dimenses extremamente grandes (Hooke, 1665, p. 113). Ou seja, o corpo slido correspondia ao que hoje chamamos as paredes celulares das clulas da casca da rvore, que por estarem mortas, delimitavam espaos de dimenses extremamente grandes. A flutuabilidade decorria de a substncia da cortia ser toda preenchida de Ar, e que esse Ar perfeitamente fechado em pequenas Caixas ou Clulas distintas umas das outras (Hooke, 1665, p. 113). Quanto elasticidade, Hooke inferiu que ela podia ser explicada por ser essa uma propriedade tanto do ar que preenchia as cavidades, quanto das paredes que as delimitam. Assim ele se expressou: O Microscpio facilmente informa [...] a massa toda [da cortia] consiste de uma associao infinita de pequenas Caixas ou Bales de Ar, que uma substncia de natureza elstica e que sofre uma condensao considervel [...]. Alm disso, parece bastante provvel que aqueles filmes, ou lados dos poros, tenham, eles mesmos, uma qualidade elstica, como ocorre a quase todo outro tipo de substncias Vegetais, de modo a ajudar que retomem sua posio inicial. (Hooke, 1665, pp. 113-114)
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Hooke tambm descreveu outras propriedades da cortia. Reconheceu que se tratava de algo produzido pela prpria rvore, como uma excrescncia da casca, sendo distinta das camadas do interior do tronco do sobreiro, mas que so comuns a outras rvores. Neste aspecto, nota-se que ele comparou a cortia com o que poderia ser visto no tronco de outras rvores, mas no comparou com outros tipos de plantas nem com outras partes dos vegetais em geral. Relendo os originais de Hooke, pode-se ento perceber que, embora seja evidente hoje, por seu desenho (Figura 2), que ele visualizou a parede espessa de clulas mortas de cortia, o que entendeu estar observando ao microscpio foi uma estrutura (formada por espaos + paredes + ar) que explicava as trs propriedades fsicas da cortia (leveza, flutuabilidade, elasticidade). Ele no interpretou a clula vista ao seu microscpio como algum tipo de unidade bsica, estrutural e fisiolgica, dos seres vivos. Outro aspecto que chama a ateno no Mircrographia o uso de termos diferentes para denominar a estrutura que Hooke visualizou na cortia: poros, clulas, caixas, bolhas de ar. O termo clula deriva da comparao aos quartos dos mosteiros da poca, que eram chamados de celas. Hooke no fez uso exclusivo desse termo, embora tenha sido esse o termo que acabou consagrado posteriormente. Alm disso, a estrutura microscpica de diferentes corpos, seres vivos ou objetos inanimados, foi investigada por muitos estudiosos da poca. Para citar apenas alguns, Antoni van Leeuwenhoek (1632-1723), observou a presena de cavidades em seces transversais de sementes e de caules de mudas de carvalho; Nehemiah Grew (1641-1712) e Marcelo Malpighi (1628-1694) observaram bolhas, poros, clulas, bexigas em diversos tecidos vegetais. A principal concluso a partir do exposto acima a de que h um equvoco historiogrfico quando se atribui a Hooke o mrito de ser o descobridor da clula, pois o que ele viu e descreveu no o que hoje entendemos por esse termo7. Embora seja comum mencionar as observaes de Hooke na histria dos estudos sobre a clula, vimos que ele estava interessado em explicar as propriedades da cortia, e em nenhum momento estabeleceu relao entre as suas observaes e uma constituio celular universal das plantas ou dos seres vivos em geral (Prestes, 1997, p.10). Na mesma perspectiva, no se pode dizer que ele deu origem citologia, programa de pesquisa que s se constituiu como tal no sculo XIX. Na historiografia da cincia da primeira metade do sculo XX, costumava-se atribuir o mrito de descobertas ou a elaborao de teorias exclusivamente genialidade deste ou daquele pesquisador. A historiografia renovada, que se pratica hoje, busca, sem desmerecer os talentos individuais, a reciprocidade entre as condies sociais e materiais de uma poca e aqueles que as experenciam e atuam sobre elas (Wilson, 1997, p. 4). Desse modo, os
7 A sntese terica mais prxima de o que entendemos por clula hoje ocorreu com a chamada teoria celular de Matthias Schleiden (1804-1881) e Theodor Schwann (1810-1882), em 1838.
Figura 2. Ilustrao de clulas de cortia por Robert Hooke no livro Micrographia, de 1665. Fonte: http://www.gutenberg.org/ files/15491/15491-h/images/scheme-11.png
Terceira etapa: nova anlise dos livros didticos, com base no estudo histrico
Aps o estudo sobre a contribuio de Hooke, conforme sumarizado acima, os sete livros didticos analisados nesta pesquisa foram reavaliados. Essa nova anlise permitiu identificar aspectos anteriormente no percebidos e que foram agrupados em duas categorias: a) equvocos factuais e distores historiogrficas; b) omisses que ocasionam descontextualizao do episdio. Dentre os exemplos de equvocos e distores, encontramos: A denominao de clula foi criada em 1665 pelo cientista ingls Robert Hooke (1635-1703) para indicar pequenas cavidades no interior da cortia que ele havia observado com o microscpio muito simples. (5LDU, grifo nosso) Em 1665, Robert Hooke, um cientista ingls, estava trabalhando com um microscpio rudimentar e observou uma delgada fatia de cortia [...]. (7LDU, grifo nosso) Em 1665, o pesquisador ingls Robert Hooke, usan-
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so bastante curtos, tendo variado, nos livros aqui analisados, de um a trs pargrafos, o que minimiza a possibilidade daquelas ocorrncias. Por outro lado, a deteco de problemas nos relatos histricos aqui analisados foi ampliada aps o estudo do episdio em questo. Nessa fase da pesquisa foram encontrados equvocos que enfatizam a descrio de grandes personagens e de eventos marcantes, bem como a omisso de pesquisadores e episdios relacionados. Assim, as duas anlises aqui realizadas indicam que o mtodo de Allchin insuficiente para textos curtos. Retomando Whitaker, certo que o objetivo primordial dos livros didticos no o de fornecer relatos histricos da o pouco espao disponvel para eles. Contudo, segundo a perspectiva de uso inclusivo da histria da cincia no ensino de cincias, uma opo melhor, talvez, fosse a de reduzir o nmero de episdios histricos abordados para que se ganhasse mais espao para apresentaes contextualizadas. Dessa forma, o livro didtico atenderia ao que se preconiza atualmente no ensino de cincias, apresentando o conhecimento cientfico associado a seu contexto de produo. Por sua vez, os professores de ensino mdio contariam com materiais histricos consonantes com a historiografia renovada da histria da cincia, que incorpora uma dentre as vrias possibilidades pelas quais se alcana o ensino contextual de cincias.
Agradecimentos
A segunda autora agradece Fapesp e ambas autoras agradecem s criteriosas sugestes do parecerista annimo que muito contriburam maior clareza do texto.
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Consideraes Finais
Os resultados obtidos na primeira etapa da pesquisa emprica aqui realizada mostram que os textos vistoriados apresentam poucas ocorrncias de o que Allchin denominou indicadores de narrativa mtica em narrativas histricas. Ainda que se trate de um resultado positivo, sob a perspectiva de uma abordagem histrica adequada, preciso levar em conta alguns fatores. Um deles diz respeito ao fato de a anlise ter sido feita propositalmente sobre os livros aprovados no PNLEM/2009, ou seja, que representam j os melhores materiais disponveis no mercado. Outro aspecto a ser considerado o de que os trechos referentes a Hooke
8 Catherine Wilson ressalta que o termo filsofo natural tambm no escapa a certa tenso devido a dois sentidos distintos em que era usado em Oxford no sculo XVII, um pejorativo, como crtica aos metafsicos, e um neutro, referindo-se a quem se dedicava filosofia experimental, corpuscular e mecnica (Wilson, 1995, p. 11).
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