100% acharam este documento útil (1 voto)
72 visualizações46 páginas

Volume 9

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1/ 46

Volume 9(2)

Dezembro 2012

ib.usp.br/revista

Especial Filosofia e Histria da Biologia

Revista da Biologia
Publica textos de todas as reas da Biologia, abordando questes gerais (ensaios e revises) e especficas (artigos experimentais originais, descrio de tcnicas e resumos expandidos). H espao tambm para perspectivas pessoais sobre questes biolgicas com relevncia social e politica (opinio). A Revista da Biologia gratuita e exclusivamente on-line. Sua reproduo permitida para fins no comerciais. ISSN1984-5154 www.ib.usp.br/revista

Expediente
Editor Executivo Carlos Rocha Coordenadores Agustn Camacho Daniela Soltys Pedro Ribeiro Rodrigo Pavo Editor cientfico Maria Elice Brzezinski Prestes Consultores cientficos Camile correa Daniel Lahr Gildo Santos Hamilton Haddad Leopoldo barletta Pedro Jose Da Gloria Editores grficos Juliana Roscito Leonardo M. Borges

Contato
revistadabiologia@gmail.com Revista da Biologia Rua do Mato, trav. 14, 321 Cidade Universitria, So Paulo So Paulo, SP Brasil CEP 05508-090

Volume 9(2) publicado em dezembro de 2012

Imagem da capa: Haeckel, E. 1862 Die Radiolarien (Rhizopoda Radiaria), Berlin. Plate . Disponvel em http:// caliban.mpiz-koeln.mpg.de/haeckel/radiolarien/

Editorial
Maria Elice Brzezinski Prestes Departamento de Gentica e Biologia Evolutiva, Instituto de Biocincias, Universidade de So Paulo Grupo de Pesquisa em Histria da Biologia e Ensino (HBE) Grupo de Pesquisa em Histria, Teoria e Ensino de Cincias (GHTC)
com muita satisfao que atendemos ao convite de Revista da Biologia para um nmero especialmente voltado a temas de Filosofia e Histria da Biologia. A Biologia a mais nova dentre as cincias a trazer o seu objeto de investigao, a vida, para a abordagem histrica e filosfica, como ocorreu mais precocemente com a Fsica, a Matemtica e a Qumica. Sendo um campo de investigao que se institucionalizou nas ltimas dcadas, particularmente a partir dos anos 1960 e 1970, constitui-se, talvez, em uma novidade aos prprios bilogos. Da a maior relevncia de iniciativas como a dos editores da revista, aos quais agradecemos a oportunidade. Dos sete artigos aqui reunidos, trs deles tratam de temas j clssicos da Filosofia da Biologia se que a juventude da rea permite fazer uso de tal expresso. O artigo de Ricardo Santos do Carmo e colaboradores focaliza a explicao teleolgica na biologia. Remete-se particularmente teoria das funes de Robert Cummins, expressa em artigo de 1975, cuja relevncia se deve ao papel arquitetnico, e no meramente metodolgico, que possui na formao das teorias, como assinalado por Franois Duchesneau em seu Philosophie de la Biologie, de 1997. Fernanda Meglhioratti e colaboradores argumentam em favor da abordagem hierrquica e sistmica para a construo da autonomia da Biologia. Com novas tintas tericas, desenvolvem o importante tema da autonomia que marca o livro de Ernst Mayr, Biologia, cincia nica, de 2004. O artigo encabeado por Nei Freitas Nunes-Neto aborda a interface entre sistemas naturais e sujeitos cognoscentes como locus da emergncia da complexidade. A aproximao que os autores fazem com o empirismo construtivo de van Fraassen ilumina o tipo de contribuio que a filosofia da cincia em geral pode trazer s questes particulares da Biologia. Note-se que estes trs artigos no so trabalhos individuais, mas refletem a vigorosa contribuio rea que vem sendo desenvolvida de modo integrado a uma cultura maior de discusso e colaborao no grupo de pesquisa de Charbel Nio El-Hani, no Instituto de Biologia da UFBA. O artigo de Guilherme Francisco Santos sobre o importante conceito de monera formulado por Ernst Haeckel no final do sculo XIX lana luz a outro tema central da Filosofia da Biologia, o da individualidade. A anlise minuciosa das fontes primrias de Haeckel, indisponveis em nosso idioma, fideliza o mais estrito rigor filosfico metodologia da Histria da Cincia. Como no caso dos artigos precedentes, essa pesquisa integra referenciais para a rea que vm sendo desenvolvidos junto ao grupo de pesquisa de Maurcio de Carvalho Ramos, na Faculdade de Filosofia da USP. O artigo encabeado por Fernando Moreno Castilho, filiado linha de pesquisa da historiadora da biologia Lilian Al-Chueyr Pereira Martins, trata do tema mais que central da biologia, o conceito de seleo natural. Ao elucida-lo conforme proposto em duas obras de Darwin, o artigo sinaliza para o alerta historiogrfico de que a teoria de Darwin diferente da teoria evolutiva atual. Os dois artigos restantes, encabeados por Eduardo Crevelrio de Carvalho e Taysy Fernandes Tavares so exemplos do que vem sendo feito pelo Grupo de Pesquisa em Histria da Biologia e Ensino do IB-USP. Eduardo retoma as investigaes sobre a gerao espontnea no sculo XVIII, destacando-a como uma das controvrsias mais acirradas daquele sculo. Por sua vez, Taysy aborda o estudo de caso de Robert Hooke luz da etiqueta historiogrfica de pseudo-histria, problematizada por Douglas Allchin. Como diversos outros, os grupos aqui representados so integrantes da Associao Brasileira de Filosofia e Histria da Biologia, ABFHiB. Criada em 17 de agosto de 2006, a ABFHiB tem o objetivo de ampliar a difuso dos estudos de Filosofia e Histria da Biologia no contexto brasileiro, propsito esse que vem sendo cumprido por meio de atividades regulares, como a organizao dos encontros anuais no ms de agosto e as publicaes do Boletim de Histria e Filosofia da Biologia e da revista Filosofia e Histria da Biologia. Embora oferea uma amostra da pesquisa atual que vem sendo realizada no Brasil em Filosofia e Histria da Biologia, esta pequena coleo de ensaios est longe de servir de panormica do que h. Outros grupos de pesquisa, muitos dos quais tambm filiados ABFHiB, vm sendo formados em nosso pas e oferecem aportes igualmente promissores para a rea. A voc leitor, encerro com votos de boa leitura!

Volume 9(2)
ndice
Lazzaro Spallanzani e a gerao espontnea: os experimentos e a controvrsia
Lazzaro Spallanzani and spontaneous generation: the controversy Eduardo Crevelrio de Carvalho, Maria Elice Brzezinski Prestes experiments and

the

O conceito de organismo em uma abordagem hierrquica e sistmica da biologia 7


The concept of organism in a hierarchical and systemic approach to biology Fernanda Aparecida Meglhioratti, Charbel Nio El-Hani, Ana Maria de Andrade Caldeira

As concepes evolutivas de Darwin sobre a expresso das emoes no homem e nos animais 12
Darwins evolutionary conceptions on the expression of emotions in man and animals Fernando Moreno Castilho, Lilian Al-Chueyr Pereira Martins

Moneras e individualidade biolgica: alguns elementos do conceito de monera de Ernst Haeckel 16


Moneras and biological individuality: some elements of the concept of monera of Ernst Haeckel Guilherme Francisco Santos

A Teoria das Hierarquias e seus fundamentos epistemolgicos


Hierarchy Theory and its epistemological grounds Nei Freitas Nunes-Neto, Charbel Nio El-Hani

20

legtimo explicar em termos teleolgicos na biologia?

Is it legitimate to explain in teleological terms in biology? Ricardo Santos do Carmo, Nei Freitas Nunes-Neto, Charbel Nio El-Hani

28

Pseudo-histria e ensino de cincias: o caso Robert Hooke (1635-1703)


Pseudo-history and science teaching: the case Robert Hooke (1635-1703) Taysy Fernandes Tavares, Maria Elice Brzezinski Prestes

35

Revista da Biologia (2012) 9(2): 1-6


DOI: 10.7594/revbio.09.02.01

Artigo

Lazzaro Spallanzani e a gerao espontnea: os experimentos e a controvrsia


Lazzaro Spallanzani and spontaneous generation: the experiments and the controversy
Eduardo Crevelrio de Carvalho1, 3, Maria Elice Brzezinski Prestes2, 3, 4
1 2

Programa de Ps-Graduao Interunidades em Ensino de Cincias, Universidade de So Paulo Departamento de Gentica e Biologia Evolutiva, Instituto de Biocincias, Universidade de So Paulo 3 Grupo de Pesquisa em Histria da Biologia e Ensino (GPHBE) 4 Grupo de Pesquisa em Histria, Teoria e Ensino de Cincias (GHTC)
Contato dos autores: 1 edu.carvalho@usp.br, 2 eprestes@ib.usp.br Resumo. Este artigo aborda as pesquisas realizadas pelo naturalista italiano Lazzaro Spallanzani (17291799) sobre a gerao espontnea. Como se trata de uma ideia que no mais aceita, ela costuma ser abordada com ironia em relatos histricos anacrnicos. Nesses casos, desconsidera-se que foi defendida por muitos estudiosos da natureza, durante muitos sculos. O objetivo deste trabalho o de analisar, aps um panorama histrico das ideias de alguns dos principais autores envolvidos com o tema, os experimentos de Spallanzani sobre a gerao, no contexto das teorias do sculo XVIII e particularmente da controvrsia entre Spallanzani e John T. Needham (1713-1781). Sero traadas tambm consideraes sobre elementos de natureza epistmica e no-epistmica que participam da soluo, ou no, das controvrsias cientficas. Palavras-chave. Controvrsias cientficas, gerao espontnea, Lazzaro Spallanzani. Abstract. This article discusses the researches performed by the Italian naturalist Lazzaro Spallanzani (1729-1799) on spontaneous generation. For this is an idea no longer accepted, the theme is often dealt with irony by anachronistic historical reports. In such cases, it discredits that the idea has already been held by many researchers of nature, through many centuries. The goal of this work, after presenting a historical overview of ideas of the main authors concerned with the issue, is to analyze the experiments of Spallanzani on the generation in the context of the Eighteenth Century theories and the controversy between Spallanzani and John T. Needham (1713-1781). There will be also a brief discussion of the epistemic and non-epistemic elements that participate in the solution, or not, of scientific controversies. Keywords. Scientific controversies, spontaneous generation, Lazzaro Spallanzani. Recebido 17abr11 Aceito 01set11 Publicado 15dez12

Introduo
Na segunda metade do sculo XVIII, o debate sobre a origem da vida tornou-se bastante intenso entre filsofos e naturalistas que investigavam o problema da gerao1. Naquele momento, as opinies sobre o modo pelo qual os organismos vivos se reproduzem eram muito diversas. De modo geral, os estudiosos intitulavam-se como defensores de uma entre duas grandes teorias que procuravam explicar o fenmeno: a epignese e o pr-formismo ou preexistncia. A epignese apoiava-se na ideia de que os organismos so formados gradualmente aps a fecundao, a cada instante do prprio processo reprodutivo. O pr-formismo baseava-se em que todas as partes e a estrutura do organismo vivo j existem nos germes que lhes do origem.
1 O termo gerao no possua uma conotao nica nessa poca, mas englobava reproduo, regenerao e origem dos seres vivos.

A compreenso sobre a origem mesma dos organismos viventes, por sua vez, tambm variou conforme diferentes pocas. Uma hiptese, muito antiga, era a da gerao espontnea, segundo a qual os organismos so formados a partir de matria inanimada. Outra hiptese era a de que todo ser vivo provm de um progenitor preexistente (e at o aparecimento das teorias evolutivas do sculo XIX, esse progenitor foi criado por Deus). Em meados do sculo XVIII perodo em que foram realizados os experimentos tratados neste trabalho a ideia da gerao espontnea passou a ser bastante criticada, especialmente por estar relacionada doutrina pag que atribua foras e poderes natureza. A Igreja catlica apoiava justamente o oposto, a gerao unvoca2, ou seja,
2 Na poca utilizava-se o termo gerao unvoca para a doutrina que explicava a origem dos seres vivos a partir de germes ou progenitores semelhantes a eles. O oposto seria gerao equvoca, em que a gerao desses animlculos era espontnea (Prestes e Martins, 2010, p. 81).

Carvalho & Prestes: Lazzaro Spallanzani e a gerao espontnea: os experimentos e a controvrsia


ao adulto. Essa interpretao gerou uma corrente de defensores da ideia de que o organismo provm do germe masculino, o chamado animalculismo. Por outro lado, descobertas como a da partenognese por Charles Bonnet (1720-1793), dos folculos ovarianos (folculos de Graaf) por Rgnier de Graaf (1641-1673) e a descrio do desenvolvimento embrionrio no ovo de galinha por Albrecht von Haller (1708-1777), trouxeram forte apoio ao ovismo. Segundo essa ideia, o germe que engendra um novo organismo estaria no ovo (vulo) das fmeas. Um estudo muito importante da poca, e que introduziu novos argumentos ao debate, foi publicado por Abraham Trembley (1710-1784), em 1744, referindo-se reproduo dos plipos de gua doce (hidra). Por meio de uma longa srie de observaes e experincias, Trembley descreveu a bisseco dos plipos de gua doce resultante na produo de dois animais completos, por corte de todo o animal em duas metades, hoje chamado bipartio. Ele tambm identificou o aparecimento de novos organismos por meio da formao de brotos (brotamento) e a partir de dois indivduos (reproduo sexual). Trembley concebeu que, no extremo, o fenmeno regenerativo d origem a dois novos plipos. O mais importante de seus estudos foi que revelaram a descoberta de novas formas de reproduo animal e causaram grande impacto nas sociedades cientficas e nos crculos ilustrados da poca5. As descobertas de Trembley foram retomadas por Charles Bonnet, como evidncias favorveis ao pr-formismo. Bonnet pensava que, todos os seres foram criados ao mesmo tempo, uns dentro dos outros, por encaixamento (embotement). Ao mesmo tempo, outros investigadores passaram a defender ardentemente a epignese, como Georges-Louis Leclerc de Buffon (1707-1788) e John Turberville Needham (1713-1781)6. As observaes e experimentos de Buffon e Needham realimentaram a defesa da gerao espontnea. Por terem motivado diretamente os estudos de Spallanzani, sero analisadas em mais detalhe a seguir. Quando John Turberville Needham comeou a se interessar pela histria natural, realizou uma srie de observaes microscpicas com uma grande variedade de materiais experimentais, cuja descrio apresentou na obra An Account of some New Microscopical Discoveries (Uma considerao sobre algumas novas descobertas microscpicas), de 1745. Trs anos depois, em 1748, Needham produziu uma
5 Um bom exemplo da perturbao causada pelas descobertas de Trembley o que se sucedeu com Haller. Inicialmente animaculista, luz dos fenmenos com a hidra Haller passou a defender, ainda que temporariamente, a epignese. Aps novas observaes da formao do corao no embrio do pinto, retornou ao pr-formismo, dessa vez, ovista (Prestes, 2003, p. 105). 6 A historiografia tradicionalmente situa Pierre-Louis Moreau de Maupertuis, nessa linha epigentica de explicaes. Contudo, de acordo com Maurcio de Carvalho Ramos, a teoria de Maupertuis no necessariamente epigentica. Segundo as conjecturas de Maupertuis, a matria que forma o embrio j possui uma forma, pelo menos no que concerne s suas partes e rgos fundamentais (Ramos, 2009, p. 123).

que todos os organismos esto presentes no germe de um dos progenitores (Prestes e Martins, 2010, p. 81). Em sntese, os adeptos da teoria da epignese aceitavam a gerao espontnea, enquanto os defensores da teoria da pr-formao a negavam. A aceitao do sistema pr-formista at meados do sculo XVIII deveu-se, em grande medida, ao seu potencial para um entendimento mecnico da alma e do esprito e, portanto, do relacionamento de Deus com seu mundo mecnico (Pinto-Correia, 1999, p. 49). Esta pesquisa traz uma anlise da contribuio do naturalista italiano Lazzaro Spallanzani (1729-1799) a esses debates. Aps uma breve apresentao das pesquisas realizadas no sculo XVIII e, mais particularmente, da controvrsia que Spallanzani estabeleceu com John Turberville Needham (1713-1781), ser feita uma anlise mais detalhada da ltima obra em que Spallanzani tratou do tema, as Osservazioni e sperienze intorno agli animalucci delle infusioni, in ocasione che si esaminano alcuni articoli della nuova opera del Sig. Di Needham (Observaes e experincias sobre os animlculos das infuses, ocasio em que so examinados alguns artigos da nova obra do Senhor Needham).

Um panorama das pesquisas sobre a gerao


Na Antiguidade, a crena na gerao espontnea abrangia desde a formao de vermes e insetos at animais maiores (peixes e salamandra, por exemplo). Com o tempo, a tese da gerao espontnea perdeu crdito, sendo aplicada somente para explicar a presena de vermes intestinais no homem e em outros animais (Martins e Martins, 1989, p. 8)3. No entanto, a situao mudou completamente com a utilizao do microscpio e da lupa, no incio do sculo XVII. Isso ocorreu devido a observaes realizadas por microscopistas como os holandeses Anton van Leeuwenhoek (1632-1723) e Nicolas Hartsoeker (1656-1725). Leeuwenhoek observou a presena de animlculos4 na gua estagnada. No entanto, na ocasio no se preocupou em determinar sua origem (Martins, 2007, p. 101). Hartsoeker props que os animlculos espermticos (isto , os pequenos animais encontrados no esperma, atualmente, espermatozides) contm dentro de si um pequeno animal, pr-formado, o homnculo, que daria origem
3 Isso mostra que John Farley tem razo quando diz que em boa parte de relatos histricos sobre a gerao espontnea existem dois pressupostos bsicos invlidos. O primeiro que a controvrsia se desenvolveu principalmente sobre a origem dos microrganismos e o segundo a crena de que a gerao espontnea foi refutada pela experimentao. Segundo o autor, esses equvocos podem ter surgido devido tendncia em escrever a histria da cincia como uma histria de sucesso, hoje amplamente criticada como uma historiografia whig (Farley, 1972, p. 96). 4 O termo microrganismo ainda no era utilizado nesse perodo. Para se referir ao que hoje chamamos de microrganismos eram utilizados termos como animlculos (isto , pequenos animais), infusrios (isto , seres que aparecem em infuses), entre outros.

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2)


nova obra, mais detalhada, intitulada A summary of some late observations upon the generation, composition and decomposition of animal and vegetable substances (Um resumo de algumas observaes posteriores sobre a gerao, composio e decomposio das substncias animais e vegetais)7. Este relato continha uma srie de experimentos com evidncias favorveis gerao espontnea e suas crticas teoria pr-formista. Ao mesmo tempo, propunha sua teoria sobre as foras ativas da natureza, por argumentos derivados no apenas das observaes, que so bvias a todo naturalista, mas experimentos feitos com substncias animais e vegetais, durante todo o vero do presente ano (Needham, 1750, p. 622). Esse texto foi traduzido e publicado em francs numa edio para a qual Needham acrescentou mais consideraes de ordem epistemolgica e metafsica: Nouvelles Observations microscopiques, avec des dcouvertes sur la composition et la dcomposition des corps organiss (Novas observaes microscpicas com descobertas sobre a composio e decomposio dos corpos organizados)8. A publicao do Nouvelles observations microscopiques, em 1750, causou grande impacto entre os naturalistas de outros pases, pois o francs era a lngua culta da poca. Conforme Maurcio de Carvalho Ramos, citando Beeson (1992), a leitura que Maupertuis fez dessa obra por volta de agosto daquele ano inspirou o autor a retomar suas reflexes e estudos sobre a gerao dos organismos, como de fato, sugere a carta a La Condamine de 24 de agosto de 1750: Lestes o livro de Needham? Onde estamos? Que novo universo! lamentvel que um homem que observe to bem raciocine to mal! Aps a leitura de seu livro, tive o esprito to aturdido com todas as ideias que ele me apresentou que foi preciso deitar-me, como que doente; e eu ainda no estou to bem curado da confuso em que esta leitura me colocou. Quando esse tumulto estiver um pouco mais mitigado espero retomar o fio de algumas meditaes sobre o assunto que iniciei h algum tempo e ver se possvel descobrir alguma coisa razovel. (Maupertuis, 1750, 125B apud Ramos, 2009, p. 273) Foi tambm essa edio francesa, supostamente, que Spallanzani tinha em mos ao iniciar suas investigaes sobre os microrganismos, em 1761 (Prestes, 2003, pp. 160-161). Resumidamente, o principal experimento relatado nessa obra o que Needham introduziu certa quantidade de caldo de carne de carneiro (ainda quente), em um fras7 No ano seguinte, em 1749, esse relato foi publicado como monografia intitulada Observations upon the generation, composition, and decomposition of animals and vegetables substances (Observaes sobre a gerao, composio e decomposio de substncias animais e vegetais). 8 Muitas vezes, as fontes precisas das observaes e experincias de Needham no so devidamente indicadas, mesmo as mais famosas como a do surgimento de vermes a partir de carne putrefata, ou de seus experimentos sobre animais das infuses (Prestes, 2003, p. 160).

co. Para isolar o caldo do ar exterior, fechou-o com uma tampa de cortia. Ele esperava esclarecer se os animlculos que surgiam aps algum tempo nessas infuses eram produzidos a partir de algo que vinha de fora, ou se eles eram provenientes da prpria substncia infusa. Needham manteve o frasco durante algum tempo sobre carvo quente. Mais tarde, exps os frascos ao calor do sol durante alguns dias. Abriu-os e retirou gotas do caldo para examinar ao microscpio, encontrando uma grande quantidade de animlculos que se moviam. O mesmo resultado foi obtido com outras infuses de substncias animais e vegetais. Com esse resultado, Needham sups ter encontrado uma evidncia favorvel ao aparecimento espontneo de animlculos nas infuses. Alm disso, ele procurou explicar que o fenmeno ocorria devido s foras ativas da natureza, que ele chamou de fora ou poder vegetativo. Needham contou com o apoio de Buffon, pois sua interpretao se harmonizava com a teoria das molculas orgnicas do naturalista francs. Buffon acreditava que, na ocasio da morte de um animal, suas molculas orgnicas continuavam a existir, podendo constituir indivduos mais simples do aquele do qual se originaram. Assim, para Buffon, os glbulos mveis (microrganismos) observados por Needham ao microscpio tinham se originado das molculas orgnicas do carneiro (Martins, 2007, p. 28). Shirley Roe acrescenta que embora sua teoria da gerao tenha se baseado nos fenmenos revelados pelo microscpio, John Needham generalizou suas concluses para construir uma teoria epigentica universal. Alm disso, incorporou aspectos metafsicos teoria. No entanto, como o homem religioso que era, a sua metafsica nunca foi de orientao materialista, e sempre foi cuidadosamente colocada em um contexto religioso. Mesmo assim, Needham foi forado a defender seus pontos de vista contra a acusao de atesmo (Roe, 1983, p. 160). importante ressaltar que o experimento de Needham foi extremamente importante, pois introduziu novas ideias tcnicas, como a utilizao de recipientes fechados contendo lquidos expostos ao da alta temperatura seguido do exame de seu contedo (Prestes e Martins, 2010, p. 82).

A controvrsia entre Needham e Spallanzani


Essas publicaes motivaram Lazzaro Spallanzani a investigar o problema da gerao espontnea. Uma de suas estratgias foi a de confrontar as observaes de Needham, s objees j apontadas por Bonnet, assim como por Ren-Antoine Ferchault de Raumur (1683-1757). Esses autores haviam ponderado que os animlculos das infuses poderiam provir de animais (ou de ovos) que estavam no ar ou nas paredes do recipiente, ou misturados ao caldo de carneiro. A fim de investigar essas objees, Spallanzani promoveu variaes nos experimentos de Needham e considerou que as paredes do recipiente, assim como as prprias substncias infusas e o ar de seu interior no haviam sido aquecidos suficientemente.

ib.usp.br/revista

Carvalho & Prestes: Lazzaro Spallanzani e a gerao espontnea: os experimentos e a controvrsia


crena sobre uma fora vegetativa que confere uma espcie de vitalidade matria: Na matria reside uma fora que se destina a formao, e ao governo do mundo orgnico, e que ele denomina vegetativa [...]. [Needham] imagina que esta fora coloca em movimento todas as partes da matria, despertando nesta uma espcie de vitalidade, resultante do acoplamento de duas outras foras, uma resistente, e outra expansiva. (Spallanzani, 1998 [1776], p. 17) Mas , sobretudo, na produo dos Corpos organizados que o Senhor Needham entende o poder de sua fora vegetativa. (Spallanzani, 1998 [1776], p. 18) Spallanzani reafirmou que era possvel compreender o resultado dos experimentos sem a ajuda da fora vegetativa e procurou contestar as duas objees de Needham por meio de novos experimentos. Quanto ao resultado da minha Dissertao, acredito ter mostrado de fato a suficincia, como perfeitamente entendo, de que pode ser explicado sem ajuda da fora vegetativa. Por conta das duas Oposies que me foram feitas por Needham ao Experimento do fogo, para examinar com filosfica imparcialidade qual o seu valor, realizei uma longa srie de experincias que sero descritas nos dois captulos seguintes. (Spallanzani, 1998 [1776], p. 21) Ao questionar sobre qual seria o valor da primeira objeo feita por Needham, a saber, de que o suposto enfraquecimento ou aniquilamento da fora vegetativa da matria infusa seria provocado pelo elevado tempo de fervura, Spallanzani imaginou um experimento que considerava decisivo. Este consistia em preparar infuses de vrias sementes de vegetais e submeter a diferentes tempos de aquecimento. Ele argumentou que se Needham tivesse razo, o nmero de animlculos deveria diminuir conforme aumentasse o tempo de fervura da infuso. Por outro lado, se os animlculos continuassem a aparecer em grande quantidade, como na primeira [infuso], ento a objeo seria invlida (Spallanzani, 1998 [1776], p. 22). Spallanzani optou por utilizar infuses feitas com diferentes tipos de sementes vegetais por supor que elas favoreciam o aparecimento de diferentes tipos de animlculos. As sementes utilizadas foram feijes brancos, aveia, trigo sarraceno, cevada, semente de malva e de beterraba. Alm disso, Spallanzani relatou ter tomado o cuidado de utilizar sementes sempre da mesma planta. Utilizou tambm gema de ovos de galinha, pois sabia que macerada em gua, gerava abundantes bestas microscpicas. Preparou quatro classes de infuses em funo do tempo de aquecimento (meia hora, uma hora, uma hora e meia e duas horas) contendo as sete sementes e a gema de ovo, perfazendo um total de 32 recipientes. Fechou todos com rolhas de cortia que, para Spallanzani, no impedia totalmente o contato com partculas do ar exterior. Deixou os frascos esfriarem ao ar livre. Oito dias depois, em todos os frascos foram encon-

Alm disso, experimentou diferentes materiais para fechar os frascos e observou que a quantidade de animlculos que apareciam tinha uma relao direta com a entrada do ar que no havia sofrido a ao do fogo (Prestes e Martins, 2010, p. 85). Em recipientes que foram mantidos abertos, os animlculos eram abundantes; nos fechados com algodo, eram menos abundantes; eram raros nos tapados com madeira e ausentes nos lacrados com a chama de um maarico (Prestes e Martins, 2010, p. 85). Spallanzani realizou o experimento em frascos lacrados em 19 frascos, com diversas matrias infusas, como pedaos de carne ou sementes de vegetais, e obteve em todos eles o resultado que esperava: as infuses no se turvaram e ali no apareceram animlculos (Prestes e Martins, 2010, p. 85). Spallanzani publicou o resultado de suas investigaes em 1765 em sua obra Saggio di osservazioni microscopiche concernenti il sistema della generazione de Signori di Needham e Buffon (Ensaio de observaes microscpicas sobre o sistema da gerao dos Senhores Needham e Buffon). Em 1769, o Saggio foi traduzido para o francs e publicado com o ttulo Nouvelles recherches sur les dcourvertes microscopiques, et la gnration des corps organiss (Novas pesquisas sobre as descobertas microscpicas e a gerao dos corpos organizados). Trata-se de uma edio que contm, alm da traduo, cerca de 100 pginas de notas de Needham comentando os experimentos de Spallanzani. Nessas notas, Needham seguiu considerando a existncia de uma fora vegetativa que podia produzir animlculos a partir de um vegetal morto. Tambm apresentou, dentre outras, duas importantes objees aos procedimentos experimentais de Spallanzani: este no teria aquecido excessivamente as infuses, destruindo a fora plstica ou poder vegetativo das matrias infusas? No podia o calor excessivo ter corrompido a pequena quantidade de ar existente na parte vazia dos recipientes?

Spallanzani e os animlculos das infuses


Logo em seguida, Spallanzani fez uma contestao pblica a essas ltimas objees de Needham em aula inaugural do curso de Histria Natural, proferida por ocasio de seu ingresso na Universidade de Pavia, no incio do ano letivo de 1769. Foi alm e planejou novos experimentos, publicados seis anos depois em Osservazioni e sperienze intorno agli animalucci delle infusioni, in ocasione che si esaminano alcuni articoli della nuova opera del Sig. Di Needham (Observaes e experincias sobre os animlculos das infuses, ocasio em que so examinados alguns artigos da nova obra do Senhor Needham)9. Spallanzani iniciou o primeiro captulo desse ensaio com uma exposio da nova ideia do Senhor Needham sobre o sistema de gerao. Retomou as anotaes na traduo francesa do Saggio, em que Needham reafirmou sua
9 Esse ensaio foi publicado como o primeiro de cinco opsculos editados em um livro intitulado Opuscoli di fisica animale e vegetabile (Opsculos de Fsica animal e vegetal), de 1776.

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2)


trados animlculos: Os resultados desta experincia claramente mostram que a longa ebulio das sementes no evitou que animlculos nascessem nas infuses [...] a infuso das sementes, quando submetidas ao tormento do fogo no deixou de produzir Animlculos. Da deriva diretamente as inegveis consequncias de que no existe lugar para a primeira objeo feita pelo naturalista ingls e de que sua fora vegetativa um puro trabalho de fantasia. (Spallanzani, 1998 [1776], p. 26) Com esse experimento, Spallanzani tambm queria indicar que a rolha de cortia no vedava completamente os vasos. Em seguida, ele examinou a segunda objeo feita por Needham, de que o aquecimento excessivo destruiria a elasticidade do ar. Para Spallanzani, o exame desta objeo se reduzia, em ltima anlise, a dois aspectos: 1) se o aumento no tempo de aquecimento diminui o nascimento dos animais infusrios; 2) se este acrscimo de calor tornava o ar mais rarefeito, causando perda de elasticidade (Spallanzani, 1998 [1776], p. 27). Para examinar esses aspectos, Spallanzani preparou novos frascos contendo onze sementes vegetais diferentes. Mas, desta vez, planejou uma maneira de fech-los hermeticamente. Com auxlio da chama de um maarico, estreitou o dimetro do pescoo de cada frasco at que se tornasse bem fino e fosse fechado em sua extremidade, com o prprio calor da chama. Para Spallanzani, este procedimento assegurava que a composio do ar no interior dos frascos mantinha a mesma densidade que o ar atmosfrico: Mas para proceder com a devida cautela necessrio que no momento de fechar os frascos com a chama do maarico o ar aprisionado no interior do frasco no se torne rarefeito devido perda de sua elasticidade. (Spallanzani, 1998 [1776], p. 22) Nesses frascos hermeticamente fechados, o autor observou que em dois deles no surgiram animlculos, mas que nos outros nove apareceram em pequena quantidade. Diante desse resultado, Spallanzani promoveu nova srie de experimentos. Colocou os nove diferentes tipos de sementes em frascos fechados hermeticamente (com maarico estreitando o gargalo e fechando-o) e ento os imergiu em outro vaso, com gua fervente, por meio minuto; outras nove baterias de frascos foram imersas por um minuto, outras por um minuto e meio e as ltimas por dois minutos, perfazendo um total de 36 frascos submetidos ao calor do fogo em intervalos de tempo diferentes. Aps 11 dias, os frascos lacrados hermeticamente foram abertos e examinados, resultando em animlculos nas nove infuses abertas. Ao abrir o primeiro frasco, Spallanzani percebeu um assobio sutil provocado pelo ar que flua para o interior do frasco. Essa observao poderia confirmar a segunda objeo de Needham, ou seja,

de que o fogo diminua a elasticidade do ar. Spallanzani imaginou que se o dimetro do pescoo dos frascos fosse ainda mais estreito, tornando-se um tubo quase capilar, este poderia ser fechado hermeticamente muito rapidamente, antes do ar interior tornar-se rarefeito. Por isso, refez os experimentos com frascos de gargalo bem fino e acreditou ter contornado o problema. Para a sua surpresa, o que encontrou foi que o ar contido no interior dos frascos no havia sofrido perda, mas ganho de elasticidade em relao ao ar exterior. Isto porque, desta vez, ao quebrar o pescoo do frasco na frente da chama de uma vela, essa chama tendia na direo oposta ao frasco, indicando a sada do ar (e no era atrada no sentido do gargalo do frasco, como ocorria antes). Para explicar esse fenmeno, cogitou: No nego que aquele excesso de elasticidade no seja derivado em parte de um fluido elstico presente j nos vegetais, e que possui natureza aparentemente distinta do fluido areo. (Spallanzani, 1998 [1776], p. 28) Com esses procedimentos, Spallanzani considerou ter rechaado a segunda objeo de Needham10. Por consequncia, afirmou que a noo de fora vegetativa no passava de uma quimera. Alm disso, Spallanzani considerou ter fornecido resultados de observaes e experimentos que provavam que os animlculos so gerados a partir de germes preexistentes e no a partir das matrias das sementes.

As controvrsias cientficas
Aps analisar os experimentos apresentados por Lazzaro Spallanzani em resposta s objees de John T. Needham, bem como o contexto em que se desenvolveu a controvrsia, pode-se perceber que ambos eram experimentadores competentes. Needham desenvolveu experimentos inovadores e Spallanzani introduziu anlise de novas variveis, diversificando as sries experimentais. Um aspecto que no pode ser ignorado diz respeito s interpretaes que Needham e Spallanzani chegaram diante dos resultados obtidos. Os resultados obtidos por meio de longas sries de experincias foram interpretados com base em concepes epistemolgicas distintas, ambas aceitveis naquele perodo. Needham partilhava da concepo epigentica, Spallanzani, do pr-formacionismo. Ambos acreditaram ter fornecido evidncias experimentais a seu favor, e ambos no abandonaram seus sistemas. No sentido kuhniano pode-se dizer que apesar de terem realizado experimentos semelhantes, os resultados foram interpretados com base em paradigmas incomensurveis. O debate sobre a origem dos organismos das infuses no se encerrou naquele sculo, e a contenda se estendeu ao longo do sculo XIX. Foi revivido por Flix
10 Apesar disso, a objeo de Needham de que o ar ficava viciado pela ebulio prolongada, era difcil de descartar, porque naquela poca, se sabia pouco sobre a composio do ar e sobre o tipo de alterao que sofria sob ao do calor (Prestes e Martins, 2010, p. 93).

ib.usp.br/revista

Carvalho & Prestes: Lazzaro Spallanzani e a gerao espontnea: os experimentos e a controvrsia


Revista da SBHC 12: 73-98. Farley J. 1972. The spontaneous generation controversy (17001860): the origin of parasitic worms. Journal of the History of Biology 5 (1): 95-125. Disponvel em: http://www.jstor. org/stable/4330570. Acesso em: 07/03/2011. Feyrabend PK. 1989. Contra o mtodo. 3 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves. Martins LACP. 2007. A teoria da progresso dos animais de Lamarck. Rio de Janeiro: Booklink; So Paulo: FAPESP: GHTC/UNICAMP. Martins LACP. 2009. Pasteur e a gerao espontnea: uma histria equivocada. Filosofia e Histria da Biologia 4: 65100. Martins LACP, Martins RA. 1989. Gerao espontnea: dois pontos de vista. Perspicilium 3(1): 5-32. Needham JT. 1748. A summary of some late observations upon the generation, composition, and decomposition of animal and vegetable substances. Philosophical Transactions 45 (490): 615-666. Disponvel em www.gallica.fr Acesso em 07/03/2011. Needham JT. 1750. Nouvelles observations microscopiques avec des dcouvertes intressantes sur la composition et la decomposition des corps organizes. Paris: LouisEtienne Ganeau. Disponvel em http://www.biusante. parisdescartes.fr/ Acesso em 15/03/2011. Prestes MEB. 2003. A biologia experimental de Lazzaro Spallanzani (1729-1799). Tese de Doutorado. Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo. Prestes MEB e Martins LACP. 2010. Histria da Biologia e Ensino: Needham, Spallanzani e a Gerao Espontnea. In: Caldeira AMA, Arajo ESNN, organizadoras. Introduo Didtica da Biologia. So Paulo: Escrituras 80-91. Ramos MC. 2009. A gerao dos corpos organizados em Maupertuis. So Paulo: Associao Filosfica Scientiae Studia/Editora 34. Roe SA. 1983. John Turberville Needham and the Generation of Living Organisms. Isis 74 (2): 158-184. Disponvel em: http://www.jstor.org/stable/233101. Acesso em 27/03/2011 Spallanzani L. 1998 [1776]. Opuscoli di fisica animale e vegetabile dell abate Spallanzani. In: Spallanzani L. Edizione nazionale delle opere di Lazzaro Spallanzani. Parte quarta, volume terzo. Modena: Mucchi 15-109.

Pouchet (1800-1876) e Louis Pasteur (1822-1895), sendo que este ltimo costuma ser lembrado por ter realizado uma srie de experimentos brilhantes que teriam mostrado que a gerao espontnea no possvel. Sobre esta questo cabe esclarecer que o aparato experimental montado por Louis Pasteur e seus famosos frascos de pescoo-de-cisne seguiu de perto os experimentos de Spallanzani. Alm disso, importante reconhecer que a controvrsia sobre a gerao espontnea no foi resolvida nem mesmo com Pasteur, pois outros pesquisadores continuaram se dedicando ao tema, como o mdico escocs Charlton Bastian (1837-1915) (Martins, 2009, p. 96). Compreender uma controvrsia cientfica exige o exame da natureza das diferenas que separam os proponentes dos dois lados da contenda. preciso examinar, alm dos experimentos e da lgica que os engendra, as tcnicas de argumentao persuasiva que se desenvolvem no interior dos grupos que constituem as comunidades cientficas de cada poca. Episdios histricos que se desenvolvem em torno de controvrsias cientficas propiciam anlise valiosa para a compreenso de aspectos da natureza da cincia. Permitem perceber que, muitas vezes, as tomadas de deciso em favor de uma ou outra hiptese so influenciadas por questes no-epistmicas, como as que regem a comunicao entre diferentes grupos de pesquisa. Alm disso, o conhecimento que emerge de uma controvrsia cientfica no necessariamente melhor ou mais elaborado que o anterior. Nem mesmo segue uma trajetria linear em que teorias mais simples so substitudas ou incrementadas por outras mais elaboradas. Uma controvrsia cientfica nem mesmo garante que uma determinada concepo seja abandonada em detrimento de outra, e isso ocorre, segundo Feyerabend, porque os critrios pelos quais as teorias so avaliadas no seguem sempre ou exclusivamente uma ordem lgica ou racional. Algumas controvrsias persistem durante perodos relativamente longos ou podem mesmo ser retomadas aps algumas dcadas ou sculos, como se deu no caso da gerao espontnea. Uma controvrsia pode comear com um problema especfico, porm rapidamente se expande a outros problemas e revela divergncias profundas. Estas envolvem tanto atitudes e preferncias opostas como desacordos sobre mtodos vigentes para solucionar os problemas. Os contendentes acumulam argumentos que creem aumentar o peso de suas posies frente s objees do adversrio, tendendo assim, se no a decidir a questo, pelo menos a inclinar a balana da razo a seu favor (Dascal, 1994, p. 79).

Agradecimentos
A segunda autora agradece o apoio da FAPESP.

Referncias
Pinto-Correia C. 1999. O ovrio de Eva: a origem da vida. Rio de Janeiro: Campus. Dascal M. 1994. Epistemologia, controvrsias e pragmtica. ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2): 7-11


DOI: 10.7594/revbio.09.02.02

Artigo

O conceito de organismo em uma abordagem hierrquica e sistmica da biologia

The concept of organism in a hierarchical and systemic approach to biology


Fernanda Aparecida Meglhioratti1, Charbel Nio El-Hani2, Ana Maria de Andrade Caldeira3
Centro de Cincias Biolgicas e da Sade, Universidade Estadual do Oeste do Paran Instituto de Biologia, Universidade Federal da Bahia 3 Departamento de Educao, Universidade Estadual Paulista
1 2

Contato dos autores: 1meglhioratti@gmail.com, 2charbel.el-hani@pesquisador.cnpq.br, 3anacaldeira@fc.unesp.br Resumo. Alguns autores tm sustentado que o conceito de organismo, de forma geral, perdeu seu papel na Biologia, devido crescente nfase nos aspectos moleculares e ao fato de a biologia evolutiva darwinista no ter atribudo por um longo tempo um papel explicativo claro ao organismo em sua estrutura conceitual. Entretanto, o conceito de organismo pode ser considerado fundamental para a demarcao da Biologia como cincia autnoma e com objeto de pesquisa prprio. Buscando contribuir para o debate sobre o conceito de organismo, discutimos nesse trabalho como o organismo pode ser concebido em uma abordagem hierrquica e sistmica da Biologia, como uma unidade autnoma, com capacidade de agncia, coletiva e evolutivamente construda, e possuindo propriedades que emergem no nvel orgnico. Palavras-chave. Autonomia, hierarquia biolgica, organismo. Abstract. Some authors have maintained that the concept of organism has lost, generally speaking, its role in Biology, due to the increasing emphasis on molecular aspects and the fact that the Darwinian evolutionary biology for a long time has not ascribed a clear explanatory role to the organism in its conceptual structure. However, the concept of organism can be regarded as being fundamental to the demarcation of Biology as an autonomous science, with its own research object. Seeking to contribute to the debate on the concept of organism, we discuss in this work how the organism can be conceived in a hierarchical and systemic approach to Biology, as an autonomous unit with the capacity of agency, collectively and evolutionarily constructed, and possessing properties that emerge at the organic level. Keywords. Autonomy, biological hierarchy, organism. Recebido 20mai11 Aceito 10set11 Publicado 15dez12

Introduo
Quando falamos sobre seres vivos, tipicamente nos referimos a eles utilizando o termo organismo. Como a Biologia a cincia da vida, poderia parecer bvio que as pesquisas biolgicas tivessem como um de seus principais objetos de estudo o organismo. Paradoxalmente, vrios autores tm argumentado que o conceito de organismo, de forma geral, perdeu seu papel central na Biologia, devido crescente nfase nos aspectos moleculares e ao fato de a biologia evolutiva darwinista no ter atribudo um papel explicativo claro ao organismo em sua estrutura conceitual (Lewontin, 1978, 2002; Goodwin, 1994; Feltz, 1995; Webster e Goodwin, 1999; El-Hani e Emmeche, 2000; Ruiz-Mirazo e col., 2000; Gutmann e Neumann-Held, 2000; El-Hani, 2002; Seplveda e col., 2011). Como consequncia, segundo Lewontin (2000), os organismos passaram a

ser entendidos como entidades passivas, decorrentes da interao entre genes e ambiente: Os seres vivos so vistos como sendo organismos determinados por fatores internos, ou seja, os genes. [...] O mundo fora de ns coloca certos problemas, que no criamos, mas que apenas experimentamos como objetos. Os problemas so: encontrar um cnjuge, encontrar alimento, vencer as competies com os rivais, adquirir uma grande parte dos recursos do mundo, e se tivermos os tipos certos de genes, seremos capazes de resolver os problemas e deixar mais descendentes. Portanto, com essa viso, so realmente nossos genes que esto se propagando atravs de ns mesmos. (Lewontin, 2000, p. 17) Nessa formulao, criticada por Lewontin, o organismo, enquanto entidade real que age sobre o meio, mo-

Meglhioratti e col: O conceito de organismo em uma abordagem hierrquica e sistmica da biologia


da Biologia, que se contrape a uma viso reducionista.

dificando-o, ocupa um papel secundrio. Como afirmam Ruiz-Mirazo e col. (2000), as pesquisas biolgicas enfatizam nveis de organizao mais restritos que aquele no qual se encontra o organismo, como vemos, por exemplo, na biologia molecular e em formulaes gene-cntricas da teoria evolutiva, ou mais inclusivos, como em outras formulaes da biologia evolutiva e na ecologia. Tem sido usual, na biologia contempornea, no pensar o organismo como totalidade e, assim, este no abordado mediante a investigao de propriedades que emergem no nvel orgnico de complexidade. Nesse sentido, Webster e Goodwin destacam a necessidade de: [...] reafirmao do organismo como o prprio objeto da pesquisa biolgica: um objeto real, existindo em seu prprio modo e explicado em seus prprios termos.(Webster e Goodwin, 1999, p. 495) Estes autores ressaltam, pois, a importncia da compreenso do organismo como elemento central do conhecimento biolgico. Nesse contexto, fundamental perceber que a reduo extrema dos fenmenos biolgicos s anlises moleculares e aos estudos da constituio qumica e fsica das clulas pode fazer com que a Biologia perca seu status de cincia autnoma. Apesar de as pesquisas moleculares e das interaes entre a Biologia e campos distintos do conhecimento, como a Fsica e a Qumica, serem fundamentais para o desenvolvimento do conhecimento biolgico, os fenmenos biolgicos no podem ser explicados somente a partir de uma abordagem reducionista da Biologia. Os sistemas vivos tm modos de organizao que lhes so prprios e que no devem ser perdidos de vista na explicao dos processos vitais, no obstante a necessidade de tambm investigar as bases fsicas e qumicas de tais processos. Alm disso, eles devem ser estudados levando em considerao a existncia de propriedades que emergem no organismo devido a certos tipos de padres organizativos. Portanto, o enfoque no organismo ajuda a caracterizar a Biologia como uma cincia autnoma, delineando seus contornos em relao aos outros domnios da cincia. Por exemplo, pode-se questionar como a Biologia se distingue da Qumica. A resposta a essa pergunta pode ser pautada pela definio dos diferentes objetos de estudo dessas cincias. Assim, apesar da nfase atual nos componentes moleculares dos sistemas vivos, a Biologia tem como foco de estudo (ou, ao menos, deveria ter) o organismo, ou seja, como o organismo se constitui mediante as interaes moleculares e ambientais. Na Qumica, por sua vez, o foco da investigao recai sobre as molculas, como elas so constitudas e interagem umas com as outras. Nesse cenrio, torna-se fundamental explicar claramente o que o organismo. Pepper e Herron (2008) consideram que, apesar da existncia de tentativas de conceituar o organismo e da importncia fundamental dessa conceituao em algumas reas da Biologia, foram realizadas poucas tentativas para uma definio mais consistente desse conceito. Portanto, de modo a contribuir com o debate, busca-se neste texto explicitar um conceito de organismo mediante uma abordagem hierrquica e sistmica

O conceito de organismo em debate


Uma das primeiras definies modernas de organismo foi proposta por Kant, estando associada ideia de auto-organizao (Keller, 2005). Para Kant ([1892] 1914), o organismo um produto natural organizado, no qual todas as partes so ao mesmo tempo finalidade e meio, ou seja, ao mesmo tempo em que as partes contribuem para a organizao do todo, tambm so consequncias desse modo de organizao. Este tipo de organizao obtida pela relao estabelecida entre as partes, sem um organizador externo, isto , o organismo auto-organizado. Desta perspectiva, o organismo considerado uma entidade capaz de se autorregular, autodirigir e autogerar, apresentando um tipo especial de arranjo, que auto-organizado (Keller, 2005, p. 1070). A delimitao do conceito de organismo por meio de um processo de auto-organizao comea a apresentar problemas quando outros fenmenos passam a ser explicados por processos auto-organizativos, como, por exemplo, fenmenos fsicos como a formao de ciclones. Para delimitar o conceito de auto-organizao dentro de uma perspectiva biolgica, buscou-se descrever os seres vivos atravs da juno do conceito de auto-organizao a uma viso evolutiva. Uma das tentativas de unificar essas duas ideias, mediante a ampliao da teoria evolutiva, foi realizada por Kauffman (1993, 1995, 1997) o qual entende que a seleo natural uma fora atuante na evoluo dos seres vivos, mas no a nica. Para o autor, a complexidade encontrada, por exemplo, em uma clula pode ser decorrncia mais de um processo auto-organizado e espontneo do que de um processo seletivo. Nesse contexto, o papel do ambiente selecionar e manter sistemas complexos que apresentam uma ordem espontnea. A definio de organismo complexa e tem um longo caminho na Histria da Biologia, estando associada a conceitos como auto-organizao, causalidade circular e emergncia. Alm disso, o termo organismo utilizado em outras reas, como Filosofia, Histria, Sociologia e Economia, como uma forma de descrever as relaes entre partes e todo (Gutmann e Neumann-Held, 2000) e identificar a presena de uma organicidade que se remete coeso entre partes e todo encontrada em seres vivos. Justamente por ser um termo que faz referncia a um tipo de organizao que caracterstico dos seres vivos (quando se considera a auto-organizao somada ao contexto da evoluo biolgica), defende-se o conceito de organismo como estruturante do conhecimento biolgico. A utilizao da palavra organismo enfatiza aspectos de autonomia e a capacidade do sistema de criar significado (Ruiz-Mirazo e col., 2000, p. 210). Portanto, quando se utiliza o termo, fica subentendido que os seres vivos se diferenciam da matria inanimada pela forma como seus componentes (ou seja, as partculas fsico-qumicas) esto organizados, e no pelo tipo dos componentes. Pode-se alegar que a cincia atual tem dificuldade ao demarcar os limites desse tipo de organizao, pois, em

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2)


geral, busca um conceito nico que sirva para os vrios contextos biolgicos. Alm disso, as tentativas de categorizar os fenmenos naturais, muitas vezes, no levam em considerao a inexistncia de limites exatos na natureza, uma vez que as interaes moleculares variam desde interaes mais simples que ocorrem na matria inanimada at quelas complexas interaes que ocorrem nos seres vivos, sendo que a fronteira entre o no vivo e o vivo na histria evolutiva no est clara. Tambm importante evidenciar que um conceito de organismo uma representao que funciona na identificao e delimitao dos seres vivos a partir de uma determinada fundamentao terica, isto , funciona a partir da aceitao de uma determinada rede conceitual. Desse modo, buscou-se evidenciar alguns conceitos que tm sido enfatizados na delimitao dos seres vivos, tais como sistema, auto-organizao, autonomia, agncia, emergncia e fechamento organizacional, na tentativa de construir uma rede conceitual na qual possa ser explicitado um conceito de organismo1.

O conceito de organismo e o problema da auto-organizao biolgica


A elucidao do conceito de organismo est relacionada compreenso do conceito de sistema, o qual se refere percepo e/ou formao de um limite que determina os componentes, de tal maneira que possamos individuar o sistema como um conjunto de componentes que estabelecem certa estrutura de relaes, diferenciando-se de um ambiente externo ao sistema. Na base da constituio de um sistema, como o organismo, existe um fechamento organizacional, ou seja, a manuteno de relaes circulares entre as partes do sistema, que se sustentam mutuamente. a manuteno desse fechamento organizacional que permite reconhecer cada ser vivo como nico. Este fechamento no precisa ter, necessariamente, a natureza de uma diviso estanque e rgida entre organismo e ambiente: mais do que apontar uma fronteira estrutural que separa organismo e meio, podemos pensar num fechamento de processos (process closure) pertinentes ao organismo como um sistema. Podemos citar o fato, por exemplo, de que, apesar de um animal se modificar durante sua vida, existem relaes organizacionais que permitem no s distingui-lo do ambiente externo, como tambm reconhec-lo, apesar das transformaes, como sendo o mesmo organismo. Portanto, reconhece-se cada organismo como um sistema parcialmente aberto a trocas de energia, matria e informao, mas que se caracteriza pela manuteno de certas relaes de organizao ou por certo fechamento processual. O fechamento organizacional est relacionado ao
1 Os conceitos apresentados na explicitao do organismo so fundamentados na tese de doutorado da primeira autora (Meglhioratti, 2009) e na discusso realizada no captulo A centralidade do conceito de organismo no conhecimento biolgico e no ensino de biologia (Meglhioratti, El-Hani e Caldeira, 2009) do livro Ensino de Cincias e Matemtica II: Temas sobre formao de conceitos.

conceito de auto-organizao, ou seja, formao e organizao de uma estrutura ordenada a partir da interao das partes do prprio sistema. Moreno (2004) sustenta que os seres vivos tm uma forma particular de auto-organizao, a qual ele designa por autonomia coletivamente organizada. O termo autonomia utilizado para designar um sistema capaz de ser mantido de forma adaptativa, exercendo suas aes dentro de um ambiente varivel. A ideia de autonomia requer uma identidade distinta, pressupondo no somente a distino entre sistema e ambiente, mas tambm a possibilidade de esta distino ser realizada pelo prprio sistema. Para Moreno (2004), as primeiras formas autnomas poderiam ter surgido no ambiente pr-bitico, apresentando um grau elevado de autonomia, por serem sistemas extremamente fechados em si mesmos, mas limitados quanto possibilidade de aumento de complexidade. No entanto, para a evoluo de sistemas vivos diversificados, seria necessria a insero de sistemas autnomos individuais em redes de conexo com outros indivduos, da emergindo nveis superiores da organizao biolgica, como comunidades e ecossistemas. Decorre dessa explicao a ideia de autonomia coletivamente organizada, na qual os seres vivos constituem um tipo especial de autonomia, aberta evolutivamente, e no restrita ao mbito individual. Os organismos possuem uma conexo histrico-coletiva e esto inseridos em um meta-sistema mais amplo, permitindo a origem de sistemas ecolgicos capazes de reciclar componentes necessrios sustentao da organizao individual de base. Assim, ao preo da perda de uma autonomia completa no nvel individual, a meta-organizao biolgica permitiu a articulao de formas de vida de modo indefinidamente sustentvel. Etxeberria e Moreno (2007, p. 30) refinam o conceito de autonomia nos seres vivos mediante a associao da autonomia capacidade de agncia. Estes autores procuram diferenciar o que o sistema, o ser, e o que sua agncia, o fazer. Para eles, a identidade do sistema deve aparecer como uma organizao estvel da qual derivam aes para o exterior do sistema, devendo-se distinguir entre processos constitutivos e interativos. Essa distino por eles exemplificada mediante o fenmeno de bombeamento ativo de ons nas clulas: [...] o bombeamento ativo de ons necessrio para manter o funcionamento da clula (que, do contrrio, explodiria como consequncia de uma crise osmtica). Mas este bombeamento, que implica uma forma de trabalho, porque um transporte da clula contra um gradiente de concentrao, requer uma sub-organizao interna de diferentes reaes encadeadas. A clula mantm seu funcionamento graas ao bombeamento de ons (processo interativo), o qual requer um mecanismo interno (processo constitutivo), que, por sua vez, em escala temporal mais ampla, depende indiretamente da correta realizao do processo de bombeamento. Em outras palavras, ainda que, em ltima instncia, o fazer do sistema (re)genere recursivamente seu ser, tem de haver uma dupla escala temporal no processo, que permita falar de um sistema com

ib.usp.br/revista

10 Meglhioratti e col: O conceito de organismo em uma abordagem hierrquica e sistmica da biologia


identidade agencial. Este deve aparecer como uma forma de organizao mais complexa do que as aes que se produzem a cada momento. Se no for assim, estaramos diante de um processo meramente automantido, mais do que frente a um verdadeiro caso de autonomia. (Etxeberria e Moreno, 2007, p. 31) Etxeberria e Moreno (2007) consideram que um sistema autnomo deve possuir algum tipo de sub-organizao capaz de regular os fluxos de matria e energia entre o sistema e seu entorno, ou seja, para um sistema ser considerado autnomo, devem existir aes deste sobre o meio externo, configurando uma autonomia com capacidade agencial, ou, de modo mais breve, uma autonomia agencial. Os conceitos de autonomia e agncia discutidos auxiliam na delimitao de organismos em casos fronteirios, tais como os insetos sociais, no qual o conjunto de indivduos poderia ser considerado um superorganismo, j que cada indivduo tem uma funo especfica e h, inclusive, em muitas espcies uma separao entre organismos reprodutivos e organismos no reprodutivos. Quando se utiliza a perspectiva da agencialidade associada organizao hierrquica dos processos biolgicos, podem ser reconhecidos como organismos: [...] aqueles sistemas nos quais as relaes funcionais de suas partes integrantes formam um todo com um maior grau de integrao funcional do que a existente entre os sistemas que formam a unidade superior. (Etxeberria e Moreno, 2007, p. 34) Assim, no caso dos insetos sociais, possvel perceber maior integrao funcional, isto , a coeso na realizao de uma dada funo, entre os componentes que constituem a abelha do que entre as diferentes abelhas da colmeia. Portanto, o ncleo da autonomia agencial estaria no nvel da abelha individual, podendo esta ser considerada como o organismo. ns utilizada como base para o estabelecimento de trs nveis de organizao relativos s estruturas e aos processos biolgicos, tomando-se o organismo como nvel focal, o ambiente externo como nvel superior (entendendo como ambiente os fatores do meio externo que so relevantes para determinado organismo, no sentido proposto por Lewontin, 2002) e o ambiente interno como nvel inferior (incluindo, por exemplo, elementos tissulares, celulares e moleculares). Dessa forma, considera-se o organismo como ponto central da discusso, assumindo sua unidade e autonomia por meio das relaes engendradas pelos seguintes nveis: [ambiente externo (ecolgico/evolutivo) [organismo [ambiente interno (tissular/celular/molecular)]]]. A colocao do organismo no nvel focal deste modelo hierrquico reflete um posicionamento a favor de uma compreenso da biologia como uma cincia do organismo. Relacionada estrutura hierrquica da organizao biolgica, est a ideia de propriedades emergentes, ou seja, de propriedades observadas ao nvel de um sistema como um todo, que, embora relacionadas micro-estrutura do sistema, no so redutveis s propriedades e relaes das partes do sistema (El-Hani e Emmeche, 2000; El-Hani, 2002; El-Hani e Queiroz, 2005). Assim, em um sistema complexo como o organismo, novas propriedades surgem especificamente no nvel do sistema como um todo, por exemplo, um determinado comportamento animal, no podendo este ser explicado apenas pela anlise da constituio e dos mecanismos moleculares. Tomando como exemplo um organismo unicelular, seu padro organizacional emergente depende das interaes ocorridas no nvel imediatamente inferior (interaes moleculares) e no nvel imediatamente superior (restries impostas pelos regimes seletivos e por outros fatores evolutivos, ao longo da evoluo do organismo e, no tempo ecolgico, por suas interaes com o ambiente fsico-qumico e com outros organismos). Entretanto, o organismo unicelular no deve ser compreendido apenas como ponto de encontro entre os nveis inferior e superior. O organismo caracterizado por sua autonomia e agncia, o que implica que ele tem regras prprias e flexibilidade na interao com o meio externo, agindo sobre este e modificando-o, no podendo ser considerado apenas um ente passivo.

Uma abordagem hierrquica do conceito de organismo


A concepo de uma autonomia agencial relativa ao nvel do organismo individual e de sua insero em nveis superiores de organizao pode ser modelada por meio de uma hierarquia escalar, tal como proposta por Salthe (1985). Este autor estabelece uma estrutura organizativa para a compreenso de um determinado fenmeno de interesse baseada em trs nveis escalares de complexidade: o nvel superior (que estabelece condies de contorno para as entidades e os processos que ocorrem no nvel focal); o nvel focal (no qual se encontram as entidades e processos de interesse); e o nvel inferior (que gera as interaes das quais emergem as entidades e os processos envolvidos no fenmeno de interesse, ou seja, so as condies iniciadoras de tais processos e entidades). Para representar essa estrutura hierrquica, pode-se utilizar a seguinte notao: [nvel superior [nvel focal [nvel inferior]]]. A representao hierrquica de Salthe (1985) por

Explicitando o conceito de organismo em uma abordagem hierrquica e sistmica da biologia


Os conceitos discutidos anteriormente se relacionam em uma rede conceitual que permite a explicitao do conceito de organismo em uma abordagem sistmica e hierrquica do conhecimento biolgico. Esta rede conceitual est sintetizada nos itens a seguir, que apresentam uma compreenso do organismo como: Sistema complexo, com fechamento organizacional (de processos) resultante de relaes circulares entre as partes do sistema, conferindo coeso ao sistema e gerando um limite dinmico que separa o sistema do ambiente externo. As relaes circulares e o fechamento organizacional, gerados dentro do prprio sistema, so tratados como

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2)


partes de um processo auto-organizado. Os seres vivos apresentam um tipo particular de auto-organizao chamada de autonomia agencial, ou seja, a identidade do sistema aparece como uma organizao estvel da qual derivam aes para o exterior do sistema. O agente autnomo, ou seja, o organismo, definido mediante uma perspectiva hierrquica, sendo considerado o nvel do organismo aquele que apresenta maior integrao funcional quando comparado aos nveis superiores de organizao. No nvel orgnico, aparecem propriedades irredutveis s propriedades e relaes de suas partes. Portanto, os organismos apresentam propriedades emergentes, cuja irredutibilidade deve ser entendida em termos de sua no-dedutibilidade das propriedades que as partes exibem em estruturas relacionais mais simples (El-Hani e Queiroz, 2005). As prprias aes dos organismos acontecem no nvel orgnico, portanto, a capacidade de agncia pode ser considerada uma propriedade emergente desse nvel de organizao hierrquica. Os organismos esto integrados em nveis hierrquicos superiores de organizao, tais como populaes, comunidades e ecossistemas. A insero nesses nveis tem grande influncia sobre a manuteno do nvel orgnico. Nestes termos, os organismos podem ser concebidos como unidades autnomas coletivamente organizadas, inseridos em processos ecolgicos e evolutivos que so fundamentais para a sua manuteno. Os termos destacados nos itens acima evidenciam a relao conceitual entre eles e, assim, como eles se justificam mutuamente. Estes diferentes conceitos podem ser integrados na seguinte formulao do conceito de organismo: um organismo uma unidade autnoma com capacidade de agncia, coletiva e evolutivamente construda, e possuindo propriedades que emergem no nvel orgnico.

11

Consideraes finais
O destaque dado capacidade de agncia na formulao do conceito apresentado permite compreender o organismo como tendo um papel ativo no seu ambiente, contrapondo-se viso do mesmo como ente passivo, tal como encontramos tanto numa abordagem reducionista da biologia, quanto, de modo geral, na teoria sinttica da evoluo.

Agradecimentos
O desenvolvimento do trabalho foi parcialmente financiado pela CNPq.

Contribuio dos autores


O trabalho fundamenta-se na tese de doutorado da primeira autora, com co-orientao do segundo autor e orientao da terceira autora.

Referncias
El-Hani CN. 2002. Uma cincia da organizao viva: organicismo,

emergentismo e ensino de biologia. In: Silva Filho W, organizador. Epistemologia e ensino de cincias. Salvador: Arcdia 199-242. El-Hani CN e Emmeche C. 2000. On some Theoretical grounds for an organism-centered biology: property emergence, supervinience and downward causation. Theory in Biosciences 119: 234-275. El-Hani CN e Queiroz J. 2005. Modos de irredutibilidade das propriedades emergentes. Scientiae Studia 3 (1): 9-41. Etxeberria A e Moreno . 2007. La Idea de autonomia em biologia. Logos. Anales del Seminrio de Metafsica 40: 21-37. Feltz B. 1995. Le rductionnisme em biologie. Approches historique et pistemologique. Revue Philosophique de Louvain 93: 9-32. Goodwin B. 1994. How the Leopard Changed its Spots: the evolution of complexity. New York: Touchstone. Gutmann M e Neumann-Held E. 2000. The theory of organism and the culturalist foundation of biology. Theory in Biosciences 119: 276-317. Kant I. 1914 [1892]. The critique of judgment. Traduo, introduo e notas J. H. Bernard. 2ed. revisada. London: Macmillan. Disponvel em: http://oll.libertyfund.org/ EBooks/Kant_0318.pdf Acesso em 30 de maro de 2011. Kauffman SA. 1993. The origins of order: self-organization and seletion in evolution. New York: Oxford: Oxford University Press. Kauffman SA. 1995. At home in the universe: the search for the laws of self-organization and complexity. New York: Oxford: Oxford University Press. Kauffman SA. 1997. O que vida?: Schrdinger estava certo? In: Murphy MP e ONeill LAJ, organizadores. O que vida? 50 anos depois. Especulaes sobre o futuro da biologia. So Paulo: Editora da UNESP 101-136. Keller EF. 2005. The century beyond the gene. Journal of Biosciences 30: 3-10. Lewontin R. 1978. Adaptation. Scientific American 249: 212-222. Lewontin R. 2000. Biologia como ideologia: a doutrina do DNA. Ribeiro Preto: FUNPEC-RP. Lewontin R. 2002. A tripla hlice: gene, organismo e ambiente. So Paulo: Companhia das Letras. Meglhioratti FA. 2009. O conceito de organismo: uma introduo epistemologia do conhecimento biolgico na formao de graduandos de biologia. Tese (Doutorado em Educao para a Cincia) UNESP/Bauru, Faculdade de Cincias. Meglhioratti FA, El-Hani CN e Caldeira AMA. 2009. A centralidade do conceito de organismo no conhecimento biolgico e no ensino de biologia. In: Caldeira AMA, organizadora. Ensino de Cincias e Matemtica II: Temas sobre formao de conceitos. So Paulo: Cultura Acadmica 33-52. Moreno A. 2004. Auto-organisation, autonomie et identit. Revue Internationale de Philosophie 2: 135-150. Pepper JW e Herron MD. 2008. Does Biology Need an Organism Concept? Biological Reviews 83 (4): 621627. Ruiz-Mirazo K, Etxeberria A, Moreno A e Ibanez J. 2000. Organisms and their place in biology. Theory in biosciences 119 (3-4): 209-233. Salthe S. 1985. Evolving hierarchical systems: their structure and representation. New York: Columbia University Press. Seplveda C, Meyer D e El-Hani CN. 2011. Adaptacionismo. In: Abrantes PC, organizador. Filosofia da Biologia. Porto Alegre: Artmed 162-192. Webster G e Goodwin BC. 1999. A Structuralist Approach to Morphology. Rivista di Biologia 92: 495-498.

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2): 12-15


DOI: 10.7594/revbio.09.02.03

Artigo

As concepes evolutivas de Darwin sobre a expresso das emoes no homem e nos animais
Fernando Moreno Castilho1, Lilian Al-Chueyr Pereira Martins2
1 2

Darwins evolutionary conceptions on the expression of emotions in man and animals


Departamento de Cincias Biolgicas, Centro Universitrio Anhanguera Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia Cincias e Letras, Universidade de So Paulo, Campus Ribeiro Preto
Contato dos autores: 1biologo@universo.com, 2lacpm@ffclrp.usp.br Resumo. O trabalho mais conhecido de Charles Darwin o Origem das espcies (1859). No entanto, nesta obra ele no lidou com o homem. Ele fez isso em duas outras obras: The descent of man (1871) e The expression of emotions in man and animals (1872). O objetivo deste artigo discutir algumas concepes evolutivas presentes nessas duas obras bem como alguns de seus antecedentes. Este estudo levou concluso de que embora Darwin considerasse a seleo natural como um importante meio de modificao em relao expresso das emoes no homem e nos animais, enfatizou o papel da herana de caracteres adquiridos pelo uso e desuso em relao a este assunto.Palavras-chave. Histria da Evoluo, Charles Darwin, expresso das emoes no homem e animais. Abstract. Charles Darwins most known work is the Origin of species. However in such book, he did not deal with man. So he did in two other books: The descent of man and The expression of emotions in man and animals. This article aims to discuss some evolutionary conceptions present in these two works, as well as its background. This study led to the conclusion that although Darwin considered natural selection as being an important way of modification concerning the expression of emotions in man and animals, he stressed the role of the inheritance of acquired characteristics by use and disuse in relation to this subject. Keywords. History of Evolution, Charles Darwin, expression of emotions in man and animals. Recebido 05nov11 Aceito 01dez11 Publicado 15dez12

Introduo
Dentre os trabalhos de Charles Robert Darwin (18091882), o Origem das espcies (1859) o mais conhecido. Entretanto, nesta obra ele no lidou com o homem. Ele tratou deste assunto em duas publicaes posteriores: a Origem do homem e a seleo sexual (1871) e a Expresso das emoes no homem e nos animais (1872). A anlise da Origem das espcies mostra que nesta obra Darwin apresentou como principal meio de modificao das espcies a seleo natural. Entretanto, sugeriu tambm outras possibilidades, tais como a seleo sexual e a herana de caracteres adquiridos pelo uso e desuso, por exemplo (Martins, 2006, pp. 263-264; Carmo, 2006). Bem menos conhecida que a Origem das espcies, A expresso das emoes no homem e nos animais composta por 13 captulos. Neles, Darwin tratou dos princpios gerais da expresso, os meios de expresso nos animais, as expresses especiais de animais, expresses especiais do homem: sofrimento e choro; desnimo, ansiedade, tris-

teza, abatimento e desespero; alegria, bom humor, amor, sentimentos de ternura e devoo; reflexo, meditao, mau humor, amuo e determinao; dio e raiva; desdm, desprezo, nojo, culpa, orgulho, desamparo, pacincia, afirmao e negao; surpresa, espanto, medo e horror; preocupao consigo mesmo, vergonha, timidez e modstia. Ele apresentou descries detalhadas de expresses manifestadas mediante situaes comportamentais que observara, ou relatadas por seus correspondentes, acompanhadas de figuras, gravuras e fotografias, utilizadas para reforar seus argumentos (Castilho, 2010, pp. 5-6). Segundo Alfred Russel Wallace (1823-1913), nesta obra Darwin apresentou de modo sistemtico o resultado de suas investigaes feitas a partir da observao das paixes e emoes nos animais sobre as causas dos fenmenos mais variados e complexos apresentados pelos seres vivos, reconhecendo os fatores fisiolgicos e psicolgicos envolvidos nos inmeros movimentos complexos e contraes musculares (Wallace, 1873, p. 113). Ele assim descreveu o livro:

Revista da Biologia (2012) 9(2)


O livro est ilustrado admiravelmente, tanto por xilogravuras como por uma srie de fotografias que representam as expresses mais caractersticas. Est escrito com toda clareza e preciso habituais do autor, e embora algumas partes sejam um pouco maantes, considerando a quantidade de detalhes diminutos, h no todo um tanto de observao aguda e anedota engraada, talvez para torn-lo mais atraente para os leitores em geral, mais do que qualquer um dos trabalhos anteriores do Sr. Darwin. (Wallace, 1873, p. 118) Ao que tudo indica, a motivao para investigar a expresso das emoes foi a leitura de uma obra do anatomista Charles Bell (1774-1842) Segundo este autor, determinados msculos do homem existiam apenas para a expresso das emoes. Como para Darwin esta viso se opunha hiptese de que o homem descendia de alguma forma inferior, resolveu analis-la (Darwin, 1871, vol. 1, p. 5). O objetivo deste artigo discutir sobre os aspectos evolutivos apresentados por Darwin em relao expresso das emoes no homem e animais bem como sobre alguns de seus antecedentes.

13

acima das sobrancelhas e ao redor da boca; algumas dessas expresses chegam a ser praticamente as mesmas, como o choro de certos tipos de macacos e a risada de outros, durante a qual os cantos da boca so repuxados para trs e as plpebras franzidas. (Darwin, 1871, vol. 1, p. 191)

Dificuldades envolvidas no estudo da expresso no homem


Darwin tinha conscincia das dificuldades envolvidas em detectar a origem dos hbitos de expresso dos sentimentos humanos e o modo pelo qual eles teriam sido adquiridos gradualmente atravs de certos movimentos musculares. Em primeiro lugar, os movimentos eram muito lentos, sutis e duravam pouco. Outro problema encontrado consistia em determinar at que ponto as mudanas de traos ou gestos expressavam realmente determinados estados de esprito (Darwin, 1872, pp. 19-20). Para superar essas dificuldades o naturalista ingls props a observao de crianas, j que estas mostravam diversas emoes, e de loucos, que mostravam suas paixes de forma descontrolada. Sugeriu tambm a consulta a pessoas cultas de ambos os sexos e de diferentes faixas etrias e de observao de fotografias e gravuras de grandes mestres da pintura e escultura. Props ainda a observao de gestos e expresses de raas humanas que tinham tido pouco contato com os europeus, alm das expresses encontradas nos animais mais conhecidos. Considerou que a adoo destes procedimentos reduziria a possibilidade de cometer enganos no reconhecimento de alguns tipos de expresso, evitando que o observador fosse levado pela imaginao e proporcionaria uma base mais segura para se fazer uma generalizao das causas dos movimentos de expresso (Darwin, 1872, pp. 14-18).

Semelhanas encontradas entre expresses apresentadas pelo homem e alguns animais


Um ano antes de publicar A expresso das emoes no homem e nos animais, Darwin apresentou diversos argumentos favorveis descendncia do homem a partir de formas inferiores. Por exemplo, o fato de certas expresses de felicidade mostradas por filhotes de ces, gatos e carneiros serem idnticas s expresses exibidas por crianas que esto brincando juntas (Darwin, 1871, vol. 1, p. 37). O naturalista ingls deu vrios exemplos da expresso de emoes que podiam ser detectadas tanto nos animais como no homem, tais como: mau-humor e a boa disposio de ces e cavalos; a tendncia a manifestar fria por parte de certos animais; a vingana arquitetada por diversos animais; o amor e o carinho de um co para com o seu dono na agonia da morte; a afeio materna das fmeas de todas as espcies; a dor intensa das macacas pela perda dos filhotes; a adoo de macacos rfos pelos outros do bando; a generosidade de certas fmeas de babunos ao adotarem macacos de outras espcies, alm de roubarem cezinhos e gatinhos para criar. A partir desses exemplos, Darwin argumentou que o princpio de sua ao seria o mesmo no homem e nos animais. Outras expresses de emoes como terror e medo, seriam abordadas mais tarde em captulos do seu livro dedicado ao estudo da expresso das emoes (Darwin, 1871, vol. 1, pp. 40-41; Castilho, 2010, pp. 43-44). Ao comparar as feies de humanos com as feies de macacos antropides, constatou que havia semelhanas na expresso das emoes em relao movimentao dos msculos da face. Ele explicou: Diversas emoes so manifestadas por movimentos quase similares dos msculos e da pele, especialmente

O estudo das expresses e gestos nas raas humanas de nativos


Em 1867, com o intuito de estudar as expresses e gestos nas raas humanas de nativos, Darwin divulgou um folheto impresso intitulado Queries about expression (Questes sobre a expresso). Neste, ele apresentou uma srie de questes que havia elaborado e o enviou para pessoas que estavam em contato com povos primitivos em diferentes regies do mundo, tais como missionrios ou protetores de aborgenes. Recebeu desses ltimos um total de 36 respostas, que considerou valiosas devido s circunstncias em que tinham sido obtidas. Reproduziu as questes cujas respostas serviram de base para a elaborao da Expresso das emoes no homem e nos animais (Castilho, 2010, p. 37). As questes foram as seguintes: 1. Exprime-se a surpresa pelo arregalar dos olhos e da boca e pela elevao das sobrancelhas? 2. A vergonha produz enrubescimento, quando a cor da pele nos permite perceb-lo? Se sim, at onde desce pelo corpo? 3. Quando um homem est indignado ou desafiador, ele franze o cenho, mantm cabea e corpo erguidos, apruma os ombros e cerra os punhos?

ib.usp.br/revista

14

Castilho e Martins: Darwin e a expresso das emoes no homem e nos animais


1871, vol. 1, pp. 232-233). Darwin aventou a possibilidade de que algumas aes humanas executadas inicialmente de forma consciente, tivessem sido convertidas, pela fora do hbito e da associao, em aes reflexas. Estas teriam sido herdadas e fixadas firmemente, sendo executadas quando houvesse um estmulo para isso ou quando as mesmas causas que originalmente as haviam provocado reaparecessem, mesmo quando no tivessem a menor utilidade. Seriam executadas de forma inconsciente pela ao das clulas nervosas sensitivas que excitariam nossas clulas motoras. Como exemplo, comentou que o espirro e a tosse poderiam ter sido adquiridos em um perodo muito remoto atravs do hbito de expelir violentamente partculas irritantes das vias areas e que com o tempo teriam se tornado inatos e teriam sido convertidos em aes reflexas para quase todos os quadrpedes superiores (Darwin, 1872, pp. 41-42). Nesse caso, o mecanismo seria a herana de caracteres adquiridos pelo uso e desuso (Castilho, 2010, p. 47). De acordo com Darwin, os movimentos violentos difundidos sem direo pelas primeiras clulas nervosas afetadas, como os dos rgos vocais responsveis pela fala e que produzem o grito, teriam sido adquiridos atravs do antigo hbito consciente de que a utilizao do esforo muscular expressivo para tentar escapar do sofrimento aliviaria a dor (Darwin, 1872, pp. 76-77). Ele comentou: As aes reflexas esto sujeitas a pequenas variaes, como todas as estruturas corpreas e instintos; e toda variao que fosse benfica e suficientemente importante tenderia a ser preservada e herdada. Portanto, aes reflexas, uma vez adquiridas para uma finalidade, podem depois ser modificadas independentemente da vontade e do hbito, para servir a outra finalidade. Tais casos fariam paralelo com aqueles que, temos todas as razes para acreditar, ocorreram com muitos instintos; pois, se alguns instintos foram desenvolvidos simplesmente por um longo e hereditrio hbito, outros, altamente complexos, o foram por meio da preservao de variaes de instintos preexistentes ou seja, por meio da seleo natural (Darwin, 1872, pp. 43-44). Desse modo, Darwin props dois mecanismos evolutivos que atuariam em relao expresso das emoes do homem e animais: a herana de caracteres adquiridos pelo uso e desuso e a seleo natural. Entretanto, na maior parte dos exemplos apresentados nas duas obras analisadas, recorreu herana de caracteres adquiridos pelo uso e desuso.

4. Quando se concentra ou tenta resolver algum problema, ele franze o cenho ou enruga a pele abaixo das plpebras inferiores? 5. Quando abatido, desce os cantos da boca e eleva a extremidade interna das sobrancelhas pela ao desse msculo que os franceses apelidaram de msculos de sofrimento? Nesse estado, as sobrancelhas fazem-se levemente oblquas, com um pequeno inchao em sua extremidade medial; e o meio da testa fica enrugado, no toda a sua extenso, como quando se elevam as sobrancelhas exprimindo surpresa? 6. Quando satisfeito, brilham seus olhos, enruga-se a pele em volta destes e retraem-se os cantos da boca? 7. Quando um homem olha para outro com desprezo ou ironia, ergue-se o canto do lbio superior por sobre o canino do lado pelo qual ele o est encarando? 8. Pode uma expresso de obstinao e tenacidade ser reconhecida principalmente pela boca firmemente fechada, pelo cenho baixo e pelas sobrancelhas levemente franzidas? 9. O desdm exprimido por uma leve protruso dos lbios e discreta expirao com o nariz empinado? 10. Manifesta-se o nojo virando-se o lbio inferior para baixo e elevando-se levemente o lbio superior com uma sbita expirao, como um vomitar incipiente ou cuspir? 11. O medo extremo expresso aproximadamente da mesma maneira que o fazem os europeus? 12. O riso pode chegar ao extremo de fazer com que lacrimejem os olhos? 13. Quando um homem quer demonstrar que no pode impedir algo ou que ele mesmo no consegue fazer alguma coisa, ele encolhe os ombros, vira para dentro os cotovelos e estende as mos para fora com as palmas abertas; e as sobrancelhas so erguidas? 14. As crianas, quando emburradas, fazem bico ou protraem fortemente os lbios? 15. Expresses de culpa, malcia ou cime podem ser reconhecidas, ainda que eu no consiga defini-las? 16. Balana-se a cabea verticalmente na afirmao e horizontalmente na negao? (Darwin, 1872, pp. 16-17). Alm das respostas do questionrio enviadas pelos seus colaboradores, Darwin, baseou-se tambm nas informaes obtidas em livros de viagens escritos por outros naturalistas (Darwin, 1872, p. 23).

As concluses de Darwin
Baseando-se em suas prprias observaes, bem como naquelas feitas por outros autores com os quais tinha um contato mais prximo ou se correspondia, aos quais deu o devido crdito, Darwin tirou algumas concluses. A seu ver, devido grande semelhana existente entre as expresses faciais e os gritos inarticulados emitidos pelo homem e pelos animais quando expostos s mesmas condies, essas caractersticas teriam sido adquiridas, provavelmente, como herana de alguma forma silvestre de parentesco prximo, o que se harmonizava com sua tese da descendncia de um ancestral comum (Darwin,

Agradecimentos
Os autores agradecem Secretaria de Educao do Estado de So Paulo, ao CNPq e FAPESP. Artigo baseado na dissertao de mestrado de FM Castilho. LAP Martins bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.

Referncias
Carmo VA. 2006. Concepes evolutivas de Charles Darwin no Origin of species e de Alfred Russel Wallace em Darwinism: um estudo comparativo. Dissertao. [Mestrado em

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2)


Histria da Cincia] Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Castilho FM. 2010. Concepes evolutivas de Charles Darwin na Origem das espcies (1859) e na Expresso das emoes no homem e nos animais (1872): um estudo comparativo. Dissertao. [Mestrado em Histria da Cincia] Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Darwin C. 1859. On the origin of species by means of natural selection. London: John Murray. Darwin C. 1871. The descent of man, and selection in relation to sex. Vol. 1. London: John Murray. Disponvel em: http:// darwin-online.org.uk Acesso em setembro 2011. Darwin C. 1872. The expression of the emotions in man and animals. London: John Murray. Disponvel em: http:// darwin-online.org.uk/ Acesso em setembro de 2011. Martins LACP. 2006. Materials for the study of variation de William Bateson: um ataque ao Darwinismo? In: Martins LACP, Regner ACKP e Lorenzano P. Cincias da vida: estudos filosficos e histricos. Campinas: AFHIC 259282 Wallace AR. 1873. [Review of] The expression of the emotions in man and other animals by Charles Darwin. Quarterly Journal of Science 3 (37): 113-118. Disponvel em http:// www.darwin-online.org.uk/ Acesso em setembro 2011.

15

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2): 16-19


DOI: 10.7594/revbio.09.02.04

Artigo

Moneras e individualidade biolgica: alguns elementos do conceito de monera de Ernst Haeckel


Moneras and biological individuality: some elements of the concept of monera of Ernst Haeckel
Guilherme Francisco Santos
Departamento de Filosofia, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo
Contato do autor: guilherme.fsantos@usp.br Resumo. Ernst Haeckel formulou e desenvolveu uma proposta de morfologia evolucionista na qual ocupa um lugar central o conceito de monera. As moneras so para ele os organismos mais simples e primitivos, a partir dos quais possvel investigar a passagem do inorgnico ao orgnico, as bases iniciais para toda a evoluo e desenvolvimento dos seres vivos e o aparecimento da individualidade orgnica. Apresentamos neste artigo alguns dos elementos centrais do conceito de monera de Haeckel e algumas questes relativas sua noo de individualidade sob a luz dos seus estudos sobre moneras. Palavras-chave. Moneras, Ernst Haeckel, morfologia evolutiva, gerao espontnea, individualidade orgnica. Abstract. Ernst Haeckel formulated and developed a proposal for the evolutionary morphology in which the concept of monera occupies a central place. The moneras are to him the simplest and most primitive organisms, from which it is possible to investigate the transition from inorganic to the organic, the initial basis for the whole evolution and development of living beings and the emergence of organic individuality. In this paper are presented some of the central elements of the Haeckels concept of monera and some issues relating to his concept of organic individuality in the light of his studies of moneras. Keywords. Moneras, Ernst Haeckel, evolutionary morphology, spontaneous generation, organic individuality. Recebido 06nov11 Aceito 25nov11 Publicado 15dez12

Ernst Haeckel (1834-1919) foi um bilogo alemo cujo pensamento exerceu profunda influncia no cenrio cientfico e intelectual da segunda metade do sculo XIX e do incio do sculo XX. Tal influncia foi devida especialmente sua original concepo morfolgica e sua profunda e incansvel defesa do evolucionismo e do monismo. Haeckel buscou construir uma teoria biolgica geral que conjugava, por um lado, o seu prprio desenvolvimento de uma srie de noes da tradio morfolgica, a qual tinha como algumas de suas expresses principais as formulaes dos Naturphilosophen alemes e de Goethe, e, por outro lado, o evolucionismo e o darwinismo nascente. Um dos conceitos constitutivos da morfologia evolucionista de Haeckel o conceito de monera. Dentro de seu grande projeto, a noo de monera ocupa um papel central, pois direciona e influencia a construo de suas teorias biolgicas em aspectos e temas variados, tais como a gerao espontnea, a individualidade biolgica e a dinmica da evoluo geral dos organismos1. Procuraremos
1 Na obra contempornea de Blsche, temos um relato biogrfico sobre Haeckel e uma descrio geral de sua obra onde se expe o conceito de monera haeckeliano e o lugar por ele ocu-

apresentar a seguir o sentido geral e alguns dos aspectos principais do conceito de monera de Haeckel, salientando, ao final, a questo da individualidade biolgica2.
pado em sua teoria (Blsche, 1891, ver principalmente o captulo sobre a Morfologia Geral, p. 172-251). Numa obra recente, Richards nos apresenta uma anlise e interpretao da vida e da obra de Haeckel na qual o conceito de monera discutido no quadro da sua proposta de uma morfologia evolucionista (Richards, 2008, ver a seo Haeckels Darwinism, especialmente p. 137-40). 2 Dentro da sua proposta de representao do sistema evolutivo dos seres vivos atravs de rvores genealgicas, Haeckel incluiu as moneras na base do reino neutro dos protistas, criado por ele ao lado dos reinos animal e vegetal. Nesse reino dos protistas, as moneras constituem a primeira de suas oito divises (Haeckel, 1866, II, p. xxii e xxiii). Do ponto de vista dos organismos diretamente observados que integravam tal diviso, destacam-se as cromceas (cianofceas ou cianobactrias) e as bactrias (Haeckel, 1904, p. 192-201). importante observar ainda, como procuraremos mostrar adiante nesse artigo, que o conceito de monera de Haeckel em sentido amplo transcende a noo de organismos individuais pr-celulares, isto , no nucleados, e inclui a noo de ser vivo pr-individual, como seria o

Revista da Biologia (2012) 9(2)


As moneras so, segundo Haeckel, seres vivos cujo corpo se constitui de uma simples massa homognea e no estruturada de protoplasma. Haeckel destacou na sua obra fundamental de 1866, a Morfologia Geral, e reafirmou em sua Monografia das Moneras de 1868, que ele aplica o termo monera aos seres vivos que exibem uma simplicidade morfolgica extrema. Trata-se das formas orgnicas no seu mais baixo estado de organizao, pois todo o seu corpo, numa condio de desenvolvimento pleno e movimento livre, consiste de uma substncia plenamente homognea e sem estrutura, uma poro viva de albumina capaz de realizar a nutrio e a reproduo (Haeckel, 1869 [1868], p. 28). Essa poro de albumina que se mantm em unio constante tem uma forma externa irregular e mutvel, mas globular quando em repouso; internamente no se detectam partes dissimilares. Haeckel explica que: Na realidade, todos os outros seres vivos, todos os animais e todos os vegetais e mesmo os protistas esto formados de elementos heterogneos. Mesmo os mais simples destes, as formas unicelulares, consistem de duas partes distintas, o protoplasma e o ncleo celular. Apenas nas moneras est ausente esta complexidade [...] Todas as funes da existncia, nutrio e reproduo, sensao e locomoo, se efetuam para essas moneras sem que as distintas partes tenham sido diferenciadas em virtude dos diferentes processos. Cada partcula do corpo de uma monera pode efetuar tudo o que efetua o conjunto do seu organismo. (Haeckel, 1919 [1876], p. 26) Na medida em que as moneras consistem meramente de massa protoplasmtica, Haeckel cr que elas representam o estado mais elementar da vida. Haeckel desenvolveu na Monografia das Moneras diversas descries dessas massas mucosas (Schleimmasse) de protoplasma segundo os estados que elas podem assumir (Haeckel, 1868, p. 93 e segs). Como mera massa de protoplasma, o carter principal das moneras de ordem fisiolgica, j que apesar da ausncia de estruturas, elas so capazes de nutrio e reproduo. A simplicidade das moneras permite diferenci-las claramente das clulas (e, portanto, dos organismos unicelulares), j que essas ltimas possuem corpos complexos dotados de estruturas definidas (ncleo, citoplasma e membrana). Segundo ele, a forma das moneras corresponde, de modo geral, de clulas no nucleadas, que ele chamou de ctodos. Apesar de reunir as clulas (nucleadas) e os ctodos (no nucleados) sob a designao comum de plastdeos3, Haeckel enfatizar essa
caso do Bathibius referido adiante. 3 Vale observar que o termo plastdeo aplicado por Haeckel para se referir a um conceito especfico, que no mantm relao direta com o modo como tal termo atualmente aplicado em biologia. Para Haeckel, plastdeos [plastiden] so as clulas e ctodos (clulas no nucleadas), isto , as unidades morfolgicas fundamentais ou, como ele se refere, organismos de primeira ordem (Haeckel, 1866, I, p. 49). Ele est assumindo em grande parte aqui a tese da teoria celular quanto composio dos organismos complexos por clulas, mas incluindo nela algumas clusulas, dentre as quais a de que essas unidades orgnicas fundamentais no so necessariamente nucleadas (Haeckel, 1904, p.

17

distino fundamental de estrutura e as imensas consequncias da advindas. As extensas pesquisas realizadas por Haeckel com as moneras e a sua noo de continuidade no processo do desenvolvimento orgnico reafirmaram a sua viso de que a base do fenmeno vital a atividade fisiolgica, independente da diferenciao estrutural. Nesses verdadeiros organismos sem rgos (Haeckel, 1889 [1868], p. 426), colocava-se em evidncia a propriedade fundamental do vivente, ou seja, a atividade ou dinamismo fisiolgico (Haeckel, 1866, I, p. 135). Haeckel destacou a importncia de compreender as caractersticas e propriedades da substncia plasmtica que constitua as moneras e de conceber esse plasma homogneo das moneras como o gerador de toda a atividade orgnica. Para Haeckel, o plasma a substncia viva, a base material das manifestaes vitais orgnicas. Ele observa que, considerando o protoplasma sob o ponto de vista qumico, Max Schultze (1825-1874) pde demonstrar a importncia e generalidade do plasma, produzindo assim uma reforma na teoria celular. Assumindo o ponto de vista de Schultze, Haeckel explica que h uma confuso entre o conceito qumico e o conceito morfolgico de protoplasma: Essa confuso provm de no ter sido formulada com clareza a oposio entre as duas partes essenciais componentes da noo moderna de clula, o ncleo e o corpo celular. O ncleo interno pareceu ser um elemento slido, formado e determinado morfologicamente. Ao contrrio olhava-se a massa mole [...] como um elemento amorfo e somente definvel quimicamente. S mais tarde se reconheceu que a composio qumica do ncleo muito prxima da do corpo da clula, e que se encarou o carioplasma do primeiro e o citoplasma do segundo como formas de uma substncia nica, o plasma. Todas as outras substncias que se encontram num organismo vivo apenas so produtos e derivados desse plasma ativo. (Haeckel, 1963 [1904], p. 128) Por isso, para Haeckel, as partes da clula so rgos especializados voltados a funes especficas da atividade orgnica e, portanto, estruturas derivadas do processo de evoluo e originadas de um organismo mais elementar cujo corpo constitui-se unicamente de protoplasma homogneo (Haeckel, 1963 [1904], p. 192). E a clula como a unidade formada por protoplasma e ncleo um desenvolvimento posterior, fruto da diviso de trabalho em partes diferenciadas. Desse modo, segundo Haeckel, pode-se afirmar que o fenmeno vital est localizado em ltima instncia no protoplasma e no na clula. Essa noo de plasma que ele assume tem consequncias diretas em sua concepo evolutiva e em sua viso da gerao espontnea. O plasma definido por suas caractersticas fsicas e qumicas e por sua atividade, as quais so devidas aos modos especiais como se ligam nela elementos da matria ordinria, principalmente devido s propriedades do carbono. Por outro lado, esta massa indiferenciada de proto158-160).

ib.usp.br/revista

18 Santos: Moneras e individualidade biolgica: alguns elementos do conceito de monera de Ernst Haeckel
plasma representaria a matria orgnica, ou matria viva elementar e inicial. Desse modo, por meio de sua extrema simplicidade e de suas capacidades, seria possvel entrever nas moneras tanto a base dos fenmenos vitais em geral como o ponto de passagem evolutivo do inorgnico ao orgnico, isto , a base ancestral de toda a evoluo posterior dos seres vivos. Por isso, Haeckel afirmou que: Pela homogeneidade absoluta da substncia albuminide, pela falta completa de partes diferenciadas, aproximam-se mais as moneras dos seres inorgnicos do que dos organismos e formam evidentemente a transio entre o mundo orgnico e o inorgnico, o que se conforma com a hiptese da gerao espontnea. (Haeckel, 1930 [1879], p. 309) Para Haeckel, a gerao espontnea tem o valor de um postulado lgico da histria natural cientfica que prescinda totalmente da criao como ato extraordinrio ou extranatural. Ele buscou reafirmar a tese de uma linha de continuidade entre o inorgnico e o orgnico estudando a constituio e as propriedades dos seres vivos de maior simplicidade, buscando encontrar neles traos comuns e vias de ligao com a matria inorgnica. Nessa direo, a extrema simplicidade das moneras foi concebida como um indicador desse caminho de transio. As caractersticas comuns verificadas levaram-no a afirmar que as moneras nasceram diretamente da matria inorgnica por autogonia e que, portanto, elas so o ponto de partida da origem da vida (Haeckel, 1880 [1868], II, p. 41). H uma variao na noo de monera de Haeckel que podemos caracterizar at certo ponto como uma ambivalncia de sentidos do termo, mas que marca, de fato, uma distino conceitual relevante. Tal variao verificada no tratamento alternado que Haeckel dispensa noo de monera, referindo-a tanto como indivduo orgnico original quanto como matria orgnica original. A monera ora tratada por Haeckel como o plastdeo original (o ctodo) ora identificada como a simples massa protoplasmtica primordial, no individualizada. Nos dois casos, a noo de monera se aplica a seres vivos fundamentais, mas, no primeiro caso, Haeckel identifica as moneras como as unidades orgnicas equivalentes aos ctodos (clulas sem ncleo) e, portanto, sem diferenciao estrutural interna, cujo corpo formado simplesmente por protoplasma. J no segundo caso, ele concentra-se na prpria matria vital bsica, o protoplasma, independente de qualquer individuao, ou seja, num estgio to inicial do fenmeno vital que o ser vivo resume-se a a uma simples massa contnua e homognea, isto , sem diferenciao estrutural de qualquer ordem. Nesse estgio primordial e pr-individual, a massa protoplasmtica no integra qualquer indivduo; a monera simplesmente ser vivo. Podemos acompanhar os contornos dessa relevante distino na discusso desenvolvida por Haeckel sobre o Bathibius, a monera fundamental descrita por Thomas Huxley (1825-1895). Nas moneras at ento estudadas, a substncia homognea e amorfa de protoplasma que forma os corpos em geral apresenta-se em modo individualizado, de maneira que as prprias pores singulares alcanam por crescimento certa dimenso e ento, quando excedem tal dimenso, decompem-se em duas ou mais partes. No Bathibius, ao contrrio, no se observa este incio de individualizao; seu corpo protoplasmtico mole e amorfo, que cobre em massas imensas as profundezas de mares, no apresenta nenhuma individualizao; as pores singulares no parecem atingir nenhum tamanho determinado e parecem multiplicar-se segundo as circunstncias; desagregam-se em partes quaisquer de dimenses desiguais quando o crescimento atingiu um limite em uma ou outra condio de adaptao. (Haeckel, 1876, p. 27) Assim, o ponto de partida de onde surge o indivduo orgnico, ou o primeiro ser orgnico individuado, constitui-se de um determinado estgio da prpria monera. A monera pode apresentar-se, segundo Haeckel, em duas etapas evolutivas, uma primordial como simples massa protoplasmtica pr-individual, etapa que deve preceder lgica e cronologicamente primeira individuao, e uma etapa posterior, evolutivamente derivada como plastdeos (os ctodos, ou seja, clulas no nucleadas), considerados os indivduos orgnicos em seu nvel mais elementar. Em seu trabalho Sobre Moneras e Outros Protistas, de 1870, depois reimpresso no primeiro volume dos seus Estudos Biolgicos (Haeckel, 1877), Haeckel apontou tambm tal distino, destacando que as moneras consistiam de protoplasma livre e, alm de afirmar que as enormes massas amorfas de Bathibius no apresentavam ainda individualizao, indicou que a noo de gelatina ou muco primordial (Urschleim) de Lorenz Oken (1795-1851) e dos Naturphilosophen como a matria viva primordial universal encontrava agora, com o resultado das investigaes de Huxley, a sua confirmao emprica4. Podemos verificar ainda que Haeckel claro quanto a esse ponto ao propor uma distino evolutiva para o que ele chamou de grupo das substncias plasmticas. Isto , segundo ele, h primeiro o arquiplasma, a substncia viva mais antiga e original, e depois o monoplasma, a substncia dos ctodos. Cremos que evidente que, no segundo caso, o uso do termo mono na expresso monoplasma procura indicar o advento da individualidade5. Assim, para Haeckel, a estruturao morfogentica dos organismos, bem como a prpria individuao biolgica concebida como fruto de uma atividade funcional que lhes anterior e mais elementar. A individuao orgnica concebida por ele como parte do processo de estruturao orgnica. O indivduo orgnico no prvio
4 A busca pela comprovao emprica do Bathibius ligou-se de modo direto s controvrsias e disputas sobre a existncia das moneras e da gerao espontnea (Radl, 1913, II, p. 213-5; Bizzo, 2001, p. 59-70). As negativas obtidas quanto existncia do Bathibius no abalaram, contudo, as convices de Haeckel quanto existncia das moneras, quanto ao seu papel evolutivo e autogonia (Haeckel, 1904, p. 339-45). 5 Dentro da nossa interpretao, o arquiplasma corresponderia, portanto, monera primordial no individualizada representada pelo Bathibius e o monoplasma aos ctodos.

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2)


nem simultneo ao fenmeno vital, mas derivado, sendo de fato engendrado naturalmente a partir do protoplasma homogneo. Isso ocorre devido s capacidades e propriedades intrnsecas do protoplasma e sua interao com o meio. Para Haeckel, a atividade funcional que se manifesta de modo heterogneo num conjunto de funes vitais distintas encontra-se distribuda originalmente sobre uma base material homognea. O fenmeno da individuao biolgica nos seus diferentes nveis apresenta-se, em primeiro lugar, como o problema de como conceber em bases naturais a noo de individuao num meio material carente de estruturas. Podemos dizer que Haeckel constri sobre o fundamento de uma viso monista e de uma perspectiva terica profundamente materialista uma formulao para a questo da individualidade biolgica cuja chave encontra-se num tipo de atividade fisiolgica que, embora inscrita na matria orgnica, no est sujeita a qualquer configurao ou delimitao estrutural especfica. A perspectiva que presidiu tal proposta foi a de abrir uma via aos estudos biolgicos que prescindisse de qualquer recurso noo de teleologia. Haeckel acreditava que, em conjunto com o evolucionismo e com os seus princpios biogenticos centrados no conceito de recapitulao da filognese pela ontognese, a noo de uma atividade vital distribuda por uma matria elementar homognea fornecia todos os ingredientes necessrios para uma concepo de vida e de organismo cuja finalidade pudesse ser explicada em termos exclusivamente naturais. Segundo ele, a teoria das moneras e outras teorias integradas morfologia evolucionista tinham o objetivo precpuo e eram de fato capazes de explicar as caractersticas tpicas da matria orgnica e os fenmenos biolgicos em bases puramente naturais. Nesse sentido, Haeckel buscou apontar um caminho para conceber a relao entre os estados de continuidade e de descontinuidade verificados nos organismos, nas suas dimenses fisiolgicas e morfolgicas. Seu tratamento nesse mbito visava compreender a base a partir da qual se desenvolve a individuao biolgica, tanto para conceber a prpria natureza do indivduo orgnico como para compreender a possibilidade do surgimento de um estado de estruturao a partir de uma massa originalmente informe, homognea e contnua.

19

Gastraeatheorie. Jena: Hermann Dufft. Haeckel E. 1880 [1868]. The History of Creation. New York: Appleton and Company. Haeckel E. 1930 [1879]. Histria da Creao Natural. Porto: Chardron. Haeckel E. 1876. Die Perigenesis der Plastidule oder Wellenzeugung der Lebenstheilchen. Berlin: Georg Reimer. Haeckel E. 1919 [1876]. Perigenesis de las plastdulas. In: Haeckel E. El Origen de la Vida. Buenos Aires: Editorial Tor 7-80. Haeckel E. 1963 [1904]. Maravilhas da Vida. Porto: Lello & Irmo. Radl EM. 1988 [1913]. Historia de las teorias biolgicas. 2 vol. Madrid: Alianza. Richards RJ. 2008. The tragic sense of life. Chicago: University of Chicago Press.

Referncias
Bizzo N. 2001. A origem da vida no darwinismo original do sculo XIX. In: El-Hani CN e Videira, AAP, organizadores. O que vida? Rio de Janeiro: Relume Dumar 59-70. Blsche W. 1903 [1891]. Haeckel, his life and his work. Philadelphia: George W. Jacob. Haeckel E. 1866. Generelle Morphologie der Organismen. Berlin: G. Reimer. Haeckel E. 1868. Monographie der Moneren. Jenaische Zeitschrift fr Medicin und Naturwissenschaft 4: 64-144. Haeckel E. 1869 [1968]. Monograph of Monera. Quarterly Journal of Microscopical Science IX: 27-42, 113-134, 219232 e 327-342. Haeckel E. 1889 [1868] Natrliche Schpfungsgeschichte. Berlin: G. Reimer. Haeckel E. 1877. Biologische Studien: Studien zur ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2): 20-27


DOI: 10.7594/revbio.09.02.05

Artigo

A Teoria das Hierarquias e seus fundamentos epistemolgicos


Hierarchy Theory and its epistemological grounds
Nei Freitas Nunes-Neto*, Charbel Nio El-Hani
*Contato do autor: nunesneto@gmail.com Resumo. A teoria das hierarquias emergiu, a partir de meados da dcada de 1960, como resultado de uma convergncia de contribuies advindas de diversas disciplinas que compartilhavam poca um interesse pela complexidade, como economia, qumica e biologia. Da perspectiva da teoria das hierarquias, a complexidade no considerada uma propriedade dos sistemas naturais em si mesmos e tampouco concebida como uma propriedade exclusiva da mente humana, mas sim como uma propriedade das questes colocadas por ns, agentes do conhecimento, no processo de observao. A complexidade emerge, pois, na relao entre os sistemas naturais e os sujeitos cognoscentes. Este trabalho realiza uma anlise dos fundamentos epistemolgicos da teoria das hierarquias, tratando, sobretudo, da possibilidade de embas-la numa viso anti-realista, como o empirismo construtivo de van Fraassen. Palavras-chave. Hierarquias, complexidade, biologia, anti-realismo. Abstract. Hierarchy theory arose in the middle of the 1960s, as a result of a convergence from contributions of different disciplines that shared an interest for complexity, such as economy, chemistry, and biology. From the perspective of hierarchy theory, complexity is not considered either as a property of natural systems in themselves or as an exclusive property of the human mind, but rather as a property of questions posed by ourselves, as agents of knowledge, in the observational process. Complexity emerges, thus, in the relationship between natural systems and knowing subjects. This work carries out an analysis of the epistemological foundations of hierarchy theory, mainly addressing the possibility of grounding it in an anti-realist stance, such as van Fraassens constructive empiricism. Keywords. Hierarchy, complexity, biology, anti-realism. Recebido 25abr11 Aceito 10out11 Publicado 15dez12

Departamento de Biologia Geral, Instituto de Biologia, Universidade Federal da Bahia

Introduo
um clich entre bilogos dizer que sistemas biolgicos so intrinsecamente hierrquicos e complexos. Apesar de tais afirmaes serem muito repetidas, em variados contextos, raramente as expresses que nelas figuram so tomadas como objeto de uma anlise mais profunda. Ento cabe perguntar: o que significa complexidade nas cincias em geral, e na biologia, em particular? O que significa dizer que um sistema hierrquico? Este trabalho objetiva oferecer uma possvel resposta a estas questes. Para isso, o caminho do argumento ser o seguinte: na prxima seo, apresentaremos brevemente algumas noes gerais acerca da teoria das hierarquias, mais especificamente, por meio do modo como ela interpreta o desenvolvimento de uma pesquisa cientfica. Em seguida, exploraremos as bases filosficas desta teoria, apontando principalmente para sua natureza anti-realista. Por ora, a fim de guiar o leitor, daremos breves definies de alguns termos aqui utilizados, mesmo sendo discutidos em mais detalhes nas sees seguintes. Para

entender o que significa o anti-realismo, vale a pena esclarecer o que significa, em termos muito simples e breves, o realismo cientfico. O realismo cientfico a posio segundo a qual (i) a cincia objetiva construir um relato verdadeiro do mundo e (ii) as entidades inobservveis (aquelas que no podemos observar diretamente com nossos sentidos, como DNA, eltron etc.) so reais. Em contraponto s duas teses acima, a posio anti-realista assume (i) que, como uma atividade de construo de modelos, e no de descoberta do mundo, a cincia deve oferecer no modelos verdadeiros, mas sim modelos empiricamente adequados (isto , que capturem de modo apropriado aspectos da realidade observvel, esta a que temos acesso direto com nossos sentidos, sem intermediao de aparelhos como microscpios, por exemplo) e (ii) que as entidades inobservveis no necessariamente existem, ainda que haja termos na linguagem cientfica que se refiram a elas. Neste artigo, argumentamos que a teoria das hierarquias tem uma natureza anti-realista, que pode ser apoiada no empirismo construtivo de Bas van Fraassen,

Revista da Biologia (2012) 9(2)


um importante filsofo empirista contemporneo. Ainda que nosso foco principal no presente artigo recaia sobre as bases filosficas da teoria das hierarquias, comentaremos, sempre que possvel, algo acerca das implicaes deste olhar epistemolgico para a prtica ou o ensino da biologia.

21

Natureza e contexto do pensamento hierrquico


A teoria das hierarquias nasceu como uma rea de investigaes (e no exatamente como uma disciplina com fronteiras muito bem definidas), no incio dos anos 1960, a partir dos trabalhos de vrios pesquisadores e pensadores de destaque, como o qumico Ilya Prigogine, o economista Herbert Simon (1969) e o epistemlogo e bilogo Jean Piaget. Alm disso, as ideias expostas na Teoria Geral dos Sistemas, proposta pelo bilogo austraco Ludwig von Bertalanffy (1976), desenvolvida desde a dcada de 1920, inspiraram fortemente aqueles autores. Em poucas palavras (porque iremos tratar do assunto em mais detalhes abaixo), a posio filosfica assumida pela teoria das hierarquias intermediria entre o solipsismo e o realismo. Por um lado, esta teoria assume que h uma realidade externa independente da mente humana (negando, portanto, o solipsismo). Porm, por outro lado, para ela, esta realidade no passvel de ser conhecida diretamente e em si mesma, como resultado de um acesso privilegiado ao mundo pelos sentidos, mas apenas por meio da prpria mente humana. Entre os tericos de hierarquias mais influentes da contemporaneidade, encontramos alguns bilogos. Entre estes, merece destaque T. F. H. Allen, um eclogo que ampliou sua atuao nas ltimas dcadas para uma reflexo sobre a atividade cientfica. Ele atualmente um dos principais articuladores da teoria das hierarquias e de suas aplicaes na cincia da ecologia (ver, por exemplo, Allen e Hoekstra, 1992). Tendo isto em vista, ns utilizaremos, como um modelo para apresentar idias centrais da teoria das hierarquias, um trabalho produzido por ele, em colaborao com Valerie Ahl. Para Ahl e Allen (1996, p. 11), a teoria das hierarquias a filha de uma fertilizao cruzada de disciplinas tradicionais interessadas na complexidade, como filosofia, psicologia, biologia, termodinmica e economia. Sobretudo a partir da dcada de 1960, a criao de tal zona de interseco entre disciplinas acadmicas bem estabelecidas, em termos institucionais e metodolgicos, permitiu uma frtil troca de idias e mtodos. Tal intercmbio tem sido um belo exemplo de tentativa de superao das barreiras entre o que C. P. Snow, em 1959, chamou de As duas culturas (as humanidades e as cincias naturais). Trata-se de uma busca pela construo de um conhecimento interdisciplinar, o que constitui uma demanda necessria para fazer frente a muitos dos desafios da sociedade contempornea (como as questes ambientais, por exemplo). muito comum uma idia intuitiva sobre o pensamento hierrquico, a de que ele diz respeito a uma teoria focada principalmente em nveis de organizao da realidade (como, por exemplo, os nveis assumidos tradicio-

nalmente no ensino de biologia: celular, histolgico, orgnico etc.) Porm, como Ahl e Allen apontam, a teoria das hierarquias no est focada prioritariamente sobre nveis de organizao. Em vez disso, ela uma teoria do papel do observador e do processo de observao no discurso cientfico. uma teoria sobre a natureza de questes complexas (Ahl e Allen, 1996, p. 27). Analisemos aqui, brevemente, esta citao de Ahl e Allen, a fim de entender melhor em que consiste a teoria das hierarquias. Um termo chave nesta citao complexo. Ele se refere s questes que ns, sujeitos construtores de conhecimento, colocamos sobre o mundo nossa volta. Assim, se a complexidade algo que se atribui s questes, e no aos objetos do mundo diretamente, ento podemos pensar que h vrios graus possveis de complexidade que podem estar relacionados a um mesmo objeto, os quais dependero, claro, dos interesses, dos valores e do conhecimento prvio do observador. Assim, em ltima instncia, a complexidade do objeto depender do tipo de questo que se coloca sobre ele. Tomemos um exemplo de Ahl & Allen (1996) para ilustrar este ponto. Uma cadeira pode ser observada de um ponto de vista simples ou complexo. Uma questo simples sobre uma cadeira seria: qual o limite de carga que uma dada cadeira pode suportar sem se quebrar? Uma questo complexa seria: onde e de que maneira, em detalhes, a cadeira se quebrar? O objeto cadeira, em si mesmo, no muda a partir das questes que colocamos sobre ele. Contudo, ele pode ser visto como simples ou complexo, a depender das questes que colocamos. O tratamento da complexidade como uma propriedade das questes cientficas (e no como uma propriedade dos sistemas estudados pelas cincias naturais) nos parece uma tese importante, por estar associada ao anti-realismo da teoria das hierarquias, um argumento que desenvolveremos mais abaixo. Apesar de nossa concordncia com esta concepo sobre a complexidade, discordamos de outro ponto defendido por Ahl e Allen, embora menor. Pensamos que, ao se referir a um observador individual, estes autores assumem uma postura excessivamente subjetivista. Parece-nos equivocado falar num sujeito epistmico nico o que pode conduzir idia ingnua, mas frequente no ensino de cincias e na prpria imagem social da cincia, de que a cincia feita por poucos gnios isolados, ou ao menos, de que ela feita individual, e no coletivamente (ver Gil-Prez et al., 2001). Ao invs disso, nos parece mais adequado conceber o observador como uma comunidade, um grupo integrado de indivduos que compartilha certos valores cognitivos, epistmicos, procedimentais, maneira como pensava, por exemplo, o filsofo Thomas Kuhn (1962), ao tratar do processo de construo de um paradigma. Isto conduz, necessariamente, a uma ligeira reformulao do argumento colocado por Ahl e Allen. Tomemos o exemplo do filsofo russo Lev Vigotski (1984). Para ele, as funes mentais superiores e, por extenso, o conhecimento individual sobre certo objeto adquirido a partir de uma internalizao de algo que num primeiro momento compartilhado socialmente. Ou seja, no faz

ib.usp.br/revista

22

Nunes-Neto e El-Hani: Fundamentos epistemolgicos da teoria das hierarquias


uma perspectiva no-terica. Se algum a quem mostrada esta imagem diz eu vejo um pato ou eu vejo um coelho, as prprias noes de pato e coelho e de tudo o que eles podem significar so pressupostas em tais proposies de observao. Imagine a seguinte situao: duas pessoas diferentes, digamos, Joo e Maria, dizem respectivamente, quando mostramos a imagem, eu estou vendo um pato e eu estou vendo um coelho. Apesar de verem objetos diferentes (supondo que Joo e Maria no apresentam qualquer patologia relacionada viso ou ao processamento de imagens no crebro), a imagem nas retinas de Joo e Maria essencialmente a mesma, correspondendo a certa disposio de traos e manchas escuras num fundo branco. As imagens em si mesmas no so dotadas de significado. Ou seja, se eles possuem a mesma imagem na retina, mas dizem que vem coisas diferentes, h algo alm da imagem na retina que responsvel pelo ato de ver. Portanto, o ato de ver, em ns, pressupe a cognio; e de maneira inescapvel. ela, com seus conceitos, modelos, expectativas, experincias pretritas, que orienta tudo o que e pode ser visto (ver, por exemplo, Hanson, 1965). Desse modo, notamos que a colocao de uma questo ou problema de pesquisa, derivada de uma anlise do conhecimento estabelecido (que terico, por natureza), o ponto de partida para qualquer investigao cientfica. Em termos mais concretos, podemos situar materialmente a colocao de questes na cognio humana, dependente, por sua vez, do contexto sociocultural. ela que permite ver e ver perceber algo a partir de uma perspectiva cognitiva e socialmente orientada. Analisemos agora o prximo passo da investigao cientfica, de acordo com Ahl e Allen. Qualquer questo ou problema de pesquisa, como apontam estes autores, pressupe certas entidades, uma vez que nos problemas de pesquisa necessariamente aparecem termos que se referem a tais entidades. No caso do problema de pesquisa apresentado acima, podemos reconhecer pelo menos a referncia a duas entidades: a planta Angraecum sesquipedale e a mariposa Xantophan morganii praedicta. A questo contempla ainda um processo no observvel, a coevoluo, ainda que possa ser observada a interao ecolgica efetiva entre certo inseto e certa planta. Na descrio da atividade cientfica de acordo com a teoria das hierarquias, Ahl e Allen (1996) dividem as en-

sentido falar na interao de um sujeito nico com determinados objetos, como se isto fosse suficiente para a construo do conhecimento. Faz mais sentido falar numa comunidade epistmica, uma comunidade de observadores capazes de construir conhecimento, sempre em interao com o mundo natural.

A investigao cientfica de acordo com a teoria das hierarquias


Ahl e Allen realizam uma anlise do processo de investigao cientfica de acordo com a teoria das hierarquias, o que ilustra alguns princpios e pressupostos desta. De acordo com os autores, a investigao cientfica pode ser vista como uma sequncia de cinco passos: colocao de uma questo; definio de entidades ou unidades; escolha de medidas; observao de fenmenos; avaliao de modelos. importante notar que esta sequncia no uma srie rgida de passos, como vemos na descrio algortmica de um mtodo cientfico supostamente nico e capaz de conduzir verdade, algo bastante comum em livros didticos das reas de cincias naturais, seja no ensino mdio, seja no ensino superior (Gil-Prez e col., 2001). No se trata da proposio de uma ordem temporal necessria da pesquisa, mas de uma reconstruo da lgica possvel do processo investigativo, a qual pode ser realizada com as idas e vindas prprias de um processo criativo como o trabalho cientfico. Frequentemente, a criatividade cientfica redefine as fronteiras entre esses passos ou at mesmo procede de um modo no-linear. De qualquer modo, tal heterogeneidade nos procedimentos cientficos no impede que construamos um esquema conceitual abstrato, que possa servir como um marco de referncia para a anlise de investigaes cientficas particulares. Da perspectiva da teoria das hierarquias, certo problema de pesquisa (por exemplo, como ocorreu a coevoluo entre a planta Angraecum sesquipedale e a mariposa Xantophan morganii praedicta?) constitui um ponto de partida para a investigao cientfica. Os problemas de pesquisa, importante notar, so construes tericas da cincia, porque so gerados a partir de anlises que os cientistas fazem do corpo de conhecimentos cientficos. H dados em jogo nesta anlise, obviamente, mas os dados s fazem sentido luz do conhecimento terico construdo pela cincia. Ou seja, ao dizer que a cincia tem incio com um problema de pesquisa (como colocou Karl Popper e muitos outros filsofos depois dele), estamos dizendo automaticamente que ela no se inicia meramente com a observao dos fenmenos. Este ponto importante, na medida em que oferece um contraponto necessrio a uma idia ingnua, ainda muito forte na concepo de cincia de muitos cientistas, professores e estudantes de cincias, de que a atividade cientfica se inicia com a observao de fenmenos. A ambiguidade de significado proporcionada pela observao da imagem do pato-coelho (Fig. 1) um recurso didtico para mostrar que no vemos absolutamente nada de uma perspectiva no-cognitiva, e tampouco de

Figura 1. O pato-coelho. Ver perceber algo a partir de uma perspectiva cognitiva e socialmente orientada. Fonte: Jastrow (1899)

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2)


tidades cujos termos figuram nas questes cientficas em dois tipos, tangveis e intangveis. Grosso modo, tangvel aquilo que pode ser acessado diretamente pelos sentidos humanos (pode ser visto, tocado, etc., como dito acima, de maneira mediada pela cognio). Por sua vez, intangvel aquilo que no pode ser acessado diretamente pelos sentidos, mas apenas atravs de aparatos tecnolgicos (como o microscpio eletrnico). Apesar de estes autores se limitarem a entidades (normalmente entendidas como objetos), pensamos que vale a pena considerar e, assim, aplicar a distino tambm a processos, o que representa uma ampliao do alcance do argumento daqueles autores. Assim, no caso da questo acima, podemos qualificar a planta Angraecum sesquipedale e a mariposa Xantophan morganii praedicta como entidades tangveis, enquanto o processo de coevoluo pode ser qualificado como intangvel. Outros exemplos de entidades ou processos tangveis podem ser uma mosca ou a predao de uma anta por uma ona pintada. Exemplos de entidades ou processos intangveis podem ser o eltron, a seleo natural ou o nicho ecolgico. Esta distino entre tangveis e intangveis , de fato, essencialmente uma mesma que feita classicamente na filosofia da cincia, ainda que com outra terminologia (Dutra, 2009; van Fraassen, 1980). Neste mbito, filsofos tm distinguido entre entidades observveis e inobservveis e boa parte das discusses filosficas sobre o realismo cientfico tm se dado sobre a possibilidade ou a legitimidade de tal distino. No discutiremos esta questo a fundo aqui; desejamos apenas apontar a similaridade da distino em pauta nas duas reas1. Outra distino feita por esses autores, bastante til para o modo como podemos estruturar a prtica cientfica no que tange definio das entidades e dos processos, a separao entre imagem e fundo (figure vs. background). Imagem toda parte do campo observacional que tratada como significativa, dotada de significado, enquanto fundo todo o resto. Tanto imagem quanto fundo - nos dizem Ahl e Allen - so o produto de pressuposies, questes, valores, conhecimentos, expectativas de um observador. Ter clareza sobre o que imagem e o que fundo em uma investigao cientfica, algo que se pode fazer ao propor o prprio problema de pesquisa, permite organizar e pr-definir uma srie de passos metodolgicos da pesquisa (relacionados com medies, por exemplo), assim como evitar a adoo por parte do cientista de posies epistemolgicas ingnuas ou equivocadas, como comentaremos mais abaixo. Ahl e Allen propem uma analogia bastante ilustrativa para esclarecer a distino entre imagem e fundo.
1 Ahl e Allen se perguntam se a investigao muda em funo de lidar com tangveis ou intangveis. De acordo com estes autores, a resposta um enftico no. Para eles, tanto tangveis quanto intangveis so obtidos pelo mesmo processo fundamental: em nenhum caso, eles so dados pelo mundo, mas so produzidos por operaes de distino que so dependentes da cognio. Entretanto, Ahl e Allen no tomam em considerao o debate filosfico sobre o realismo cientfico, algo que consideramos em alguma medida neste artigo, e que constitui um dos focos de nossa pesquisa sobre a teoria das hierarquias.

23

Imagine uma rede de pesca, com uma malha de tamanho x (Fig. 2). A malha captura peixes de certo tamanho, digamos, z, mas no captura os peixes de tamanho muito menor que z, porque estes passam por entre a malha, escapando, ou peixes de tamanho muito maior que z, porque estes so grandes o bastante para que no fiquem retidos na rede. Os peixes de tamanho z so, portanto, idealmente, a imagem, enquanto os outros, muito pequenos ou muito grandes, so parte do fundo no significativo, dada a rede em questo. evidente que imagem e fundo so conceitos relativos aos estados do sistema cognitivo individual e do desenvolvimento do conhecimento cientfico numa dada poca. Por exemplo, se aceitarmos a analogia da rede como um instrumento da cognio, ento uma rede com malha mais estreita tomaria como imagem os peixes de tamanho muito menor que z, enquanto todo o resto seria

Figura 2. Uma rede de pesca, com sua malha caracterstica, como uma metfora do sistema cognitivo coletando informaes. A imagem o que a rede captura, enquanto o fundo todo o resto (Imagem retirada de Ahl e Allen, 1996, p. 56).

tratado como fundo, uma situao diferente da anterior. Estas consideraes sobre imagem e fundo, como parte da teoria das hierarquias, nos permitem comentar sobre um erro comum, que derivado de assumir que os termos usados na linguagem cientfica se referem sempre a entidades reais. Trata-se dos debates sobre a realidade de uma dada entidade intangvel. Na ecologia, por exemplo, por vezes os eclogos discutem se as comunidades ecolgicas so reais ou no. Contudo, este questionamento no faz sentido, j que entidades no so o produto apenas do mundo em si mesmo, mas so construdas por uma comunidade epistmica (os eclogos) em interaes com o mundo dos fenmenos. Cabe apontar ainda que tal viso, fortemente realista, quando usada no ensino de cincias, tende a reificar2 entidades abstratas. Sintomaticamente, mesmo no sendo assumida sua correspondncia a algo no mundo, uma entidade, como construto de uma comunidade cientfica, pode cumprir um papel til na pesquisa. Por exemplo, quando o con2 Em termos simples, reificar algo significa transformar este algo em substncia. Em outros termos, o mesmo que atribuir uma natureza material a certas entidades ou noes que no so materiais, mas sim abstratas. Para o filsofo francs Gaston Bachelard (1996), a reificao, denominada por ele substancialismo, foi um obstculo epistemolgico importante para o avano do conhecimento cientfico na idade moderna.

ib.usp.br/revista

24

Nunes-Neto e El-Hani: Fundamentos epistemolgicos da teoria das hierarquias


sustentar que a prpria relao todo-parte decorre destas diferenas de frequncia de comportamento. Uma vez que o comportamento do sistema tenha sido registrado por um protocolo de medidas, apenas algumas mudanas de estado sero consideradas interessantes. Assim, no protocolo de medidas, os comportamentos que se visa mensurar so a imagem, enquanto o resto tomado como fundo, de acordo com a distino imagem/ fundo discutida acima. escolha das medidas, segue-se a observao dos fenmenos, o quarto passo da descrio da atividade cientfica feita por Ahl e Allen. Neste ponto, eles exploram uma metfora para explicar o processo de observao na cincia. Imagine uma teia de aranha. Nesta analogia, a aranha como uma comunidade de cientistas e a teia como uma rede terica. A captura de um besouro comestvel, por exemplo, como algo novo na rede, anloga a um cientista fazendo uma observao. O conserto de uma teia rompida por um inseto comestvel, ou por gotas de chuva, anlogo ao trabalho da cincia normal kuhniana. Neste caso, a estrutura da rede sofreu um abalo que, normalmente, pode ser consertado apelando-se aos mtodos convencionais. Entretanto, o que acontece se um passarinho ou um objeto de tamanho similar colide com a teia? Uma alterao profunda acontece, o que corresponde destruio de toda uma teoria ou crise de um paradigma. Proceder com um mero reparo na teia pode ser insuficiente para dar conta de tais prejuzos, razo pela qual a aranha pode buscar construir uma nova teia. Da mesma forma, se certa teoria ou certo paradigma no mais atende s necessidades dos cientistas, por conta do acmulo considervel de anomalias no resolvidas, se faz necessrio o uso de outro construto terico, alternativo. Grosso modo, isso corresponde mudana paradigmtica para Kuhn (1962). No exemplo acima, h um tipo de seleo no processo, de filtragem do que deve ser fenmeno significativo para o modelo. Ou seja, nem tudo o que cai na teia bom para a aranha. Do mesmo modo, nem tudo o que pode ser observado bom para um determinado cientista, imbudo da tentativa de dar conta de um problema de pesquisa especfico. Este pode ser, inclusive, o momento de revisar as entidades e os processos demarcados e, qui, a prpria questo colocada. Situar a observao neste ponto, e no em um momento anterior da investigao cientfica, bastante salutar, em vista da renitncia de uma viso empirista ingnua no ensino de cincias. De acordo com tal viso, h um nico mtodo cientfico, que sempre se inicia com a observao. Ainda que no em forma to ingnua, um empirismo exagerado tambm marca, com frequncia, a formao dos prprios cientistas, que, muitas vezes, consideram que o sucesso ou fracasso das teorias e hipteses depende somente de seu confronto com os dados empricos. A observao importante e, sem ela, no h cincia; porm, ela s possvel de um ponto de vista teoricamente situado. Os dados resultantes da observao so importantes, porm eles no so o propsito da cincia, nem decidem por si s o destino das teorias. Dito de outro modo, dados

ceito de gene foi introduzido por Johannsen, em 1909, ele prprio e a maioria dos geneticistas o concebiam como um termo til sem correspondente material claramente estabelecido, a ser usado como uma unidade de clculo (Johannsen, 1909. Ver Falk, 1986, Wanscher, 1975). Isso no tornou, certamente, o conceito de gene menos til, como atesta o rpido progresso da gentica clssica nos anos que se seguiram sua proposio. Em suma, ao considerar as entidades e os processos como o produto das decises de uma comunidade cientfica, em interao com o mundo natural, bloqueada desde o incio uma possvel linha no produtiva de discusso, focada em saber se a entidade ou o processo real ou no. Conforme argumentaremos mais frente, este argumento pode ser construdo dentro da teoria das hierarquias, desde que estabeleamos devidamente seus fundamentos anti-realistas, o que comearemos a fazer na prxima seo. Uma vez que as entidades e os processos de interesse estejam definidos, o prximo desafio se relaciona ao modo de operao ou s atividades que eles exibem (que daqui em diante chamaremos simplesmente de comportamentos). O comportamento capturado a partir da mensurao das mudanas nos estados da entidade ao longo do tempo. Determinar quais entidades e comportamentos so observados depende, assim, da escala dos protocolos de medida escolhidos. Uma vez que estas decises sejam feitas, o comportamento do sistema comea a fazer sentido. Uma vez que uma demarcao de entidades e/ou processos e um regime de mensurao estejam fixados, o fenmeno observado, em vez dos prprios observadores, responsvel pelas mudanas de estado. O protocolo de medidas deve capturar a frequncia (isto , a taxa de ocorrncia) dos comportamentos. Normalmente, comportamentos de baixa frequncia esto em nveis de organizao mais elevados, enquanto comportamentos de alta frequncia esto em nveis menos elevados. De certa forma, quanto a este ponto, a teoria das hierarquias formaliza uma idia intuitiva: de que coisas pequenas so mais rpidas e duram menos, enquanto coisas maiores so mais lentas e duram mais. A formalizao da intuio ocorre pela compreenso de que nveis hierrquicos num modelo podem ser ordenados de acordo com as frequncias de comportamento das entidades que os constituem. Neste sentido, totalidades tm frequncias de comportamento maiores e por isso que incluem as partes, as quais exibem frequncias de comportamento menores. Pensemos, por exemplo, num filhote de elefante e em suas clulas epiteliais. Num perodo de um ano, supondo que os comportamentos de uma clula reunidos num ciclo celular completo se estendam por 1 dia, teremos cerca de 365 ciclos celulares. Por sua vez, o elefante, que a totalidade, neste mesmo perodo de tempo de um ano, teve relativamente muito menos alteraes em seus comportamentos (por exemplo, sendo um filhote e no tendo atingido a idade reprodutiva, ele no se reproduziu), se comparado s suas clulas. Isso ocorre por que os comportamentos tm ritmos distintos, a depender do nvel de organizao considerado. A teoria das hierarquias coloca grande nfase sobre este ponto, ao

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2)


empricos so condio necessria, mas no suficiente, para a aceitao e rejeio de teorias. Eles so razes que movem os cientistas quanto aos seus juzos sobre teorias, mas so somente parte das razes invocadas num processo argumentativo, situado na arena social da comunidade cientfica e enovelado com processos externos cincia (vinculados ao financiamento, a ideologias etc.), do qual depende, em parte, o sucesso ou o fracasso das teorias (porque, afinal, a natureza scio-histrica da mudana terica implica tambm fatores irracionais). Por isso mesmo, h algo mais a tratar como parte da atividade cientfica, que est para alm da observao dos fenmenos, ou coleta de dados. Em parte, isso foi o que mostramos aqui. Finalmente, os modelos cientficos, construdos por meio de procedimentos como os descritos por Ahl e Allen, so avaliados em funo de sua adequao emprica e de sua capacidade de representao, explicao e previso de fenmenos. No que concerne construo e avaliao de modelos, parece-nos que a perspectiva epistemolgica da teoria das hierarquias bastante prxima de um ponto de vista anti-realista, como aquele do empirismo construtivo de van Fraassen, conforme discutiremos a seguir.

25

O debate entre realistas e anti-realistas em filosofia da cincia


Aqui, consideraremos os fundamentos filosficos da teoria das hierarquias, mais especificamente, suas bases anti-realistas. Para isso, ser necessrio abordar, ainda que minimamente, o debate entre realistas e anti-realistas na filosofia da cincia, que j mencionamos brevemente acima. O realismo cientfico tem sido uma posio forte entre filsofos da cincia e cientistas naturais. Uma reao importante hegemonia do realismo, talvez a mais importante da filosofia contempornea, foi a de Bas van Fraassen. Em seu livro de 1980, A Imagem Cientfica, podemos dizer que van Fraassen constri seu argumento em duas partes principais. Uma primeira parte destinada a atacar fortemente o realismo cientfico e uma segunda, a apresentar uma viso alternativa a ele. Do ponto de vista de van Fraassen, para os realistas, a cincia visa dar-nos em suas teorias um relato literalmente verdadeiro de como o mundo , e a aceitao de uma teoria cientfica envolve a crena de que ela verdadeira. (van Fraassen, 1980, p. 27). A posio de van Fraassen, construda contra o realismo, denominada por ele empirismo construtivo. um empirismo porque, para ele, os juzos (isto , as crenas) dos cientistas que importam para a aceitao de uma teoria cientfica devem ser apenas juzos sobre entidades e processos observveis (que so equivalentes aos tangveis, na terminologia da teoria das hierarquias). Isto , os cientistas no devem assumir compromissos metafsicos acerca da existncia ou inexistncia de entidades e processos inobservveis (ou intangveis, na terminologia da teoria das hierarquias) ao fazer juzos epistmicos, ou seja, aqueles que esto subjacentes aceitao das teorias. Note-se que os cientistas podem, por outro lado, assumir tais com-

promissos acrescentamos no que diz respeito a outros juzos, por exemplo, juzos pragmticos relativos s vias mais poderosas para o desenvolvimento de uma teoria. Assim como falamos de dois tipos de juzos que os cientistas podem ter: epistmicos e pragmticos, podemos falar tambm em dois tipos de virtudes: epistmicas e pragmticas. As virtudes so qualidades das teorias. As virtudes epistmicas, em particular, dizem respeito quelas qualidades presentes nas teorias que so razes pelas quais os cientistas as aceitam. Exemplos so a adequao emprica (que explicaremos mais frente) ou a crena de que os termos que se referem a entidades ou processos inobservveis (como DNA, eltron etc.) se referem a entidades ou processos reais. Por sua vez, para van Fraassen, as virtudes pragmticas no esto presentes no domnio da prpria construo das teorias, nem da sua aceitao, mas sim no domnio da aplicao da teoria ao mundo. Normalmente, elas ganham salincia nas atividades de explicao e previso da cincia. Estas consistem na aplicao de modelos a casos particulares, os quais, por isso mesmo, s podem ser compreendidos em contextos especficos. Para van Fraassen, os realistas vo longe demais ao usar, como razo para aceitar as teorias cientficas, a tese de que as entidades e os processos inobservveis postulados na linguagem cientfica so reais. Tais supostas entidades ou processos, para ele, no necessariamente existem, ou, ao menos, a questo da sua existncia ou no destituda de importncia no que cabe aos juzos epistmicos subjacentes aceitao de uma teoria. Isso implica que sua posio mais parcimoniosa, mais econmica do que a posio realista. Uma analogia com a crena em Deus pode ajudar neste ponto. A posio de van Fraassen similar de um agnstico, que no afirma nem nega a existncia de Deus, como fazem respectivamente os testas ou ateus, mas, em vez disso, suspende seu juzo sobre a existncia de tal entidade. Da mesma forma, para van Fraassen, irrelevante qualquer juzo sobre inobservveis no que se refere aceitao de teorias, devendo-se ser agnstico quanto aos inobservveis ao julgar tal aceitao. Todos os juzos que importam para a aceitao das teorias devem ser voltados para as entidades observveis apenas. Por sua vez, a qualificao construtivo, usada para designar a posio deste filsofo, se deve ao fato de que, para ele, a cincia uma atividade de construo de modelos, e no uma atividade de descoberta. Esta idia, similar de Thomas Kuhn (1962), significa que os modelos no so o resultado de processos de descoberta sobre o mundo, nem almejam a verdade. Do ponto de vista de van Fraassen, os modelos so construes humanas que visam interpretar, explicar, prever fenmenos, devendo apenas ser empiricamente adequados, uma exigncia menor do que a dos realistas. Assim, diz-se que uma teoria empiricamente adequada quando ela possui ao menos um modelo com sub-estruturas empricas isomorfas (i.e., em correspondncia direta) com o conjunto de todas as aparncias (fenmenos observveis). Esse isomorfismo que ao menos um dos modelos deve possibilitar o que permite, segundo van Fraassen, que a teoria d conta dos fenmenos (por

ib.usp.br/revista

26

Nunes-Neto e El-Hani: Fundamentos epistemolgicos da teoria das hierarquias


que no h uma realidade externa independente de ns. Em outra passagem, os autores explicitam um pouco mais os fundamentos de suas posies: Nossa posio que h provavelmente um mundo onde h existncia, mas as coisas no existem como coisas l fora. Ns nunca temos acesso ao mundo, mas aprendemos a partir de uma interao com ele (Ahl e Allen, 1996, p. 74). Esta a posio intermediria entre o solipsismo e o realismo a que j nos referimos na Introduo. possvel mostrar que a teoria das hierarquias, situada assim entre o solipsismo e o realismo, pode receber um fundamento adequado na perspectiva anti-realista de van Fraassen. Essa empreitada permite formular em termos epistemolgicos mais consistentes a teoria proposta por Ahl, Allen e outros. Quanto s entidades e aos processos postulados pela cincia, podemos assumir, da perspectiva da teoria das hierarquias, que os inobservveis (ou, em seus termos, intangveis) no necessariamente existem (ou, ao menos, que sua existncia ou inexistncia sem importncia para os juzos epistmicos), seguindo a posio de van Fraassen. Ou seja, o juzo sobre a existncia das entidades e dos processos intangveis postulados pelos modelos cientficos seria irrelevante para a aceitao ou a rejeio desses modelos, bem como da teoria que os inclui. Este ponto no suficientemente elaborado pelos autores que tm trabalhado com o pensamento hierrquico. Trata-se, ento, de dar passos adiante na epistemologia associada ao pensamento hierrquico, buscando embasar suas teses no anti-realismo de entidades, que parte do empirismo construtivo de van Fraassen. Quanto verdade, a teoria das hierarquias aceita sem problemas que a cincia no objetiva a verdade, nem a descoberta de um mundo para alm dos fenmenos, mas uma atividade de construo de modelos, que so avaliados por suas virtudes pragmticas (ou seja, por suas consequncias prticas, aplicadas), como poder preditivo e explicativo, e tambm por suas virtudes epistmicas, como a adequao emprica. Isso significa que a teoria das hierarquias tambm pode receber um fundamento no anti-realismo de teorias, compartilhado por filsofos como Hacking e van Fraassen3.

definio, aquelas entidades ou processos observveis). Em outras palavras, necessrio que o modelo represente adequadamente estes fenmenos, constituindo uma imagem cientfica do mundo (da o ttulo do livro de van Fraassen, A Imagem Cientfica). Isso significa que todos os juzos que importam para a aceitao das teorias devem ser voltados para as entidades observveis apenas. De outro lado, juzos sobre entidades inobservveis no so necessrios, do ponto de vista de van Fraassen, para determinar a aceitao ou no de uma teoria cientfica, por certo grupo de cientistas. Vale lembrar que tais juzos podem ter outros papis, pragmticos, no trabalho cientfico, como ilustramos acima, com os juzos sobre as vias mais poderosas para o desenvolvimento de uma teoria. Pode ter sido mais poderoso, por exemplo, desenvolver a gentica em suas primeiras dcadas sem assumir uma hiptese sobre a existncia dos genes como entidades materiais. Contudo, em perodo posterior da histria da gentica, foi mais poderoso assumir a existncia material do gene, o que pavimentou, por exemplo, o caminho para a construo do modelo da dupla hlice (El-Hani, 2007). Estes no so, no entanto, juzos epistmicos, que so aqueles pertinentes, para van Fraassen, aceitao de uma teoria. Trata-se de juzos de outra ordem, conforme distino que fizemos acima. A posio de van Fraassen no cenrio filosfico atual pode ser melhor compreendida se adotarmos como referncia uma anlise empreendida por Ian Hacking (1983), para o qual h dois debates separados sobre o realismo cientfico, que frequentemente aparecem misturados nas discusses filosficas. O primeiro um debate sobre o papel que a noo de verdade tem na avaliao das teorias cientficas, ou seja, na determinao de juzos sobre sua aceitao (denominados acima juzos epistmicos). O segundo debate est relacionado ao estatuto ontolgico (isto , existencial) das entidades inobservveis postuladas na linguagem cientfica, como, por exemplo, eltron, gene ou DNA. Van Fraassen se qualifica como um anti-realista nos dois campos, ou seja, um anti-realista de entidades (os inobservveis no necessariamente existem, devendo-se ser agnstico a seu respeito) e de teorias (as teorias cientficas no visam verdade, mas apenas adequao emprica).

Os fundamentos anti-realistas da teoria das hierarquias


A partir daqui, ento, comearemos a discutir com mais nuances a proximidade entre a teoria das hierarquias, tal como formulada por Ahl e Allen, e a filosofia de van Fraassen. A teoria das hierarquias pretende assumir uma posio anti-realista, intermediria entre o solipsismo e o realismo. Nas palavras de Ahl e Allen, a teoria das hierarquias no afirma o solipsismo, uma filosofia que declara que tudo uma questo de construo humana. Para o solipsismo, no h mundo l fora, porque tudo uma construo humana (Ahl e Allen, 1996, p. 74). Aqui, os autores desejam afastar-se do solipsismo, a idia de que o mundo fsico uma criao da mente apenas, ou seja, de

Consideraes finais
guisa de concluso, podemos dizer que a construo de um fundamento anti-realista para a teoria das hierarquias somente ser realizada satisfatoriamente como parte de um programa de pesquisa filosfico e, portanto, demanda muito amadurecimento. Estamos, portanto, dando apenas um passo neste sentido no presente artigo. De nosso ponto de vista, o trabalho filosfico no que concerne teoria das hierarquias deve ter um duplo objetivo, em particular no que tange biologia. De um lado, necessrio analisar e explicitar os fundamentos epistemolgicos da teoria das hierarquias (como seu vis anti3 No se deve, contudo, perder de vista que Hacking um realista de entidades, em contraste com van Fraassen. Ver Hacking (1983).

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2)


-realista). De outro lado, importante derivar implicaes possveis ou analisar aquelas j existentes da teoria para o ensino e a prtica da biologia. Aqui, demos apenas um primeiro passo no sentido de clarificar os fundamentos filosficos desta teoria.

27

Agradecimentos
Os autores agradecem FAPESB, CAPES e ao CNPq por financiamentos que proporcionaram a realizao deste estudo, e a Dlia Conrado e a Leopoldo Marchelli, pelas sugestes para melhoria do texto.

Referncias
Ahl V e Allen T. 1996. Hierarchy theory: a vision, vocabulary, and epistemology. New York: Columbia University Press. Allen T e Hoekstra T. 1992. Toward a unified Ecology. New York: Columbia University Press. Bachelard G. 1996. A formao do esprito cientfico: contribuio para uma Psicanlise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto. Dutra LH. 2009. Introduo teoria da cincia. Florianpolis: Editora da UFSC. El-Hani CN. 2007. Between the cross and the sword: the crisis of the gene concept. Genetics and Molecular Biology 30(2): 297-307. Falk R. 1986. What is a gene? Studies in the History and Philosophy of Science 17: 133-173. Gil-Prez D, Montoro IF, Als JC, Cachapuz A e Praia J. 2001. Para uma imagem no deformada do trabalho cientfico. Cincia & Educao 7 (2): 125-153. Hacking I. 1983. Representing and intervening. Cambridge: Cambridge University Press. Hanson NR. 1965. Patterns of discovery. London: Cambridge University Press. Jastrow J. 1899. The minds eye. Popular Science Monthly 54: 299-312. Johannsen W. 1909. Elemente der Exakten Erblichkeitslehre. Jena: Gustav Fisher. Kolb B e Wishaw IQ. 2002. Fundamentals of human Neuropsychology. New York: Worth Publishers. Kuhn T. 1962. A estrutura das revolues cientficas. So Paulo: Perspectiva. Shrader-Frechette K e McCoy ED. 1994. Applied ecology and the logic of case studies. Philosophy of Science, 61: 228-249. Simon H. 1969. The sciences of the artificial. Cambridge: MIT Press. Snow CP. 1993. The two cultures. Cambridge: Cambridge University Press. Van Fraassen B. 1980. The scientific image. Oxford: Clarendon Press. Von Bertalanffy L. 1976. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimentos e aplicaes. Petrpolis: Vozes. Vygotsky LS. 1984. A formao social da mente. So Paulo: Martins Fontes. Wanscher JHK. 1975. The history of Wilhelm Johannsens genetical terms and concepts from the period 1903 to 1926. Centaurus 19 (2): 125-147.

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2): 28-34


DOI: 10.7594/revbio.09.02.06

Artigo

legtimo explicar em termos teleolgicos na biologia?


Is it legitimate to explain in teleological terms in biology?
Departamento de Biologia Geral, Instituto de Biologia, Universidade Federal da Bahia
Contato dos autores: 1rscarmo@ufba.br, 2nunesneto@gmail.com, 3charbel.elhani@pq.cnpq.br Resumo. Neste artigo, defendemos a legitimidade de explicar em termos teleolgicos na biologia, desde que tal explicao seja limitada compreenso de fenmenos em seres vivos que so dirigidos para objetivos, como os processos fisiolgicos e o comportamento. inadequado explicar teleologicamente outros fenmenos biolgicos, como a evoluo. Dentro do domnio de validade das explicaes teleolgicas, as explicaes funcionais tm particular importncia na biologia. Discutimos aqui duas abordagens que podem ser seguidas para dar conta das explicaes funcionais, a etiolgica e a sistmica, que explicamos aqui a partir dos trabalhos de dois influentes filsofos da cincia, Wright e Cummins. Discutimos, por fim, a importncia de um uso apropriado das explicaes teleolgicas no ensino de biologia, seja superior, seja mdio. Palavras-chave. Teleologia, funo, ensino de biologia. Abstract. In this paper, we advocate the legitimacy of explaining in teleological terms in biology, provided that this explanation is limited to the understanding of phenomena in living beings that are directed towards goals, such as physiological processes and behaviors. It is inadequate to explain teleologically other biological phenomena, such as evolution. Within the domain of validity of teleological explanations, functional explanations have particular importance in biology. We discuss here two approaches that can be followed to account for functional explanations, the etiological and the systemic, which we explain here based on the works of two influential philosophers of science, Wright and Cummins. We finally discuss the importance of an appropriate use of teleological explanations in biological education, both in higher education and in high school. Keywords. Teleology, function, biology teaching. Recebido 17abr11 Aceito 25jul11 Publicado 15dez12

Ricardo Santos do Carmo1, Nei Freitas Nunes-Neto2, Charbel Nio El-Hani3

Em um artigo publicado em Scientiae Studia, peridico das reas de histria e filosofia das cincias, Marcelo Alves Ferreira (2003) fez um comentrio interessante acerca do modo pelo qual as pessoas em geral, incluindo os bilogos, explicam os fenmenos do mundo vivo. No entendimento desse autor, isso se d da seguinte maneira: Diante do modo de reproduo de uma espcie, das propores de uma estrutura ou do padro de uma migrao, ningum honestamente se pergunta: Como as mutaes nos genes dessa caracterstica vieram a se estabelecer por seleo? A pergunta efetiva seria Em que esta caracterstica serve sobrevivncia, qual sua funo? (Ferreira, 2003, p. 190). Essas palavras expem de modo claro um ponto muito importante que tem sido seriamente discutido por bilogos e filsofos da biologia, a saber: a elaborao de explicaes teleolgicas para compreenso dos fenmenos da vida. Esse modo de explicao e o termo que o nomeia so anteriores ao prprio nascimento do termo biologia, na dcada de 1760, por Michael Hanov (cf. McLaughlin, 2002) e das instituies que caracterizam a biologia enquanto cincia, no sculo XIX. O termo teleologia, em latim, foi introduzido pelo filsofo alemo Christian Wolff

em 1728, para se referir parte da filosofia natural que explicaria os fins das coisas (fines rerum explicat), em contraste com a filosofia natural que estudaria as causas das coisas (Owens, 1968; Lennox, 1992). O uso das explicaes teleolgicas tem sido investigado nos campos da psicologia cognitiva e psicologia da educao, nos quais identificamos a defesa da tese de que a teleologia um modo inato (Atran, 1995), bsico (Kelemen, 1999) ou autnomo (Keil, 1992, 1994, 1995) do pensamento biolgico de crianas e adultos. A definio do que seja uma explicao teleolgica varia em diferentes estudos. Contudo, no domnio das cincias biolgicas, entendemos que uma explicao teleolgica caracterizada pela referncia s noes de propsito, funo, objetivo, e, de modo geral, pode ser reconhecida por expresses como papel de, contribui para, alm de outras semanticamente equivalentes. Trata-se, assim, de um modo de explicao que se caracteriza pelo conceito de finalidade, possivelmente um dos mais fortes e mais bem estabelecidos no pensamento humano (Warren, 1916). Dessa perspectiva, a referncia primria para o estudo desse conceito nas cincias biolgicas Aristteles, embora ele remonte s ideias de Scrates, conforme apre-

Revista da Biologia (2012) 9(2)


sentadas no Fdon de Plato (Lennox, 1992), e tambm no Timeu (Plato, 1977). Todavia, precisamos logo chamar a ateno porque isto costuma dificultar sobremaneira o entendimento claro do modo teleolgico de explicao cientfica na biologia o conceito de finalidade aparece de maneira distinta nos textos de Aristteles e Plato. Em Plato, as explicaes em termos de propsito e funo, por exemplo, aludem existncia de um agente racional, que, agindo deliberadamente, visto como a causa do bom estado das coisas no mundo natural. Na filosofia de Aristteles, em contraste, o conceito de finalidade fundamental no estudo do funcionamento dos animais, nada tendo a ver com um agente sobrenatural com poder causal (o Demiurgo de Plato), como podemos ver no livro I de As Partes dos Animais (Aristteles, 1999). No captulo 1 dessa obra, Aristteles argumenta contra Empdocles que a concomitncia causal de causas materiais (que dizem respeito ao tipo particular de substncia de que algo feito) e causas eficientes (que explicam o movimento das coisas) no suficiente para explicar por que um ente natural (um leo, por exemplo) vem a ser de tal e tal tipo, i.e., com uma dada anatomia e forma. Para o Estagirita, prepondera sobre estas causas a funo, quer dizer, as capacidades vitais do leo. a realizao dessas capacidades relativas ao completo funcionamento do leo a principal causa de sua existncia, i.e., sua causa final. Em outras palavras, podemos dizer que Aristteles mobiliza o conceito de finalidade, ao lado do conceito de funo, para explicar que os atributos encontrados nos animais contribuem para um fim e, por isso mesmo, existem, como est expresso em sua conhecida mxima: A Natureza no faz nada em vo (Aristteles, 1984, 704b12-18). E, na medida em que a finalidade interna coisa, quer dizer, ao vivente, a filosofia de Aristteles no assume o pressuposto da teologia natural de que o universo o produto de um design inteligente (Lennox, 1992), o que seria um finalismo antiquado, de acordo com Lucas Angioni (1999, p. 94), um dos principais estudiosos brasileiros da obra do filsofo grego. Em sntese, dizemos que a teleologia de Aristteles imanente ou interna (Goudge, 1961, p. 193), em contraposio teleologia externa de Plato. Essa percepo mais precisa sobre as relaes entre os conceitos de finalidade e funo na filosofia de Aristteles fundamental para que tenhamos clareza a respeito das questes epistemolgicas que cercam a legitimidade das explicaes teleolgicas na biologia. A esse respeito, um ponto muito importante foi a substituio, durante a Revoluo Cientfica do sculo XVII, do modelo aristotlico fortemente marcado pela teleologia por um modelo mecnico do mundo. Esta nova concepo de mundo inclua tanto uma rejeio a um possvel vitalismo, i.e., um conjunto de ideias de que os organismos vivos diferem das coisas inanimadas por possurem um fluido ou esprito vital que no comparecia na tradio aristotlica, mas a ela foi incorporada na escolstica medieval , como tambm uma negao de uma linguagem prpria para a explicao dos fenmenos da vida. Como resultado da aceitao do modelo mecnico, qualquer explicao de um fenmeno natural s seria legtima se recorresse a

29

causas mecnicas (ou seja, causa eficiente aristotlica) e o fizesse atravs da meno a uma lei geral. A despeito dessa mudana do quadro terico e epistemolgico, a linguagem usada na compreenso dos processos e sistemas vivos sempre recorreu a noes teleolgicas, como funo e objetivo. O ponto fulcral que precisa ser destacado, porm, que estes usos pr-darwinistas de termos teleolgicos estavam fortemente comprometidos com pressupostos de natureza teolgica ou vitalista, que, como dissemos, foram inseridos na tradio aristotlica e terminaram por ser postos de lado na metafsica da cincia moderna. nesse contexto, que alcana o sculo XIX, que enfatizamos a contribuio substancial do trabalho de Darwin para os fundamentos das cincias biolgicas, na medida em que construiu as bases para apelar a expresses teleolgicas desde um ponto de vista que no se compromete com pressupostos teolgicos ou vitalistas. No entanto, mesmo a contribuio de Darwin no foi suficiente para desfazer um dilema dos bilogos com relao teleologia. De um lado, ainda se teme a associao de um discurso teleolgico na biologia com uma metafsica inaceitvel, enquanto, de outro, percebe-se que muito se perderia em termos explicativos e heursticos se a teleologia fosse posta de lado nessa cincia. No surpreendente, portanto, que muitos cientistas (Weisz, 1971; Gregory, 2009), educadores (Schwab, 1963; Hughes, 1973; Jungwirth, 1975; Gallant, 1981), filsofos e historiadores da cincia (Cummins, 2002; Ghiselin, 2005) considerem que a biologia contempornea no deve ter qualquer compromisso com a teleologia. Contudo, ainda que posies contrrias ocupem espao na literatura principal sobre o assunto, queremos aqui enfatizar nosso entendimento de que a questo central das discusses recentes no que concerne s explicaes teleolgicas no se a biologia deve ou no fazer uso delas, mas quais so seus usos apropriados e inapropriados. Neste artigo, discutiremos sob esse ponto de vista, e de modo sucinto, dois projetos explanatrios que buscam dar conta do modo teleolgico de explicao nas cincias biolgicas: as abordagens (1) etiolgica e (2) sistmica.

Abordagem Etiolgica
Na filosofia da biologia, a importncia dessa abordagem reconhecida por colocar a teleologia e, em particular, o conceito de funo, no centro dos debates acerca da explicao cientfica. No perodo anterior a esse projeto terico, nas dcadas de 1950 e 1960, marcado pela hegemonia do empirismo lgico, a viso cannica (received view) quanto a esse assunto sustentava que uma explicao deveria ser considerada cientfica se fosse compatvel com um modo de explicao baseado em leis gerais, o qual foi formalizado no chamado modelo dedutivo-nomolgico (D-N) de explicao (Salmon, 1990). Em linhas gerais, a partir da aceitao do modelo D-N, uma explicao cientfica precisaria fazer referncia a, ao menos, uma lei geral e conter afirmaes empricas sobre fatos particulares, i.e., condies prvias relativas ao fenmeno a ser explicado. Nessa anlise formal, ento, a sentena que conta como

ib.usp.br/revista

30

do Carmo e col: legtimo explicar em termos teleolgicos na biologia?


ght, 1973, p. 163). Essa nfase justificada pelo interesse de Wright em uma definio de funo livre de qualquer referncia noo de utilidade, porque pelo menos na biologia um trao pode ter uma utilidade, mas que no conta como uma funo, no sentido de que lhe falta uma etiologia. Esse um ponto importante que temos de compreender para conhecermos os limites da viso de Wright, como tambm das abordagens etiolgicas de outros autores. A nfase de Wright sobre o mecanismo de seleo natural coloca limites importantes a seu projeto explanatrio. Um limite importante a dificuldade prtica de determinar qual o primeiro efeito selecionado de um trao, j que, como Amundson e Lauder (1994, p. 461) pontuaram, os ambientes e as presses seletivas mudam ao longo do tempo geolgico. difcil tambm precisar o alvo da seleo natural, i.e., dizer que a seleo atuou apenas em determinado trao (Lauder e col., 1993; Amundson e Lauder, 1994). Este , de fato, um problema srio e bem documentado na literatura em, pelo menos, dois casos: primeiro naqueles em que a seleo de um trao pelo efeito que conta como sua funo biolgica acompanhada por mudanas em outros traos, porque so correlacionados. Por exemplo, em uma populao de lagartos, a seleo de genes para o aumento da capacidade de corrida pode ter sido acompanhada de seleo de genes para uma maior capacidade cardiorrespiratria e aumento do tamanho corporal (Amundson e Lauder, 1994). Outro caso que corrobora essa dificuldade de isolar o efeito selecionado a existncia dos traos complexos, aqueles formados pela articulao interna de componentes. Em sntese, o ponto importante neste caso que o efeito E de um trao complexo T o resultado da ao articulada de cada um de seus componentes t1 tn. Contudo, isto no significa que a seleo de T, entre variaes existentes para esse trao complexo, tenha acontecido devido a variaes em todos os seus componentes. possvel que o componente t1 de T tenha permanecido inalterado ao longo do tempo e, dessa maneira, T difere de seus variantes, T e T, digamos, em relao a outros componentes ti, mas no a t1. Por esta razo, note que, em casos assim, T alvo da seleo natural, enquanto t1 no, porque, como sabemos, seleo requer variao dentro de um mesmo ambiente seletivo (Brandon, 1990). Portanto, um bilogo informado pela abordagem etiolgica no atribui qualquer funo a t1, embora a funo desse componente seja necessria para o efeito E do trao complexo T (ver Buller, 1998, para uma anlise crtica a este respeito). Dois limites adicionais da abordagem etiolgica dizem respeito ao fato de que um trao pode realizar mais de uma funo que podemos chamar de problema da multifuncionalidade do trao , e s diferentes maneiras como um trao pode realizar um dado efeito que conta como uma funo, ou como traos diferentes, mas equivalentes, podem realizar o mesmo efeito conhecido na literatura como problema dos equivalentes funcionais1.
1 Para muitos autores, este constitui a principal dificuldade para a aceitao de explicaes funcionais na biologia. Ernest Nagel e Carl Hempel, dois dos mais destacados filsofos da ci-

uma explicao do fenmeno em pauta segue, como consequncia lgica, das afirmaes anteriores, quais sejam, as leis e as afirmaes particulares (para detalhes, ver Hempel e Oppenheim, 1948). Dessa perspectiva, as explicaes em termos teleolgicos foram questionadas quanto sua legitimidade cientfica, porque no satisfazem a todos os requisitos de um modelo de explicao baseado em leis. Por exemplo, na biologia, de modo importante, as explicaes possuem generalidade, mas no so universais (e, de fato, os bilogos no pretendem que o sejam). A crtica mais fundamental, contudo, foi a de que, nas explicaes teleolgicas, a sentena que conta como uma explicao no segue das sentenas que fazem referncia a uma ou mais leis gerais, mas, ao contrrio, estas ltimas sentenas seguem da sentena explicativa. Contudo, na medida em que o modelo D-N perdeu espao na comunidade de filsofos da cincia, aps ter recebido muitas crticas, principalmente atravs de fortes exemplos contrrios (para uma reviso crtica, ver Salmon, 1990, 1992), o debate sobre as explicaes teleolgicas voltou cena. Ao mesmo tempo em que as limitaes do modelo D-N foram sendo expostas, uma virada importante no debate acerca dos enunciados teleolgicos na biologia e em outros campos do conhecimento teve lugar a partir do artigo Functions, do filsofo Larry Wright (1973). Em particular, Wright argumentou que as atribuies funcionais so um tipo de explicao legtima, no sentido de que enunciar a funo de um trao biolgico i.e., uma estrutura, um comportamento, um processo fisiolgico , com referncia sua histria seletiva o mesmo que explicar por que o trao existe. E, por esta via, a explicao forte na medida em que distingue efeitos funcionais de efeitos meramente acidentais, i.e., os efeitos perifricos, que, porque no foram selecionados para, no explicam por que o organismo considerado possui aquele trao. Desse modo, apenas os efeitos funcionais podem explicar a presena de certos traos. Esta precisamente a tese seminal da abordagem etiolgica, conforme originalmente proposta por Wright, e, depois, modificada por diferentes autores em teorias relacionadas, como a teoria da funo prpria de Millikan (1984, 1989), Neander (1991a, 1991b, 1995) e Griffths (1992, 1993), e a teoria da histria moderna de Godfrey-Smith (1993, 1994). Em uma definio direta, no contexto atual dessa abordagem, uma funo biolgica o efeito positivamente selecionado no passado por causa de sua contribuio para aumentar as chances de sobrevivncia e reproduo de seu possuidor em um ambiente especfico. Trata-se, assim, de uma definio que sustenta a tese de que a causa para a existncia de um trao funcional o mecanismo de seleo natural. Nesse sentido, os bilogos no atribuem funo a traos no-funcionais, mas sim queles que so teis e construtivos, como comenta Godfrey-Smith (1994, p. 347) acerca do problema da origem dos traos. Embora Wright no tenha dirigido a abordagem etiolgica s questes da biologia em particular, inegvel seu vnculo com esta cincia atravs da nfase conferida seleo natural para a demarcao de uma funo (Wri-

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2)


Estes dois problemas adicionais foram percebidos com as discusses em torno da concepo etiolgica introduzida por Wright em meados da dcada de 1970, mas so um desafio para qualquer projeto filosfico para lidar com as explicaes funcionais na biologia. O fato de que um trao pode realizar funes diferentes se mostra um problema para o projeto etiolgico na medida do seu compromisso com a definio de um predicado normativo para o conceito de funo. Trata-se, nesse sentido, da tese de que a funo de um trao biolgico o que ele foi selecionado para fazer, conforme propuseram, independentemente, Ruth Millikan (1984, 1989) e Karen Neander (1991b) sob a rubrica da teoria etiolgica da funo prpria (proper function). Essa teoria acomoda, de modo geral, a tese primria da abordagem etiolgica, i.e., de que atribuir funo a um trao biolgico explicar por que esse trao existe. Mas, se um trao multifuncional, i.e., tem uma funo Y e uma funo Z, como decidir qual delas deve ser a funo prpria? Dito de outro modo, por causa de qual efeito, no passado, o trao foi positivamente selecionado? Em nenhuma teoria filiada abordagem etiolgica encontramos uma resposta conclusiva para essa questo, que expe uma situao frequente nas cincias biolgicas. Numa linha terica, define-se a funo prpria desde o passado remoto do trao (Millikan, 1989, 1993; Griffiths, 1993); em outra, por referncia ao passado recente (Boorse, 1976; Neander, 1991a; Godfrey-Smith, 1994). Por uma questo de espao, contudo, no iremos aprofundar esse ponto aqui. De outro modo, queremos destacar tambm que um desafio para o conceito de funo desde uma perspectiva etiolgica o fato comum na biologia de que uma funo pode ser realizada de diferentes maneiras por um trao, ou por traos diferentes, mas equivalentes. No primeiro caso, tome como exemplo o fato da fisiologia humana de que o fgado regula a concentrao de glicose no sangue por duas vias, quais sejam, a inibio ou o aumento dos processos de gliconeognese e glicogenlise. Outro exemplo de equivalncia funcional na biologia, concernente segunda possibilidade, que a funo de transportar oxignio no sangue dos animais realizada por vrios pigmentos respiratrios (hemocianina, hemeritrina, clorocruorina, hemoglobina). No avanaremos aqui no debate sobre este ponto; para isso, recomendamos a leitura de outro trabalho nosso (Carmo, Nunes-Neto e El-Hani 2012). Para concluir esta seo, destacamos o principal limite do projeto etiolgico de explicao, devido ao seu forte compromisso com o mecanismo de seleo natural:
ncia do perodo do empiricismo lgico, propuseram solues, mas, entendemos, solues com limites importantes, mormente em razo do compromisso deles de que as explicaes cientficas devem ser de carter universal, conforme o modelo D-N, tendo em vista os casos estudados na fsica. De nossa parte, tambm enfrentamos o problema dos equivalentes funcionais e argumentamos que os equivalentes funcionais no minam a cientificidade das explicaes biolgicas, porquanto no necessrio que as explicaes em biologia sejam universais para que contem como cientficas, importam que elas possuam generalidade. Para uma discusso detalhada, recomendamos fortemente a leitura de Carmo, Nunes-Neto e El-Hani (2012).

31

o embarao entre os conceitos de funo e adaptao biolgica. Na medida em que esse um mecanismo comum aos dois conceitos, no est claro quo distintos eles so (Sober, 1993). Este um problema terico que pretendemos esclarecer com a tese de doutorado de um dos autores (R. S. do Carmo) deste artigo.

Abordagem Sistmica
Na literatura filosfica, o artigo Functional Analysis, de Robert Cummins (1975), introduz uma teoria que primariamente diz respeito atribuio de funes a partes de sistemas complexos. Esse projeto explanatrio busca explicar como sistemas complexos funcionam pelo estudo das disposies ou capacidades das partes ou itens de tais sistemas, prescindindo de consideraes histricas. Em razo disso, h autores que o percebem como contrrio (Davies, 2001; Cummins, 1975, 1983, 2002), ou mesmo rival (ustar, 2007) ao projeto etiolgico. De nossa parte, tendemos a evitar essa oposio, porque h argumentos para pensarmos que ambas concorrem para definir usos apropriados do conceito de funo em dois domnios no-concorrentes da biologia, quais sejam, a biologia funcional e a biologia evolutiva (Mayr, 2005; Jacob, 1983 [1970]). Contudo, a validade da abordagem etiolgica no domnio da biologia evolutiva relativamente limitada, por seus compromissos selecionistas, bem como porque o uso explicativo do conceito de funo na biologia evolutiva se restringe aos casos em que estamos lidando com novidades evolutivas (Nunes-Neto e El-Hani, 2009; Nunes-Neto e El-Hani, 2011). Nos demais casos, no a funo que tem poder explicativo, em si mesma, mas diferenas de performance funcional de caractersticas ou comportamentos distintos dos organismos, que cumprem a mesma funo. Dito isso, vejamos, de modo sucinto, a abordagem sistmica do conceito de funo nas cincias biolgicas. Em primeiro lugar, devemos notar o argumento central proposto por Cummins (1975, 1983): as explicaes funcionais podem ser formuladas independentemente de consideraes evolutivas. Nas prprias palavras dele, uma capacidade complexa de um organismo [...] pode ser explicada mediante apelo a uma anlise funcional, independentemente de como essa capacidade se relaciona capacidade do organismo de manter a espcie (Cummins, 1975, p. 756). A centralidade deste argumento tal que Cummins (2002, p. 167) o reitera nos seguintes termos: a anlise funcional anterior a, e independente de, avaliaes de adaptatividade, i.e., se algo tem ou no uma funo, e qual aquela funo acontece de ser, inteiramente independente de se ela foi selecionada e aumentou de frequncia (Cummins, 2002, p. 166). Em segundo lugar, acrescente-se que na base deste argumento est a ideia de que a abordagem etiolgica se revela limitada, por sua insistncia em considerar a funo como algo que explica a presena de um item num dado organismo. De fato, Cummins (1975, p. 747) se declara avesso ao modo etiolgico de explicao ao qual ele negativamente atribui o rtulo teleolgico, numa compreenso limitada,

ib.usp.br/revista

32

do Carmo e col: legtimo explicar em termos teleolgicos na biologia?


foco de nosso interesse aqui, procedemos a uma anlise da disposio do objeto em uma srie de disposies que a compem. Desse modo, certa disposio explicada a partir de sua anlise (ou decomposio) em disposies que a compem. As funes atribudas aos componentes dos sistemas so exatamente as suas disposies, que contribuem para a realizao de uma capacidade ou disposio do sistema como um todo. Por exemplo, bombear sangue funo do corao porque essa a disposio que o corao exibe e que contribui para a realizao de uma disposio do organismo como um todo circular nutrientes e gases pelo corpo , disposio esta tomada aqui como objetivo a ser explicado pela anlise funcional (Cummins, 1975). A proposta de Cummins pode ser mais bem compreendida se for colocada em contraste com a abordagem etiolgica de funo. Em primeiro lugar, devemos notar, conforme aponta Cummins (2002, p. 158), que enquanto a teleologia busca responder questo por-que-ele-existe [why-is-it-there] respondendo questo anterior para-que-ele-serve [what-is-it-for], a anlise funcional no se dirige de modo algum questo por-que-ele-existe, mas questo como-ele-funciona [how-does-it-work]. Em segundo lugar, diferentemente do que ocorre na abordagem de Wright (como, de resto, em todos os proponentes de teorias etiolgicas), na qual os alvos da atribuio funcional e da explicao funcional so os mesmos ou seja, atribuir funo a algo explic-lo funcionalmente , na perspectiva analtica de Cummins, explicao e atribuio funcional no coincidem, porque no se dirigem aos mesmos alvos. Enquanto atribumos funo a um componente do sistema, o alvo da explicao uma capacidade deste sistema continente (Cummins, 2002). Isso nos leva a perceber a mudana de foco que Cummins prope em sua anlise funcional, com relao s abordagens etiolgicas de funo. Para ele, o fenmeno que merece ser explicado no a existncia ou presena de certo item (como Wright prope), mas sim uma capacidade (que desejamos compreender) de um sistema complexo. Em suma, funo algo a que ns apelamos para explicar a capacidade de um sistema continente, no para explicar por que algum item existe em tal sistema. Pode-se argumentar que, embora distinta da abordagem etiolgica, que busca explicar por que algum trao est presente num dado organismo, a anlise funcional preserva, ainda assim, um carter teleolgico. Isso pode ser denunciado por formulaes como a de que explicamos funcionalmente quando identificamos qual contribuio uma parte de um sistema faz para uma capacidade de um sistema continente. Desse modo, podemos ver a anlise funcional como uma sistematizao da teleologia intra-orgnica a que aludia o importante fisilogo francs do sculo XIX Claude Bernard (Caponi, 2003). Temos, portanto, uma perspectiva sob a qual podemos qualificar a abordagem de Cummins como teleolgica, ainda que ele negue tal compromisso de sua teoria. Assim, para encerrar esse ponto, importante notar que as duas abordagens sobre funo aqui analisadas (a etiolgica e a sistmica) so, do nosso ponto de vista,

em nosso entendimento, do significado do termo (Nunes-Neto e El-Hani, 2009, p. 121; Carmo, 2010) , entendendo-o como um ato de desespero nascido do pensamento de que no h outro uso explicativo para a caracterizao funcional na cincia. teleolgica, para Cummins (2002, p. 162), a tese de que algo existe por causa do efeito que conta como sua funo, i.e., a abordagem etiolgica. Em contraste, Cummins defende o carter no-teleolgico da abordagem sistmica das explicaes funcionais. Consoante a isso a sua proposta de que a teleologia deve ser eliminada da biologia ou de sua filosofia. Ns discordamos dessa ideia de que a perspectiva de Cummins seja no-teleolgica, como brevemente explicaremos mais adiante. Um ponto importante que Cummins aborda o assunto de uma perspectiva diferente das abordagens etiolgicas, a saber: em termos de disposies e capacidades complexas, enquadrando sua teoria numa perspectiva sistmica do mundo. Por exemplo, para Cummins (1975), se um objeto x funciona como uma bomba em um sistema s, ou se a funo de x em s bombear, ento, dizemos, ele deve ter a disposio de bombear em s. Desse modo, na viso de Cummins, atribuir uma funo a algo , ao menos em parte, atribuir uma disposio a esse algo. Exemplos de disposies so: dissolver, dilatar, elevar, bombear etc., as quais, para se realizarem dependem de condies antecedentes que as precipitem. Essas disposies, desde a perspectiva sistmica de Cummins, podem ser explicadas atravs de duas estratgias diferentes, mas complementares. No entraremos em detalhes acerca desse assunto aqui, devido sua complexidade, porm, em poucas palavras, podemos dizer o seguinte: as disposies do mundo fsico e qumico so geralmente explicadas a partir de uma explicao que recorre a leis naturais (constituindo a estratgia da instanciao ou subsuno), enquanto que as disposies do mundo biolgico, em geral, podem ser explicadas a partir da estratgia de anlise funcional2. A estratgia da subsuno consiste em submeter um caso particular, no qual um objeto manifesta certa disposio, a uma regularidade sobre aquela mesma disposio. Por exemplo, podemos explicar desta forma a disposio de uma barra de ferro de dilatar-se mediante o aumento de temperatura. Nesse caso, a explicao se d atravs da aplicao de uma regularidade da fsica, relativa dilatao (digamos, a lei da dilatao linear dos corpos), associada a informaes sobre o objeto particular em questo, como seu coeficiente de dilatao linear, a variao de temperatura a que o objeto foi submetido, a variao de seu comprimento, etc. Dito de outro modo, a regularidade cobre (ou compreende) o caso particular em questo e, em associao com as condies iniciais particulares, explica a manifestao da disposio no objeto. Trata-se, em suma, do modo de explicao formalizado no modelo D-N, discutido acima. Segundo Cummins, na estratgia analtica, que o
2 Para mais detalhes, sugerimos consultar o original (Cummins, 1975) ou trabalhos que explicam e mostram aplicaes da abordagem original de Cummins (Nunes-Neto e El-Hani, 2009; Nunes-Neto e El-Hani, 2011).

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2)


teleolgicas, ainda que se apiem em sentidos diferentes do termo teleologia. Essas duas teleologias so, inclusive, representativas da linguagem usada em cada uma das duas reas da biologia. Para mais detalhes acerca desse ponto, recomendamos a leitura de Caponi (2003). Porm, ao dizer que elas so teleolgicas, no estamos afirmando que elas introjetam crenas antimaterialistas ou sobrenaturais no mbito da biologia. Para ns, como j dissemos, tais abordagens teleolgicas de funo so perfeitamente coerentes com o naturalismo da cincia e da biologia atual, isto , no postulam inverso de causalidade, foras vitais ou interferncia de entidades sobrenaturais sobre o mundo emprico, por exemplo. Essa crtica, como destaca Mayr, seria vlida para vitalistas como Henri Bergson e Hans Driesch, hoje no se aplica a qualquer darwinista que usa a linguagem teleolgica (1992, p. 122).

33

no contexto da abordagem histrica de Wright. A funo das hemcias , de uma perspectiva etiolgica, transportar oxignio, sendo um mero acidente, uma casualidade, carrear outro gs. Em termos gerais, levar em considerao os avanos epistemolgicos do debate sobre as atribuies e explicaes funcionais em biologia tem contribuies importantes a dar para um tratamento consistente dos usos de funo no conhecimento escolar de biologia seja no ensino superior, seja no ensino mdio. Dois modos analisados aqui de explicar funcionalmente na biologia (etiolgico e sistmico) oferecem bases epistemolgicas consistentes para os usos de funo no ensino de biologia. Em particular, j temos, como parte do conhecimento escolar de biologia do ensino mdio, todos os requisitos para o emprego da abordagem sistmica.

Consideraes finais
Finalizando este artigo, queremos enfatizar que os educadores em cincia tm recusado as formulaes teleolgicas na biologia porque elas podem dificultar o entendimento pelos estudantes das relaes de causa e efeito no mundo natural e, alm disso, podem representar um modo de atribuir conscincia a seres no-humanos, se tomadas literalmente (Bartov, 1981, p. 79). Em vista dessa preocupao, encontramos diferentes autores na defesa de que a linguagem funcional no goza de legitimidade cientfica, tendo simplesmente valor metafrico (Lewens, 2004) e heurstico (Schaffner, 1993). De outro modo, sabemos tambm das tentativas de traduzir as explicaes em termos teleolgicos em uma linguagem mecnica, por exemplo, sob o pressuposto do seu carter factual, considerado ausente nas formulaes teleolgicas. Ao longo do debate acerca de dois projetos filosficos de explicao funcional, a questo da legitimidade cientfica, em nosso entendimento, est superada. Como dissemos na introduo, alm de refinar os projetos explanatrios, o ponto importante agora definir os usos apropriados e inapropriados de noes teleolgicas (e.g., funo, objetivo) na biologia. Nas salas de aula de biologia no Brasil, trs obras usadas pelos professores para o ensino dessa cincia na escola pblica brasileira fazem amplo uso dos modos etiolgico e sistmico de funo, como notamos em recente investigao (Carmo, 2010). No entanto, apesar do amplo uso mormente do modo sistmico essas explicaes, nos livros didticos analisados, carecem de fundamentos epistemolgicos consistentes para tratar das questes dos diferentes campos da biologia. Esse , pois, o principal obstculo para o ensino das vantagens e desvantagens das explicaes em termos de funo e objetivo na biologia. Por exemplo, em uma das obras analisadas, Frota-Pessoa explica que o sangue um tecido conjuntivo e que a funo das hemcias transportar oxignio, alm de parte do dixido de carbono, em quantidade maior do que faria igual volume de plasma (Frota-Pessoa, 2005, p. 142). Ao atribuir s hemcias a funo de transportar dixido de carbono (CO2), o autor nos indica que no tem na devida conta a distino entre funo e acidente construda

Agradecimentos
R.S.C. agradece CAPES pela concesso de bolsa de Doutorado; N.F.N.N. agradece FAPESB pela concesso de bolsa de Doutorado e por apoios financeiros para pesquisa; C.N.E.H. agradece ao CNPq por bolsa de produtividade em pesquisa nvel 1-C (no 301259/2010-0) e FAPESB e ao CNPq por financiamentos de projetos de pesquisa.

Referncias
Amundson R e Lauder GV. 1994. Function without purpose: the uses of causal role functions in evolutionary biology. Biology and Philosophy 9: 443-469. Angioni L. 1999. As partes dos animais, Livro I. Cadernos de Histria e Filosofia da Cincia 9 (especial): 1-148. Aristteles. 1984. The complete works of Aristotle: the revised Oxford translation. In J. Barnes (ed.). Princeton: Princeton University Press. 2 Vols. Aristteles. 1999. As partes dos animais, Livro I. Traduo e comentrios de L. Angioni. Cadernos de Histria e Filosofia da Cincia 9 (especial): 17-34. Atran S. 1995. Causal constraints on categories. In: Sperber D, Premack D e Premack AJ, editors. Causal cognition: a multi-disciplinary debate. Oxford: Clarendon Press 205233. Bartov H. 1981. Teaching students to understand the advantages and disadvantages of teleological and anthropomorphic statements in Biology. Journal of Research in Science Teaching 18: 79-86. Boorse C. 1976. Wright on functions. The Philosophical Review 85: 70-86. Brandon R. 1990. Adaptation and environment. Princeton: Princeton University Press. Buller D. 1998. Etiological theories of functions: a geographical survey. Biology and Philosophy 13: 505-527. Caponi G. 2003. Os modos da teleologia em Cuvier, Darwin e Claude Bernard. Scientiae Studia 1: 27-41. Carmo RS. 2010. Explicaes teleolgicas e funcionais em livros didticos de Biologia do Ensino Mdio. Dissertao de Mestrado, Universidade Federal da Bahia. Carmo RS, Nunes-Neto, NF e El-Hani CN. 2012. Equivalentes funcionais e generalizaes na biologia. In: Silva CC e Salvatico L, editores. Filosofia e Histria da Cincia no Cone Sul: seleo de trabalhos do 7 Encontro da AFHIC. Porto Alegre: Entrementes Editorial 466-481.Cummins R.

ib.usp.br/revista

34

do Carmo e col: legtimo explicar em termos teleolgicos na biologia?


Mayr E. 2005. Biologia: cincia nica. Trad. de M. Leite. So Paulo: Companhia das Letras. Millikan RG. 1984. Language, thought, and other biological categories. Cambridge: MIT Press. Millikan RG. 1989. In defense of proper functions. Philosophy of Science 56: 288-302. Millikan RG. 1993. Propensities, exaptations, and the brain. In: White queen psychology, and other essays for Alice. Cambridge: MIT Press 31-50. Neander K. 1991a. The teleological notion of function. Australasian Journal of Philosophy 69: 454-468. Neander K. 1991b. Function as selected effects: the conceptual analysts defense. Philosophy of Science 58: 168-184. Neander K. 1995. Explaining complex adaptations: a reply to Sobers Reply to Neander. British Journal for the Philosophy of Science 46: 583-587. Nunes-Neto NF e El-Hani CN. 2009. O que funo? Debates na Filosofia da Biologia Contempornea. Scientiae Studia 7: 353-401. Nunes-Neto NF e El-Hani CN. 2011. Functional explanations in biology, ecology, and earth system science: contributions from philosophy of biology. Boston Studies in the Philosophy of Science 290: 185-200. Owens J. 1968. Teleology of nature in Aristotle. The Monist 52: 159-173. Plato. 1977. Timeu. Trad. de C. A. Nunes. Belm: Editora da Universidade Federal do Par. Salmon WC. 1990. Four decades of scientific explanation. Minneapolis: University of Minnesota Press. Salmon WC. 1992. Scientific explanation. In: Salmon MH, editor. Introduction to the Philosophy of Science. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall 7-41. Schwab JJ., editor. 1963. Biology teachers handbook. New York: John Wiley & Sons. Schaffner KF. 1993. Discovery and explanation in Biology and Medicine. Chicago: University of Chicago Press. Sober E. 1993. The Philosophy of Biology. Boulder, CO: Westview Press. ustar P. 2007. Neo-functional analysis: phylogenetical restrictions on causal role functions. Philosophy of Science 74: 601-615. Warren HC. 1916. A study of purpose. The Journal of Philosophy, Psychology and Scientific Methods 13: 5-26. Weisz PB. 1971. The science of biology. New York: McGraw-Hill. Wright L. 1973. Functions. The Philosophical Review 82: 139168.

1975. Functional analysis. The Journal of Philosophy 72: 741-765. Cummins R. 1983. The nature of psychological explanation. Cambridge, MA: MIT Press. Cummins R. 2002. Neo-teleology. In: Ariew A, Cummins R e Perlman M, editors. Functions: new essays in the Philosophy of Psychology and Biology. Oxford: Oxford University Press 157-172. Davies PS. 2001. Norms of nature: naturalism and the nature of functions. Cambridge, MA: MIT Press. Ferreira MA. 2003. A teleologia na Biologia contempornea. Scientiae Studia 1: 183-193. Frota-Pessoa O. 2005. Biologia. So Paulo: Scipione. Gallant RA. 1981. Pitfalls of personification. Science and Children 19: 16-17. Ghiselin MT. 2005. The Darwinian revolution as viewed by a philosophical biologist. Journal of the History of Biology 38: 123-136. Godfrey-Smith P. 1993. Functions: consensus without unity. Pacific Philosophical Quarterly 74: 196-208. Godfrey-Smith P. 1994. A modern history theory of functions. Nos 28: 344-362. Goudge TA. 1961. The ascent of life. Toronto: University of Toronto Press. Griffiths P. 1992. Adaptive explanations and the concept of a vestige. In: Griffiths P, editor. Trees of life: essays in the Philosophy of Biology. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers 111-131. Griffiths P. 1993. Functional analysis and proper functions. The British Journal for the Philosophy of Science 44: 409-422. Gregory TR. 2009. Understanding natural selection: essential concepts and common misconceptions. Evolution: Education and Outreach 2: 156-175. Hempel C e Oppenheim P. 1948. Studies in the logic of explanation. Philosophy of Science 15: 135-175. Hughes A. 1973. Anthropomorphism, teleology, animism, and personification: why they should be avoided. Science and Children 10: 10-11. Jacob F. 1983 [1970]. A lgica da vida: uma histria da hereditariedade. Trad. de A. L. Souza. Rio de Janeiro: Graal. Jungwirth E. 1975. Caveat mentor: let the teacher beware! Research in Science Education 5: 153-160. Keil FC. 1992. The origins of an autonomous biology. In Gunnar MR e Maratsos M, editors. Modularity and constraints in language and cognition. Hillsdale, NJ: Earlbaum 103-138. Keil FC. 1994. The birth and nurturance concepts by domains: the origins of concepts of living things. In: Hirschfeld LA e Gelman S, editors. Mapping the mind: domain specificity in cognition and culture. Cambridge: Cambridge University Press 234-254. Keil FC. 1995. The growth of causal understanding of natural kinds. In: Sperber D, Premack D e Premack AJ, editors. Causal cognition: a multi-disciplinary debate. Oxford, England: Clarendon Press 234-262. Kelemen D. 1999. The scope of teleological thinking in preschool children. Cognition 70: 241-272. Lauder GV, Leroi A e Rose M. 1993. Adaptations and history. Trends in Ecology and Evolution 8: 294-297. Lennox JG. 1992. Teleology. In: Keller EF e Lloyd EA, editors. Keywords in evolutionary biology. Cambridge: MIT Press 324-333. Lewens T. 2004. Organisms and artifacts: design in nature and elsewhere. Cambridge, MA: MIT Press. Mayr E. 1992. The idea of teleology. Journal of the History of Ideas 53: 117-135.

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2): 35-42


DOI: 10.7594/revbio.09.02.07

Artigo

Pseudo-histria e ensino de cincias: o caso Robert Hooke (1635-1703)


Pseudo-history and science teaching: the case Robert Hooke (1635-1703)
Taysy Fernandes Tavares1, Maria Elice Brzezinski Prestes1, 2, 3
1 2

Grupo de Pesquisa em Histria da Biologia e Ensino (GPHBE) Departamento de Gentica e Biologia Evolutiva, Instituto de Biocincias, Universidade de So Paulo 3 Grupo de Pesquisa em Histria, Teoria e Ensino de Cincias (GHTC)
Contato dos autores: 1taysyfernandes@hotmail.com, 2eprestes@ib.usp.com Resumo. Esta pesquisa utiliza anlise de componentes caractersticos de narrativas mticas em trechos histricos de livros didticos. A presena desses componentes indicadora de o que Douglas Allchin denomina pseudo-histria, que deve ser evitada no ensino de cincias. O episdio histrico analisado foi o da observao da cortia realizada por Robert Hooke no sculo XVII em livros didticos de biologia, aprovados no PNLEM/2009. Os resultados encontrados mostram que embora contribua discusso metacientfica, a proposta de Allchin parece insuficiente quando aplicada sobre materiais muito breves, sendo necessrio um estudo aprofundado do episdio histrico em questo. Palavras-chave. Histria da biologia, livros didticos, pseudo-histria, Robert Hooke. Abstract. This research analyzes characteristic features of mythical narratives on historical episodes in textbooks. The presence of these components is indicative of what Douglas Allchin called pseudohistory, which should be avoided in science education. The historical episode examined in biology textbooks approved in PNLEM/2009 was the observation of cork by Robert Hooke, in the 17th century. The results show that although contributes to metascientific discussion, the proposal seems inadequate when applied to very short materials, requiring an in-depth study of the historical episode in question. Keywords. history of biology, textbooks, pseudo-history, Robert Hooke. Recebido 28mar11 Aceito 07jul11 Publicado 15dez12

Introduo A tendncia atual do ensino das cincias associa aprendizagem dos contedos propriamente cientficos, os demais componentes histricos, filosficos, sociais e culturais envolvidos na construo desse tipo de conhecimento. Essa tendncia vem sendo valorizada, ainda que com nfase distinta, em diferentes esferas: nos documentos oficiais de ensino, como os Parmetros Curriculares Nacionais (PCN), PCN+ e Proposta Curricular do Estado de So Paulo; nos trabalhos de pesquisadores das reas de ensino de cincias (Matthews, 1991, 1994; Caldeira e Caluzi, 2005) e de histria da cincia (Martins, 1990; Silva, 2006), bem como nas prticas dos prprios professores da educao bsica. O interesse dos professores de biologia em utilizar a histria de sua disciplina em sala de aula pode ser percebido pelo nmero crescente de relatos de experincia apresentados nos congressos da rea em nosso pas. Isso vem ocorrendo, por exemplo, nos encontros de histria e filosofia da biologia (EHFB) promovidos pela Associao Brasileira de Filosofia e Histria da Biologia (ABFHiB), nos encontros nacionais e regionais de ensino de biologia (Enebio e Erebio) promovidos pela Sociedade Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio) e nos encontros nacionais de pesquisa em educao em cincias (Enpec) pro-

movidos pela Associao Brasileira de Pesquisa e Educao em Cincias (Abrapec). Entretanto, os professores de biologia do ensino mdio encontram muitas dificuldades para utilizar a histria da biologia em sala de aula. Uma das razes dessas dificuldades est na prpria formao dos professores. Ainda tmida a presena de disciplinas de histria e/ou filosofia da biologia nas grades curriculares dos cursos de licenciatura em nosso pas. Outra razo a pouca quantidade de material acessvel isto , em lngua portuguesa , aprofundado, atualizado e livre de equvocos histricos. A fonte de contedo histrico disponvel para os professores acaba sendo, quase exclusivamente, aquela das introdues histricas de alguns captulos dos livros didticos, quando existem. No entanto, esses textos costumam ser bastante breves e, em geral, no so orientados pela nova historiografia da cincia. So pautados pela historiografia praticada na primeira metade do sculo XX, que se caracterizava por privilegiar a descrio de grandes personagens e de eventos ou episdios marcantes, ocorridos em datas determinadas e como fatos independentes dos demais (Martins, 1993). Alm disso, os relatos histricos de livros didticos no raro apresentam concepes histricas consideradas errneas pela historiografia atual (Martins, 1998). As discusses sobre esse problema no so novas,

36

Tavares e Prestes: Pseudo-histria e ensino de cincias: o caso Robert Hooke (1635-1703)


O conceito de concepes cientficas mticas2, que ser detalhado na prxima seo deste artigo, foi associado ao de pseudo-histria. Esta variante em relao ao conceito de quase-histria de Whitaker que nos levou a adotar a proposta de Allchin na presente pesquisa. O objetivo da pesquisa foi o de verificar a pretendida facilidade de aplicao da proposta de Allchin na anlise de trechos de livros didticos de biologia, aprovados no PNLEM/20093. O estudo de caso, relato da observao da cortia realizada por Robert Hooke (1635-1703), foi selecionado por ser tema recorrente nos materiais instrucionais e por sua relevncia em fornecer o contexto das primeiras observaes microscpicas de seres vivos. Antes de apresentarmos o mtodo desta pesquisa, faremos uma exposio mais detalhada de seu referencial terico, ou seja, da ferramenta de anlise sugerida por Douglas Allchin.

nem locais1. Em 1979, Whitaker criticou os livros didticos de ensino de fsica por conterem materiais que, embora parecessem histricos, falhavam em comunicar a histria de verdade. Sendo o objetivo primrio desses livros o de relacionar fatos cientficos, o relato histrico que eventualmente continham servia apenas como um quadro de referncia para dar sentido aos tpicos cientficos e torn-los mais facilmente lembrados nos exames. Whitaker chamou esses relatos de quase-histria e discorreu sobre os impactos negativos na formao dos alunos (Whitaker, 1979, p. 108; pp. 239-242). Mais recentemente, em 2004, Douglas Allchin retomou o acento crtico sobre o que chamou pseudo-histria contida nos livros didticos voltados aos diferentes nveis de ensino, da escola bsica superior. Com o termo pseudo-histria, referiu-se aos casos que transmitem ideias falsas sobre o processo histrico da cincia e a natureza do conhecimento cientfico, mesmo quando baseados em fatos reconhecidos (Allchin, 2004, p. 186). Na pseudo-histria, acontecimentos histricos reais so descritos de modo fragmentrio e com omisso do contexto. Alm de desenvolver a noo de pseudo-histria, Allchin tambm descreveu o que denomina falsa histria contida em livros didticos. Com esse termo, referiu-se aos casos de simples falta de acuidade histrica (datas erradas, por exemplo) ou de equvocos muitas vezes derivados de anedotas populares (o exemplo mais conhecido disso o da ma caindo sobre a cabea de Newton). Evitar os danos causados pela presena de falsa histria no ensino de cincias parece uma tarefa mais fcil. Uma possibilidade a de explicitar aos alunos a origem apcrifa desses relatos e confront-los com informao histrica mais acurada. Porm, evitar os efeitos negativos da pseudo-histria na formao dos alunos bem mais difcil ao professor do ensino mdio. O primeiro desafio que se coloca o da identificao de uma pseudo-histria. Esse tipo de relato muitas vezes pretende mostrar como a cincia funciona, mas, a depender da seleo dos fatos descritos, pode promover imagens enganosas sobre a natureza da cincia. Como um professor da escola bsica pode reconhecer esses problemas em uma narrativa histrica sem ter que se tornar um historiador da cincia profissional? Como uma sada alternativa ao professor, Allchin props a noo de concepes cientficas mticas como uma proposta pela qual os professores poderiam promover uma anlise da narrativa histrica de livros didticos com base em elementos da literatura e da retrica (Allchin, 2003). A proposta parte do pressuposto que pode ser facilmente utilizada por qualquer professor, mesmo os no familiarizados com histria da cincia ou com teoria literria.
1 Diferentemente do que ocorre na pesquisa em biologia propriamente, em que se leva em conta apenas estudos recentes, na pesquisa em histria da cincia desejvel considerar discusses anteriores que permanecem vlidas. Assim, para conhecer alguns dos diferentes argumentos favorveis, e desfavorveis, ao uso da histria da cincia no ensino de diferentes disciplinas cientficas, da escola bsica e superior, ver: Klein (1972); Duschl (1985); Brush (1989); Pumfrey (1991); Martins (1990).

Identificao de concepes cientficas mticas


A proposta de Douglas Allchin consiste em habilitar o professor a identificar nas narrativas histricas elementos indicadores do estilo mtico. A anlise recai, pois, sobre a dimenso retrica e literria dos textos, e no sobre a sua acuidade histrica. O pressuposto subjacente o de que uma narrativa de estilo mtico indicativa da presena de pseudo-histria. Para o reconhecimento da narrativa de estilo mtico, Allchin prope a anlise de quatro indicadores que constituem a arquitetura dos mitos cientficos. Esses indicadores expressam tcnicas literrias reconhecidas da narrao mtica e foram denominados pelo autor como: 1) monumentalidade, 2) idealizao, 3) drama afetivo e 4) narrativa explicativa e de justificao. Por monumentalidade, o autor nomeia um tipo de abordagem que almeja envolver o leitor fazendo recurso grandiosidade conferida aos cientistas e amplificao do significado de suas descobertas. Confere aos personagens traos de verdadeiros heris, caracterizados apenas por seus aspectos positivos. No menciona caractersticas pessoais menos nobres ou erros tericos ou metodolgicos cometidos em suas pesquisas. Por sua vez, a supervalorizao das descobertas leva justamente a casos como o analisado adiante neste artigo: em vez de algo como, procurando explicar as propriedades fsicas da cortia, Hooke observou sua constituio microscpica, diz-se: Hooke descobriu a clula ou Hooke fundou a citologia. Segundo nossa anlise, esse tipo de narrativa mo2 A expresso concepes cientficas mticas perde o impacto do termo original em ingls scientific myth-conceptions, que faz trocadilho com o termo scientific misconceptions (concepes cientficas equivocadas) de uso frequente na literatura de ensino de cincias. 3 Estudos que tambm utilizaram o referencial de Allchin foram feitos por Pagliarini e Silva (2007) e Isladji e Prestes (2010). De modo semelhante, outras anlises do contedo histrico de livros didticos basearam-se em proposta de Laurinda Leite (2002), que foi adaptada por Paulo Vidal (2009), sobre um episdio da histria da qumica, e por Fabricio Bittencourt e Maria Elice Prestes (2010), sobre um episdio de histria da biologia.

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2)


numental vai alm de o que os historiadores j criticaram como sendo as biografias idlatras de santos e lderes eclesisticos, as chamadas hagiografias (Kragh, 1987, p. 168). Com o recurso monumentalidade, Allchin confere traos aos cientistas que so partilhados com os heris da literatura ficcional. Os santos no cometem erros, os heris salvam a humanidade. O objetivo do uso desse recurso nos relatos histricos parece ser o de engajar o leitor, de inspirar o estudante. O problema que causa efeito contrrio: eleva o cientista a um patamar que parece inatingvel ao jovem em formao. Por outro lado, ao mostrar uma cincia feita por super-humanos, falha em mostrar a cincia como empreendimento puramente humano (Allchin, 2003, pp. 342-343). Por idealizao, o autor refere-se ao recurso narrativo que se concentra em uma mensagem particular, acentuando-a, ao mesmo tempo em que nivela ou retira a nfase dos detalhes. Uma dada contribuio para a cincia isolada e retirada de seu contexto. No so indicadas as pesquisas precedentes que a originaram, no so mencionadas as pesquisas contemporneas com as quais dialogava. No so considerados aspectos da poca, do lugar e da cultura em que ocorreu, nem as contingncias da personalidade e da formao dos personagens envolvidos. Todos esses detalhes so omitidos em nome do contar uma boa histria (Allchin, 2003, pp. 343-345). A descontextualizao decorrente do uso desse artifcio empobrece e falseia o processo de elaborao do conhecimento cientfico. Por drama afetivo, Allchin refere-se a artifcio retrico como o do conflito dramtico, seja entre pessoas ou entre ideias. Um artifcio retrico frequente o de amplificar e dramatizar a relao entre adversrios contrastados, ao estilo do bem e do mal: Darwin versus Lamarck; Galileu versus Igreja. Outros artifcios retricos listados por Allchin so o realce emoo do momento da descoberta, surpresa do acaso, recompensa por um comportamento ntegro, ironia trgica, etc. O objetivo desse recurso na literatura , essencialmente, o de produzir entretenimento e persuaso. Por consequncia do efeito emocional provocado no ouvinte ou leitor, o recurso acarreta o subproduto desejado: torna a histria memorvel. A nosso ver, o problema decorrente do uso desmedido desses artifcios claro: so, provavelmente, os maiores responsveis pelos erros que produzem as falsas histrias. Por narrativa explicativa e de justificao, Allchin refere-se ao papel explicativo dos mitos. Eles possuem o recurso comum s fbulas de ter uma lio ou moral implcita. Contos histricos da cincia modelam implicitamente o processo cientfico, mostrando como uma srie de eventos leva necessariamente a certo resultado, a certo achado cientfico famoso (Allchin, 2003, p. 346). Esse tipo de narrativa funde o processo ao produto da cincia, explica narrativamente os mtodos da cincia e com isso justifica a autoridade das concluses cientficas. Essa fuso est assentada em pressuposies como: a cincia desenvolve um mtodo especial, independente de contingncias, contexto ou valores, os experimentos so sempre perfeitamente planejados, a interpretao das evidncias no-problemtica, os feitos cientficos so realizados por intelectos

37

privilegiados, acima de qualquer suspeita. Em suma, reduz a natureza da cincia mxima: como a cincia descobre a verdade (id.). No sendo objetivo desta pesquisa discutir a concepo de cincia implcita na proposta de Allchin, nos detivemos em sumarizar as caractersticas dos indicadores por ele propostos. Tambm no nos preocupamos em indicar como ele construiu tal ferramenta a partir da anlise de diferentes narrativas histricas voltadas a estudos de caso como os de Gregor Mendel, Bernard Kettlewell, Alexander Fleming, Ignaz Semmelweis e William Harvey. Para isso, recomendamos, naturalmente, a leitura do artigo original de Allchin, de 2003. Assinalados os quatro indicadores gerais que pautaram a anlise inicial dos textos, passaremos descrio da parte emprica da pesquisa realizada.

Mtodo
A primeira etapa da pesquisa foi vistoriar os livros didticos de biologia do ensino mdio aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didtico para o Ensino Mdio (PNLEM/2009)4. A vistoria foi feita sobre oito dentre os nove ttulos aprovados, por estarem disponveis no acervo do Laboratrio de Licenciatura (LabLic) do IB/USP5. Foram determinados, primeiramente, quais os livros que continham relato sobre o estudo de caso selecionado, a observao microscpica da cortia feita por Robert Hooke no sculo XII. Dos oito ttulos consultados, sete continham contedo histrico sobre o tema. Trs desses livros so apresentados na forma de coleo em trs volumes (aqui identificados com as siglas 1LD, 2LD e 3LD) e quatro, na de volume nico (aqui identificados como 4LDU, 5LDU, 6LDU, 7LDU)6. Analisando a extenso e o contedo dos trechos encontrados, notou-se que a primeira variou entre 2 a 11 pargrafos, mais eventuais legendas de ilustraes; o contedo referente biografia de Robert Hooke variou de um a trs pargrafos, sendo esses os que serviram anlise aqui apresentada. Definidos os textos objeto de anlise, a primeira autora deste artigo procurou relaes com os quatro indicadores gerais de Allchin. A autora estava no incio de seu estgio no Grupo de Pesquisa em Histria da Biologia e Ensino do IB/USP, no possuindo, nesse momento, conhe4 A amostra pequena se justifica pelo objetivo primrio da pesquisa ser o de testar a ferramenta de anlise descrita por Allchin, e no o de promover uma anlise dos contedos histricos dos livros didticos em geral. 5 A identificao da edio que foi efetivamente avaliada no PNLEM finalizado em 2007 (publicado em 2008 com o ttulo de PNLEM/2009) baseou-se nas informaes disponveis no Catlogo do PNLEM/2009 (Brasil, 2008), bem como na identificao fornecida pelas editoras na capa dos livros. 6 1LD (Silva Jr e Sasson); 2LD (Amabis e Martho); 3LD (Paulino); 4LDU (Lopes e Rosso); 5LDU (Linhares e Gewandsznajder); 6LDU (Favaretto e Mercadante) e 7LDU (Laurence). O ano de publicao dessas obras imediatamente posterior sua aprovao pelo PNLEM (embora, em geral, refiram-se a ttulos que possuem edies anteriores).

ib.usp.br/revista

38

Tavares e Prestes: Pseudo-histria e ensino de cincias: o caso Robert Hooke (1635-1703)


pela primeira vez, distinguir os contornos de uma clula [...] Embora Hooke j houvesse observado a clula em 1665 (7LDU, p. 106, grifos nossos). Os termos grifados indicam o isolamento do personagem e seu feito cientfico. O indicador de narrativa explicativa e de justificao aparece nos seguintes trechos: A histria da citologia, como vimos no incio do captulo, acompanhou, na verdade, a histria do microscpio. medida que aumentava a qualidade desse instrumento, aprendia-se cada vez mais sobre a estrutura celular (1LD, p. 90, grifos nossos); O estudo das clulas a Citologia tornou-se possvel com a inveno de aparelhos que podiam aumentar a capacidade visual (6LDU, p. 70, grifos nossos). Nesses casos, o progresso tcnico apresentado como condio necessria e suficiente para a produo do conhecimento cientfico, simplificando os determinantes do desenvolvimento dos conceitos e teorias cientficas. Foram esses os exemplos encontrados de indicadores de narrativa mtica nos livros aprovados pelo PNLEM/2009 o que estimamos ser uma pequena quantidade de problemas. O resultado pareceu-nos positivo tambm por tais problemas s terem aparecido em quatro dos livros analisados (1LD, 2LD, 6LD e 7LD), ficando trs deles (3LD, 4LD e 5LD) sem apresentarem qualquer indicador de narrativa mtica. A segunda etapa da pesquisa foi a anlise das fontes primrias e secundrias com o objetivo de produzir a sntese que se segue sobre a biografia cientfica de Hooke e sobre a anlise de sua observao da cortia.

cimentos sobre histria da biologia em geral ou sobre o caso selecionado, correspondendo, nesse aspecto, ao perfil comum de um professor de biologia. O procedimento adotado foi o de fazer a leitura integral dos trechos encontrados, com o objetivo de localizar palavras ou expresses dos quatro indicadores gerais de Allchin. Dificuldades iniciais levaram ao desenvolvimento de um formato mais telegrfico para cada indicador e que contemplasse apenas alguns de seus aspectos. Essas reconstrues, que chamamos descritores foram: Monumentalidade: personagem-heri (sem defeitos e salvador da humanidade); amplificao do feito cientfico. Idealizao: personagem isolado; feito cientfico isolado. Drama afetivo: conflito dramtico entre pessoas e ideias. Narrativa explicativa e de justificao: relao direta, unvoca e linear entre o uso do mtodo e a produo de conhecimento. Na segunda etapa da pesquisa, a primeira autora empreendeu o estudo da obra Micrographia de Hooke. O livro foi analisado em sua estrutura geral, seguindo-se a leitura atenta da seo em que descrita a observao da cortia. Paralelamente, foram consultadas fontes secundrias (isto , textos de historiadores da cincia). Esses estudos permitiram a redao de uma breve biografia de Robert Hooke e de uma descrio de sua observao microscpica, apresentadas adiante. Na terceira etapa da pesquisa, foi feita uma nova avaliao dos livros didticos com o objetivo de comparar com os resultados obtidos na primeira anlise. Nessa etapa tornou-se possvel identificar, alm de equvocos factuais e distores historiogrficas, omisses que implicam a descontextualizao do episdio.

Segunda etapa: sntese da biografia e anlise da obra de Robert Hooke


Robert Hooke nasceu em 18 de julho de 1635, em Fresh Water, na ilha inglesa de Wight. Aos 13 anos come. ou a estudar em Londres e aos 18 anos foi para Oxford, passando a estudar no Christ Church College onde se formou aos 28 anos de idade, em 1662 ou 1663. Desde 1655, ele tinha se tornado bem conhecido entre os pesquisadores de Oxford por sua habilidade em construir dispositivos mecnicos e experimentais. Foi assistente de alguns filsofos naturais de prestgio naquele crculo, como Robert Boyle (1627-1691). Construiu uma mquina pneumtica (bomba de vcuo) para Boyle, que foi fundamental para suas pesquisas (Martins, 2011, pp. 6-8). Como pesquisador formado nesse crculo, Hooke esteve envolvido nas fases iniciais da Royal Society. Em 1662, foi nomeado Curador de Experincias, o que significava fazer apresentaes semanais de experimentos formidveis aos membros da sociedade (Westfall, 19701980, v. 6, p. 483). A Royal Society seguia diretrizes de Francis Bancon (1561-1626), procurando obter conhecimentos a partir da observao direta da natureza. Os seus membros valorizavam muito a observao e a experimentao (Martins, 2011, p. 10). Como caracterstico da poca, Hooke desenvolveu estudos em diversas reas do conhecimento, tais como fsica, meteorologia, astronomia, geologia e fenmenos bio-

Resultados e discusso Primeira etapa: anlise dos livros didticos com os descritores de Allchin
A anlise realizada permitiu identificar um exemplo de palavra ou expresso indicadora do descritor monumentalidade: Hooke foi possivelmente o maior gnio das Cincias experimentais de seu sculo. [...] Hooke tambm foi um microscopista de grandes mritos (1LD, p. 88, grifos nossos). O leitor , nessa passagem, envolvido pela grandiosidade conferida pessoa de Robert Hooke, pelos grandes feitos do personagem elevado categoria de heri. Por sua vez, o indicador idealizao pde ser identificado nos seguintes trechos: Em 1665, o ingls Robert Hooke (1635-1703) publicou suas observaes de estruturas visveis ao microscpio de luz [...]. Essas observaes lhe valeram o crdito de descobridor das clulas (4LD, p. 55, nossos grifos); Em 1665, Robert Hooke, um cientista ingls, estava trabalhando com um microscpio rudimentar e observou uma delgada fatia de cortia; ele conseguiu,

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2)


lgicos como a respirao. Sobressaiu-se mais como um pesquisador em extenso que em profundidade: aparentemente, satisfazia-se com o domnio da reproduo mecnica do fenmeno, sem aprofundar-se nos fundamentos tericos (Os cientistas, 1971, p. 137). Robert Hooke realizou um grande nmero de estudos, dentre os quais as observaes microscpicas. Ele publicou os resultados obtidos em uma obra intitulada Micrographia, or some phsiological descriptions of minute bodies made by magnifying glasses with observations and inquiries thereupon (Micrografia, ou algumas descries fisiolgicas de pequenos corpos, feitas com lentes de aumento, com observaes e investigaes sobre os mesmos). O livro contm 57 observaes microscpicas, alm de trs realizadas com um telescpio. Ao microscpio, Hooke observou diversos objetos inanimados, como a ponta de uma agulha, o fio de uma navalha, gotas e bastes de vidro, gros de areia, cristais de neve, tecidos como tafet e linho. Alm disso, observou diversos organismos ou partes de organismos, como cogumelos, algas, folhas, cabelo, ferro de uma abelha, penas, patas de moscas e outros insetos, asas e cabea de uma mosca, dentes de uma cobra, ovos do bicho da seda, uma formiga, vermes do vinagre e pedaos de cortia. Como se depreende da vistoria dessa lista, o interesse de Hooke no era absolutamente biolgico, mas microscpico (Martins, 2011, p. 14). Habilidoso na construo de instrumentos, Hooke fez essas observaes em um microscpio composto construdo por ele prprio. O instrumento possua partes removveis, as diferentes lentes podiam ser trocadas conforme a convenincia de observar partes maiores do objeto em vez de algum detalhe. De acordo com a descrio que forneceu (Figura 1), o instrumento permitia obter aumento de aproximadamente 40 dimetros (Martins, 2011, p. 16). Nessa poca o microscpio composto possua pequeno poder de ampliao e oferecia dificuldades de iluminao. Porm, Hooke introduziu novidades tcnicas no seu instrumento: pequeno tamanho; um sistema de iluminao mais poderoso, empregando luz difusa para evitar os fortes reflexos ocasionados pela luz solar direta; a introduo de uma lente intermediria entre a objetiva e a ocular; o sistema de sustentao do microscpio, que permitia movimentos do seu corpo em qualquer direo; uma plataforma giratria para colocar as amostras estudadas (Mayall apud Martins, 2011, p. 18). Como observou Roberto Martins, comparado aos padres atuais, o poder de ampliao desse microscpio composto era pequeno. Porm, Hooke tambm construiu e utilizou microscpios de uma s lente, capazes de ampliar cerca de 200 ou 300 vezes. Isso tambm foi feito por outros pesquisadores da poca, especialmente os do norte da Europa (Wilson apud Martins, 2011, p. 19). Quanto ao exame da cortia, ele encontrado na 18 observao do Micrographia com os seguintes termos: Pude perceber claramente que ela era toda perfurada e porosa, como um favo de mel, mas os poros no eram

39

Figura 1. O microscpio composto representado por Hooke na Micrographia. Fonte: Hooke, 1665, prancha 1.

regulares. (Hooke, 1665, p. 112-113) A sequncia do relato mostra que a observao da cortia foi guiada pelo interesse em compreender trs propriedades fsicas dessa substncia: leveza, flutuabilidade e elasticidade. As suas observaes ao microscpio permitiram concluir que a leveza da cortia, assim como a de um favo vazio, uma esponja, uma pedra-pome ou outro semelhante, era devido a uma quantidade muito pequena de corpo slido estendido em dimenses extremamente grandes (Hooke, 1665, p. 113). Ou seja, o corpo slido correspondia ao que hoje chamamos as paredes celulares das clulas da casca da rvore, que por estarem mortas, delimitavam espaos de dimenses extremamente grandes. A flutuabilidade decorria de a substncia da cortia ser toda preenchida de Ar, e que esse Ar perfeitamente fechado em pequenas Caixas ou Clulas distintas umas das outras (Hooke, 1665, p. 113). Quanto elasticidade, Hooke inferiu que ela podia ser explicada por ser essa uma propriedade tanto do ar que preenchia as cavidades, quanto das paredes que as delimitam. Assim ele se expressou: O Microscpio facilmente informa [...] a massa toda [da cortia] consiste de uma associao infinita de pequenas Caixas ou Bales de Ar, que uma substncia de natureza elstica e que sofre uma condensao considervel [...]. Alm disso, parece bastante provvel que aqueles filmes, ou lados dos poros, tenham, eles mesmos, uma qualidade elstica, como ocorre a quase todo outro tipo de substncias Vegetais, de modo a ajudar que retomem sua posio inicial. (Hooke, 1665, pp. 113-114)

ib.usp.br/revista

40

Tavares e Prestes: Pseudo-histria e ensino de cincias: o caso Robert Hooke (1635-1703)

Hooke tambm descreveu outras propriedades da cortia. Reconheceu que se tratava de algo produzido pela prpria rvore, como uma excrescncia da casca, sendo distinta das camadas do interior do tronco do sobreiro, mas que so comuns a outras rvores. Neste aspecto, nota-se que ele comparou a cortia com o que poderia ser visto no tronco de outras rvores, mas no comparou com outros tipos de plantas nem com outras partes dos vegetais em geral. Relendo os originais de Hooke, pode-se ento perceber que, embora seja evidente hoje, por seu desenho (Figura 2), que ele visualizou a parede espessa de clulas mortas de cortia, o que entendeu estar observando ao microscpio foi uma estrutura (formada por espaos + paredes + ar) que explicava as trs propriedades fsicas da cortia (leveza, flutuabilidade, elasticidade). Ele no interpretou a clula vista ao seu microscpio como algum tipo de unidade bsica, estrutural e fisiolgica, dos seres vivos. Outro aspecto que chama a ateno no Mircrographia o uso de termos diferentes para denominar a estrutura que Hooke visualizou na cortia: poros, clulas, caixas, bolhas de ar. O termo clula deriva da comparao aos quartos dos mosteiros da poca, que eram chamados de celas. Hooke no fez uso exclusivo desse termo, embora tenha sido esse o termo que acabou consagrado posteriormente. Alm disso, a estrutura microscpica de diferentes corpos, seres vivos ou objetos inanimados, foi investigada por muitos estudiosos da poca. Para citar apenas alguns, Antoni van Leeuwenhoek (1632-1723), observou a presena de cavidades em seces transversais de sementes e de caules de mudas de carvalho; Nehemiah Grew (1641-1712) e Marcelo Malpighi (1628-1694) observaram bolhas, poros, clulas, bexigas em diversos tecidos vegetais. A principal concluso a partir do exposto acima a de que h um equvoco historiogrfico quando se atribui a Hooke o mrito de ser o descobridor da clula, pois o que ele viu e descreveu no o que hoje entendemos por esse termo7. Embora seja comum mencionar as observaes de Hooke na histria dos estudos sobre a clula, vimos que ele estava interessado em explicar as propriedades da cortia, e em nenhum momento estabeleceu relao entre as suas observaes e uma constituio celular universal das plantas ou dos seres vivos em geral (Prestes, 1997, p.10). Na mesma perspectiva, no se pode dizer que ele deu origem citologia, programa de pesquisa que s se constituiu como tal no sculo XIX. Na historiografia da cincia da primeira metade do sculo XX, costumava-se atribuir o mrito de descobertas ou a elaborao de teorias exclusivamente genialidade deste ou daquele pesquisador. A historiografia renovada, que se pratica hoje, busca, sem desmerecer os talentos individuais, a reciprocidade entre as condies sociais e materiais de uma poca e aqueles que as experenciam e atuam sobre elas (Wilson, 1997, p. 4). Desse modo, os
7 A sntese terica mais prxima de o que entendemos por clula hoje ocorreu com a chamada teoria celular de Matthias Schleiden (1804-1881) e Theodor Schwann (1810-1882), em 1838.

Figura 2. Ilustrao de clulas de cortia por Robert Hooke no livro Micrographia, de 1665. Fonte: http://www.gutenberg.org/ files/15491/15491-h/images/scheme-11.png

achados cientficos so interpretados no contexto da comunidade de pesquisadores, antecessores e contemporneos.

Terceira etapa: nova anlise dos livros didticos, com base no estudo histrico
Aps o estudo sobre a contribuio de Hooke, conforme sumarizado acima, os sete livros didticos analisados nesta pesquisa foram reavaliados. Essa nova anlise permitiu identificar aspectos anteriormente no percebidos e que foram agrupados em duas categorias: a) equvocos factuais e distores historiogrficas; b) omisses que ocasionam descontextualizao do episdio. Dentre os exemplos de equvocos e distores, encontramos: A denominao de clula foi criada em 1665 pelo cientista ingls Robert Hooke (1635-1703) para indicar pequenas cavidades no interior da cortia que ele havia observado com o microscpio muito simples. (5LDU, grifo nosso) Em 1665, Robert Hooke, um cientista ingls, estava trabalhando com um microscpio rudimentar e observou uma delgada fatia de cortia [...]. (7LDU, grifo nosso) Em 1665, o pesquisador ingls Robert Hooke, usan-

ib.usp.br/revista

Revista da Biologia (2012) 9(2)


do um microscpio bastante rudimentar, iluminado a vela, observou que a cortia (casca das rvores) era formada por numerosos compartimentos vazios. (3LD, grifo nosso) Como descrito anteriormente, Hooke usou tipos diferentes de microscpios, nos quais introduziu novidades tcnicas para a poca. Embora no Micrographia seja indicado apenas um microscpio composto, e historiadores da cincia tenham reforado a viso de que foi apenas esse instrumento de que Hooke se serviu, Roberto Martins destacou que seria impossvel descrever os detalhes microscpicos apresentados nessa obra utilizando apenas uma ampliao de 40 vezes (Martins, 2011, p. 19). Alm disso, o estudo detalhado de suas apresentaes Royal Society indica que Hooke conhecia bem as vantagens do uso do microscpio simples, mas que o abandonou por considerar que causava danos aos seus olhos (Martins, 2011, p. 20). Nessa fase, foi possvel perceber tambm que alguns dos livros didticos fizeram uso anacrnico do termo cientista para referir-se a Hooke, pois esse termo s foi cunhado nos anos 1830 em analogia ao termo artista. Em seu prprio contexto, Hooke era um fsico ou um filsofo natural termos que devem ser preferidos num relato histrico no anacrnico8. Mais significativo nessa fase da anlise foi a possibilidade de reconhecer as omisses que implicam descontextualizao do episdio. Assim, por exemplo, o estudo da Micrographia permitiu primeira autora perceber que o que motivou Robert Hooke a realizar a observao da cortia foi a busca por compreender as propriedades fsicas da cortia (e no a constituio ou estrutura elementar das plantas). Dentre os livros analisados, apenas um fez essa meno (1LD, p. 6). Outra lacuna detectada diz respeito ausncia de meno a microscopistas anteriores e contemporneos de Hooke. No entanto, em trs dos sete livros analisados (1LD, 4LDU, 6LDU) foi feita meno s observaes microscpicas de Anton van Leeuwenhoek (1632-1723), enquanto em um quarto livro (2LDU) tambm foram citados os fabricantes de microscpios Hans e Zacharias Janssen.

41

so bastante curtos, tendo variado, nos livros aqui analisados, de um a trs pargrafos, o que minimiza a possibilidade daquelas ocorrncias. Por outro lado, a deteco de problemas nos relatos histricos aqui analisados foi ampliada aps o estudo do episdio em questo. Nessa fase da pesquisa foram encontrados equvocos que enfatizam a descrio de grandes personagens e de eventos marcantes, bem como a omisso de pesquisadores e episdios relacionados. Assim, as duas anlises aqui realizadas indicam que o mtodo de Allchin insuficiente para textos curtos. Retomando Whitaker, certo que o objetivo primordial dos livros didticos no o de fornecer relatos histricos da o pouco espao disponvel para eles. Contudo, segundo a perspectiva de uso inclusivo da histria da cincia no ensino de cincias, uma opo melhor, talvez, fosse a de reduzir o nmero de episdios histricos abordados para que se ganhasse mais espao para apresentaes contextualizadas. Dessa forma, o livro didtico atenderia ao que se preconiza atualmente no ensino de cincias, apresentando o conhecimento cientfico associado a seu contexto de produo. Por sua vez, os professores de ensino mdio contariam com materiais histricos consonantes com a historiografia renovada da histria da cincia, que incorpora uma dentre as vrias possibilidades pelas quais se alcana o ensino contextual de cincias.

Agradecimentos
A segunda autora agradece Fapesp e ambas autoras agradecem s criteriosas sugestes do parecerista annimo que muito contriburam maior clareza do texto.

Referncias
Allchin D. 2003. Scientific myth-conceptions. Science & Education 87: 329-351. Allchin D. 2004. Pseudohistory and pseudoscience. Science & Education 13: 179-195. Caldeira AMA e Caluzi JJ, organizadores. 2005. Filosofia e Histria da Cincia: contribuies para o ensino de cincia. Ribeiro Preto: Kayros. Bittencourt FB e Prestes MEB. 2010. Anlise de episdios da Histria da Gentica em livros didticos do Ensino Mdio. 1 Conferncia Latino Americana do International History, Philosophy, and Science Teaching Group (1 IHPST-LA), Maresias (SP). Caderno de Resumos. Brush SG. 1989. History of science and science and science education. Interchange 20 (2): 60-70. Brasil, Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Bsica. 2008. Biologia: catlogo do Programa Nacional do Livro para o Ensino Mdio, PNLEM/2009. Braslia: Ministrio da Educao. Duschl RA. 1985. Science education and philosophy of science: twenty-five years of mutually exclusive development. School Science and Mathematics 85 (7): 541-555. Hooke R. 1665. Micrographia: or some physilogical descriptions of minutes bodies made by magnifying glasses with observations and inquiries thereupon. London: J. Martyn and J. Allestry. Disponvel em Linda Hall Library http://lhldigital.lindahall.org/cdm4/document.

Consideraes Finais
Os resultados obtidos na primeira etapa da pesquisa emprica aqui realizada mostram que os textos vistoriados apresentam poucas ocorrncias de o que Allchin denominou indicadores de narrativa mtica em narrativas histricas. Ainda que se trate de um resultado positivo, sob a perspectiva de uma abordagem histrica adequada, preciso levar em conta alguns fatores. Um deles diz respeito ao fato de a anlise ter sido feita propositalmente sobre os livros aprovados no PNLEM/2009, ou seja, que representam j os melhores materiais disponveis no mercado. Outro aspecto a ser considerado o de que os trechos referentes a Hooke
8 Catherine Wilson ressalta que o termo filsofo natural tambm no escapa a certa tenso devido a dois sentidos distintos em que era usado em Oxford no sculo XVII, um pejorativo, como crtica aos metafsicos, e um neutro, referindo-se a quem se dedicava filosofia experimental, corpuscular e mecnica (Wilson, 1995, p. 11).

ib.usp.br/revista

42

Ribeiro e Navas: Macrofisiologia


Wilson K. 1997. The invisible world: early modern Philosophy and the invention of the microscope. Princeton: Princeton University Press.

php?CISOROOT=%2Fnat_hist&CISOPTR=384&REC=0 &CISOBOX=113 Acesso em agosto de 2011. Iszlaji C e Prestes MEB. 2010. Mitos cientficos em trechos histricos de livros didticos de biologia. III Encontro Nacional de Ensino de Biologia, ENEBIO. IV Encontro Regional de Ensino de Biologia da Regional 05 (Nordeste). V Congreso Iberoamericano de Educacin em Ciencias Experimentales. Fortaleza, 10 a 13 de outubro de 2010. Revista de Ensino de Biologia da Associao Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio): 3: 2848-2856. Klein MJ. 1972. The use and abuse of historical teaching in physics. In: Brush SG e King AL. History in the teaching of physics. Proceedings of the International Working Seminar on the Role of the History of Physics in Physics Education. Hanover: University Press of New England 12-18. Kragh H. 1987. An introduction to the historiography of science. Cambridge: Cambridge University Press. Leite L. 2002. History of science in science education: development and validation of a checklist for analyzing the historical content of science textbooks. Science and Education 11: 333-359. Martins LACP. 1998. A histria da cincia e o ensino de biologia. Cincia & Ensino 5: 18-21. Martins RA. 1990. Sobre o papel da histria da cincia no ensino. Boletim da Sociedade Brasileira de Histria da Cincia 9: 3-7. Martins RA. 1993. Abordagens, mtodos e historiografia da histria da cincia. In: Martins, AM (ed.). O tempo e o cotidiano na histria. So Paulo: Fundao para o Desenvolvimento da Educao. P. 73-78. Martins RA. 2011. Robert Hooke e a pesquisa microscpica dos seres vivos. Filosofia e Histria da Biologia 6 (1): 105-142. Matthews MR. 1991. History, philosophy, and science teaching: selected readings. Toronto/ New York: OISE Press/ Teachers College Press. Matthews MR. 1994. Science teaching: The role of history and philosophy of science. New York: Routledge. Os cientistas. 1971. A grande aventura da descoberta cientfica, volume 8, Hooke Deformaes elsticas. So Paulo, Abril/ Funbec. Pagliarini CR e Silva CC. 2007. A estrutura dos mitos cientficos em livros de fsica. Pp. 1-9, in: X Encontro de Pesquisa em Ensino de Fsica, Londrina. Atas do X EPEF. So Paulo: Sociedade Brasileira de Fsica. Prestes MEB e Caldeira AMA. 2009. Introduo: a importncia da histria da cincia na educao cientfica. Filosofia e Histria da Biologia 4: 1-16. Prestes M. E. B. (1997). Teoria Celular: de Hooke a Schwann. So Paulo, Scipione. Pumfrey S. 1991. History of science in the National Science Curriculum: a critical review of resources and their aims. British Journal of History of Science 24: 61-78. Silva CC, organizadora. 2006. Estudos de histria e filosofia das cincias: subsdios para aplicao no ensino. So Paulo: Editora Livraria da Fsica. Vidal PH. 2009. A Histria da Cincia nos livros didticos de qumica do PNLEM/2007. So Paulo. Dissertao (Mestre em Ensino de Cincias) Instituto de Fsica, Instituto de Biocincias, Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo. Westfall RS. 1970. Robert Hooke. In: Gillispie CC, editor. Dictionary of scientific biography. New York: Charles Scribners Sons. Volume 6, 481-488. Whitaker MAB. 1979. History and quasi-history in Physics Education Part I & II. Physics Education 14: 108-111; 239-242.

ib.usp.br/revista

Você também pode gostar