Brasília, Contradições de Uma Cidade Nova (1967)

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O Olho da Histria, n. 18, Salvador (BA), julho de 2012.

Braslia, Contradies de uma Cidade Nova (1967): um curta-metragem silenciado1 Lus Fernando Amncio Santos2 Resumo: O presente artigo pretende partir do caso de Braslia, Contradies de uma Cidade Nova (1967, de Joaquim Pedro de Andrade), para pensar o choque que houve, durante a Ditadura Militar no Brasil, entre intelectuais e o Estado. Pensamos que esse filme, que sequer foi lanado, nos serve para refletir acerca da ao dos artistas no perodo, que apareciam na esfera pblica, atravs do poder simblico do grupo que pertenciam, para contestar a poltica de ento. Todavia, essas reivindicaes contavam com represlias do Estado, cujo poder policial anulava, em muitos aspectos, a liberdade de expresso. Palavras- chave: Cinema Novo, intelectuais, poder

Rsum : Cet article est sur l'affaire de Brasilia, Contradictions d'une Ville Nouvelle (Braslia, Contradies de uma Cidade Nova, 1967, Joaquim Pedro de Andrade) et le choc qu'il y avait, pendant la dictature militaire au Brsil, entre les intellectuels et l'Etat. Nous pensons que ce film, qui na pas t sorti dans les cinmas, il faire rflchir sur l'action des artistes dans la priode, qui figuraient dans la sphre publique, par la puissance symbolique du groupe ils appartenaient, pour contester la politique alors. Cependant, ces revendications ont t victime de reprsailles de l'Etat, qui annulait, avec son pouvoir de police, la libert d'expression. Mots-cls: Cinema Novo, intellectuel, la puissance O sculo XX viu a categorizao de um grupo que viria a ter importante atuao na esfera pblica: os intelectuais. O caso Dreyfus, na Frana, o marco de seu surgimento. Esse episdio data de 1898, quando mile Zola escreve um texto intitulado Jaccuse, publicado no jornal Aurore, acusando injustia e compl militar no julgamento do capito Alfred Dreyfus. Apiam-no, em manifesto, vrios escritores, artistas e professores universitrios. Esse evento tem grande importncia por deixar marcada uma postura dos intelectuais de impor sua autoridade na busca pela verdade e pela justia. Os produtores de cultura, naquele momento, tratam de impor a legitimidade que sua posio de pensadores encerra em si, e opinam sobre assunto de poltica. Surge, ento, uma categoria simblica:
1 Esse texto uma verso modificada da comunicao O intelectual, a censura prvia e as vrias formas de poder, apresentado no VIII Simpsio de Histria da Universo - Campus So Gonalo e publicado nos anais do evento. 2 Mestrando em Histria pela UFMG/ Bolsista Capes. Desenvolve a dissertao com o ttulo "Ao, logo, cinema: as relaes entre poltica e o movimento de Cinema Novo". Email: luis.amancio@gmail.com

O Olho da Histria, n. 18, Salvador (BA), julho de 2012.

O neologismo intelectual designa, originalmente, uma vanguarda cultural e poltica que ousa, no final do sculo XIX, desafiar a razo de Estado. No entanto, essa palavra, que poderia ter desaparecido aps a resoluo dessa crise poltica, integra-se lngua francesa. Se, por um lado, ela designa um grupo social, por outro, ela qualifica uma maneira de se conceber o mundo social, pressupondo, notadamente, uma oposio s hierarquias estabelecidas. (RODRIGUES, 2005, p. 400)

Assim, esse personagem, o intelectual, no fica restrito a esse contexto, tendo destacada importncia no sculo XX. Depois da Segunda Guerra Mundial, ele tem uma funo social cada vez mais delimitada. Ele vai ao espao pblico se pronunciar sobre o que considera certo, sendo que ter um posicionamento poltico se torna obrigatrio. Ento, mais do que um representante da razo, o intelectual passa a ser um engajado3. Para Edgard Morin, a qualidade do intelectual no est necessariamente ligada sua participao junto intelligentsia, mas ao uso da profisso por e pelas ideias (Apud: RODRIGUES, 2005, p. 402403). At em reao s atrocidades cometidas durante as duas guerras, o intelectual entendia que era seu dever a ao, no se podia deixar que tais eventos se repetissem. Naqueles anos de ps-guerra, principalmente nas dcadas seguintes, o intelectual tornou-se quase um sinnimo de simpatia por ideologias de esquerda. Na Frana e na maior parte dos pases ocidentais, eles se tornavam membros de partidos comunistas, pronunciavam-se a favor da Unio Sovitica (em consequncia, tentavam ignorar as ms notcias que vinham do governo de Stlin) e mostravam-se esperanosos pelas revolues que se anunciavam no Terceiro Mundo. Jean-Paul Sartre tornou-se uma espcie de intelectual total. Sua militncia ideolgica, escrevendo livros sobre poltica e pronunciandose a respeito de conflitos como a independncia da Arglia, fez dele o maior exemplo de intelectual naquele contexto. Em nosso entendimento, ao vir a pblico pronunciar-se sobre algum assunto de interesse geral, o intelectual exerce um poder simblico, oriundo da legitimao de estar inserido privilegiadamente em algum campo do conhecimento, ou das artes. O que implica formar uma categoria dentre as diversas divises que imprimimos ao mundo. Segundo Pierre Bourdieu, um poder simblico seria
um poder de construo da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseolgica: o sentido imediato do mundo (e em particular, do mundo social) supe aquilo a que Durkheim chama o conformismo lgico, quer dizer, uma concepo homognea do tempo, do espao, do nmero, da causa, que torna possvel a concordncia entre as inteligncias. (BOURDIEU, 1989, p. 09)

No Brasil, durante a ditadura estabelecida com o Golpe Civil-Militar de 1964, diversas personalidades utilizaram dessa legitimao na oposio ao governo. Na academia, esse embate foi ferrenho, embora seja mais conhecida essa luta nos meios artsticos. Questionouse, principalmente, o desrespeito s instituies democrticas, ao retirar da presidncia Joo

3 Nesse trabalho, utilizamos a noo de engajamento dada por Marilena Chau: Tomada de posio no interior da luta de classes, como negao interna das formas de explorao e dominao vigentes em nome da emancipao ou da autonomia em todas as esferas da vida econmica, social, poltica e cultural. Diferente do idelogo, inserido no mercado, falando a favor do mercado (CHAU, 2006, p. 29).

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Goulart, oriundo de uma chapa eleita pelo voto popular. E, depois do Ato Institucional N 5, a oposio clamou pela liberdade de expresso, violentada pelo governo militar. O Cinema Novo procurou cumprir com seus filmes essa funo do intelectual de intervir no cenrio poltico. O movimento foi formado por uma gerao de jovens cinfilos que, na segunda metade da dcada de 1950, se reuniam em cineclubes e bares. Nesses espaos, eles assistiam e discutiam filmes clssicos e seus contemporneos, principalmente os do neorrealismo italiano. Da atuao cineclubista e tambm na crtica cinematogrfica, os cinemanovistas tiveram suas primeiras experincias com a produo no fim daquela dcada. Assim, eles colocaram em prtica suas ideias, que propunham renovar o cinema brasileiro, ento dominado pelas chanchadas (em queda no momento) e pelos melodramas. Os jovens aspirantes a cineastas queriam fazer um cinema independente, autoral. O centro geogrfico do Cinema Novo foi o Rio de Janeiro4 e seu ncleo principal era composto por Leon Hirszman, Paulo Csar Saraceni, Carlos Diegues, David Neves, Joaquim Pedro de Andrade e Glauber Rocha, que chegou da Bahia no fim dos anos 1950 e se mudou em definitivo para l em 19625. Seu objetivo era fazer filmes com temticas nacionais e que levassem temas genuinamente populares para as telas. Para isso, esses diretores apostaram em uma esttica que confrontava o modelo ao qual o espectador estava acostumado.
[Eles] queriam uma dramaturgia liberta de clichs, impulsionadora da expresso autoral sem as censuras do aparato industrial, estimuladora de uma conscincia crtica em face da experincia contempornea. Sem descartar as emoes e o divertimento, entendiam que as dimenses polticas das novas poticas exigiam uma linguagem que deveria ir alm da transformao dos problemas em espetculo. (XAVIER, 1993, p. 115-116)

Para os cinemanovistas, seus filmes eram uma forma de ao. A princpio isso foi feito na representao de temas caros cultura poltica de esquerda. Em suas pelculas estavam a pobreza do subdesenvolvimento, a luta de classes e o apelo contra a alienao. Porm, aps o Golpe de 1964, esses temas mais amplos passam a conviver com afrontas mais diretas ao governo inconstitucional que se estabeleceu. O engajamento permanecia, como podemos observar no seguinte trecho da narrao do documentrio Cinema Novo (Joaquim Pedro de Andrade, 1967)6: Marcado pelo seu tempo, o jovem cinema brasileiro necessariamente poltico. A luta apenas comea. Num pas como o nosso, tudo est por fazer. Entre ns, uma dor moral e social permanece e aumenta. Num pas de conflitos, viver significa agir: logo, cinema. Porm, essas manifestaes no ficaram impunes pelo Estado, que tinha um efetivo instrumento de proteo contra eventuais protestos: a fora policial. Com ela, perseguiu opositores, sejam polticos ou membros da sociedade civil. O governo militar silenciou vozes

4 No pretendemos aqui desprezar a importncia de outros estados para a formao do que ficou conhecido como Cinema Novo. A Bahia apresentava uma efervescncia em torno do cinema que resultou, por exemplo, no longa-metragem Bahia de Todos os Santos (1960, de Trigueirinho Neto). Outros estados tambm foram importantes, como a Paraba, de onde veio o aclamado documentrio Aruanda, (1960, de Linduarte Noronha). 5 Sobre essa delimitao de um ncleo principal no Cinema Novo, estamos seguindo CARVALHO, 2006. 6 O documentrio foi produzido pela alem ZDF e seu ttulo original Improviert und Zielbewusst.

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que destoavam de seu discurso. o que ocorreu com Joaquim Pedro de Andrade e o documentrio Braslia, Contradies de uma Cidade Nova7. Em 1967, o diretor Joaquim Pedro de Andrade foi convidado pela Olivetti, empresa italiana fabricante de produtos eletrnicos, para realizar um curta-metragem sobre Braslia, a jovem capital nacional. Tal iniciativa fazia parte de um novo direcionamento do departamento de publicidade da multinacional, investindo no financiamento de cultura. Foi dada equipe cinematogrfica total liberdade de criao8. O diretor convidou o crtico de cinema Jean-Claude Bernardet para colaborar no projeto, uma vez que ele j havia atuado na capital federal como professor da UnB. Juntos com o arquiteto Lus Saia, eles escreveram o roteiro para o documentrio. Lcio Costa e Oscar Niemeyer foram entrevistados no Rio de Janeiro e, ento, a equipe seguiu at Braslia, para realizar as filmagens. A situao do documentrio financiado pela Olivetti era atpica dentre as propostas cinemanovistas. Em geral, os diretores produziam filmes independentes, negando-se a produzir pelculas comerciais ou, nesse caso, sob encomenda. Porm, a total liberdade dada pela empresa italiana fez com que Joaquim Pedro e Jean-Claude Bernardet dessem ao filme contornos que o fazem reconhecvel dentro do movimento. Diferente de um filme institucional, elogioso do modernismo que impregnava Braslia, o documentrio tem um tom questionador. Apesar de seus apenas sete anos de inaugurao, a Novacap j demonstrava os problemas que se agravaram com os anos. importante observar que Joaquim Pedro de Andrade tinha experincia com a produo de documentrios. No incio dos anos 1960, ele fez um estgio em Nova York com os irmos Alfred e David Maysles, referncias em um estilo conhecido como cinema direto ou cinma-vrit. Ele, que j havia produzido um curta-metragem de documentrio, O mestre dos Apicucos e o Poeta do Castelo (Joaquim Pedro de Andrade, 1959) que depois foi dividido , tentaria incorporar as lies aprendidas nos estudos em Garrincha, Alegria do Povo (Joaquim Pedro de Andrade, 1963). O cinema direto, com cmeras escondidas e registros de udio sincronizado, necessitava de equipamentos modernos, o que a produo sobre o craque botafoguense no obteve. Nos anos seguintes, Joaquim Pedro ficaria mais conhecido por sua relao com o cinema de fico, sobretudo com adaptaes literrias. Todavia, a produo de documentrios foi uma constante em sua trajetria9. Braslia, Contradies de uma Cidade Nova no segue risca o cinema direto. Com uma narrao quase onipresente, o documentrio tem estilo mais clssico. Ainda assim, percebe-se influncias, sobretudo da obra de Jean Rouch, com a nfase nas entrevistas.

7 Braslia, Contradies de uma Cidade Nova. Ficha Tcnica: Direo: Joaquim Pedro de Andrade Produo: Filmes do Serro, Rio de Janeiro - Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade, Lus Saia e Jean-Claude Bernardet Produtor delegado / Texto / Narrao: K.M. Eckstein Montagem: Brbara Riedel Imagem: Affonso Beato

Muitas das informaes aqui presente sobre Braslia, Contradies de uma Cidade Nova foram retiradas do texto homnimo, de Jean-Claude Bernardet, presente no DVD de Macunama (1969, de Joaquim Pedro de Andrade), e disponvel no site <http://www.filmesdoserro.com.br/mat_br_01.asp>. Acessado em maro de 2012.
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Sobre os documentrios de Joaquim Pedro, ver ARAJO, 2004.

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Podemos dividir o documentrio em duas partes. A primeira ocupa-se de apresentar a cidade, principalmente o Plano Piloto. Ao espectador so explicadas as divises racionais que motivam a concepo da cidade, sua organizao, alm do enquadramento dos imponentes contornos de suas construes. Com algumas construes no terminadas, a Braslia de 1967 apresenta, junto ao cinza peculiar de seus monumentos de concreto, a predominncia do vermelho da terra. A cidade ainda estava em processo de formao. Na segunda parte do documentrio, o foco se distancia do Plano Piloto rumo s cidades satlites. Abre-se a narrativa para entrevistar os trabalhadores que ergueram a capital federal e, sem espao projetado para eles, formaram grandes periferias ao redor da cidade. A equipe de filmagem entra nas casas, aborda as numerosas famlias, conversa com imigrantes ainda nos nibus que os levam para o novo desafio. Em comum, a esperana de encontrar algo melhor do que a aridez nordestina que se deixava, ainda que em uma situao de marginalizao, em uma cidade que no os esperava por l. De certa forma, o documentrio aborda relaes violentas, cujo tratamento artstico era incmodo aos dirigentes do pas. Pois a capital federal tem em sua essncia uma equao violenta: de um lado os trabalhadores, que a construram deixando suas terras de origem para habitar um territrio at ento desbravado; do outro, o projeto de Braslia, que no previa espao para eles. Nas entrevistas, nota-se um ressentimento com essa expulso, alm de relatos de violncia fsica nesse processo. Braslia era para poucos. Ou deveria ser. Pois esses trabalhadores, sem lugar no Plano Piloto, montaram uma periferia inesperada, favelas horizontais. E continuaram chegando. Famlias de imigrantes, mesmo que as oportunidades de trabalho no Planalto Central no fossem mais tantas, preferiam optar pelas condies econmicas da jovem capital federal Elas ainda eram melhores do que aquelas deixadas para trs. Assim, outra violncia era estabelecida, dessa vez contra o projeto de Braslia. O plano modernista do trio Juscelino Kubitschek, Lcio Costa e Oscar Niemeyer, de construir uma cidade racional, organizada, que levasse o desenvolvimento para o centro do Brasil, acabou ganhando contornos indesejados. A utopia sofre uma violncia: trazida para a realidade. O subdesenvolvimento devora a cidade modelo, na forma de uma periferia quase to imponente quanto seus belos prdios. Braslia, com toda sua racionalidade urbana, rapidamente degenerou enquanto territrio social, reproduzindo a irracionalidade poltica e os desajustes do resto do pas (BENTES, 1996, p. 73). E isso j se mostrava em 1967. Nessa segunda parte, o filme encomendado torna-se Cinema Novo: crtico, une o poltico ao social, no se deslumbra com a arte arquitetnica ao questionar sua insero contraditria no plano da ao. E, conscientemente ou no, a crtica atinge os prprios cineastas. Afinal, ao pontuar que a Novacap funciona como a arte em geral, isolando-se das massas, no podemos deixar de pensar no paradoxo do prprio Cinema Novo. Este, apesar de se propor um cinema popular, viu-se restrito a um pblico limitado, composto de estudantes e intelectuais em sua maioria. Joaquim Pedro, bem verdade, conseguiu quebrar essa barreira em seu filme seguinte, Macunama (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) Mas,

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ainda assim, impossvel no constatar que dentro do prprio cinema existem barreiras, uma espcie de dificuldade de comunicao com determinados pblicos10. No que diz respeito inacessibilidade, esse foi o caso de Braslia, Contradies de uma Cidade Nova. Mudanas no departamento de publicidade da Olivetti geraram uma recepo desencontrada com a postura inicial, de incentivar a liberdade de seus realizadores. Ao exibir uma cpia quase finalizada do documentrio aos novos responsveis desse setor, Jean-Claude Bernardet e Joaquim Pedro encontraram uma reao contrariada. Precavida, a Olivetti preferiu no ter problemas com o governo brasileiro. Sequer a possibilidade de verses diferentes para Itlia e Brasil agradou. O apoio da multinacional ao filme terminou ali. O curta-metragem foi exibido no Festival de Braslia de 1968, em sesso no anunciada. Joaquim Pedro foi aconselhado a no submeter o filme censura, pois, alm de uma liberao ter possibilidades mnimas, um mal estar com o governo militar era perigoso. Alm das crticas ao projeto de Braslia, motivo de orgulho cvico, o documentrio faz insinuaes sobre problemas com o governo militar. o caso do trecho a respeito da UnB, projeto de ser centro de excelncia intelectual, mas que teve dezenas de professores deixando a cidade em razo da falta de autonomia para desempenhar suas funes. Em seu supracitado texto sobre o filme, Jean-Claude Bernardet conta que Joaquim Pedro tinha esperanas de obter a liberao do filme mediante a apresentao de uma carta de apoio escrita por Oscar Niemeyer. A ideia, porm, no se concretizou por um aspecto muito simples: o arquiteto recusou-se a escrever tal documento. Ele ficou descontente com o tom do curta-metragem. Em sua concepo, Braslia ia mal porque estava nas mos dos militares. Com a sada deles, Niemeyer acreditava que a capital cumpriria com sua misso. Anos depois, provavelmente na dcada de 1970, ainda segundo Bernardet, o arquiteto e Joaquim Pedro se encontraram. E Niemeyer reconheceu: vocs estavam certos. Sem ser lanado comercialmente, o filme teve uma cpia depositada na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Braslia reapareceria nos anos 2000, restaurado, como extra do DVD de Macunama. No embate entre poderes em torno dessa pelcula, o do Estado, ento dirigido por uma ditadura militar, silenciou o dos intelectuais. Era um governo que j comea desdenhando do sistema democrtico ao dar o golpe em 1964. E essa lgica, a de que contra as armas no h argumentao, seria levada ao limite durante os anos sombrios que se seguiram. Liberdades individuais eram restringidas e expressar-se s era permitido com o aval de censores. Era crime divergir politicamente do direcionamento do pas. Joaquim Pedro de Andrade conheceu bem a privao da liberdade mais bsica. Em 1966, junto de Glauber Rocha, Mrio Carneiro, Antonio Callado, Flvio Rangel, Mrcio Moreira Alves, Carlos Heitor Conny e Jaime Rodrigues, ele participou de um protesto de ampla repercusso. Trajados de terno e gravata, eles estenderam a faixa Abaixo a Ditadura diante de autoridades que participariam do encontro da Organizao dos Esta dos

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Sobre esse dilema, conferir: GALVO; BERNARDET, 1983.

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Americanos (OEA), que aconteceria no Hotel Glria, no Rio de Janeiro. Foram presos. Desejar o fim da ditadura rendeu-lhes dez dias de recluso. Em 1969, portanto aps o lanamento do documentrio tratado aqui, o cineasta teve nova experincia carcerria. Ele, assim como outros tantos intelectuais, estava sob vigia constante do DOPS. O diretor foi preso sem saber ao certo o motivo. Naquela ocasio, ele foi liberado rapidamente, pois a priso coincidiu com a abertura do Festival Internacional de Cinema do Rio e o cineasta Claude Lelouch protestou, negando-se a exibir seu filme sem a liberao de Joaquim Pedro. O governo militar imps-se com campanhas ufanistas, celebrando o futebol, o civismo, o milagre econmico e uma modernidade constituda de obras fa ranicas11. Mas, contra aqueles que no eram atingidos por essa estratgia, restava a imposio da fora. Dessa histria, so inmeros os desaparecidos que, com sua ausncia, acabam por cont-la. Em Braslia, a atuao desse poder de coero se d de maneira prvia, anterior ao. o temor de sofrer retaliaes do Estado que faz a Olivetti retirar seu apoio ao filme. Da mesma forma, seus realizadores no levam em frente a ideia de lanar a pelcula e contentam-se em arquiv-la. Dessa forma, o filme no cumpre sua misso de comunicar ao pblico o pessimismo de seus realizadores sobre a capital federal. A autocensura do documentrio evita que esse poder simblico dos intelectuais atue. Uma opo por evitar o confronto que, sem dvidas, seria desigual. Nesse confronto com Golias, Davi preferiu bater em retirada para evitar maiores danos.

Bibliografia ARAJO, Luciana Corra. Beleza e Poder: os documentrios de Joaquim Pedro de Andrade. TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (org). Documentrio no Brasil: Tradio e Transformao. So Paulo: Ed. Summus, 2004. BENTES, Ivana. Joaquim Pedro de Andrade (Perfis do Rio, n11). Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1996. BERNARDET, Jean-Claude. Braslia, Contradies de uma Cidade Nova. Captado em <http://www.filmesdoserro.com.br/mat_br_01.asp>. Acesso em: 17/05/2011. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simblico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989. CARVALHO, Maria do Socorro. Cinema novo Brasileiro In: MASCARELLO, Ferna ndo. Histria do Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2006, pp. 289-310. CHAU, Marilena. O intelectual engajado: uma figura em extino?. In: NOVAES, Adauto. O silncio dos intelectuais. So Paulo: Cia. das Letras, 2006. FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginrio social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fundao Getulio Vargas, 1997. GALVO, Maria Rita Eliezer; BERNARDET, Jean-Claude. Cinema: o nacional e o popular na cultura brasileira. So Paulo: Brasiliense, 1983.

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Sobre o ufanismo cvico, conferir FICO, 1997.

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RODRIGUES, Helenice. O intelectual no campo cultural francs: do caso Dreyfus aos tempos atuais. Revista Varia Histria, Belo Horizonte, vol. 21, n 34, julho de 2005. XAVIER, Ismail. Cinema poltico e gneros tradicionais: a fora e os limites da matriz melodramtica. In: Revista USP, n 19, set./nov. 1993.

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