A Arte Visionária e A Ayahuasca
A Arte Visionária e A Ayahuasca
A Arte Visionária e A Ayahuasca
HUMANAS
Florianópolis
2009
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERDISCIPLINAR EM CIÊNCIAS
HUMANAS
Florianópolis
2009
M5895a Mikosz, José Eliézer
A arte visionária e a Ayahuasca: Representações Visuais de Espirais e Vórtices
Inspiradas nos Estados Não Ordinários de Consciência (ENOC). / José Eliézer Mikosz.
Orientador: João Eduardo Pinto Basto Lupi. – Florianópolis, 2009.
291 f. : il. ; 30 cm.
Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina – Doutorado em
Ciências Humanas, 2009.
Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH). Condição Humana
na Modernidade. Modernidade e Globalização.
Co-Orientador: Luis Eduardo Luna.
Inclui bibliografia.
1. Arte Visionária. 2. Arte-Psicologia. 3. Fantasia na arte. 4. Inspiração. 5.
Surrealismo. 6. Santo Daime. 7. Ayahuasca. I. Lupi, João Eduardo Pinto Basto. II.
Universidade Federal de Santa Catarina. III. Título.
CDU:7.036.7
À memória dos meus pais, Estefano Mikosz e Zoé
Costa Mikosz, com carinho e reconhecimento.
AGRADECIMENTOS
Um trabalho de tese como este, na verdade, como qualquer outro similar, não é
produto de um estudante, de uma pessoa dedicada a fazer uma pesquisa com profundidade, é
fruto de um universo de pessoas. Ela se formou das contribuições dos autores usados, dos
orientadores, dos professores, dos cientistas que se dispuseram a dar seus pareceres na medida
em que o trabalho se desenvolvia, de todo um grupo de pessoas que colaboraram das mais
diversas formas, seja através de depoimentos, seja até mesmo através de um café amigo.
Tenho que iniciar agradecendo aos mais próximos, Marili Azim, minha
companheira de quase três décadas, pela paciência, cumplicidade e carinho; Marianah Mikosz
e Lucas Mikosz, meus filhos, onde encontrei sempre amor, incentivo, confiança e apoio
fundamental para continuar.
Quero ser grato a minha irmã Ana Lúcia Mikosz da Nóbrega pelo suporte em
todos os sentidos, por sua sempre torcida incondicional, junto com meu cunhado Kenneth F.
H. da Nóbrega.
Agradeço ao PPGICH pela oportunidade de ingressar no doutorado e devo
reconhecer aqui o mérito de um programa interdisciplinar que, sem dúvida na presente
pesquisa, era a única maneira de abordar um tema pouco ortodoxo que trata das relações entre
arte e consciência.
Esse trabalho não teria sido possível sem a orientação do prof. Luis Eduardo
Luna. Quando o procurei da primeira vez, me recebeu em sua casa, dando dicas fundamentais
para o trabalho, passou a bibliografia que inspirou a escolha pela investigação dos vórtices,
me apresentando, nos contatos seguintes, para cientistas de renome internacional dispostos a
colaborar e interessados na investigação. O prof. Luna foi fundamental na transição da
orientação onde pudemos reformular toda a estrutura da tese, nos voltando para a idéia inicial
de usar metodologias mais pertinentes aos estudos sobre os modos de consciência e as
representações visuais realizadas em decorrência das experiências vividas pelos artistas. Devo
agradecer também a Adriana Rosa, esposa do prof. Luna, por sua gentileza e atenção em
todos os encontros ocorridos em sua casa.
Sou grato ao prof. João Lupi onde as discussões sobre os caminhos da chamada
“Nova Era” e seus reflexos na sociedade, em disciplina ministrada por ele, nos aproximou
para a orientação final e organização desta tese. Fiquei muito feliz por ele ter aceitado pegar a
orientação “andando” e por toda atenção que recebi, colaborando com o prof. Luna a dar
sábios cortes e ajustes de foco em um assunto tão vasto e fácil de cair em digressões.
Aos demais professores do DICH, meus agradecimentos ao prof. Alberto Cupani
pelas bases metodológicas e epistemológicas para um trabalho de natureza interdisciplinar; ao
prof. Rafael Raffaelli pelo contato e orientação inicial; aos profs. Héctor Leis e Selvino
Assmann, pelas aulas riquíssimas nos dando uma visão geral das ciências humanas, além da
amizade querida e exemplo desses dois grandes homens dedicados. Também sou grato aos
dois por aceitarem fazer parte da banca como suplentes (foi um modo de deixar uma cópia da
tese para eles como lembrança). Sou muito grato a profa. Carmen Rial e profa. Joana Maria
Pedro pelo apoio nos concedendo uma bolsa emergencial do programa que, por motivos
alheios a nossa vontade, tivemos que optar por desistir, mas esse apoio nos fortaleceu e nos
deu confiança de defender a tese no prazo apesar das aparentes dificuldades para tal.
Meus sinceros agradecimentos aos integrantes da banca de defesa, por aceitarem
nosso convite e pelas importantes contribuições recebidas: prof. Marcelo Mercante, prof.
Artur Freitas, prof. Marcos Montysuma e, em especial, para a profa. Luciana Martha Silveira,
minha orientadora de mestrado, por aceitar estar comigo em mais essa etapa de minha vida.
Agradeço ao prof. Alberto Groisman pelas colocações durante a qualificação,
escrevendo 11 páginas de observações e dicas que foram bem apreciadas ao longo do
desenvolvimento da tese e, em grande parte, utilizadas.
Ao prof. David Lewis Williams, criador do método neuropsicológico de leitura
das imagens utilizado na tese e por ter sempre respondido nossos e-mails e, também, por ter
permitido a tradução de artigos seus para a Revista INTERthesis.
Ao escritor e pesquisador Graham Hancock que gentilmente nos concedeu uma
entrevista em julho de 2007 por intermédio do prof. Luna onde nos relatou um pouco sobre
seu livro Supernatural – Ancient Teachers of Mankind, que nos foi de grande inspiração,
reforçando, pela sincronicidade, várias hipóteses da tese.
Ao prof. Benny Shanon pela disposição em ajudar no que fosse preciso para o
desenvolvimento do trabalho e por suas ousadas e inspiradoras pesquisas sobre a ayahuasca.
Sou grato ao apoio e a receptividade da antropóloga Bia Labate, pesquisadora
brilhante e incansável, escritora, palestrista e incentivadora das investigações relacionadas aos
psicoativos e suas implicações na sociedade. Bia Labate ainda coordena o NEIP (Núcleo de
Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos) e edita blogs que são atualizados constantemente
sendo uma enorme fonte de informação para pesquisadores e interessados.
Sou muito grato aos artistas que pude contatar diretamente como L. Caruana,
Andrew Gonzalez, Martin Oscity, Alexandre Segrégio e Mark Henson pela disposição em
colaborar, responder às entrevistas, permitir o uso das imagens e apoiarem
incondicionalmente a pesquisa.
Ao amigo Adão de Araújo, por seus sempre válidos palpites quanto à melhor
forma de comunicar idéias e conceitos presentes na tese e também pela revisão do texto.
A todos os colegas do DICH, em especial ao Wellington Amorim, Paulo Roberto
da Silveira, Raquel Barros, Juliane Odinino (grato pelas hospedagens!), Rosa Maria, Paulo
Benincá (in memorian), Dora Maria Dutra Bay (in memorian) pelo convívio, pelos estudos,
pela alegria de estar com vocês presencialmente ou nas lembranças.
A amiga Silmara Cimbalista, pela torcida e pelo companheirismo nas empreitadas
em prol da INTERthesis, nossa revista do doutorado, e Cláudia Hausman Silveira pelas
mesmas razões e pela pousada do “Joca & Chica” que usamos algumas vezes em Floripa.
Agradeço ao Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, dentro da qual pude
conhecer a ayahuasca e onde permaneci durante cinco anos em convívio amistoso.
Aos meus grandes colaboradores “ocultos” nos anexos que, nos depoimentos
dados, além da profundidade alcançada, fizeram divertidas descrições das experiências, me
apresentando o brilhantismo e riqueza delas mesmo quando parecem nos colocar em “saias
justas”.
Liana Bergman, Ângelo Couto La Porta e Jerônimo Duarte Ayala, secretários do
DICH pelo profissionalismo, amizade, disposição e colaboração eficiente em todos os
momentos que precisamos.
Enfim, agradeço a vida mesmo que, mais uma vez, criou condições inesperadas
que atenderam minhas necessidades de forma valiosa e sincrônica.
RESUMO
Os Estados Não Ordinários de Consciência, ENOC, induzidos especialmente por alguns tipos
específicos de agentes psicoativos, como a ayahuasca, propiciam visões, tratadas aqui
também como mirações. Nos estágios iniciais da experiência, essas mirações geralmente são
formadas por padrões luminosos geométricos simétricos, ziguezagues, treliças, teias e
espirais, entre outros. Em estágios mais avançados, essas imagens podem se transformar em
objetos e cenários diversos, onde a influência cultural exercerá importante papel. Padrões
visuais análogos encontram-se em obras artísticas, desde as pinturas rupestres pré-históricas, o
que possibilita inferir que sua produção esteja, de algum modo, associada aos ENOC. Com
efeito, esses mesmos padrões visuais são encontrados em obras indígenas e de artistas da
atualidade que usam essa categoria de psicoativo. As mirações dos ENOC são muitas vezes
consideradas experiências de natureza espiritual ou mística, já que são sentidas como
vivências genuínas de um “outro mundo”, que só podem ser traduzidas para “este mundo” – o
mundo objetivo, material, do dia-a-dia – de forma descritiva e simbólica. Dentre as diversas
imagens que podem aparecer nas mirações, o trabalho investigou as espirais e os vórtices e
estudou alguns dos significados que costumam ser atribuídos a esses elementos, assim como
algumas transformações e adaptações que eles podem passar, dependendo da cultura local.
Foram coligidos ainda alguns exemplos da presença das espirais e vórtices na natureza, na
ciência e na história da arte, com o intuito de evidenciar a forte influência que essas imagens
podem ter sobre a imaginação, o conhecimento e a produção artística.
1
Miração is a term generally used by ayahuasca users inside Brazilian religions like União do Vegetal, Santo
Daime and Barquinha. In order not to use the word hallucination, we have chosen to use the term miração.
Miração probably comes from the Spanish verb mirar, which means to see, to watch. We, therefore, used
miração mainly when the experience under analysis is related to ayahuasca.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 1
MÉTODO ......................................................................................................................................... 4
DESCRIÇÃO DOS CAPÍTULOS ............................................................................................................ 7
1ª PARTE – A AYAHUASCA ................................................................................................ 11
1. A MATÉRIA: O CHÁ “MISTERIOSO” ...................................................................... 11
1.1. BOTÂNICA .............................................................................................................................. 12
1.2. QUÍMICA ................................................................................................................................ 14
1.3. PREPARO................................................................................................................................ 17
2. O ESPÍRITO: OS ESTADOS NÃO ORDINÁRIOS DE CONSCIÊNCIA ................ 20
2.1. O XAMANISMO E OS ESTADOS DE CONSCIÊNCIA.............................................................................. 20
2.2. A CONSCIÊNCIA E A SUA COMPLEXIDADE ....................................................................................... 22
2.3. A LEGITIMIDADE DAS EXPERIÊNCIAS DOS ENOC.............................................................................. 25
2.4. MÉTODOS DE INDUÇÃO AOS ENOC ............................................................................................. 28
2.4.1. ENFERMIDADES ............................................................................................................................ 28
2.4.2. MISTICISMO E RELIGIÃO................................................................................................................. 28
2.4.3. RELACIONADOS AOS SENTIDOS E À MENTE ........................................................................................ 28
2.4.4. RELACIONADOS AO CORPO ............................................................................................................. 29
2.4.5. USO DE PSICOATIVOS .................................................................................................................... 29
2.4.6. ASPECTOS EMOCIONAIS ................................................................................................................. 30
2.5. LEWIS-WILLIAMS E OS 3 ESTÁGIOS DOS ENOC ............................................................................... 31
2.5.1. ESTÁGIO-1 DOS ENOC .................................................................................................................. 33
2.5.2. ESTÁGIO-2 DOS ENOC E OS VÓRTICES ............................................................................................. 37
2.5.3. ESTÁGIO-3 DOS ENOC .................................................................................................................. 38
2.6. OS MITOS .............................................................................................................................. 40
2.7. A RELIGIÃO ............................................................................................................................. 41
2.8. EFEITOS DA AYAHUASCA NA PSIQUE ............................................................................................. 43
2.9. AYAHUASCA E CRIATIVIDADE ...................................................................................................... 48
2.10. AS VISÕES DA AYAHUASCA ....................................................................................................... 50
3. O HISTÓRICO – GERAÇÕES AYAHUASQUEIRAS ................................................ 54
3.1. 1ª GERAÇÃO – OS PIONEIROS ..................................................................................................... 54
3.1.1. POVOS TUKANO ........................................................................................................................... 55
3.1.2. SHIPIBO-CONIBO .......................................................................................................................... 59
3.1.3. CAXINAUÁ ................................................................................................................................... 61
3.1.4. MANCHINERI ............................................................................................................................... 64
3.2. 2ª GERAÇÃO – VEGETALISTAS RIBEIRINHOS ................................................................................... 65
3.3. 3ª GERAÇÃO – DA FLORESTA PARA AS CIDADES .............................................................................. 66
3.3.1. CICLU E O ALTO SANTO ................................................................................................................ 67
3.3.2. BARQUINHA. ................................................................................................................................ 68
3.3.3. CENTRO ESPÍRITA BENEFICENTE UNIÃO DO VEGETAL .......................................................................... 69
3.3.4. SANTO DAIME (CEFLURIS) ........................................................................................................... 72
3.4. 4ª GERAÇÃO – DISSIDÊNCIAS E REINVENÇÕES................................................................................. 73
2ª PARTE – A PRESENÇA DAS ESPIRAIS E A ARTE ................................................... 79
4. ESPIRAIS NA NATUREZA E NA CIÊNCIA .............................................................. 79
4.1. ANIMAL E VEGETAL .................................................................................................................. 80
4.2. O PODER DOS OPOSTOS COMPLEMENTARES .................................................................................. 83
4.3. DO ÍNFIMO AO INCOMENSURÁVEL ............................................................................................... 85
4.4. A RAZÃO ÁUREA E OUTRAS MATEMÁTICAS.................................................................................... 91
4.5. OS FRACTAIS ........................................................................................................................... 97
4.6. ESPIRAIS NO CÉREBRO ............................................................................................................... 99
5. HISTÓRIA DA ARTE VISIONÁRIA ......................................................................... 103
5.1. CONCEITUAÇÃO ..................................................................................................................... 103
5.2. RECORTE NA HISTÓRIA DA ARTE OCIDENTAL ................................................................................ 105
5.2.1. O RENASCIMENTO ...................................................................................................................... 106
5.2.2. O MANEIRISMO ......................................................................................................................... 109
5.2.3. O ROMANTISMO ........................................................................................................................ 111
5.2.4. OS PRÉ-RAFAELITAS .................................................................................................................... 112
5.2.5. O SIMBOLISMO E A ART NOUVEAU ................................................................................................ 113
5.2.6. O ABSTRACIONISMO ................................................................................................................... 117
5.2.7. O SURREALISMO ......................................................................................................................... 119
5.2.8. O REALISMO FANTÁSTICO ............................................................................................................ 121
5.2.9. O PSICODELISMO ........................................................................................................................ 122
5.2.10. VISIONÁRIOS AO LONGO DA HISTÓRIA DA ARTE ............................................................................. 126
5.3. A ARTE VISIONÁRIA E A AYAHUASCA .......................................................................................... 127
5.3.1. OS AYAHUASQUEIROS PABLO AMARINGO E ALEXANDRE SEGRÉGIO ..................................................... 128
5.3.2. AYAHUASCA E OUTRAS PLANTAS SAGRADAS - L. CARUANA ................................................................ 134
5.3.3. COGUMELOS SAGRADOS - ANDREW GONZALEZ ............................................................................... 136
5.3.4. OS SINTÉTICOS – MARK HENSON E CHRISTIAN RÄTSCH ..................................................................... 137
5.3.5. SEM PSICOATIVOS - MARTIN OSCITY E JOHN ROBINSON.................................................................... 139
6. AS ESPIRAIS NO PASSADO E PRESENTE ............................................................ 143
6.1. ESPIRAIS SIMPLES, DUPLAS E TRIPLAS ......................................................................................... 145
6.1.1. OS VÓRTICES ENTÓPTICOS ........................................................................................................... 156
6.2. AS SERPENTES E O URÓBOROS .................................................................................................. 160
6.2.1. AS SERPENTES DOS VISIONÁRIOS ................................................................................................... 171
6.3. AS ESFERAS E O COSMO EM CAMADAS ....................................................................................... 175
6.3.1. VISÕES DO COSMO ..................................................................................................................... 177
6.4. OS TÚNEIS E OS AXIS MUNDI .................................................................................................... 181
6.4.1. TÚNEIS E AS PASSAGENS PARA OUTROS MUNDOS ............................................................................. 185
6.5. AS ESCADAS .......................................................................................................................... 191
6.5.1. AS ASCENSÕES DA ALMA ............................................................................................................. 193
6.6. OS CÍRCULOS E CIRCUNFERÊNCIAS.............................................................................................. 198
6.6.1. CÍRCULOS VISIONÁRIOS................................................................................................................ 201
6.7. AS MANDALAS ...................................................................................................................... 204
6.7.1. VISÕES DE MANDALAS ................................................................................................................. 209
6.8. OS LABIRINTOS ...................................................................................................................... 211
6.8.1. LABIRINTOS VISIONÁRIOS ............................................................................................................. 215
Considerações Finais ............................................................................................................ 219
ESPECULAÇÕES PARA TRABALHOS FUTUROS .......................................................................................... 226
01 – VISÕES SEMPRE PRESENTES ................................................................................................................ 226
02 – DEFESAS DO ORGANISMO .................................................................................................................. 226
03 – LAVAGEM CEREBRAL ......................................................................................................................... 227
04 – TERAPIAS COM A AYAHUASCA ............................................................................................................. 227
05 – A “PEIA” COMO INTENSIFICAÇÃO DA CULPA .......................................................................................... 228
06 – SONS E VISÕES ................................................................................................................................. 229
07 – TEORIA DA COR NOS MITOS ............................................................................................................... 229
08 – HISTÓRIA DA ARTE VISIONÁRIA ........................................................................................................... 229
09 – AS PLANTAS SILENCIADAS .................................................................................................................. 230
10 – A SERPENTE FALANTE (OU A “FÉ DEMAIS” E A “FÉ DE MENOS”) .............................................................. 230
ANEXO I – DEPOIMENTOS E QUESTIONÁRIOS ....................................................... 243
DEPOIMENTOS GRAVADOS.......................................................................................................... 244
01 – II. .................................................................................................................................................. 244
02 – AA................................................................................................................................................. 245
03 – MM. ............................................................................................................................................. 248
04 – NN. ............................................................................................................................................... 249
05 E 06 – PP E GG .................................................................................................................................. 251
DEPOIMENTOS POR E-MAIL ......................................................................................................... 256
01 – A.J................................................................................................................................................. 256
ENTREVISTAS COM ARTISTAS POR E-MAIL ........................................................................................... 257
01 – ALEXANDRE SEGRÉGIO ...................................................................................................................... 257
02 – LAURENCE CARUANA ........................................................................................................................ 257
03 – MARTIN OSCITY ............................................................................................................................... 258
04 – MARK HENSON ................................................................................................................................ 259
ANOTAÇÕES PESSOAIS ................................................................................................................ 262
15 E 16-08-2003 (1ª E 2ª SESSÃO) ........................................................................................................... 262
07-09-2003 (3ª SESSÃO) ......................................................................................................................... 264
04-10-2003 (6ª SESSÃO) ......................................................................................................................... 265
18-10-2003 (7ª SESSÃO) ......................................................................................................................... 265
08-11-2003 (10ª SESSÃO) ....................................................................................................................... 266
12-12-2003 (13ª SESSÃO) ....................................................................................................................... 266
20-12-2003 (14ª SESSÃO) ....................................................................................................................... 267
23-07-2004 (30ª SESSÃO – SÃO JOÃO) ..................................................................................................... 267
30-10-2004 (43ª SESSÃO) ....................................................................................................................... 268
11-07-2005 (59ª SESSÃO) ....................................................................................................................... 268
14-07-2008 (121ª SESSÃO) ..................................................................................................................... 268
ANEXO II - Banisteriopsis – Principais tipos e localização geográfica. .......................... 269
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 232
LISTA DAS FIGURAS
INTRODUÇÃO
Many of science’s central ideas seem to come from beyond the limits of rationalism.
JEREMY NARBY (1998)
Este trabalho parte da premissa básica de que, em certos estados de consciência, tais
como os facilitados pela ingestão da ayahuasca,2 os indivíduos costumam ter visões. Essas
visões, nos primeiros estágios do efeito da bebida, se apresentam como formas geométricas
luminosas diversas, porém, nos estágios mais avançados, podem sofrer transformações. É
comum, nesse estado, o indivíduo sentir-se em contato com uma realidade distinta, diferente
da realidade cotidiana, normalmente associada a alguma forma de contato espiritual. As
visões iniciais podem dar lugar ao aparecimento de cenas complexas, que se prestam à
atribuição de significados diversos. Por exemplo, na transição do estado ordinário para o não
ordinário de consciência, a visão de um vórtice pode dar a sensação de passagem por um túnel
que liga o mundo material ao mundo espiritual. Essa visão pode se converter na imagem de
uma escada em espiral pela qual se sobe deste para um “outro mundo”.
Os xamãs,3 através de suas experiências de transe, fazem o papel de intermediários
entre o mundo material e o espiritual nas culturas em que estão inseridos. Provavelmente isso
tem sido assim desde a pré-história. Esses xamãs podem vir a expressar suas visões servindo-
se do desenho ou da pintura da mesma forma que fazem os artistas visionários4
contemporâneos. Há diversos exemplos desse pressuposto ao longo da tese. Em razão disso,
dentre todas as formas geométricas freqüentes nas visões, para o presente estudo foram
escolhidas as espirais e os vórtices e sua presença desde a pré-história até a arte
2
Explanações gerais sobre o que é a ayahuasca e suas propriedades estão presentes no primeiro capítulo.
3
Maiores detalhes ver seção 2.1.
4
Chamados aqui de visionários por causa da característica de pintarem suas visões.
2
contemporânea. Abranger recortes de um período histórico “tão vasto”, não é o foco da tese,
não é isso que está sendo trabalhado. Buscam-se as espirais e os vórtices nas obras visuais e
sua associação com os estados não ordinários de consciência. As diversas imagens de várias
épocas servem como testemunho concreto de que o fenômeno em si é atemporal, mas sofre a
ação da cultura local, esta, sim, temporal. A tese procura demonstrar a similaridade entre os
trabalhos de representação visual e as experiências de transe, tanto de xamãs como de artistas
visionários, experiências nas quais aparecem espirais, vórtices e imagens deles derivadas.
Foram propostas perguntas que guiassem o desenvolvimento da pesquisa. As respostas
e devidas reflexões estão nas Considerações Finais da tese:
2. Como se trata de trabalhos inspirados nas visões obtidas em estados não ordinários
de consciência, essas visões fazem parte de um universal humano, ou seja, comum
para todas as pessoas, independentemente de sua cultura?
5
Cultura entendida aqui como fruto de costumes, tradição, educação, difusão de hábitos e práticas de caráter
comum em uma sociedade. Para Geertz, o conceito de cultura “denota um padrão de significados transmitidos
historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas
por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em
relação à vida” (GEERTZ 1989, 66). Ou então, conforme citado por Wilson, em 1952 Alfred Kroeber e Clyde
Kluckhohn reuniram 164 definições de cultura nesta única: “Cultura é um produto; é histórica; inclui idéias,
padrões e valores; é seletiva; é instruída; baseia-se em símbolos; e é uma abstração do comportamento e dos
produtos do comportamento” (WILSON 1999, 124).
6
A escolha desses povos se deu pelo referencial teórico usado, que inclui Reichel-Dolmatoff (1968), Harner
(1973), Furst (1976), Schultes & Hofmann (2000), Lewis-Williams & Pearce (2005), Vidal (2007), Langdon
(2007), etc.
4
MÉTODO
eletrônicas, cinema ou animação, estáticas ou cinéticas, onde o artista, a pessoa que realiza
esse trabalho, procura representar as visões obtidas em estados não ordinários de consciência.
Não se discute aqui a subjetividade relacionada ao gosto, ao valor estético, boa ou má arte,
arte maior ou arte menor, contexto contemporâneo ou atemporal, nem estilos ou técnicas
artísticas marcantes e inovadoras. Todavia, há algumas características mais comuns presentes
na Arte Visionária mostradas no Quinto Capítulo: História da Arte Visionária. O valor
hierárquico, que pode ser levado em consideração entre o objeto e a obra de Arte Visionária,
está principalmente na capacidade e na habilidade do artista em conseguir traduzir e
materializar em trabalhos visuais as suas experiências em estados não ordinários de
consciência, ou seja, as visões obtidas nesses estados.
Para se evitar uma massiça discussão, a conceituação de consciência,
primeiramente a de consciência ordinária, isto é, a consciência do dia-a-dia, dita “normal”,
pode ser compreendida aqui como: “os estados de conhecimento ou percepção que começam
quando acordamos de manhã depois de um sono sem sonhos e continuam durante o dia até
que adormeçamos novamente” (SEARLE 2000, 45). Portanto, o que é chamado aqui de
consciência ordinária são os estados mentais presentes no indivíduo quando este está
totalmente desperto, em vigília, ou seja, aquele em que se pode caminhar, conversar, se
relacionar, produzir, trabalhar e realizar tarefas diversas, interagir com seus próprios
pensamentos, sentimentos, com as pessoas e o mundo ao seu redor. Entre o estado de vigília e
o do sono profundo inconsciente há outros estados intermediários, como o do devaneio, o
hipnagógico e o dos sonhos. O presente estudo, porém, investiga os estados não ordinários de
consciência,7 assumindo, portanto, que devam possuir características particulares que os
diferenciem da consciência ordinária. Falar em ordinário e não ordinário não deve ser visto
como tendo algum sentido de valor ou de algo especial ou superior, é definido apenas como
de “outro tipo”. As diferenças entre os dois modos de consciência estão descritos no Segundo
Capítulo: O Espírito – Estados Não Ordinários de Consciência.
Admite-se que a consciência dependa de fatores biológicos para se manifestar,
sem que isso signifique algum tipo de determinismo neurobiológico, pois a experiência será
mediada pela cultura. De fato, a ayahuasca, em sua composição química, possui substâncias
que agem sobre os neurotransmissores no cérebro, de modo que o caráter biológico está
presente. Porém, as investigações da tese se concentram na produção artística realizada
7
Deve-se ressaltar que não ordinário, considerado como diferente do ordinário “normal”, não se refere de forma
nenhuma a estados considerados patológicos que, embora certas vezes apresentem semelhanças, não serão o
foco do presente estudo.
6
8
Para Jung, os universais, “aquilo que não é individual, mas universal” (JUNG 2007, 15), “os mesmos em toda a
parte e em todos os indivíduos” (id), é o conceito de arquétipo. Arquétipos são “os conteúdos do inconsciente
coletivo” (id), ou seja, aquilo que é universal a todos os seres humanos, independentemente do contexto cultural
dos indivíduos envolvidos, aquilo que é absolutamente inato, um “substrato psíquico comum de natureza
psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo” (id). Os conteúdos desse inconsciente coletivo são
definidos como imagens primordiais, aquelas “que existiam desde tempos mais remotos” (id).
7
numa visível expansão pelo país todo e, por fim, [3] pelo meu próprio envolvimento durante
quase cinco anos de participação na União do Vegetal, UDV (agosto de 2003 a junho de
2008), o que me tornou, dessa forma, num observador participativo. Desde as sessões
iniciais, foram feitas anotações na manhã seguinte sobre as vivências da noite anterior. Assim,
ao longo do tempo, foi possível acompanhar minhas próprias experiências, desde a quantidade
de ayahuasca bebida até as reações e mirações9 encontradas. Foram anotadas 121 sessões no
total, numa média de duas sessões por mês, sendo que 14 foram participações fora do âmbito
da UDV e apenas duas realizadas sozinho. Dessa forma, foi possível comparar algumas
experiências pessoais, inclusive artísticas, aos depoimentos recebidos e às descrições na
literatura que foram usadas como referencial teórico, e trocar informações diretamente com
alguns artistas visionários citados.
A leitura dos trabalhos artísticos se baseou no método usado por Lewis-Williams
(2004), que são os três estágios descritos como [1] Entóptico, [2] Construal e [3] Visões
Completas. A partir das imagens das espirais e vórtices, foram selecionadas as oito categorias
derivadas que serão descritas no Sexto Capítulo: A Arte Visionária e a Ayahuasca.
Primeiramente, serão vistas as obras antigas; em seguida as obras escolhidas dos artistas
visionários ayahuasqueiros; depois, alguns exemplos com artistas não ayahuasqueiros e,
finalmente, alguns depoimentos de ayahuasqueiros artistas ou não, arrolados nos anexos no
final da tese.
1ª PARTE – A AYAHUASCA
O Primeiro Capítulo – A Matéria: O Chá Misterioso – apresenta o que é essa
bebida do ponto de vista botânico, ou seja, as plantas envolvidas no seu preparo e as
substâncias químicas que atuam junto aos neurotransmissores no cérebro. Nesse capítulo, não
se atribui nenhum significado especial que a ayahuasca possa ter como caráter sagrado ou
divino em alguma cultura ou religião.
9
Miração é o termo usado pelos ayahuasqueiros de maneira geral dentro das religiões brasileiras como a União
do Vegetal, o Santo Daime e a Barquinha. Para não usar o termo alucinação, optou-se simplesmente por
miração. É possível que miração venha do espanhol mirar, que significa ver, olhar. Foi usada a palavra miração
principalmente quando as experiências estão associadas à ayahuasca.
8
10
As descrições das imagens das obras de Amaringo, no sexto capítulo, onde há muitos nomes de plantas,
animais e seres, são todas baseadas no livro de autoria de Luis Eduardo Luna, co-orientador do presente
trabalho, com o próprio Pablo Amaringo: Ayahuasca Visions – The Religious Iconography of a Peruvian
Shaman. A leitura das imagens aqui está reduzida às categorias estudadas na tese, o livro traz descrições bem
mais completas das visões.
10
11
Apesar de não constar o nome dos entrevistados, esse cuidado pareceu importante para todos.
11
1ª PARTE – A AYAHUASCA
12
A ayahuasca recebe várias denominações conforme o grupo e região: caapi, dapa, mihi, yajé, kahi, natema,
pindé (SCHULTES & HOFMANN 2000, 124) além de nixi pae, shori, kamarampi, Vegetal, Santo Daime (LUNA
1996, 126) e de Hoasca, no contexto da União do Vegetal, entre outros. Uma grande relação de nomes se
encontra no sítio http://www.biopark.org/ayahuasca.html
13
Língua indígena, ainda hoje falada nos países da cordilheira dos Andes, do Chile à Colômbia, especialmente
no Equador e Peru. Foi a língua falada no antigo império inca (HOUAISS 2001).
14
O “psicodelismo” ficou associado ao uso do LSD nas décadas de 1950/1960. O termo psicodélico é composto
pelas palavras gregas psyche (psique - alma) e dêlos (visível, evidente). Pode ser entendido como tornar visível,
mostrar, fazer ver, manifestar.
12
1.1. BOTÂNICA
15
Lewin (1998, 26) divide os psicoativos em cinco grupos: euphorica, phantastica, inebriantia, hypnotica e
excitantia. Hofmann, baseado em Lewin, os divide em analgésicos e eufóricos (ópio, cocaína), tranqüilizantes
(reserpina), hipnóticos, (kava-kava) e alucinógenos ou psicodélicos (peiote, mescalina, ayahuasca, maconha,
LSD). É possível dividir os psicoativos em três grupos básicos: os estimulantes, que aceleram o funcionamento
do cérebro (anfetaminas, cocaína, cafeína), os depressores, que diminuem a velocidade do cérebro (álcool,
barbitúricos, narcóticos, opiáceos) e os perturbadores: são os que modificam o funcionamento do cérebro
(mescalina, peiote, LSD, ayahuasca).
16
Para algumas tribos amazônicas, o nome se refere tanto ao cipó como à bebida já preparada, onde diversas
plantas podem ser acrescentadas para conseguir outros efeitos.
17
Para os índios, o nome mariri (yachay) se refere a uma substância mágica essencial que os xamãs do Alto
Amazonas e os praticantes ribeirinhos devem possuir, ligado aos conceitos de poder de cura e bruxaria (LUNA
1996, 14).
18
Essas são as plantas mais usadas em religiões brasileiras como o Santo Daime, a Barquinha e a União do
Vegetal.
13
19
Alcalóide é qualquer das substâncias de um extenso grupo encontrado nos vegetais, em geral nitrogenadas,
heterocíclicas, básicas, com pronunciada ação fisiológica sobre os animais.
20
Outras fontes de informação botânica dessas plantas estão presentes no sítio Biopark e do herbário da
Universidade de Michigan presente no Anexo II da tese:
http://www.biopark.org/peru/huascaspecies.html (acessado 25 de agosto 2006).
14
Peru nas cidades de Iquitos, Pucallpa e arredores pelos nomes de ayahuasca céu, ayahuasca
luzeiro (lucero), ayahuasca trovão, ayahuasca sapo, ayahuasca negro, etc., que não parecem
ser diversas espécies do gênero Banisteriopsis, mas, possivelmente, se referem mais aos
efeitos que as diferentes plantas provocam nos indivíduos.
1.2. QUÍMICA
Fig. 03. Comparação de algumas moléculas de substâncias psicoativas. Da esquerda para a direita: molécula
de serotonina (hormônio cerebral); Psilocibina (alucinógeno orgânico); N, N-dimetil-triptamina (alucinógeno
orgânico e hormônio cerebral); LSD (alucinógeno inorgânico).
Na figura 04, são exibidos os caminhos pelos quais se formam algumas das
principais moléculas a partir do L-Triptofano.
Fig.04. Moléculas de alguns neurotransmissores cerebrais a partir do L-Triptofano. Moléculas como a DMT e a
serotonina são bastante similares, assim como a psilocibina.
que realizam esse papel. A serotonina está relacionada à “regularização do estado emocional,
do humor, da atividade sexual, do controle motor, da memória, do sonho e de diversas
funções cognitivas [...] busca de padrões, a lucidez mental e ao estado de alerta” (LUNA
2005, 336). A maioria dos medicamentos chamados antidepressivos produz um aumento da
disponibilidade dessa substância no cérebro. Porém, o excesso de serotonina pode causar,
entre outros sintomas, a diminuição da resposta sexual normal, náuseas causadas pelo alto
grau de estimulação do nervo vago, e diarréia, pois a serotonina periférica, no trato digestivo,
estimula os movimentos intestinais.
Quando há muita serotonina, entra em ação uma enzima reguladora, a MAO
(monoaminoxidase), que as metaboliza. A DMT influencia o Sistema Nervoso Central (SNC)
de modo similar à serotonina, encaixando-se no mesmo neuro-receptor destinado a esta como
chaves similares que abrem a mesma fechadura. A DMT só atua no organismo se for injetada
ou fumada; ingerida, ela será inibida, devido à presença da MAO intestinal e hepática,21 mas,
na ayahuasca, os alcalóides presentes no cipó, como a harmina, impedem a ação da MAO,
permitindo, assim, que a DMT atue:
Entretanto, depois que a MAO é inibida pelos alcalóides harmala, por exemplo, a
DMT torna-se oralmente ativa, fazendo com que uma intrincada gama de padrões
coloridos seja freqüentemente obtida através desta combinação. É importante notar
que os efeitos da DMT ativada oralmente são qualitativamente diferentes da DMT
injetada ou fumada sem a presença da inibição da MAO. (STRASSMAN e outros,
1994; CALLAWAY e outros, 1998). (CALLAWAY 2002, 238).
21
Há dois tipos de MAO: MAO-A e a MAO-B. MAO-A é encontrada primeiramente no fígado e no trato
gastrintestinal; no fígado, está envolvida na eliminação de monoaminas ingeridas tais como as tiraminas. As
monoaminas, como a epinefrina, a norepinefrina e a dopamina, são desativadas quando passam pela circulação
em um fígado rico em MAO-A. A MAO-B, por outro lado, é encontrada primeiramente no cérebro e nas
plaquetas. Maiores informações no sítio:
http://www.emedicine.com/emerg/topic318.htm (acessado dia 19 de julho de 2006).
17
1.3. PREPARO
mesmo azedando, ele será consumido normalmente pelos discípulos. A feitura do chá é
chamada de feitio pelo Santo Daime e pela Barquinha, já a UDV usa o termo preparo.
Fig.06. Armazenamento da ayahuasca em potes de vidro na UDV, no Núcleo São Cosmo e São Damião.
20
Tanto os estados ordinários como os não ordinários de consciência têm seus prós
e contras. A consciência ordinária é pródiga em grandiosas realizações em todas as áreas
técnicas, filosóficas, científicas e artísticas, porém, nem por isso livre de erros ou de mau uso.
A consciência não ordinária, por sua vez, pode trazer clareza e discernimento, aumento da
criatividade ou apenas ilusões e enganos. Ela pode inspirar cientistas e artistas, ou criar
situações em que “[…] ASC22 revelations have led people to begin holy wars and kill those
who disagreed with their vision” (TART, 1999).
Para evitar a associação que ainda pode ocorrer entre os “estados alterados de
consciência” como algo apenas alucinatório ou pervertido, optou-se usar na tese a expressão
estados não ordinários de consciência ou, simplesmente, ENOC.
22
Altered States of Consciousness, termo criado por Tart.
21
ordinários de consciência e são bastante antigas e similares por todo o planeta, o que levou
Harner a criar o termo Estado Xamânico de Consciência (HARNER 1982, 59). Os estudos
antropológicos sobre xamanismo, de maneira geral, consideravam os xamãs apenas como
neuróticos, epiléticos, psicóticos, histéricos ou esquizofrênicos (NARBY 1998, 15). Porém, as
pesquisas levantadas por Eliade, sobre o xamanismo arcaico, levaram a crer que muitas das
associações feitas pelos primeiros etnólogos resultaram de observações imperfeitas, onde um
indivíduo “possuído por espíritos” pode ser confundido como um caso patológico (ELIADE
2002, 41). Uma das diferenças entre um indivíduo com alguma psicopatia e um xamã, está no
fato da “capacidade deste último de provocar por vontade própria seu ‘transe epileptóide’”
(ibid, 43), ele pode entrar em um estado de “loucura controlada”, capacidade essa que um
doente mental não possui:
O xamã é uma pessoa, homem ou mulher, que, no final da infância ou no início da
juventude, passa por uma experiência psicológica transfiguradora, que a leva a se
voltar inteiramente para dentro de si mesma. É uma espécie de ruptura
esquizofrênica. O inconsciente inteiro se abre, e o xamã mergulha nele. Encontram-
se descrições dessa experiência xamânica ao longo de todo o caminho que vai da
Sibéria às Américas, até a Terra do Fogo (CAMPBELL 1991, 99).
23
Tradução livre da língua espanhola.
22
24
Há muito tempo os xamãs acreditam que seus poderes provêm dos poderes dos animais, das plantas, do sol e
das energias básicas do universo (HARNER 1982, 73).
25
Shanon, psicólogo cognitivo, é autor do livro The Antipodes of the Mind – Charting the Phenomenology of the
Ayahuasca Experience e profundo conhecedor das experiências com ayahuasca.
23
objeto e refletir sobre ele, ou seja, estar ciente de sua individualidade e ser capaz de refletir
sobre isso. Não há fronteiras definidas entre os tipos descritos, funcionam como um sistema
coerente e unificado. Nos estados não ordinários de consciência, pode aparecer uma
consciência de [4] quarto tipo, onde as experiências do indivíduo não são sentidas como suas,
parecendo possuir independência e existência externa, similar ao que acontece às vezes com
as experimentadas com a ayahuasca. Shanon fala ainda de um [5] quinto tipo de consciência,
onde o indivíduo experimenta não possuir mais um eu individual. Esse estado está associado a
uma superconsciência, que também pode ocorrer nas experiências com a ayahuasca. Shanon
(ibid, 270) encontra similaridade entre o quinto tipo de consciência descrito por ele e a
conceituação de consciência cósmica de Richard Maurice Bucke.
Bucke divide a consciência em três graus: [1] consciência simples, similar ao
primeiro tipo descrito por SHANON, onde “um cão ou um cavalo é tão consciente das coisas
ao seu redor quanto um ser humano” (BUCKE 1996, 36); [2] a autoconsciência, que engloba o
segundo e terceiro tipo descritos por Shanon, o ser humano “torna-se consciente dele próprio
como entidade distinta, separada do resto do universo” (id). A autoconsciência está ligada à
linguagem “[...] são duas metades da mesma coisa – são o sine qua non da vida social
humana”26 (ibid, 36) e, por último [3], a consciência cósmica, que Bucke basicamente
descreve como:
[...] uma consciência do Cosmo, isto é, da vida e da ordem do universo [...] ocorre
uma aclaração ou iluminação intelectual [...] estado de exaltação moral, um
indescritível sentimento de elevação, elação e júbilo, um despertar do senso moral,
que é plenamente tão maravilhoso e mais importante, tanto para a pessoa como para
a espécie, do que o intensificado poder intelectual. Com isto vem o que pode ser
chamado de senso de imortalidade (id).
26
Dizer que a linguagem está associada à autoconsciência poderia significar que esta pode ser fruto do
hemisfério esquerdo do cérebro apenas. Apesar de que a compreensão sobre mapeamentos cerebrais é
continuamente atualizada e muitas descobertas deverão solucionar melhor a questão, se aceita basicamente que
“logical concepts like time, sequence, speech and language are largely handled by the left side, and creativity,
spatial awareness and pattern recognition by the right” (GYNN & WRIGHT 2008, 3).
24
nota do tradutor). A idéia de árvore, por exemplo, é uma generalização de diversos perceptos
de árvores compostos em um recepto, ou seja, todas as percepções de coisas que tenham
raízes, troncos, galhos e folhas (ou ainda flores, frutos, determinado tamanho, cor, etc.), é um
recepto geral de árvore. Estudos científicos procuram ainda compreender como o cérebro
integra essas informações através do que se conhece como o binding problem das ciências
cognitivas:
O binding problem consiste em saber como o cérebro pode integrar diferentes
modalidades de informação acerca de um objeto de forma a poder percebê-lo de
forma unificada. Por exemplo, posso perceber um cão de diversas maneiras −
diferentes perspectivas visuais. Existem várias raças de cães; uso a palavra “cão”
para referir-me a esses objetos e uso também a palavra escrita “cão”. Contudo, meu
cérebro é capaz de integrar todas estas modalidades de informação de maneira que
invoco um único objeto quando ouço a palavra “cão”. Esta unificação operada pelo
meu cérebro é particularmente importante na medida em que a partir dela componho
objetos fora de mim, o que é um primeiro passo para definir-me como um ser
consciente (TEIXEIRA 1998, 150).
27
“is just a silly illusion”, afirmação de David Lewis Williams em conversa com Graham Hancock (2007, 38).
26
com absoluta precisão o que é “real” ou “ilusão”, são válidas para o indivíduo ou grupo que
delas participa, orquestrando condutas, transformações na vida pessoal, estabelecendo crenças
e mitos.
Huxley, em As Portas da Percepção, de 1957, comenta que o cérebro parece ter
uma função de válvula redutora da percepção, funcionando como um filtro para a realidade,
“para tornar possível a sobrevivência biológica” (HUXLEY 2004, 32). A torrente de
impressões que nos chegam tem que ser filtrada. De fato, não estamos conscientes ao mesmo
tempo de todos os estímulos sofridos pelo tato, olfato, audição, visão, etc. O que nos chega à
consciência segue uma hierarquia de prioridades. Da mesma maneira que as impressões do
mundo exterior são filtradas, as internas, as memórias e conteúdos inconscientes devem
passar por alguma forma de seleção. Salvo em condições especiais, as pessoas se relacionam
com o mundo através das filtragens que o cérebro faz. Entretanto, alguns desvios podem
ocorrer e driblar essas filtragens redutoras, como no uso de psicoativos específicos. Alguns
tipos de substâncias psicoativas podem diminuir o poder dessa “válvula redutora” e, em
alguns casos, até intensificar a recepção do cérebro de certas impressões vindas do mundo
exterior ou do interior. Hancock, em relação a algumas prováveis características do cérebro,
comenta:
Theoretically the brain could be as much a receiver as a generator of consciousness,
and thus might be fine-tuned in altered states to pick up wavelengths that are not
accessible to us (HANCOCK 2007, 39).
Contudo, o cérebro sempre tentará ocupar sua função redutora normal, como é
possível verificar, no caso da ayahuasca, pela diminuição das mirações nos indivíduos que a
bebem por muito tempo: “Ayahuasca users say that after about two years of regular exposure
to the brew, they see fewer and fewer visions” (SHANON 2002, 137). Correspondendo a muitos
depoimentos ouvidos e a experiência pessoal do autor da tese.
Os chamados estados não ordinários de consciência não dependem única e
exclusivamente do uso de psicoativos para se manifestarem, eles podem aparecer em várias
situações distintas (ver adiante seção 2.4) e com intensidades diferentes. As pinturas nas
cavernas, por exemplo, eram realizadas em situações pouco comuns. Lewis-Williams
descreve:
Anyone who has crouched and crawled underground along a narrow, absolutely
dark passage for more than a kilometer, slid along mud banks and waded through
dark lakes and hidden rivers to be confronted, at the end of such a hazardous
journey, by a painting of an extinct woolly mammoth or a powerfull, hunched bison
will never be quite the same again (LEWIS-WILLIAMS 2004, 11).
27
Do que se pode inferir que, talvez, essa jornada, nessas condições especiais, fosse
intencionalmente buscada, já no período pré-histórico, como meio de gerar um ambiente
favorável para uma quebra na consciência usual. Esse sentimento é compartilhado por
Campbell (1991, 82): “Qualquer que tenha sido a escuridão interior em que os xamãs
daquelas cavernas mergulharam, em seus transes, algo semelhante deve estar adormecido em
nós, e nos visita à noite, no sono”. Campbell relata sua experiência na primeira vez que viu
essas pinturas nas cavernas:
Não queria ir embora. Você chega a uma câmara gigantesca, como uma imensa
catedral, com todos esses animais pintados. [...] Estamos ali com luz elétrica, mas
logo em seguida o homem que nos guiava apaga as luzes e você se dá conta de que
nunca tinha estado em escuridão maior, em toda a sua vida. [...] Toda orientação se
perde, e você está em meio a uma escuridão que nunca viu o sol. Então eles voltam a
acender as luzes e você vê aquelas gloriosas pinturas de animais. E eles estão
pintados com a vitalidade da tinta sobre seda, na pintura japonesa, sabe, qualquer
coisa assim (ibid, 94).
2.4.1. Enfermidades
1. Doenças como, por exemplo, os delírios provocados por uma febre alta.
2. Auras de enxaquecas, como nas que aparecem “escotomas cintilantes”.
3. Pessoas que possuem estados particulares mentais adquiridos ou herdados como
psicoses e esquizofrenias.
28
Várias fontes sobre o tema foram consultadas: Harner (1973), Narby (1998), Breslof et al. (2001), Sacks
(2001), Metzner (2002), Shanon (2002), Lewis-Williams & Pearce (2005), etc.
29
6. Jejum.
7. Abstinência sexual.
29
Habitantes da África meridional.
30
30
Existem estudos sobre Sonhos Lúcidos, ou seja, onde o indivíduo está consciente durante o sonho, que
apontam em uma direção bastante similar aos ENOC. Pesquisa sobre o tema pode ser encontrada no livro
Exploring the World of Lucid Dreaming, de Stephen LaBerge.
31
31
Em seu livro LSD Psychotherapy, Grof descreve seu trabalho nessa direção.
32
Significa fenômenos visuais que ocorrem entre o olho e o córtex, independentemente do mundo exterior,
porém passíveis de projeção nele (maiores informações em LEWIS-WILLIAMS 2004 e RUDGLEY 1993). Já os
fenômenos entoftálmicos se referem ao que ocorre dentro do olho.
33
Podemos entender construal como uma forma de processo de construção interpretativa do significado de algo.
Ver em dois pontos e uma linha curva a imagem de um rosto pode ser entendido como esse processo de
construção. Por exemplo, os emoticons usados na comunicação pela internet só são possíveis graças a essa
característica da psique. :-)
32
estágio. Se, por exemplo, uma cultura coloca muito valor nas visões do Estágio-3 (que pode
incluir seres mitológicos, por exemplo), as pessoas que procuram essas visões podem passar
pelo Estágio-1 sem dar maior importância (LEWIS-WILLIAMS & PEARCE 2005, 47). De fato,
muitas pessoas descrevem visões mais “cenográficas” e não costumam se referir às formas
geométricas como as que serão descritas. Porém, estudos neurológicos encontram explicações
para essas formas geométricas nas estruturas do sistema nervoso, como será mostrado adiante.
Muitos desenhos e pinturas feitas por povos primitivos e artistas contemporâneos apresentam
semelhanças a essas formas geométricas dos ENOC, levando a acreditar que estejam
intimamente relacionados.
A trajetória “normal” passa por cinco partes principais, vai do estado de vigília
ao inconsciente (sono profundo), passando antes pelo estado de devaneio (“sonhar
acordado”), de semiconsciência (hipnagógico) e dos sonhos propriamente ditos. No estado de
vigília, o indivíduo responde facilmente aos estímulos do meio ambiente e pode realizar
33
tarefas diversas, andar, conversar, criar estratégias e também fazer planos que envolvam
eventos do dia-a-dia, isto é, a imaginação sobre assuntos do cotidiano, chamada de “fantasia
realística”.34 À medida que essa ligação diminui, as “fantasias realísticas” podem perder o
grau de relação com a realidade e entrar mais no reino da imaginação, tornando-se “fantasias
autísticas”.35 Perdendo ainda um pouco mais o contato com a realidade, o indivíduo pode
imergir em devaneios. O estado de devaneio precede o hipnagógico, onde os estímulos do
ambiente quase não são percebidos ou podem acabar se mesclando com os internos. No
estado hipnagógico, algumas sensações podem ocorrer, como pressão no peito, dificuldade de
respirar, impressões auditivas como vozes ou campainhas, medo, sensações visuais vívidas de
luzes e de pessoas ou sombras caminhando pelo ambiente, razão pela qual esse estado
também é conhecido como “alucinação hipnagógica”.36 Seguem-se, então, os sonhos durante
o REM (Rapid Eye Movement – Movimento Rápido dos Olhos). Nesse momento, a atividade
neural randômica produz imagens mentais, os sonhos, algumas vezes bizarras: “images
transmute into different ones, and we experience sensations of flying, fleeing, an falling,
together with attendant emotions” (LEWIS-WILLIAMS 2004, 123). Finalmente, o sono mais
profundo e inconsciente.
34
- realistic fantasy (LEWIS-WILLIAMS 2004, 123).
35
- autistic fantasy (id).
36
- hypnagogic Hallucinations (id).
37
“form constants” no original.
38
Sensação luminosa provocada por um estímulo nas células da retina ou do próprio córtex occipital como, por
exemplo, esfregar os olhos fechados, bater a cabeça, quedas da pressão arterial, uso de psicoativos específicos,
etc.
34
estarem mais associadas à constituição do sistema nervoso humano do que à cultura, sendo
essa sempre um apoio, nunca a experiência em si. Baseando-se nas constantes de Klüver,
Lewis-Williams & Pearce (2005, 48) descrevem sete tipos de formas mais recorrentes:
1. As grades e seu desenvolvimento em treliças ou se expandindo em padrões
hexagonais;
2. Conjuntos de linhas paralelas;
3. Pontos brilhantes ou pequenas manchas;
4. Ziguezagues descritos por alguns indivíduos como angulosos, por outros como
ondulações;
5. Jogo de curvas catenárias geralmente com ziguezagues luminosos intermitentes,
similares aos que ocorrem na aura de enxaqueca;
6. Filigranas ou finas linhas sinuosas;
7. Espirais, também relacionadas aos vórtices.
Essas formas pulsam com luz brilhante, diferentes dos objetos do ambiente. Essas
categorias não são rígidas; podem aparecer combinadas, girar, se contrair e se transformar
umas nas outras ─ uma espiral, por exemplo, pode ser vista e adquirir profundidade como um
vórtice ou um túnel, além de se multiplicar (poliopsia) e/ou se integrar em outros objetos na
cena, como nos desenhos geométricos Tukano feitos sobre canoas, animais e pessoas (ibid,
275).
35
Fig. 08. Equivalências das imagens em testes de laboratório e das encontradas no período neolítico.
não apenas as visuais, estão presentes em ENOC. Por exemplo, uma dificuldade em respirar,
somada a visões distorcidas, sensação de flutuar, sons, pode parecer para o indivíduo uma
experiência de submersão na água (LEWIS-WILLIAMS 2004, 145), e nem sempre serão
representadas em desenhos e pinturas essas vivências. Portanto, diversas descrições de
experiências vão além do aspecto visual apenas, podem se somar a ele e muitas vezes
influenciá-lo.
Os índios Tukano, povo que usa a ayahuasca, se referem à imagem de linhas
paralelas onduladas verticais (a 17ª figura do quadro adiante e que fazem parte do tipo 4
supracitado) ─ ziguezagues ondulosos ─, como simbolizando “[...] o pensamento criativo e,
às vezes, a energia do próprio criador solar” (REICHEL-DOLMATOFF 1976, 86 apud VIDAL
2007, 47). Um arco (14ª figura) com diversas linhas coloridas paralelas do tipo 5 pode
simbolizar o Arco-Íris e, em uma das interpretações dadas, o Pênis do Pai-Sol (id; LEWIS-
WILLIAMS & PEARCE 2005, 49). Os índios San da África do Sul entram em transe através de
danças. Esses índios se concentram nas linhas brilhantes do tipo 2 e 6, que acreditam ser
“filamentos de luz” que os curandeiros sobem, ou ao longo dos quais eles flutuam, em direção
ao Grande Deus no céu (LEWIS-WILLIAMS & PEARCE 2005, 49). Já a 10ª imagem, a espiral do
tipo 7, representa o incesto e as mulheres proibidas. Reichel-Dolmatoff (1968, 20) comenta
que, entre os Desana, há um mito onde a filha do sol nem havia entrado na puberdade, quando
ele se apaixonou por ela, cometendo incesto. O sangue derramado nesse ato é o motivo de as
mulheres menstruarem até hoje, para que não se esqueçam dessa maldade. O mito diz que a
filha do sol gostava dessa situação e vivia como se fosse a mulher dele, mas, de tanto pensar
nisso, se tornou feia, fraca e sem vida. Quando ela teve a segunda menstruação, já não quis
mais comer, deitou-se em uma pedra, morrendo. Ainda se vêem os sinais em uma grande
pedra em Wainabi. Quando o Sol viu isso, fumou tabaco e a ressuscitou em um ritual
conhecido como gamu bayári, estabelecendo o costume e invocação que se faz agora quando
as jovens passam pela primeira menstruação.
Fig. 09. Desenhos codificados dos índios Barasâna no Brasil (REICHEL-DOLMATOFF apud VIDAL 2007, 47).
VIDAL comparou as versões dadas por Reichel-Dolmatoff em 1976 e em 1978 encontrando algumas variações
nas descrições do autor.
37
Fig. 10. Levantamento de desenhos rupestres encontrados no litoral de Santa Catarina por Cormelato (2005),
onde é possível encontrar semelhanças nos padrões de imagens com os dos índios amazônicos e desenhos pré-
históricos.
Naturalmente, apesar de não ser possível traçar fronteiras claras quanto a isso,
deve haver um limite quanto ao que pode ser construído sobre uma imagem inicial. Uma
espiral pode ser parecida com um túnel em perspectiva, como uma serpente enrolada, mas
dentro de uma configuração visual que permita esse tipo de associação por similaridade.
Arnheim (1980, 42) mostra, em um experimento, “que a percepção e reprodução de formas
ambíguas estão sujeitas à influência da instrução verbal”. Uma série de figuras simples era
projetada. Quando disseram para a pessoa que um relógio de areia apareceria, a figura [a] foi
reproduzida como a figura [b], enquanto [c] resultou quando ela aguardava uma mesa:
nenhuma força do passado far-nos-á ver uma girafa na figura [a]” (id). Soma-se a isso o fato
de que nossa mente sempre tentará ver algo já conhecido em uma imagem ambígua, isto é,
contrapor a informação visual nova e desconhecida sob o repertório da memória.
2.6. OS MITOS
É provável que alguns mitos tenham surgido de visões nos ENOC, como no caso
de algumas lendas indígenas relatadas adiante. Porém, com o tempo, elas podem sofrer
alterações e novas adaptações de acordo com transformações da época, afastando-se,
aparentemente, das associações iniciais, ou buscar outros tipos de sinônimos simbólicos, ou
seja, imagens diferentes com o mesmo sentido:
Bem, os automóveis adentraram a mitologia. Adentraram os sonhos. E as aeronaves
estão muito a serviço da imaginação. O vôo da aeronave, por exemplo, atua na
imaginação como libertação da terra. É a mesma coisa que os pássaros simbolizam,
de certo modo. O pássaro é um símbolo da libertação do espírito em relação a seu
aprisionamento à terra, assim como a serpente simboliza o aprisionamento à terra. A
aeronave desempenha esse papel, hoje (CAMPBELL 1991, 32).
Um mito, como o relato sagrado sobre a criação contado por um povo, pode
parecer engraçado a outro, o que para um é sagrado, para o outro é superstição, mas isso não
reduz o poder e a eficiência desse mito no seu lugar de origem (LEWIS-WILLIAMS & PEARCE
2005, 150). Mitos estão inseridos na sociedade, as pessoas nascem e os assimilam da cultura
do local. Mitos são como “contratos” compartilhados socialmente. As pessoas sentir-se-iam
mal e ridículas se fossem obrigadas a se vestir, ou se despir, em outras culturas que
possuíssem práticas e hábitos diferentes das suas. As pessoas absorvem as religiões
disponíveis à sua volta, se tornando cristãs, judias, islâmicas, hinduístas, navajo ou houchoi.
Mesmo que procurem negar as influências da religião, muitas vezes acabam aceitando seus
rituais mais básicos como, por exemplo, o modelo do casamento.
Mas como é que um símbolo se torna de valor comum para um grupo de pessoas,
para um povo? Podemos citar aqui o exemplo da experiência religiosa que, enfim, está muito
presente nesta pesquisa. Lewis-Williams & Pearce (2005, 25) notam que diversas definições
de religião, na verdade, não dão conta de explicar por que as pessoas, em todos os lugares,
acreditam em deuses, espíritos, em outros reinos de existência diferentes do da vida diária,
mas que interagem com ele. Por exemplo, para Geertz (1989, 67), religião é:
(1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e
duradouras motivações nos homens através da (3) formulação de conceitos de uma
41
ordem de existência geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de
fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas.
Lewis-Williams & Pearce, entretanto, nota que essa definição omite um elemento
crucial: Geertz não explica como esse “sistema de símbolos” e o que ele chama de “conceitos
de uma ordem de existência geral” pode conseguir “aura de fatualidade”. O ponto omitido é o
primeiro de três dimensões interconectadas da religião: experiência, crença e prática, pois,
“Euphoric and transcendent religious experience derives from the human nervous system”
(LEWIS-WILLIAMS & PEARCE 2005, 25).
As técnicas para provocar ENOC descritas anteriormente como as meditações,
práticas religiosas diversas, uso de psicoativos, etc., podem conduzir às experiências
religiosas. Segundo LEWIS-WILLIAMS & PEARCE (2005, 26), nesses estados mentais, a pessoa
pode, por exemplo, interpretar essas experiências como prova da existência sobrenatural de
um reino cosmológico, justificando os “conceitos de uma ordem de existência geral” descrito
por Geertz. Todas as religiões, para serem religião, devem acreditar ou, melhor ainda, ter
experiências religiosas com entidades sobrenaturais, deuses, espíritos, entre outros. As
crenças religiosas derivam da tentativa de sistematizar as experiências religiosas dentro das
circunstâncias sociais dadas. O ambiente cultural provê uma base comum de experiências para
todas as pessoas, elas podem compreender do que se está falando como uma rede de
construção e compartilhamento de significados. Mesmo assim, ocorrem rupturas e divisões de
tempos em tempos.
Tanto Freud quanto Jung perceberam que o mito se enraíza no inconsciente
(CAMPBELL 1991, 70).
Qualquer um que se entregue a um trabalho de criação literária sabe que a gente se
abre, se entrega, e o livro nos fala e se constrói a si mesmo. Até certo ponto, você se
torna o portador de algo que lhe foi transmitido por aquilo que se chama as Musas,
ou, em linguagem bíblica, “Deus”. Isso não é força de expressão, isso é um fato.
Uma vez que a inspiração provém do inconsciente, e uma vez que a mente das
pessoas de qualquer pequena sociedade tem muito em comum, no que diz respeito
ao inconsciente, aquilo que o xamã ou o vidente traz à tona é algo que existe latente
em qualquer um, aguardando ser trazido à tona. [...] O vidente que diz coisas que os
membros da comunidade não querem ouvir é simplesmente ineficiente. Certamente
será marginalizado (ibid, 71).
2.7. A RELIGIÃO
As práticas religiosas incluem rituais que têm por função levar o praticante a ter
as experiências que o levarão a manifestar suas crenças religiosas. Essas práticas podem
consistir em rituais, desde ascender uma vela, participar de complexas iniciações, seguir
procissões ou outros tipos de peregrinação, pagar o dízimo, construir templos e catedrais, até a
42
Fig. 13. As três dimensões interconectadas da religião, o contrato social e o contrato de consciência. Essas
relações não são fixas, elas podem variar de intensidade entre o racional (contrato social) e o religioso
(contrato de consciência) dependendo do indivíduo, da cultura e outras circunstâncias, mas se mantêm sempre
presentes.
Uma das técnicas que auxiliam os xamãs a transitar entre as regiões cósmicas em
seus transes, está no uso de psicoativos como a ayahuasca. Portanto, será visto nessa seção os
efeitos mais comuns que essa bebida exerce sobre os indivíduos.
Os efeitos da ayahuasca começam a aparecer entre vinte minutos e uma hora após
sua ingestão. Geralmente, a primeira coisa que se observa é uma alteração na maneira de se
perceber as luzes e objetos no ambiente. Quando o efeito se torna mais forte, é comum
aparecerem alguns sintomas físicos, o corpo pode sentir algumas mudanças como pressões,
pulsações que vem e vão, zumbidos, amortecimento, algumas vezes enjôo, calor e/ou frio
repentino. Essas sensações estão associadas à “chegada da Força”, expressão comumente
usada em religiões ayahuasqueiras como no Santo Daime e na UDV. Nesse ponto, podem
surgir visões de luzes, padrões coloridos diversos, treliças, ziguezagues, espirais e vórtices,
que aos poucos podem dar lugar a visões de cenas e imagens mais complexas, conforme já
descrito nos três estágios de ENOC. As mirações que são geradas pela ayahuasca, ou
permitidas que por ela sejam percebidas,39 são de modo geral consideradas reais pela pessoa
que as observa, às vezes até mais reais que as “reais”, consistindo isso em parte da eficiência
nos casos de mudanças de crenças e hábitos do indivíduo, reflexões pessoais e de cura.
Devido à capacidade de gerar mirações, os seringueiros amazonenses chamam, jocosamente,
o chá de cinema de índio na época da extração da borracha. Sob o efeito da bebida, a pessoa
pode ficar como se estivesse ao mesmo tempo acordada e em um estado parecido ao do
sonho, onde diversos conteúdos pessoais, estados emocionais, preocupações, desejos,
questões, buscas espirituais, o contexto do meio, orientação externa (hinos, histórias,
doutrinas, músicas, icaros40), crenças, medos e expectativas pessoais, podem influenciar na
experiência do indivíduo. É comum aparecerem situações do dia-a-dia como assuntos
familiares, relacionamentos ou de trabalho, com algum componente de reflexão sobre esses
temas, às vezes até com importantes insights sobre essas questões, sejam elas atuais ou
antigas.
Algumas características mais comuns dos ENOC encontrados na ayahuasca e
também em outros psicoativos similares estão resumidas abaixo. Elas são baseadas nos
estudos sobre a psicologia da ayahuasca de Grob (2002, 228), complementados com citações
39
Ver no final da tese “Especulações para trabalhos futuros”.
40
Cantorias mágicas xamânicas.
44
Ou em Saniga:
One of the most striking and persistent symptoms of the so-called “altered” states of
consciousness are undoubtedly distortions in the perceptions of time and space.
Time is frequently reported as flowing faster or slower, expanded or contracted, and
may even be experienced as being severely discontinuous (“fragmented”). In
extreme cases, it can stop completely or expand unlimitedly. The sense of space is
likewise powerfully affected. Space can appear amplified or compressed, condensed
or rarefied, or even changing its dimensionality; it can, for example, become just
two-dimensional (“flat”), acquire another dimensions, or be reduced to a
dimensionless point in consciousness (SANIGA 1998, 1).
41
Além da visão, o olfato, o tato, o paladar e a audição podem igualmente ser afetados.
42
Estudos sobre sinestesia podem ser encontrados nas pesquisas de V. S. Ramachandran e E. H. Hubbard como
no artigo Psychological Investigations into the Neural Basis of Synaesthesia (The Royal Society nº 268, 979-
983).
46
Como outro exemplo, Shanon cita Alice no País das Maravilhas, de Lewis
Carroll, nas cenas onde Alice crescia ou diminuía anormalmente de tamanho.
Além da relatividade na sensação da passagem do tempo, a ayahuasca pode fazer
o indivíduo vivenciar memórias do passado e realizar planos e especulações referentes ao
futuro: “Ayahuasca may act as a kind of time machine (SHANON 2002, 203).
Em relação à capacidade de identificação com pessoas e objetos, a transformação
em animais, a sensação de perder a identidade, as experiências de dissociação, de divisão do
self, não significa, por paradoxal que isso pareça, algum tipo de perda da autoconsciência:
I have learned with Ayahuasca (some will say, from Ayahuasca) is that radical as
the effects of the brew are, I can always maintain a residue that is my own, normal
self (id).
Sons diversos podem sofrer algumas distorções, parecer roncos, por exemplo. A
percepção musical pode sofrer alterações, certas qualidades sonoras chamar mais a atenção,
além de que podem influenciar nas visões: “No ambiente estavam tocando algumas músicas,
dentro de minha cabeça se formavam verdadeiros movieclips delas” (ibid, 15-Ago-2003 – 1ª
sessão); “As músicas ficaram lindíssimas, ouvi detalhes que o cérebro normalmente corta.
Cheguei a ouvi a flauta de uma das músicas numa dimensão enorme, percebi até a respiração
do flautista” (ibid, 11-Jul-2005 – 59ª Sessão); “[...] D. P. deu vários gritos fortes, parecia
imitando um jaguar, sendo que o primeiro me pegou de surpresa e literalmente vi o grito dele
num splash de cor branca que formava círculos em volta” (ibid, 14-Jul-2008 – 121ª sessão).
Os efeitos descritos nessa sessão não esgotam o assunto. É comum as pessoas que
possuem vasta vivência com a ayahuasca descreverem que cada experiência tem sua própria
dinâmica, portanto as possibilidades são infinitas. Os tópicos apresentados se referem às
experiências mais comumente vividas pelos indivíduos e que despertam o interesse de vários
ramos da ciência atual voltados ao estudo da consciência humana.
A questão que pode ser colocada aqui é se um psicoativo pode tornar alguém mais
criativo ou se pessoas criativas podem tirar partido de suas experiências com ENOC, do
mesmo modo que fariam com qualquer elemento inspirador na vida cotidiana.
Os efeitos da ayahuasca não são apenas visuais ou dos sentidos, eles podem trazer
“conversas internas”, reflexões, descobertas, insights, fazendo jus ao fato de que certas
plantas psicoativas, como foi visto, são conhecidas como plantas professoras. Luna (1983)
relata que xamãs atribuem a origem de seus conhecimentos sobre medicina, ajuda espiritual,
cantos mágicos, entre outros, aos ensinamentos recebidos dessas plantas professoras (ver
também SHANON 2000, NARBY 1998, METZNER 2002). Considerando, então, todas essas
49
possibilidades, Shanon comenta que, “apparently, ayahuasca can push the human mind to
heights of creativity that by far exceed those encountered ordinarily” (SHANON 2000, 18),
portanto, é natural que se pense em aumento da criatividade.
Considerando que as visualizações muitas vezes contêm elementos inéditos para o
indivíduo, o produto artístico dessas observações pode resultar em material de grande
originalidade e criatividade. Não só em artes visuais, mas se estendendo às outras formas
artísticas como a música ou mesmo a reflexões filosóficas, como aponta Shanon: “Especially
let me mention philosophical insights attained by drinkers without prior formal education.
Some of these resemble ideas encountered in classical works as those of Plato, Plotinus,
Spinoza and Hegel” (id). Shanon ainda relata sua própria experiência, de ser capaz de
improvisar ao piano por mais de uma hora, algo que ele jamais havia conseguido
anteriormente, e comenta: “[...] it occurred to me that I had had the most wonderful piano
lesson of my life. Since then I have been free-playing without ayahuasca” (id). Labate cita: “a
utilização da ayahuasca para o desenvolvimento dos talentos musicais de cada um” (LABATE
2004, 420) em atividades realizadas pelo músico de pseudônimo Mano, que “promove
workshops musicais em diversos países do mundo” (ibid, 422).
Não é o caso de alguém acreditar que se tornará um artista criativo usando
psicoativos, muitas vezes a produção de um trabalho escrito, musical ou visual, não mostra a
qualidade imaginada pelo autor quando este retorna ao seu estado comum de consciência: “–
ele escrevia como um louco sob o efeito de drogas. Depois que terminava o efeito, via que
boa parte daquilo era lixo” (WOLFE 1993, 57 – se referindo ao escritor Ken Kesey). Porém,
as pessoas que desenvolveram seus talentos nas áreas artísticas podem “materializar” o
conteúdo de suas visões em obras, seja através de pinturas, esculturas, nas diversas artes
visuais ou através da poesia, literatura, da música e do teatro. Labate comenta: “Parece
inevitável que artistas (por exemplo, escritores, músicos e atores) descobrissem a ayahuasca.
Afinal, há muito tempo poetas usam drogas – do haxixe à mescalina, passando por coca e
outras” (2004, 433). Os estudos sobre a possibilidade de essas substâncias psicoativas
aumentarem ou não a criatividade são relativamente antigas. Já em 1897, Arthur Heffter
isolava o componente ativo do peiote, a mescalina. Carneiro nos conta: “Nessa época,
Havelock Ellis empregou mescalina para estudos sobre a criatividade, tendo ministrado essa
droga para poetas como Yeats e para pintores” (CARNEIRO 2005, 65). É importante frisar,
novamente, que nenhum psicoativo tornará alguém um artista criativo e original. Fechamos
aqui com o pensamento de Shanon:
50
Obviously, without the vehicle, the driver would not be able to attain the fast speeds
he/she does; at the same time, in order to drive the car and obtain good
performances from it, one should be an experienced driver (SHANON 2000, 18).
Uma categoria especial se refere aos guias e professores que podem ser vistos
como fadas e anjos ou mesmo como o espírito da planta professora (ver LUNA 1983; 1996).
No contexto do Santo Daime, um exemplo é a Rainha da Floresta, que trouxe as revelações do
Santo Daime ao Mestre Irineu. Na minha própria experiência:
Tive algumas associações curiosas, mas não me lembro de todas. A miração maior
que tive foi uma luz que se estendia desde o chão até o céu numa floresta. Na porção
do céu estava o Mestre Gabriel. Meus pensamentos diziam que o Mestre Gabriel ia
me mostrar qual a ligação da União do Vegetal com a minha família. No mesmo
instante que essas imagens e pensamentos se formavam, meu racional interferiu
achando que isso tudo não fazia sentido, que misturei as coisas que fiz essa semana,
como a genealogia da família, mais as coisas da União por causa da burracheira 43
(anotações pessoais, 30-Out-2004 – 43ª sessão).
43
Termo usado no âmbito da UDV se referindo ao efeito produzido pela ayahuasca. O termo provavelmente
deriva de borracho que em língua espanhola é o mesmo que embriagado em português. Embriagado também é
usado pelos ayahuasqueiros de língua espanhola se referindo ao efeito da ayahuasca.
52
seres celestiais ou semideuses, muitas vezes figuras benevolentes que podem ser identificadas
com a figura de Jesus Cristo ou a Virgem Maria, a Grande Mãe, Buda, divindades egípcias,
hindus ou pré-colombianas, entre outras. Criaturas híbridas, meio homem, meio animal, como
as sereias, por exemplo, ainda demônios, monstros e seres da morte, ou seja, teriomorfismo
que, além de ser uma característica das visões em ENOC, aparecem em diversos mitos e
cultos religiosos desde a antiguidade. Aqui também são comuns os relatos sobre
transfigurações:
Vi torços femininos nus que levitavam, indo e voltando. Onde seriam as mãos, as
pernas e a cabeça, eram tentáculos vestidos com estas malhas de lycra agarradas à
pele. Os tentáculos afinavam, quase como um rabo de cobra, dava a impressão de
algo futurista. Era bem visível o sexo, mas não parecia humano, pareciam estas
modelagens em 3D em softwares gráficos (anotações pessoais, 04-Out-2003 – 6ª
sessão).
Grupos indígenas, como os Tukano, usam figuras geométricas como símbolos diversos
associados com a criação. As visões da ayahuasca estão intimamente relacionadas aos mitos e
à revelação dos mesmos.
O Divino, em oitavo, refere-se a cenas celestiais e divinas, como as descritas na
Bíblia por Ezequiel ou no Apocalipse de São João. Reinos plenos de Luz e Bênçãos são
descritos. SHANON descreve uma de suas próprias visões:
Celestial and heavenly scenes I have witnessed included chariots with magnificent
white horses, a ring of animals around an expanding sky, and an opening of the
heavens which might be called the entrance to the Kingdom of God (SHANON 2002,
130).
Entrada essa que muitos relatam como os buracos ou túneis por onde a
comunicação com os espíritos ocorre. Uma escada que toca os céus, anjos que sobem e
descem por ela, como nas visões da escada de Jacó, é outra forma comum onde essa
comunicação pode ser visualizada. Cenas do paraíso estão presentes, tipicamente descritas
como serenas, de beatitude e reino do supremo Bem. Índios relatam que, sob o efeito da
bebida, podem ver ou estar na presença de Deus.
Finalmente, outras categorias importantes incluem: [a] visões do sol, lua e
estrelas. No Santo Daime, há um hino chamado “Sol, Lua e Estrela”. O hino oficial da UDV
fala em Sol, Lua e Estrela, e é comum seus templos serem decorados com a imagem desses
corpos celestes. Ayahuasqueiros freqüentemente descrevem viagens interplanetárias,
sobrevoarem a Terra ou viajarem mais longe pelo espaço sideral; [b] curandeiros tradicionais
dizem que, sob o efeito da bebida, conseguem visualizar a parte interna dos corpos de seus
pacientes, outros descrevem que puderam penetrar em partes de seus próprios corpos e até
mesmo nas células; [c] o mundo das idéias platônicas, os arquétipos e objetos matemáticos,
muitas vezes são vivenciados e compreendidos sob o efeito da bebida; [d] nascimento e morte
são ambos encontrados na experiência com a ayahuasca.
Na pesquisa de Kensinger (1973, 12), à guisa de exemplo, entre os índios
Caxinauá, a visão de grandes serpentes coloridas e brilhantes aparece em primeiro lugar,
seguida da visão de jaguares e jaguatiricas. Em terceiro, os espíritos, tanto da ayahuasca
como outros. Em quarto, aparecem árvores, muitas vezes árvores caídas. Em quinto, lagos,
geralmente cheios de serpentes e jacarés. Em sexto, a visão do povoado Caxinauá e de outras
tribos. Em sétimo, produtos e mercadorias. Finalmente, em oitavo, a visão de jardins. Os
depoimentos falam em mudanças e transformações. É comum a sensação de escuridão, que é
interrompida por flashes de luzes brilhantes e coloridas. A noção de tempo e espaço é
distorcida. As visões geralmente envolvem cenas do dia-a-dia dos Caxinauá. Entretanto,
54
alguns depoimentos conseguidos por Kensinger descrevem, com precisão, lugares distantes
geograficamente, onde o informante jamais esteve, nem viu fotos, como por exemplo, a
cidade de Pucallpa. Kensinger relata que as descrições feitas pelos índios eram suficientes
para reconhecer certas lojas e sinais existentes na cidade (id).
que podem estar numa esfera celeste ou, então, debaixo da terra ou mesmo submersos. Alguns
grupos indígenas acreditam que esses outros mundos podem ser percebidos apenas em
condições especiais de consciência, como os facilitados pelo uso da ayahuasca. Os povos
indígenas descritos aqui consideram esse mundo visionário tão real quanto o mundo material.
Em relação à arte desses povos, nos desenhos e pinturas há um misto de
inspiração nas mirações, mas também uma estereotipia própria do patrimônio cultural de cada
um. De modo geral, os motivos são padrões geométricos, ziguezagues, pontilhados, círculos
isolados ou concêntricos, meia-voltas, espirais, quadriculados, sintetizações de figuras de
animais, bastante similares aos motivos encontrados nas pinturas pré-históricas. Alguns
exemplos da arte desses povos, principalmente dos índios Shipibo e Tukano, estão presentes
neste trabalho.
Para os Airo-pai, o mundo das atividades cotidianas, as coisas que são vistas de
olhos abertos no mundo objetivo, são apenas uma face da realidade chamada iyetente. Porém
há o mundo dos espíritos e monstros invisível aos olhos, mas sempre presente e que é possível
ver com “[...] um tipo de visão especializada – toyá, que se adquire através do yajé45” (LUZ
2004, 50).
A famosa cerimônia yurupari dos Tukano, um ritual de comunicação com os
antepassados, constitui a base da vida social e serve de rito de iniciação para os homens
adolescentes. A sagrada trombeta de cortiça que invoca o espírito yurupari é um tabu para as
mulheres, influi favoravelmente sobre os espíritos da fertilidade, efetua curas e fortalece o
poder e o prestígio do homem sobre a mulher. Os Tukano acreditam que, quando os primeiros
homens chegaram para povoar o Vaupés, “depois de o Sol macho ter fertilizado a Terra fêmea
com seu raio fálico e as primeiras gotas de sêmen se terem tornado as primeiras pessoas”
(FURST 1976, 79), tiveram lugar muitos acontecimentos extraordinários: nos rios, viviam
serpentes escondidas, peixes perigosos, e o ar era povoado por espíritos canibais. Um mito
44
Os grupos Tukano compreendem vários povos como os Desaná, Tukano, Pira-Tapuya, Uanano, Karapana,
Tuyúka, Mirití-Tapuya, Yurití-Tapuya, Cubeo, Barasana entre outros (REICHEL-DOLMATOFF 1968, 4). De outra
fonte ainda: Arapaço, Bará, Makuná, Siriáno e Siona. Maiores informações:
http://socioambiental.org/pib/portugues/linguas/outrfam.shtm (acessado em 28 de julho de 2008).
45
Nome Tukano para a ayahuasca.
56
relata que, entre os primeiros Tukano, vivia uma mulher, a primeira mulher da criação que
“afogou” os homens em visões. Os Tukano dizem que, durante o sexo, o homem se “afoga”, o
que equivale em sua língua a ter visões (SHULTES; HOFMANN 2000, 131). A primeira mulher
engravidou do Sol-pai através do olho, mais tarde dando à luz um filho que foi o caapi, a
criança yajé, o cipó psicoativo. A mulher Yajé cortou o cordão umbilical e esfregou a criança
com plantas mágicas, a fim de dar a ela forma humana. A criança cuidou zelosamente de seus
poderes alucinógenos até a velhice (id). Foi dele que os Tukano receberam o sêmen:
Gerardo Reichel-Dolmatoff escreveu que para o índio “a experiência alucinógena é
essencialmente sexual [...] ao sublimá-la, ao passar do erótico, do sensual, a união
mística com a era mitológica; o estado intra-uterino é a última meta que só alcançam
alguns poucos, mas que todos desejam (id).
46
As referências bibliográficas trazem vários livros de Reichel-Dolmatoff, mas o texto não especifica de qual se
trata.
47
“Os Siona reconhecem pelo menos doze classes diferentes de yajé” (LANGDON 2004, 71).
57
PEARCE 2005, 271), bastante similares às encontradas em Newgrange, que também possui
espirais diante de uma porta ou entrada (ver adiante).
Fig. 15. O Sol-Pai e a Mãe-Terra. Fig. 16. Monólito Tukano em Uapuí, cachoeira do rio Aiari.
Fig. 17. Desenho Tukano induzido pela Fig. 18. Desenho da visão de um xamã Tukano.
ayahuasca.
3.1.2. Shipibo-Conibo
Fig.19. Arte Shipibo em tapeçarias. Fig. 20. Bumbo com desenho Shipibo.
Fig. 21. Pintura em cerâmica dos índios Shipibo. Fig. 22. Herlinda Augustín “cantando” seus desenhos.
3.1.3. Caxinauá
fundo de um lago, e ele se apaixona por ela. No outro dia, voltando ao lago, Yo Buié tenta
pegar a jovem à força, eles lutam, ela se transforma em cobra, cipó espinhoso, aranha, fogo,
mas ele não a larga. Voltando à forma humana, ela pergunta o que ele quer dela. Ele confessa
que quer que ela seja sua mulher, omitindo, porém, que ele já possuía uma família. A jovem
acaba aceitando se casar com Yo Buié e o leva para sua casa no fundo do lago. Antes, ela
colheu todos os tipos de ervas para fazer um suco e derramou nos olhos, orelhas e em todas as
juntas do corpo de Yo Buié. Assim, ele pôde seguir com ela sob as águas do lago até a casa da
jovem. Os parentes dela eram cobras e serpentes que habitavam o lago. Yo Buié passa então a
viver como marido dessa mulher-cobra. Um dos hábitos da família de cobras e serpentes era
tomar cipó, e Yo Buié perguntou se poderia tomar também. A princípio, seu pedido foi
negado, pois ele teria muito medo, pois pensaria que as cobras e serpentes iriam comê-lo,
mas, com a insistência dele, eles permitiram. Logo nas primeiras visões, Yo Buié grita que as
cobras o querem engolir. Sua mulher, então, se transforma em cobra e, com seu pai e sua mãe,
canta para acalmar Yo Buié.
A vida seguiu feliz, os esposos tiveram quatro filhos, dois meninos e duas
meninas, até que um dia Iskin, um pequeno peixe encouraçado, descobre a verdade sobre a
outra família de Yo Buié e vai atrás dele jogar sua raiva. Yo Buié resolve falar a verdade e
pede ajuda para sair dali. Iskin colheu muitas ervas e jogou o suco nas orelhas, olhos e em
todas as juntas do corpo de Yo Buié, e ele volta para sua aldeia, para o espanto de todos. Yo
Buié ficou escondido por um tempo, e sua família do lago estava triste e com dificuldades.
Certa vez, voltou para a floresta caçar, e uma de suas flechas cai a dois metros da margem do
rio. Ao pôr Yo Buié os pés na água, Yo Buié dá de cara com uma de suas filhas, que reclama
de sua ausência, mas ele não responde o motivo, e ela tenta devorá-lo. Como é pequena e não
consegue, pede ajuda para o resto da família. Quando ele estava sendo devorado dos pés até a
cintura, chegam seus parentes da terra, preocupados com sua demora e livram Yo Buié
esmagando o rabo da cobra que foge ferida. Yo Buié fica paralítico dos ombros para baixo.
Sentindo-se enfraquecido e perto da morte, Yo Buié se lembra da bebida de cipó que aprendeu
a fazer no lago, e pede para seus parentes e amigos que procurem na floresta todos os tipos de
cipó e de folhas de árvores pequenas que encontrarem. Assim, Yo Buié separa as plantas
certas e amassa então os talos do cipó e coloca para ferver numa panela junto com as folhas.
Após o cozimento, a bebida é coada e deixada esfriar. À noite, todos se reuniram, beberam a
bebida e tiveram muitas mirações. Yo Buié teve uma visão que morreria em breve, o que veio
acontecer três dias depois. Foi assim que o mito relata como iniciou o costume dos Caxinauá
de beber ayahuasca, para eles o nixi pae, que significa “sob o efeito do cipó” (KEIFENHEIM
63
2004, 97), para poder ver todas as coisas do presente, do passado e futuro e do além, que não
podem ser vistos com os olhos da carne.48 Usa-se o nixe pae para poder ver os espíritos, os
yuxin, “que habitam plantas e animais e reconhecendo estes como huni kuin, gente nossa”
(LUZ 2004, 38). A bebida também é usada como importante meio de preparação para a morte:
“É através da ingestão do nixe pae que o indivíduo se dá conta da separação que há entre seu
bedu yuxin, o espírito que vê, que tem consciência, e o seu corpo” (id).
No artigo de Kesinger (1973, 9), há outro depoimento Caxinauá de experiência
com o nixi pae, que mostra um quadro geral dos costumes da tribo:
Nós bebemos nixi pae. Antes de começar a cantar, nós conversamos um pouco.
Comecei a sentir a bebida; eu então bebi mais um pouco. Logo iniciei a tremer todo.
A terra tremeu. O vento soprou e as árvores balançaram. […] O povo nixi pae
começou a chegar. Eles tinham arcos e flechas e queriam atirar em mim. Eu fiquei
com medo, mas eles me disseram que suas flechas não me matariam, apenas me
deixariam mais embriagado. [...] Grandes serpentes coloridas e brilhantes rastejavam
pelo chão. Elas começaram a rastejar sobre mim. Uma grande serpente fêmea tentou
me engolir, mas eu estava cantando e ela então não conseguiu. [...] Eu ouvi cornetas
feitas de rabo de tatu e muitas rãs e sapos cantando. O mundo estava transformado.
Tudo começou a brilhar. Eu me movia muito rápido. Não o meu corpo, mas os olhos
do meu espírito. [...] Eu vi muitos jardins cheios de mandioca e plantações. As
choupanas estavam cheias de milho. As prateleiras estavam cheias de amendoim.
[...] Eu desci pela trilha até a vila. Havia muito barulho, era o som das pessoas rindo.
Eles estavam dançando kacha, a dança da fertilidade. Todos estavam rindo. Muitas
mulheres estavam grávidas. Eu estava feliz. Eu sabia que nós ficaríamos bem e
teríamos alimentos com abundância.
O texto a seguir faz parte das histórias e lendas dos índios Huni Kui, “Povo
Escolhido ou Povo Verdadeiro, Genuíno”, termo que os Caxinauá atribuem a si mesmos
(LAMB 1985, 35):
Há muitos anos, no tempo dos nossos ancestrais, quando eles estavam apenas
começando a entender os usos do honi, havia um homem chamado Macari. Ele disse
a seu povo:
— Amigos, vou beber o extrato do cipó honi para ver as almas de nossos ancestrais
mortos. — Assim falou Macari a seu povo.
Esse homem tinha uma mulher; seu nome era Maxina. Macari foi, então, para a
floresta, cortou pedaços do cipó honi e trouxe-os para sua casa. Maxina esmagou os
pedaços de cipó, colocou-os numa grande vasilha com água e levou-a ao fogo.
Deixou ferver e, então, retirou-a do fogo para esfriar. [...] Agora, o efeito da bebida
aparece em Macari e as visões começam. [...] Ele vê a grande jibóia. Um jacaré
monstruoso tenta comê-lo. Depois, muitas e muitas jibóias saem e ele vê todas elas.
Então, vê os espíritos de seus ancestrais. [...] Macari vê um macaco coata gigante
gritando e gritando [...] Então, um grande escorpião aparece e quer comer o coata
[...] Depois, Macari tem visões coloridas. [...] Está pendurado num grande galho em
cima de uma lupuna gigante. Quer descer, mas não consegue; está muito cansado.
[...] O abutre-rei vê esse homem e sente pena dele e diz:
— Homem, eu vou ajudá-lo a descer. Suba nas minhas costas e segure-se.
[...] Abrindo suas asas, o grande pássaro voa para fora dos galhos fantasmas da
lupuna e leva Macari para casa. [...] Seu povo sai e pergunta:
48
Texto completo do mito pode ser encontrado na internet no endereço:
http://raizculturablog.wordpress.com/2008/01/31/ayahuasca-e-sua-ancestralidade/
64
3.1.4. Manchineri
Os vegetalistas mantiveram muito das práticas usuais dos índios, como os cantos
mágicos, icaros, os rituais de cura, dietas,49 contatos com o mundo espiritual, feitiçaria, o
conhecimento sobre as plantas e o aprendizado com elas, entre outros. Xamãs isolados
ajudaram a difundir a ayahuasca, sendo aqui que alguns brasileiros, imigrantes do Nordeste,
durante o período da extração da borracha, acabaram descobrindo esse chá, criando então
algumas religiões brasileiras com populações não indígenas, como o Alto Santo, a Barquinha
e a União do Vegetal e a conseqüente expansão para centros urbanos em todo o Brasil. Luna
comenta que seus informantes parecem fazer parte de uma geração de transição entre os
costumes indígenas e as novas adaptações xamânicas influenciadas pelo esoterismo europeu
(LUNA 1996, 28). De certa maneira, isso se corrobora, quando sabemos que Mestre Irineu e
Mestre Gabriel, fundadores do Alto Santo e da União do Vegetal, respectivamente, além de
ligação anterior com práticas religiosas afro-brasileiras, ambos tinham contato com o Círculo
Esotérico da Comunhão do Pensamento.
Apesar de todas as polêmicas que podem rondar o uso da ayahuasca pelos índios
e vegetalistas, o Governo peruano reconheceu o uso da ayahuasca como Patrimônio Cultural
de seu país. A notícia foi dada em 12 de julho de 2008, pelo diário oficial do país, El
Peruano.50
49
...evitar ingerir sal, açúcar, temperos e gorduras, não deve estar exposta de modo direto ao calor do sol ou ao
fogo, e tem de se manter isolada, guardando suas energias sexuais (LUNA 2004, 186). Esse procedimento é
parecido com os rituais peiote dos índios Huichoi no México (FURST 1976, 81). Parecem ser uma associação de
várias práticas para o mesmo fim como descritas no segundo capítulo.
50
Resolução de número 863 do Instituto Nacional de Cultura (INC), publicada no jornal El Peruano, sábado, dia
12 de julho de 2008.
67
amazônica”. De fato, Raimundo Irineu Serra (fundador do Alto Santo) e Daniel Pereira de
Mattos (fundador da Barquinha) eram naturais do Maranhão e chegaram ao Acre no começo
do século 20 para trabalhar na exploração da borracha. José Gabriel da Costa (fundador da
UDV) era baiano e participou do segundo ciclo da extração nos seringais, se alistando no
“Exército da Borracha”, em 1943. Atualmente, diversas religiões ayahuasqueiras se
formaram no Brasil, muitas das quais dissidentes das primeiras, além de grupos independentes
que usam a ayahuasca como parte do ritual ou para fins terapêuticos e pesquisas.
Mestre Irineu teve contato pela primeira vez com a bebida através dos irmãos André e
Antônio Costa, que conheciam um grupo que bebia o chá na floresta peruana. Antônio Costa
comentou, numa das vezes que beberam o chá, que uma senhora de nome Clara disse que
acompanhava o Mestre Irineu desde sua saída do Maranhão e que, em breve, ela entraria em
contato com ele diretamente. Na sessão seguinte, depois de beber ayahuasca e deitar-se na
rede, Mestre Irineu teve a visão dessa “Senhora” sentada dentro da Lua, a quem ele chamou
de “Deusa Universal”, que mais tarde se tornará identificada como a “Nossa Senhora”, a
“Virgem Maria”, a “Rainha da Floresta”, “Lua Branca” ou a “Virgem da Conceição”
(GOULART 2004; LABATE 2004; COUTO 2004). Mestre Irineu recebe dela instruções para se
51
Centro de Iluminação Cristã Luz Universal.
52
Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, ramo que derivou do Alto Santo.
53
Texto extraído do site do Santo Daime:
http://www.santodaime.org/origens/irineu.htm (acessado em 22 de dezembro de 2007).
68
submeter a uma dieta especial54 para ser capaz de receber o que ela estava preparando para
ele. Quando terminou o período da dieta, ela apareceu, dizendo-lhe que pedisse o que
quisesse. O Mestre pediu para ser o maior curador do mundo e para que ela colocasse no chá
tudo que pudesse curar. É também nesse momento que o Mestre Irineu é instruído a chamar a
bebida de Daime (GOULART 2004, 31-35):
Percebemos que, na ótica do adepto, a mudança de nome do chá e, em última
instância, a criação do culto do Santo Daime, apontam para uma evolução, sendo,
portanto, os antigos usos da bebida entendidos como de um grau ou estágio inferior
(ibid, 33).
3.3.2. Barquinha.
54
“[…] que fizesse um retiro na mata, onde deveria passar oito dias só comendo macaxeira insossa, sem ver
nenhum rabo de saia e bebendo o líquido poderoso” (LABATE 2004, 68).
69
com um livro para ele.55 “Anos depois, recebeu a mesma mensagem ao cair enfermo e ser
tratado pelo conterrâneo Raimundo Irineu Serra” (ARAÚJO 2004, 542). A partir daí segue o
culto do Mestre Irineu e começa a receber salmos que comporão parte do ritual da Barquinha
criada por ele.
O ritual da Barquinha (no caso, do Centro Espírita e Culto de Oração Casa de
Jesus Fonte de Luz)56 consiste, além do uso da ayahuasca, na incorporação de entidades
espirituais próximas do panteão umbandista: “The Pretos-velhos and Pretas-velhas are
spiritual entities that come from the pantheon of Umbanda, an essentially Brazilian religion,
which has possession as one of its main characteristics” (MERCANTE 2006, 191). Das três
principais religiões ayahuasqueiras do Brasil, o ritual da Barquinha é o mais complexo e
muito rico em simbologias.
Além do Centro Espírita Príncipe Espadarte, há ainda outros centros, como o
Centro Espírita Daniel Pereira de Mattos, fundado por Antonio Geraldo, o Centro Espírita
Fé, Luz, Amor e Caridade (Centro de Maria Baiana), do casal Juarez Xavier e Maria Rosa, o
Centro Espírita Inácio de Loyola, de Antônio Inácio da Conceição, e o Centro Espírita Nossa
Senhora Aparecida, do casal Sheila e José do Carmo (ibid, 547).
55
Segundo outro relato, trata-se de um livro azul com a missão do Mestre Daniel, ver LABATE 2004, 77.
56
Da Barquinha original, surgiram outras, e pode haver diferenças nos rituais, nos objetos usados e na
arquitetura de cada uma.
70
Fig. 23. Mestre Gabriel e discípulos. Reportagem da Revista O Cruzeiro de 14 de Julho de 1971.
57
Informações tiradas do site oficial da União do Vegetal:
http://www.udv.org.br/portugues/area_amarela/sol_pagina_interna_3/sol_pagina_a_missao_do_mestre_6.html
71
58
Andrade se referindo ao termo “curioso” comenta: “Durante minha pesquisa e 16 anos de vivência no grupo,
por exemplo, ouvi 11 vezes em sessões de escala [...] que todas as pessoas que estão fora da UDV (inclusive os
mestres fundadores das outras religiões ayahuasqueiras brasileiras) são ‘curiosas’” (ANDRADE 2004, 609). De
certa forma, a postura do Santo Daime foi parecida, quando mudou os antigos usos da bebida, considerados de
grau inferior, e estabeleceu uma nova doutrina para ela.
59
Essas transformações de seres que morrem e se transformam em vegetais são bastante comuns em várias
culturas, como no mito norte-americano sobre a origem do milho e na Polinésia sobre a origem do coco (ver
CAMPBELL 1991, 116-117).
72
Dessa forma, mestre Gabriel explica, miticamente, como tudo começou, sendo ele mesmo a
reencarnação do mestre Iagora.60
A União do Vegetal se espalhou por todo o Brasil e é, atualmente, a maior religião
ayahuasqueira em número de membros do país, estando ainda presente em países da Europa e
nos Estados Unidos.
60
Texto baseado no artigo União do Vegetal – História da Oaska, da revista HUMANUS número 3, ano 2002,
p.229-230.
73
Maria, como é chamada a Cannabis sativa, que já foi usada junto com a ayahuasca no âmbito
do CEFLURIS. Provavelmente o uso da Cannabis foi introduzido por outros buscadores
vindos na década de 1970, ligados ao movimento hippie. Como seu uso é ilegal no Brasil,
naturalmente essa prática foi questionada. Para o Alto Santo, o CEFLURIS é uma dissidência
e não aceita a legitimidade da linha espiritual que segue o Padrinho Sebastião.
A primeira Igreja do CEFLURIS fora da região amazônica foi o Céu do Mar no
Rio de Janeiro, fundada por Paulo Roberto Souza e Silva em 1982. A segunda foi em Mauá,
fundada por Alex Polari.
61
Informações tiradas do blog Alto-das-Estrelas:
http://alto-das-estrelas.blogspot.com/2005/09/hoasca-e-o-auto-conhecimento-uma.html (acessado em 30 de
dezembro de 2007).
62
Informações tiradas do blog Alto-das-Estrelas em entrevista dada em 30 de junho de 2005:
http://alto-das-estrelas.blogspot.com/2005/07/hoasca-na-recuperao-da-dignidade.html (acessado 25 de dezembro
de 2007).
76
63
Informações obtidas no site oficial do Instituto Espiritual Xamânico Céu Nossa Senhora da Conceição:
http://www.ceunossasenhoradaconceicao.com.br (acessado em 16 de janeiro de 2008).
77
64
O Centro de Cultura Cósmica Suprema Luz Paz e Amor foi fundado em 20 de
maio de 1990, pelo Mestre Francisco Souza de Almeida (1944-1999), em Cuiabá (MT) e
transferiu-se, em 1996, para Gama (DF), onde hoje se localiza a Sede Geral. Mestre Francisco
era natural do Acre. Segundo relatos, conviveu cerca de onze anos no ambiente daimista,
tendo bebido o Daime com Mestre Irineu, Padrinho Sebastião e Mestre Antonio Geraldo
(Barquinha). Durante cerca de três anos, foi filiado ao centro do Mestre Augusto Queixada
(outro ex-UDV), sendo Mestre Representante em um grupo em Rio Branco (AC). Sua escola
espiritual é denominada por seus discípulos de “trabalho de unificação”, pois integra partes
ritualísticas do Santo Daime e da UDV. Na primeira parte do ritual, o estilo preponderante é
de inspiração na UDV: chamadas do Mestre Gabriel, algumas do Mestre Queixada, outras do
próprio Mestre Francisco e de alguns discípulos do grupo. São ouvidas músicas, algumas
poucas histórias da UDV e uma série de outros ensinamentos espirituais, alguns em gravações
do Mestre Francisco. Exclui-se a prática, comum na UDV, de perguntas dos discípulos aos
mestres durante a sessão. Esta parte dura cerca de quatro horas e se realiza, então, um
intervalo de uma hora. Na segunda parte, o ritual é de influência daimista, na linha do
CEFLURIS. Esta parte do trabalho dura de acordo com a extensão do hinário, podendo variar
de quatro a oito horas. Além dessas influências, o Centro ainda é aberto aos ensinamentos
como os da Maçonaria, da Rosa Cruz e de outras referências que auxiliem o ser humano em
seu desenvolvimento espiritual. O Centro de Cultura Cósmica possui uma colônia rural no
Acre, onde tem plantado mais de mil pés de Banisteriopsis caapi.
Além de grupos formados com intenção religiosa e orientados ao crescimento
pessoal, a ayahuasca, por suas diversas propriedades e também pelas atribuições curativas,
inspirou o surgimento de centros de pesquisa diversos. Destaca-se, na área de medicina
alternativa, uma clínica peruana de nome Takiwasi,65 um Centro de Reabilitação para
Toxicômanos e de Investigação de Medicinas Tradicionais que funciona desde 1992. Apesar
de não ter derivado de nenhum grupo religioso nem se situar no Brasil, seu enquadramento na
4ª geração do uso da ayahuasca se justifica pela época da fundação e pela natureza dos
trabalhos em si. A clínica foi fundada pelo médico franco-peruano Dr. Jacques Mabit.
Funcionando como uma associação sem fins lucrativos, reconhecida como de utilidade
64
Informações obtidas no site Alto das Estrelas:
http://alto-das-estrelas.blogspot.com/2007/07/o-centro-de-cultura-csmica.html (acessado 28 de dezembro de
2007).
65
Maiores informações no site oficial:
http://www.takiwasi.com (acessado em 14 de janeiro de 2008).
78
Takiwasi significa “a casa que canta” na língua quíchua. Seu método de trabalho
consiste em associar a medicina moderna com o saber empírico dos curandeiros e realizar
investigações interdisciplinares que envolvam práticas terapêuticas, investigações científicas,
ecológicas, culturais e humanas. A utilização de recursos da medicina tradicional, somada aos
conhecimentos atuais e aos estudos modernos da psicologia transpessoal, gestalt-terapia,
psicologia junguiana e psicanálise, dentro de um marco de investigação científica ocidental,
torna o centro um dos pioneiros no mundo nesse tipo de tratamento de dependência de drogas,
buscando validar esta medicina, que é um corpo de conhecimentos vivo, eficaz e plenamente
acatado pela população local. Foi realizado em 2004 um documentário sobre o centro, por
Armand Bernardi, e produzido pela Artline Films, com a participação da France 5,
“L’Ayahuasca Le Serpent et Moi”. Após anos de censura, foi liberado para a televisão
francesa em 2007, o que demonstra ainda a dificuldade de aceitação, por alguns países
dotados de sólido back-ground cultural, de pesquisas sérias e benéficas referentes a
psicoativos.
79
The nature of infinity is this: That everything has its own Vortex, and when once a
traveler thro’ Eternity has pass’d that Vortex, he perceives it roll backward behind
his path, into a globe itself unfolding like a sun, or like a moon, or like a universe of
a starry majesty […] As a eye of man views both the east & west encompassing its
Vortex […] thus is the earth one infinite plane, and not as apparent to the weak
traveler confin’d beneath the moony shade
WILLIAM BLAKE - Milton, 1804.66
Ward faz outras relações em inglês entre spiral e spiritual, mas que são possíveis
também na língua portuguesa: espiráculo é um orifício por onde o ar circula; em sentido
figurado, significa sopro, ânimo, alento. A palavra espiritual, concernente ao espírito, a parte
imaterial do ser, também carrega a palavra espiral: “E-S-P-I-R(itu)A-L” (id).
Matematicamente falando, uma espiral é uma linha curva que se desenrola num plano de
modo regular a partir de um ponto. Porém uma helix, palavra grega para espiral, ou hélice, se
desenrola numa superfície cilíndrica como, por exemplo, a de um parafuso ou a espiral de um
caderno, mais propriamente chamadas figuras helicoidais como em uma molécula de DNA ou
no desenho que as serpentes fazem ao se enrolarem no Caduceu de Mercúrio.
As espirais estão presentes por toda a natureza, seja nos vegetais, como nas vinhas
e samambaias, nos animais, como nos caracóis e nas conchas, nos fenômenos físicos e
atmosféricos, como nos furacões, ciclones, redemoinhos, e na formação das galáxias (CIRLOT
1984, 241). De modo geral, todas essas espirais seguem padrões de proporção como a razão
áurea (ver seção 4.4). Essa proporção segue a seqüência numérica de Fibonacci, que se
encontra também nas divisões dos galhos das árvores, na disposição das folhas ou espinhos,
66
DAMON 1988, 440.
80
nas veias e artérias dos animais, etc. Esses padrões são bases estruturais muito presentes no
desenvolvimento e crescimento no mundo natural. É possível compreender, então, a
associação das espirais como símbolo de energia, de criação, sugerindo, também, a idéia de
desenvolvimento. Portanto, fica compreensível por que as formas espiraladas de animais,
vegetais, fenômenos naturais, são freqüentemente usadas para expressar simbolicamente essas
idéias e princípios.
Durante longo tempo Ta'aroa67 viveu em seu caracol. Era redondo como um ovo e
girava no espaço em contínuas trevas [...] Mas por fim Ta'aroa golpeou seu caracol,
sentado em seu estreito confinamento, e ele se rachou e se abriu. Ele saiu, se ergueu
sobre o caracol e exclamou: "Quem está aí em cima? Quem está aí debaixo?" [...]
Assim que virou o caracol e o levantou de tal modo que formou uma cúpula para o
céu e o chamou Rumia. E se fatigou e depois saiu de outro caracol que o cobria, que
tomou por rocha e por areia [...] Não podemos enumerar os caracóis de todas as
coisas que produz este mundo.
MITO POLINESIO DA CRIAÇÃO68
67
Foi mantido o nome sem tradução. Outro autor que cita o mito polinésio, CASSIRER (1953), onde aparece o
nome Tananoa, possivelmente se trara da mesma figura.
68
Extraído e traduzido livremente do espanhol de BRIGGS & PEAT 1990, 202.
81
entre outras relações pelo corpo todo, seguem os padrões de curvatura das espirais. A cóclea,
em particular, tem a mesma forma das conchas dos caracóis. Também observamos no couro
cabeludo, algumas vezes no crescimento da barba e em outras partes da pele, a disposição do
nascimento dos pêlos em redemoinho. Esses redemoinhos aparecem também nas impressões
digitais.
Fig. 24. Concha Náutilus. Fig. 25. Bode montanhês Fig. 26. Labirinto membranoso,
Representação esquemática da espiral ouvido interno humano
logarítmica.
69
À guisa de curiosidade, Francis Crick, co-descobridor da estrutura do DNA, estava sob a influência de LSD
em 1953 no momento em que visualizou o desenho da dupla hélice (WARD 2006, 159).
82
Fig. 27. Modelos da hélice dupla Fig. 28. Microtúbulos do axonema. Fig. 29. Alga Spirogyra.
do DNA.
A disposição das folhas no caule das plantas segue uma forma padronizada de
distribuição otimizada (chamada espiral generativa) para não se amontoarem, recebendo,
assim, chuva, luz e ar, de forma adequada. Essa distribuição segue a seqüência dos números
de Fibonacci, do mesmo modo que as espirais (ver seção 4.4). Essa disposição espiralada
também é encontrada na distribuição das pétalas como nas rosas.
No receptáculo de flores como a margarida e o girassol, é possível identificar
grupos de espirais em sentidos opostos. Essa disposição assegura uma divisão de espaço mais
eficiente. De maneira geral, a figura da espiral na natureza está associada a esse tipo de
eficiência. Colocando em termos simples, a natureza é “econômica”, não desperdiçando
energia e ocupando o menor espaço possível: “Sistemas físicos geralmente se acomodam em
estados que minimizam energia” (LIVIO 2006, 135). Na espádice dos antúrios e plantas
similares, as espirais seguem, na forma de hélice também em dois grupos, o principal e o
secundário.
83
Fig. 30. A figura ilustra um caso Fig. 31. Foto do miolo (receptáculo) de Fig. 32. Espádice do antúrio
que são necessárias três voltas uma margarida mostrando as espirais e o sentido das duas
completas para se passar por oito em sentido contrário. espirais.
ramos (razão filotáxica 3/8),
seguindo a seqüência de
FIBONACCI.
Um abacaxi, assim como uma pinha, parece não ter ligação nenhuma com as
espirais, porém: “Cada camada hexagonal na superfície de um abacaxi é parte de três
espirais diferentes. [...] A maioria dos abacaxis tem cinco, oito, treze ou vinte e uma espirais
de inclinação crescente na sua superfície” (LIVIO 2006, 131).
Um fato que chama a atenção na presença das espirais na natureza é que, muitas
vezes, as encontramos, como nas flores, em pares entrelaçados em sentidos opostos, criando
uma forma harmônica de crescimento. Esses opostos não apenas se atraem na natureza, mas,
84
de modo básico, são a principal força motriz de desenvolvimento como luz e sombra, os pólos
elétricos, pólo positivo e negativo no magnetismo, etc.
Györy Doczi, em seu livro O Poder dos Limites, usa o termo dinergia70 para
explicar a força criativa desses opostos complementares, na formação de certos padrões na
natureza, como também na criação, muitas vezes de maneira instintiva, com que os artistas
compõem suas obras:
Padrões gerados por espirais que se movem em direções opostas são freqüentes na
Natureza, como veremos. Eles nos interessam como casos particulares de um
processo mais amplo de formação de padrões, ou seja, a união de opostos
complementares. Sol e Lua, macho e fêmea, eletricidade positiva e negativa, Yin e
Yang. Desde a antiguidade a união dos opostos é um conceito importante nas
mitologias e nas religiões herméticas (DOCZI 1990, 3).
Fig. 34. Tai Chi. As Fig. 35. Figura Fig. 36. Estrela de Davi, Fig. 37. A Cruz com seu
forças Yin Yang mandálica de Escher, os triângulos opostos. braço horizontal e
enroscadas, forças com anjinhos e demônios. vertical se cruzando, no
complementares de um encontro, a rosa
princípio vital único, significando a
andrógino. harmonia.
70
Do grego dia, que significa “através, por entre, oposto” e “energia”, “força, vigor, propriedade de um sistema
que permite realizar trabalho”, representando assim o processo universal de criação de padrões (DOCZI 1990, 3).
85
O diagrama abaixo, baseado nos padrões das flores, mostra o traçado dessas
espirais:
Fig. 38. Representação esquemática da disposição Fig. 39. Mesmo tipo de representação, deixando mais
dos claro o entrelaçamento das espirais.
flósculos no receptáculo de uma margarida.
71
0,618 é o valor da Seção Áurea.
86
Nosso sistema solar não está parado no mesmo ponto do espaço. O Sol se
movimenta em direção à constelação de Lira, aproximadamente no ponto onde está Vega,
uma estrela de primeira magnitude. Nossa galáxia tampouco é estática, leva consigo o sistema
solar nesse movimento. Desse modo, o movimento de rotação da Terra em volta do Sol e em
direção a Vega não é elíptico, mas uma helicoidal no espaço.
Nossa galáxia, como muitas das cem bilhões distribuídas pelo universo e
observadas pelos telescópios como o Hubble, é uma gigantesca espiral que gira em torno de
um núcleo. A teoria do Big Bang, o princípio de tudo através de uma gigantesca explosão,
ainda é o modelo mais aceito pelos cientistas. O universo se expande, porém não se sabe onde
está o ponto inicial Ao contrário, pelo estudo de radiações cósmicas, os astrônomos notaram
que elas se propagam em todas as direções, sugerindo que não há um centro discernível no
87
universo, pelo menos não de forma clara “depois do Big Bang”. De qualquer maneira, a
expansão é estudada, e imagina-se que um dia o universo “pare”, se contraia, num ciclo de
nascimento – morte – renascimento, como descrito em várias religiões e filosofias, desde a
antiguidade, como no hinduísmo e no Tao chinês.
Redemoinhos, furações e tornados, são fenômenos conhecidos justamente pela sua
forma de vórtice, o giro, o movimento, inspirando fascínio e terror pela sua força e magnitude.
Redemoinhos acontecem diariamente nas pias, nos ralos e vasos sanitários. Alguns se formam
nos rios, devido a movimentos contrários das correntes de água, mas também podem ser
observados no mar, o que inspirou contos como Uma Descida no Maelström, de Edgar Alan
Poe. Os furacões se formam depois que nuvens de tempestades deixam o continente em
direção aos oceanos, em regiões onde a temperatura superficial da água ultrapassa 26°C. Por
isso, ocorrem mais freqüentemente onde as águas são mais quentes, como nas regiões
tropicais. Como supostamente a temperatura da Terra está aumentando, áreas maiores do
oceano poderão formar furacões, como aconteceu no Brasil em março de 2004, com o
Catarina. Quanto maior a temperatura superficial da água, maior é o aumento do vapor
presente na região mais baixa da atmosfera, favorecendo a formação de temporais. O furacão
ocorre quando vários temporais se organizam num vórtice, que envia o calor da superfície do
oceano para as camadas mais altas da atmosfera. Um furacão pode levar dias até se formar e
desaparecer. Já os tornados se formam nos continentes, são menores que os furacões – têm
entre 100 e 600 metros de diâmetro - duram bem menos, às vezes alguns minutos apenas, e
são muito destruidores. Seus ventos podem ultrapassar 500km/h.
Fig. 41. A “Espiral Perfeita”, galáxia M74. Fig. 42. Furacão Isabel.
88
Fig. 43. Campos magnéticos. Fig. 44. Vórtices causados pelo fluxo aerodinâmico em um
jato.
72
Segundo as teorias de Wilhelm Reich, o mesmo que energia vital.
73
O livro Living Energies, de Callum Coats, discorre sobre a associação dos vórtices e espirais com a geração de
energia.
89
caso de um metal supercondutor, aquele onde a resistência elétrica desapareceu por ser
colocado em temperaturas críticas de resfriamento, um campo magnético não consegue
penetrar. Porém, se este campo magnético se torna maior e mais forte, em um ponto de campo
se criam vórtices magnéticos semelhantes a sólitons,74 que penetram pelo supercondutor como
se cavassem um túnel.
A nuvem em forma de uma gigantesca coruja, na figura 44, resultou de uma série
de dispositivos antimíssil liberados por um jato da força aérea norte-americana. Os
dispositivos liberam fumaça, e a forma padrão resultante ficou conhecida como “anjo de
fumaça”. Os olhos circulares do anjo são causados pelo ar que espirala devido à força
aerodinâmica das asas do avião, criando os vórtices. Essas formas são estudadas pela
mecânica dos fluidos, parte da Física que estuda o efeito de forças em fluidos. Da mesma
maneira, observa-se comportamento parecido em várias manifestações, que podem dar origem
a formas espiraladas, como o movimento de anéis vórticos da fumaça de um cigarro, das
labaredas do fogo em uma lareira, uma gota de tinta que cai na água, entre tantas outras.
Fig.45. Anéis Vórticos - Fumaça de um charuto. Fig. 46. Anéis Vórticos - Tinta ao cair na água.
74
Onda solitária que caminha de forma constante.
90
última instancia, de moléculas. ¿Es posible que la verdadera turbulencia persista aun hasta
el nivel molecular, o más allá de él?” (BRIGGS & PEAT 1990, 45).
Fig.47. Estudos de Leonardo da Vinci sobre o movimento turbulento. O desenho mostra que vórtices maiores se
decompõem em vórtices menores e assim por diante.
75
A genialidade de Duchamp não está aqui pela capacidade visionária em arte discutida na tese, mas pelo
registro de seu curioso trabalho envolvendo as espirais.
76
Informações retiradas do sítio:
http://creativetechnology.salford.ac.uk/fuchs/modules/input_output/Cage_Duchamp/duchamp_rotoreliefs.htm
(acessado 22 de setembro de 2008).
91
Fig. 48. Reconstrução de Rotoreliefs de 1955 de Marcel Duchamp, os originais são de 1935. Essas figuras em
rotação dão a sensação de tridimensionalidade.
A Matemática possui não só verdade, mas também beleza suprema — uma beleza
fria e austera, como a da escultura, sem apelar a qualquer parte mais fraca da
nossa natureza... sublimemente pura, e capaz da perfeição sem compromissos que
só a grande arte pode atingir.
BERTRAND RUSSELL
77
Entre os pitagóricos: “A descoberta de que existiam números irracionais como a Razão Áurea que continuam
para sempre sem exibir qualquer repetição ou padrão, causou uma verdadeira crise filosófica” LIVIO (2006,
15).
92
proporção, representada pela letra grega Fi ϕ,78 pode ser explicada mais facilmente, dividindo
uma linha em dois segmentos de modo que a relação da linha toda com o segmento maior seja
a mesma que a relação do segmento maior com o segmento menor: AB/AC=AC/CB que,
matematicamente, corresponde ao número 1.61803..., o número de ouro, que nunca termina e
nunca se repete, um número irracional como é o número Pi (π=3,16159...) (ver DOCZI 1990;
LIVIO 2006; PICKOVER 2005; WARD 2006).
Fig. 49. Quando um segmento de reta AB está dividido por um ponto C em outros dois, tais que AB/AC=AC/CB,
diz-se que AB está dividido em média e extrema razão. Essa divisão chama-se, também, divisão áurea, sendo
AC a seção áurea do segmento AB.
78
A letra grega Fi é, em si mesma, de forma espiralada (ϕ), mas encontraremos mais comumente a razão áurea
representada pela letra Fi maiúscula Φ. A razão áurea foi assim batizada no início do século 20 pelo matemático
americano Mark Barr, em homenagem ao escultor grego Fídias.
93
Fig. 50. A Espiral de Ouro – “O Olho de Deus”. Fig. 51. A mesma figura a partir de
triângulos áureos (uma das “pontas” do
pentagrama).
79
Ward comenta em seu livro Spirals que tirou esse significado “the spiralling force of univers” do livro The
keys of the Temple de David Furlong de 1975. Hancock & Bauval, por sua vez, citam, em nota de rodapé, esse
mesmo significado de Neb, porém retirado do livro da romancista Normandi Ellis, Awakening Osiris, de 1988:
“...; neb (spiralling force of the universe)/nebulous”. Não foi possível localizar este significado em nenhuma
outra fonte, apesar de que a associação da criação do universo com as espirais no Egito é comum e devidamente
referenciada na tese.
94
alimentos, claridade, são algumas interferências que podem alterar o desenvolvimento de uma
planta, por exemplo, mas não impedem a observação dessas proporções. Leonardo da Vinci
pode não ter usado deliberadamente a razão áurea nos seus quadros, mas em um determinado
momento de sua carreira ilustrou o livro de Luca Pacioli, A Proporção divina, que trata da
Razão Áurea e foi publicado em 1509. Resumidamente, o livro trata de alguns aspectos
místicos relacionados a essa proporção, tais como: “Que ela é uma só e não mais”; [...] a
unidade “é o supremo epíteto do próprio Deus”; “[...] Razão Áurea envolve três
comprimentos AC, CB, AB, como a Santíssima Trindade”; “[...] a impossibilidade da
compreensão de Deus e o fato de a Razão Áurea ser um número irracional são equivalentes”;
“[...] a invariabilidade de Deus e o fato de a Razão Áurea não depender do comprimento da
linha” (LIVIO 2006, 155) e, finalmente, um pouco mais complexo:
A quinta razão revela uma visão ainda mais platônica da existência do que a
expressa pelo próprio Platão. Pacioli sustenta que, assim como Deus conferiu
existência a todo o cosmo através da quinta essência, representado pelo dodecaedro,
a Razão Áurea conferiu existência ao dodecaedro, já que não se pode construir o
dodecaedro sem a Razão Áurea. Ele acrescenta que é impossível comparar os outros
quatro sólidos platônicos (representando terra, água, ar e fogo) entre si sem a Razão
Áurea (id).
Fig. 53. Sólidos Platônicos: tetraedro = fogo; cubo = terra; octaedro = ar;
icosaedro = água e dodecaedro = quinta essência.
Fig. 54. Imagens refletidas em espiral logarítmica por Fig. 55. Espiral dupla na obra de Escher.
feedback criado com uma filmadora em frente a um monitor
– Doughas Hofstadter.
A Razão Áurea, e a espiral traçada de acordo com esta proporção, não é apenas
um jogo matemático, como foi visto: ela pode ser realmente encontrada nos reinos vegetal e
animal e nos mais diversos fenômenos físicos e químicos por toda a natureza. Porém, além da
Razão Áurea, outras relações matemáticas das espirais são possíveis e encontradas na
natureza. Uma delas é a espiral parabólica de Fermat:
Pierre de Fermat studied this form in 1636, and it can be created using the polar
equation r2=a2θ. Fermat was only twenty-five when he studied this curve. Today,
researchers sometimes use this form to model the arrangement of seed heads in
flowers (PICKOVER 2005, 169).
Fig.56. Espiral de FERMAT ou espiral Fig.57. Lituus, espiral como uma voluta ou como um báculo.
parabólica.
hiperbólicas e outros tipos de espirais logarítmicas, como a traçada pela Razão Áurea. Além
destas bidimensionais, há as espirais tridimensionais, como as espirais esféricas, a hélice e o
vórtice, este último muitas vezes respeitando a Divina Proporção em fenômenos naturais,
como já citado no caso dos furacões e da formação das galáxias. Como exemplo final, outra
espiral conhecida e bastante usada na arte e na arquitetura é a lituus. Segundo Pickover (2005,
187), essa bela espiral, cuja equação é r2=a/θ, foi primeiramente publicada pelo matemático
inglês Rogert Cotes em 1722. As suas curvas se aproximam cada vez mais da origem, mas
nunca a tocam. O nome lituus derivou de uma antiga trombeta romana com esse nome. Sua
forma remete às volutas e ao bastão dos sacerdotes, o báculo. Os sacerdotes romanos eram
chamados áugures, pois se dizia que tinham a capacidade de prever o futuro, ou seja, mais um
tipo de associação da espiral com a espiritualidade.
Apesar de a Razão Áurea ser a mais comumente encontrada, outros tipos de
relação entre matemática e natureza são comuns. Pickover (ibid, 52) cita que algumas formas
como a de uma teia de aranha, o corte transversal da vela de um barco soprada ao vento, são
catenárias – curvas simples definidas por uma fórmula simples. As montanhas e os padrões
das ramificações das plantas e das artérias sanguíneas são como os fractais, um tipo de forma
que exibe estrutura similar mesmo em ampliações de suas partes. A equação de Einstein
E=mc2 define o relacionamento fundamental entre a energia e a matéria. E uma simples
constante – a constante gravitacional, a constante de Planck, e a velocidade da luz – controlam
o destino do universo. De tudo isso, Pickover comenta: “I do not know if God is a
mathematician, but mathematics is the loom upon which God weaves the fabric of the
universe” (id).
A razão áurea, longe de ser um tema esgotado, continua instigando o ser humano,
desde tempos remotos, seja na sua relação com as espirais, seja nas outras relações de
proporção pela natureza. Tanto na ciência como na arte, ou na interação das duas, o racional e
o irracional, antropocêntrico e teocêntrico, o objetivo e o subjetivo, podem conviver num todo
criativo e dinâmico.
4.5. OS FRACTAIS
A mysterious form of matter secreted by the brain. Its chief activity consists in the
endeavor to ascertain its own nature, the futility of the attempt being due to the fact
that it has nothing but itself to know itself with.
AMBROSE BIERCE (1996)
A1 B1 C1
100
A2 B2 C2
(A1) “Fosfeno” (B1) Túnel gerado por (C1) (C2) Caminhos
produzido por pressão LSD. (B2) Túnel visuais retinocorticais.
nos globos oculares. (A2) entrelaçado gerado por
“Favo de mel” produzido Cannabis.
por Cannabis.
Fig. 59. Exemplos de fosfeno, túneis, espirais e mapeamento retinocortical
(BRESLOFF et. al. 2001).
80
Baseado em experiências pessoais.
101
integrativas superiores ─ percepção, ideação, memória e fala (ibid, 92). A palavra alucinação
também é revisada por Sacks, pois significa também confundir o que está sendo visto com a
realidade, mas os pacientes, de maneira geral, não se enganam dessa forma.
As ilustrações abaixo são tentativas de ilustrar as sensações físicas e visuais
decorrentes da enxaqueca:
Fig. 62 e 63. Tentativa de reproduções de escotomas cintilantes. Na imagem à direita, também a presença do
escotoma negativo.
Além dos sintomas descritos, uma série de outros distúrbios visuais, físicos e
psicológicos podem ser observados. Visão de mosaico e cubista, liliputiana (micropsia, os
objetos são vistos menores que o normal), brobdignagiana (macropsia, objetos vistos
maiores), dificuldades de percepção e uso do corpo, distúrbios da fala e da linguagem, estados
de dupla ou múltipla consciência, déjà vu, deslocamentos da percepção temporal, complexos
estados de sonho, pesadelo, transe ou delírio (ibid, 113). A enxaqueca, portanto, apresenta
muitas características comuns dos estados não ordinários de consciência, não se sabendo ao
certo ainda suas causas.
102
5.1. CONCEITUAÇÃO
A Arte Visionária pode ser entendida como um fazer artístico onde a produção
está condicionada às experiências advindas de estados não ordinários de consciência.
L. Caruana, em seu Manifesto da Arte Visionária, escreve:
Where Surrealists tried to elevate the dream-state into a higher reality (and opposed
the use of narcotics) the Visionary artist uses all means at his disposal – even at
great risk to himself – to access different states of consciousness and expose the
resulting vision (CARUANA 2001, 1).
A Arte Visionária tem como propósito transcender o mundo físico, retratar visões
que muitas vezes incluem temas espirituais e místicos ou, pelo menos, alicerçados em tais
experiências. Essa busca na arte não é um fenômeno novo, diversos movimentos artísticos do
passado tiveram essa mesma preocupação. A Arte Visionária na atualidade não defende um
novo estilo específico, é possível encontrar artistas visionários sem treinamento acadêmico,
como os naïfs, ou muito técnicos e de grande destreza e virtuosismo similar aos hiper-
realistas. Ela pode usar materiais convencionais de pintura e desenho, ou então todos os tipos
de inovações tecnológicas da fotografia, cinema e computação. Embora predominantemente
figurativa, há artistas que trabalham com formas abstratas ou uma mescla de ambas.
Uma visão geral, mas não engessadora das características da pintura visionária, é
proposta por L. Caruana,81 que procura mostrar algumas diferenças entre ela e a pintura
moderna: a pintura visionária busca perfeição e delicadeza no acabamento. A razão disso é
não dar ênfase à expressão gestual, como marcas de pinceladas, pontilhismos, materiais
utilizados, tão valorizadas no impressionismo, expressionismo, entre outros, pois se procura
justamente o contrário. Se no passado um quadro podia ser visto como uma janela para o
81
O texto desse parágrafo foi parafraseado das informações presentes no sítio:
http://visionaryrevue.com/webtext3/k.edit2.html (acessado 12 julho de 2007).
104
mundo, mais tarde, nos movimentos modernos, deixou de ser essa janela para se tornar um
objeto de arte auto-suficiente;82 para os visionários, sua obra é como uma janela para o mundo
interior ou para “outros mundos”. Valorizar as pinceladas, os materiais utilizados, por
exemplo, seria como admirar os riscos nos vidros ou a própria janela: “The aim is to make the
painterly medium as invisible as possible, so thar the image itself is presented im-mediately
to the viewer” (CARUANA 2001, 55). Técnicas de pintura, como a dos grandes mestres do
Renascimento, são normalmente apreciadas. A fotografia pode servir como fonte de
referência para a pintura visionária, que procura, porém, reproduzir o que nenhuma fotografia
pode: sonhos, visões enteógenas, estados psicodélicos, etc., apresentados tão autenticamente
quanto possível à visão original. Através dos ENOC, o artista visionário encontra modos
diferenciados de perceber os trabalhos de arte tradicional. Muitas mensagens inesperadas
escondidas previamente ou “despercebidas” emergem, agora, expandindo nossa percepção da
história da arte.
A Arte Visionária conduz a uma existência marginal. Ela não faz parte dos
movimentos e buscas dentro da contemporaneidade, porém encontra seu espaço através da
internet, exposições em galerias especializadas, museus independentes83 e na publicação de
livros.
Como supracitado, a Arte Visionária não é propriamente um movimento novo,
Alexandrian (1973) classificou alguns artistas do passado que criavam suas obras baseadas
não apenas nos objetos do mundo material. SCHURIAN (2005, 17) usa o termo Arte Fantástica
para esse mesmo tipo de produção artística baseada na fantasia e na imaginação do artista:
Como conclusão intermédia, podemos, no entanto, afirmar que não houve “Arte
Fantástica” no sentido de um gênero específico de arte histórica ou de um
movimento como tal. Contudo, a presença do Fantástico pode ser demonstrada em
quase todas as tendências artísticas (id).
A diferença entre a Arte Fantástica e a Arte Visionária é que esta é mais explícita em
relação aos estados não ordinários de consciência, como forma de obter as visões que
inspiram os trabalhos. Portanto, não são apenas produtos da imaginação, da fantasia, mas de
visões consideradas legítimas na experiência do indivíduo. Nem sempre é possível demarcar
essa fronteira. Por exemplo, retratar experiências vividas nos sonhos não significa
82
Essa auto-suficiência está normalmente associada ao fato de a obra não representar ou simbolizar algo, porém:
“Uma obra de arte, por mais livre de expressão ou representação que esteja, continua sendo um símbolo, ainda
que o que simbolize não sejam coisas, pessoas ou sentimentos senão certas formas, cores ou texturas”
(GOODMAN 1977, 4). Tradução livre do Espanhol.
83
O pintor Alex Grey possui em Nova Iorque um espaço para visitação pública: Cosm – Chapel of Sacred
Mirrors, e H. R. Giger possui um famoso museu com seu nome em Gruyères na Suíça.
105
propriamente fazer arte visionária; os sonhos não são considerados estados não ordinários de
consciência, salvo, como visto, os sonhos lúcidos, mas, da mesma forma que para os
surrealistas, pode ser fonte de inspiração e de visões. A Arte Visionária abarca também a Arte
Enteógena, ou seja, a arte que deliberadamente usa substâncias psicoativas para entrar em
estados não ordinários de consciência como, de fato, é exemplificado na tese com a
ayahuasca. Adotou-se o termo Arte Visionária por estar mais presente essa definição entre os
artistas e também por sua maior flexibilidade, envolvendo o uso de visões obtidas em toda a
forma de expansão de consciência, com ou sem o uso de substâncias psicoativas. Outra
característica da Arte Visionária é a tentativa do artista em buscar representar suas visões de
modo original, pois, grosso modo, pintar duendes e fadas de modo estereotipado não
significará ser um artista visionário.
84
Vemos em HAUSER que foi necessário se adotar uma visão mais imparcial do Barroco para se compreender o
Maneirismo. O primeiro passo nessa direção foi dado pelo Impressionismo, “cuja afinidade formal com o
Barroco restituiu a este o favor público, solapando deste modo a autoridade todo o sistema de estética clássica
que até então lhe barrava o caminho” (HAUSER 1993, 15), e então, mais propriamente, “o caminho que conduziu
106
Barroco que, mais para o final do período, entrará numa fase voltada ao decorativo, o
Rococó.85 Contra essas tendências barrocas, segue-se o Neoclássico, racional, voltando
novamente o olhar para a arte clássica greco-romana que, então, dá lugar ao Romantismo,
como o próprio nome sugere, uma volta aos sentimentos, às paixões e ao “afã de buscar
experiências aterradoras [...]” (JANSON 1997, 567). Não se deve pensar nessas oposições de
forma radical ou estanque: naturalmente, os elementos clássicos (racionais) e anti-clássicos
(românticos, emocionais) estão presentes em todos os movimentos artísticos, com diferentes
ênfases apenas. Do Romântico, entra-se no Realismo, novamente racional, onde não se pinta
anjos por nunca terem sido encontrados no dia-a-dia. A determinação de Gustav Courbet, um
dos mentores do estilo, era de “representar o mundo tal como o via” (GOMBRICH 1981, 403),
sendo que esse ver se referia ao mundo exterior.
A Arte Visionária, portanto, trafega dentro do que se pode chamar de tradições do
Romantismo.
5.2.1. O Renascimento
à reavaliação do Maneirismo foi preparado pelo expressionismo moderno, pelo surrealismo e pela arte
abstrata, sem os quais seu espírito teria permanecido ininteligível” (ibid, 16).
85
Nome que vem de rocaille, eco do Barroco italiano que designava a alegre decoração de grutas com conchas e
pedras irregulares (JANSON 1977, 540).
107
PETER BRUEGEL (1525/30-1569) Torre de Babel, Paisagem com Cristo aparecendo aos
Apóstolos, A Procissão do Calvário, O Dulle Griet
MATIAS GRÜNEWALD (1475-1528) Retábulo de Isenheim
HANS BALDUNG GRIEN (1480-1545) Suas pinturas possuem temas que circulam entre
voluptuosidade, morte e bruxaria
ANTOINE CARON (1520-1600) Massacre dos Triúnviros, Apoteose de Sémele, o Carrossel
do Elefant, gravuras do Livre de Philostrate
GIUSEPPE ARCIMBOLDO (1527-1593) Pinturas das Estações, O Bibliotecário e O Cozinheiro
Fig. 66. São Jorge e o Dragão. (cerca de 1460 – óleo sobre tela – 56,5/74cm – Paolo Ucello). Nota-se a
formação das nuvens em espiral, logo atrás do santo, representando a natureza cósmica desse evento (PURCE
2003, 156).
Nem todos os artistas citados possuem obras que lembrem sonhos, fantasias ou
pesadelos, mas possuem elementos ligados ao visionário. Na obra de Leonardo da Vinci, por
exemplo, há duas tendências: “a apresentação da realidade sob uma forma velada
(hieroglífica) e a expressão abstrata das forças universais que provém de Deus” (HOCKE
2005, 161). Leonardo da Vinci...
[...] studied the principles of spiral formations and make sketches of their
appearances in smoke, dust and water (including the curves of waves), and in
108
flowers, grass and reeds […] In one manuscript, Leonard compares the spirals of a
woman´s curls to the motion of whirlpool, and is his study ‘Leda and the Swan’, a
subject taken from mythology, plaits of the girl’s hair are arranged in spirals
(WARD 2006, 43).
Leonardo da Vinci recorria à escrita misteriosa, até seus textos eram escritos de
forma espelhada, e aos pictogramas. Fascinado pelos labirintos, ele se lança no jogo abstrato
dos entrelaçamentos, se afastando dessa forma do realismo e da natureza (HOCKE 2005, 161).
Leonardo vai em direção ao “ritmo das forças universais que constituem a essência de toda a
natureza: o pneuma misterioso” (ibid, 163). No forro da Sala de Asse, no Castelo Sforza em
Milão, há uma obra de Leonardo nessa direção. O entrelaçamento é realizado com uma única
corda contínua por todo o padrão. Apesar da semelhança com os padrões Celtas, é mais
provável que Leonardo tenha se inspirado nos ornatos de origem árabe. Leonardo acreditava
que leis naturais governavam as formas de todas as coisas. Ele criou regras baseadas em sua
observação, de como os galhos das árvores se dividiam, apesar de as árvores não serem
simétricas e serem diferentes entre si. A preocupação de Leonardo, séculos antes, parece ter
sido a mesma que teria. mais tarde, o matemático Mandelbrot com os fractais, ou seja,
reproduzir a organicidade aparentemente ilógica das formas naturais.
Fig. 68. Detalhe do intrincado padrão entrelaçado do forro na Fig. 69. Estudo de Leonardo da Vinci
Sala de Asse – Leonardo da Vinci. sobre a divisão dos galhos de uma
árvore.
5.2.2. O Maneirismo
O Maneirismo foi uma revolução, pois os artistas não precisavam romper com os
estereótipos artísticos dominantes no Renascimento. Porém os artistas sentiam a queda do
prestígio da perfeição clássica. Romperam com a perspectiva e com a proporcionalidade do
Renascimento. Interessaram-se pelo ilusionismo, pelos artifícios pictóricos e pelos
anaformismos, os exageros das formas.86 A beleza e a disciplina da forma já não bastavam. O
repouso, o equilíbrio e a ordem da Renascença pareciam desprezíveis. A harmonia se
afigurava irreal e morta, a falta de ambigüidade parecia supersimplificação, a aceitação
incondicional das regras parecia autotraição (HAUSER 1993, 17). O Maneirismo voltou a
certas tradições religiosas medievais. Ruiu a fé no homem, aparece o anti-humanismo, através
da Reforma e do maquiavelismo. Veio a desilusão com o Renascimento e seus ideais da
beleza clássica grega e o estoicismo romano. O maneirista expressa o espiritual apenas
sugerindo, distorcendo as formas e rompendo fronteiras. O Maneirismo absorveu tensões e
uniões dos opostos, mesmo os mais díspares, como o racional-irracional, tradição-inovação,
sensual-espiritual, natural-formal, classicismo-anticlassicismo, etc.: “A tendência era de unir
os extremos para poder exprimir visões paralógicas” (HOCKE 2005, 115). Havia o gosto pelo
rebuscado, pelo estranho, pelo confuso, picante, estimulante, pungente, grotesco, audacioso,
provocante. Idéia e experiência, o imitativo e o expressivo, amiúde se colocam inteiramente
86
Em 1523, o auto-retrato de Il Parmigianino (Francesco Mazzola), posado diante de um espelho convexo, é
considerado o marco inicial do Maneirismo (HOCKE 2005, 15).
110
87
Hocke distingue cinco épocas maneiristas: “Alexandria (c. 350-150 a.C); o período da ‘latinidade argêntea’,
em Roma (c. 14-139 d.C); o início e mais ainda o fim da Idade Média, o Maneirismo ‘consciente’, entre os anos
1520 e 1650; o Romantismo, que vigorou entre os anos de 1800 e 1830; e, enfim, a época que precedeu a nossa
e cujas influências até hoje se fazem sentir (1880-1950)” (HOCKE 2005, 19).
111
5.2.3. O Romantismo
Nas últimas décadas do século 18, durante o Romantismo, surgem artistas com
fortes características visionárias, importantes referências para movimentos posteriores dentro
dessa linha, como Johann-Heinrich Füslli (Henry Fuseli), Francisco Goya e William Blake. O
pintor Füslli (1741-1825), de origem suíça, mergulha nas sombrias profundezas do espírito
humano (JANSON 1977, 567), como na obra O Pesadelo. Goya (1746-1828), espanhol,
produziu muitas gravuras, mas não buscava ilustrar temas conhecidos como os bíblicos ou
históricos: “a maioria delas são de visões fantásticas de bruxas e aparições sobrenaturais”
(GOMBRICH 1981, 385), como na série Provérbios. Dentro do Romantismo, da mesma forma
que os poetas, “os artistas sentiam-se agora livres para colocar no papel suas visões
pessoais” (ibid, 386). William Blake (1757-1827), inglês, pode ser considerado o mais
notável exemplo dessa nova abordagem da arte. Blake era profundamente místico, “vivia num
mundo de sua própria criação” (id), desprezava a arte acadêmica e vivia de fazer gravuras,
muitas das quais descritas por ele como verdadeiras visões que eram então reproduzidas em
seus trabalhos como Cantos da Inocência, Cantos da Experiência, Urizen, Jerusalém, Dante,
entre outros. Seus contemporâneos o consideravam um louco ou um excêntrico inofensivo,
poucos na época acreditaram na sua arte. As características de seus trabalhos, bem como de
seu estilo de vida pessoal, levaram autores como Bucke (1996, 227) a acreditar que se tratava
de um verdadeiro caso de pessoa que passou pela experiência de iluminação, ou seja, aquele
que atingiu a consciência cósmica. Por outro lado, Lewis-Williams & Pearce (2005, 169)
criticam Blake por este acreditar na ligação entre as terras descritas na Bíblia com as terras
inglesas e por seu encantamento pelos escritos fantasiosos de uma figura auto-intitulada
Arqui-Druida Chyndonax, William Stukeley (1687-1765). Entre outras coisas sem muito
sentido, Stukeley acreditava que a religião de Abraão e Moisés tinha sido trazida para a
Inglaterra pelos fenícios, acompanhados de sacerdotes Druidas (ibid, 169). Blake,
impressionado com essas histórias, prometia não dormir até que Jerusalém fosse reconstruída
na Inglaterra (ibid, 170). De qualquer forma, os temas místicos ilustrados nas gravuras de
Blake possuem vários elementos tradicionais da Arte Visionária, como as serpentes, os
vórtices, túneis, escadas e seres míticos diversos, ele “estava de tal modo envolto em suas
visões que se recusava a desenhar do natural e confiava inteiramente em seu olho interior”
(GOMBRICH 1981, 388).
112
5.2.4. Os Pré-Rafaelitas
Fig. 72. Ecce Ancilla Domini (“Anunciação”), de Fig. 73. O Pescador e a Sereia, de Lord Leighton.
Rossetti.
tivesse ocorrido sem a Pop Art, que reabilitou o colorido exuberante e a decoração
linear (id).
5.2.6. O Abstracionismo
88
Hocke se refere à obra Léonard de Vinci, escrita por Brion em 1952.
118
existência de uma realidade psíquica ou espiritual que só pode ser apreendida e comunicada
através de uma linguagem visual, cujos elementos são símbolos plásticos não figurativos”
(ibid, 171). Sobre a genialidade de Kandinsky, Read comenta:
Como pintor, como gênio criador, pode parecer muito mais limitado do que Picasso;
mas Kandinsky era mais do que um pintor: era um filósofo e até um visionário (ibid,
161).
89
Maiores informações no sítio do Itaú Cultural:
http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_IC/index.cfm?fuseaction=termos_texto
&cd_verbete=4696 (acessado em 01 de setembro de 2008).
119
5.2.7. O Surrealismo
Fig. 79. Adão e Eva em frente à Árvore do Conhecimento Fig. 80. Adão e Pegasa – detalhe (1983).
(1984). Ernst Fuchs. Rudolf Hausner.
5.2.9. O Psicodelismo
e uma filmadora de 16mm, para realizar essa missão “evangelizadora”, em uma viagem em
direção à Feira Mundial de Nova Iorque. Em um dos diálogos do livro de Wolfe,
encontramos:
A gente pode se isolar num monastério ou pode organizar uma religião, seguindo os
passos da Liga da Descoberta Espiritual – Des-co-ber-ta Es-pi-ri-tu-al – e
transformar a maconha e o ácido em sacramentos legalizados, de forma que as
pessoas não precisem ficar todo o dia morrendo de medo de ir para a prisão (ibid,
35).
90
Autor da frase: “Turn on – Tune in – Drop out” (Ligar-se – Sintonizar-se – Libertar-se).
124
artes visuais, na literatura e na música. Havia rejeição quanto aos padrões da grande arte
estabelecida, o psicodelismo foi um movimento de contracultura. As principais características
da Arte Psicodélica podem ser descritas como:
• Temas relacionados ao fantástico, metafísico e surreal;
• Uso de padrões caleidoscópicos, fractais ou estampados coloridos;
• Cores fortemente contrastantes e intensas;
• Trabalhos estilizados e detalhados com profundidade;
• Metamorfoses dos objetos e dos temas;
• Inclusão de motivos entópticos ou de fosfênios;
• Repetição de motivos.
Essas características são, de modo geral, fruto das experiências com psicoativos.
Seus artistas buscavam referências na arte do início do século, incorporando aspectos do Art
Nouveau (ver ilustrações abaixo), do Simbolismo, do Surrealismo e do interesse na arte
mística do oriente e de outras civilizações antigas, além de seu próprio mundo interior,
inspirado nas visões provocadas por estados não ordinários de consciência. Não que fosse
imprescindível o consumo de drogas para as criações, mas o estilo ditado pelas experiências
psicodélicas criou uma estética que era seguida pelos artistas de então. Os estados provocados
pelos psicoativos eram imitados nas músicas progressivas e no rock, no ritmo das danças, no
colorido das artes e das roupas, no uso, em festas e shows, de luzes com efeitos especiais
como a luz estroboscópica (flashes intermitentes produzindo efeitos hipnóticos), luz
submarina (projetava nas paredes formas orgânicas e “líquidas” através de uma película de
plástico transparente com substâncias oleosas e coloridas dentro) e na luz negra (lâmpada de
ultravioleta que ressalta certas tonalidades de branco e ativa o brilho de tintas fosforescentes).
125
Fig. 82. Neon Rose #6, Blues Project, 1967. Autor: Fig. 83. Poster para a banda Grateful Dead, 1966.
Victor Moscoso. Autor: Stanley Mouse.
buscas surrealistas, mas, isto sim, retratar as visões, muitas vezes recebidas na forma de
mensagens ou instruções, como no caso abaixo relatado por Luna (id):
[...] o escultor e vegetalista praticante Augustin Rivas que teve sua obra exposta em
vários países. Em seu caso diz que, em uma de suas visões, sua avó morta apareceu
mostrando-lhe um renacal (bosque de renacos, árvores do gênero Ficus, com
grandes raízes aéreas), indicando-lhe que recolhesse algumas das raízes, que ele via
como povoadas de todo tipo de seres antropomórficos. Ao fazê-lo e pô-las em seu
ombro, cada uma delas emitia um som musical. A partir dessa visão, Don Augustín
começou a esculpir essas personagens que via nas raízes...
Fig. 85. Escultura em madeira – renaco – de Augustin Fig. 86. Pintura de Pablo Amaringo antes da
Rivas. fase visionária.
desse pintor para o presente estudo. Amaringo chegou a criar uma escola de arte visionária em
Pucallpa, chamada Usko Ayar.
Amaringo relata que começou a pintar sob a influência da ayahuasca. Nas
mirações, ele aprendeu como misturar as cores corretamente para criar as mais belas nuanças
(LUNA & AMARINGO 1999, 17). As pinturas, de maneira geral, contêm pontilhados
multicoloridos e luminosos, que se destacam ainda mais por causa do fundo escuro. Esse
efeito visual é típico das mirações com a ayahuasca (fig. 87). Amaringo comenta que os
temas pintados por ele, são produtos de suas próprias visões, de suas experiências apenas, não
copiando idéias de nenhum livro (ibid, 31).
Como exemplo de espirais em forma pura, é possível observar, no quadro abaixo
(fig. 88), que, em diversos locais, aparecem espirais como as duas representadas em sentidos
opostos no canto inferior direito da tela, e outra, quase oculta por trás das folhas (Psychotria
viridis), aproximadamente no meio do quadro acima das anteriores. A presença de espirais e
vórtices nas mirações não significa que os artistas obrigatoriamente as representem sempre de
forma pura, como freqüentemente acontece nas obras indígenas e pré-históricas. A maioria
representa cenas figurativas mais complexas, mistas entre elementos geométricos e abstratos
que podem ou não conter as espirais. Os artistas, mesmo que vejam esses elementos
geométricos, nem sempre os usarão, até mesmo para evitar repetições e estereotipias:
“Although I haven’t represented it in my painting, I have had visions of spirals with
ayahuasca, particularly at the beginning of the experience. Aztec spirals!” (CARUANA,
comunicação pessoal, em posse do autor, por e-mail de 05/03/2008).
130
Fig.87. Visão 46 – Sepultura Tonduri (1986 – Fig. 88. Ayahuasca – Chacruna Causai – Pablo
detalhe) – Pablo Amaringo. Amaringo.
Fig. 89. Fluidificar (1994 – óleo sobre tela – 80/80cm) – Alexandre Segrégio
As pinturas retratam, em sua maioria, paisagens com florestas iluminadas pelo sol
ou pela lua, quase sempre com presença de flores. Em muitos quadros, se vê água,
principalmente de rios e cachoeiras, mas também o mar. Há seres divinos, aparições de anjos
de luz diáfana (que às vezes se comunicam com pessoas comuns), xamãs e crianças. Há ainda
a presença de cenas e personagens bíblicos, tais como Jesus caminhando sobre as águas e
representações do Rei Salomão, importante personalidade dentro dos ensinamentos da UDV.
Alexandre Segrégio divide suas obras em grupos que ele nomeia como Segredos, Mistérios,
Encantos, Colheita, Magia, Nativos, Flores e Florestas. Ao ser indagado sobre o significado
de espirais e vórtices na sua obra, ele comenta:
Em relação aos efeitos que manifesto na pintura, espirais e vórtices, são efeitos de
energia e movimentos presentes em várias culturas e religiões. Exprimem a conexão
com o universo espiritual (id).
132
A UDV, tendo sofrido perseguições no passado por usar um “chá misterioso” nos
seus rituais, assume postura algo rígida de conduta e ordem. Dessa forma, tenta evitar que
associações e interpretações negativas venham a interferir nos seus propósitos e objetivos, tais
como expressos na “Convicção do Mestre”. A UDV usa uniforme em suas sessões, exige boa
conduta moral de seus discípulos, dando muita importância à família e ao trabalho, à
obrigação em aceitar a doutrina, principalmente conforme se sobe na hierarquia. Nesse
sentido, se parece com outras religiões, ayahuasqueiras ou não. Entende-se que essa postura
dificulte a presença de pessoas estereotipadas como “neo-hippies” ou figuras artísticas que
busquem inspiração “no lugar errado”. Dessa forma, evita-se dar à sociedade uma má
imagem, que associe o uso da ayahuasca com pessoas que, aparentemente permissivas, já
possuem afinidade com as “drogas” e outros costumes “liberais”. O chá é usado para “fins de
concentração mental”, como veículo sagrado de comunicação espiritual e não para uso
“psicodélico”, como confirma a proibição de usá-lo em qualquer outra ocasião fora das
sessões oficiais e autorizadas pelos mestres da instituição. Contudo, é natural que as
“inspirações” aconteçam e sejam levadas a bom termo por artistas plásticos, escritores,
cientistas e músicos dentro da UDV, sem contar, naturalmente, com a inspiração para a vida
em si, ou seja, a criatividade de modo geral que a ayahuasca pode facilitar. A esse respeito,
Alexandre Segrégio comenta:
Comungo o vegetal somente no ritual religioso da UDV, para efeito de concentração
mental. O que procuro colocar nas telas são inspirações que recebo, nem sempre nos
momentos em que bebo o vegetal, pois estes momentos são reservados pra meu
desenvolvimento espiritual, mas, nos dias seguintes ao ritual, o vegetal ainda
trabalha em meu organismo, me proporcionando mais clareza, sensibilidade,
percepção e mais saúde pra pôr mãos à obra, tornar visível a essência (id).
as sensações de luzes podem se fundir com as cenas mais completas. A pintura ao lado,
Tempo (fig. 91), representa as visões de um nativo na floresta, rodeado por vegetais que
entram na composição da ayahuasca, possivelmente acessando uma memória ancestral, numa
representação de cenas visualizadas similares ao que pode ocorrer nos sonhos.
Fig. 90. Flor em Luz (1995 – óleo sobre tela Fig. 91. Tempo (1993 – óleo sobre tela – 80/100cm) –
– 70/60cm) – Alexandre Segrégio. Alexandre Segrégio.
Antes de ter experiências com psicoativos, nos primeiros quinze anos de carreira
como pintor, L. Caruana tinha como fonte principal de inspiração os sonhos. Somente aos 33
91
Bacharel em Arte e especialista em filosofia pela Universidade de Toronto, reside atualmente em Paris. Todas
as informações aqui foram trocadas através de e-mails em posse do autor e encontradas no site pessoal do artista.
135
92
“Weeks later, I was amazed to discover that the Shipibo-Conibo tribes of the Amazon, who treat ayahuasca as
a sacrament, sew these same patterns onto all their ceremonial vestments, recognizing them as 'patterns of the
soul'”. Disponível em:
http://www.L. Caruana.com/webtext/mort.html (acessado em 12 de março de 2008).
136
Fig. 93. The Vine of the Dead (2006 – óleo sobre tela – 50/80cm) – Laurence Caruana.
93
Informações trocadas por e-mail.
137
Fig. 94. Anima Sublimis (2001 – aerografia Fig. 95. The Oracle of the Pearl (2001 – aerografia
acrílica sobre cartão) - Andrew Gonzalez. acrílica sobre cartão) – Andrew Gonzalez.
94
Depoimento por e-mail em 15 de dezembro de 2008. Nos anexos se encontra o texto na íntegra.
138
Fig. 96. Wonders of Nature (1987, óleo sobre tela – Fig. 97. Double Helix (1992, óleo sobre tela –
54/48cm) – Mark Henson. 54/48cm) – Mark Henson.
95
Mais do que artista, Rätsch é escritor, antropologista e expert em etnofarmacologia, autor de um extenso livro
sobre o assunto, The Encyclopedia of Psychoactive Plants: Ethnopharmacology and Its Applications, entre
outros.
139
Fig. 98/99. Obras do artista Christian Rätsch, pintadas depois de ingerir LSD.
96
Informações trocadas por e-mail.
140
arte, que sempre foi algo de grande importância e prioridade para a humanidade, atualmente
perdeu seu caráter divino.
A obra The journey to the beginning of time mostra o movimento agitado das
águas primordiais da criação, o “início dos tempos”. Uma caravela, aparentemente construída
a partir de uma concha nautilus (espiral logarítmica) está como que flutuando sobre esse mar.
Acima, um túnel em vórtice de onde sai uma luz e parece ser o responsável pela
movimentação geral das águas na cena.
Fig. 100. The journey to the beginning of time (1994 – óleo sobre tela – 60/60cm) – Martin Oscity
Em outra pintura, Energetic Circle, uma mulher, como um anjo ou deusa das
águas, está sobre o mar. Suas asas, em um movimento circular, se confundem com as águas,
onde alguns peixes e golfinhos nadam e saltam. Em todos os lados e cantos do quadro,
existem trigramas do I Ching em meio a elementos como fogo, terra, água e ar. No canto
superior direito, estão algumas galáxias, numa das quais há um olho como o “olho de Deus”
ou o “olho-que-tudo-vê”, representando a divindade em sua onisciência, onipotência e
onipresença. Embaixo, está um ovo, símbolo universal daquele que contém o germe e a partir
do qual se desenvolverá toda a manifestação (CHEVALIER; GHEERBRANDT 1999, 672).
141
Fig. 101. Energetic Circle (2006 – óleo sobre tela – 195/192cm) – Martin Oscity
97
O sítio da Bradshaw Foundation traz acervo e a autobiografia completa desse escultor:
http://www.bradshawfoundation.com/jr/volume1.php (acessado em 30 de agosto de 2007).
142
[...] dizer que o simbolismo da mãe (fr. mère) está ligado ao do mar (fr. mer), na
medida em que eles são, ambos, receptáculos e matrizes da vida. O mar e a terra são
símbolos do corpo materno (CHEVALIER & GHEERBRANT 1999, 580).
98
[...] Teoricamente, estas duas figuras são muito diferentes, mas é possível que “círculos concêntricos”,
traçados do centro para a periferia, num movimento muito rápido, se transformem em espirais e possam então ser
interpretados da mesma maneira (Tradução livre do francês).
145
Le motif de la spirale peut avoir été inspiré à l'origine par l'observation des
turbulences (des flux tourbillonnants) de l'eau courante mais aussi par celle des
remous qui se produisent lorsque l'eau, ou un tout autre liquide, s'écoule par une
ouverture vers le bas. Dans chaque cas, elles peuvent indiquer une immersion dans
les “eaux de la mort” (voir Au-delà), ce qui expliquerait pourquoi ces signes furent
souvent gravés sur les pierres tombales mégalithiques de la préhistoire (CAZENAVE
1999, 654).99
Provavelmente, o exemplo mais antigo que se conhece do uso das espirais seja a
que se encontra em Malta, no lago Baikal, Sibéria, onde foi descoberta uma placa paleolítica
feita com marfim de mamute, datada de 16.000 a.C. Nela, está entalhada uma série de espirais
duplas, possivelmente serpentes, em torno de uma espiral simples, com sete voltas, que
desaparece através de um furo no centro da placa (ROBINSON 2007, 1200). Segundo WARD
(2006, 12), essa placa dataria de 23.000 a.C e pode estar associada à civilização perdida de
Shambhala, o legendário país dos hiperbóreos. A espiral com sete voltas também é encontrada
entre os índios hopi, simbolizando a Mãe Terra (ver sessão 6.8 adiante, fig. 211).
99
O motivo “espiral” pode ter sido inspirado originalmente pela observação das turbulências (dos fluxos
turbilhonantes) da água corrente, mas também pelos movimentos que se produzem quando a água, ou outro
líquido qualquer, escoa por um buraco. Em todo caso, elas podem indicar uma imersão nas “águas da morte”, o
que explicaria por que estes sinais frequentemente foram gravados sobre as pedras tumulares megalíticas da pré-
história (Tradução livre do francês).
146
Fig. 103. Placa de marfim de Baikal. Fig. 104. Desenho esquemático da placa.
No Antigo Egito, por volta de 3200 a.C, além das imagens de serpentes em
espiral, encontramos essa forma freqüentemente na coroa dos faraós e sob os olhos do deus
Hórus, sendo o olho direito do sol e o esquerdo da lua (BRUCE-MITFORD 2001, 72),
associando assim essas espirais aos corpos celestes.
Fig. 105. Pintura de Osíris em uma tumba em Fig. 106. Coroa dupla dos faraós com a espiral que
Tebas no Egito. Aos lados de Osíris, os olhos de significa a influência do poder divino.
Hórus.
500 anos a Grande Pirâmide de Giza e em quase 1.000 anos a construção circular de pedras
em Stonehenge.
Fig. 109. As três espirais entrelaçadas esculpidas na Fig. 110. Detalhe das espirais triplas entrelaçadas.
Pedra da Deusa no interior de Newgrange.
100
Os templos megalíticos em Maltese são construídos na forma do corpo da Grande Deusa (PURCE 2003, 104).
149
inverno, o sol encontra-se em posição tal, que um feixe de luz solar penetra a Grande Deusa.
Por essa passagem, tanto em Newgrange como em Maltese, a mesma importância do solstício
e dos obstáculos em espiral na entrada do monumento se repete e, em relação ao sol, lembra o
mesmo tipo de mitologia dos índios Tukano, onde o sol macho fertiliza a terra fêmea. Esses
cultos solares são bastante comuns por todo o mundo antigo, inclusive para os maias: “le
solstice d'hiver représente le point d'origine chez les Mayas dont la cosmologie se développe
selon le motif de la spirale” (CAZENAVE 1999, 654).101
Fig. 111. Desenho esquemático da pedra (K1), na entrada de Fig. 112. Hipogeu de Hal Saflieni, Paola,
Newgrange. Malta – aprox. 2500 a.C.
101
“o solstício de inverno representa o ponto de origem para os Maias, cuja cosmologia se desenvolve segundo o
motivo da espiral” (tradução livre do francês).
150
Fig. 113. Templo de Al Tarxien, Malta – Aprox. 2400-2300 Fig. 114. Pedra pré-histórica redonda
a.C. entalhada encontrada em Glas Hill, Towie,
Aberdeenshire (3.000 a.C).
As espirais duplas esculpidas também podem ser vistas nas várias pedras
entalhadas encontradas, freqüentemente, junto às ruínas das construções antigas, perto das
tumbas-galerias pré-históricas no norte da Escócia, em Glass Hill, Towie (DOCZI 2006, 27).
São esferas de pedra, em média com sete centímetros de diâmetro ou mais, esculpidas de
diversas formas e quase sempre com entalhes espirais e círculos concêntricos. No exemplo
acima, da fig. 114, a pedra possui três faces entalhadas. Muitas são rochas naturais de quartzo,
mas existem de outros tipos. Vários exemplares destas pedras esféricas estão em museus
como o Hunterian Museum, em Glasgow, Escócia (MARSHALL 1976, 55). Não se sabe ao
certo a utilidade dessas pedras. DOCZI (2006, 27) comenta que, provavelmente, eram usadas
para rituais de adivinhação.
No Brasil, na região amazônica, há diversos sítios arqueológicos com inúmeros
exemplos de arte rupestre, havendo relatos desses sítios desde o tempo da colonização:
As primeiras informações sobre a existência de arte rupestre na Amazônia são
encontradas nas crônicas de viajantes e religiosos europeus que percorreram a região
durante os primeiros séculos de conquista e colonização das terras brasileiras
(PEREIRA 2003, 17).
Fig. 115. Detalhe da Pedra dos Macacos. Fig. 117. Desenhos da obra de Hartt
Fig. 116. Petróglifos do Lajedo do Cadena. (1895) sobre a arte rupestre de Alcoçaba
(atual Tucuruí), Tocantins.
Charles Frederich Hartt, que percorreu e registrou pinturas e gravuras rupestres em diversas
regiões do Pará entre 1870 e 1871:
As outras são na mor parte espiráes, mais ou menos complicadas, est. 2, fig. 2, 4, 5,
7, e 11. Uma destas, est.2, fig. 4, póde representar a face humana: sendo as linhas
divergentes superiores as sobrancelhas, a que desce no meio dellas o nariz e as
espiráes os olhos [sic] (HARTT 1895 apud PEREIRA 2003, 105).
102
Esse símbolo também está associado ao tríscele, a suástica de três pernas e ao trípode: [...] “símbolo solar,
não só pelo disco superior, mas também pelos três suportes, cada um dos quais corresponderia a estes
movimentos: levante, zênite, poente” (CIRLOT 1984, 582). Esse símbolo pode também ser representado com três
pernas unidas pelo centro como na da bandeira da Sicília.
153
Fig. 118. Cruz celta da igreja de Fig. 119. O tríscele, três espirais Fig. 120. Cornucópia.
Aberlemno na Escócia. entrelaçadas.
coroando o axis mundi (pilar cósmico). A cruz, em forma da letra Tau, também significa a
árvore do conhecimento (ibid, 61).
O báculo, bastão com a extremidade curva, atributo do pastor na igreja e símbolo
da fé, também era usado pelos faraós egípcios, e representa a comunicação e a conexão com o
poder divino. Por sua forma espiral, é símbolo divino de força criadora (CIRLOT 1984, 112;
PURCE 2006, 83). Na figura 125, há um bastão do período Neolítico, provavelmente usado
para a mesma finalidade. Porém, o elemento entóptico decorado nesse bastão é o ziguezague.
Fig. 122. Página do Livro de Durrow, dos monges Fig. 123. Cristo sobre a cruz Tau, a Árvore do
irlandeses, usado para meditação e preparação Conhecimento.
para os trabalhos religiosos.
Fig. 124. Báculo pastoral em forma de serpente. Fig. 125. Bastão reconstruído encontrado em Bush
Barrow, Wiltshire. O ziguezague é feito a partir de
ossos.
155
Nos Andes, as espirais eram largamente usadas nos cultos da água. As linhas de
Nazca são geóglifos realizados no deserto do Peru, representando desenhos geométricos como
ziguezagues, espirais, animais e plantas estilizadas, algumas incluindo imagens de seres
humanos. São desenhos de enorme proporção, sendo apenas visíveis de uma altura
considerável. Esses desenhos estendem-se pelas colinas nos limites do deserto. Foram
realizadas pelo povo nazca, que floresceu entre 200 a.C. e 600 d.C. seguindo os rios andinos.
A área de Nazca, onde se encontram os desenhos, é conhecida pelo nome de Pampa Colorada.
As pedras vermelho-escuras e o solo foram removidas, expondo o subsolo de coloração mais
clara, criando assim as "linhas".103 Vale lembrar aqui que as conchas, também associadas às
espirais, estão ligadas aos cultos das águas:
We know that spirals were common motifs throughout South America. Larrain
(1976:354) noted that in ancient Peru shells with a spiral form were frequently used
in cults relating to the obtaining of water. He feels that the spiral motif of geoglyphs
relates to a water cult (REINHART 1996, 34).
103
Maiores informações no site: http://skepdic.com/brazil/nazca.html (acessado em 12 de junho de 2008).
156
Espirais e vórtices de formas simples são presenças bastante comuns nos quadros
de pintores visionários. Quando se quer transmitir idéia de energia e movimento, alguma
forma de poder, essas imagens se prestam adequadamente. Parece que os artistas as usam
instintivamente para representar essas situações. Na pintura abaixo, Alquimia, Alexandre
Segrégio, em uma composição diagonal marcada por uma árvore inclinada da esquerda para a
direita, cria uma oposição entre dois elementos situados nos extremos do quadro. Na parte
superior esquerda,a lua, em cores frias, passa a sensação de calma e repouso. No outro
extremo, à direita e um pouco mais abaixo que a lua, um vórtice de coloração amarela, solar,
com a luz mais intensa ao centro, está em um movimento dinâmico, dando a sensação de
157
sugar, de atrair toda a paisagem à sua volta. Ao mesmo tempo, esse vórtice forma, na
paisagem, uma espécie de abertura para outra dimensão. Na parte inferior do quadro, um
pequeno ser mítico parece receber uma luz vinda do centro do vórtice.
Fig. 130. Alquimia (1999 – óleo sobre tela – 80/100cm) – Alexandre Segrégio.
Fig. 131. Águas de Taquaruçu Palmas (2004 – óleo sobre tela – 60/60cm) – Alexandre Segrégio.
104
[...] magic powers are twisted.
159
grávida, mas não está. Outra mulher, acima da anterior, foi enfeitiçada com lupuna colorada
[Cavallinesia sp.]. Atrás, o gênio da planta lupuna a protege. Na extremidade direita, se
encontra Taita Punchayashcan (“father who illuminates like the daybreak or dawn”).
Fig. 132. Visão 34: Maituchishcami: Restoring Body Energy Energy (1987)
Pablo Amaringo.
As representações típicas obtidas nas visões nem sempre são figurativas. A figura
133 mostra uma obra abstrata da artista Nana Nauwald: uma espiral em meio a padrões
amorfos de cores lembrando os estágios iniciais das mirações. Nauwald possui experiências
com ayahuasca, entre outras plantas.105
105
Informações sobre a artista podem ser acessadas nos sítios:
http://www.ecstatictrance.com/index.html?=nana-nauwald.html e
http://www.visionary-art.de/seiten/nana_engl.html (acessados dia 13 de outubro de 2008).
160
Fig. 133. Star Dance (2008 – óleo e pigmento sobre tela – 70/50cm) – Nana Nauwald.
Como a maior parte dos símbolos ilustrados aqui, as serpentes aparecem nas
representações artísticas desde muito tempo em civilizações distribuídas pelo planeta todo,
quase sempre com implicações mágico-religiosas, além de ser uma imagem recorrente nos
ENOC, como visto no Segundo Capítulo.
As serpentes são animais que parecem inspirar simultaneamente medo e
fascinação devido a sua beleza, seus mistérios, seu perigo. Alguns desenhos, desde o período
paleolítico, são linhas sinuosas relacionadas ao movimento das serpentes, do mesmo modo
que os pigmeus ainda as representam, com uma linha no chão (CHEVALIER & GHEERBRANT
1982, 814). As serpentes estão ligadas a uma grande diversidade de aspectos simbólicos, por
suas características físicas e comportamento, além da variedade de habitats onde vivem, pois
elas estão nas florestas, nos rios, nos desertos e nos mares. Devido a isso, não representam um
tipo único de símbolo, mas um grande complexo deles. Como símbolo da fertilidade, a
serpente é sexualmente ambivalente, ao mesmo tempo matriz e falo (ibid, 822), também
representando as fontes da vida e da imaginação (ibid, 825). Ela pode simbolizar aspectos
positivos, o bem, a força vital, a sabedoria, a virtude, e negativos como o mal, o perigo, as
tentações. Ela pode ser a serpente Kundalini, alojada na base da coluna vertebral, a energia da
161
106
Chakra, em sânscrito, significa roda. Na filosofia hindu, são os pontos de junção por onde passa a energia
vital, geralmente sete, distribuídos da base do períneo até o topo da cabeça. São como centros de consciência
(CHEVALIER & GHEERBRANT 1982, 231). Em sentido mais amplo, “Chakra significa círculo, esfera” (CAMPBELL
1991, 191).
162
com uma cultura bastante desenvolvida, situada no cruzamento dos vales de Bolecica e do rio
Danúbio, onde o relevo de Sumadija se encontra com a planície de Banat. Datando entre 4500
e 3500 a.C ou ainda mais antiga, mostra atualmente muito do que foram os primeiros
assentamentos de agricultura na pré-histórica da Europa.107 Vinca incluía o norte da Grécia e a
Tessália.
Fig. 135. À esquerda, cerâmica em forma de serpente encontrada em Predionica, Pristina, na Iugoslávia, perto
de Vinca. Ao centro e à direita, vasos vinca com as serpentes espiraladas.
Por outro lado, a serpente Mehen, enrolada em espiral, era uma útil assistente do
deus-sol em sua viagem pelo reino da noite (LURKER 2002, 108). No reino do Alto Egito, a
imagem da cabeça da deusa-abutre Nekhebit aparecia nos diademas dos faraós. Já no Baixo
Egito, era a deusa-serpente protetora Wadjit, simbolizada pela serpente Uraeus (a naja ereta)
107
Informações complementares podem ser acessadas pelo link:
http://www.rastko.org.yu/arheologija/vinca/vinca_eng.html (acessado em 03 de Abril de 2008).
108
Agrupamento de oito divindades que representava o mundo antes da criação, formando quatro casais (BAINES
& MÁLEK 1984, 126).
109
É importante ressaltar aqui mais uma característica dos ENOC, o teriomorfismo. Tanto entre os San da África
do Sul, os Tukano, os Shipibo, etc., como nas culturas de antigas civilizações como a do Egito até a atualidade, o
teriomorfismo aparece, através de descrições ou de realização de imagens.
110
De modo geral, optou-se por manter os nomes na grafia original das fontes consultadas.
163
que aparecia, também conhecida como o olho de Rá (BAINES & MÁLEK 1996, 217; COTTEREL
2001, 54). A presença de ambas no diadema do faraó significava o poder exercido sobre os
dois reinos unidos. Nehebu-Kau era o deus-serpente que guardava a entrada do mundo
subterrâneo. Foi associado ao deus-sol, nadando ao redor das águas primordiais antes da
criação. Era um deus da proteção para os faraós e todos os egípcios, tanto na vida terrena
como na vida após a morte. Ele era responsável pela união do Ka111 com o corpo
(SEAWRIGHT, 2002). Textos mais antigos afirmam que Nehebu-Kau era muito poderoso, não
sujeito a ser atingido por magia ou ser ferido pela água ou pelo fogo. Embora considerado
uma serpente de numerosas voltas nos textos da pirâmide, Nehebu-Kau foi freqüentemente
representado como um homem com a cabeça e a cauda de uma serpente (WILKINSON 2005,
224). De modo similar, na mitologia polinésia das ilhas Fiji, se encontra Ratu-mai-mbula, um
deus-serpente da fertilidade, das colheitas, que governa o mundo subterrâneo e faz circular a
seiva nas árvores.112 Há ainda no Egito a deusa protetora dos partos, Meshkhent. As futuras
mães se agachavam sobre um tijolo para dar à luz, sendo por isso Meshkhent representada
como um tijolo com cabeça de mulher (LURKER 2002, 80). Porém, há representações onde ela
ostenta sobre a cabeça um prolongamento que termina de forma curva, talvez um útero de
vaca estilizado (WILKINSON 2005, 152).
Fig. 136. Nehebu-Kau em forma híbrida ou semi- Fig. 137. Meshkhent, a deusa dos partos e do destino,
antropomórfica, de um homem com cabeça de com seu característico símbolo sobre a cabeça,
serpente. Em representações mais antigas, a provavelmente representa um útero. Desenho baseado
divindade aparece em forma completa de serpente). no existente no Templo de Hatshepsut.
111
É comparado a um duplo, análogo ao perispírito dos ocultistas, que habita o corpo ou mesmo as estátuas dos
defuntos, mas era também independente do homem e podia mover-se, comer e beber à vontade. “[...] Christiane
Desroches-Noblecourt distingue do Ka individual com um Ka coletivo: força de interação contínua,
indiferenciada, universal e criadora” (CHEVALIER & GHEERBRANT 1982, 528).
112
Informação retirada da Encyclopedia Mythica disponível em:
http://www.pantheon.org/articles/r/ratu-mai-mbula.html (acessado 13 de junho de 2008).
164
Fig. 138. Rei Gudea, Ningizzida e o deus Enki. Duas Fig. 139. Ilustração sobre o mesmo tema ao lado,
serpentes emergem sobre os ombros de Ningizzida. facilitando a visualização de Ningizzida.
Fig. 140. As serpentes iguais ao caduceu de Mercúrio. Fig. 141. Estatueta de Gudea, governador de
Lagash, dedicada a Ningizzida. Aprox. 2120 a.C.
Fig. 142. Deusa Serpente de Creta. Fig. 142-a. Górgona ou Medusa – obra de Bernini.
A imagem da figura 143 adiante mostra uma grande escultura de pedra do deus
Vishnu, deitado sobre as volutas da serpente cósmica. Essa grande estátua, esculpida de um
bloco único de pedra negra, de um tipo não encontrado no vale, está situada no templo de
Buddhanilkantha, a 9km de Kathmandu, no pé da montanha de Shivapuri.
Fig. 143. Vishnu adormecido, em Kathmandu. Fig. 144. Serpente cósmica de mil
cabeças, com Shiva e Lakhmi – 1760
DC.
Moisés carrega um bastão que, ao ser jogado na terra, pelo poder de Jeová, se
transforma em uma serpente. Entre as representações hebraicas deste animal como símbolo do
mal, está Leviatã, serpente do mar. No cristianismo medieval, esse monstro foi identificado
com o inferno. Essa concepção de Leviatã procede de Tiamat, o dragão mesopotâmico do
caos (COTTERELL 1996, 120).
Na mitologia nórdica, Midgard se localiza no meio de Yggdrasil, cercado por um
mundo de água ou oceano, e que é habitado pela enorme serpente marinha, um dos três
temíveis filhos do deus Loki, Jormungandr, que circula todo o mar, formando um anel que
impede a passagem de quaisquer seres ao agarrar sua própria cauda, lembrando, assim, a
figura de uróboros. O deus Thor tenta liquidar Jormungandr, porém só consegue esse feito na
batalha final de Ragnarök (o ocaso dos deuses). Thor acaba se afogando no veneno que
167
emanou da serpente agonizante (ibid, 167). As serpentes aquáticas costumam ser criaturas
monstruosas gigantes, tais como o Leviatã ou o monstro do lago Ness, na Escócia.
Os celtas adotaram alguns deuses dos conquistadores romanos, porém, eles
possuíam uma trindade de deusas mães ou da fertilidade, como também do deus Cernunnos,
o deus com chifres, que se encontra em todos os territórios celtas. Em algumas
representações, Cernunnos é visto segurando, com a mão esquerda, uma serpente com cabeça
de carneiro, símbolo da fertilidade (BRUCE-MITFORD 2001, 15).
Nos Estados Unidos, na região de Ohio, há o Montículo da Grande Serpente, cuja
origem ainda é incerta. Inicialmente pensava-se que havia sido construído pelos índios Adena,
devido à existência de vários túmulos dessa tribo por perto.
Fig. 145. Cabeça de Mjölnir, o martelo Fig. 146. Montículo da Grande Serpente, Adams County, perto de
de Thor. Locust Grove, Ohio, 300~400 a.C., aprox. 460 metros de
comprimento.
Biscione é uma divisa heráldica que mostra uma serpente azul engolindo um ser
humano, usualmente uma criança. Tem sido símbolo da família italiana Visconti por cerca de
mil anos. Aparentemente sua origem é desconhecida; entretanto, dizem que Ottone Visconti
baseou-se no desenho existente na capa de um inimigo sarraceno morto por ele durante as
cruzadas.113 Uma imagem similar é encontrada na cultura asteca. Na América Central, em
1.200 d.C, no Império Tolteca, já em decadência na época, havia ainda a recordação de um
grande governante, igual em importância para essa civilização como foi o Rei Arthur para os
ingleses e que se chamava Quetzalcóatl. O nome combina quetzal, pluma da cauda, e cóatl,
serpente, ou seja, a serpente emplumada, evocando assim a similaridade de diversos símbolos
que a serpente representa, combinando os opostos, céu e terra, luz e escuridão, vida e morte,
113
Texto baseado no encontrado no link:
http://www.redicecreations.com/winterwonderland/serpentman.html
168
entre outros. Campbell dá outro exemplo dessa combinação dos opostos e sua difusão por
várias culturas:
[...] uma imagem constante é a do conflito entre a águia e a serpente. A serpente
ligada à terra, a águia em vôo espiritual – esse conflito não é algo que todos
experimentamos? E então, quando as duas se fundem, temos um esplêndido dragão,
a serpente com asas. Em qualquer parte da terra, as pessoas reconhecem essas
imagens. Quer eu esteja lendo sobre mitos polinésios, iroqueses ou egípcios, as
imagens são as mesmas e falam dos mesmos problemas (CAMPBELL 1991, 49).
Fig. 147. “Biscione”, símbolo da cidade de Milão, Fig. 148. Imagem de Quetzalcoatl como uma serpente
fotografado na Estação Central. devorando um homem.
169
Fig. 149. Quetzalcoatl, “deus da vida” na cultura Fig. 150. Deusa asteca da Lua Serpente.
asteca, também venerado pelos toltecas e maias, é
a serpente emplumada.
A uróboros representa, sob forma animal, seja ela serpente, dragão ou peixe, o
círculo. É, portanto, uma representação do tempo ou do “eterno retorno”, indicando que um
novo início coincide com um fim perpétuo numa nova repetição ou, ainda, que o final de uma
via e o seu início são uma só e mesma coisa de um ponto de vista superior (CIRLOT 1984, 164;
BIEDERMANN 1996, 487). A forma circular traz consigo as noções de perfeição e de
eternidade. Equivalente psicológico do incesto, mas do incesto simbolizado,115 o uróboros
assinala a existência de um indiferenciado, de onde todas as coisas saíram e ao qual retornam.
114
Antigo manuscrito alquímico grego.
115
No quadro da fig. 09, a espiral dos Tukano igualmente simboliza o incesto.
170
Fig. 151. Uróboros de um manuscrito grego da Fig. 152. Uróboros em forma mista usada pelos
Biblioteka Narodowa, Polônia. alquimistas.
Fig. 153. Na mitologia egípcia, o jovem sol Fig. 154. Hapy derramando a água de seus
aparece no horizonte, cercado pela uróboros recipientes. Relevo do Templo de Isis, século 2
que estabelece os limites do Cosmo, separando a.C.
o tempo e o espaço tangível do meio líquido
primordial.
A uróboros serviu como inspiração para um químico do século 19. Após ser
conhecida a fórmula molecular do benzeno, não se tinha nenhuma informação sobre a sua
171
fórmula estrutural. Aparentemente, a proporção entre hidrogênio e carbono parecia não estar
correta. Em 1862, Friederich August Kekulé, químico alemão já conhecido pelo seu trabalho
na química orgânica estrutural, ao adormecer na sua cadeira em frente a uma lareira enquanto
estava intrigado com a estrutura do benzeno, sonhou com uma serpente dançando enquanto
mordia sua própria cauda (NARBY 1998, 114). Dessa idéia surgiu a primeira estrutura cíclica
da química - o anel benzênico. Também foi devido a esse fato o seu apelido de “molécula do
sonho”.
Fig. 155. Molécula do benzeno. Fig. 156. Dragão mordendo a própria calda. M. C.
Escher.
116
O autor da tese não teve nenhuma miração com cobras ou serpentes em 121 sessões. As mirações mais
próximas disso foram tentáculos no lugar dos braços e pernas de figuras femininas e uma miração de vários fios
elétricos coloridos, como esses terminais metálicos em forma de garrinha na extremidade, imitando uma boca
dentada, que subiam do ângulo inferior direito da visão para o superior esquerdo em movimentos sinuosos.
172
Fig. 157. A Anaconda ancestral [...] guiada pela divina pedra de cristal
(REICHEL-DOLMATOFF 1981, 79 apud NARBY 1998, 64).
Narby (ibid, 81) buscou pistas mitológicas em relação à serpente cósmica e sua
forma, encontrando imagens de serpentes gêmeas, isto é, em dupla, que aparecem em diversas
representações antigas, como vistas acima, na Suméria e na Grécia. Um caso particularmente
especial é o desenho da serpente dupla abaixo. Não se trata de um animal real, é uma charada
visual, assim como Quetzalcoatl. Os hieróglifos representam, da esquerda para a direita,
“um”; “vários”; “espírito, duplo, força vital”; “lugar”; “mecha de linho torcida” e “água”.
Abaixo do queixo da serpente, está uma cruz egípcia, que representa a “chave da vida”:
Fig. 158. Serpente Cósmica (CLARK 1959, 52 apud NARBY 1998, 102).
Fig. 159. Visão 03: Ayahuasca and Chacruna (1986) – Pablo Amaringo.
117
Original no texto: “The chacruna snake penetrates the ayahuasca snake, producing the visionary effect of
these magic plants” (LUNA & AMARINGO 1999, 52).
118
Em quíchua, Yakumama significa mãe da água (LUNA & AMARINGO 1999, 74).
174
parte mais profunda dos rios. Então, ela se transforma em um bonito submarino.119 Do lado
direito da Yakumama está outra serpente, a purahua, também lançando seu arco-íris pela
boca. A Yakumama é a serpente que se transforma em barco a vapor navegando assim nas
águas dos rios e dos lagos. Todas essas serpentes respondem aos cantos dos icaros destinados
a elas.
119
As serpentes, em muitas mirações descritas pelos índios, servem como meio de transporte nos reinos celestes
ou subaquáticos.
175
Fig. 161. Visão 47: Electromagnetism of the Yana-Yakumama (1988) – Pablo Amaringo.
Mas, além da música das esferas, para alguns povos o cosmo possui cores. Nas
tendas dos soyotes, as iurtas, tenda circular desmontável, a estaca central corresponde ao axis
mundi, “é enfeitada com pedaços de tecido azul, branco e amarelo, correspondendo às cores
das regiões celestes” (ELIADE 2002, 290).
1998, 111). A árvore, no seu sentido simbólico de Árvore do Mundo, também é um símbolo
do axis mundi, por onde o xamã pode passar entre o mundo material e espiritual.
Para os índios desana, o cosmo também possui cores. A cor amarela, considerada
boa, representa a fertilidade (mas não como sexualidade propriamente dita), proteção e a
energia do Sol, a energia cósmica de procriação e renovação (REICHEL-DOLMATOFF 1968,
94). A cor vermelha representa a sexualidade, a fecundidade uterina e a vitalidade do mundo.
Uma coloração amarelo-avermelhada significa a combinação do princípio da fertilidade
cósmica com a fecundidade terrenal, ao conceito de saúde e da “boa vida” (id). Já a cor azul
tem características ambivalentes. Está associada à Via Láctea e aos ENOC, é a cor da
comunicação, do contato com o sobrenatural e extraterreno:
O contato realizado nessa esfera de comunicação pode ser tanto “bom” como “mau”.
O azul também é a cor do tabaco. O pensamento e a reflexão pertencem à cor azul e
está relacionado à cabeça (id).
Na pintura Vision of the Planets, Amaringo mostra uma casa onde vegetalistas
invocam a serpente Sachamama, que lança um arco-íris pela boca, pedindo proteção e cura.
Em vários quadros de Amaringo, existem discos voadores e naves espaciais, elementos
também recorrentes nas mirações com a ayahuasca descritas em depoimentos por outras
pessoas (ver SHANON 2002). Esses OVNIS vêm do espaço cósmico, dos planetas vizinhos,
onde outros seres podem se comunicar. O quadro mostra o céu, com diversos planetas do
179
Sistema Solar, como Saturno, Urano, Netuno e Plutão, que os vegetalistas visitam
freqüentemente por não serem muito distantes. Ainda estão representados cometas e estrelas
pelos quais os vegetalistas podem requisitar para viajarem por distantes pontos do universo.
Uma das naves vem de Marte, um dos planetas representados na pintura e que está dividido
em quatro regiões – uma com grandes vulcões, outra com canyons profundos, uma região de
grandes crateras e finalmente a região das planícies, repleta de crateras gigantes. Outra nave
vem de Vênus. Acima desse planeta está a serpente com chifres huaira-supay, com habilidade
de criar redemoinhos tremendos. Abaixo e à esquerda de Vênus, está o planeta Mercúrio e, ao
lado deste, um túnel que leva até a Suprema Divindade, guardado por dois seres que seguram
um documento em suas mãos, aparentemente com letras em hebraico.
Fig. 165. Visão 25: Vision of the planets (1986) – Pablo Amaringo.
A visão da figura 166 adiante, Searching for the Lost Soul, corresponde à
descrição dada no Terceiro Capítulo das viagens cósmicas dos xamãs Shipibo para libertar as
almas aprisionadas. O quadro mostra uma viagem para Saturno, onde se vê um ser
monstruoso semi-humano, com duas cabeças, chamado Tricabo. Ele carrega serpentes
voadoras muito agressivas. Atrás dele, estão vários pássaros que protegem o vegetalista de
espíritos do mal. No centro, um pouco à direita, está o grande vegetalista ou muraya sobre o
pássaro tibemama que o acompanha em seus caminhos pelo céu. Duas ninfas náuticas o
180
acompanham na busca por um paciente que está com a alma sendo tomada pelos guardas de
um feiticeiro, deixando o corpo inerte. Enquanto isso, o curandeiro observa Saturno e também
algumas cidades localizadas em outros planetas, como a cidade de Jatabel na direita e, no
centro acima, a cidade de Luzidal, que fica em outra galáxia. Amaringo relata que essa
miração ocorreu em 1959, antes de ele se tornar um vegetalista. O nome do curandeiro era
Pascual Pichiri, com o qual ele aprendeu muito.
Fig. 166. Visão 37: Searching for the lost soul (1987) – Pablo Amaringo.
Fig. 167. Encontro (1998 – óleo sobre tela – 80/80cm) – Alexandre Segrégio.
O coelho seguia reto por um longo túnel e, subitamente, afundou-se! Alice nem teve
tempo de pensar em parar: caiu também num poço profundo!
LEWIS CARROL
154). O túnel aparece aqui como o caminho de uma iniciação, do acesso à luz. Eliade (2002,
290) cita várias populações primitivas árticas e norte-americanas onde um pilar é elemento
característico das habitações, que simboliza o axis mundi, o pilar cósmico. Os habitantes
fazem sacrifícios e orações ao pé desse pilar, pois ele é o caminho para o Ser Supremo celeste.
Na Ásia central, onde a característica da construção se alterou, passando de uma tenda cônica
com um pilar central para a iurta, a função mística do pilar foi transferida para a abertura
superior da tenda por onde sai a fumaça (id). Para os ostyaks, essa abertura corresponde ao
orifício da “Casa do Céu”, ou ainda “tubos de ouro da Casa do Céu” ou “Sete Tubos do
Deus-Céu” (id). Os altaicos acreditam que o xamã usa esses tubos para atravessar de uma
zona cósmica para outra (id). Para os tchuktches, o buraco da tenda simboliza o orifício que a
Estrela Polar faz na abóbada celeste (id). Esse simbolismo do axis mundi está presente nas
religiões primitivas por toda parte e em culturas mais evoluídas como:
Egito, Índia (por exemplo, Rig Veda, X, 89, 4 etc.), China, Grécia e Mesopotâmia.
Entre os babilônios, por exemplo, a ligação entre o Céu e a Terra – simbolizada por
uma Montanha Cósmica ou suas replicas, como zigurates, templos, cidades régias ou
palácios [...] a mesma idéia também se expressa por outras imagens, como Árvore,
Ponte, Escada etc. (ibid, 292).
Fig. 170. Alice perseguindo o Coelho Branco na entrada do Fig. 171. Passagem para o Inferno -
120
PURCE 2003, 80.
184
Jung descreve um conto estoniano onde uma órfã, menina que se distingue por sua
obediência e senso de ordem, ao deixar cair sua roca de fiar em um poço, pula dentro dele
para reavê-la, porém não se afoga, entra em um país mágico e inicia sua busca onde, depois
de uma série de provas, é recompensada com uma caixa cheia de ouro e pedras preciosas
(JUNG 2007, 221).
O quadro do pintor renascentista Hieronymus Bosch, Subida ao Firmamento,
mostra as almas sendo conduzidas em direção a uma luz que brilha no fundo de um túnel.
Relatos de algumas pessoas que tiveram experiência de quase-morte descrevem um longo
túnel escuro, com uma luz ao fundo. O túnel é o caminho ascensional das trevas da morte para
a luz do paraíso ou, também, no seu caminho inverso, representando a vagina da mãe, a via
iniciática do recém-nascido (CHEVALIER & GHEERBRANT 1982, 916). Os túneis, tubos,
buracos ou poços, portanto, são passagens associadas também ao nascimento e à morte literal
ou simbólica.
um tabu, que ninguém sabia que era um tabu, e um fluxo de águas começa a brotar.
Elas têm que subir, escapar por uma corda através do buraco no teto do mundo – e
acabam chegando a um novo mundo. Numa história, os xamãs se tornam agressivos
em seus pensamentos e dirigem insultos ao sol e à lua, que então desaparecem, e
todos ficam no escuro.
Os xamãs dizem então que podem trazer o sol de volta; engolem árvores e fazem as
árvores brotar em suas barrigas. Aí se enterram no chão, deixando apenas os olhos à
mostra, e encenam toda uma série de truques xamânicos. Mas os truques não
resultam em nada, o sol não retorna.
Os sacerdotes dizem: “Bem, agora deixem o povo tentar”. E o povo é constituído de
todos os animais. O povo animal se organiza em círculo e começa a dançar e a
dançar. É a dança que faz emergir a colina que se transforma em montanha e se
torna o centro elevado do mundo, do qual surgem todos os seres humanos
(CAMPBELL 1991, 118).
121
Traduzido livremente do espanhol.
122
Maninkari são “[...] invisible beings who created life”) e, literalmente, “those who are hidden” (NARBY 1998,
106).
186
outras de seu sobrinho. Avíreri é um dos tricksters123 gêmeos divinos que realizam as suas
criações através de transformações e são muito comuns na mitologia. O mito Ashaninka relata
que, após ter completado sua obra, Avíreri vai a uma festa, onde se embebeda de cerveja de
mandioca:
His sister; who is also a trickster, invites him to dance and pushes him into a hole
dug in advanced. She then pretends to pull him up by throwing him a thread, then a
cord – but neither is strong enough. Furious with his sister, whom he transforms into
a tree, Avíveri decides to escape by digging a hole into the underworld. He ends up
at a plane called River’s End, where a strangler vine wraps around him. From
there, he continues to sustain to this day his numerous children on earth (WEISS
1969, 108-202 apud NARBY 1998, 107).
Este mito tem especial interesse para Narby e seu estudo comparativo com a
molécula de DNA, como: os gêmeos Avíreri, o Grande Transformador, a dupla hélice do
DNA, a criação da atmosfera respirável (as estações), todos os seres vivos através de
transformações, vivendo em um mundo microscópico (submundo), em células preenchidas
com água marinha (Fim do Rio), a forma de linha, corda ou um cipó estrangulador que se
enrola nele mesmo e, finalmente, mantendo até hoje as espécies vivas do planeta. Isso leva
Narby a concluir que o DNA está na origem do conhecimento xamãnico, que todas as técnicas
usadas para entrar em ENOC levam a um tipo bastante similar de conhecimento, tanto para
um aborígene australiano quanto para um índio ayahuasqueiro. Todos falam de um modo ou
de outro, de uma Serpente Cósmica, sejam amazônicos, australianos ou astecas (ibid, 108).
Os reinos cósmicos descritos pelos xamãs incluem experiências de mundos
submersos nas águas. Amaringo, na obra Muraya Entering the Subaquatic World, mostra um
grupo de vegetalistas no canto superior direito, que bebe ayahuasca para fazer contato com o
mundo esotérico. Abaixo da casa muraya, é recebido por duas sereias, que o guiam para a
cidade dourada situada abaixo das águas, cuja porta está guardada por duas Yakumamas, que
têmpoderes magnéticos na língua para impedir quem tentar entrar à força. Do lado direito,
está a cidade das feiticeiras, circundada pela grande serpente purahua, onde há uma
construção como um minarete ou zigurate. Para entrar na cidade, todos têm que passar pelo
túnel formado pela boca da serpente. No meio da imagem, há um aeroporto para naves
espaciais extraterrenas, com visitantes de vários planetas do Sistema Solar. As moças,
dançando em roda, são da cidade afastada no meio do rio. A cidade é descrita como bela,
perfumada e cheia de coisas indescritíveis, possuindo as mais rápidas embarcações como as
supay-lancha. Na parte superior do quadro, há o grande Palácio Real, onde várias musas
123
Significa aquele que faz truque, um tipo de prestidigitador palhaço ou brincalhão, nesse caso, com poderes
divinos.
187
Fig. 173. Visão 18: Muraya Entering the Subaquatic World (1986) – Pablo Amaringo.
Em uma abertura no céu, entre escuras camadas de nuvens, a pintura The World
of theYakuruna mostra a magnífica cidade brilhante de Atunllipian-llakta. Esta cidade é o
local de encontro dos mestres, onde eles se reúnem para receber a sabedoria dos mais antigos.
As árvores douradas servem de apoio para as redes em forma de serpentes, onde na primeira
descansa o masha-yakuruna. Ele é aliado dos murayas, ensinando-os a resgatar pessoas que se
perderam nas águas profundas. Ele está fumando um cachimbo, feito de um encanto,124 em
forma de sapato. Na rede de trás, está o yana-sacraruna (yana=preto, sacra=mal,
runa=pessoa), um yakuruna que pratica magia negra e é aliado dos feiticeiros. Mais atrás, do
lado esquerdo, está puka-ninaruna, povo da chama vermelha, que vivem nas maiores cidades
subaquáticas e são aliados dos murayas, ensinando-os a controlar enguias, monstros
marinhos, trovões e tempestades. Atrás das árvores, estão reinos subaquáticos de grande
esplendor e beleza. Acima, estão as fadas tian camuri (tian=possuir, camuri=fruta
arredondada de alga marinha). Essas fadas trazem consigo flores medicinais, de forma que o
vegetalista aprenderá seus icaros e curará com eles. No canto inferior direito do quadro, estão
124
Encantos são pedras em forma de serpentes ou de pata de jaguar. O espírito da pedra confere sonhos especiais
ao dono delas. Os vegetalistas dizem que a verdadeira natureza dessas pedras só pode ser conhecida sob o efeito
da ayahuasca (LUNA & AMARINGO 1999, 84).
188
Fig. 174. Visão 19: The World of the Yakuruna (1986) – Pablo Amaringo.
125
Virotes são dardos mágicos usados por xamãs para fazer mal a outro.
126
Sendo banco um tipo especial de xamã. A palavra banco no título está em espanhol, mas possui o mesmo
sentido que em português, significando que o xamã se torna, por sua capacidade, um “assento vivo” para certos
espíritos (LUNA & AMARINGO 1999, 32). Provavelmente algo similar ao “cavalo”, no candomblé, que é o
médium que incorpora as entidades.
189
dessas figuras, estão os cipós de ayahuasca, com ondas de energia poderosa na frente. Acima
se encontram os pássaros chicua (Piaya cayana), guardiões dessa planta, logo atrás um cavalo
negro irradiando “vibrações alfa”.
Fig. 175. Visão 21: The Sublimity of the Sumiruna (1987) – Pablo Amaringo.
Fig. 176. Visão 23: Spirits of Stones and Metals (1986) – Pablo Amaringo.
Grof relata que em algumas experiências pré-natais, em sessões dirigidas por ele,
os indivíduos às vezes reviviam a experiência com muito medo e ansiedade. Figuras
associadas ao vórtice como túnel e ao mundo subterrâneo aparecem:
À medida que esta experiência ameaçadora prossegue e se intensifica, a pessoa pode
chegar a perceber um gigantesco redemoinho que a arrasta implacavelmente para
seu centro. Também pode parecer que a terra se racha e traga o involuntário
aventureiro, arrastando-o até os obscuros labirintos de um aterrador mundo
subterrâneo (GROF 1999, 79).127
6.5. AS ESCADAS
127
Traduzido livremente do espanhol.
128
Bíblia usada pela Igreja Luterana da SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL, 1969, 35.
192
símbolo da escada aparece também em certas alegorias, como a da escada das virtudes de sete
níveis, a da escada dos mártires ou ainda a dos ascetas, cujo primeiro nível representa o
dragão do pecado, que é necessário vencer para ascender ao grau espiritual superior. A
religião ortodoxa incorporou Maria como uma escada ligada ao céu, pela qual Deus desceu
para aproximar-se dos homens. Fora de qualquer contexto religioso, mas na mesma idéia de
elevação, a escada também está presente sobre o peito da mulher que personifica a Filosofia,
considerada uma das “artes liberais”. “A escada mística”, do rito escocês da franco-
maçonaria, compreende dois alinhamentos de sete níveis, é a insígnia do 33 º grau. Esses
níveis representam, de um lado, a Justiça, o Bem, a Humildade, a Confiança, o Trabalho, a
Consciência do Dever e a Nobreza de Espírito, e, de outro, as “artes liberais” que formavam
toda a instrução da Idade Média: a Gramática, a Retórica, a Lógica, a Aritmética, a
Geometria, a Música e a Astronomia (esta classificação comporta, contudo, certas
alternativas). O culto de Mitra, do mesmo modo, conhecia já o símbolo da escada de sete
níveis que, neste contexto, representam os sete planetas (informações do parágrafo
encontradas em BIEDERMANN 1996, 212).
O transe xamânico, durante o qual a alma do xamã viaja entre os espíritos, é
freqüentemente simbolizado como uma escada por onde se pode subir ou descer. Esta escada
retorna à noção da árvore como axis mundi: a bétula na Sibéria conta, assim, com diversas
entalhaduras cortadas sobre o seu tronco, que figuram os níveis a serem escalados, enquanto a
deusa japonesa do sol, Amaterasu, se serve da “escada do céu” para se comunicar com o
nosso mundo (id).
A escada foi freqüentemente associada às esferas celestes da antiga astronomia.
Cada planeta é associado aos metais que lhes correspondem: Saturno ao chumbo, Lua à prata,
Sol ao ouro, etc. No antigo Egito, a palavra para escada era askenpet, designando mais a idéia
de ascensão em geral que de uma verdadeira escada no mundo físico (id). Uma representação
mostra Osíris como “o deus no alto de uma escada”, assim simbolizando sua ressurreição dos
mortos. A pirâmide em forma de degraus de Djoser em Sakkara representava, provavelmente,
uma escada que devia facilitar a ascensão do rei morto ao céu (id). Um amuleto dado aos
defuntos representava uma escada, que era certamente uma expressão simbólica do monte
primordial e da esperança para a vida nova que foi conectada com ele. No “Livro dos Mortos”
(final do capítulo 153), o texto diz que o morto sobe nesta escada que seu pai Rá fez para ele
(LURKE 2002, 116).
A escada é apenas um dos numerosos símbolos que representam ascensão:
193
Pode-se chegar ao céu por meio do fogo ou da fumaça, subindo numa árvore,
escalando uma montanha, trepando por uma corda, por um cipó, pelo arco-íris ou
mesmo por um raio de sol” (ELIADE 2002, 531).
Fig. 178. Ascensão ao céu impedida pela miséria, Fig. 179. O Sonho de Jacó, por William Blake.
doença, volúpia e a morte prematura.
informações ao resto das demais células, por meio de um sistema de codificação. As quatro
moléculas que compõem os degraus da escada de DNA são representadas pelas letras A, G, C
e T. Combinadas em tríades, compõem o código genético, que possui 64 palavras: “All the
cells in the world contain DNA – be they animal, vegetal, or bacterial – and they are all filled
with salt water, in which the concentration of salt is similar to that of the worldwide ocean”
(ibid, 88). A forma espiralada do DNA deve-se a essa presença de água no ambiente. A
serpente cósmica mitológica também se encontra em ambiente aquático. A imagem abaixo
mostra o axis mundi que, para os Shipibo-Conibo, é representado por uma escada. A escada
celeste é circundada pela anaconda Ronín (uróboros). A escada dá acesso à mestria de todos
os segredos mágicos (ibid, 96).
Fig. 180. Escada celeste, axis mundi para os índios Shipibo-Conibo. Desenho baseado nas descrições do
ayahuasqueiro José Chucano Santos (id).
Na obra Spirits Descending on a Banco, Amaringo pinta uma grande espiral azul,
por onde espíritos baixam em um xamã deitado de barriga para baixo, onde, ao centro está,
sentado um rei e, aos lados, dois príncipes. Essa imagem remete a uma série de outras já
descritas neste capítulo, principalmente as que se referem às escadas e às esferas celestes,
onde é possível estabelecer contato entre a Terra e o reino espiritual. O xamã espera para
conversar com os sublimes mestres curadores (médicos) que baixam por esta espiral
(helicoidal). Do lado direito, acima de um vaso com rosto feminino (Fadanat, a poderosa
mulher mágica de mil faces), uma grande cobra d’água, chamada Puka-purahua, emite raios
magnéticos coloridos avermehados de seus olhos, também em formas espiraladas, que podem
atrair qualquer coisa vinda de cima. Esta cobra pode se transformar em qualquer tipo de bote
195
de várias formas. Mais ao fundo, envolto em vórtices, do outro lado do lago, está o terrível
murulhuaira, com o espírito Killo-runa (homem dourado), usando um chapéu vermelho com
fitas amarelas. Do lado esquerdo, a serpente Sachamama, com um arco-íris saindo dos olhos,
também em configuração espiral.
flutuam ao longo da coluna vertebral. As vibrações emitidas pelas mãos são os poderes que o
vegetalista recebe da ayahuasca.
Fig. 183. Visão 05: Receiving Shamanic Powers (1987) – Pablo Amaringo.
Na pintura que se segue, uma escadaria que vem do alto encontra um jardim
gramado, todo florido, com árvores e arbustos em volta. No meio desse jardim, está um Ser
Divino em contato com os Mistérios da Natureza, título da obra. A estrela luminosa, acima de
sua cabeça, toca, através de um raio de luz, uma estrela que parece estar na origem de onde
surge a escada. A cena está emoldurada por feixes luminosos serpenteados sobre um céu
infinito, com apenas uma estrela na parte superior, como se surgisse através de uma abertura
onde é possível observar os acontecimentos que ocorrem ali dentro.
198
Fig. 184. Mistério da Natureza (1995 – óleo sobre tela – 90/70cm) – Alexandre Segrégio.
Ciclo: O caráter cíclico dos fenômenos, com o encurvamento da etapa final dos
processos, tendendo a reunir-se com a etapa inicial permite sua simbolização por
meio de figuras como o círculo, a espiral e a elipse. Em sua condição de ciclo, todos
os processos coincidem (integrando movimento no espaço, transcorrer no tempo,
modificações de forma ou condição), quer se trate do ano, do mês, da semana, ou de
uma vida humana, da vida de uma cultura ou de uma raça.
CIRLOT 1984, 160
A definição de círculo é de uma superfície plana limitada por uma linha curva, a
circunferência, cujos pontos são eqüidistantes de um ponto fixo central. Por analogia, se
parece com uma roda ou disco. Assim como o ponto, o círculo é usado como símbolo da
perfeição, da homogeneidade, ausência de divisão, da totalidade e da eternidade,
representando assim o tempo, como o alfa e o ômega (CHEVALIER & GHEERBRANT 1982,
250). Reforçando a descrição do círculo, principalmente sob seu aspecto de totalidade no
tempo e no espaço, encontramos em Campbell:
O círculo, por outro lado, representa a totalidade. Tudo dentro do círculo é uma
coisa só, circundada e limitada. Esse seria o aspecto espacial. Mas o aspecto
199
temporal do círculo é que você parte, vai a algum lugar e sempre retorna. Deus é o
alfa e o ômega, o princípio e o fim. O círculo sugere imediatamente uma totalidade
completa, quer no tempo, quer no espaço (CAMPBELL 191, 234).
129
VARLEY 1976 apud WARD 2006, 14.
200
Quando um mago quer realizar sua magia, traça um círculo ao redor de si mesmo, e
é dentro desse círculo limitado, dessa área hermeticamente fechada para o exterior,
que os poderes, até aí perdidos do lado de fora, podem ser postos em jogo
(CAMPBELL 191, 234).
Fig. 187. O Círculo Mágico, pintura de John Fig. 188. Templos antigos de forma circular são
William Waterhouse, mostrando o círculo bastante comuns. Acima, foto de Stonehenge.
sendo traçado em um ritual de magia.
A pintura adiante, In Connection with Healers in Time and Space, se refere aos
efeitos da ayahuasca céu, um tipo específico de cipó descrito na seção 1.1 Botânica. A cena
202
mostra diversos xamãs do mundo todos sentados dentro de círculos, bastante comuns nos
rituais mágicos. Todos praticam medicina vegetal e espiritual, por exemplo, a mulher no canto
superior esquerdo é uma mestiça que pratica Rosacrucianismo e produz bebidas com plantas.
A obra está dividida em três seções verticais e descreve a prática de cada um desses xamãs.
As sessões de ayahuasca costumam ocorrer em espaços de forma circular, tanto nos pequenos
encontros xamânicos como nas igrejas do Santo Daime, Barquinha ou UDV.
Fig. 190. Visão 13: In Connection with Healers in Time and Space (1987) – Pablo Amaringo.
Fig. 192. Abertura do Salão. As mulheres caminham na parte interna e os homens na parte externa do círculo.
130
Tinguna se refere a um tipo de emanações eletromagnéticas que podem adotar qualquer forma
animal ou de pessoa e que o vegetalista controla com suas canções (LUNA & AMARINGO 1999, 33). Em muitas
pinturas, Amaringo as representa como espirais.
204
de rapina. No canto superior direito, feiticeiros estão sentados dentro de um círculo, cercados
por tingunas azuis em forma de espirais, dos animais que sustentam esse tipo de doença.
6.7. AS MANDALAS
Em uma mandala budista muito elaborada, por exemplo, aparece a deidade no centro
como a fonte do poder, a fonte da iluminação. As imagens periféricas seriam
manifestações ou aspectos do esplendor da deidade (CAMPBELL 1991, 236).
Em certos ritos budistas, as mandalas são construídas com areia colorida sobre
uma plataforma. Após algumas cerimônias, a mandala é desfeita e a areia é recolhida e,
então, jogada em um rio próximo, para que as bênçãos se espalhem. Essa idéia de
construção e desconstrução serve como exemplo da impermanência.131 A forma circular na
maioria das mandalas remonta à idéia de perfeição. O círculo com um centro, muitas vezes,
representa a idéia de Deus:
Um dos símbolos da perfeição original é o círculo. Aliam-se a ele a esfera, o ovo e o
rotundum – o “redondo” da alquimia. É o redondo de Platão que está no princípio.
[...]
O círculo, a esfera e o redondo são aspectos do Autocontido, sem começo nem fim;
na sua perfeição pré-mundo, precede todo processo, é eterno, porque, em sua
rotundidade, não há antes nem depois, não há em cima nem embaixo, não há espaço.
Tudo isso só pode surgir com o surgimento da luz, da consciência, que ainda não
está presente; aqui ainda domina a divindade não exteriorizada, cujo símbolo é, por
conseguinte, o círculo (NEUMANN 2006, 27).
131
Maiores informações no site: http://www.dharmanet.com.br/vajrayana/mandala.htm (acessado em 20 de
junho de 2008).
206
Fig. 195. Figura mandálica em espiral, na cúpula da igreja de Parma, pintada por Correggio.
Fig. 196. Mandala em areia dos índios Navajos. Fig. 197. Mandala dos índios mexicanos Huichol
criadas sob inspiração do peiote.
Fig. 198 e 199. Mandalas espiraladas pintadas por Fernando Diniz – Acervo Museu de Imagens do
Inconsciente.
Fig. 200. Mandala Chakrasamvara. Fig. 201. Figura mandálica de William Blake.
132
Informações obtidas diretamente do sítio do Museu de Imagens do Inconsciente:
http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/paineis/painel4.html (acessado em 25 de outubro de 2008).
209
133
kiri=algo que cheira mal, como em decomposição e kapu=substância, visgo.
210
danos às suas vítimas. Para curar um paciente infectado, o curandeiro deve conhecer o icaro
apropriado, caso contrário ele não melhorará.
Fig. 204. Visão 39: Recovering a Young Man Kidnapped by a Yakuruna (1986).
Pablo Amaringo.
211
6.8. OS LABIRINTOS
134
Ser mítico meio homem, meio touro (encontro dos contrários), que simbolizava a fertilidade.
213
Fig. 206. Mosaico Romano em Conímbriga, Portugal. Fig. 207. Labirinto em forma de cruz no piso
da catedral de Amiens.
Fig. 208. Labirinto da Catedral de Chartres. Século 13. Fig. 209. Vaso Etrusco do século 7 a.C.
A figura 210 mostra uma moeda de Cnossos representando o labirinto onde vivia
o Minotauro. Devido à lenda grega, também ficou conhecida como espiral cretense, porém,
imagem similar, ou sua imagem espelhada, pode ser encontrada em um vaso Etrusco do
século 7 a.C. (fig. 209), assim como sobre um pilar em Pompéia (fig. 213) e sobre as rochas
de Rocky Valley, Tintagel em Cornwall, na Inglaterra135 (fig. 214). Muito similar à moeda de
Cnossos, os índios norte-americanos Hopi, usam a figura 211 como símbolo da Mãe-Terra,
Tapu’at (mãe e filho), ou como símbolo de nascimento e renascimento. Essas formas
labirínticas são esculpidas nas rochas das mais antigas moradias na América do Norte, nas
aldeias de Oraibi e Shipaluovi, assim como nas ruínas de Casa Grande no Arizona (DOCZI
2006, 25). Como não se trata de uma forma espiral simples, e sim de um desenho bastante
135
Informações do livro The Glastonbury Tor Maze de GEOFFREY ASHE site:
http://www.glastonburytor.org.uk/tor-maze.html (acessado 23 de junho de 2008).
214
complexo, remete à universalidade de certos símbolos, inclusive quanto aos significados que
essas culturas atribuíram ao labirinto, ligando ao símbolo da mãe e dos ciclos da vida. Sobre
outro aspecto simbólico dos labirintos, Campbell comenta:
Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de
todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua
extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar
algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém,
mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao
centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na
companhia do mundo todo (CAMPBELL 1991, 137).
Fig. 210. Moeda de Cnossos, Creta. Aprox. Fig. 211. Símbolo Hopi da Mãe-Terra.
3000AC.
Fig. 212. Outras moedas cretenses. Fig. 213. Desenho encontrado em um pilar em Pompéia,
na casa de Lucretius. 79 a.C.
Fig. 214. Labirinto escavado em Rocky Valley, cerca de Tintagel, Fig. 215. Detallhe do labirinto da foto
Cornwall.1800 a.C. ao lado.
215
136
Uma grande coletânea de desenhos de labirintos de diversas culturas e épocas históricas podem ser vistas no
sítio: http://www.alifeprolifique.com/page3.htm
137
Artista plástica que viveu de 1908 a 1963 e foi muito influenciada pelo surrealismo.
138
Informações tiradas do sítio do pintor:
http://www.L. Caruana.com/ (acessado em 13 de outubro de 2008).
216
Fig. 216. The Rape of Europa (2006 – óleo sobre tela – 80/50cm) – L. Caruana.
Fig. 217. Labyrinth der Sehnsucht (Labirinto do Desejo – 2004 – óleo sobre tela – 80/60cm) Martin Oscity.
139
Nascida em 1910, é pintora, gravadora, escultora e escritora. Fortemente influenciada pelo período surrealista,
foi casada com o pintor alemão, que passou pelo Dadaísmo e Surrealismo, Marx Ernst.
218
Fig. 218. Labirinto – Rudolf Hausner. Fig. 219. Trânsito em Espiral (1962 – óleo sobre
masonite – 100/115cm ) – Remedios Varos.
Fig. 220. Insomnio (1947 – gouache sobre cartolina Fig. 221. Birthday (1942 – óleo sobre tela –
– 28/22cm) Remedios Varo. 102/65cm) Dorothea Tanning.
219
CONSIDERAÇÕES FINAIS
também existe. Principalmente quando os desenhos e pinturas fazem parte de uma cultura que
tenha tradição e sentido simbólico, eles serão repetidos sem que se tenha passado pela
experiência original.
vós” (Lucas 17:21). Por outro lado, as experiências, mesmo que sejam características de
nossos circuitos cerebrais, portanto legítimas, podem ser consideradas apenas como ilusões
em cima de respostas neurofisiológicas normais. Mesmo Lewis-Williams, criador do modelo
aceito no presente trabalho, considera que as experiências são verdadeiras, no sentido de que
acontecem como características específicas de nossos circuitos cerebrais, mas deduz que
sejam apenas ilusões tolas, ainda que não patológicas. De qualquer forma, deve-se considerar
que, para nosso sistema nervoso, nosso cérebro, essas alterações fisiológicas acontecem
realmente, razão pela qual a sensação decorrente na experiência do indivíduo é tratada como
um fenômeno coerente e tão real quanto os que comumente são percebidos no mundo
exterior, às vezes até mais. A diferença é que, no mundo ordinário, os indivíduos interagem de
modo geral e regular com um meio estável e previsível, pois está “todo o tempo ali fora”,
compartilhado simultaneamente com os demais, ao passo que em ENOC as experiências
costumam ser imprevisíveis, momentâneas e passíveis de serem direcionadas, tanto pelas
características do indivíduo, do ambiente ou por um mestre ou um xamã dirigente140
(característica 11 da seção 2.7).
As experiências com psicoativos como a ayahuasca favorecem o afloramento de
emoções devido a sua atuação junto à serotonina (ver seção 1.2). Como pesquisado, esses
componentes emocionais podem ser fundamentais na valoração e aceitação das experiências
que se transformam em práticas de natureza religiosa. Da mesma maneira, o quanto será
encarado como real ou ilusória a experiência dependerá das expectativas, tendências
individuais e culturais estabelecidas no contexto em que o indivíduo está imerso. Um
direcionamento religioso certamente influenciará a experiência visionária do indivíduo e
também norteará parte de sua conduta.
Uma personalidade bastante conhecida e polêmica, que criou muitos centros de
meditação envolvendo psicólogos e terapeutas de diversas tendências pelo mundo, Osho,141
responde uma questão sobre experiências místicas com LSD relatada por um discípulo.
Seriam elas genuínas experiências de Samádi?
It was not genuine. It was not a Samadhi, but a chemical change. The mind can
project anything it likes to project – even an unconscious desire of Samadhi!
(RAJNEESH 1971, 8).
140
Apesar de que influências podem ocorrer dentro de uma religião mesmo sem uso de
psicoativos, bastando a influência da tradição e da cultura mais a tendência natural do indivíduo em aceitar o
sobrenatural.
141
Osho ou Bhagwan Shree Rajneesh (1931-1989) era Mestre em filosofia e deu aulas na
universidade de Jabalpur, Índia, de 1958 a 1966. Mais tarde tornou-se um famoso guru.
224
Deve-se lembrar ainda outro aspecto não menos importante: cientistas que se
ocuparam de terapias psicodélicas, como Stanislav Grof, consideram que o acesso aos
conteúdos pessoais pode acontecer de forma mais efetiva e rápida através do uso de
determinados psicoativos do que através de terapias convencionais. Os diversos depoimentos
de pessoas com experiência com ayahuasca evidenciaram que, muitas vezes, nem mesmo a
presença de um terapeuta é necessária. Algumas respostas, insights, costumam ocorrer
naturalmente, funcionando como um psicointegrador, tomando emprestado o termo de
Winkelman, quanto ao aspecto terapêutico e medicinal tanto físico como psíquico dessas
plantas ou substâncias.
A ARTE VISIONÁRIA E A AYAHUASCA – REPRESENTAÇÕES VISUAIS DE ESPIRAIS E
O presente trabalho abre para uma série de outras possibilidades de pesquisa, tanto
relacionadas com a arte como com os estados não ordinários de consciência, além de instigar
investigações em cima de alguns falsos mitos que circulam o uso da ayahuasca. São
apresentadas aqui algumas direções possíveis.
02 – Defesas do organismo
Apesar da ayahuasca não causar dependência, de não ser tolerada pelo organismo,
não significa que o organismo não se acostume ao uso regular dela ou mesmo que crie alguns
mecanismos de defesa contra ela. Uma das razões para tal suspeita é o fato de que as mirações
costumam diminuir com o tempo. Principalmente os padrões geométricos e coloridos que
227
costumam aparecer nas primeiras vezes em que se bebe o chá. Como descrito na tese, é
provável que o cérebro, como válvula redutora, com o tempo faça fazer valer o seu papel e
tente compensar as ações “desorganizadoras” dos psicoativos, diminuindo a eficácia
visionária deles.
Uma prática que ajuda a facilitar o aparecimento de visões está na prática de dieta
que evite açúcar e sal, carnes, além de abstinência sexual, no estilo que alguns grupos
indígenas costumam fazer. Espaçar o tempo de ingestão do chá também traz resultados.
Naturalmente, dois fatores aí devem colaborar, um deles fisiológico, tornando o corpo menos
“denso” por causa de uma alimentação leve e, outro, mais de natureza psicológica devido ao
direcionamento da intenção, ao respeitar uma dieta para determinado fim. Um estudo maior
sobre a fisiologia cerebral ligada à ayahuasca seria pertinente no caso.
03 – Lavagem Cerebral
Não há nenhuma evidência de que a ayahuasca possa ser usada para algum tipo
de lavagem cerebral propriamente dita. A CIA financiava pesquisas nessa direção com
psicoativos como o LSD em testes realizados com mais de 1.500 pessoas só no exército
(FURST 1976, 99), desistindo por não ter nenhuma evidência que merecesse maior atenção por
parte deles. Porém, não podemos fazer de conta que ela, pelos fortes efeitos psicoativos, não
seja capaz de influenciar as pessoas sob seu efeito. Uma vez que as mirações muitas vezes são
sentidas como reais pela pessoa, o direcionamento cultural, religioso, pode ser muito mais
facilmente assimilado pelo indivíduo que participa de um ritual sob efeito da ayahuasca. Ele
verá o que está sendo doutrinado, dando a experiência necessária para o fortalecimento da
prática religiosa pela crença advinda da experiência, fechando o ciclo necessário para que um
sentimento religioso se estabeleça com forte base. O lado positivo está no poder de cura que
tais sugestões podem influenciar, merecendo também maiores estudos.
ABLUSA, citadas na tese, são alguns exemplos, o mesmo sucedendo nas religiões como o
Santo Daime e a UDV. Os estudos de Stanislav Grof sobre terapias com LSD indicam que os
processos terapêuticos com psicoativos resultam ser mais rápidos e diretos. Talvez, assim
como a experiência religiosa, a cura venha de processos internos, muitas vezes de insights e
reflexões pessoais advindas da experiência com o psicoativo, que pode ser muito mais
impactantes para o indivíduo do que os métodos tradicionais paciente/terapeuta, ainda em
voga.
A peia não deve ser confundida aqui com vômitos e diarréia que podem ocorrer
com a ingestão da ayahuasca. Essas são reações fisiológicas normais que dependem do grau
de tolerância do indivíduo às substâncias presentes na ayahuasca. Jace Callaway realizou
alguns estudos a respeito durante o Projeto Hoasca. A peia que é tratada aqui é a que
normalmente está associada a um castigo espiritual por alguma “falha”, “erro”, enfim, algum
tipo de “pecado” cometido pelo indivíduo em relação a outros ou a si mesmo.
Uma das características do efeito da ayahuasca é a possibilidade de aumentar
muito a sensibilidade do usuário. Se, por alguma forma cultural, convicção pessoal, mesmo
que de modo não claramente consciente, a pessoa sente-se culpada, por exemplo, por mentir,
alguma ação desse tipo pode gerar autocobrança, remorso, inclusive somatizações e, daí sim,
podem resultar em algumas reações físicas que podem incluir vômitos e diarréias. A pessoa
certamente passará por esse “inferno”, sentindo-se mal e associando o mal-estar a suas falhas,
principalmente se esses valores estão presentes no contexto religiosos onde se bebe o chá.
Porém, se a mentira não estiver na “demanda de culpas” por parte do indivíduo, certamente a
experiência negativa ou conflituosa não se manifestará. Ocorre que muitas coisas podem fazer
parte de um elemento universal de comportamento, se é que isso existe no contexto social de
forma tão clara. Mas podemos comparar isso aos estudos sobre psicopatia. Em alguns tipos
dela, suspeita-se que o indivíduo não possui no cérebro circuitos funcionando normalmente
nos lóbulos frontais, responsáveis, por exemplo, por sentimentos de solidariedade e
compaixão. Não há meio de “educar” o psicopata a esse respeito, ele jamais entenderá, seria
como forçar um cego de nascença a “entender” o azul. A peia será um intensificador de culpa,
muitas vezes culpa compartilhada dentro da mesma simbologia cultural, dentro dos padrões
de cobrança em comum entre os indivíduos de uma mesma sociedade ou religião, o que dará
229
confirmações inquestionáveis ao indivíduo de seu erro. Ao passo que, sem essas culpas, a peia
certamente não se manifestará.
06 – Sons e Visões
Mitos como dos Desana estudados por REICHEL-DOLMATOFF (1976) trazem uma
correlação de significados das cores nas diversas camadas do cosmo. Um estudo da
simbologia da cor em ENOC pode ser bastante interessante uma vez que a cor está
relacionada ao principal dos sentidos humanos: a visão. A visão de cores específicas tem
propriedades de estimular áreas também específicas no cérebro? Há algum tipo de cor
associado a “objetos alucinatórios” que se repete de forma igual em vários indivíduos?
09 – As Plantas Silenciadas
Esses fatos pedem uma reflexão quanto à suposta comunicação entre as plantas de
poder, as “plantas professoras”, e o ser humano. Seria mais o caso de se pensar em
“substâncias professoras” presentes nas plantas. Ao ouvir relatos sobre experiências com
psicoativos, como os tratados aqui, pode-se pensar em distorções da realidade, alucinações.
Porém, muitas das visões trazem imagens e cenas tão ricas, quem sabe até mais, que as
encontradas nos sonhos. Esses conteúdos, naturalmente, não provêm das substâncias. Então,
tampouco elas são “substâncias professoras”. Elas são veículo para algo interno, são
facilitadoras desse contato com algum tipo de professor ou “mestre interno” de cada
indivíduo. O que realmente ocorre na experiência?
142
Ver OTT 2004, 711.
143
Tradução livre da língua espanhola.
231
demais pessoas da existência deles. A “serpente falante” do paraíso não é vista por esses
críticos como algo simbólico, é tomada literalmente (mais para zombar provavelmente)
fazendo então ponderar qual a forma menos consistente de pensar, se a científica ou a
religiosa.
Sem a necessidade de entrar em todos os mecanismos negativos que possam ser
encontrados nas religiões, fanatismo, intolerância, guerras, mentiras, mau uso do dinheiro dos
fiéis, etc., realmente há muitos pontos contraditórios e perniciosos, nem por isso podemos
deixar de ver que algo importante aqui está sendo negligenciado. Como foi comentado na
tese, talvez não seja importante saber se a experiência do divino seja ou não um fato que
possa ser considerado real sem nenhuma sombra de dúvida. Porém, sendo uma característica
inata humana, ela não pode simplesmente ser “interrompida” da percepção das pessoas
(nenhum sistema do mundo, nem o mais radical totalitarismo, conseguiu isso até agora). No
caso de tantas técnicas possíveis para se atingir essa experiência, não se trata de uma fé cega,
mas de algo bastante real para os indivíduos e que, antes de ser desprezada, deve ser mais bem
compreendida pela ciência.
Não se trata de ser contra ou a favor das religiões, mas de compreender que cada
ser humano pode experienciar os fenômenos associados ao sentimento religioso de modo
direto, tal como sugerem os ENOC.
232
REFERÊNCIAS
ALBERTI, Verena. MANUAL DE HISTÓRIA ORAL. FGV. Rio de Janeiro. 2004.
ADES, Dawn. O DADA E O SURREALISMO. Editorial labor do Brasil S.A. Barcelona. 1974.
ARNHEIM, Rudolf. ARTE & PERCEPÇÃO VISUAL – UMA PSICOLOGIA DA VISÃO CRIADORA.
Editora EDUSP. São Paulo. 1980.
BAIANOS PRÉ-COLOMBIANOS. Revista Piauí: Editora Alvinegra, n. 14, 02 nov. 2007. São
Paulo.
BAINES, John & MÁLEK, Jaromír. O MUNDO EGÍPCIO – DEUSES, TEMPLOS E FARAÓS –
Volume II. Edições Prado. Madrid. 1984.
BOAS, Franz. PRIMITIVE ART. Dover Publications. New York. 1955. apud DOCZI, György. O
PODER DOS LIMITES. HARMONIAS E PROPORÇÕES NA NATUREZA, ARTE E ARQUITETURA.
Editora Mercuryo. São Paulo. 1990.
BRESLOFF, Paul C.; COWAN, Jack D.; GOLUBITSKY, Martin; THOMAS, Peter J.; WIENER,
Matthew C. GEOMETRIC VISUAL HALLUCINATIONS – EUCLIDEAN SYMMETRY AND THE
FUNCTIONAL ARCHITECTURE OF STRIATE CORTEX. Philosophical Transactions of the Royal
Society B: Biological Sciences. Pages 299-330, Volume 356, Number 1407/March 29, 2001.
DOI 10.1098/rstb.2000.0769. The Royal Society. London. 2001.
233
BRIGGS, John & PEAT, F. David. ESPEJO Y REFLEJO DEL CAOS AL ORDEN - GUÍA
ILUSTRADA DE LA TEORÍA DEL CAOS Y LA CIENCIA DE LA TOTALIDAD. Gedisa Editorial,
Barcelona. 1990.
CAMPBELL, Joseph. O PODER DO MITO. Editora Palas Athena. São Paulo. 1991.
CAPRA, Fritjof. A TEIA DA VIDA. Editora Cultrix. São Paulo, SP. 1999.
CASSIRER, Ernst. LANGUAGE AND MYTH. Dover Publications, Inc. New York. 1953.
CAZENAVE, Michel. ENCYCLOPÉDIE DES SYMBOLES. LGF Livre de Poche. Paris. 1999.
CIRLOT, Juan-Eduardo. DICIONÁRIO DE SÍMBOLOS. Editora Moraes. São Paulo, SP. 1984.
234
CLARK, Robert Thomas Rundle. MYTH AND SYMBOL IS ANCIENT EGYPT. London: Thames
and Hudson. 1959.
COUTO, Fernando de La Rocque. SANTO DAIME: RITO DA ORDEM. 2004. in LABATE, Beatriz
Caiuby & ARAÚJO, Wladimyr Sena. O USO RITUAL DA AYAHUASCA. 2ª Edição. Mercado de
Letras. São Paulo. 2004.
DAMON, S. Foster. A BLAKE DICTIONARY – THE IDEAS AND SYMBOLS OF WILLIAM BLAKE.
Univertsity Press of New England. Hanover and London. 1988.
DAWKINS, Richard. DEUS: UM DELÍRO. Companhia das Letras. São Paulo. 2006.
FRANCO, Mariana Ciavatta Pantoja & CONCEIÇÃO, Osmildo Silva (). BREVES REVELAÇÕES
SOBRE A AYAHUASCA. O USO DO CHÁ ENTRE OS SERINGUEIROS DO ALTO JURUÁ. 2004. in
LABATE, Beatriz Caiuby & ARAÚJO, Wladimir Sena. O USO RITUAL DA AYAHUASCA.
Mercado de Letras. São Paulo. 2004.
FURST, Peter. ALUCINOGÉNIOS E CULTURA. Editora Ulisseia Lda. Póvoa de Varzim. 1976.
GEERTZ, Clifford. A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS. LTC Editora. Rio de Janeiro. 1989.
GOODMAN, Nelson, "WHEN IS ART?" THE ARTS AND COGNITION. Eds. David Perkins and
Barbara Leondar. Baltimore: Johns Hopkins UP, pag. 11-19. 1977.
235
GUIMBUTAS, Marija. The GODDESSES AND GODS OF OLD EUROPE: MYTHS AND CULT
IMAGES. University of California Press. Califórnia. 1982.
WRIGHT, Tony & GYNN, Graham. LEFT IN THE DARK. Kaleidos. London. 2008.
HANCOCK, Graham & BAUVAL, Robert. THE MESSAGE OF THE SPHINX - A QUEST FOR THE
HIDDEN LEGACY OF MANKIND. Three Rivers. Press New York, NY. 1996.
HARNER, Michael. HALLUCINOGENS AND SHAMANISM. Oxford University Press. New York.
1973.
__________. THE WAY OF THE SHAMAN - A GUIDE TO POWER AND HEALING. Bantam
Books. New York. 1982.
HOCKE, Gustav René. MANEIRISMO: O MUNDO COMO LABIRINTO. Editora Perspectiva. São
Paulo. 2005.
HOLFMANN, Albert. LSD - CÓMO DESCUBRÍ EL ÁCIDO Y QUÉ PASÓ DESPUÉS EN EL MUNDO.
Editorial Gedisa. Barcelona. 1980.
153-95. New York Wiley. 1975. apud LEWIS-WILLIAMS, David. THE MIND IN THE CAVE:
CONSCIOUSNESS AND THE ORIGINS OF ART.Thames & Hudson. New York. 2004.
HUXLEY, Aldous. AS PORTAS DA PERCEPÇÃO – CÉU E INFERNO. Editora Globo S.A. São
Paulo. 2004.
IZRE'EL, Shlomo. ADAPA AND THE SOUTH WIND: LANGUAGE HAS THE POWER OF LIFE AND
DEATH. Eisenbrauns. Winona Lake. 2001.
JUNG, Carl Gustav. AION – ESTUDOS SOBRE O SIMBOLISMO DO SI-MESMO. Obras Completas
Vol. IX/2. Editora Vozes. Petrópolis. 1988.
LABATE, Beatriz Caiuby & ARAÚJO, Wladimyr Sena. O USO RITUAL DA AYAHUASCA. 2ª
Edição. Mercado de Letras. São Paulo. 2004.
LABATE, Beatriz Caiuby & GOULART, Sandra Lucia (Orgs.). O USO RITUAL DAS PLANTAS DE
PODER. Mercado de Letras. São Paulo. 2005.
LANGDON, Esther Jean Matteson & BAER, Gerhard. PORTALS OF POWER – SHAMANISM IN
SOUTH AMERICA. University of New Mexico Press. Albuquerque. 1992.
LEWIN, Louis. PHANTASTICA - A CLASSICAL SURVEY ON THE USE AND ABUSE OF MIND-
ALTERING PLANTS. Park Street Press.Vermont. 1998.
Lewis-WILLIAMS, David. THE MIND IN THE CAVE: CONSCIOUSNESS AND THE ORIGINS OF
ART.Thames & Hudson. New York. 2004.
Lewis-WILLIAMS, David & PEARCE, David. INSIDE THE NEOLITHIC MIND: CONSCIOUSNESS,
COSMOS AND THE REALM OF THE GODS. Thames & Hudson. New York. 2005.
LUNA, Luis Eduardo. THE CONCEPT OF PLANTS AS TEACHERS AMONG FOUR MESTIZO
SHAMANS OF IQUITOS, NORTHEASTERN PERÚ. 1983. Disponível em:
http://www.biopark.org/peru/luna-dissertation.html - Acesso em: 10 de Janeiro de 2007.
LUNA, Luis Eduardo & AMARINGO, Pablo. AYAHUASCA VISIONS – THE RELIGIOUS
ICONOGRAPHY OF A PERUVIAN SHAMAN. North Atlantic Books. Berkeley. 1999.
LURKER, Manfred. THE GODS AND SYMBOLS OF ANCIENT EGYPT. Thames & Hudson.
London. 2002.
LUZ, Pedro. O USO AMERÍNDIO DO CAAPI in LABATE, Beatriz Caiuby & ARAÚJO, Wladimir
Sena. O USO RITUAL DA AYAHUASCA. Mercado de Letras. São Paulo. 2004.
MARSHALL, Dorothy N. CARVED STONE BALLS in Proceedings of the Society, 108, p. 40-72.
Antiq. Scotland. 1976/77.
MULLER, Werner. LES RELIGIONS DÊS INDIENS D’AMÉRIQUE DU NORD in LES RELIGIONS
AMÉRINDIENNES. Paris. 1962. apud CHEVALIER, JEAN & GHEERBRANT, ALAIN. DICIONÁRIO
DE SÍMBOLOS – MITOS, SONHOS, COSTUMES, GESTOS, FORMAS, FIGURAS, CORES, NÚMEROS.
José Olympio Editora. Rio de Janeiro, RJ. 1999.
NARBY, Jeremy. COSMIC SERPENT – DNA – AND THE ORIGINS OF KNOWLEDGE. Penguin
Putnam Inc. NY. 1998.
NEUMANN, Erich. HISTÓRIA DA ORIGEM DA CONSCIÊNCIA. Editora Cultrix. São Paulo. 2006.
PEREIRA, Edithe. ARTE RUPESTRE NA AMAZÔNIA – PARÁ. UNESP. São Paulo. 2003.
POE, Edgar Allan. CONTOS DO TERROR. Newton Compton Brasil. Rio de Janeiro. 1995.
PURCE, Jill. THE MYSTIC SPIRAL: JOURNEY OF THE SOUL (ART & IMAGINATION). Thames
& Hudson. London. 2003.
RAJNEESH, Acharya. LSD: A SHORTCUT TO FALSE SAMADHI. I. N. Shah. Indian Press (P.)
Ltd. Varanasi-Branch. 1971.
READ, Herbert. HISTÓRIA DA PINTURA MODERNA. Zahar Editores. Rio de Janeiro. 1980.
__________. BRAIN AND MIND IN DESANA SHAMANISM. Journal of Latin American Lore,
5(1):73-113. Los Angeles. 1981. apud NARBY, Jeremy. COSMIC SERPENT – DNA – AND THE
ORIGINS OF KNOWLEDGE. Penguin Putnam Inc. NY. 1998.
REINHARD, Johan. THE NAZCA LINES – A NEW PERSPECTIVE ON THEIR ORIGEN AND
MEANING. Editorial Los Pinos E.I.R.L. Lima. 1996.
RUDGLEY, Richard. THE ALCHEMY OF CULTURE. British Museum Press. London. 1995.
SAMORINI, Giorgio. BUITI: RELIGIÃO ENTEOGENA AFRICANA in LABATE, Beatriz Caiuby &
GOULART, Sandra Lucia (Orgs.). O USO RITUAL DAS PLANTAS DE PODER. Mercado de
Letras. São Paulo. 2005.
SEAWRIGHT, Caroline. NEHEBKAU, GOD WHO JOINED THE KA TO THE BODY, GOD OF
PROTECTION AND MAGIC. 2002. Disponível em:
<http://www.thekeep.org/~kunoichi/kunoichi/themestream/nehebkau.html> Acessado em 10
de Abril de 2008.
SCHULTES, Richard Evans & HOFMANN, Albert. PLANTAS DE LOS DIOSES. ORÍGENES DEL
USO DE LOS ALUCINÓGENOS. Fondo de Cultura Económica. México, D.F. 2000.
STRASSMAN, Rick. DMT: THE SPIRIT MOLECULE. Park Street Press. Rochester, Vermont.
2001.
VARLEY, Desmond. SEVEN: THE NUMBER OF CREATION. Bell & Sons. 1976. apud WARD,
Geoff. SPIRALS: THE PATTERN OF EXISTENCE. Green Magic. Long Barn. 2006.
WARD, Geoff. SPIRALS: THE PATTERN OF EXISTENCE. Green Magic. Long Barn. 2006.
WEISS, Gerald. THE COSMOLOGY OF THE CAMPA INDIANS OF EASTERN PERU. Ann Arbor:
University Microfilms. 1969. apud NARBY, Jeremy. COSMIC SERPENT – DNA – AND THE
ORIGINS OF KNOWLEDGE. Penguin Putnam Inc. NY. 1998.
WOLFE, Tom. O TESTE DO ÁCIDO DO REFRESCO ELÉTRICO. Editora Rocco. Rio de Janeiro.
1993.
ANEXO I
DEPOIMENTOS E QUESTIONÁRIOS
244
DEPOIMENTOS GRAVADOS
01 – II.
“II” tem 27 anos, sexo feminino. Bebe ayahuasca desde os seis anos de idade.
Depoimento gravado dia 22 de Maio de 2008:
MK: ...tem uma que chame bastante atenção, assim, uma com... que tenha
mirações, assim, de alguma coisa?
II: Tem. Tem uma que... a gente fala, né... que os mestres falam que a gente bebe
o Vegetal para aprender a sair do corpo e tal, né? Daí de vez em quando eu me deparo com
isso... o normal é sentir medo, né? Ficar fora... é sempre diferente uma da outra, né? Ai é
estranho. Então, e uma vez eu resolvi me entregar... ah, não estava tocando nenhuma música,
então vamos ver. E ai estava bem forte. E eu comecei... eu estava de olho fechado, ai eu
comecei a... meu pensamento assim, toc, toc, toc, dai começou subir em espiral, vup, vup,
fazia até o barulho assim. Ai eu abri o olho e continuava, e continuava, ai eu fui, ai eu me
entreguei, né? Falei “é que eu não vou morrer, então tudo bem, vamos ver o que acontece,
né?” Então que eu resolvi ter essa experiência. Aí foi indo, foi indo, mas eu estava tranqüila
com o que estava acontecendo, aí, foi subindo essa espiral assim, de repente, isso dentro de
mim, de olho fechado, quando eu abri o olho, vendo assim por dentro de olho fechado, no
meu corpo, né? Quando abri o olho assim, ficou um silêncio absoluto, não havia nada, só
tocando uma música, lá na sessão estava acontecendo, mas eu... estava um silêncio absoluto e
eu via assim, estava no universo, vendo a Terra lá embaixo, ai passava, me lembro até...
passava, digamos, só um cometa, uma coisa, uma coisa absurda, absurda, mas um silêncio
245
absoluto. Então tudo, tudo acontecia assim, ao meu redor, e eu via tudo, eu via todos os
cantos, assim, inclusive atrás de mim... mesmo, ... minha cabeça está aqui, mas eu via tudo,
sem essa dimensão de eu estar... por isso que eu tenho o pensamento que eu sai do corpo esse
dia, eu conseguia ver todos os ângulos, né? Eu ai vi aquilo assim, fiquei um tempo achando
aquilo lindo e emocionada. Depois do que aconteceu e eu voltei, ai eu voltei para a realidade e
passou e... foi assim, pra mim, quando eu estava na experiência, passou muito tempo. Parece
que eu vivi muita coisa assim, aconteceu muita coisa, era muita coisa se movimentando, mas
quando eu me lembro que eu olhei, passou coisa de 30 segundos, 1 minuto, sei lá, então uma
coisa assim muito diferente, difícil, estranha de se imaginar. Então essa foi a que mais me
marcou e isso foi quando eu tinha uns 14 anos e foi a mais interessante pra mim.
02 – AA.
“AA” tem 34 anos, sexo masculino, bebe ayahuasca aproximadamente há 2 anos.
Depoimento gravado do dia 09 de outubro de 2008:
MK: Pois é... eu me lembrava dessa que você tinha falado...
AA: Eh, na verdade assim a... a burracheira sempre foi muito forte pra mim. A
primeira vez que eu bebi demorou muito para vir. Umas duas horas e meia. Pra chegar o
efeito, para começar sentir o efeito. Aí, a primeira coisa... eu pensei que não vinha mais,
fiquei pensando o que eu iria dizer para as pessoas que não tinha acontecido nada. Daí, de
repente eu comecei a ver uma tela pequenininha, como se fosse uma tela de umas dez
polegadas e um monte de cavalos correndo dentro daquela telinha. Aí eu olhei, eu pensei,
poxa, isso tudo é fruto da minha imaginação, né... eu com os olhos fechados... se é fruto de
minha imaginação eu posso fazer a tela crescer um pouco mais. Ela virou um telão na minha
frente. E eu fiquei ali encantado com aquilo e vendo, era como se fosse umas carruagens com
milhares de cavalos em todas as direções. Eu pensei, puxa, é da minha imaginação, né? Que é
que eu estou fazendo aqui fora? Daí aquela tela caiu sobre mim... e na queda eu entrei e
comecei a voar, sobrevoar aquela área, daí eu via rosas assim, jardins de rosas e achei muito
interessante. É, porque eu via tudo aquilo, mas eu não tinha assim, não estava me sentindo
mal nem nada. E eu olhava muito de cima as rosas. E daí eu pensei “eu quero ver mais de
perto” e eu desci voando assim e olhei as rosas bem de pertinho e as rosas eram ... eram
focinhos de porcos! As pétalas das rosas eram focinhos de porcos e ficavam... e eu escutava
um barulho constante, eu acredito que fosse a chuva que caia no momento, mas para mim era
o porco fazendo o barulho dele, oinc, oinc, oinc, oinc, oinc, sem parar. Aí fiquei olhando bem
de perto, meu deus o que seria isso? Daí eu identifiquei que era o porco. Daí eu ... eu lembrei
que o porco era uma situação que eu havia vivido na minha infância, por ter visto uma foto de
uma cena sexual de um porco com uma mulher e eu tinha uma trava psicológica com aquilo,
até na maneira como eu via sexo, como eu via as mulheres, e eu consegui identificar que...,
aquilo estava me puxando para aquela situação. Aí eu revi aquele contexto, consegui tirar
aquela trava psicológica que eu tinha em função daquilo. E dali eu passei a percorrer outros
lugares e eu via várias situações assim de problemas meus de infância, traumas, algumas
coisas que eu tinha passado de mal assim, mas que eu nem lembrava. E que talvez eu, me leva
a crer que me travava psicologicamente e que me dava algum tipo de recalque. Consegui
identificar e eu pegava como se fossem animais, monstros, bichos, é ... ninava eles nos meus
braços assim, e daí tirava como se tirasse uma pedra no meio do caminho. Achei isso bem
interessante. E daí, a partir desse momento, depois que eu vivi tudo isso, eu comecei a ordenar
toda a história da minha infância, e eu conseguia ver os fatos que aconteciam e parecia que eu
estava colocando num arquivo mesmo. Estava arquivando tudo em ordem de uma maneira
246
que eu pudesse rever, verificar. E eu sentia muito assim a falta de presença masculina na
minha vida e eu via, depois dessa fase da burracheira assim, eu comecei a ver um homem que
a imagem me lembrava muito Santos Dumond, muito bem trajado, de chapéu e bigode, uma
posição assim, uma presença de um homem mesmo. Daí eu comecei a olhar, não, mas esse
homem ai deve ser deve ser um ... presidente, né, um... ou dono de uma grande empresa e
comecei a associar a figuras que eu achei que fosse um homem daquela posição, né? Com
aquela vestimenta ali daquela forma. Aí eu fiquei analisando, eu pensei, puxa esse homem
deve ser um rei, né? E daí veio vindo essas imagens pela falta de uma presença masculina
buscava naquela imagem quem poderia ser. E fiquei naquela. De repente veio uma voz assim:
esse homem é você. É você que está no comando, né? É você que coordena, é você que faz as
coisas acontecerem e eu senti uma coisa interessante, me senti bem. E a minha vida depois do
uso da ayahuasca nunca mais foi a mesma. Tive várias vezes... várias vezes eu bebi o chá,
várias vezes eu tive burracheira e sempre tenho coisas boas assim, coisas interessantes. Já tive
várias mirações assim que eu não consigo às vezes definir bem o que que significaria, como,
por exemplo, uma situação em que eu via claramente tubarões no mar e esse mar dava acesso,
chegava a uma praia num fechado de montanhas. Então eram só rochas em volta e tinha um
túnel naquelas rochas, e naquelas rochas surgiam onças. E as onças não tinham nada pra
comer. No mundo só existiam os tubarões e as onças. E as onças só se alimentavam se elas
pegassem os tubarões e os tubarões só se alimentavam se eles pegassem as onças. Então era
uma disputa que a onça tinha que ir lá, pegar o tubarão e o tubarão esperava que a onça viesse
para ele poder se alimentar também. Quem puxasse o outro primeiro para seu território vencia
a luta. E achei isso fantástico e a maneira como a gente vê as coisas, a maneira como a gente
tem uma resolução diferente assim do que a gente vê aqui fora. Essas cenas, por exemplo,
essa não, mas normalmente quando eu estou envolvido, que essas cenas de infância, essas
coisas, eu vejo tudo como se fosse massinha de modelar. É interessante que parecem
animações em massinha de modelar. As outras situações não, mas essas, principalmente de
infância, eu vejo dessa forma. Não sei se é a maneira como eu prefiro enxergar... talvez ...
MK: Talvez a associação com a infância ...
AA: Talvez a associação com a infância... e teve uma cena interessante também
que, sempre na União do Vegetal eles dizem que se você sente que não está numa boa
situação que você chame o Caiano, né? E eu chamei. Chamei o Caiano. Eu estava assim numa
situação que eu estava ruim, não estava me sentindo bem, e eu falei assim, poxa, se é pra
chamar, vou chamar, né? Vou ser induzido e falei, pensei... E nisso eu senti uma força me
fazendo voar e eu voei muito alto assim, fui pra muito alto e parei numa cúpula de cristal pela
cintura. Parei na cintura assim, como se estivesse uma rolha numa garrafa, como se eu
estivesse ali travado. Daí eu olhei para o céu era um azul assim, azul que eu não consigo
descrever. Todo o teto de cristal com aquele azul, claro assim, calmo, né? Aí a voz, que eu
julguei ser do Caiano me disse: “Esse aqui é o ponto máximo, esse aqui é o paraíso”. Uma
coisa assim, né? “E aqui é o teu lugar, o teu refúgio, então calma, está tudo bem”. Daí, nisso,
eu me desprendi daquilo e cai, cai daquela altura que eu estava até voltar a mim, ao momento
que eu estava ali, a consciência. Interessante que, quando eu bebi o chá, eu sabia que ia ter um
efeito, sabia tudo ... primeira vez. Mas eu não tinha idéia da força, do quanto era real aquilo. E
quando começou o efeito, depois de um tempo que eu tava lá, no jardins das rosas lá, (risos).
eu pensei “nossa, eu devo estar caído”, “devo estar passando mal”. Meu corpo não deve estar
comigo. Aí eu tomei a consciência e falei assim, “não, eu vou verificar”: aí mexi uma perna,
mexi a outra, mexi as mãos, aí abri os olhos, olhei assim, “não, eu estou bem, estou no
controle de mim mesmo”. Aí fechei os olhos e continuei a jornada, isso automaticamente,
sentia que estava bem e já continuava... depois disso já peguei confiança, né? Consegui dar
mais liberdade para os pensamentos...
247
MK: O interessante é que as descrições que você deu agora batem com muita
coisa que estou vendo, cristal, cúpula, a passagem de um mundo ao outro. É o estar até entre
esses dois planos... o túnel que você falou... o túnel tinha a ver com as onças?
AA: Com as onças e os tubarões...
MK: E os tubarões. Mas onde, onde é que se encaixava o túnel?
AA: Era a única passagem que chegava à praia. Era um túnel que devia dar para
uma floresta...
MK: Onde estavam...
AA: ...as onças, e as onças chegavam só naquela situação ali. Era a passagem para
que elas tivessem encontro com os tubarões.
MK: Tá... bem interessante... no momento dessas experiências é muito comum
isso.
AA: Eu tive, eu tive visões assim, eu já conhecia Ganeesha e eu vi Ganeesha
também durante uma miração... é... ele estava na minha frente assim, foi interessante... e...
mas isso talvez por um pouco de já ter trabalhado, pensado, imaginado, meditado assim,
ouvindo mantras com Gannesha e essas coisas assim. E uma figura interessante também, foi
essa referência da gente acabar encontrando a nós mesmos. Eu... essa imagem desse homem
que eu falei, no fim eu senti que era eu mesmo, né... teve também uma situação em que eu via
uma letra, uma letra assim, e eu tentava definir quem era, aquela letra, né, o que que era
aquela letra. E eu tentava ver um A, por, pelo meu nome ser “AA”, e não via, eu via o E, né. E
eu pensava, mas, é... Emerson, né... e ficava puxando e era uma letra estilizada assim, gótica e
eu pensava... daí no fim que foi apareceu EU! Depois de uma luta tremenda assim de
pensamento e ficar naquela situação, era o EU. E... interessante que eu olhava essas letras e eu
via elas em várias situações diferentes, eu via elas no alto, eu via elas totalmente... é...
estragadas assim, como se estivessem é... podres. Ai depois eu vi uma situação que tinha um
rio de pedras e elas estavam embaixo do rio... é... no rio assim e dava pra vê-las com um trilho
de trem passando por cima delas. E eu via a água assim, cristalina do rio. Uma situação
interessante... e até vi elas numa posição grande assim e dai defini como sendo o Eu, né, esse,
essa palavra EU que representaria minha pessoa, assim. Foi uma das situações que também
me remetia a isso. E teve uma outra que eu nunca consegui explicar direito, mas era uma
imagem que eu conhecia, eu ficava lutando e ela ficava fazendo junção com esse Eu
estilizado. Que era como se fosse um rei de uma carta de baralho, assim. Era perfeito assim
aquela imagem e eu pensava que aquilo tinha um significado especial, tanto que eu cheguei a
cogitar a conversar com o pessoal da União do Vegetal pra ver se aquilo tinha um simbolismo
dentro da União. Por uma situação assim de ser... de... de... na própria... burracheira assim,
aquilo vinha na minha cabeça e pensar... “pô, fale com tal pessoa, fale com esse mestre, fale
com essa pessoa sobre isso”, né. Como se fosse uma mensagem, uma, uma, talvez uma senha,
uma coisa assim. Achei interessante isso. E isso bateu na minha cabeça várias vezes. E o
interessante também que, eu já conversei com outras pessoas a respeito dessa, desse fato que
eu vou citar agora, e as pessoas, algumas me disseram “não, eu reprimi isso”, sabe, mas eu
não reprimi, o lado sexual. Quando eu tava na, na primeira burracheira, eu comecei a, a ver
mulheres, ver homens e, e daí eu sentia em mim muito tesão assim. Fiquei excitado e eu
deixei fluir aquilo e eu me vi fazendo, tendo relações sexuais com elas e foi interessante
porque a sensação e como se eu tivesse realmente fazendo, sabe. De uma forma muito forte. E
eu já comentei isso com outras pessoas e as pessoas “não... eu até quase senti, mas não
deixei”. E eu sempre fui muito de me entregar na burracheira assim, eu deixo, deixo que vá,
né, na, nos caminho que forem. Eu até já fiz isso de beber o Vegetal, fora da União do
Vegetal, né, para não ter um sentido tão regrado, que às vezes me limita um pouco no
pensamento. Por exemplo, às vezes você está numa situação lá desenvolvendo um
pensamento ou uma situação e daí, às vezes uma chamada ou alguém que fala alguma coisa
248
e... leva você por um outro caminho. Isso foi interessante, mas não teve uma variação muito
grande do que eu vejo lá, sabe. Mesmo sozinho a, a burracheira leva para esse lado da, dessa
situação de você ver coisas, mas eu entendo a, a maneira como eles falam de que o Vegetal é
iluminógeno e não um alucinógeno, né. Por eu nunca ver nada fora da, da realidade, fora da,
da situação das coisas normais assim que a gente vive. Coisas extraordinárias sim, mas não
nada assim, que me, que talvez é... eu visse como uma loucura ou como coisa assim... é
interessante...
MK: Acho está ok... valeu mesmo...
03 – MM.
“MM” tem 46 anos, sexo feminino, bebeu ayahuasca 4 vezes, sendo as duas
iniciais na UDV. Depoimento cedido no dia 14 de outubro de 2008:
MK: Então... me fale das tuas experiências. O que você achar mais marcante...
MM: Eu acho que a coisa... algumas coisas são bem marcantes, mas a primeira
experiência teve um peso muito legal porque eu tinha... eu tinha medo, claro que eu tinha
medo... e o fato (risos) da experiência ter sido muito boa fez eu me sentir muito bem porque a
sensação, as coisas que eu visualizei foram muito positivas. O fato de eu ter conseguido ver,
ou sentir, ou perceber o que seria o nascimento dos meus filhos, com feixes de luz que saiam
de mim, que eu entendia aquilo como a materialidade, do amor, é uma coisa muito marcante,
não tem como não ser, aquilo foi muito emocionante. Eu lembro de sentir na burracheira as
lágrimas de emoção escorrendo pelo meu rosto, a capacidade de você sentir uma lágrima...
realmente sentir... você estar totalmente disponível para sentir uma gota d’água que rola no
seu rosto. Aquilo foi marcante mesmo... o sentimento do nascimento dos filhos... E é assim, é
quase como se eles saíssem... ELES... esses que são agora, nascessem direto assim, a relação
direta do nascimento com o estado que eles são hoje adultos... ou eram naquela época, mas
quase, também adultos já. Então isso é bem bacana.
E as visões, aquelas outras visões abstratas... que eu chamo de abstratas, não são
abstratas, são, na verdade padrões repetitivos que eu tive bastante, são muito bonitos, que se
repetem em cores e movimentos, uma coisa significativa que eu acho que aconteceu nas
experiências, nas diversas, em todas as experiências que eu tive. Foi um sentimento de se
deixar levar pela experiência do Vegetal. E a forma que eu vi isso foi como você entrar em
um ralo mesmo, mas não uma coisa negativa, parece que entrar no ralo é ruim, não, é se
deixar levar, e isso pra mim tinha um movimento circular para baixo, assim, que poderia ser
de aprofundamento, bem um ralo vem – vumm – daí você entra num estágio diferente da sua
vida ordinária, você sai daquilo. A a experiência começa dessa maneira mesmo, pra mim, em
todas as vezes que ela aconteceu, vem assim: quando eu sinto, a manifestação, sei lá,
burracheira, a coisa chegar ela implica nesse aprofundamento, nesse movimento que em todas
as vezes eu relacionei como entrar no ralo mesmo e que, por medo e por outras razões eu
sempre tentei reagir e daí dizia “não, mas o que eu estou fazendo” e, no momento seguinte,
era relaxar e deixar entrar no movimento, entrar nessa profundeza, digamos assim. Houve
uma experiência, das que ficam, das imagens que tão presentes na minha cabeça, houve uma
experiência em que eu... o que foi recorrente foram imagens como padrões chineses, tecidos
chineses, com dragõezinhos em vermelho e preto, que... (risos) que eu me encantei pela
beleza mesmo, pela coisa, pelo bonito, pareciam padrões, pareciam tecidos, todos com
referências da... que se conhece das imagens que vem da China... Daí... tem a experiência que
foi minha segunda ida na União do Vegetal, que me deixou assim, meio traumatizada dentro
das minhas neuroses, sei lá, mas que pode ter sido extremamente influenciada por ter
acreditado, a um nível mais profundo do que eu consigo imaginar aqui racionalmente, naquilo
249
que o Mestre falou da necessidade de andar numa determinada direção dentro do templo que
seria a circulação da energia mesmo dentro do templo e o que eu visualizei... eu visualizei
dentro da burracheira foi assim, eu não conseguia me livrar dessa impressão, foi da energia
entrando limpinha pelo lado direito do templo e circulando e sendo gradativamente suja
(risos) e saia muito suja. E eu estava numa posição dentro do templo em que eu estava mais
próximo do que seria a saída da energia suja. E eu fiquei muito impressionada negativamente
com isso, me sentindo muito contaminada e naquele momento eu tive uma impressão meio
desagradável do fato de estar compartilhando aquela experiência num ambiente com muita
gente diferente. Não me foi agradável isso. Nas duas situações eu tive vômitos. Pra mim isso
não chega a ser uma coisa perturbadora porque eu tenho facilidade em vomitar, não relaciono
isso necessariamente: estar com enjôo não é passar bem. Mas vomitou resolveu, pelo menos
no meu caso isso acontece assim. Sempre a presença dos padrões... ah, teve aquela vez que eu
vi, por muito tempo, eu vi diversos padrões que seriam de artesanato indígena, que seriam
formas meio geométricas e repetitivas... Lembrei! Eu caminhava no meio da floresta e dentro
da floresta esse contato, esse contraste de folhas com céu e olhando pra cima e olhando para
as árvores, aquilo foi se transformando gradativamente num artesanato tipicamente indígena.
É como um trançado... E na minha imaginação eu fui fazendo aquele trabalho assim com uma
habilidade muito grande das mãos e fazendo aquele trabalho como um índio mesmo.
Realizando aquilo, repetindo aqueles padrões geométricos e sempre iguais e muito bem feitos,
muito perfeitinhos e que me pareceu como uma certeza de que alguma habilidade manual que
eu tenho, vem dessa experiência de eu ter feito este artesanato, de ter feito... de ter vivido isso
efetivamente, como se eu tivesse trazido para essa experiência de vidas anteriores e ter sido
um índio, ou uma índia, que fazia esse artesanato... acho que uma índia (risos). É... voltando
(risos)... falando tudo assim... mas voltando pra essa sensação de se deixar entrar no ralo, uma
das experiências que marca também, é o fato de que na primeira, meu adventício, a primeira
vez que eu experimentei o vegetal, que eu bebi o vegetal, minha filha estava presente, estava
junto, e houve um momento em que ela se levantou para ir ao banheiro. Nesse momento eu
praticamente saí da minha burracheira e fiquei num estado comum prestando atenção nela, até
que ela voltou. Daí no momento que ela voltou e que eu me certifiquei que ela tava bem,
como estava vivendo até aquele momento uma experiência bem agradável, daí, de novo, foi
bem isso, volta a entrar no ralo, volta a passar, volta ir para as profundezas e continuou, na
verdade a experiência continuou praticamente dali... a experiência positiva manteve a mesma
seqüência (risos), não mudou o canal assim. Acho que é principalmente isso. Experiência
pequena assim, não tem muitas...
MK: Não, está bom, valeu, obrigado!
04 – NN.
“NN” tem 43 anos, sexo masculino, bebe ayahuasca há quatro anos.
NN: [...] eu lembro assim, de uma assim, foi naquele preparo lá do “Mestre 1”,
não sei você... você estava lá...
MK: huhum...
NN: então, eu já tinha trabalhado um tanto, né? Daí na hora da sessão, bebendo o
vegetal, ai eu lembro que no comecinho da sessão eu tinha comido uns doces antes ali (risos),
então já deu um enjôo. Bom... daí... está cheio, né? Eu vou aproveitar, eu vou sair lá fora. Daí
eu sai ali no cantinho, falei eu vou aqui, tranqüilo eu vou, vou embora, vou fazer o que tenho
que fazer aqui e já volto lá pra dentro. Mas daí entrei numa situação que eu não conseguia ver
mais onde eu estava. Eu fui pro lado escuro ali pra trás da casa do preparo, no meio do escuro
e daí eu não conseguia mais achar o caminho pra voltar. E a hora que eu dava três, quatro
250
passos, de novo, eu parava e vomitava mais um pouco (risos) e foi assim, até um tempo assim,
até eu conseguir ver aonde eu estava. Ai, eu senti a subidinha, eu fui subindo a subidinha...
falei “não, agora vou voltar pra lá”, eu não conseguia parar, daí começou a dar dor de barriga,
né? Tinha que ir no banheiro. Daí cheguei no banheiro (risos) bateu o desespero, né? Porque
eu não conseguia mais sair do banheiro. Eu só escutava as pessoas passando mal e eu, parecia
que aquele banheiro tinha fechado em volta de mim. Eu tava assim, com os cotovelos em
cima dos joelhos, cabeça abaixada e só escutava neguinho entrando e vomitando e não sei o
que, e aquilo começou a crescer em mim assim e eu fazendo por baixo e vomitando por
cima... e fazendo por baixo e vomitando por cima... a situação foi crescendo, foi crescendo,
começou uma voz dentro de minha cabeça: “Viu trouxa! Você pensa que você güenta?”
(risos) “O que você está fazendo aqui? Veio só pra apanhar?” (risos) E daí eu fiquei
desesperado, queria sair correndo de lá! Falei “ah, óóó, pelo amor de Deus deixa eu sair daqui
que eu... ahhhhh, meu, eu vou embora (risos), e a voz ficou falando (risos) e eu fiquei ali um...
sem brincadeira, uma hora e meia. Não conseguia sair dali, não conseguia levantar, não
conseguia tirar o cotovelo do joelho e...
MK: Puuuxaaa!
NN: ...eu nunca tinha passado por aquilo, já fazia três anos e pouquinho que eu
estava bebendo o vegetal e a primeira vez que me meteu numa situação dessa. O que me fez
sair dessa situação foi que chegou lá um irmão e os banheiros já estavam todos ocupados, aí o
cara começou: “Pelo amor de Deus... alguém aí... que esteja podendo sair... porque que estou
precisando... e eu tenho que voltar pra trabalhar lá nas panelas...” (risos) Aí eu criei uma força
e falei, “não...”, olhei no relógio, mais de uma hora e meia que eu estou sentado aqui (risos)
está na hora de sair, né? E sai meio que me escorando ali (risos), pra me limpar, daí me
limpei, mas sem força, sem força, sem força... daí sai lá pra fora, procurar... falei “vou
procurar o Mestre Assistente e vou pedir pra mim ir dormir... porque eu não estou
agüentando...” Aí, a hora que fui andando assim, fui dando uma melhorada, né, mas ainda...
(risos) aquele negócio, falava assim “pô, não estou agüentando com minhas pernas, não estou
agüentando com meus braços, num estou... (risos)”. E foi assim eu... sentei na escada em
frente da casa do preparo. Sentei na escada e fiquei ali acho que mais uma meia hora sentado.
Daí o mestre assistente veio e falou pra mim voltar lá pra dentro. Eu falei pra ele: “não, não
consigo...” Então ele falou: “Não, então pega uma cadeira e senta aqui na beira, sai do
sereno...” Mas eu vi algumas coisas ali, sabe, que, meio, sabe [...] espero definir, eram mais
vozes assim, parecia que eu estava... o cara... entrou na peia mesmo, estava apanhando (risos)
é... falando tudo que é coisa vacilada que você possa imaginar, tava falando na cabeça do
peão, né. Chamando de idiota pra cima, o cara está lá sofrendo (risos) e toma o chá e... é pra
sofrer... e toma o chá e... Eu sei que eu falei: “Olhe... se eu sair dessa eu não volto mais pra
cá!” (risos) Claro que no outro dia esse cara tava lá de volta, né? (risos) Acabou a situação,
acabou a questão ali... No mais, deu uma dormida, espera o preparo, continua preparo, bebeu
mais vegetal e continuou. Foi uma situação assim que, eu mesmo, estou para compreender até
hoje... (risos) Porque... não é o normal, né? Não é o normal do que vinha... vem acontecer...
Quando eu bebi o vegetal foi a única assim que eu, quando eu vi assim o cara ficou de quatro
mesmo (risos) assim, de lembrança eu lembro das vozes falando algumas coisas que o cara
estava lá e, se eu estava daquele jeito, eu estava fazendo com os outros, né? “Como é que
você está fazendo isso daí pros outros, os outros vão beber isso ai” (risos) né? Era preparo,
né? Então estava levando uma peia mesmo, né? Daí comecei a pensar nos meus filhos...
aquele negócio, né? Se eu estou assim, cadê meus filhos aí? Eles bebem esse vegetal também
(risos) foi uma situação. Mas depois a gente vai calmando e percebe que dor de cabeça está ai
dentro mesmo, né? Beber primeiro o vegetal e depois vai passar para o outro e, aquele
negócio viu, o cansaço, já estava meio extenuado, dois dias já sem dormir, cansado, esse tipo
de coisa (risos) imagino que seja, né!?
251
05 e 06 – PP e GG
Entrevista realizada em conjunto com dois artistas no dia 17 de novembro de
2008.
“PP”, 52 anos, bebe ayahuasca há cinco anos e “GG”, 38 anos, bebe ayahuasca
há cinco anos:
MK: ... no seu caso assim, o que você lembra que tenha marcado (se dirigindo ao
PP), com tua experiência com o Vegetal...
PP: (pensando...) a primeira vez que eu bebi o Vegetal... essa é boa cara... essa é
boa... eu olhava as pessoas assim cara... olhava para todo mundo, lá com o mestre “1” lá no
[...] olhava para as pessoas, a burracheira alta, alta assim, né? Já conhecia os efeitos de outras
drogas. As pessoas tinham uma máscara, só apareciam os dois olhos.144 Faz assim com as
mãos... é assim, eu só via lá dentro dos olhos da pessoa, sabe? Uma cor esverdeada, uma
máscara, e só via os dois olhos da pessoa, não via a feição de pele, eram todos iguais, só via
os olhos a vista. E vi isso na sessão direto. Aí teve um momento que eu sai para fora... a hora
que eu sai assim, me puxava pelo lado direito145, eu ia de pé assim, rodando ... de lado assim
(risos). Daí sai lá fora e o mestre “2” já saiu comigo. Caminhava assim cara, eu estava bem
em cima, sabe? Minhas pernas, tipo perna de pau “toc, toc, puim”, caminhava com uma
energia ... [ruídos] ... aaai, eu nunca tinha usado uma droga tão boa como essa... (risos) é...
“Isso não é droga, Vegetal não é droga”. Ele falou pra mim. Cara, mas uma energia, sabe? Aí
passou um tempo, entrei no salão, aí entrar pra dentro. Aí tinha uma situação de uma pessoa
se incomodando do meu lado, você sabe como é essa história, não é? O cara pulava assim no
meu banco, literalmente, tava assim o cara e assim. E eu queria que o cara sentasse, queria
ficar em paz ali, né? O cara entrou numa peia e eu também entrei numa de passar mal, né? Daí
eu sai fora e vomitei, lá. Vomitei, voltei para o salão. Daí lá, mais na frente, fiz uma pergunta,
“licença para fazer uma pergunta”, primeira vez uma pergunta... daí perguntei [...] relacionado
[...] por que da União? O que que era a União? Crescimento da União, como era a formação
da Instituição [...]. Ai o cara... e depois, com isso me acalmou assim. Aí, no outro dia...
aqueles problemas sérios de álcool essas coisas, mas eu não tive uma coisa assim, boa assim,
que deu de eu retornar para beber de novo. Eu me senti feliz... senti felicidade no outro dia
assim, sabe? Senti uma sensação gostosa, consegui assim, esboçar um sorriso, sabe? [...] me
senti bem, consegui ver bem... assim o por do sol, era um por do sol. Lá em casa tinha um
moço que era do Corpo Instrutivo [...] que estava um pouco ali, que estava lá em casa. Eu
olhei o por do sol e, nossa, que luz cara! Era aquela outra visualização de contemplar, era
assim mais nítidas as coisas. A sensação gostosa, o bem estar isso que deixou em mim, daí eu
retornei cara [...] Essa foi a primeira vez que eu bebi, né? Ai foi dessa vez que, pra mim, tive
bons momentos, ai, acho, se me lembro bem, uns dez quinze dias, aí começou umas peias,
sabe? Aí começou! Ai o bicho “ruô” mesmo, sabe? “Nunca mais eu venho nesse lugar!”
Aquela coisa sabe? “Mas nunca mais quero [...]!” Pensava comigo: “O que eu estou fazendo
aqui?” Cara, peia dai, eu não conseguia entender, agora as pessoas me olhavam, eu olhava as
pessoas, eu não conseguia entender as pessoas... assim... sabe? Eu não estava gostando, mas
passava a me sentir bem depois no dia-a-dia (risos). E me fazia eu voltar de novo (risos). E
estou até hoje ai, né? E ai tem outros momentos de miração... dá pra conversar mais...
MK: Em relação... você tem algumas imagens, alguma coisa assim...
PP: Hoje?
144
PP simula com as mãos em forma de binóculos a máscara visualizada.
145
Se levanta e simula ser puxado pelo braço direito andando em forma circular.
252
MK: É...
PP: [...] a miração ela ocorreu pra mim mais no início, né cara? No primeiro ano,
no segundo ano, tinha muita miração mesmo, né? Depois... assim...
GG: Teve uma especial que marcou?
PP: Teve uma bacana “GG”, quer ver? Eu achei bonitinho, sabe? No preparo,
estava lá. Vi uns encantos bonitos... de observar a natureza também, né? Só que com o olho
mais afiado para ver as coisas, né? Mas na burracheira eu vi assim, estava lá cara, eu me
encontrei dentro de uma cúpula de uma torre. A cúpula de uma torre assim, ela era pintada de
azul, três pilastras, certo? E tinha para fora da cúpula umas manchas de azul cobalto, azul...
azul ma... azul marinho não, azul escuro ao redor e com algumas coisas esbranquiçadas.
Claras assim, coisas claras. E tinha assim é... e eu estava sozinho naquele lugar lá... e por
dentro nós estamos aqui né? Esse lugar aqui... tranqüilo, um lugar calmo, parado e eu gostei
de ficar lá [...]
Aí, uma outra miração interessante que eu tive que me marcou muito ela até hoje,
eu estava sentado lá no salão no meio... de repente eu vi vindo uma estrela girando, girando,
girando...veio assim, cor meio de prata, a estrela veio assim cara, assim, sabe? Veio,
“veioveioveio” e “pááá!” Entrou dentro da testa! Entrou e virou para baixo assim [...] bem no
meio assim, girando, sabe? E “chuummm”, veio lá da frente assim e entrou assim, veio
girando, de uma cor... é... não é prateada, é uma cor... inox, semelhante, sabe? Uma cor assim.
Esse negócio entrou pra dentro, entrou e me causou um bem estar...
Outra miração que eu tive, bonita, boas assim, dessas boas, né? Eu não estava na
União, estava dentro de uma casa e o cara estava, de repente assim, como se de uma sensação
de fortalecimento... fortalecimento. Esse meu lado direito todo começou a se contorcer, a
ranger [ele simula um movimento de giro no corpo “serpentinato”], a ranger assim, eu estava
me transformando numa árvore, rangendo assim, girando em mim e fica “rrróóóó”, assim
aquela sensação de fortaleza, ficar forte... caaara, que gostosura...
MK: Interessante [...] a cúpula azul... [...] o cosmo em camada... [...]
PP: Você viu também?
MK: Não, dessa forma não, mas...
PP: Eu sei até desenhar ela... eu sei até desenhar ela. Eu não via a parte de baixo
aqui assim, sabe? Eu sentia que estava lá em cima, sentia que a Terra era lá embaixo. Sabe?
Eu tinha essa percepção que estava num lugar alto. E aquela cúpula lá, e aquela parte... o azul
lá fora, tinha mais embaixo perto da cúpula aquelas manchas brancas, né? E lá embaixo era
assim, não era escuro, breu assim, mas tinha... não tinha intensidade de luz, sabe? Não tinha
luz. Você sabia que aquilo estava lá... interessante... (risos) foi bacana.
MK: Você falou que o teu trabalho mudou também... é...
PP: É, assim... clareza né? Meu deu clareza. Por exemplo, é... perceber... é...
direcionamento melhor do trabalho. É, por exemplo, talvez certas coisas no sentido assim...
espera ai... deixa eu achar um mecanismo de falar. É, você fazer determinada coisa, você fazia
para uma viagem, né? E você fazia aquilo para uma viagem assim porque era um gostar
talvez, né? E você fazia aquilo um gostar do outro e uma recompensa pra você de uma
maneira não... não assim é... a palavra assim é... você fazia aquilo mas, sem saber que poderia
fazer muito mais que aquilo, melhor do que aquilo, mais fácil do que aquilo e mais, mais
diretamente melhor assim, mais é... simples... sabe? E de um contexto agradável, né? Então
ela avivou, esclareceu, não é? Isso foi uma coisa interessante que ela me trouxe. E hoje é
assim mesmo, claramente consciente, só clareza de consciência.
[...] Se lembrar da pra por mais coisas ai (risos) [...]
MK: E você? (risos) [se dirigindo ao “GG”]
GG: (risos) Escutando e me lembrando. Olha, eu bebo o Vegetal há cinco anos,
né? Bebia, agora estou um pouco parado, mas, assim, vou falar da primeira experiência que eu
253
tive, a primeira. Que teve muitas, né? Mas a primeira assim, ela foi muito interessante. Eu
bebi o Vegetal e não senti nada. Ai, lá pelas 10 horas que ofereceram o segundo copo eu vi
todo mundo virando os “zoinho” e eu nada, ai, teve até a filha do “PP”, meu irmão, todo
mundo foi lá repetir. Repeti o Vegetal [...]
PP: Precisava ver aquilo! (risos)
GG: O mestre “3” deu um copo grande. Não sei por que, naquele dia talvez, fui
no Pesque e Pague, bebi cerveja e o “PP” falou: “Forre o bucho que o chá é forte!” E eu bebi
um monte na churrascaria (risos), fui preparado, mas é que meus amigos também precisavam
absorver mais, né? Então bebi um segundo copo grandão e tranqüilo, sentei lá, mas eu acho
que, eu não tinha a percepção do tempo, mas acho que deu dois minutos e eu senti como se
tivessem dado um murro na boca do estômago. E quando eu senti aquele murro na boca do
estômago eu fiz um esforço para levantar da cadeira para sair correndo para fora, eu ia
vomitar ali mesmo, né? Mas quando eu fiz isso assim, como se tivesse vindo uma força, uma
coisa contrária a mim, me pegou nos meus ombros, me pôs de volta na cadeira, gritou no meu
ouvido: “Calma!”. Quando eu escutei aquele “calma” no meu ouvido, eu virei o olho, sumi
dali. Eu entrei numa outra dimensão, eu entrei num salão completamente branco, era tão
branco que eu até abri o olho pra ver se ligaram uma outra luz ali porque, uma outra lâmpada,
porque eu fechei meu olho e não escurecia, eu estava com a lâmpada dentro de mim. Era
dentro da minha memória. Eu achei aquilo lá muito estranho, né, porque eu, né? Ai eu fechei
o olho e, aquela sensação do vômito era, aliás, eu nem estava mais sentindo o corpo, já não
estava... daí era aquele salão, eu entrei naquele salão branco, branco. E, de repente, começou a
aparecer fadas... nunca vi coisa mais linda no... as fadas assim com desenhos nos olhos,
aqueles desenhos orientais, né? Assim que tem umas gueixas que fazem uns desenhos assim,
muito lindo, aquela boquinha com aquele, coraçãozinho, aquele... né? E... mini, né? Aí foram
aumentando o tamanho das fadas, até que chegou uma fada, não era enorme, mas linda, linda,
linda assim e eu olhei o olho da fada e, quando eu olhei o olho da fada, ela também estava
olhando meu olho, parecia que tinha uma ligação entre... de olhar, né? Daí eu tive um
pensamento: “Será que ela me conhece?”, porque o olhar dela mostrava que ela me
reconheceu ali, né? E eu pensei “Será que ela me conhece?”. Quando eu tive este pensamento,
sumiu tudo. Apagou aquela lâmpada e sumiu tudo! E o vômito veio, aqui, né? [apontando a
garganta] Ai, não tinha pra onde cair e sai correndo, sai correndo pra abrir a porta – bom, vou
falando vômito, depois você tira (risos) – cara, não era um vômito, era uma limpeza, parecia
uma Vap, eu nunca vomitei daquele jeito, eu não achei... impressionante porque, ao mesmo
tempo que, quando eu vomitava com bebedeira, era, dava náusea, era uma coisa ruim, era um
vômito ruim, aquele era um vômito assim até certo ponto, prazeroso porque eu senti que
estava limpando, era uma limpeza assim, mas era uma coisa tão forte, era [...] impressionante!
Mas a sensação que eu ia morrer naquele momento também era muito forte. Eu não estava
identificando que sensação que era aquela, eu achei que ia morrer! Aí eu olhei, eu estava
sentado no chão olhando aquela massa ali. Ali eu vi caveira, vi fantasma, vi umas coisas
horríveis ali... no meu vômito (risos) ... depois (risos). Ai, eu comecei a achar que ia morrer.
Aí eu vi meu irmão no chão também, caído no chão e umas pessoas ali do lado, do Corpo
Instrutivo da época, nem estão mais lá, rindo... Aí aquele riso lá me incomodou porque, como
é que as pessoas vêm aqui me dar um chá e eu estou morrendo aqui e eles não estão nem ai?
Então comecei entrar numas peias, achar que ia morrer mesmo, ai comecei a pensar na minha
mãe, o quê que minha mãe, como é que... né? Minha mãe, os dois filhos vão morrer aqui num
lugar [...] cai numa armadilha, isso aqui é uma armadilha. A sensação assim, entrei num
desespero até que o mestre “4” é... tava entrando naquele parafuso ali, estava numa roubada,
né? O mestre “4” pôs a mão no meu ombro: “Meu irmão, vamos lá pra dentro que melhora,
por causa da energia”, não sei o quê... tá bom. Eu fui no banheiro me lavar. Quando eu
cheguei, me olhei no espelho, impressionante a visão que tive de mim no espelho, eu não me
254
enxerguei ali, eu enxerguei um “GG” diferente, era outro, hã... e ao mesmo tempo que eu me
enxerguei, eu estava com três olhos, mas não era uma ilusão de ótica, porque quando é
imagem dupla, ia duplicar o nariz, ia duplicar a boca, o queixo, né? Mas não, o nariz estava
um, a boca era um, o queixo era um, mas três olhos. E esse aqui [testa] piscando, “ta, ta, ta”,
como aquele olho que a gente vê, o olho da consciência, né, piscando, aquilo lá me assustou e
o “M4” pôs a mão no ombro e “Vamos lá pra dentro”. Ai voltei lá pro salão e, tentando me
acalmar, tentei de novo fechar o olho para ver se chegava naquele salão branco, eu queria ver
de novo, que era tão lindo. Daí fechei o olho então, mas eu não conseguia ver mais o salão, só
via um ponto branco, estava tudo escuro e um ponto branco. Ai eu comecei a fazer um esforço
para me projetar naquele ponto branco para... aquele ponto branco era o salão, mas não
conseguia, não conseguia, quanto mais... eu estava ficando cansado até na burracheira, que eu
queria chegar naquele ponto e não conseguia. Daí eu parei um pouco e comecei a observar
onde é que eu estava. Daí percebi que eu estava dentro de um poço, era um poço onde eu
estava. E aquele buraco branco era a saída do poço. Aí aquele buraco branco lá, aumentou um
pouco e eu consegui ver uns rostos olhando pra mim lá. E eram aqueles que estavam rindo de
mim lá fora (risos) e o mestre “4”. E o mestre rindo pra mim e me chamando: “Venha rapaz,
sai daí, sai daí, você está aí porque quer!” (risos) Dentro do poço. Aí comecei a perceber
dentro do poço, vi que não consegui sair porque eu estava acorrentado, tinha uma corrente no
meu pé. Aí eu fui seguindo a corrente, na outra ponta da corrente estava acorrentada no pé do
Minotauro. E o Minotauro estava com um chicote na mão, “plaft”, me chicoteando. E o
Minotauro tinha três olhos iguais aos que eu vi no espelho e ele estava me chicoteando. E eu
estava num sofrimento, num sofrimento que eu quase me levantei e perguntei: “Mestre me tire
do poço que eu quero sair desse poço, não agüento mais!”. Eu estava aflito! Eu não sei que
exemplo... o Vegetal, eles falam, que, que o pensamento, né? O pessoal de mais grau captam
o pensamento lá, né? Nisso levantou a Conselheira “ZZ”, do nada assim. Daí levantou e eu,
naquela hora, abri o olho como se eu tivesse que ouvir ela falar alguma coisa. E ela foi
comentar de um livro que ela tinha lido aquela semana, um livro que tinha uma história, que
tinha um fazendeiro que tinha um cavalo, aliás, ele tinha uma criação de cavalos e uns dos
cavalos mais valorosos caiu num buraco. Aí foram chamar ele lá e o cavalo estava lá no
buraco e a logística para tirar o cavalo de lá ia ser maior que o valor dele. Aí ele mandou
todos os empregados: “Ó, peguem terra e enterra. Fechem esse buraco para que nenhum outro
cavalo caia mais lá e enterrem ele lá dentro mesmo, naquele buraco”. Daí os peões
começaram a pegar a pá e jogar...
PP: Nas costas do cavalo...
GG: ...a terra nas costas do cavalo. O cavalo foi chacoalhando a terra, a terra foi
indo pro fundo, o cavalo saiu. E aquilo lá me acalmou, porque aquele cavalo era eu (risos).
Aquele cavalo era eu e, por mais que a vida ou que eu mesmo tivesse me enterrado lá, eu teria
condições de sair de lá. E me acalmou aquilo. Mas, quando acabou a sessão, eu jurei pra mim
mesmo que não iria mais voltar, igual ao “PP” estava falando ai: “eu não volto mais...”. E
meu irmão também: “He, coisa de louco isso ai...”. Cara, o outro dia eu faria a feira, acordei
cedo, 7h30, mas quando eu acordei... diferente. Acordei diferente assim, uma energia, estava
com uma energia, até... quando fui pra levantar da cama, quase que eu pulei da cama (risos). E
acordei com um sentimento de eu chegar lá nos meus filhos e, coisa que eu não fazia, fui no
quarto deles ver se está tudo bem, cobrir, dar um beijo: “Ó, estou indo trabalhar, tal...”. Até na
minha esposa cara... (risos). [...] Me deixou mais assim, mais mole. Aí, “mas que será que está
acontecendo?”. Daí, por as coisas no... nem tomei café, nada, não me deu vontade de comer
nada, fui pra feira. E, lá na feira, eu vi as pessoas completamente diferentes. As pessoas que
paravam na minha mesa, que antes eu via como compradores em potencial e clientes, eu já
não via mais, eu via como um espírito ali. Já, eu [...], de repente, eu conseguia perceber a
intenção dela, o que ela estava sentindo ao ver uma peça, dentro da cabeça da pessoa. Foi
255
assim uma sensação muito boa. E eu voltei pra beber o Vegetal por conta dessa sensação pós.
É, depois, com o passar do tempo, eu voltei pra lá por causa do chá, da dependência. Esse
depois se tornou mais presente, já não foi... tão... mas o que mais me marcou nessa primeira,
está tão vivo, eu contei assim mesmo com detalhes porque ela marcou muito e está bem viva
assim...
PP: É, mas o que você falou uma coisa interessante, né, que por causa que a
pessoa, o dia seguinte, no dia seguinte a pessoa tem uma percepção clara do que está
acontecendo... no dia seguinte.
MK: É, prá mim foi assim também...
PP: Foi assim também... e isso, todas as pessoas que bebem o Vegetal tem isso ai.
Acho que por isso que leva a pessoa beber de novo...
MK: ...se não talvez as pessoas não voltassem [...]
PP: Segundo assim, você observa que, então, a semelhança de sensações,
semelhanças de sentimentos, né? Como o “GG” relatou assim, o coração mais mole, se
aproximar do lado amoroso das coisas, eu também tive isso ai assim. Até a gente fumava na
época. Eu e minha mulher fumava. E eu cheguei num dia, numa consciência, “‘CC’, temos
que parar de fumar, imagine o mal que é fumar, vamos parar de fumar, vamos parar de
fumar”. Então, ficou assim mais ciente do malefício, entende? Então, de poder levar esse
cuidado... tirar a pessoa pra refletir assim... mais mole mesmo, né?...
MK: Essa atenção pessoal, isso é claro...
GG: Consciência do organismo. Consciência do que é certo, do que é errado, o
Vegetal proporciona isso ai.
MK: Proporciona esse tio de clareza, dá esse tempo, ele quebra um pouco a
robotização [...]. E do trabalho? O que você sentiu em relação ao seu trabalho?
GG: O que mudou, se mudou, foi assim, como o “PP” estava contando algumas
coisas ai, eu senti assim, às vezes frustrado de não conseguir passar ou fazer o que a
burracheira está me mostrando. Eu vi tanta escultura, tanta idéia, tanta coisa linda, linda
assim, projetada. E ao mesmo tempo frustrado de não conseguir chegar naquela perfeição que
eu estava vendo. Mas eu consegui assim, de repente, antes eu fazia assim muita peça, intuitiva
no sentido de comercializar a peça, ver qual que é, o que as pessoas estavam comprando e
trabalhar em cima disso. Mas eu até andei fazendo uma exposição depois aí, de colocar um
sentido filosófico na história. Colocar é, é, o pensamento numa escultura. Colocar...
PP: Você chegou a fazer isso, né?
GG: É, exatamente. Colocar questões que eu via, espirituais na burracheira, e
representava na escultura. Que nem eu fazer um... colocar um corpo num martelo e esse
martelo tentando arrancar um parafuso da parede, né? E no lado desse martelo está uma
chave, a chave do parafuso. E ela do lado assim como, cruzados os braços “Ó, eu estou aqui,
né?” Então assim, a intuição, às vezes a intuição está do lado e a gente não muda, né? Cabeça
dura, né? Então usar esse tema de pensamento e representar na escultura. Antes eu trabalhava
mais o cavalinho, a araucária, o Dom Quixote, a bruxinha, mas de trabalhar o pensamento em
cima da obra, isso daí me proporcionou, porque ele me deu também uma atividade mental
grande, o Vegetal. Me levou a pensar em questões que eu jamais parei para pensar dentro da
própria existência minha: de onde vim, pra onde vou, né? Nessas coisas assim eu nunca tinha
parado pra pensar. Até a Letícia, a Letícia fez, é...: “donde vim, ‘poncotô’, ‘poncovô’” (risos)
“’dondeuvim’, ‘poncotô’, ‘poncovô’”. E essas questões eu comecei a pensar muito nisso daí.
E assim, me sentia completo, me sinto completo quando eu começo a pensar nessas questões.
Questões de existencialismo, de ter respostas para a própria existência.
[...]
256
01 – A.J.
“AJ” tem 32 anos, sexo masculino. Bebeu ayahuasca a primeira vez em 1989 com
13 anos de idade.
Depoimento recebido 31 de outubro de 2008.
Minha primira miração, até então foi a mais marcante. Ainda não conhecia a
doutrina da UDV, apenas ia para o sitio brincar, pois ainda não tinha bebido vegetal em
sessão. Nesse dia, 25 de Dezembro de 1989, assisti a minha primeira sessão da UDV, com 13
anos de idade. Bebi o vegetal e fechei os olhos. A empolgação era tanta, que nem me dei
conta que era o dia de natal, pois na época, era um lugar bem simples e não havia nenhuma
decoração natalina que lembrasse a época e eu estava mais ansioso pra participar de uma
sessão do que qualquer outra coisa e não lebrava da data, mas enfim, ao fechar os olhos, me
distanciei do lugar físico onde eu estava sentado e adentrei um campo de luzes coloridas e
naquele instante comecei a já não mais escutar nada no campo material que me envolvia, só
enxergava luz de toda cor e não mais escutava um ruído, o que me fez esquecer
competamente que eu estara a instantes em algum ambiente material. As luzes se misturavam
e formavam outras cores, aparentemente de maneira desordenada e na minha "tela" de visão,
não havia um centro, e sim, apenas um grande espaço aberto, formado de todas as cores que
se pode imaginar, sem formas conhecidas. De repente, todas as cores se unem em um alto, e
todo o espaço se torna branco meio amarelado e as cores reunidas formaram no alto e no
centro, uma estrela tão branca que me encadeava, uma luz branca muito forte, tal qual a luz do
sol quando fixada, porém não era o sol, mas uma estrela, pois essa tinha a forma de uma
estrela que cohecemos dos poligonos, com cinco pontas exatas. O cenário então tornou-se
mais central e organizado, um grande espaço branco-amarelado e uma estrela central no alto
que emitia uma luz branca muito intensa. Aquela bela estrela, começou a se transformar em
milhõs da fagulhar brancas, como areia prateada jogada para o alto e se separavam em dois
grandes grupos de fagulhas e este tomaram formas de anjos. dois grande anjos nas laterais
daquela estrela que brilhava e que desapareceu em fagulhas formando anjos. Eram lindo anjos
de luz, que mais pareciam formas através de um prisma, com mudanças de cores diversas com
o branco predominando. Eu ficava muito impressionado com tudo naquele instante. Os anjos
então, tal qual a estrela, se desmanchavam em milhões de fagulhas e desciam, das laterais do
alto onde estavam e se uniam numa parte mais baixa do cenário, formamndo um pequeno
berço e uma linda criança toda ela feita de luz, alva como a neve, e tão forte como a luz da
estrela vista em cima e que agora era uma criança de luz intensa, vista embaixo, que me
encadeava da mesma forma que a estrela e rapidamente, minha mente se abriu e eu me
lembrei que era um dia de natal e que aquela criança era a representação do menino Jesus e
tudo aquilo me emocionou bastante, e daí então, todo o processo se repetia: A criança em
fagulhas de luz, foromava anjos e os anjos formava a estrela e tudo em um grande círculo
constante de mutações da luz que eu via. Foi até então a mais itnensa experiência com
miração que tive.
Esta outra experiência eu vou narrar, não considero uma miração, pois não teve
uma conotação apenas visual, mas corpórea, ou podemos dizer, extra-corpórea. Bebi o vegetal
em um dia de preparo e o efeito da burracheira estava muito intenso e forte, pensei que não ia
suportar tanta energia dentro de mim. O Mestre que dirigia a sessão colocou uma música
instrumental e sem me perceber, literalmente, pois perdi, temporariamente o sentido de "Eu"
me transformei na vibração musical da música que tocava e naquele instante, já não era mais
257
um eu apenas, e sim, uma parte sem "personalidade" de um todo musical e cada mudança de
tom ou de instrumento, era como uma viagem extra-corpo que eu realizava. A múscia se
tornou como uma grande montanha russa, onde não haviam personagens, apenas a própria
montanha russa percorrendo seus próprios espaços e tendo consciência daquilo. Eu digo que
esse dia foi o dia em que me transformei na música!
01 – Alexandre Segrégio
02 – Laurence Caruana
03 – Martin Oscity
13. Feel free to add whatever you think is important about you and your job, ok?
For me, this is most important to make good art. The art should radiate positive
energy and maturation of our society. I believe that life is pure mysticism. So you can
understand it. That's why I founded in 2000, "visionart" because to me the divine in today's art
has lost. So again approaching the art of religion. The art has in the history of mankind an
important function and high priority. It makes our souls visible. It is an honor for me to be an
artist.
04 – Mark Henson
weekend if possible. So you could say that my art and my person evolved simultaneously. It
would be impossible to separate the experience from the art, as they grew up together.
At first I didn’t know what to do as an artist. Does one choose a style, or does
it just evolve with time and accident? I really liked the Rock and Roll art coming out of San
Francisco, by artists like Mouse and Kelly, Lee Conklin and Rick Griffin, but I also liked the
artists of the renaissance and all the “Old Masters”. One day while I was thumbing through a
pile of magazines looking for inspiration I got the notion that all the artists of old didn’t worry
about what to paint. They just did it. It was like a little voice came whispering in my ear to
just draw out my most perverted, sick, and twisted fantasies so this is just what I did, and sure
enough- everyone got a good laugh. The girls in my high school class were horrified, The
guys cracked up, my Art teacher loved it. Somehow I had stumbled on one of the secrets of
originality.
Naturally my work started to show a tinge of psychedelia as I tried to re-visualize
some of my experiences and focus my inward thoughts. At first LSD and mushrooms were to
me something you did with friends, at parties and concerts. Then I got some VERY good LSD
that showed me the way to use it (LSD) as a learning tool. I’d also gotten good results from
practicing yoga and meditation. I’d been interested since childhood in mythology, tales from
Ancient Rome, Greece, Egypt and India. These cultures fascinated me. Before I discovered
LSD I happened to come across a “how to” article by “Swami Satchidananda” in the San
Francisco Oracle, which explaned the basics of yoga meditation and the opening of the
Chakras.
I tried out some of his techniques and what do you know? They worked. But LSD
worked even better, and I began to use it mostly for “Learning sessions” rather than for
entertainment. I was learning to “see” in the Don Juan / Carlos Castaneda sense. I felt like
could understand the inner workings of nature in a visual way. As time went on, I learned that
by taking a bigger dose of better stuff, and placing myself in a quiet and safe place that LSD
is actually a sreious tool for enlightenment instead of a party drug. Over the years I have
attempted to distill the essence of this learning into my images. While I would surely have
become a creative person in some other way, I am thankful that I discovered Entheogens, and
I don’t think my art would be anything like it is without them.
This new and wonderful knowledge became what I wanted to share with everyone
else and so in my own way I try to bring forth the essence of things as I see them. We
laughingly call this the “missionary complex”. At first I wanted to share the entire psychedelic
experience in one grand vista, but I soon realized that such a grandiose vision is better
digested in smaller portions. Like dewdrops on a spider web, each image could reflect in its
small way the bigger picture.
For some strange reason, Entheogen use has made me much more sensitive to
plants and to nature in general. The designs and patterns found in nature continually amaze
me. I also like to ponder as well ideas about what the heck we happen to be doing here and
why. Humanity in all its wisdom has affected Nature in many negative and destructive ways. I
prefer to envision a world where folks live in harmony with their natural surroundings. I
believe that we can create such place, and some of my paintings are to remind us of this.
We also need to live in harmony with ourselves, and with our neighbors, friends
and lovers. In our modern culture, love and sex, although on everyone’s mind, are regarded as
subjects of controversy. A quick glance at what comes up when you use the word erotic on
the internet search engines will give you the idea. Most of our erotic imagery is centered
around some form of exploitation or dominance, situations I never felt comfortable with.
I thought it might be a good idea to create some images showing a loving form of
sexuality in natural settings, where all the participants are enjoying themselves. I though that
we need to have more positive images of lovers scattered about in our society. So I have been
261
making some of these regularly ands getting them out to the public as prints and notecards,
spreading a little more loving around the planet.
Of course there is a connection between Nature, Sex and Spirituality.
Consciousness is the greatest aphrodisiac I can think if, and I like to celebrate this connection
in my work. Of course there is also a connection between the entheogens and sex, as the
Tantric masters of old knew so well. Naturally this also finds expression in my work.
Many people think that Art and Politics exist in separate worlds. That the two
have no relation or bearing on each other. I find that Art has a very great power to
communicate all kinds of ideas. Artists are thought to live in their own pleasant reveries, but
this is not so. While ideally we would like to live in an harmonious world, we find that man
made problems facing us on all sides. I started thinking that I could use the power of painting
to make comments about things that need to change.
-
11. What it means to you the spirals and vortex in some paintings you do? –
I discovered at the very first experience meditating, that the third eye chakra
opens in a triangular. then "doubles" to a hexagonal form, as the enlightening energy starts to
pour forth from the universe to the mind.
to me it is a symbol of the presence of the enlightening energy.
Spirals represent to me the cyclical evolution of reality.
Spirals occur everywhere in nature, from galactic swirlings to the sub-atomic
energy world. they seem to be all-pervasive, a symbol of the inherent and ever-changing
organization of nature
12. Can you tell your more impressive vision experience? -
When one is in the right frame of mind, time and space cease to exist, and energy
pours forth from the universe, filling one with wisdom and knowledge.
It is as if one is sitting amazed, in the presence of the gods, overhearing their most
intimate conversations about the nature of reality.
I'm not so good at expressing this wisdom in words, so I use my painting skills to
convey the message...
13. Feel free to add watever you think is important about you and your job, ok?
Art has an amazing ability to convey an experience on many levels, from the
philosophical to the emotional. Art can provoke thought, and change people's lives!
It is up to us to choose how we might direct this power...
In an imitation of the divine, an artist can create something out of nothing- a gift
of magic!
I am made happiest when I can use my abilities as an artist to bring about positive
changes in the world, and to bring joy into being.
In my work I begin by looking deeply within myself, and seek to express what I
find there. My wish is to tap into the Divine Source of Being,to Consciousness,to Spirit,
and to bring into visual awareness some images manifested through the
knowledge revealed.
I have discovered that the more intensely personal my vision is, the more
universal its Message to the world.
Art has the magical power to give provoke emotional as well as intellectual
thinking:
My desire as an artist is to create compelling images of beauty and power that
serve to promote our Conscious Evolution as human beings.
To this end I like explore and present images with themes of Awakening
Consciousness, Divine Sexuality, Political Realities and Living in Harmony with Nature.
262
Someone told me that one of my images was used in a cancer clinic to help
patients there to relax their minds-
I cannot express how knowing that my work helps to heal people fills my heart
with happiness!
No amount of money can buy this joy!
I love my job!!!
I hope this is what you are looking for-
Yours,
Mark Henson
ANOTAÇÕES PESSOAIS
Foram 121 sessões ao todo, porém, neste anexo, estão apenas as anotações
referentes às experiências descritas na tese, apenas omitindo nomes das pessoas envolvidas
que foram substituídas por letras e assunto de natureza muito particular. As anotações estão
relatadas aqui como foram feitas na época, sem interferências ou correções atuais, não
implicando necessariamente com isso que continuem como forma de pensamento na
atualidade.
burracheira é um termo Inca que significa o estado estranho que o chá dá na pessoa 146. Tive
diarréia muito forte, fui diversas vezes ao banheiro. Voltava para a sala, mas tinha que sair de
novo. Sempre me acompanhava alguém mais antigo do grupo.
Terminou a sessão, mas eu estava com a “sombra da burracheira” muito forte
ainda. Como em qualquer situação de doença, minha sensibilidade no paladar, luzes, cheiros,
fica muito aguda. Tentei comer um pedaço de mamão e ele era insuportavelmente doce.
Estava muito tempo sem comer, tentei beber um gole de guaraná e não deu, doce demais, tudo
me dava enjôo. As pessoas vinham amavelmente conversar sobre a experiência, eu queria
ficar sozinho, ter que dividir a experiência me dava mais ânsia, pensava que vomitaria na
pessoa até.
Saímos ali pelas 2h30 da madrugada. Dirigi com muito cuidado, pois sabia que
não estava com os reflexos em ordem. Tive umas auto-observações fortes de me ouvir
falando, achar estranho e intrigante a minha escolha do assunto e as palavras que apareciam
do nada. Cheguei em casa ainda mal, enjoado. Fiquei encostado na cama e de luz acesa, medo
de ficar em pânico. Experimentei apagar a luz, não deu pânico, experimentei deitar, não deu
pânico (isso porque da vez que tive síndrome de pânico147, não conseguia fazer nada disso).
“Fiquei bem, pois a letra ‘C’ estava dentro de um quadrado sobre um fundo cinza azulado”.
Difícil explicar isso, mas era a alteração do estado de consciência e a sensação se apresentou
nesta visualização.
Imaginei não querer repetir jamais a experiência. Mas fiquei encucado demais
com os medos e pânicos. Resolvi fazer um ato de coragem e experimentar novamente no dia
seguinte, pois havia uma sessão normal (a que fizemos era uma iniciação chamada
Adventício). Conversei com o “G” que é o Mestre lá. Contei meus medos, ele falou de nossos
condicionamentos negativos no mundo. Deu umas explicações divinas que não me cativaram,
mas decidimos que eu tomaria menor quantidade desta vez. Na verdade foi apenas um dedo a
menos e já imaginei que a experiência seria similar. E foi mesmo. O medo foi maior, tenho
impressão, mas sem muita certeza. Diarréia tive uma micro só. Vomitar tentei muito, mas não
saía nada. Tentava com muita força, mas era como se o vegetal não quisesse sair (impressão
devido ao estado alterado). Eles me davam água, fui atendido por 3 pessoas diferentes em
intervalos diferentes, mas não consegui nem me sentir psicologicamente bem e fisicamente
estava horrível.
Consegui voltar para a sala e ficar por lá. Apenas me perturbava quando as
pessoas passavam do meu lado. Acabei cobrindo a cabeça para não sentir a diferença de luz
que a passagem das pessoas projetava nos meus olhos. Não tive percepções diferentes, pelo
menos não lembro de nada em especial.
Quando terminou não estava me sentindo mal como da primeira vez. Talvez a
diferença da quantidade de líquido tenha influenciado. Consegui comer um pedacinho de bolo
e tomar um pouco de café (com açúcar!!!).
Saímos de lá e achei que não era pra mim.
No domingo o “AA” apareceu por aqui. A experiência do Sábado foi pesada para
ele. Mas ele queria voltar, achava que estamos numa mediocridade enorme e que a morte é
presente, que temos que fazer algo para sair desse marasmo todo. Eu ainda achava que talvez
não fosse para mim.
Ontem o “R” me ligou. Comentou que as primeiras experiências são assim
mesmo, que não avaliássemos nestas iniciais, que decidíssemos mais tarde.
146
Na verdade minha desconfiança estava certa, não existe esse termo “burracheira” na língua
quíchua. Deve derivar de “borrachera” que tem o mesmo sentido de embriaguez.
147
Esclarecendo que o relatado aqui como “síndrome de pânico” na verdade foi uma experiência
ocorrida uma única vez, não podendo ser caracterizada então como uma síndrome e, tampouco, se era mesmo
“pânico” ou alguma outra reação psicofisiológica qualquer.
264
148
Hipnagogia.
265
Não tive enjôo, não o suficiente para querer vomitar. Senti que novamente mexeu
com os intestinos mas não para dar uma diarréia, mas movimentou com gases e aqueles
ardidos que lembram dor de barriga, mas nada forte. [...] A discussão fica em relação ao
domínio ou ser dominado em relação a fazer sozinho ou com a ajuda do vegetal. Acho que
sozinho pode ter seu valor, mas pode também não conseguir nunca, o vegetal abre umas
portas sem dúvida. Mas acho que nada disso importa realmente. O que vale é o conteúdo
interno que aparece para cada um.
Aconteceram, como de outras vezes, perguntas estranhas para o mestre, ao ponto
até de aconselharem não serem comentadas essas coisas fora dali para não dar mais margens
para questionarem a religião, pois essa já é estranha pelo simples fato de tomarem o chá. Mas
como disse acima, nada importa. Mesmo antes de entrar na UDV, estava convicto de que tudo
é interpretado pela gente, as explicações dos fatos existem, não os fatos em si como diria
Nietzsche, então pouco importa a viagem de cada um, será a viagem dele, importa o que você
colhe para a sua viagem e que benefícios isto pode te trazer, o resto, pura ilusão.
149
Caupurí.
150
Se refere a uma lembrança da experiência que não foi anotada na mesma época.
267
bebemos o Vegetal e esperamos. Teve a leitura dos documentos todos, algumas chamadas e as
perguntas de costume se a pessoa está bem, se teve burracheira e se tem Luz. Até neste
momento eu não estava com nada, a “Ma” disse que também não. A “M” já estava
começando. Dai tive uma miração de uma pequena poça de água como de esgoto, então senti
que a burracheira estava vindo. Tive várias mirações, algumas com seres alados, outras com
imagens de softwares 3D que andei usando esta semana. A mais forte dela foi que eu estava
num vale com espinhos enormes e vivos que saiam do chão. Eles se movimentavam. Do lado
deste vale existiam uns prédios, na verdade uns maquinários de concreto que viravam e
batiam com força. A sensação ali naquele lugar é que a vida é muito frágil.
Num determinado momento comecei a ouvir algo como um coaxar de sapo. O
som era seguido e quase que eu ouvia MEStre, MEStre (risos). Reparei que era muito
continuo, dai percebi que era o relógio do salão. A impressão de ser um coaxar foi,
provavelmente, porque tirei um sapo do local antes de iniciar a sessão.
ANEXO II
BANISTERIOPSIS – PRINCIPAIS TIPOS E LOCALIZAÇÃO
GEOGRÁFICA151.
151
Informações retiradas do herbário da Universidade de Michigan online. Seguindo o endereço
abaixo é possível acessar informações individuais mais completas como literatura disponível, imagens, etc.:
http://141.211.176.200:591/MICHtypes/FMPro?-db=allTYPES_for_DLPS&-
Lay=Layout%20%232&-format=searchdetail.html&GENUS=Banisteriopsis%20&-find
270