A Aliança Dos Castelos Ocultos - Série Controlados, Volume I

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Peterson Silva

A AiiN uos Cs1iios Ocui1os


1
a
edio
2013
Srie Controlados Volume I: A Aliana dos Castelos Ocultos
Peterson Silva
1
a
edio, 2
a
reviso
ISBN: 9788580455465
eISBN: 9788580455458
Arte da capa: Lucas Machado
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Para Carlos, Enedir e Aline.
Parte I
A esperana no crime
Captulo 1
Isolados
As nuvens passeavam pelo cu, estufadas e ldicas, impedindo o sol de
aquecer a terra tanto quanto poderia. Flutuavam devagar, amarelas como
campos de trigo, atravessadas por serenos raios de luz j levemente alaran-
jados em um frmamento que insistia em permanecer azul.
Emp diante do Rio da Discrdia, que seguia lpido seu curso, ele olhava
alm. No conseguia discernir sequer contornos, grosseiros que fossem, das
Montanhas do Cu o limite do deserto de Imiorina, que se estendia im-
piedoso e seco num horizonte a perder de vista. Atrs de si fcava a plida
colina que ele contornou pra chegar quelas paragens aos ps dgua, afas-
tadas do centro da cidade mas nem por isso difceis de encontrar; apenas o
sufciente para que ele e seus alunos fcassem distantes, isolados.
Estava em p porque no gostava de se sentar. No ali, no naquele
momento; no pensando em quem deveria ser. No quando no se continha
em si mesmo de nervoso entusiasmo. Juntava as mos inquietas atrs das
costas, sentindo a aspereza rude das vestes marrons, andando de um lado
para o outro de vez em quando.
Mestre? Disse uma distante voz feminina esquerda.
Estou aqui! Respondeu ele, pigarreando em seguida. Logo viu sur-
gir por detrs da colina uma mulher de rosto abatido e um longo vestido
roxo. Apressou os passos abertos, andando at ele com um corpo largo e
cabelos dourados sem brilho.
Boa tarde, mestre!
Boa tarde, Enrita.
O professor baixo e calvo, com um rosto que a escassez emagreceu mas
no tornou menos redondo, voltou a olhar para o rio enquanto a aprendiz
sentava ao p do morro. Outros alunos foram chegando; sozinhos ou em
grupos. Serenos e sorridentes, heterogneos e simpticos, juntaram-se em
uma pequena multido de vinte e seis pessoas. A quantidade de homens
e mulheres era bastante igual, com tantos jovens quanto adultos, mas sem
nenhuma pessoa mais velha.
Lamar, desfazendo a posio dos braos, passou a segurar as duas mos
frente do corpo, como se uma precisasse acalmar a outra. Tudo tinha dado
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certo na ltima vez em que estiveram naquele lugar isto , considerando
quo errado tudo poderia ter dado. Fazer aquilo era arriscar muito, como
ele j havia, a seu modo, amargamente aprendido.
Bom. . . Comeou ele, esfregando as mos. J que todos esto
aqui, ento. . . Podemos comear.
Lamar girava o pescoo, tentando captar num s olhar todas aqueles
rostos obstinadamente curiosos. Sorriu, o nervosismo escapando pelas na-
rinas, e logo inspirou a certeza de que todos ali estavam sedentos pelo saber
que lhes era proibido.
Hoje ns vamos comear a treinar um ataque. Um ataque bastante
simples. A mudana de postura e os inibidos murmrios de excitao
indicavam interesse. Na verdade, eu penso que essa a tcnica mais
simples de todas.
Alguns homens realmente jovens, vestindo coletes de couro por cima de
largas camisas azuis, o observavam ainda mais suspensos em expectativa,
esquerda. Lamar fez um esforo mental para se lembrar do nome deles, mas
no conseguiu.
Aquilo no era realmente um problema afnal, lembrava do nome de
muitos outros. Havia algum l, porm, que no lhe era nem um pouco
familiar. Parecia um homem, e confundia no apenas sua aparncia como
tambm a atitude; algo de todo incomum, sem dvida, ainda que o par-
metro de comum no estivesse bem estabelecido ainda. Usava uma veste
laranja, grossa, longa e chanfrada, e por cima uma grande capa negra, com
um capuz em que o tecido sobrava. Lamar no conseguia ver o rosto por
debaixo dos panos.
Ento. . . disse ele, num rompante, seguindo um impulso de conti-
nuar a aula. Poderia interpelar o aluno novo mais tarde; no havia tempo a
perder. Vamos formar pares, sim?
Os estudantes aquiesceram, comeando o arranjo de duplas. Ficaram de
frente um para o outro, de p, a uma curta distncia. Antes de passar a eles
as instrues iniciais, Lamar sentiu-se um pouco cansado nas pernas. Era
uma sensao incmoda; uma espcie estranha de dor nas articulaes que
crescia enquanto ele caminhava S podia ser o resultado de tanto andar
para chegar at ali. Resolveu sentar no cho para ver se conseguia se sentir
melhor.
Os aprendizes olharam para ele, confusos. Percebendo o pesado siln-
cio, Lamar concluiu que talvez no fosse um bom momento para sentar e
descansar. Como que querendo desfazer o que havia acabado de fazer, rapi-
damente levantou-se e prosseguiu.
Vocs lembram que. . . Do que falamos na aula passada? Alguns
murmuraram que sim. Que, para praticar magia, a inteno muito im-
portante? Sentir a inteno e dirigi-la para algum? Mais cabeas balan-
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ando afrmativamente. Bem, agora vocs vo fazer isso de novo, s que
agora a inteno vai ser uma inteno em especial. Vocs vo se concen-
trar em enviar para o seu par um sentimento de conforto, c-como se vocs
fossem. . . Dar um abrao nele, s que vo provocar essa mesma sensao
a distncia, entendem? O ar que respirava enchia-lhe de um flego de
urgncia. E lembrem-se, lembrem-se! Cada um por vez! No ofeream re-
sistncia ao outro! Deixem que o sentimento tome. . . Conta de vocs, caso
ele estiver surgindo. nisso que vocs tm que prestar ateno, sim?
Lamar comeou a vagar pelas duplas para observ-las de perto, embora
soubesse que nesse estgio do treinamento no precisaria faz-lo. Os inici-
antes eramfceis de ler emsuas tentativas; fazemcaretas contorcidas, como
se aquilo lhes drenasse todas as energias do corpo. Outros, mais centrados,
fechavam os olhos em um semblante tranquilo. Provavelmente no con-
seguiriam nada, mas algo comeou a acontecer, deixando-o pouco a pouco
desconfortvel. Era um murmrio, que Lamar logo percebeu vir de dois
alunos em uma dupla.
Eles riam.
A mente de Lamar imediatamente inundou-se com estimativas. Riam
de qu? Talvez rissem um do outro, por escrnio ou lembranas. . . Ou
talvez achassemque a aula era simples demais para eles. Algo de todo muito
bsico.
E eles riam; riam com cada vez mais liberdade.
Se achavam-na fcil, talvez j fossem magos. Lamar sentiu medo por um
momento que logo foi embora, como vento frio. No, no erammagos. Se
algum mago viesse aula no seria imprudente de se revelar desta forma.
Sentia as bochechas pegarem fogo por dentro. O medo logo passou a
irritao subindo-lhe a garganta, enchendo a cabea como combustvel para
o que houvesse de mais negativo. Acaso achavam-se melhor que todos ali?
No deveria pensar aquilo dos alunos. No deveria principalmente re-
preend-los assim, incentivando-os a abandonar a aula, no, isso ele no
poderia fazer de maneira alguma. . . A raiva o sufocava. A situao, afnal,
prejudicava a concentrao dos outros aprendizes! ALamar parecia, quando
olhava emvolta, que olhavamde volta para ele, no mais para os causadores
de distrbio. Procuravam seu olhar, guardando-lhe a repreenso mais dura,
em que deixavam claro esperar dele uma atitude, por certo. Cobravam uma
medida enrgica, repressiva que se fazia necessria, claro, j que as risa-
das prosseguiam, acintosamente sinceras e ruidosas. Pelo menos ningum
parecia entender do que riam.
Os garotos gargalhavam ainda mais abertamente. Quase caram pra
trs, desequilibrando-se por um momento. Certamente no estavam apren-
dendo, no estavam tentando Por que estavam ali, ento? Por que no
fcaram em casa trabalhando, ou fazendo qualquer outra coisa? Por que vi-
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eram? Ou, se tinham alguma fazenda para estar, uma ocupao que fosse
na cidade se a vida estava fcil para eles, bem, certamente no estava para
muitos. Para Lamar, para aqueles alunos, para. . .
O que to engraado? explodiu Lamar, irritado.
A dureza quebrou a espinha dorsal da risada. Os alunos passaram a
olhar para Lamar, que mantinha um olhar revoltoso. As bocas se fecharam;
as bochechas, murchas, denunciavam a vergonha recm-adquirida.
No. . . N-No sei.
No sabe?! Ralhou Lamar, umpouco desconcertado coma resposta.
Esperava por alguma coisa. Qualquer coisa.
No, a gente. . . Disse o outro, olhando para o cho. Riu, s. . .
Desculpa.
Lamar sustentou seu olhar contra o deles por mais alguns segundos.
Ora. . . De fato fora duro demais. Mas eles mereceram. Estavam sendo. . .
Abusivos, impertinentes. . . Foi necessrio. Foi preciso.
Sem dizer nada que encerrasse o assunto, recomeou a andar para longe
deles. Sussurrava para outras duplas, j totalmente dispersas do exerccio,
que retornassem s atividades. Gritar com aprendizes. Perder a pacincia.
Isso no sou eu. . .
Lamar caminhou pelo lugar, completamente alheio. Olhava para a gra-
ma com a cabea no que havia feito e por que o fzera. O que adicionava
ainda mais peso culpa era o silncio, que no era absoluto; era antes rit-
mado por sons variados que expressavam a esmerada tentativa e a desalen-
tada frustrao com sorte era consequncia da prtica, e no de quase-
mudos vereditos.
Um aluno chamou discretamente por Lamar, que perguntou o que ele
sentiu. Tudo foi descrito conforme o esperado. Lamar estava quase zonzo,
mas todos o viam com um sorriso no rosto; pelo menos tinha sucesso em
parecer feliz por poder ser til novamente. Enquanto ouvia coisas sobre ca-
lor, abraos e conforto, felicitava uma aluna pela magia praticada com xito.
No sabia dizer quantos haviam fcado felizes e esperanosos, e quantos ha-
viam visto aquilo como sinal de que estavam atrasados e no eram bons o
sufciente. Lamar no tentou ajud-los com aquilo. No recordava mais o
que havia acabado de dizer a quem quer que fosse.
Depois de um tempo, resolveu que j estava na hora de seguir com o
plano para a aula.
Bem, . . . Escutem! Chamou Lamar. Se vocs fossem capa-
zes de. . . De produzir essa sensao sem um olhar, sem expresses, sem. . .
Movimentos; seria timo. Mas, se no, est tudo bem. Existe algo que pode
ajudar vocs. um movimento com o punho! Ele agora voltara a fcar de
frente para todos. Notou que havia se esquecido do homem de capa preta
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no fundo, direita. Um movimento simples, s. . . Observem. Observem
primeiro e depois repitam.
Abriu os dedos das mos duas vezes, e ento girava os punhos. Era
um movimento simples, mas devia ser delicado, e muitos dos aprendizes
o faziam de um modo grosseiro e desleixado. Precisou de vrios ajustes
para ensinar uma poro especfca da turma e, mesmo depois de passado
muito tempo de prtica, o movimento no ajudara ninguma causar o efeito
esperado.
Lamar se aproximou novamente de seu plpito inexistente margem
do rio e olhou para o grupo. Percebeu que no dera ateno sufciente aos
alunos mais direita, que continuavam com alguns vcios que conseguira
eliminar em outros. Poderia fazer isso na prxima aula, pensou, quando
todos j estariam mais acostumados com o movimento.
Ateno! Ateno, por favor! Pediu Lamar.
Naquele momento percebeu, enfm, que o homem de laranja fazia o mo-
vimento. Movimento estranho, por alguma razo no imediatamente bvia
chamava a ateno de Lamar. Percebeu, enfm, que o movimento era per-
feito. Lamar podia comprovar aquilo mesmo de longe.
Como pde se esquecer daquele homem?
. . . Bem, fzemos um. . . Bom trabalho hoje. . . Comeou ele.
Como pde simplesmente deixar que um estranho encapuzado assistisse
aula? E. . . um trabalho difcil. difcil mesmo conseguir realizar essas
movimentaes, essas. . . Esses movimentos do jeito certo leva muito tempo,
no qualquer um que consegue. Deu mais uma olhada de esguelha para
ele. Como nem sequer pde dar uma olhada no rosto do sujeito? Espero
que na prxima aula vamos ter algo mais. . . Mais concreto.
Daqui a cinco dias?
Isso, isso mesmo. Confrmou Lamar, sem saber quem perguntava.
Isso mesmo. . . Obrigado e at a prxima aula.
Quase cuspindo as ltimas palavras, voltou-se para o rio. O sol se apro-
ximava de Nauimior, o horizonte, e o cu adquiria cada vez mais os tons
alaranjados que deveriam ser alegres e quentes, mas agora eram apenas
melanclicos e nada disso o ajudava. Respirava devagar forava-se a
isso tentando se acalmar. Tinha quase certeza de que vira o homem de
capa permanecer exatamente onde estava, mesmo em meio s conversas
que foram enchendo o ar de balbrdia. Alguns falavam sobre o frio, que
comeava a agir tambm sobre Lamar. Outros falavam sobre as coisas que
deixaram incompletas quando vieram para a aula. Outros falavam sobre a
prpria aula.
Lamar no ouvia nada. Pensava em milhares de olhos o observando de
cima com penria e decepo; olhos de pessoas que ele no conhecia, mas
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que estiveram sempre ali. Vizinhos, parentes, concidados. Invisveis, sem
nome, julgando-o todos a cada fracasso.
No conseguia dizer por quanto tempo havia fcado parado ali. Ao se
virar, viu o capuz deslizado para as costas, os braos cruzados, a guarda
da espada aparecendo na cintura. Viu um rosto que, sem dvida, conhe-
cia: claro, pacfco, at mesmo um pouco bobo, mas que j no parecia to
inocente por detrs da basta barba negra. O cabelo, tambm escuro, estava
desvairado e cheio, dividido ao meio e caindo ao lado dos olhos como colu-
nas enquadrando suas feies.
Lamar. Lamar. Lamar. Disse ele, resolvido a saborear cada slaba.
Ento quer dizer que virou mestre?
Tornero. Reagiu, engolindo em seco. . . . .
Mestre de. . . O qu. . . Seriam. . . Trinta, trinta e cinco? No parei
para contar.
Vinte e seis. Vinte e cinco sem voc.
Tornero, que j exibia um sorriso minsculo, deixando entrever apenas
parcialmente seus dentes, abriu-se num riso ostensivo e ritmado.
Voc um tolo.
Lamar engoliu mais uma vez.
O que. . . O que foi que voc disse?
Que voc um tolo, Lamar, um tolo. Voc no achou mesmo que
poderia ensinar magia bomin em Prima-u-jir sem que fcssemos sabendo,
no ?
Olhava nos olhos de Tornero, forando-se a no quebrar a conexo; era
como se ela fosse a nica forma de resistncia que podia opor. Desviar os
olhos signifcaria perder.
Mais uma vez.
O que que voc , Lamar? Um alorfo?
Sim.
E onde voc aprendeu essa bobagem?
No interessa.
Insolente. Comentou Tornero, com os olhos repletos de desprezo
ardendo em brasa. ESCRIA dessa cidade e desse mundo, ISSO que
vocs so! Voc um fracasso, Lamar. Um fracassado. Sempre foi e sempre
ser. No se contentou emter dado errado quando mostrou que era umfraco
para a magia. . . Quis continuar tentando, no ? claro que encontrou um
lugar entre aqueles que acham que todos deveriam ser magos.
Voc no entende, Tornero. . .
Voc no entende! disse ele, escancarando os olhos. Voc no
entende e isso que me preocupa.
Preocupa?
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Sim, preocupa, Lamar. Quando Byron disse que voc estava dando
aulas eu no acreditei. Eu disse a ele. Disse que era mentira, disse que voc
era um intil. Mas ele pediu que eu averiguasse. . . Ento eu vim. E, de fato
Tornero permitiu-se um minsculo riso voc no decepcionou minhas
expectativas. Continua to tolo e imprestvel como julguei que fosse.
E-Eu sei que voc no aprendeu magia desse jeito, mas sei tambm
que todos demorampra aprender. . . Estou ensinando de umjeito mais fcil.
Do jeito que eu aprendi.
verdade, Lamar? Ento voc se considera um grande mago?
Tornero deu dois passos para trs, como se quisesse ver aquele mestre
novio por uma perspectiva diferente. Lamar sabia que aquela era uma per-
gunta perniciosa. No podia responder que sim, mas ao mesmo tempo no
conseguia admitir no, no para Tornero que no era um bom mago.
Decidiu fcar quieto.
Voc sabe que no pode me atacar, no ? Perguntou Tornero, com
a voz baixa nova distncia. Pois bem. Eu quero que pare.
No vou parar.
Eu quero que voc pare, Lamar. . . Eu vimmesmo pedir que pare. Voc
est ensinando coisas que no devemser ensinadas. Voc est nos agredindo,
Lamar. E voc sabe que ns no gostamos de ser agredidos. Mas. . . Tor-
nero fez umsinal coma mo, sinalizando para que Lamar no dissesse nada.
Tambm vim pedir que pare porque isto vergonhoso. Sinceramente. . .
Sinceramente. . . Voc sabe que magia no movimentos de mos, Lamar.
Sabe que no tem a ver com olhares. Com essas. . . Caras e bocas. No
possvel, Lamar, mesmo com sua inteligncia limitada, que voc tenha es-
quecido disso, no ?
Havia algo difcil de explicar na forma como Tornero falava. Um jeito
cheio de penria. Lamar comeou a sentir como se aceitar aquelas palavras
de salvao fosse a nica forma de escapar da iminente destruio. Uma
destruio por irrelevncia e ostracismo; uma forma de irreversvel enco-
lhimento de si mesmo, ao invs de rpida consumao no fogo. Lamar con-
seguia prever todo o tipo de coisa que Tornero poderia fazer; todo tipo de
estrago. Era como lentamente cair em uma espiralada torrente de deses-
pero; uma corrente sem fm de consequncias e mais consequncias de seus
atos, levando ao mais nefasto dos fns.
Tornero explodiu em risadas condescendentes.
Voc mesmo pattico, Lamar. . .
O mestre levantou os olhos, percebendo com os pelos da nuca uma ver-
dade que vinha lentamente tona.
Sua tarefa foi fcil, Lamar. Seus alunos so uns incompetentes. Fazer
aqueles dois imbecis rir foi fcil. Fazer com que voc se indispusesse com
eles. Que sentasse no cho. . .
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No. . . No. . .
No, no, no, no, no. . .
Soterrei voc em seu prprio castelo to rpido que voc no sentiu
nada. Tornero recomeou a caminhar, enquanto o alorfo continuou pa-
rado. Voc, Lamar disse Tornero, voltando-se uma ltima vez para a
conversa como. . . Hm, como dizer? Levantando a mo, mostrou a
ele a regio em volta. Como um passeio no campo para mim.
Quando estimou que ele j devia estar longe, Lamar caiu no cho, de
joelhos, com todas as suas culpas o atacando como rochas que caam em
umabismo ou como se ele prprio, na verdade, estivesse comelas, caindo.
Despencava, podendo sentir cada palmo de sua inevitvel morte no fundo
de uma profunda fenda.
Enquanto lgrimas caam pelo rosto, sua viso fcou turva. Sabia o que
viria depois, e sentiu um tremor percorrer seu corpo; passou a intermiten-
temente contemplar uma espcie de escurido espessa e seca, e sentiu-se
apertado por todos os lados, em cada parte do corpo; sentia-se nauseado
como toda vez que se deixava conduzir quela terra estranha e, quase sufo-
cando, sabia que pedir ajuda era intil.
Na magia, mais do que em qualquer outra coisa, era verdade o que di-
ziam: no se pode deixar de ver o que foi visto. Mas, ainda assim, ele no
conseguia deixar de tentar.
Cada vez mais desesperado, levou a mo aos olhos midos. A escurido
se dissipava e se transformava, aos poucos, em uma espcie de claridade
marrom-clara, com alguns focos de luz azul como os espaos deixados para
as janelas emuma construo de madeira. Via Tornero. Via o cu e via luzes
de velas, tudo em uma estranha dana da qual no queria ser espectador.
Comeou a esfregar o rosto violentamente com as duas mos. Apertava
as plpebras to forte que a vertigem veio.
Viu-se, enfm, esticado entre os dois mundos.
Caiu pra trs, mas sentia-se em p ou deitado e tonto. Perdeu a
noo do tempo que passou massageando o rosto, ora mais calmamente,
ora de forma mais nervosa. Apenas quando voltou a ver somente o negrume
incompleto das prprias mos sobre sua vista esfoliada, sentindo a grama
fria roando a nuca s ento sentiu-se seguro para abrir os olhos de novo.
Contemplou o cu laranja e as plidas nuvens com alvio. Convencendo-se
de que o melhor a fazer era ir para casa, levantou-se e, com passadas lentas,
foi embora.
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Captulo 2
A charrete dos cinco yutsis
A palavra rosano vinha da lngua antiga, a na-u-min. Roun, o nome em
na-u-min para o sol, juntava-se palavra sana, de tempo. Um rosano se
passava ao fnal do ciclo das quatro estaes cada uma com cinquenta
e quatro dias: inasi-u-sana, a mais fria, na qual estavam j quase pela me-
tade; kerlz-u-sana, a seguinte, mais bela e primorosa; torn-u-sana, a mais
quente, e gargsel-u-sana, a cinzenta. Era comum que uma pessoa chegasse
aos noventa rosanos de vida, embora algumas conseguissem viver com paz
e estabilidade para alm dos cento e vinte.
Lamar aprendera quase tudo que sabia sobre o mundo emumlivro velho
e pudo, que ele conservava at hoje, embora nas mos de um novo e vido
leitor. O livro, Registro Geral, foi um presente de um amigo que fzera em
Kerlz-u-een, cidade em que passou a morar com a ajuda da famlia quando
tinha cerca de trinta rosanos. O mesmo amigo fez com que esquecesse tudo
que tinha conseguido aprender sobre magia. Na verdade, fez com que rejei-
tasse tudo aquilo, e visse as coisas de um jeito bastante diferente. O resto de
seu pequeno arcabouo de sabedoria vinha das msicas de sua terra natal,
cheias de histrias vivas.
Lamar sabia tambm sobre minrios, os fenomenais objetos de vrios
formatos, cores e propriedades. Lamar sabia que os minrios pentagonais,
discos razoavelmente espessos mas ao invs de circulares, contendo cinco
lados retos e iguais geravam luz. Sabia que a corvnia, material extrema-
mente resistente e invariavelmente negro, era obtida atravs de um minrio
octogonal o nico com este formato, roxo e translcido. Sabia que por
aquela estrada passava, de hora em hora, uma charrete controlada por um
condutor carrancudo, e levada adiante por cinco yutsis. Ele no sabia que
horas eram, ento esperava que ela no demorasse muito, pois ele no que-
ria mais ter que lembrar de detalhes da histria de Heelum para se distrair
do pesadelo em que sua aula se transformara. Queria logo chegar em casa
e receber, na medida do possvel, o carinho e o cuidado de Myrthes e de
Ramon, e depois, se conseguisse, dormir como um minrio.
A trilha era sinuosa e estreita, uma estradinha que circundava o lado
leste de Prima-u-jir, ligando terras mais distantes a outras mais prximas
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do centro. J estava quase completamente escuro, e ali apenas um minrio
no topo de um alto poste de corvnia iluminava a regio com uma fria luz
azul. Para alm do distante foco fcavam as estrelas.
Por mais que tentasse pensar emhistrias e pedras, nada que ele pudesse
imaginar o deixaria imune a memrias. Ao calcular horas, dias e rosanos,
lembrava-se do passado que queria ignorar. Ao pensar em trilhas, refazia
em sua mente o caminho que fazia, quando era menor, at uma manso na
colina mais alta do centro de Prima-u-jir. Dias mais cinzentos que aquele
tomavam conta de suas sensaes, como se ele estivesse l, e pudesse sentir
de novo a grandeza de um mundo alm de sua imaginao. Um mundo
grande, grande demais para sua pequenez.
Barulhos e vento o despertaram da nostalgia s avessas. O cho estava
sendo pisoteado comviolncia, e as vibraes faziamqualquer corao bater
mais forte.
Ningum fcava indiferente diante da beleza bestial de um yutsi, um ser
absurdamente grande. Quadrpede, com mais de oito ps de altura e quase
dezessete de comprimento, era todo coberto por um exoesqueleto duro e le-
vemente spero, cingido em pequenas partes curvas, encaixando-se em seu
corpo como a armadura mais perfeita j vista. Sua respirao pesada e seus
movimentos do trax eram vibrantes e ritmados como tambores de guerra,
e de seu torso rolio saa por um pescoo curto uma tambm protegida ca-
bea. Seus olhos eram tortos como fendas, e de um vermelho irritadio. A
boca, menor do que se poderia esperar, carregava os dentes mais resistentes
dentre os animais de Heelum, e havia tambm dois chifres tortos, sempre
assimtricos. A cauda era slida e hostil como o corpo e, articulada, nor-
malmente apontava para o cu. Ao invs de ser o ponto fraco do animal,
era na verdade uma arma por vezes mais poderosa que o prprio galope
determinado.
Os cinco yutsis pararam, obedientes, diante do nico homem parado na
estrada. Suas cabeas continuaramviradas para a frente, prontas para partir
a qualquer sinal de impacincia do condutor, que virou o rosto para Lamar.
Vai entrar ou no vai?
Lamar mais uma vez reuniu suas foras e se levantou. Subiu na espaosa
carroceria, ocupada tambm por outro homem, e acomodou-se no canto
direito de trs, apoiando os dois braos sobre a madeira que compunha o
comboio.
O outro que viajava parecia ser mais velho. A charrete seguiu viagem,
e logo fcou rpida novamente. O que a luz dos minrios esparsamente dis-
tribudos por aquela regio permitia ver era que o companheiro de viagem
ostentava uma longa barba escura, longa, aparentemente dura e spera. Ru-
gas pareciam correr para as orelhas como rios abundantes. Logo passaram
perto de um outro poste, e dessa vez uma luz amarela revelou mais de si
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mesmo e de seu colega. Ele tinha uma pele mais escura, e os olhos negros e
diminutos, quase ocultos debaixo de um chapu, demonstravam um tmido
interesse no novo passageiro. Suas roupas eram simples e estavam rasga-
das em vrios lugares; seus ps, completamente descalos e bastante sujos.
Lamar se surpreendeu por ele no estar encolhido, considerando o frio da
noite.
. . . Comeou ele com uma voz arrastada. . . . o senhor que o
mago, no no?
Lamar respirou fundo, aproveitando o retorno da escurido para esperar
que isso passasse despercebido. Pergunta difcil. Em Prima-u-jir, cidade em
que a magia era proibida para os parlamentares, era impossvel adivinhar
a reao que as pessoas teriam ao se confrontarem com um mago. Aquele
homem parecia ser experiente, mas isso no signifcava muito. Olhando na
direo dele, Lamar quase podia ver seus olhos brilhando, suspensos pela
pergunta. O professor tinha a sensao de que um sorriso estava sendo
preparado com cuidado e pacincia, a fogo brando. Empatia ou ameaa?
A ligao entre os olhos se quebrou, mesmo agora que um pouco de
luz poderia possibilit-la. Lamar a desfez. Mentiras e verdades pareciam
to irrelevantes naquele momento; afnal de contas, ainda que no corresse
risco em contar a verdade, qual era a verdade? Poderia se considerar um
mago? Que tipo de mago ele era? Certamente no um daqueles que podiam
ser tidos como responsveis, no fm das contas, pela situao daquele po-
bre homem e de tantos como ele. No fundo, no sabia qual situao era a
mais desesperadora. A perda diria daquilo que nunca se teve ou a perda
constante de identidade.
Sou sim.
Ah, sim! ele disse, e o sorriso veio, como esperado. Os dentes,
poucos, espalhados e manchados, contrastavam com o corao que parecia
estar mais leve. Meu flho faz aula com o senhor! O senhor o mestre,
no no?
Sim, sou sim. Ele conseguiu responder com um sorriso.
bom. . . muito bom! Sonho que ele seja um grande mago, sabe.
assim que a gente vence na vida! disse ele, levantando o dedo indicador e
destacando os olhos.
. . . mesmo.
Coitado, pensou Lamar. Seu flho muito provavelmente no seria um
grande mago. Talvez, se revelasse talento para a magia ou vontade de par-
ticipar de seu projeto de transformao ele pudesse se tornar um alorfo,
como o professor. Os ataques mgicos que ensinaria primeiro seriam os
mais simples dos bomins. Causar sensaes. Manipular sentimentos. Mas
apenas coisas muito bsicas.
At porque no vou muito alm disso. . .
13
Voiui l
E, depois, o que viria? Pretendia conscientizar todo aquele povo acerca
do modo como a magia operava. Pretendia contar-lhes histrias. Histrias
sobre os governores os governores e os monstros, e a luta do povo contra
a opresso; a luta deles contra a dominao e as injustias. Quem sabe eles
no abririam os ouvidos e o corao para uma voz que viesse com palavras
de mudana e de melhoria?
Talvez aquele senhor no pudesse mudar, refetia Lamar. Talvez ele no
concordaria com coisa alguma muito menos com algo perigoso e incerto
como isso. Talvez no tivesse mais foras para isso. Mas alguns. . . Alguns
ele conseguiria infuenciar. Alguns ele conseguiria aliciar, e ento teriam
em Prima-u-jir pessoas dedicadas causa, que se expandia cada vez mais
para o sudoeste.
Prima-u-jir era uma cidade tradicional, sem grandes pretenses. Parecia
no ter vcios ou mculas. Ao contrrio de Kerlz-u-een, potente, imponente
e complexa, Prima-u-jir era como uma grande vila camponesa. Dentro das
jirs os aglomerados de casas emque as pessoas de fora do centro moravam
e trabalhavam havia grandes casas, em geral redondas, que abrigavam
irmos, irms, e por vezes amigos. Casas pequenas, em que cabiam apenas
os pais e um flho (como a de Lamar), eram raras, assim como nunca fora
comum um alorfo na cidade. Depois que voltou de Kerlz-u-een, demorou
at tomar coragem de contar suas intenes para a famlia. O resultado foi
particularmente desolador.
Lamar olhou para o homem e pensou, assaltado pela cortante realidade:
eles sabem. Ps a mo na testa. Eles sabem. Eles, os magos de Prima-u-jir, e
um dois em especial. Sabem que estou aqui de novo, sabem que estou
lecionando e que quero causar problemas. Vo querer me causar problemas
antes disso. No demorar at que achem minha casa e ameacem minha
mulher at que ameacem meu flho. No demorar muito para que os
tomem de mim e exijam que eu pare. Ou que me prendam, inventando uma
acusao qualquer e tornando o julgamento silencioso e repentino. . . No
demorar para que eu morra, ou para que eu seja torturado em nome de
uma macabra mistura de diverso e vingana.
Myrthes abriu a porta. Lamar j tinha sado da charrete, andado at
sua casa e no havia se dado conta; a escurido que o envolvia era mais do
que literal. Nada mais parecia estar chegando a seus sentidos como deveria,
mas foi capaz de identifcar sua mulher e sorrir. Myrthes era uma mulher de
rosto fno, alongado e corado. Vestia um largo roupo laranja, j desbotado,
e um pano azul ajudando a prender o cabelo escuro. Quando seus olhos
encontraram os de Lamar, ela soube que algo de ruim aconteceu.
Ele fcou parado, estancado frente da porta. Apoiou a mo no batente
para ajudar a controlar tudo que havia dentro de si. Sabia que deveria entrar,
sorrir e abraar sua mulher. Ir ver como estava o flho. Sabia que no deveria
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
fazer o que estava fazendo, mas estava farto do dia, dos pensamentos
que no conseguia evitar. Continuou l, incapaz de se mover. Movia os
olhos, mudando-os de direo sem parar, alternando entre regies variadas
do pescoo da mulher. Ela, por sua vez, segurava frme a porta, apertando-a
cada vez mais. Aoutra mo balanava empenosa ociosidade, esperando por
alguma reao.
Querido. . . ?
, eu. . .
Parou. Teve vontade de coar o nariz, mas no o fez. Olhava agora para
o cho atrs de Myrthes; o estado letrgico fora apenas trincado, recebendo
um golpe fraco demais para se levar a srio, mas forte o sufciente para que
ele praticamente desabasse na cadeira da cozinha. Mais que ligeira, Myrthes
buscou numa jarra um pouco de gua. A luz azul escura e forte da cozinha
o deixava ainda mais frio por dentro, incomodado pelas grandes sombras
que ele e a mulher projetavam na mesa e no cho.
O que foi que aconteceu, querido, diga pra mim. . . O que foi?
Meu bem, a. . . A aula foi. . . Balanou a cabea enquanto ela mas-
sageava seu brao de leve por cima da roupa. Um desastre.
Por qu? O que aconteceu?
A aula foi boa, na verdade. . . Ele comeou, voltando a recobrar
uma melhor conscincia dos atos e das palavras. Olhava para ela enquanto
falava. Queria dizer que a maioria dos alunos da aula passada voltou para
esta, e que treinaram um ataque simples, mas o jeito certo de formar as
frases foi sendo esquecida medida que era pensado. E. . . Deu tudo
certo, at. . . Mas eu no fui capaz de ver, Myrthes, porque eu estava cego,
eu. . . Atacado. Derrotado. Desde o comeo, desde o incio, o comeo da
aula. . . Tornero estava l. Estava usando uma capa pra cobrir o rosto, eu
no vi que era ele. Teria reconhecido se tivesse visto o rosto dele.
E quem Tornero?
Eu nunca falei dele. Voltou os olhos para o cho numa brevidade;
Myrthes comeou a dizer que no havia problema algum nisso, mas parou
para que ele pudesse ir em frente. Ele . . . Quando meu ex-mestre se
recusou a continuar tentando me ensinar e. . . Eu no fui em frente. . . Ele
adotou Tornero. Como novo aluno, entende?
Ele te fez alguma coisa?
No me bateu, ou. . . Me feriu com a espada. Ela pouco se tran-
quilizou. Sabia que isso no era o pior que ele podia fazer. Mas me disse
umas coisas. . . Me ameaou. . . Disse que eu deveria parar de ensinar. E me
atacou.
E o que ele fez?
- impossvel saber. . . Alguns alunos riram, eu. . . Eu me irritei com
eles. Mas me manipulou, e eu permiti que ele me manipulasse, porque eu
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Voiui l
sou fraco, e. . . Sou fraco, Myrthes, sou fraco! Ele aumentava tanto o
volume quanto o tom de lamria na voz cansada. Ela, preocupada, tentava
dissuadi-lo da autopiedade. Sou um mago, um mestre, um professor, mas
o qu que eu tenho pra ensinar? No consigo me. . . Me defender, ento e-eu
sou uma vergonha. . . Ele mesmo disse isso, e. . . No consigo me defender.
No vou conseguir defender vocs se. . .
Escuta. . . Ela usou as palmas das mos para fxar seu rosto, foran-
do-o a olhar para ela. Voc voltou para c muito mais forte. Voc um
alorfo! E se no conseguiu se defender porque renegou a magia, e com
conscincia, com mente feita! Voc muito mais corajoso do que esse co-
varde. Voc est acima deles, e o que ns viemos fazer aqui . . . Uma coisa
que ns no podemos parar! Que ns no podemos acabar!
Ele a olhou entristecido, mesmo sabendo que aquelas eram palavras do-
ces de razo.
Voc me ouviu?
Sim. . . verdade.
Sim, claro que ! Ela sorriu um sorriso simples de triunfo. Ele
atacou e intimidou porque queria que voc desistisse! Talvez, se isso for
possvel. . . At agora ele estava a dentro ainda.
Ele a olhou mais uma vez, pensando o quanto de razo tinha o que ela
dizia. Ele ainda estava ali, infuenciando tudo o que sentia com suas ofensas
e chantagens. Mas ele precisava ir embora, e Lamar sentia que estava pronto
para expuls-lo.
O silncio foi rompido por uma voz infantil que vinha de um dos cmo-
dos da casa.
Papai?
Lamar e Myrthes sorriram um para o outro, em cumplicidade; um sor-
riso rpido, sobre o qual Lamar no teve tempo de refetir.
Sim, eu acho que sim. . . Eu tenho medo por voc. Tenho medo por
ele.
Se voc teme por ns, ento no tema. Ele precisa de um pai forte.
Papaaaai. . . ?
Myrthes deu um rpido beijo em Lamar e aproximou-se da porta do
quarto.
Mame, o papai chegou?
Ser? Vai ali ver! brincou ela, dando um sorriso que entregou a
presena do professor na casa.
Ebaaaaaa! Papaaaai. . . Sua voz foi abafada por um abrao forte e
completo instantes depois.
O calor encheu novamente a casa. O mestre alorfo ps o flho no cho
e deu uma boa olhada no rebento de pouco mais de dez rosanos, que tinha
uma cabeleira negra e espessa como a da me. Mirrado, mas j alto para a
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
idade, tinha o sorriso e os olhos do pai. Mesmo orgulhoso coma semelhana,
Lamar podia apenas ter esperanas de que ele fosse mais corajoso.
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Captulo 3
O Yutsi Rubro
A casa de Lamar, Myrthes e Ramon no era grande. No apenas no
precisavam de muito espao; no podiam se dar ao luxo. Oval, era dividida
emquatro cmodos: uma cozinha, umbanheiro, e dois quartos; umdos pais,
outro para o flho.
Tudo nela era bagunado e parecia provisrio. A cozinha tinha espaos
abertos nos quais utenslios, e a pouca comida estocada, eram guardados,
alm de uma mesa encostada parede interna da casa e um banco, grande
somente para os trs. O minrio azul-escuro que iluminava a casa inteira
fcava pendurado no teto, perto da janela do banheiro, que fcava para o
lado de dentro justamente para receber a luz da mesma fonte. Havia um
outro gerador de luz na casa: um pentgono verde cintilante que iluminava
o quarto de Ramon. Ele dormia junto com a pedra, pois os minrios davam
luz a partir do frio (as noites de Inasi-u-sana eram as mais iluminadas) e o
calor humano do garoto deixava o quarto escuro como breu, bem ao gosto
de seu sono pesado.
Tcnicas para dormir melhor no eram realmente necessrias. Todos
os dias Myrthes, Lamar e Ramon acordavam cedo e andavam at a casa
de Jenia, uma senhora de idade, doce e afvel, proprietria de todo aquela
jir. De l pegavam cestas e passavam horas colhendo os vrios tipos de
frutas cultivados naquelas propriedades; de uvas a laranjas. Ramon no
trabalhava, e passava o dia brincando; muitas vezes sozinho, algumas vezes
com flhos de outros trabalhadores, mas sempre por perto. Voltavam para
casa cansados, coma noite j dando as cartas. Quando Ramon fcou sabendo
que no iriam trabalhar um dia a cada cinco, fcou feliz, mesmo os adultos
da casa sabendo o tipo de consequncias que isso traria para eles.
Depois do desabafo e do ganho de confana, Lamar divertiu-se com Ra-
mon. Passaram o resto da noite pintando a parede do quarto do garoto. Ti-
nham apenas trs cores de tintas, cedidas por Horacil, um parente de Lamar
que no havia cortado relaes com ele. Vermelho, verde e rosa formavam
uma esplndida combinao de desenhos e frases, ainda que a variedade
fosse reduzida: guardado em uma alta prateleira de madeira perto da pa-
rede interna da casa justamente para que os iluminassem enquanto brinca-
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Voiui l
vam, o minrio verde tornava o trabalho possvel, mas obscurecia a usual
vivacidade da tinta de mesma cor.
Depois de algum tempo trabalhando, e com a parede quase toda co-
berta, Ramon sentou-se, parecendo exausto. Lamar parou de pintar tam-
bm, acompanhando o flho.
Pai. . . Como o branco?
O branco? Disse Lamar, pego de surpresa. Bem, eu. . . Nunca vi
branco.
Mas e os arcos brancos? No so brancos? ele estava esperanoso.
So. Mas eu nunca vi os arcos tambm, flho. Nunca estive na Cidade
Arcaica.
Mas a mame disse que voc foi l.
No, eu no fui no. . . Na verdade eu fquei durante um tempo em
uma cidade bem prxima, que se chama Kerlz-u-een.
L onde voc conheceu a mame?
Isso. Essa mesmo.
E. . . Ento voc nunca viu nada branco? Nada nada?
No, flho. A no ser os arcos, no tem mais nada branco no mundo.
Uma expresso de ntida frustrao brotou no rosto de Ramon, que es-
tava tendo difculdade em entender aquilo. Esperava que o pai pudesse ex-
plicar. O branco existia; era uma cor como as outras, mas ao mesmo tempo
nada podia ser branco. Ser que conseguiria imaginar algo que jamais havia
visto em lugar algum?
Filho. . . Sabe as nuvens, quando de dia?
Uhum.
De que cor so?
Amarelas. . . respondeu, intrigado com a pergunta simples.
E um amarelo claro ou escuro?
Hmmm. . . Claro, pai.
Certo. Agora. . . Voc consegue pensar num amarelo mais claro?
Hmm. . . Uhum! Disse, pensando na nuvem mais clara que j havia
visto.
Ento. Dizem que o branco a cor mais clara que existe. Como se
voc pudesse tirar toda cor do amarelo, e s o que sobra . . . Claridade.
Uau!
O menino se esforou. Olhava para frente, mas se concentrava em uma
nuvem imaginria. Por mais que tentasse, no conseguia tirar a cor dela.
Sempre que tentava, era como se ela desaparecesse em sua mente.
Ou ento. . . Olhos! Vem c Lamar aproximou-se do garoto e fcou
face a face, os olhos dos dois a uma pequena distncia uns dos outros. Ra-
mon riu quando fcou vesgo ao tentar olhar para o rosto do pai vindo em
sua direo; Lamar riu junto. Que cor so os meus olhos?
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Preto por dentro. . . E azul de fora!
um azul claro?
Aham. . . Ramon j tentava, estreitando os olhos, clarear o azul dos
olhos do pai o mais que podia.
Mais claro! Cada vez mais claro! E os nossos dentes? Lamar abriu
a boca e, levantando a cabea, fez como se tentasse morder o nariz do flho,
que se afastou pra trs, rindo. So amarelos, no so?
So! Ria o garoto.
Imagina um dente bem bem bem claro agora!
O flho ria de um jeito bobo que Lamar achou irresistvel. Viu-se, de
repente, em um daqueles momentos em que seu medo de perder sua famlia
mais aumentava: quando era mais do que incrvel estar com eles.
Eu imagino a gente sem dente, pai!
E os dois entregaram-se alegria ainda mais. O riso de Lamar durou
menos; no pde deixar de lembrar do senhor com o qual conversara na
volta para casa.
Pai. . . Conta pra mim a histria da luz? Pediu Ramon, acalmando-
se mais.
Qual histria?
Aquela primeira! Dos guerreiros!
Ah. . . Bem, vamos sentar ali na cama ento.
O flho se jogou com velocidade em cima do colcho velho, coberto com
trs camadas de lenis e cobertores. Lamar o acompanhou, mas chegou
devagar e cauteloso. Ele sabia que, para contar essa histria, era preciso
come-la devagar. Era preciso aguar a espera. Ramon eventualmente pe-
diria para que ele pulasse algumas partes desinteressantes, mas seu pedido
seria propositalmente negado. A expresso no rosto do flho quando ele
pedia por aquilo era algo que Lamar nunca se cansava de rever.
Bem. . . Confortvel?
Sim! Respondeu ele, sorridente.
Ento vamos l. . . H muito, muito, muito tempo atrs. . . No comeo
dos tempos dos homens. . . Todas as pessoas moravam em uma s cidade.
No era uma cidade grande, mas era boa o bastante para todo mundo.
L todos se conheciam e todos se gostavam. Todos ajudavam a fazer
a cidade, a colher a comida, como a gente faz. . . A cuidar das casas, das
pessoas. No fnal, todos tinham tudo que precisavam para viver. Era um
tempo semguerras e semdivises. Todos eramums povo, uma s cidade. . .
E viviam em harmonia. E isso tudo por causa da Rede de Luz, a nica coisa
branca em toda Heelum.
Ningum sabe h quanto tempo a Rede de Luz estava ali antes de ela
criar as pessoas, mas s sabemos que um dia ela criou a gente. A Rede de
Luz fazia coisas fantsticas. Ela unia todo mundo, porque todo mundo se
21
Voiui l
entendia. Cada um tinha um pouquinho da luz, mas. . . Ningum mandava
na luz. Se eu tinha luz, e voc tinha luz, ns podamos trocar nossa luz e
a podamos sentir um ao outro. Podamos pensar o que o outro pensava,
sentir o que o outro sentia. . . Ento todo mundo se entendia mais. Todo
mundo brigava menos.
Mas umdia algo terrvel aconteceu! Umhomemruim, muito mau, achou
que podia enganar a todo mundo. Uma vez, algum deu a ele o pouquinho
de luz que tinha, mas o homemno deu a dele de volta! Ohomemfugiu com
o punhado de luz que tinha, pegou as armas de caa da cidade e fez outras
pessoas de prisioneiros, roubando a luz delas. Ele achou que ia comear a
mandar em todo mundo, ia fcar mais forte e melhor que todo mundo!
A Rede de Luz ento aplicou uma lio no fugitivo: ele foi transformado
emumterrvel yutsi. Ele no era como umyutsi normal; e isso que umyutsi
j assustador sozinho. . .
No. Ele era um yutsi vermelho, que todos chamaram de Yutsi Rubro.
Esse yutsi era mau.
Nem todos so maus? perguntou Ramon.
No, nemtodos! disse Lamar, comuma voz tranquilizadora. Ramon
sempre reagia histria como se fosse a primeira vez que a ouvia, e fazia
uma pergunta diferente a cada vez que a escutava. Tudo aquilo deveria ser
surreal para ele. Lamar desejava, por um momento, ser criana outra vez e
ouvir essas histrias no quarto, contadas pelo pai, pela me ou por umirmo
mais velho. Ramon estava deitado em um quarto em Prima-u-jir, e atravs
de sua janela podia ver estrelas de todas as cores pontilharem o cu. Dentro
do quarto, luz de um sombrio minrio verde que envolvia o rosto do pai
em sombras, ouvia uma histria sobre um homem que foi transformado em
yutsi. E os yutsis que ele via quase todos os dias, levando as charretes? No
poderiam ser eles tambm homens transformados?
E os monstros ento, o que eram?
Esse yutsi, depois de um tempo, foi at a cidade dos homens uma noite
e destruiu tudo! Ele estava cheio de dio, raiva. . . S queria a destruio!
Os homens tentaram se defender e salvar o que podiam, mas ele era pode-
roso demais! Ningum conseguia segurar. Ele acabou com as casas, com a
comida. . . Matou pessoas, antigos amigos dele! A Rede de Luz criou uma
coisa realmente ruim.
Ento os homens se separaram e fugiram da cidade, que hoje a Cidade
Arcaica. Deixaram pra trs a nica coisa que fcou de p ainda: os arcos
brancos, criados pela prpria Rede de Luz, e que serviam como registro dos
homens, que escreviam o que ia acontecendo na cidade. O yutsi no era
capaz de destruir os arcos. Eram resistentes demais at mesmo para ele!
Ento passou-se muito, muito, muito tempo e os homens criarammuitas
cidades. A primeira foi Kerlz-u-een, a cidade em que eu morei, conheci a
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mame. Que voc nasceu. . . A segunda. . .
Ah, pai, pula essa parte, pai! Pula! Essa parte chata!
Claro que no! O sorriso provocador de Lamar causou um delicioso
som arranhado de quase angstia no flho, que o pai saboreou lentamente.
. . . E. . . Onde que eu estava. . . Ah, a segunda foi Enr-u-jir, uma ci-
dade que quase sempre chove. Depois Al-u-een, a cidade bela, e, por ltimo,
Roun-u-joss, a cidade dos navios.
O engraado de todas essas cidades que elas conseguiam manter con-
tato. Isso quer dizer que as pessoas se falavam, mesmo estando muito longe
umas das outras. Elas conseguiam fazer isso por causa da Rede de Luz. Na
noite em que os homens foram expulsos da Cidade Arcaica, a Rede de Luz
subiu aos cus e, mais brilhante que o sol, fcou l em cima, visvel em todos
os lugares, para todo mundo, e os homens podiam se falar por ela.
No demorou muito para outras cidades comearem a aparecer. . . Os
homens foram descobrindo mais sobre Heelum. Viajaram at os limites da
terra. Foram at as praias! E eles comearam a fazer armas, tambm! Passa-
ram a querer voltar para a Cidade Arcaica. Recuperar a cidade, derrotando
para sempre o Yutsi Rubro!
Foi ento que eles formaram o Exrcito da Luz. Cada cidade mandou
um homem e as armas que pudesse fazer, e eles foram se organizando para
chegar Cidade Arcaica e atacar o yutsi. Ento, depois de muito viajar,
eles chegaram. E, mesmo depois de muitos e muitos rosanos, j que aqueles
guerreiros no eram os mesmos que saram da Cidade Arcaica. . . Muito
tempo j tinha passado, no ? Bem, depois de muito tempo. . . O Yutsi
estava l! Enorme, forte. . . E mau.
Uau! E a eles brigaram!
Ah, sim. Brigaram sim.
Com espadas!
Claro, com espadas, escudos. . . Eles lutaram por horas e horas sem
fm, sempre fcando feridos, sempre com medo, nunca conseguindo atacar
o yutsi! Parecia que iam perder; o animal era muito rpido, e nunca se
cansava! Eles achavam que era o fm deles.
Ramon esperou um pouco, desconfado com o tom mais triste do pai, e
ento adicionou:
Maaaas. . .
Maaaas. . . Um guerreiro teve uma ideia! Lamar levantou o dedo
indicador e sorriu novamente, alterando o tom de voz. As coisas pareciam
ter se ajeitado novamente; Ramon ria e, ansioso, esperava pelo fnal. Ele
atraiu o yutsi para perto dos arcos brancos e, bem na hora em que o yutsi ia
atacar, saiu de perto e o inimigo deu com o focinho nos arcos, e tombou no
cho!
Bem feito, Yutsi! repetiu o garoto; os olhos brilhavam de excitao.
23
Voiui l
Bem feito mesmo! E ento. . . Os guerreiros aproveitaram que o Yutsi
estava fraco e ele fnalmente foi derrotado de vez. Naquele momento, todas
as cidades fcaram sabendo do que aconteceu pela Rede de Luz, e todas as
pessoas comemoraram a morte do Yutsi Rubro.
! Isso a!
. . . Mas eles no sabiam do que aconteceria depois.
E o que aconteceu?
Enquanto os guerreiros se davam parabns, o corpo do yutsi comeou
a se desintegrar!
E como isso, pai?
Bem. . . . . . quando o corpo comea a se desfazer em vrios peda-
cinhos pequenos, do tamanho de uma. . . Deixa eu pensar. . . Do tamanho
de uma grama. Sabe, folha de grama, uma graminha? E os pedacinhos, por-
que eram leves, comearam a voar, voar, e comearam a entrar nos corpos
dos guerreiros!
Ai, no!
. . . E desde aquele dia, a luz sumiu. A Rede de Luz desapareceu
e nunca mais voltou. . . Ns, infelizmente. . . A perdemos. E todo mundo
teve que aprender a viver sem ela. Lamar, que adorava contar aquela
histria, tinha que reconhecer que ela tinha um triste fm. No conseguia
evitar a incmoda tristeza que acompanhava aquela histria; a histria do
desencontro entre os homens. Quo felizes e unidos no poderiam ser se
ainda tivessem a Rede de Luz?
Depois de divagar um pouco, Lamar voltou a ateno para o flho e per-
cebeu que ele o olhava com uma feio neutra. Seus olhos passaram rapi-
damente de alegria a algo que muito lembrava o medo, mas era uma inqui-
etao maior.
Que foi, flho? Algum problema?
Pai. . . Eu estou conseguindo ler aquele livro, sabia? O livro dessa
histria.
O Registro Geral?
Uhum. Mas. . . De vez em quando. . . Ele meio difcil. . .
No se preocupe, flho. Eu sei que ele .
E na parte dessa histria eu vi um monte de vezes a palavra mago,
papai.
Lamar sorriu de leve. Olhou para o teto e respirou fundo antes de voltar
a ouvir o flho.
O que mago, papai?
Ah, flho. . . Magos so. . . Pessoas diferentes.
. . . Diferentes?
Elas. . . Conseguem fazer coisas que pessoas normais, que no treina-
ram bastante, no conseguem.
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Como o Yutsi Rubro?
Mais ou menos.
Lamar tentava explicar magia da maneira mais simples possvel para o
flho. Se dissesse o que de fato a histria conta sobre os vinte e trs guer-
reiros que provavelmente foram os primeiros magos podia acabar des-
truindo a viso heroica que o garoto tinha deles. Tambm poderia, pelo
contrrio, destruir a prpria perspectiva de fazer o menino pensar moda
alorfa quanto aos magos, se ele resolvesse que eles eram bons porque os
guerreiros tambm eram. Resolveu deixar que ele descobrisse a seu tempo,
lendo o livro. Se ele mesmo no foi alorfo desde o princpio, por que o flho
deveria ser?
E voc, papai? Voc mago?
Eu. . . Sou sim, flho. S que de um jeito diferente.
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Captulo 4
A porta
A luz do sol sempre fazia o mesmo caminho do cu at aquela porta
durante a manh. Entrava por uma janela suja e que no fechava mais ela
emperrara e ningumna casa sabia consertar, tampouco havia dinheiro para
contratar algum que soubesse e durante algumas horas a luz amarelada
aquecia a longa e espessa tbua de madeira que fcava direita da escada
de ferro, sempre disposta a amedrontar qualquer visitante com sua ruidosa
fragilidade.
Leo estava parado bem em frente porta. Seu quarto fcava esquerda
da escada, e s no era mais prximo do lugar onde estava agora que o
quarto de Beneditt. No fnal do corredor, ainda mais longe, fcava o banheiro
e, direita, o quarto de Fjor. A porta que Leo observava dava acesso ao
quarto de Leila.
A madeira era marrom e escura. Fosca, estava completamente riscada
e arranhada. Alguns dos riscos faziam sentido; outros, no. A maaneta,
em forte contraste com a madeira, por vezes profundamente sulcada, era
impecavelmente limpa e negra.
Leo passava os dedos pela superfcie de cima a baixo, lentamente, sen-
tindo a textura semdeixar as unhas encostaremnela, para no fazer barulho.
Leila estava do lado de dentro do quarto, e ele no queria alert-la para sua
presena. Era frequente Leo encostar o ouvido porta, sentindo as farpas
nas bordas dos cortes encostando na orelha, tentando ouvir o que ela estava
fazendo. Na maioria das vezes alguns sussurros soltos voavam pelo ar e vi-
nham de encontro a ele, mas quando passavam pela barreira perdiam todo
o signifcado.
Quando isso acontecia, Leila estava provavelmente compondo. Leo e
ela tocavam juntos formavam uma banda, todos os moradores da casa,
a nica exceo sendo a av de Leo e Fjor, Cordlia. Tinham sorte de ter
nascido na cidade mais musical de Heelum: Novo-u-joss, bero da guitarra.
Estavamno lugar mais apropriado de todos para seremcriativos, e tentavam
ser reconhecidos por isso. Fjor tocava o contrabaixo; Beneditt era o baterista
embora soubesse tocar guitarra tambm. Leo e Leila dividiam os vocais e
as duas guitarras, embora ela fosse a responsvel pela maior parte das letras.
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Voiui l
Os dedos de Leo alcanaram a parte mais interessante, de frente para
sua cintura. Cavadas com fora, violncia e provavelmente pressa, letras
grosseiras formavam trs simples frases:
Pode um cantor cantar
O que ele no pode ver
Mas o ar lhe faz falar?
Leo sorriu.
Como a maioria dos sofrimentos impingidos epiderme da porta ao
longo do tempo, Leila no sabia quem havia escrito aquilo. Leo tambm
no fazia ideia. Ainda assim, se precisasse apostar, diria que a prpria Leila
o fez, e estava apenas criando um mistrio ao redor de uma genial criao.
A nica coisa que ela admitiu fazer, no entanto, foi a continuao: um nico
verso, trabalhado de maneira substancialmente mais cuidadosa, e que ter-
minava perfeitamente a j boa trade.
Farfalhar lhe faz falhar
A porta abriu de supeto. Leo deu um passo pra trs, com o corao
batendo mais rpido, mas tentou fazer aquilo parecer o mais normal poss-
vel; olhou direto nos olhos de Leila e, respirando fundo, fechou a boca ao
perceber que ela continuava aberta desnecessariamente. Fechar a boca pro-
vocou uma vontade inelutvel de engolir em seco. Fez, quase que querendo
desfaz-lo no meio do caminho, e pareceu ainda mais suspeito.
Oi. . . Leo disse Leila, com seus grandes olhos bem abertos.
Leila era como a porta do prprio quarto. Muito mais agradvel de se
olhar, verdade, Leo diria, mas provocava o mesmo efeito de fascinao.
Quem poderia saber o que signifcava aquela porta, e tudo que havia nela?
E quempoderia fazer sentido de Leila, e de tudo o que escrevia, dizia e fazia?
Toda vez que Leo lembrava dela, imagens do azul real do cu e do verde
mais vivo das colinas vinham mente. O cheiro daqueles bosques em que
eles podiam passar horas interminveis escrevendo e falando sobre tudo
invadia a mente dele como um arete. Leo ouvia o que a garota criava, e
impressionou-se desde o primeiro momento com as msicas que ela com-
punha. Logo passou a colaborar com ela.
Leo sabia que se apaixonaria por ela. No sabia como reagir a este co-
nhecimento futuro to ntimo, fatalista, certeiro: no sabia como esperar
aquilo surgir, se deveria agir desde o primeiro momento, ou. . . No sabia
com quem deveria falar. Com quem contar. O pai fora embora. A me no
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
parecia apta a dar conselhos. Fjor no era um poo de sabedoria confvel.
Tudo que Leo sabia que Leila o teria na palma da mo. Era s uma questo
de tempo.
Quando os dois se conheceramtinham a mesma diferena de altura. Leo
no chega a encostar na porta, que no era nem alta, nem baixa, mas est
um tanto mais prximo do topo que Leila. Ele tem a pele morena, mas no
no mesmo nvel da cor da porta. Seus olhos eram escuros, de um escuro
tom-de-maaneta.
Ela era diferente. Ocabelo era castanho, ummarromsimilar ao da porta;
uma espcie de camufagem que s era interrompida pelos diversos cortes
no pano de fundo. Mas os cortes, de um amarelo mais claro, embora vivo, se
assemelhavam, ainda mais incrivelmente, cor de sua pele. Os olhos, cas-
tanhos um pouco esverdeados eram expressivos, mas to misteriosos
como as diversas inscries naquele portal cheio de histria: mostravam-se
a quem quer que fosse, sem pudores, mas recusavam-se a dobrar inquisi-
o do observador mais atento.
Fazendo-se de assustado, Leo logo soltou uma risada nervosa, que con-
tagiou Leila.
Nossa, voc. . . Me assustou um pouco!
, e-eu vi! comentou ela, colocando a mo fechada por sobre a boca
risonha. O quarto dela, com a janela deliberadamente aberta, era sempre
claro durante o dia. Leila no gostava de compor no escuro. Voc me
assustou tambm. . . Um pouco.
Eu. . . Vim falar com voc.
Sobre o qu?
Sobre. . . Hoje noite. Se est tudo certo pra gente tocar l.
Sim, claro. Por que no estaria? Retrucou ela, a testa franzida.
Leo suou um pouco mais e teve vontade de punir a si mesmo severamente
pela estpida improvisao.
Os cabelos no deixavamexplcita uma conexo que de fato existia entre
os dois: cada um escolheu um estilo para o outro. Leila fez com que Leo o
deixasse curto e bagunado. Ela dizia que o cabelo deveria funcionar como
a poesia de uma cano: elas surgem e crescem, mas s fcam boas quando
mos habilidosas as cortam e as recombinam.
Leo no via as coisas do mesmo jeito. Achava a beleza da natureza algo
muito maior ainda que visse as colinas mais como molduras para o rosto
de Leila. H algo de especial naquilo que surge espontaneamente, sem pres-
ses ou interferncias; algo de inexplicavelmente e intrinsecamente belo
naquilo que simplesmente acontece. E a vasta cabeleira de Leila acontecia, e
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Voiui l
era seu crescimento raramente interrompido (por causa da deciso de Leo)
que o deixava cada vez mais exuberante.
No, que. . . Faz algum tempo que a gente no te v. P-Por. . . A.
, eu fui trabalhar de novo ontem. Fui com o Beneditt.
Uhum.
Mas estive fazendo umas coisas novas aqui e. . . Bem. . . Uma hora eu
te mostro.
Certo.
Certo. Os dois balanavam a cabea afrmativamente, sorrindo de
leve, como que concordando com algum arranjo abstrato. Os olhares se
encontraram, e naquele momento de contato Leo desejou ser capaz de en-
tender o que ela estava tentando diz-lo. Se que estava tentando dizer
alguma coisa. . . . Bem, eu. . . Vou voltar.
Claro.
At.
Comalgo que se assemelhava a umsorriso nervoso, Leila fechou a porta.
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Captulo 5
Magnfco e fantstico
Novo-u-joss fca na regio Norte de Heelum ou, mais precisamente, na
regio Noroeste. H muito tempo, quando a msica era feita de contrabai-
xos, fautas e instrumentos de percusso, descobriram na cidade o nquel,
metal que fez os homens se perguntarem se no poderiam criar outro ins-
trumento. A resposta a essa pergunta foi a guitarra, que logo se espalhou
por todo o continente.
O som do instrumento de freixo era algo nico, marcadamente diferente
de tudo que qualquer um j havia ouvido. Pensou-se at que era mais um
dos mistrios de Heelum. Era robusto, encorpado e alto: enchia uma sala
de som com pouco mais que um puxo em uma corda, e parecia ter um
tipo de fora gutural que arrepiava a todos que a ouviam pela primeira vez.
Admirao, respeito, medo. As guitarras eram imponentes, mas sua altivez
era diferente daquela de um yutsi: um impulso que fazia tremer de dentro
pra fora, ao invs de o contrrio; um impulso que fazia crescer ao invs de
desejar encolher. A cidade cresceu em torno do estilo musical que a guitarra
ajudou a inventar.
O quarto de Beneditt era pequeno, tanto quanto o dos outros homens
da casa. Suas roupas, poucas e enegrecidas pelo tempo (de uso), fcavam
amontoadas no nico canto livre do dormitrio. Com a janela acontecia o
oposto da do corredor: no abria mais. As paredes eram azul-claro, mas a
pintura, descascada e mal feita, tornava todo o ambiente ainda mais soturno
do que se fosse apenas plida, cinza ou marrom. Beneditt no gostava do
prprio quarto, mas no porque queria um maior. Queria era poder morar
em um lugar diferente a cada rosano. Mas tinha um quarto com dois amon-
toados de tecidos; um que vestia e outro no qual dormia. O resto do espao
era dedicado aos tambores, pratos e bastes que criavam, combinados, sua
prpria bateria.
Quase pronto? perguntou Fjor que, como Beneditt acabara de per-
ceber, estava parado em frente porta aberta.
Quase sim.
Beneditt colocava suas coisas emuma mala feita de goma escura, umdos
nicos luxos da casa em que moravam. Precisava de uma dessas para que
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Voiui l
nada molhasse. Olhou brevemente para Fjor, e mnimos sorrisos cordiais
surgiram em ambos os rostos. Fjor, carregando seu baixo nas costas, partiu
para o andar de baixo da casa.
Leo colocava sua guitarra na caixa. Era preta e velha, com um formato
clssico: simples e efciente. Ou, talvez, nem to efciente, j que uma das
cordas estava produzindo um som diferente como se ela estivesse per-
dendo a fora e, arrastando-se com a ajuda das outras cinco amigas, ia so-
brevivendo. No foi a primeira guitarra de Leo, mas com certeza era a mais
especial. Tinha pintado um L na borda de cima, que ele reforava toda
vez que a letra ameaava se apagar. Todos pensavam que signifcava Leo.
Quando perguntavam por que ele no desenhava na parte de frente, para
que todos a vissem, ele simplesmente dizia que gostava da ideia de ter algo
que somente ele poderia ver durante um show. Mas isso no importava
muito para ele. No olhava tanto para o L quanto para quem a letra re-
presentava.
A guitarra de Leila j era um pouco diferente. O formato era tambm
clssico; nunca teve dinheiro o sufciente para comprar algo mais original,
que defnitivamente queria. Mas era vermelha, imaculadamente vermelha,
e era to perfeita em seu estado natural que Leila no ousava modifc-la
de qualquer forma. A cabea da guitarra tinha um desenho original que ela
preservava com ainda maior devoo: um onioto, uma gigantesca ave da
regio montanhosa do centro de Heelum, com um bico longo e um olhar
severo.
Leo desceu as escadas e, quando chegou ao primeiro andar, viu Beneditt
encostado em uma parede e Fjor em outra.
. . . Hoje tem muitos desses malandros que no tocam nada, mas que-
rem tudo! Muitos! Quando eu era mais nova o povo daqui se recusava a
ouvir uma coisa dessas! Aaah, um absurdo!
Cordlia era a v materna de Fjor e Leo. J de idade avanada, no era
mais to capaz de trabalhar, e no conseguiria ganhar o sufciente para se
manter se no passasse a dividir a casa com os netos e com os amigos de
Leo, Beneditt e Leila.
Com pele e cabelo bem escuros, o rosto enrugado e o corpanzil lento
no faziam jus atividade da mente e a justeza do corao. Cordlia era
cida crtica de uma nova gerao de msicos adeptos ao rock de cidade.
Ortodoxa, ganhava a admirao de pelo menos um dos netos, que seguiam,
ao ver dela, o caminho da boa msica.
Mas por que que as pessoas gostam disso, ento? perguntou Be-
neditt.
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Porque esses jovens no tm nada na cabea, meu querido. . .
No penso assim no, v. Interrompeu Fjor. Eu sei bem o que
acontece. . .
Ah, claro. . . disse Leo, entrando na conversa e atravessando a cozi-
nha at fcar do lado de sua av Fjor e sua explicao mgica pra tudo. . .
Leo, voc sabe que eles tm poder pra fazer isso.
Claro. . . dizia ele, extremamente irnico, para fugaz diverso de
Cordlia.
No quer dizer que todos os agentes do ramo sejam magos, mas mui-
tos devem ser. disse Beneditt.
Obrigado, Beni Disse Fjor, com um olhar duro, mas agradecido.
Voltou-se para o irmo novamente. Ento voc gosta de rock de cidade,
querido irmo?
No acho a coisa mais bonita que inventaram, no, mas no vejo pro-
blema em gostar.
Ah, sim. Temos msicos sem habilidade musical Beni concordava,
balanando a cabea com as sobrancelhas levantadas tocando instrumen-
tos muito mal e cantando letras que sempre dizem a mesma coisa. Com
certeza, no tem problema nenhum com esse tipo de msica, no mesmo,
Beni?
Sem falar da falta de solos.
Sim. Como eles conseguem?!
Est vendo? uma habilidade! Contra-atacou Leo, risonho.
uma limitao! Se no houvessem pessoas muito empenhadas em
fazer as outras se sentirem bem em relao a essa gente. . .
Fjor, para de achar que tudo de ruim nesse mundo culpa dos magos!
No, nem tudo, mas eles tm infuncia, Leo!
Ei, vocs dois, parem j com isso! disse Cordlia. Vocs tm uma
apresentao daqui a pouco e no podem fcar assim, no!
Beneditt sorriu olhando o vazio frente, como se lembrasse de algo.
s vezes at ajuda, Cordlia.
Fjor e Leo ainda se olhavam como se tentassem dizer algo um ao ou-
tro sem usar a voz. Leo parecia querer mostrar ao irmo o quanto achava
aquilo tudo uma bobagem. Para isso tinha que olh-lo como se estivesse
decepcionado. Fjor era o irmo menor, por uma pequena diferena de trs
rosanos, e Leo sabia que ele entenderia esse olhar mais do que ningum. J
Fjor parecia querer fulminar o irmo com os olhos, pois essa era a forma
mais defnitiva de dizer que eles estavam em terrenos claramente opostos.
Beneditt direcionava para o cho seus amendoados olhos verdes, pensa-
tivo. Se o territrio fosse dividido da maneira como Fjor propunha, ele no
saberia dizer de que lado estava. Rock de cidade nunca lhe agradou e des-
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Voiui l
confava que os magos tivessem alguma a coisa a ver com a proliferao
do gnero; mas como, ele nunca entendeu.
Suspirou baixinho, coando o curto cabelo loiro. Deixou aparecer seu
sorriso largo, mas ocasional e, encostando a cabea parede, misturou ra-
ciocnio memria. Quase tudo nele era diferente dos irmos, mas nem
por isso parecia estar a meio caminho dos dois. Como se fosse uma terceira
alternativa, seguia sendo ele mesmo.
Leila? Chamou Leo, um pouco preocupado com a demora. Ele se
sentia desconfortvel com atrasos.
Alguns segundos depois veio a resposta. Um som melodioso e melin-
droso invadira a casa, balanando a escada, fazendo Cordlia abrir um sor-
riso e aproximar-se para ver mais de perto.
Eram acordes completos e harmoniosos, mas rpidos, esguios e ritma-
dos. Leila descia as escadas usando um grosso vestido negro, largo e com
espaosas mangas. Botas velhas, mas talvez por isso mesmo bonitas, pro-
vocavam um barulho domesticado no ferro. tiracolo vinha a guitarra; os
dedos da mo esquerda deslizavam pelo brao com preciso, e os da mo di-
reita seguravam a palheta com frmeza. Ao fnal do ltimo acorde, quando
todos os homens da casa estavam com a boca levemente aberta e sorrisos
bobos, Leila mostrou os dentes com delicadeza e at mesmo timidez, di-
zendo:
Vamos?
Magnfco, minha querida, magnfco! Disse Cordlia, respondendo
por todos. Com quase lgrimas nos olhos, ela ps-se a comentar o quanto
tinha saudades dos shows de que tinha participado e das bandas que tinha
visto enquanto todos se arrumavam. Beneditt agarrou sua pesada mala e
Fjor, com o baixo nas costas, voluntariou-se para ajud-lo a dividir o peso.
Antes de ir at o amigo, Fjor foi interrompido por Leo.
Escuta, eu no sei se a magia mesmo assim to importante. Mas
quando eu ouo isso a. . . Ele apontou pra Leila com um aceno de cabea.
Eu me arrepio. Isso a mais que mgico! fantstico!
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Captulo 6
Buscando
Leila e Beneditt espremeram um lugar no canto da charrete, ao lado de
um desatento homem loiro e defronte aos dois irmos. Assim que todas as
pessoas e todos os instrumentos estavam a bordo, a charrete seguiu. Nin-
gum conversava. Leila tocava acordes que, embora soltos, formavam um
ritmo estimulante, e tudo o que eles queriam era aproveitar o esplndido
cenrio das colinas de Novo-u-joss, especialmente antes que precisassem
entrar em uma maratona de preparao rumo ao palco.
No princpio seguravam-se para no cair; os yutsis corriam a toda velo-
cidade nas descidas e subidas dos campos sedutores, a maioria castrados por
terraos com batatas, todos com a presena de no mnimo alguns arbustos
densos. Conseguiam, ainda assim, admirar algo das montanhas ao norte e
ver, quando passavam pelos pontos mais elevados do trajeto, um pouco do
rio Pudro. O que mais gostavam era, sem dvida, as estrelas, que podiam
ver de qualquer lugar: azuis e verdes (por vezes to escuras que eram quase
invisveis ante o manto prpura do cu), algumas vermelhas, alaranjadas,
amarelas ou rosas. As estrelas de Novo-u-joss lhes desejavam boa sorte;
podiam sentir o vento trazendo aquela mensagem do cu.
Comearam a chegar s jirs mais prximos ao centro. Pessoas com gui-
tarras, baixos e por vezes baterias completamente montadas se reuniam no
espao pavimentado entre as casas, a maioria delas com um andar apenas
e paredes vivamente coloridas tons que s se deixavam adivinhar pelos
minrios de luz que, solitrios quanto a seus pares, sustentavam as singelas
noitadas musicais por horas a fo. Os sons, que de qualquer forma seriam
fugidios demais, no chegavam charrete. Leila, com seu repetido padro,
no deixava.
A maioria das pessoas naquele pedao de mundo sabia tocar alguma
coisa. Ainda que no abundasse habilidade, no faltaria admirao a quem
se dispusesse a fazer mais do que entreter amigos. A msica movia a cidade
ou, pelo contrrio, a mantinha no lugar. A sensao geral era de que ali
ningum conseguiria se comunicar bem sem msica. Mais do que isso, sem
a prpria msica.
Leila aumentava o ritmo das palhetadas, e arriscava um solo ou outro
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Voiui l
apenas para gracejar com Leo. Os dois se olhavam, cmplices na afio.
Beneditt batia os ps. Fjor observava tudo ao seu redor, mesmo j tendo
corrido aquele caminho vrias e vrias vezes. Os sorrisos de Leo e Leila
cresceram, assim como os solos de Leila, que comeavam a fcar um pouco
mais rpidos. Mais uma jir se passou, e a charrete descia com violncia o
ltimo morro antes do centro. As luzes da cidade passaram a encher cada
vez mais os olhos dos msicos.
A jovem mulher de cabelos fnos que comandava os yutsis diminuiu
a velocidade ao efetivamente entrar na cidade. A rua em que trafegavam
agora era larga: dos dois lados eles viamcasas que serviamcomo residncias
certamente muito mais bonitas e funcionais que as deles. Misturavam-se
a elas casas de shows, padarias, pequenas lojas e grandes espaos abertos em
que crianas brincavam enquanto uma roda de uns poucos adultos cantava
um leque de modas populares. Quem andava nas ruas ao lado da charrete
acompanhava Leila e sua guitarra com sorrisinhos satisfeitos, ainda que ela
tivesse voltado a tocar uma simples sequncia de acordes. Leo pensava que,
diante de algo to fcil de fazer, a maioria das pessoas estava apenas achando
aquela moa bonita. Perguntou-se se ela chegara mesma concluso.
Acidade oferecia umespetculo parte; parecia uma nica avenida sem
fm com todo o tipo de letreiros coloridos, sons exticos e cheiros que vi-
ravam pescoos. Tudo que eles viam era trazido luz por minrios azuis e
amarelos amarrados, nesta parte da cidade numerosos, pendurados emfnos
postes de ferro ao centro da rua. Todos os tipos de timbres de guitarra que
os quatro integrantes da banda pudessem reconhecer estavam presentes, e
havia tambm outras coisas a se fazer naqueles infnitos espaos fechados.
Peas de teatro, da comdia ao horror, e restaurantes, com suas glamorosas
ofertas gastronmicas pelas quais eles no poderiam pagar.
Pararam em um lugar cmodo para a banda e mais dois passageiros, que
desejaram uma boa noite aos camaradas desconhecidos antes de se afasta-
rem, puxando as dobras verticais das vestes longas para proteger as mos
do frio. Os msicos agradeceram, em momentos diferentes, agradecendo
tambm cocheira enquanto terminavam de descarregar a bagagem. Ela
sorriu brevemente, olhando para trs por pouco tempo, e logo a charrete j
estava longe.
Estavam em frente ao Colher de Limo, uma das mais conceituadas ca-
sas de showde Novo-u-joss embora no fosse nemde perto a maior delas.
Era como diziam: grandes msicos precisamtocar no Gran Bosque para pro-
var que tm pblico, mas precisam tocar no Colher de Limo para provar
que tm qualidade. Muitas bandas que ao longo dos rosanos conquistaram
a fama, mesmo dentro do estilo tradicional de rock, tocaram no Gran Bos-
que e atraram milhares de pessoas para a apresentao. Ainda assim, no
encararam o Colher de Limo.
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Por outro lado, muitas bandas iniciantes tocavam ali. O dono do lugar
abria espao para qualquer msico srio mostrar o que conseguia fazer. A
plateia era sempre composta por pessoas preocupadas com o quanto uma
banda conseguia trabalhar em suas msicas tudo que uma boa msica deve
ter, com os elementos bsicos investigados com reservas: rifs, batalhas de
solos, mas tambm aquilo que os torna especiais. Que os torna nicos. No
ser especial poderia levar qualquer banda a muitos lugares razoveis em
Heelum, mas no ser especial no Colher de Limo signifcava no ser bom
o sufciente.
So os Colineiros? perguntou Leo, em dvida, ao reconhecer a
msica que vinha forte de dentro do bar. Beneditt respondeu que sim com
um balanar de cabea.
Entraram na casa. No seguiram em frente; viraram esquerda, en-
trando na rea de funcionrios. Cumprimentaram brevemente todos que
encontravam por l, e, j conhecendo o caminho desde quando foram con-
tratados para o show(por ummdico preo; nada mais justo, concordavam),
foram subindo as escadas que os levariam para a sala dos msicos.
A sala fcava atrs do palco e de vrias outras acomodaes do Colher
de Limo. A banda passava por cima de todas elas atravs de uma esp-
cie de passarela, um tnel de fortes estruturas metlicas no segundo andar.
Enquanto passavam por cima da sala de shows, Leila parou para observ-la.
Leila? Perguntou Leo.
Eu vou depois. . . Disse, compenetrada.
Os outros foram em frente. Leila via que a banda tocava bem. Empol-
gava o pblico. Eles tinham uma guitarra lils de som marcante, e um baixo
ainda mais presente. Olhou ento para aqueles que se balanavam, con-
tidos, frente do palco. Seriam eles exigentes? O que seria preciso para
impression-los?
Mesmo diante de mutveis zonas sem luz, era possvel ver que a plateia
era essencialmente heterognea. Alguns vestiam capas, grossas vestes e
vestidos a rouparia tradicional das cidades do Oeste de Heelum. Alguns
vinham de cala e de camisa de algodo, mas eram mais raros sem algo que
os protegesse do frio por cima. No havia cor que predominasse. O que ela
podia sentir, na barriga, na nuca, na inquietao dos joelhos, era que eles
no vieram para se divertir. Vieram para conhecer.
E para julgar.
Foi precisamente por isso que Seimor escolhera o Colher, como era
carinhosamente conhecido, naquela noite em que visitava Novo-u-joss. Ele
entrou no estabelecimento ouvindo apenas uma parte da msica de encer-
ramento dos Colineiros. Pensou que se primeira vista o lugar parecia pe-
queno, segunda parecia minsculo.
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Voiui l
Do lado de fora, pessoas conversavam no pequeno jardim, com anima-
das conversas forescendo ao redor de mesas e bancos dispostos ao longo da
avenida da cidade. Tudo era espaoso e amplo. Mas quando Seimor (com
uma grande barriga e, em parte por isso mesmo, sentindo-se desconfortvel
quanto a fcar em lugares pequenos) entrou no Colher, percebeu que talvez
tivesse escolhido o lugar errado para ir. Mas decidiu fcar. Vrias pessoas
indicaram o lugar; algumas outras, a banda. Talvez aquela noite fosse valer
o investimento.
Ao passar da porta, a primeira coisa visvel era uma parte do palco, avis-
tada atravs da abertura em arco que dividia a antessala e bar do lugar em
que o show de fato acontecia. Via o baixista andar de um lado para outro,
ocasionalmente aparecendo no seu campo de viso. De resto, via apenas os
ouvintes, de costas. O primeiro andar, j alto, no era dividido do segundo
por um teto. Era no andar de cima que fcavam os minrios de vrias cores
que iluminavam a casa inteira.
Voc vem aqui pela primeira vez. Seimor ouviu um homem dizer.
No era uma pergunta, e o homem que a fzera vestia um grosso casaco
negro de goma escura com longas mangas. Ficava atrs do longo balco de
corvnia que se estendia pela antessala. Percebia, certamente por experi-
ncia, que aquele homem careca, com um largo e endurecido rosto, deveria
ser novo na casa ou na cidade.
Seimor olhou com momentnea desconfana para o surpreendente in-
terlocutor e ento deu um sorriso que, por mais que se esforasse, jamais
pareceria amvel.
Sim. Deve ser fcil dizer de onde sou.
Na verdade no, senhor. Fale mais um pouco e posso tentar descobrir
pelo sotaque. Respondeu ele.
No tenho pacincia para charadas. Meu nome Seimor. Sou de Jinsel.
Tentando segurar-se para no levantar uma sobrancelha, o empregado
foi mal-sucedido. Para sua sorte, estava escuro no interior da casa e Seimor
nada viu.
Nenhum comentrio?
Como?
Sobre Jinsel.
No, senhor. Nunca estive l.
No h muito pra ouvir. Vocs no vo gostar.
E o que o senhor faz aqui? Algum motivo em especial?
Procuro gente nova. Sou um agente musical.
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Dentro da sala de espera dos msicos, quase do tamanho da sala onde
ocorriam os shows, Leo se apoiava numa bancada negra em frente a uma
superfcie de prata polida sujo e escuro espelho deixando a cabea pen-
der entre os ombros. Tentava relaxar, mas no muito; queria dar o melhor
de si.
Leila andava de um lado para outro, e Fjor estava deitado em um es-
paoso sof azul-marinho, de olhos fechados e braos cruzados. Cada um
tinha seu jeito de aliviar a tenso, e Leila o fazia tambm ao observar os
mtodos alheios. Sabia, por exemplo, que Beneditt estava fazendo mais do
que apenas um servio necessrio: ao arrumar a bateria, no palco, dava a si
mesmo a impresso de que tudo ia fcar bem.
Algum bateu na porta, de leve, e entrou. Fjor apenas abriu os olhos;
Leila e Leo viraram os pescoos para o homem com sobrancelhas levanta-
das, que apenas disse cinco minutos aps um olhar cansado e foi embora,
fechando a porta atrs de si. Leo tirou as mos de cima da bancada e fcou
de frente para Leila.
Ns vamos conseguir, no vamos?
Sim. Respondeu Leila, com um sorriso travado.
Esse o show mais longo que j fzemos.
Sim.
E com a plateia mais exigente. . .
Sim, m-mas j fzemos muitos shows e ensaiamos bastante pra isso.
E somos bons. disse Fjor, levantando-se devagar. Paremcomisso.
Se acalma, Leo, isso o que a gente sabe fazer de verdade. Fjor colocou
a mo no ombro do irmo. Queria desejar boa sorte aqui, mas no fao
isso sem o Beni, ento. . . Agarrando o fno e elegante contrabaixo preto
e caramelo, saiu. Leo e Leila o seguiram de perto.
Ento o senhor procura por talentos?
Novos. Quero pessoas com talento e fora.
Certamente. E o senhor, de todas as casas de show, escolheu o Colher
de Limo.
Ora, no fnja surpresa. Este lugar o mais famoso de Novo-u-joss,
embora. . . E ele puxou as vestes mais para perto de si enquanto mais
pessoas entravam Pudesse ser maior.
como pedir que um momento seja maior, senhor. Ele deixaria de ser
um momento, e em uma hora estragaria tudo que coubesse nele.
Tudo bem. Seimor parecia contrariado, mas no o bastante para se
importar com isso. Qual o nome da prxima banda?
O senhor no gostou desta ltima?
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No. Agressivos demais.
Hm. Bem, o nome da prxima Buscando.
Buscando? Talvez encontrem. . .
uma. . . Oportunidade, senhor. Como Seimor no estava rindo,
talvez no fosse uma piada. O que deveria dizer?
claro que . Diga, como funciona esse rock tradicional?
Como funciona?
Do que eles falam?
Podem falar de qualquer coisa, senhor. Creio que hoje em dia uma
tendncia falar sobre as difculdades da vida das pessoas simples ao redor
de Heelum.
isso que eles falam? Essa Buscando?
Ah, no. Eles so um pouco diferentes.
Hm. E como eles tocam?
Com guitarras, baixo e bateria, senhor. Disse o homem, esfregando
um copo recm-lavado.
Ouvi dizer que h uma batalha de solos. . .
Sim. Em geral so dois guitarristas, que, novamente, em geral, no
tocam juntos a maior parte do tempo. . . Mas h uma parte de cada msica
em que eles vo tocar solos, e que agiro como se tentassem superar um ao
outro. muito bonito de se ver, senhor.
Seimor no respondeu. Olhou para o palco sem demonstrar qualquer
emoo bvia. Todo o salo estava iluminado apenas por luzes vermelhas.
Em Jinsel no se. . . Faz isso nas msicas?
O povo no gosta muito dessas coisas. Disse Seimor e, virando-
se de volta para ele, soltou mais um sorriso fora de sintonia Ns somos
mais. . . Diretos.
O anftrio concordou com um sutil balanar da cabea. Colocou o copo
e a toalha no balco de corvnia e fcou feliz ao ver que algumas pessoas
queriam alguma coisa. Murmurou um simples Com licena, senhor e
se afastou do homem de Jinsel, que no respondeu; apenas se levantou e,
ajeitando-se um pouco mais, abriu caminho at a sala principal. Ainda que
fosse maior do que ele inicialmente sups, no caberiam cem pessoas nela,
calculou. Arranjou um lugar perto parede e ps-se a esperar.
Bem. . . Estamos aqui Disse Leo.
Todos concordaram silenciosamente. Os instrumentos estavam posicio-
nados. Tudo estava de acordo. O tempo se esgotara, e eles podiam comear
quando quisessem.
Vamos l. Boa sorte! Disse Fjor, sorrindo.
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Cada um tomou suas posies atrs de um fo que pendia do teto, segu-
rando altura do peito de cada msico umminrio de som, que tornava mais
alto o volume do que eles cantassemou tocassem. Minrios de somerames-
fricos, negros e opacos, alm de rarssimos: controlados pelas agncias de
msica e casas de shows, era praticamente impossvel comprar um para uso
pessoal. Leila, Leo, Fjor e Beneditt esfregavam com as mos as esferas. Dali
em diante o que quer que falassem seria ouvido desde a porta do Colher.
A sala, em que uma quantidade amedrontadora de pessoas conversava,
continuou banhada em vermelho, rodeada pelo alaranjado que se tornavam
as paredes amarelas com aquela iluminao. Leo, que vinha no centro, logo
frente de Beneditt, fez umsinal positivo para o alto. Os empregados do Co-
lher que trabalhavamespecifcamente comos minrios colocarampequenas
tochas atrs de uma pequena mureta, embaixo do suporte das pedras escar-
late. As luzes rapidamente se apagaram, e a sala foi tomada pela escurido.
As conversas foram dando lugar ao silncio.
Leila buscou o olhar de Leo, mas no o encontrou; apertou a mo es-
querda no brao da guitarra, que parecia rosnar sob sua guarda.
Uma luz amarela surgiu, mostrando apenas Leo.
Oi. . . Boa noite. Ns somos a Buscando, e. . . As palavras escorre-
garam como gua entre os dedos. Era estranho falar com a escurido, ainda
que fosse a origem de um mstico burburinho. Bem, eu. . . Gostaria de
agradecer o Colher de Limo e. . . Espero que vocs gostem.
Leila, Fjor e Beneditt teriam se entreolhado, se pudessem. Onde estava
a frase que haviam combinado?
E. . . Hesitou Leo. Essa se chama. . . Engoliu. Comeando a
madrugada.
Os integrantes da banda respiraram mais tranquilos, mas logo as sensa-
es voltaram, pantagrulicas. Os iluminadores se mexiam, rpidos, e logo
um novo foco de luz surgia, enquanto o de Leo desaparecia. Leila fcou de-
baixo de um holofote azul e, no conseguindo evitar um sorriso enquanto
olhava para os fos de nquel do prprio instrumento, posicionou a mo es-
querda nas cordas e comeou a tocar.
As primeiras notas, em um primeiro momento parecendo dissonantes,
mas surpreendentemente envolventes, comearam a ganhar corpo com as
batidas em um nico tambor que surgiram com Beneditt e junto com elas
um foco de luz vermelho sobre ele. batida de pratos, que fez o pblico
acordar para a msica, uma luz verde revelou Fjor e o baixo, que adiciona-
ram movimento msica.
Era um som essencialmente tranquilo, mas rpido e intrigante: o baixo
ia e vinha, e levava com ele a guitarra de Leila travesso, tirava de cena na
sequncia o que acabava de mostrar. Beneditt, depois de introduzir o baixo
num preldio, tocava de maneira mais cadenciada.
41
Voiui l
Depois de duas sequncias do rif principal, a luz amarela voltou a focar
Leo, que, batendo o p ao ritmo e olhando para o espao acima de onde
achava estar as cabeas do pblico, cantou:
Tarde da noite, eu conheci
A alma da tarde, eu descobri. . .
Aos poucos Beneditt comeava a incluir mais os pratos no ritmo simples
e espaado que criara, aumentando a fora que usava neles a cada batida;
Leila, comeando a se soltar, olhou para o lado e viu Fjor, tocando serena-
mente, com a cabea abaixada, enquanto Leo aproximava a esfera de som
da boca novamente.
Que agora era cedo. . . Ainda!
L fora ento a vida fnda. . .
Depois de cantar a ltima palavra com os olhos fechados, Leo deixou a
esfera cair de propsito para tocar umcurto rif comsua guitarra, ao mesmo
tempo em que Beneditt virava nos tambores e acelerava o passo; as luzes
do palco tornaram-se todas vermelhas, e os dois guitarristas comeavam a
tocar acordes feitos comuma palhetada, rpidos e incisivos. Mais volumosa,
a msica vinha para o refro que Fjor, Leila e Leo cantavam juntos.
O que eu vi, eu no posso esquecer. . .
O que eu sei que eu no vou me perder
E no meu fm, s o que resta ver. . .
As luzes se apagam, o baixo e a bateria se interrompem: apenas as duas
guitarras tocam os mesmos acordes, repetidamente, rapidamente; uma pro-
fuso de luzes de tom quente vai pouco a pouco iluminando a sala inteira,
e o pblico v que Leila e Leo olham um para o outro ao tocar o simples
mantra musical. Leila sorria como uma feliz criana e, antecipando uma
batalha de solos, fez-se silncio; mas quando as luzes atingiram o pico da
intensidade, Beneditt recomeou a bateria e Fjor, o baixo. Leo rapidamente
voltou posio enquanto Leila continuava nos acordes do verso.
No tenho lar, apenas par
No tenho pra quem mais olhar
No tenho outra profsso
Quem me ganhou foi a escurido. . .
42
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
A banda recomeava o refro, com cada vez mais fora e autoconfana.
O pblico parecia se deixar envolver. Seimor via que a banda tocava bem;
bemo sufciente para o que quer que pudesse fazer comeles. Obaterista no
parecia ser genial, mas esta podia ser uma msica que exigia pouco dele. O
baixista era centrado; deveria tomar cuidado com ele, caso fosse um mago.
O vocalista masculino era carismtico e agia naturalmente no palco.
No entanto, o que mais chamou a ateno de Seimor foi Leila. No mo-
mento em que a luz a atingiu, ele viu-se tomado por uma curiosidade que se
tornou, pouco a pouco, luxuriosa necessidade de t-la. Cantava excelente-
mente, e era de uma beleza estonteante. No apenas seria tima como lder
da banda obviamente deveria substituir o atual, ainda que ele pudesse
cantar parte das msicas mas tambm seria a adio mais bela aos seus
rosanos de experincia. Seria, na verdade, nica; nunca havia provado o
extico nctar das fortes mulheres de Novo-u-joss.
Enquanto fazia planos em sua mente tanto profssionais como pes-
soais Seimor viu do que o homem do balco falara h pouco. O pblico
parecia estar gostando da batalha de solos em que, apoiados pela bateria e
pelo baixo, os dois guitarristas revezavam-se fazendo solos cada vez mais in-
trincados e complementares. Curiosamente, enquanto o homem no centro
do palco esforava-se emsolar para o pblico, Leila, quando tocava ou espe-
rava sua vez, sempre olhava para ele sempre o buscava, com um sorriso
encantador e brincalho. Para ele aquilo era uma performance, com con-
troladas margens para o gozo do momento; mas para ela, aquilo era como
uma divertida competio, e o pblico podia gostar ou no ela sentia-se
iluminada por estar tocando, e nada mais parecia importar.
Seimor cruzou os braos.
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Captulo 7
O efeito Jinsel
Fjor e Leo vinham andando lado a lado, abraados; Beneditt vinha logo
frente, ofegante, com um sorriso que exalava completude estampado no
rosto. Leila vinha correndo, quase aos prantos, ainda que misturados a ri-
sadas intermitentes. Depois de tocar mais nove canes, os msicos espe-
ravam descansar um pouco antes de dar a noite por encerrada.
Leila foi a primeira a entrar na sala, esbarrando a porta para abri-la.
Quase caiu, mas se recuperou, e aos tropeos jogou-se no sof, soluando
de alegria por alguns segundos. Seus olhos miravam o teto, mas na ver-
dade ela olhava o nada sua frente; uma simples alternativa a fechar os
olhos. A euforia a dominava e seus pensamentos eram confusos. Havia tan-
tos momentos para relembrar, tanto para repensar se pudesse, reviver!
Os rostos dos companheiros, do pblico; os sucessos e os pequenos, quase
imperceptveis, fracassos que noite incrvel, incrvel havia sido aquela!
Ao lado, os amigos se abraavam e riam, congratulando um ao outro.
De alguma forma ela sentia que naquele momento no deveria fazer parte
daquilo. Queria seu prprio espao, seu momento para si; um momento
de silncio depois de tanta msica. Tinha, claro, que fabricar o prprio
silncio e a prpria paz, uma vez que os garotos tinham o mais comum tipo
de euforia; aquela que obriga as palavras a sarem, ligeiras e por vezes sem
sentido, da boca para fora.
Com olhos que misturavam o brilho do suor com o brilho de incipien-
tes lgrimas, os homens reforavam laos de sangue e amizade. Leila se
perguntava se eles conseguiam sentir o quanto suas solides continuavam
intactas, erguidas como muralhas ao redor de todo humano, cada um vi-
vendo em um casaru particular, com cortinas fechadas e janelas empoei-
radas? Aquilo fascinava as entranhas de Leila, que sentia como se elas se
esmagassem depois de cada sucesso, de cada vitria. Sentia falta do pai.
Beneditt passava a mo no cabelo, que pingava suor. Por dentro, estava
fnalmente em paz, encostado parede como estava. Leo e Fjor serviam-se
de gua num apndice arquitetnico nos fundos da sala, perto do sof.
Algum bateu porta. O susto, apesar de pequeno, foi geral. Olhares
logo se cruzaram, como se todos precisassem de respostas que sabiam que
45
Voiui l
ningum tinha. Leo deu uma ltima olhada sem sentido para Beneditt e,
largando o copo em cima da mesa encostada parede, atravessou a sala.
O homem do lado de fora deu um sorriso singelo quando viu aquele
jovem, com um cabelo incrivelmente j que era to curto, pensou Seimor
bagunado e um nariz pouco notvel por qualquer particularidade. Leo
exibiu um rosto neutro ao observar o homem gordo, careca e possivelmente
trinta rosanos mais velho.
Posso entrar? perguntou Seimor, apontando para o interior da sala.
Leo, temeroso, ampliou a abertura da porta e lanou olhares para Bene-
ditt, mais prximo a ele, e Fjor, que voltava ao centro da sala com um copo
de gua na mo.
Seimor entrou devagar, olhando para todos, demorando-se em cada um.
Os olhares de Leo procuravam por ajuda ajuda para entender; queria po-
der confrmar que seus pares tambm nada sabiam sobre aquele homem.
Os olhares de Seimor estabeleciam uma cordialidade fugaz. Com uma ex-
presso facial sria, o largo e espaado rosto parecia investigar com pacfco
escrutnio os msicos antes de decidir se mereciam ou no uma saudao.
Os olhos de Seimor eram de um castanho-escuro muito vivo. Quando
encontraram os olhos castanhos com um leve toque de verde de Leila, pro-
vocaram um calor e uma determinao que o fustigavam ao extremo.
Ela sentiu-se apenas curiosa pelas intenes daquele homem, que passava
considervel tempo a mais olhando para ela ao invs de dizer logo a que
veio.
E o seu nome . . . ? Perguntou Leo.
Meu nome Seimor. Sou um agente musical.
Os olhares se transformaram, cruzando-se em um ritmo alucinante de-
mais para registrar; Leila sentou-se no sof, pois a posio relaxada em que
estava no condizia comseu estado de alerta. Ela buscou o olhar de Leo, que
olhou para Fjor; este olhou para o cho no instante do anncio, com medo
de que engasgasse. Beneditt procurou olhar para Leila, mas quando esta
tentou olh-lo de volta, ele j havia buscado o olhar de Leo no momento em
que este olhava de volta para o homem enquanto Fjor tentava, em vo,
comunicar-se com Leo.
Gostei muito do show.
Obrigado, senhor! Disparou Leo, sorrindo tanto quanto no fm do
show. Obrigado mesmo!
, ns. . . Demos o nosso melhor essa noite! Completou Beneditt,
sem saber o que dizer. Pensou, logo depois, que essa talvez no fosse a
melhor coisa a ser dita. E se aquilo no fosse bom o bastante para ser o
mximo do potencial deles?
Sim, sim. . . E no sempre que uma banda nova ganha essa aprovao
do Colher de Prata.
46
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Limo. Corrigiu Fjor, recebendo um forte olhar de reprovao por
parte de Leo.
Limo! Sim, Colher de Limo! O sorriso de Seimor diante da corre-
o pareceu a Leila um pouco menos autntico. Ela fcou nervosa. Por que
Fjor tinha de corrigi-lo?
Seimor passou mais algum tempo com os olhos voltados para o irmo
mais novo de Leo, mesmo sem ter o olhar retribudo; deixou de ver, por isso,
a muda bronca que Leo tentava transmitir. Seimor parecia concentrado.
Fjor voltou-se para ele, subitamente desconsiderando a conversa sem
sons que estava tendo com o irmo.
Quer um copo de gua? Perguntou, como se tentasse consertar as
coisas.
No, obrigado. Seimor olhou de esguelha para Leila. Eu disse
prata porque estava pensando no Mina de Prata.
Mina de Prata? Perguntou Leo.
uma casa de shows. Quero convid-los a se apresentarem l. No se
preocupem. Fez um movimento com as mos, como se quisesse tranqui-
liz-los. Voltou a olhar para Leila. Recebero pelo show, como receberam
aqui. Quero que venham e toquem na Mina de Prata e, ento. . . Poderemos
ter um acordo.
Acordo, que. . . Tipo de acordo? Leo desenvolveu um sorriso si-
multaneamente amedrontado e feliz; como se estivesse ou com medo da
felicidade que aquilo lhe traria, ou commedo de ter entendido erroneamente
o sentido da palavra acordo.
Mas onde fca o Mina de Prata? Eu nunca ouvi falar. perguntou
Leila, atravessando-se pergunta.
Ah, sim, pois no, eu. . . Seimor olhava agora mais profundamente
para Leila. Ele apertava os olhos, como se visse algo de errado com ela.
Leo aproveitou que ele se virava na direo oposta e, com a boca e as mos,
perguntou aos outros: O que h de errado com ele?. Depois de algum
tempo, ele voltou a falar, respondendo. Voc nunca ouviu falar porque
no fca em Novo-u-joss. Qual o seu nome?
Leila. Disse ela. Por um momento sentiu-se irritada com o desvio
da conversa, mas logo sentiu-se melhor. E onde fca, ento?
Em Jinsel.
Novos olhares cortavam o ambiente, incidindo cruelmente sobre cada
um dos membros da banda.
Algum problema? Perguntou Seimor, srio, tornando a olhar para
Leo.
No, que. . .
. . . Jinsel no apreciada por aqui. Entendo. Bem. . .
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Voiui l
Seimor fez meno de ir embora e Leo o alcanou, afito, segurando-o
pelo ombro.
No, espera! Eu. . . Ele olhou para os outros, buscando argumentos.
Como s via pessoas sem saber o que fazer, decidiu falar por si. Ns no
temos problema algum com Jinsel, podemos ir at l. Leila concordava,
de leve, com a cabea; os outros no mostravam aprovao. Era como se
estivessem em estado de choque. Apenas diga como podemos chegar l
e quando, e-e ns vamos.
Seimor virou a cabea para Leo.
Pois bem. Cheguem daqui a dez dias, at as dez da noite. Perguntem
pelo Mina de Prata. Todos sabem onde ele fca.
E, dizendo isso, comeou a caminhar mais uma vez.
Senhor Seimor. . . Que tipo de acordo era aquele?
Ora, um acordo! Respondeu ele, virando-se antes de alcanar a
porta. Oacordo que vocs provavelmente sempre quiseram. Colocaremos
vocs nas maiores casas de show de Heelum. Novo-u-joss pouco. Iremos
a Kor-u-een. Al-u-een. Ia-u-jambu. A Cidade Arcaica. Ele falava em
um tom proftico, mas tono, como se a certeza fosse, sozinha, responsvel
pelo formigamento que os msicos, sentindo-se convencer, viam subir aos
membros. As pessoas ouviro vocs. Conhecero vocs. Vocs nunca
tero que trabalhar de novo.
Vivero de msica.
O olhar de Leo parecia ter trincado ao ouvir aquelas palavras. Leila as
digeria, e um entusiasmo que ela nunca havia sentido antes tomou conta
dela. Beneditt e Fjor, pensando em sintonia, no se sentiam vontade com
o forasteiro levando a eles uma proposta to boa.
E que msica ns vamos tocar depois do acordo? Perguntou Fjor.
A raiva de Leila e Leo s fazia crescer; como era possvel que ele estragasse
tudo to frequentemente?
Seimor riu, dispensando a pergunta com a mo e, balanando a cabea
de uma maneira amigvel e contida, respondeu:
Eu gosto de msica boa. Como todo mundo!
Ento aquela era a oportunidade deles. Leila colocou o punho fechado
sobre a boca e tentou entender, enfm, o que se passava em sua mente. Em
geral, gostava de msica. Gostava de escrever msica e de tocar msica.
Antes, ela no se importava de no fazer disso sua profsso. Mas agora. . .
Queria poder ir pra Jinsel naquela mesma noite, tocar no Mina de Prata
e fechar o acordo de uma vez!
Leila olhou para a frente, assustada, e viu que Seimor olhava para ela
com o mesmo rosto de quem tenta ou descobrir algo no local para onde
olha ou tenta se lembrar de algo.
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Mais uma coisa. . . Ele se virou para frente, passando a encarar Fjor
e Beneditt. Nenhum de vocs um. . . Mago, certo?
Todos balanarama cabea automaticamente, semprecisar pensar a res-
peito.
No, senhor. . . Por qu? - preciso saber de magia ou conhecer
algum?
No. Pelo contrrio. Em nossa agncia somos estritamente contra
magos. Ento, melhor no estarem mentindo.
O caminho de volta para casa no foi esperanoso, alegre ou mesmo so-
noro como o anterior. Acharrete estava mais cheia; cerca de onze pessoas se
amontoavamjunto aos quatro integrantes da banda e seus instrumentos. Al-
gumas conversavam embora nenhuma, aparentemente, esteve no Colher
de Limo naquela noite mas o semblante perdido dos msicos indicava a
qualquer umque falar comeles no era uma opo naquele momento. Leila,
com a cabea abaixada, lanava olhares furtivos para os companheiros vez
ou outra. Queria poder se comunicar com eles, de uma maneira simples
como aquela que fosse, para tentar descobrir o que sentiam. Se sentiam o
mesmo que ela.
Ela se perguntava, afnal: quando foi que deixou de acreditar na sim-
plicidade da msica que faziam? No deixara, ela concluiu; ainda esperava
que continuassem assim. Mas a vida seria to diferente se eles fossem para
Jinsel. . . Positivamente diferente. Os shows em grandes casas, uma vida
de viagens e aventuras mas tambm de dinheiro sufciente para comprar
terras quando estivesse cansada daquilo tudo.
Sim, porque sabia que se cansaria. No havia um dia em que a imagem
de Cordlia no a inspirasse a pensar em seu prprio futuro longnquo. Ora,
teria uma mente s como a dela? Ainda conseguiria escrever? Mas, ainda
que escrevesse, conseguiria aguentar um show? Gostaria de fazer isso? E
seu corpo, o que mais se daria ao luxo de se permitir? Quem se responsabi-
lizaria pelos gastos da casa quando ela no pudesse mais faz-lo? Ela teria
que formar uma nova famlia, feita de pessoas extremamente benevolentes
que quisessem suport-la. Aquela presso em seu peito era to asfxiante
quanto libertadora; sentia-a quando pensava em um futuro desse tipo, mas
sentia agora tambm, quando o calor de uma deciso se aproximava e ela
queria. . . Mordia os lbios por no saber como terminar a frase.
Fjor, de cabea jogada pra trs, buscava conselho nas estrelas. Por que
que no temos mais a luz?, pensava ele. Alva luz, sbia conselheira. . .
Mesmo que no desse conselhos e mostrasse um caminho, pelo menos faria
com que fosse menos difcil chegar a uma opinio comum.
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Voiui l
Fjor pensava que precisariamde umsrio plano de contingncia. Aquele
homem no lhes tinha oferecido uma conversa sobre um acordo: lhes dera
uma misso a cumprir caso quisessem conversar. E se a misso no fosse
completada de maneira satisfatria? Ainda teriam o emprego quando vol-
tassem para Novo-u-joss? Conseguiriam voltar para Novo-u-joss?
O mesmo tipo de dvida permeava os pensamentos de Beneditt. Ora, de
onde aquele homemtinha vindo? Pra onde ia, por que era to estranho? Era
como se algo dentro dele estivesse preso, e ele precisasse recolocar as coisas
no lugar antes que tudo pudesse funcionar de novo. A proposta no lhe
parecia ruim, mas, de forma reversa ao que acontecia comLeila, sentia medo
agora que tinha a chance de sair dali. Achava que no queria um lugar s
para si, mas embora realmente no quisesse viver sempre no mesmo lugar,
comeava a achar pouco conveniente no ter um lugar para o qual voltar.
Se este fosse o caso, apoiaria ou no a expedio rumo a Jinsel?
Leo, por sua vez, sonhava. Estava ciente das difculdades e esperava
convencer os outros de que tudo ia fcar bem. Poderiam conseguir emprego
em outros lugares, mas apenas se de fato precisassem. Talvez seu emprega-
dor (de todos que moravam com ele, na verdade), senhor Josep, entenderia
a situao e no os demitiria.
Essa era a chance da vida deles. No podiam desperdi-la.
Quando fnalmente percebeu que estava no cho, e no mais sacolejando
na charrete, Fjor j estava chegando perto de casa; a luz amarela vazava por
debaixo da porta e pelas frestas da janela. Todos os outros iam sua frente
quando ele parou.
A gente precisa discutir isso.
Eles olharam para trs, parando tambm.
uma proposta boa. . . Comeou Leo.
A gente no conhece aquele homem, Leo. ponderou Beneditt.
Eu vou subir. disse Leila antes de virar as costas e seguir em frente.
Leila! Leila! Fjor tentou cham-la para a discusso, mas ela se
negou a ouvi-lo.
Ela est certa, Fjor. Eu tambm estou cansado, a gente devia discutir
isso amanh.
No quero discutir isso amanh. E voc nem vai conseguir dormir,
Leo.
Bem. . . Riu ele. Do jeito que eu estou, to possvel que eu
durma quanto o contrrio. . .
Leila deixara a porta aberta, e os trs foram entrando. Largaram os ins-
trumentos no cho e foram at a cozinha, de forma que a luz enfraqueceu.
Isso muito arriscado.
Eu acho que devemos ir. Contraps Leo.
50
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Os dois irmos olharam para Beneditt, que sentiu o peso do que quer
que dissesse.
Eu no sei. De qualquer forma, a Leila tem que falar tambm.
Queremos ouvir voc tambm. disse Fjor. A expectativa em seu
olhar igualava de Leo.
Eu. . . Eu acho arriscado tambm, Leo. O irmo mais velho fechou
os olhos e virou o rosto para o outro lado, para no ter que olhar Beneditt
ou Fjor, que j se virava para ele com uma expresso de vitria no rosto.
Mas tambm no acho que isso seja motivo para no irmos.
. . . Droga, Beni, por que voc temque sempre fcar emcima do muro?
Eu no fco sempre em cima do muro! Defendeu-se, embora sou-
besse que raramente tomava partido.
No importa se fca ou no. Replicou Leo, ainda srio. Vamos
mudar a pergunta, ento. O que voc quer fazer?
Voc no entende, Leo. . . No sobre o que a gente quer fazer, mas
o que a gente pode fazer! Fjor expressou concordncia, e Beneditt conti-
nuou. O porqu de a gente fazer to importante quanto a gente fazer ou
no.
Eu no. . . comeou Leo.
Por isso que eu no digo simou no, simplesmente. . . Agente precisa
pensar isso direito, porque a av de vocs depende de ns, inclusive.
Eu sei disso! Leo fcou visivelmente irritado. Voc faz parecer
que eu no me importo com ela!
No foi isso que eu quis dizer.
Mas falou como se fosse o primeiro a pensar nela.
Leo, no foi isso. . . Fjor tentou acalm-lo, mas sua voz foi morrendo
no caminho.
. . . Escuta, eu sei que a minha av precisa da gente, mas com o que
ganharmos num acordo como esse podemos dar a ela tudo o que j damos
agora e muito mais!
Mas se falharmos. . . Advertiu Beneditt. No teremos mais nada.
Mas o que que temos agora, hein? Hein, Beni? Moramos juntos h
dois rosanos e temos tocado empequenos lugares h muito mais tempo. Isso
temsido timo, embora seja cansativo trabalhar como a gente trabalha. Mas
tudo bem. Agora, deixa eu te perguntar: voc quer fcar assim pra sempre?
Isso no apenas sobre ns, Leo. . . Disse o amigo em tom de alerta.
No use a minha av como desculpa pra no tentarmos, Beni! Leo
quase berrava agora, e Fjor o lembrou de que Cordlia dormia no quarto ao
lado.
No desculpa, uma razo!
No podemos deixar os nossos sonhos de lado, Beni, a gente precisa
arriscar, precisa. . .
51
Voiui l
Nossos sonhos ou os seus sonhos, Leo?
Leo parou de falar. O clima havia fcado mais pesado do que Fjor espe-
rava que fcasse.
Ento voc no quer viver de msica?
Seria bom, claro. . . Mas a que preo, Leo?
Voc no falou de preo dessa vez, voc falou de sonhos, Beni. Voc
quer ou no quer viver de msica?
Beneditt no sabia como responder, e buscou compreenso em Fjor, que
tampouco sabia o que falar. Os trs ouviram a escada metlica ranger, e
viraram-se na direo da porta da cozinha. Depois de alguns segundos de
silncio, Leila soube que denunciara sua posio e desistiu de se escon-
der, descendo as escadas. Ainda vestia a mesma roupa do show e, pare-
cendo bastante acordada para o sono que implicitamente professara sentir,
aproximou-se dos homens que a olhavam com curiosidade.
Eu. . . Acho que a gente deve ir.
Leo deixou escapar, com um sorriso, a respirao que havia prendido.
Fjor deixou a cabea pender para o cho, e Beneditt a olhou com paciente
preciosidade, espera de uma novidade que viesse mudar o que ela dissera.
Eu tambm acho, Leila. Apoiou Leo.
Beneditt queria perguntar qual era a lgica da amiga, mas preferiu fcar
quieto, colaborando para umsilncio que j no deixava ningumtranquilo.
Pelo contrrio: os esmagava com indeterminao.
Acho que j est tarde e a gente pode discutir isso melhor amanh.
Com a v junto. Leo passou por Leila enquanto subia as escadas. Eu
vou dormir. Boa noite.
Fjor o seguiu, murmurando boa noite para os dois que sobraram, sem
olhar para Leila. Ela comeava a se virar para sair da cozinha.
Leila. . . Chamou Beneditt. realmente importante pra voc,
isso? Ser grande? Ter um acordo?
Ela se voltou para ele novamente, sorrindo.
Eu no achava que fosse, Beni. Mas eu tambm nunca tive a oportu-
nidade, e. . . Era algo sempre distante. Mas quando ela apareceu essa noite,
eu. . . Senti que a coisa certa a fazer. Senti que o que eu quero fazer.
Os dois diziammuito mais semfalar nada. Ele, de braos cruzados, apoi-
ado no balco da cozinha, esperava que ela lhe dissesse tudo. Sabia que havia
mais para ser dito. Ela, por sua vez, tentava lhe dizer que aquilo era o seu
limite.
por causa dele, no ? Apertou ele.
Beni. . .
Leila, voc no precisa. . .
Beni, me ouve! Leila se aproximou. Sou eu, tudo bem? Eu re-
almente quero fazer isso, mas s estava indecisa. Como voc e o Fjor, eu
52
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
estava com medo. Mas eu sei que esse o sonho do Leo, e. . . Eu no posso
deixar isso morrer. Isso acabaria com ele.
E isso fez voc decidir?
Bem. . . Sim.
Havia muitas coisas que Beneditt queria dizer a ela, mas sentiu-se des-
provido de foras para tentar convenc-la de qualquer coisa. Convenc-la
de qu, afnal? J no sabia mais por que brigara com Leo. Ele estava per-
seguindo seus sonhos, e Beneditt precisava decidir logo quais eram os seus
ao invs de exigir que os outros permanecessem abertos a opes. Como se
Leila pudesse ler seus pensamentos, acariciou sua mo e, momentos depois,
foi para o quarto, fazendo a luz da cozinha brilhar mais forte.
53
Captulo 8
Poder
O ex-soldado de sessenta e oito rosanos que, embora forte e alto, no
gostava de vaidades, estava sentado mesa comumcopo de gua. Enquanto
seu rosto de traos duros voltava-se para a porta entre duas janelas na frente
de sua loja, um menino, que no tinha sequer metade de sua altura, varria o
cho. Estava concentrado, e no fosse pelo jeito preciso de limpar o assoalho
da Maxim Minrios, poder-se-ia dizer que estava at mesmo triste.
O lugar era estreito, mas comprido. Espremido entre uma grande loja de
roupas e um restaurante, nunca houve razo para levar o empreendimento
para outro lugar. Aloja fcava bemno centro comercial da cidade, e sua fama
atingia os quatro cantos de Heelum. Como no havia necessidade de aten-
der dezenas de pessoas ao mesmo tempo, seu modelo de negcios ia bem.
Da porta at o balco fcavam duas mesas, com duas cadeiras cada uma,
encostadas parede de tbuas da esquerda. Por detrs do balco, dispostas
em vrias prateleiras bsicas de madeira, fcavam vrios caixotes. Cada um
continha um tipo de minrio. Junto a eles, na prateleira mais alta, em um
lugar em que caberia mais uma caixa, havia um grupo de minrios de cinco
lados amarelos, que mantinham o lugar sempre bem iluminado. Atrs de
uma porta com trs fechaduras, entre todas estas prateleiras, fcava o es-
toque e uma cama improvisada para o garoto, Prior, que trabalhava para
Maxim. Recebia seu pagamento na comida e no lugar para dormir. Devia se
dar por satisfeito.
Com um gesto brusco, Prior parou de varrer e olhou para Maxim. O
rosto, inexpressivo; a postura, reta. Maxim olhou para ele com seus olhos
verdes acinzentados, que pareciam desprezar o garoto, e este devolveu o
olhar de um jeito adormecido, mesmo sem sono.
Maxim virou seu rosto em direo porta, desperto; as gotas de chuva
caamno telhado e na fachada da loja, fazendo muito barulho e impedindo-o
de ir para casa logo, mas ainda assim o homem pensou ter ouvido, em meio
a tanto rudo, batidas na porta. Prestou mais ateno.
Ouviu-as de novo; desta vez, mais fortes. Prior largou a vassoura, que
bateu com estrondo no cho. Foi at a janela e, afastando um grosso pano,
tentou ver quem estava em frente porta.
55
Voiui l
Vejo s roupa preta. Comentou ele em um tom montono.
Maxim levantou-se para verifcar a situao ele mesmo, e Prior jogou-se
com fora contra a parede do outro lado, dando passagem. Havia, de fato,
um vulto negro do lado de fora. A intensa iluminao noturna da Cidade
Arcaica, toda emlaranja, no ajudava a descobrir a identidade de quemquer
que fosse. O visitante bateu outra vez.
Quem ? Perguntou Maxim.
Cinco velhos amigos. Respondeu uma voz masculina.
Fechando os olhos devagar e soltando o ar pela boca, Maxim abriu a
porta. O homem ainda desconhecido entrou, visivelmente encharcado, mas
semsinais de pressa. Ele vestia uma extensa capa preta, comvrias camadas
de tecido, e um gigantesco capuz que encobria todo o rosto. Virando-se
para o anftrio, tirou o capuz e revelou-se um jovem homem de curto e
reto cabelo negro. Seu rosto, impecavelmente limpo e barbeado, era plido
e, num toque que concedia ao seu semblante algo de pitoresco, tinha lbios
de um vermelho vivo e olhos de peixe morto to escuros quanto o cabelo.
Olhos que, altivos, no prestavam ateno em outra coisa que no os olhos
seguros de Maxim.
Qual o seu nome?
Desmodes.
Demoun?
D-mld Explicou ele a pronncia, falando devagar.
De onde voc vem, Desmodes? Quer sentar?
Obrigado.
Por fm quebrando o contato visual que havia mantido desde o incio, o
homem de preto puxou uma cadeira, sentando-se justamente de frente para
o lugar que Maxim ocupava antes no qual este se sentou novamente.
Posso? Perguntou Desmodes, sem tirar os olhos de Maxim.
Fique vontade.
Prior, que continuava encolhido contra a parede, comeou a andar. Pas-
sou pelos adultos, entrou na rea atrs do balco, pegou as chaves da porta
do estoque e comeou a destrancar a porta.
Venho de Jinsel.
Passou aqui antes de voltar ao Conselho?
Sim. Preciso de duas coisas.
Maxim tentava descobrir quais eram as intenes daquele mago. Ele
dominou Prior sem sequer olhar para o garoto. No que isso fosse difcil,
mas ali estava ummago jovemdemais para estar no conselho. E, no entanto,
ele conhecia a senha.
Qual a sua tradio?
Esplico.
Ora. . . Feliz coincidncia.
56
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Prior voltou mesa com um copo de gua, colocando-o em frente a
Desmodes.
Preciso de um hexagonal prata.
Esse deve ser o pedido fcil. Se me d licena. . .
Desmodes concordou com um leve aceno, acompanhado de um breve
pestanejar. Prior voltou a sair de perto dos dois, e voltou alguns segundos
mais tarde com uma pedra prateada fosca. Colocou-a em cima da mesa e
deu dois passos para trs; juntou as mos em frente ao corpo e abaixou a
cabea.
Do que mais precisa? Aqui tenho quase tudo.
Uma heptagonal.
Maxim no tinha mais prestado ateno chuva, mas o silncio que in-
vadiu aquele diminuto espao em que eles estavam era algo diferente: no
apenas a falta do que dizer, mas a necessidade de no dizer coisa alguma
e, ainda mais imperiosamente, a de ter cuidado com o que se decide di-
zer. Nesse nterim a chuva se fez mais presente, aoitando a Cidade Arcaica
como raramente fazia.
De que tipo. . . Exatamente estamos falando?
Marrom e verde.
Maxim colocou as mos sobre a mesa, as palmas viradas para baixo.
Balanando a cabea negativamente, olhou para o prprio copo de gua.
Infelizmente terei que dizer no. No tenho o minrio aqui e, alis. . .
H muito tempo que no consigo achar quem o venda pra mim.
Eu no disse que era um pedido.
Maxim socou a mesa com as duas mos, apertando-as em um punho
fechado.
Voc no sabe com quem est lidando. . . Seu olhar para Desmodes
na fala baixa. Eu vendo minrios pra vocs h mais de uma dcada e nunca
um fedelho arrogante como voc me ameaou dentro da minha PRPRIA
LOJA! Se voc tentar me atacar, eu juro que vou mat-lo. E o conselho fcar
do meu lado.
Prior os observava, sem saber em qual dos dois deveria prestar ateno.
Desmodes aproximou seu corpo da mesa.
Voc no vai conseguir fazer nada sem os braos.
Maxim entendeu antes mesmo de tentar voltar a Neborum. Sara de l
por um segundo, e ao voltar encontrou apenas escurido.
Desmodes enfm sorria. Maxim no conseguia mover os braos. Olhou
para eles, como se procurasse ummodo de dar-lhes foras, mas isso no adi-
antava; tremiam como se o mundo tremesse, e seu antebrao doa como se
tivesse sido profundamente perfurado. Ainda assim, sufocava em inanio,
ofegando de medo; no encontrava foras para berrar por ajuda.
Eles. . . sussurrou ele Sabero. . .
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Shh. . . Desmodes ps o dedo em riste em frente boca.
Maxim no percebera que Prior havia sado do lado deles. Ele voltava
com uma outra pedra; desta vez, uma forma geomtrica com sete lados e
uma mistura catica e opaca de marrom e verde distribuda por toda a su-
perfcie. Na outra mo, uma faca.
O que. . . O que que. . . E ento foi impedido de falar. Desta vez
queria, precisava saber o que iria acontecer, mas apenas ao suor era permi-
tido se expressar. Desmodes colocou as duas pedras em um compartimento
interno das vestes e, posicionando o copo na mesa de forma a faz-lo fcar
mais perto de onde Prior estava, levantou-se e foi embora. Adentrou a chuva
semmedo, e Maximolhou uma ltima vez para Prior, prestes a cometer uma
vingana que no planejara.
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Captulo 9
Tradio
O cenrio era o melhor que os dois j haviam visto em suas curtas vi-
das. Um dos motivos para tanto era o cenrio; o outro, o contexto. certo
que sentavam no cho, encostados no amontoado de terra que os levaria
mais acima no morro, mas eram assentos privilegiados, prximo ao topo
de uma elevao coberta por pinheiros de folhas anormalmente grandes e
grossas. Para alm deles comeava uma complexa rede de casas simples e
lojas agregadas emprdios de dois ou trs andares, j emterras planas. Mais
longe fcava umconglomerado de grandes castelos de corvnia: umnmero
sem-fm de tneis, corredores, cmaras, salas, pequenas torres e, atiando
a curiosidade e fantasia de muitos, passagens secretas crescimento, para
Al-u-ber, signifcou a simbiose do que um dia foi smbolo de belicosa divi-
so. Mais perto do litoral havia vrias torres longas e imponentes a maior
delas, a Bela Torre, contrastava com o azul e amarelo do cu em sua potente
negritude esguia. No solo era possvel discernir um pouco do Rio Trojinsel.
Atrs das fguras das torres o mar estendia-se, limpo e plano, espraiando-se
como promessa e destino.
Tadeu e Amanda conheciam quase todos os detalhes daquela paisagem.
Jovens e enamorados, os dois abraavam-se, as duas mos de cada umdadas,
ligadas pelos vos dos dedos. Visitavam aquele lugar de quatro em quatro
dias, sempre ao pr do sol, para poderem fcar juntos longe da vigilncia
urbana: ningum sabia do romance, e se quisessem fcar juntos era assim
que as coisas precisavam ser.
O que voc acha que vai acontecer hoje noite? Perguntou ela.
No sei. Voc quer aprender?
Ela deu de ombros.
Acho que importante.
Ele olhou para a esquerda. O sol sucumbia, desaparecendo por detrs
da linha do horizonte, feita de matagais e daquilo que pareciam ser casas e
construes de distantes jirs.
Me sinto como ele. Disse Tadeu, sem saber ao certo se deveria
adicionar um s vezes ao comentrio.
Amanda olhou em direo luz.
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Voiui l
Como quem?
Como o sol.
Desaparecendo? Perguntou ela, franzindo o cenho.
No. Fazendo parte de uma histria que eu sei como vai acabar.
Ah, Tadeu. . . Ela se aninhou mais nos ombros dele, tentando con-
fort-lo sendo confortada no processo.
srio. Roun. Brilhante Roun. . . Todos os dias comea vencendo
Nauimior e, depois de um tempo passando pelo cu, tem que enfrentar seu
destino. Ser derrotado.
Ela riu, baixinho.
Est vendo como ele anda bem devagar? Reafrmou ele. desse
jeito que ele vai rumo ao fm. . .
Ela passou a encarar Tadeu de frente, ainda com o rosto cmico. Puxou
o rosto dele para si, de leve, com a ponta dos dedos.
Voc no vai morrer. Isso vai ser bom!
At hoje s tem separado a gente.
, mas. . . Se no fosse por isso ns no estaramos juntos, no ?
Agora foi a vez dele de sorrir, olhando para a prpria mo descansando
sobre a cala.
Aprimeira vez que os dois se viramfoi quando tinhamcerca de dezessete
rosanos. O pai de Tadeu, Galvino, era um proeminente mago e poltico. A
me, Eva, tambm maga, apenas acompanhava Galvino na carreira, sem
exercer uma profsso independente. Os trs foram um dia a um jantar na
casa de um mago que, por alguma razo inescrutvel para um menino to
jovem, tambm viria a fazer parte dos crculos de poder da cidade.
O mago, Barnabs, aparentava ter mais que oitenta rosanos, mas era
ligeiramente mais jovem. Majoritariamente calvo, com o cabelo que lhe
restava tomado por uma tempestade cinza, tinha um rosto cansado, mas
um sorriso encantador.
Em contraste, Galvino tinha um longo e liso cabelo loiro e, apesar de
bastante experiente, aparentava ser mais jovem. Seus olhos azuis que
Tadeu tambmtinha, para explcita alegria de Amanda eramemoldurados
por feies srias. Raras vezes Tadeu vira seu pai sorrir; raras vezes ele no
usava sua mscara habitual de homem preocupado, ocupado e atarefado.
A me no era to atarefada, mas em seus olhos ovalados uma preo-
cupao era to perceptvel que Tadeu aprendera, por direta intuio, que
no deveria sempre cham-la, depender dela. No deveria falar com ela por
muito tempo. Morena, tinha umcurto cabelo negro e ostentava o nariz mais
perfeitamente reto que Al-u-een j havia visto.
Barnabs no tinha uma famlia normal para os padres de Al-u-ber.
Sua mulher havia morrido durante o parto da nica flha que tiveram, e
desde ento ele no quisera outra mulher em sua vida. Tadeu lembrava que,
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
enquanto sua me se desculpava por tocar em um assunto to pessoal, ele
olhava para Amanda com curiosidade e suprimido espanto. Ele ainda no
havia tomado conscincia de afastamento algum em relao prpria me,
mas no t-la por perto? Como isso era possvel para aquela menina?
Amanda tambm olhava para ele com curiosidade. Daquela noite Tadeu
pouco lembrava quanto ao que ela vestia, mas lembrava que seus cabelos
eram lisos, como os de Galvino, porm ainda mais longos e, ao invs de
loiros, dotados de uma espcie de acobreado que combinava com seu rosto
de linhas macias. Os olhos castanhos dela surpreenderam-se com o escuro
cabelo penteado esquerda do garoto, e tambm com seu pequeno nariz
coberto em manchinhas beges.
Se no fosse por isso talvez a gente tivesse amigos. Argumentou
ele.
Ela torceu a boca. Sabia que era verdade.
Depois de tanto tempo, o cabelo dos dois havia se transfgurado: ele no
tinha mais cabelo algum, e ela havia cortado o seu. Ele, porque precisava
fugir da vontade de ter cabelos longos, fnos e retilneos como os do pai. Ela,
porque precisava fugir das boas razes para se cultivar um cabelo comprido
em Al-u-ber.
Se a magia fosse proibida, qualquer descendente direto de magos teria
que crescer sabendo mentir, tendo medo do que signifcaria ser ntimo de
algum. Com a magia sendo a chave para o poder, aquela era a cidade do
interesse. Crescer em uma famlia poderosa signifcava tambm ter medo
de ser ntimo de algum, mas por razes completamente diferentes.
Depois de se conhecerem, Tadeu e Amanda continuaram a se encontrar
pelas ruas de Al-u-ber e em ocasionais visitas. No entanto, no importava
o quanto suplicassem aos pais, no conseguiam se ver regularmente fal-
tava boa vontade aos pais. Quanto menos aleatrias as visitas se tornavam,
menos os pais gostavam da ideia de que convivessem to de perto. Eles
nunca diziam isso, mas mostravam: suas expresses faciais, seus olhares
enviesados, comentrios abafados.
Um adorava poder sentir no outro uma relao de verdade. Era como se
no precisassem ter mais medo. Os pais, contudo, preferiam que eles se re-
lacionassem com outras crianas crianas que tambm eram incentivadas
pelos prprios pais a frequentarem a casa de Barnabs ou de Galvino.
Mas os dois tinham uma sensibilidade superior. Tanto para saberem que
gostavam um do outro quanto para verem que havia algo de errado com
aquela rotina que lhes era cada vez mais imposta. Sempre que os pais esta-
vam por perto, sentiam-se bem dispostos. At conseguiam, com os colegas
sugeridos e pr-aprovados, compartilhar momentos bons. Mas, distncia
dos progenitores, nada funcionava to bem. Por vezes eram perguntados
sobre magia, mas dela nada sabiam; e quando isso vinha tona, a conversa
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Voiui l
morria, afogada em inexorvel frustrao. Tadeu e Amanda pareciam ser os
nicos a terem interesse quase nulo por magia. No demorou muito para
que Tadeu relacionasse a ausncia do pai ausncia de vontade, de signi-
fcado, de apetite e entendesse na raiz de quem era o sentido da palavra
solido.
Uma vez, sepultando suas antigas dvidas e suscitando novas, escutou
uma briga do lado de fora do quarto dos pais.
Voc vai parar com isso, Galvino.
Por que, Eva? Porque estou tentando dar uma vida pra esse garoto?
Ele tem uma, seu estpido! Dizia ela, com uma voz contida, mas
claramente irritada. Ele tem uma e voc est arruinando ela!
Tem certas coisas que no podem acontecer, voc sabe do que eu estou
falando. . .
Ele s um garoto, Galvino, ele no sabe de nada disso e no tem
como descobrir. Do que voc tem medo?
Voc diz que se preocupa com ele, mas eu sei o que pode acontecer se
ele sair da linha quando comear a aprender o que deve!
Eu tambm sei muito bem. No me chame de desinformada ou me
acuse de negligncia. E eu sei que o seu jeito de lidar com isso tudo vai fazer
tudo acabar do jeito que voc e eu no queremos.
Ento o que voc sugere, Eva?
Voc no vai atac-lo de novo. Eu vou proteg-lo.
E como voc vai fazer isso?
Silncio.
Voc vai me atacar?
Ao ouvir isso, Tadeu respirou pela boca, assustado, fazendo um barulho
alto demais para a quietude da casa. Andou para longe da porta o mais sor-
rateiramente que pde, j nem sabendo se isso tinha funcionado, e quando
pensou estar a uma boa distncia dali comeou a correr.
Os prximos dias foram de batalha. Uma em que os lutadores brandiam
espadas por debaixo das aparncias. Sempre que os pais estavam perto, Ta-
deu podia ver que os dois, s vezes por minutos inteiros, deixavamde prestar
ateno ao que faziam. O garoto no sabia qual parte daquilo era culpa sua,
mas sentia-se mal. Na verdade, chegava at a sentir como se precisasse en-
contrar alguns amigos aqueles garotos que o pai tanto queria que tivesse
por amigos mas isso era passageiro; em outras ocasies sentia apenas que
precisava fcar emcasa, e durante esses dias fazia muito pouco, ocupando-se
basicamente de teorias, uma pior que a outra, quanto ao desentendimento
entre os pais. s noites, durante o jantar, era como se ningum na casa dor-
misse h dias, mesmo que nada minimamente cansativo tivesse sido feito o
dia inteiro.
62
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Depois de algum tempo, as coisas estranhamente comearam a voltar
para o lugar. Eles no pareciam mais to cansados. Galvino saa de casa
todos os dias para suas atividades, como fazia antes. Todos retomavam suas
tarefas e rotinas de outrora, mas apenas o silncio permanecia: algo havia
sido estabelecido entre os pais. Eles s haviam esquecido de dizer a Tadeu
o qu.
Preocupado e nada satisfeito, saiu de casa um dia e bateu porta da
casa de Barnabs. Ele, nervoso e assustado com as possibilidades daquele
encontro inesperado, lembrava-se que ela mesma atendeu a porta e, olhando
para os lados to nervosa quanto ele o puxou pela mo.
Os dois subiram a colina de pinheiros o mais rpido que puderam por
uma trilha. Tadeu tinha medo daquele lugar, em que as sombras eram frias
mesmo sob o forte sol de torn-u-sana, mas no queria mais ter medo de
nada. Amanda parecia conhecer bem o trajeto, e o guiava com simplici-
dade. Chegaram ao mesmo lugar em que estariam sentados rosanos depois,
e tentaram compreender o que Tadeu havia escutado.
Mas o que isso quer dizer? Perguntou a Amanda de cerca de vinte
rosanos ao terminar de ouvir o relato.
Eu no sei. Voc no sabe de nada sobre magia?
Ela olhou para ele com um misto de decepo e raiva.
Voc parece as minhas amigas. Disse, virando-se de costas.
Tadeu abriu a boca, arregalando os olhos ao perceber que parecia exa-
tamente como os supostos amigos dele tambm.
D-desculpa.
Quando ela se virou de novo, estava chorando. Ele no soube como
reagir, mas seu corpo soube: um arrepio perpassou sua coluna; ele queria
poder fazer algo. Qualquer coisa que parasse aquilo. Que a confortasse.
Eu s. . . Estou to cansada de no sentir nada pela minha me. Ou,
de. . . E-evitar, n-no pensar no que eu sinto. . . Eu fco ouvindo na minha
cabea que no vai adiantar de nada chorar por ela, mas. . . Eu queria tanto
ter conhecido ela, Tadeu. . .
Ela comeou a soluar violentamente, e Tadeu cedeu ao impulso de
abra-la. O fez de maneira desajeitada, e a cabea dela tremia enquanto
se deixava envolver pelo afago do garoto.
Eu s. . . Ela se afastou; seus olhos se comprimiam ao ponto de
quase fecharem enquanto as lgrimas rolavam pelas bochechas Estou to
cansada de seguir a minha cabea o tempo todo. . .
E ento, de um jeito doce como ele no conseguiria sequer imaginar, ela
o beijou.
63
Voiui l
Tadeu acariciava as costas da mo de Amanda com o polegar; os outros
dedos sentiama textura da prpria cala bord e da longa capa verde-musgo
que Amanda emprestara do pai.
Lembra de quando a gente brigou feio?
Lembro. . . Respondeu ele, nostlgico.
Voc ainda acha que o seu pai fez tudo aquilo? Fez a gente fcar com
raiva um do outro?
Eu no sei. S sei que foi uma boa chance pra passar a ideia de que a
gente estava separado. De vez. A tristeza de ambos foi verdadeira apenas
por um tempo, e estava sendo falsamente prolongada desde o incidente.
Ofcialmente, umestava mais do que disposto e inclinado a esquecer o outro,
e a recproca era verdadeira. J tinham esquecido.
Ser mesmo que eles acreditam nisso?
No sei.
Amanda suspirou, abatida, como sempre fcava quando chegava aquele
momento. O sol j havia se posto por completo. Ela queria perguntar se
ele imaginava que eles pudessem fcar juntos algum dia, como um casal
normal, ignorando o que quer que houvesse de errado com a combinao
de seus afetos. Mas a pergunta morreu no tempo.
Temos que ir.
Sim.
Os dois se levantaram e, ainda com as mos juntas de frente um para
o outro, se beijaram devagar e apaixonadamente; depois de separarem os
lbios, fcaram ainda com os rostos em contato. Ela passou a mo na cabea
lisa do garoto, deslizando para a nuca. Ele, nas curtas madeixas lisas da
garota, deslizando para o pescoo.
Boa sorte. Disse ele, baixinho.
Pra voc tambm.
Foram embora, um para cada lado. A charrete dela a esperava ao fm da
trilha tradicional, que ela conhecia bem; a dele, bem longe, em uma que ele
abrira sozinho.
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Captulo 10
Educao familiar
Tadeu abriu a porta e passou os olhos comateno por todos os cantos da
casa. Asala era ampla e alta, comfortes paredes de corvnia. Havia direita
uma grande mesa retangular, em cujas cadeiras de prateados entalhes se
encaixavam minrios de luz vermelhos. As duas compridas janelas do lado
oposto entrada eram de um vidro rugoso e vermelho, bem como aquelas
frente da casa, ladeando a porta que Tadeu fechava. Pendurados ao longo da
parede esquerda estavam outros trs minrios de iluminao, dois amarelos
e umazul, intercalados. Acoplada corvnia fcava uma escada comdegraus
claros, quase cintilantes, mas um corrimo de madeira escura.
Seus olhos escrutinaram o lugar, desconfados da ausncia do pai. No
sabia o que esperar da primeira aula de magia, ainda mais considerando que
seria ministrada por ele; eles iriam para outro lugar? Mais pessoas estariam
presentes?
Tadeu ouviu algo; descobriu serem as botas da me, que surgiu vaga-
rosamente pela porta que levava cozinha, trazendo as duas mos dadas
frente do corpo.
Seu pai est esperando. Disse ela, encostando-se moldura da
porta.
Onde?
Eva acenou com a cabea na direo de um corredor esquerda, que
comeava antes da escada. Tadeu assentiu.
Quando Amanda entrou em casa, um empregado logo veio tirar-lhe a
capa. Amanda agradeceu, e ele avisou que seu pai a esperava em uma sala
no terceiro andar. Comumsorriso nervoso subiu as escadas, eventualmente
pulando dois degraus de uma vez evitando certa feita o ranger de uma
das tbuas. Chegou rpido nica sala de porta fechada do longo corredor
escarlate. Bateu antes de entrar.
A sala, gigantesca e praticamente vazia, estava com as altas e fnas ja-
nelas abertas para o lado de fora. Alm das curvas colunas amarelas que
surgiam da parede interna em direo a um teto inatingvel, havia na sala
uma coleo de almofadas lilases, um par de copos e uma jarra com gua. O
vento fresco de incio de noite dava ao lugar um aspecto relaxante exata-
65
Voiui l
mente o tipo de coisa de que ela precisava.
Boa noite, flha. Disse Barnabs, deixando ver um sorriso amvel
ao voltar-se para Amanda. Est tudo bem?
timo, pai. Vamos comear?
Se voc estiver pronta. . . Por que no?
Ela levantou as mos, dando um nervoso riso de indiferena.
J que eu no sei o que estar pronta. . .
Galvino estava parado diante da lareira.
O corredor levava a uma confortvel sala que o pai, parado diante de
uma lareira, usava para reunies quando era inasi-u-sana. Era uma sala fria,
ainda que ali no houvesse janelas, o que signifcava que o fogo precisava
crepitar. As paredes, por mais uniformemente escuras que fossem como,
alis, eram em quase todos os ambientes daquele pequeno castelo eram
muito bem iluminadas por minrios amarelos, dispostos simetricamente em
duas das paredes. No centro do recinto dois confortveis e luxuosos sofs,
longos e com encostos de estofado vermelho, fcavam em cima de um tapete
dourado e preto de motivos geomtricos. A sala provocava uma sensao
saborosa que Tadeu, por mais que no quisesse, achava insuportvel.
Como tem estado? Perguntou Galvino, servindo-se de gua.
Quer um pouco?
No, obrigado. Tenho estado bem.
O que tem feito? Por que estava fora?
Estava aprendendo cultivo. Plantas, fores. . . Amanda o ensinara
algo sobre plantas medicinais. Ele tambm sabia reconhecer minrios de
cura graas a essa conveniente mentira.
Galvino balanou a cabea, como que aprovando a atividade, e se apro-
ximou da lareira.
um bom lazer, meu flho. A natureza realmente algo que. . . Deve-
mos admirar. Melhor ainda, algo de que devemos tirar lies. Fez uma
pausa para a gua. . . . Mas a vida dos homens, Tadeu, e especialmente de
homens como ns, mais importante.
Eu sei. No, no sei, pensou Tadeu.
Voc deve considerar a carreira poltica, Tadeu. Seriamente.
Pai, eu. . .
No, no preciso decidir por ela agora. Emendou ele, voltando-se
para Tadeu novamente. Ou, bem, decidir-se por ela. Mas algo que corre
no seu sangue. Isso algo que no se pode desrespeitar sem consequncias.
Por que no se senta?
Amanda sentou-se ao cho de frente para o pai; as pernas cruzadas
maneira dele. Ela logo evitou o olhar que ele lanou, pondo a pequena (e
por isso mesmo irritante quando solta) franja atrs da orelha com a mo,
que inevitavelmente tremia.
66
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Minha flha. . . Minha pequena. . . Voc passou por tantas coisas. Veio
vida sem uma me que pudesse ajud-la mais do que eu. Mas eu ajudei
voc a fazer da sua vida at agora o. . . O melhor que eu pude.
Eu sei. Ela disse, ainda olhando para o cho a sua frente.
Mas hoje vamos comear a sua caminhada rumo integrao elite
de Al-u-ber. Voc vai aprender o que magia, e como us-la. Um dia poder
seguir meus passos, e ser uma importante lder nessa cidade.
Amanda reagiu com arrepios ao que ouvia.
E se. . . Eu no quiser ser uma lder? Perguntou ela, cautelosa.
No, no, no estou falando s de poltica, flha, me desculpe. . .
Disse ele, juntando as palmas das mos. Me expressei mal. Eu quero
dizer que, com a magia, voc vai se destacar no que quer que voc faa.
Amanda balanou a cabea positivamente.
Galvino andou at fcar exatamente de frente para Tadeu, e esperou at
que o flho o olhasse nos olhos para comear a falar.
A magia, Tadeu. . . Consiste em. . . Infuenciar pessoas. A primeira
coisa que ns vamos aprender a lidar com Neborum. Acess-lo.
Neborum?
Neborum uma realidade diferente. Explicou Galvino, caminhando
para longe. L voc v as coisas de um jeito que no as v aqui. Faz coisas
que no faz aqui.
Diferente. . .
como um grande campo.
Galvino parou de novo diante da lareira, olhando fxamente para o foco
do fogo. Tadeu o observava, esperando por mais; estava diante do mistrio
e fora fsgado por uma explicao incompleta.
Estaria o pai em Neborum naquele momento?
Sem montanhas. Disse Galvino, de repente; movimentou a ris,
depois todo o rosto, e enfm andando de volta em direo aos sofs. Sem
colinas. Sem rios. Sem nem rvores, na maioria das vezes. Apenas grama.
noite o mundo escuro como a noite. De dia, claro como o dia. H um
cu e h um sol. E isso.
E. . . Neborum. . . Existe? Perguntou Tadeu. Digo, . . . fora de
Heelum? P-precisamos viajar para chegar l?
Sim, viajar, sim. Respondeu Galvino, crptico. Mas sem sair do
lugar. Esse mundo existe dentro de todos. O tempo todo. Mas apenas os
magos conseguem v-lo. Conseguem entrar nele. Apenas ns conseguimos
agir nele.
Tadeu buscava com formigante freneticidade respostas para suas inqui-
etaes. Sua mente viajava, reinterpretando o passado.
Se havia ummundo ao qual apenas magos tinhamacesso, era l que seus
pais estavam enquanto brigavam, rosanos atrs?
67
Voiui l
Barnabs bebeu um copo de gua enquanto deixava Amanda processar
o que havia ouvido. Sorriu ao perceber a incredulidade estampada em seu
rosto.
O que importante, flha, saber que esse mundo est sempre dentro
de voc. Oque existe nele muda de acordo comas pessoas que esto perto de
voc. Com aquilo que est sua volta. Se voc conseguisse ver este mundo
agora mesmo, flha, voc veria nele um cho coberto de grama, mas estaria
vendo isso de dentro de um castelo.
Um castelo. . . Repetiu ela. De corvnia?
Alguns so. Isso no importa muito, na verdade. . . Isso depende
muito, flha.
Certo. . . E. . . O que mais eu veria?
O meu castelo, se andasse at uma janela do seu castelo, por exemplo.
Respondeu Barnabs. Um pouco mais longe, mais frente. O meu
castelo representa a mim, a minha pessoa. O seu representa a voc mesma.
Ento em Neborum eu sou um castelo.
Sim.
E eu vejo todas as pessoas de Heelum l? Todas so um castelo?
No, no todas. S as que esto perto de voc no momento.
E quem a pessoa que v isso tudo? Eu seria capaz de ver voc l?
Quer dizer, no o seu castelo, mas o seu. . . Corpo, por exemplo? Pergun-
tou Amanda.
Em Neborum o seu corpo, aquilo que voc v como o seu corpo e o
corpo das pessoas, o seu iaumo, flha. Sua alma. Sua essncia.
Tadeu estava confuso; seu pai, sentado. Morava num castelo, e aparen-
temente tambm era um em Neborum.
O que foi? Perguntou Galvino.
No sei. . . Ocastelo sou eu, e eu, emNeborum. . . Tadeu foi inter-
rompido pelo pai, que adicionou Sim, o seu corpo quando Tadeu sublinhou
o eu na frase. Sim, eu, o meu corpo . . . O iaumo.
Exato. Reafrmou Galvino. E dentro do meu castelo, se voc
entrasse nele, voc encontraria uma pessoa como eu. Meu iaumo.
E a alma? Arriscou Tadeu. a mesma coisa?
Vejo que as aulas de tradio lhe serviram bem. Disse Galvino,
enfm recostando-se completamente no sof. O iaumo uma palavra em
na-u-min para a alma. Na poca emque a magia surgiu j no se falava mais
na-u-min, mas. . . Os magos esconderam sob essa palavra a ideia da alma.
Ns, magos, conhecemos a alma, Tadeu.
E o que magia?
Galvino levantou as sobrancelhas e abriu a boca, preparando-se para
dizer algo.
Barnabs sorriu, levantando as sobrancelhas.
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Bem, magia. . . Magia atacar, minha querida. Quando dizemos que
algum vai atacar algum, como dizer que far magia nessa pessoa. Ma-
gia signifca sair de seu castelo. . . Invadir um castelo de outra pessoa, ou
simplesmente entrar nele se a porta no estiver trancada, e. . . Realizar uma
tcnica dentro desse castelo. Cada tcnica um jeito como voc pode in-
fuenciar algum. Depois que voc realiza a tcnica, voc pode voltar para
o seu castelo diretamente, sem precisar refazer o caminho. Podemos fazer
isso em qualquer momento.
E como eu fao isso tudo? Perguntou Amanda. Mesmo com as
janelas abertas, sentia calor.
Calma. . . Disse Barnabs, fechando os olhos e levantando de leve
a palma da mo. Uma coisa de cada vez, flha. Agora. . . O sorriso foi
lentamente desaparecendo. H uma coisa que. . . essencial que voc
saiba.
O qu?
Magia algo muito perigoso, Amanda. Muito, muito perigoso. Com
ela voc pode levar algum maior das alegrias, mas tambm ao pior dos
infortnios.
Galvino parecia ter fcado subitamente preocupado. Colocara uma clu-
sula ao entendimento de Tadeu, mas parecia relutante eminform-la. Voltou
a se empertigar no sof, e eventualmente se levantou.
O que foi, pai? Insistiu Tadeu.
Existe muito a saber sobre magia. Comeou Galvino, pondo-se
novamente em frente ao fogo. Por isso existem as tradies. Cada uma
tem um conhecimento especfco sobre as tcnicas, Tadeu.
Tadeu ouvira falar vagamente sobre elas.
Existem trs delas. Continuou Galvino. Os bomins, os preculgos
e os esplicos. Os bomins conseguem provocar sensaes e sentimentos.
Emoes e vontades. Os preculgos infuenciam o modo como as pessoas
pensam.
Tadeu colocava as peas do quebra-cabea no lugar. Ser um mago sig-
nifca invadir. Ele parecia se encaixar, afnal, na defnio da vtima de um
mago. Aps a invaso, o mago pode infuenciar pessoas. Alguns infuen-
ciam o que as pessoas sentem. Outros, o que as pessoas pensam.
Uma onda avassaladora de medo perpassou seu corpo, arrepiando-o com
a ideia que ele havia intudo, ainda que no compreendido. O medo era real,
e o fez querer fugir do olhar do pai instantaneamente; tinha medo de fazer
a pergunta que precisava ser feita.
Faltava descobrir algo.
E os esplicos, pai? Perguntou Amanda.
Bem, flha, eles. . . Eles so diferentes. Barnabs derramara um
pouco de gua na mo, que esfregou na outra, enfm passando as duas nos
69
Voiui l
trajes que vestia. Eles no tm tcnicas que infuenciam algum. Eles no
invadem seu castelo e procuram por coisas para fazer em uma sala ou outra.
. . . Ento o que eles fazem?
Eles buscam a sua alma, flha. Vasculham o castelo atrs dele, do
iaumo, e quando o encontram, o dominam, o prendem em uma rede de
fora que. . . impossvel de descrever sem que voc a veja ou, ainda pior,
a sinta. . . E a partir da, voc est controlada. Voc faz o que eles quiserem
que voc faa, no importa o que pense ou sinta quanto a isso.
Amanda tentou imaginar aquilo. No sabia como imaginar Neborum,
mas seguiu as dicas do pai. Viu a si mesma em meio a um infnito campo
verde, debaixo de um sol tripudiante, diante de um Galvino enrolado por
uma teia de grossos fos negros de l. Ele parecia amedrontado, olhando
para ela com a boca aberta e os olhos azuis aterrorizados. Estava pronto a
implorar por misericrdia; a barganhar por clemncia.
Amanda riu pra si mesma, sentindo umpouco de vergonha por imagin-
lo naquela situao. Pensou que sequer sabia se deveria imaginar a si mesma
como esplica.
E o que ns somos, pai? Perguntou ela.
Tadeu, eu. . . Hesitou Galvino. Espero que entenda que h certas
coisas que fazemos por necessidade. Ns, magos.
Tadeu no entendia por que a conversa tomava aquele rumo. Galvino
prosseguiu.
Uma pessoa no pode conhecer todos os tipos de tcnicas. Ela seria
poderosa demais. Por isso as tradies mantm-se estritamente separadas.
O que voc aprender aqui pode contar a um bomin por sua conta e risco,
mas. . .
Ns somos bomins? Interrompeu Tadeu.
Galvino sorriu, confrmando.
Gosto do fato de que voc usou a palavra ns.
Galvino esperou que Tadeu fzesse as conexes por si mesmo. Alguns
instantes depois, o jovem olhou para o pai novamente:
O que o Barnabs , pai? Qual a tradio dele?
Mais silncio por parte de Galvino, que limitou-se a olhar para o flho.
Tadeu irritava-se a cada momento que precisava esperar.
Estaria ele em Neborum?
Voc tem que entender, meu flho, que. . . Se voc ainda fosse. . .
Amigo dela. . . Se a flha de Barnabs estivesse nos seus crculos de ami-
zade. . . Isso seria perigosssimo para voc.
Por qu?
Porque Barnabs um preculgo, Tadeu. E Amanda ser uma tambm.
As chamas, que pareciam ter fcado mais fortes, deixavam a sala mais
clara, mas tambm mais quente. Isso fazia a luz variar, e o fazia ainda mais
70
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
para Tadeu, que era constantemente obscurecido pela sombra de seu pai.
Apenas agora comeava a entender o quanto sua vida tambm dependia da
sombra dele, e quanto mais escura a sala parecia para ele, na oscilao da
luz do fogo, mais ele se entristecia, ao mesmo tempo que se enfurecia, com
a viso de seu futuro.
E o que tem de errado com isso? Eu i-ia. . . Com a cabea confusa e
inebriada pelo pouco de coragem que lhe restara a nova angstia era falar o
que no devia. . . . Manter isso longe dela! E ela poderia fazer o mesmo!
possvel, mas vocs seriaminvestigados exausto. Entenda, Tadeu.
Procure pensar. Todos os magos desconfariam muito de vocs dois juntos.
Dois alunos, e to jovens. . . Ficaria claro de que lado estaria a lealdade de
vocs. Vocs poderiam se ajudar. Entender a magia um do outro.
Mas de que importa se. . . E se quisssemos. . .
Voc morreria, flho. Disse Galvino. Tadeu fnalmente sentia que
Galvino de fato olhava para ele. Voc e Amanda. E tambm eu, sua me e
Barnabs. Todos ns seramos condenados se vocs compartilhassem qual-
quer coisa e algum descobrisse. Uma acusao que seja. Infundada que
fosse. J seria o bastante.
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Captulo 11
Alorfos e flinorfos
Al-u-een foi a terceira cidade a ser fundada depois que os homens fugi-
ram do Yutsi Rubro, deixando a Cidade Arcaica para trs. No entanto, diz
o ditado popular local que ela foi a primeira, j que foi a nica cujo povo,
poca, quis fcar exatamente onde estava. Na poca, Kerlz-u-een e Rirn-u-jir
no passavam de postos militares; fortalezas provisrias que todos deseja-
vam abandonar ao primeiro sinal de que pudessem voltar para o lugar de
onde vieram. Um ditado jocoso de Roun-u-joss dizia que ela foi a primeira
cidade a descobrir a justia o que, curiosamente, alguns em Al-u-een ou-
viriam sem notar o sarcasmo.
Ambos os ditados informavam muito sobre a cidade. Ao longo da his-
tria foi um dos locais mais infuentes de Heelum: sua arquitetura, cheia
de colunas, igualdades e propores, era muito admirada e copiada. Suas
esculturas, que complementavam de forma brilhante o urbanismo perfecci-
onista, geraram toda uma tradio por seus prprios mtodos. Sua poltica
serviu como modelo natural para Rouneen, Ia-u-jambu e Novo-u-joss em
seus primeiros tempos.
Na manh seguinte quela noite gelada, Al-u-een seria o cenrio de um
assassinato.
Ao sul do Rio Ia dois homens caminhavampor uma rua emfrente praia,
vestindo grossas capas negras por sobre roupas presumivelmente ainda mais
quentes. As ondas iam e vinham, no eterno quid pro quo com a fna areia.
A distncias regulares, um poste de corvnia brotava da calada da rua de
paraleleppedos. Altos e resistentes, tais postes terminavam em uma esfera
oblonga da qual saam oito fnas hastes curvilneas, simetricamente dispos-
tas como as de umpolvo. As hastes juntavam-se emuma espcie de pedestal,
acima da esfera, a l era colocado o minrio que iluminaria aquele pequeno
trecho da cidade. Comas mos nos bolsos, os dois andavamdespreocupada-
mente, mas nisto fngiam: pensavam seriamente no que aquela noite podia
trazer.
Que casa ? Perguntou Kan.
Esta.
Enfm pararam. O homem que identifcou a casa, Lenzo, tinha um rosto
73
Voiui l
redondo e relativamente pequeno. Seus olhos, amendoados e castanhos,
vasculhavam a rua procura de algum estranho a observ-los.
Me esconde. Pediu ele.
Kan, com longos rosto e corpo e a barba por fazer, fez que sim com
a cabea. Mergulhou em um outro tipo de escurido, e quando emergiu
estava pisando no em pedra, mas em grama.
Olhou para o lado e viu um imponente castelo dourado fosco; reconhe-
ceu estar ao lado da torre oeste. Voltou-se para a frente e, com um rpido
escrutnio, percorreu a regio inteira. Sentiu o vento no rosto ao percorrer
toda a rea, todas as direes, e voltar at onde estava. As estrelas ainda
giravam e se recombinavam no cu quando ele assegurou-se de que aquele
era mesmo o nico outro castelo na regio quando assegurou-se de que
estavam, enfm, sozinhos.
Levantou as mos em direo construo, um pouco menor que a pr-
pria e, como numa splica por esmola, manteve a palma da mo para cima.
Logo a escurido do cu comeava a se misturar com as sombras do castelo,
e as luzes, vindas dos minrios nas salas com janelas, comeavam a brilhar
mais forte, para depois serem engolidas para dentro da escurido que caa
por sobre o prdio como se o cu derretesse. Enquanto os ltimos raios de
luz entortavam-se num redemoinho, o prprio castelo chegava mais perto
dele; a destruio fazia aproximar, sem fora e sem movimento, sem tirar do
lugar.
O prprio cu ganhou as tonalidades das paredes externas do castelo e,
logo depois, o mago se viu do lado de dentro, e todos os objetos do salo
principal das velas s cadeiras estavam distorcidos e estendidos; ora
grandes demais, ora pequenos demais, formando uma redoma de paredes e
luz ao redor do centro que havia se tornado o mago. Oteto esfrico comeou
a convergir para ele e, antes que tudo entrasse em colapso, o mago fechou
os olhos.
Aps sentir um breve calafrio, abriu-os e contemplou a rua em frente
praia novamente.
No tem mais ningum? Perguntou Lenzo.
Eu no vi. Respondeu Kan. Agora anda, me esconde tambm.
Lenzo bateu duas vezes na porta da pequena casa. Ela fcava no meio
de um terreno grande, e suas paredes externas, pintadas em azul real, es-
tavam longe das paredes de todas as casas da vizinhana. Completamente
quadrada e com apenas uma janela nos fundos, emoldurada com madeira
pintada de amarelo, a casa era de arquitetura to empobrecida que era uma
raridade naquele bairro de Al-u-een.
74
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Quem? Perguntou uma seca voz feminina.
Lenzo e Kan.
A porta se abriu. A fraca luz da rua no conseguia adentrar o recinto,
to intensa a escurido do lugar; os dois magos, com seus castelos tornados
invisveis um pelo outro, conseguiam ver apenas um fno brao, iluminado
de azul claro, segurando a porta pelo lado de dentro.
Assim que entraram e a porta se fechou, a escurido foi completa. Ouvi-
ram um barulho; um farfalhar que adivinharam estar relacionado a roupas
ou tecidos, e depois um baque macio de algo como uma pedra batendo
contra uma superfcie de madeira. Uma luz vermelha comeou a surgir em
cima daquilo que parecia ser cada vez mais uma mesa redonda. A luz, ainda
que no to forte quanto poderia ser se cinco pessoas no estivessem aglo-
meradas naquele espao abafado, revelava os rostos dos convidados e dos
anftries da noite.
Boa noite, Lenzo.
Aquele com a palavra era um homem moreno e forte, com um rosto
grande e cheio. Seus olhos escuros abaixo de uma cabea perfeitamente lisa,
juntamente boca fechada disposta em um contido sorriso, davam efusivas
boas vindas aos visitantes.
Obrigado por trazer Kan. Completou ele.
Hiram. H muito tempo no nos vemos. Disse Kan, com um sorriso
similar.
No querem se sentar?
Kan pigarreou aps acomodarem-se, ele e Lenzo, nas cadeiras dispon-
veis.
Quem so os amigos?
Este Gag, flinorfo de Kerlz-u-een Hiram apontou para o homem
direita dele, de pele ainda mais escura que a prpria e comumcurto cabelo
encaracolado. E esta Raquel, de Roun-u-joss. Hiram apontou para a
mulher de rosto experiente, e cabelo castanho-claro preso num grande co-
que. Este, meus amigos, Kan, o alorfo de quem muito falei esta semana.
Gag era musculoso, mas de baixo porte, enquanto Raquel era o com-
pleto oposto. Alta, mas magrrima. Hiram fazia uma boa mdia aritmtica
entre os dois tipos.
Aposto que no fala muito bem de mim, no ?
Eu?! Perguntou Hiram, ponto o dedo indicador no prprio peito ao
libertar-se numa risada contundente. Pode apostar que sempre falo muito
bem de voc, meu amigo!
Hiram ria sempre com vigor, as bochechas quase forando os olhos a se
fecharem. Disso Kan se lembrava.
Lenzo me disse que voc queria falar comigo. Por que me chamou
aqui, Hiram?
75
Voiui l
Hiram respirou fundo, olhando para os dedos mdios de Kan, que tam-
borilavam na mesa.
Porque precisamos de voc, Kan.
Por qu? O que vocs pretendem?
Matar Hourin. Respondeu Hiram, com simplicidade.
Kan olhou para Lenzo, cujo olhar parecia estar em outro lugar.
Voc enlouqueceu?
No.
Voc est falando srio?
O flinorfo aproximou seu corpo da mesa e, com as mos fcando perto
do minrio, a luz levemente feneceu.
Eu vou ser sincero com voc, Kan. Voc era um dos nossos. Estava
conosco. Lembra-se de ns? De ns dois, antigamente? Kan balanou a
cabea, sem parar de olhar com o que parecia ser regulada curiosidade para
Hiram. Eu sinto saudades. De verdade. No consigo esconder isso, voc
sabe como eu sou. . . E ento voc nos abandonou. Preferiu ser um alorfo. . .
Preferiu acreditar que voc pode consertar tudo de errado que h com o
mundo ensinando magia s pessoas. Tudo bem. No deixa de ser um nobre
objetivo. A conscientizao. Se afastou novamente, fcando levemente
deitado na cadeira, a luz vermelha produzindo sombras tortas nos olhos de
Hiram, Gag e Raquel. Mas me di acreditar que voc realmente cai nessa
iluso.
Qual a maior iluso, Hiram? Acreditar que a educao das pessoas
para a magia a melhor forma de ajud-las ou acreditar que a morte de um
poltico qualquer vai mudar alguma coisa?
Voc est dando veneno s pessoas achando que vai cur-las da doena,
Kan!
Mas a magia no veneno. ferramenta. Voc pode us-la para o
bem ou para o mal.
Ah, disso eu j ouvi. . . E voc, que j foi um mago comum? Um
preculgo? Acha mesmo que seu mestre se preocupava com o bem ou o mal,
Kan?
Eu me preocupo. Agora era Kan a recuar na cadeira. o que me
basta.
Que pena, Kan. Que pena que no basta s milhares de pessoas do-
entes, miserveis ou simplesmente vivendo em condies terrveis de vida
porque elas trabalham, s vezes como loucos, para saciar a fome inesgotvel
dos senhores magos. Hiram ps uma nfase tamanha na ltima palavra
que era como se falasse de pragas de lavoura. Pessoas sem cuidados m-
dicos, com casas podres, sem uma roupa digna, sem comida sufciente.
Lenzo observava Kan, continuando os dois to srios quanto antes.
76
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Eu sei, Kan, eu sei. . . No se preocupe em demonstrar sua frustrao.
Eu conheo voc, e sei que a sua incapacidade de falar no signifca que
reconheceu sua derrota.
Isso no uma disputa.
Ah, Kan, sempre ! Riu-se Hiram. Sempre uma disputa! Mas
nesse caso uma disputa de voc consigo mesmo. . . Tentando justifcar o
que voc faz.
Justifcar, Hiram? Disse Kan, estreitando o olhar. Eu tenho ensi-
nado o que signifca a magia, a dezenas de pessoas, para que elas entendam
o poder que os magos tm em Al-u-een e em Heelum. Um poder que no
deveriam ter.
Isso bom. Tem ensinado seus alunos a lutar contra isso tambm?
No. No quero que eles virem foragidos que tm que viver em casas
como essa.
Hiram entortou a boca, assentindo com a cabea. Reconhecia, at com
um qu de orgulho, que merecia o insulto.
Ento ensina seus alunos a serem como os algozes deles?
Por que est me perguntando isso tudo, Hiram? Questionou Kan,
bufando.
Para que perceba o que est fazendo, Kan. O olhar de reprovao
de Hiram parecia irritar Kan profundamente, j que Lenzo podia ver, ainda
que apenas atravs de imprecisos contornos, o punho fechado do colega por
debaixo da mesa. Voc sabe que este poder o problema, mas ao invs
de querer acabar com ele, voc quer que todos tenham o mesmo poder. A
mesma capacidade de dominar uns aos outros.
E voc acha que possvel acabar com esse poder? Olhe o que voc
tem. Kan percebeu, com uma olhada rpida para todas os cantos da sala,
que Gag e Raquel olhavam para Lenzo, e que este, por sua vez, olhava para
baixo, coma luz vermelha deixando sua pele rosada demais para perceberem
que estava plido, mas brilhante o sufciente para verem o quanto ele suava.
Voc tem quatro pessoas dispostas a tirar de cena um poltico mago em
Al-u-een, e existem milhares de magos em Heelum, todos coordenados, se
ajudando, disso ns sabemos. . . Como voc espera conseguir isso?
Com a sua ajuda, Kan.
Kan desviou o olhar, em silncio. Hiram sorria, aberto como um velho
amigo.
A magia nunca vai acabar.
Vivamos sem ela antes, podemos viver sem ela daqui pra frente, Kan.
Ela um mistrio de Heelum, Hiram. Como possvel. . . Reprovar
isso?
Est dizendo que natural um ser humano dominando o outro e
usando o outro como se faz de praxe, Kan?
77
Voiui l
Kan voltou a se recostar, parecendo cansado do jogo de palavras.
No foi pra isso que a Rede de Luz nos criou, Kan. A educao para a
magia no vai salvar ningum. Acorde, Kan! Metade dos seus alunos acaba
sendo resgatada por magos tradicionais. So envoltos pela ganncia!
Era uma estatstica bem prxima dos alunos de Lenzo, pelo que ele pr-
prio podia recordar.
Outra parte acaba caada, morta, intimidada. . . Os magos do tanto
trabalho infrutfero para a polcia dessa cidade, Kan!
E voc quer dar ainda mais trabalho pra eles.
Quero. Quero sim. Mas um que valha a pena.
Kan refetiu em silncio, cruzando os braos.
Voc vai, Lenzo?
Lenzo deixou de olhar o que quer que estivera olhando anteriormente
na mesa e olhou para Kan. Os olhos arregalados e lacrimejados signifca-
vam, na linguagem dos gritos desesperados, que uma deciso estava sendo
tomada.
Eu. . . O silncio durou alguns instantes apenas, e mesmo assim
conseguiu fazer o corao dos flinorfos da sala parar. Tudo bem.
Kan olhou para baixo por uns instantes e enfm deu-se por vencido,
abrindo os braos e voltando a coloc-los sobre a mesa.
Tudo bem.
Hiram sorriu, satisfeito.
Qual o plano? Perguntou Kan.
Correm boatos recomeou o lder flinorfo de que as portas de
Hourin esto abertas. A flha est doente. H dias no vai ao Parlamento.
No sai de casa.
Eu fui at l e falei com ele. Interrompeu Lenzo. E. . . Quando eu
olhei pro castelo, o-o castelo dele, as portas estavam abertas sim.
Lenzo o conhece. sobrinho dele. Clarifcou Hiram. Ele um
mago enfraquecido, essa a verdade. . . Um mago no deixa as portas aber-
tas, voc bem sabe, Kan. A ideia que, enquanto Gag, voc e Lenzo falam
com ele pela porta da frente, eu e Raquel entramos no quarto da flha dele,
que fca no segundo andar.
Da flha?
Sim. Atacamos a flha, que est frgil tambm, para que ela fque
quieta, apenas. Atrs da porta outro de ns espera. Com a espada.
E qual a nossa parte?
Vocs falaro com Hourin ao mesmo tempo que o atacam. preciso
fazer com que ele sinta que h algo de errado com a flha. No momento
certo, claro. Depois ns pegamos o maldito quando ele subir.
78
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Lenzo j havia sado da reunio, e sem dispensar mais que uma ou duas
palavras despedira-se de todos. Kan o observou sair apressado em direo
maresia, mas permaneceu por mais um tempo diante da luz vermelha.
Obrigado, Kan. Amanh nos vemos. Disse Hiram, recolhendo o
minrio e colocando-o dentro das vestes azuis.
Esse plano no pode passar de amanh. Sussurrou Kan, para um
escuro cheio de ouvidos e ateno. Ele foi difcil de convencer. Se no for
amanh, no vai dar certo.
Hiram concordou, solene, com um nico movimento da cabea.
No se preocupe. Ser amanh.
79
Captulo 12
Por um triz
Amanheceu emAl-u-een pela trigsima-quarta vez naquela estao. Kan
sentava em um banco de uma praa na zona norte do centro, vestindo uma
longa capa verde-escura. Estava velha, pequena demais para ele e, escolhi-
das regies especfcas, cheirava a peixe. Vestir a indumentria dos breves
tempos de preculgo trazia baila uma srie de memrias; todas coisas sem-
pre importantes de se ter em mente.
Gag e Lenzo se aproximarammomentos depois, surgindo dos arredores
de crianas sorridentes e casais deitados na grama. Kan deixou de observar
as mincias das nuvens amareladas por detrs de um leitor vido no banco
frente para silenciosamente se juntar ao grupo. Lenzo olhava para baixo,
mas ocasionalmente pendia-se para os lados e para trs. Talvez quisera con-
tinuar l atrs, com as crianas, como se aquele plano no existisse. O passo
forte liderado pelo semblante de Gag, que traduzia seu prvio estilo de vida
de lutador, no o deixava esquecer, e levava os trs cidade afora em direo
casa de Hourin.
Passaram por grandes e velhas rvores que o perodo de frio no conse-
guira atingir; permaneciamcheias de vitalidade nas folhas. Saramda praa,
cuja trilha interna era apenas terra batida, e entraram em uma ruela de pe-
dra em que vrias casas de dois ou trs andares se erguiam juntas, como
blocos retos que se encaixavam perfeitamente uns ao outros, ainda que a al-
tura por vezes diferisse. Entraram na prxima rua direita, onde mais casas
funcionavam da mesma maneira. Ao lado, o que destoava eram as vassou-
ras, de extremidades ainda quentes de mos enrgicas, largadas pelo lado
de fora depois de ter deixado os empregados ocupados e as famlias mais
felizes. Cada casa era coberta com uma camada externa de madeira, que
os donos pintavam e ornavam a gosto, o mesmo acontecendo pelo lado de
dentro. A estrutura, no entanto, era de corvnia, de modo que as casas eram
resistentes. A madeira era duplamente posta porque a aparncia da corv-
nia no era valorizada na esttica das residncias, que seriam tidas por feias
e de aspecto sujo em contraste com monumentos e prdios pblicos, aos
quais o mesmo material conferia um ar de poder e glria atemporais.
Gag parou em uma interseco onde rua em que estavam se juntava
81
Voiui l
um beco escuro. Oposta ao beco, uma comprida casa rosada exibia vrias
janelas fechadas, apenas algumas comas rubras cortinas para o lado de fora.
Em uma das casas da esquina que formava a rua sem sada, o vazio parecia
imperar: completamente fechada, com a pintura bord desgastada. A ou-
tra tinha dois andares de uma impecvel pintura verde com ricos detalhes
dourados em textura. No vrtice, na diviso entre o primeiro e o segundo
andar, os detalhes dourados ganhavam cada vez mais relevo at acabar em
uma gloriosa fecha apontada para cima, destacada da parede. A casa que
hoje era de Hourin e abrigava somente ele e sua flha fora conhecida,
no passado, por ter entre os seus membros excelentes arqueiros.
Se Hourin fosse arqueiro, pouco a magia poderia fazer para ajud-lo.
Mas como era poltico, a magia era essencial. Em Heelum, a magia no era
familiar: proibida, tinha que encontrar maneiras sutis de sobreviver som-
bra de tudo que era ofcial. Os magos recrutavam apenas um discpulo por
vez, muitas vezes ainda muito jovens, e lhes ensinavam a lidar com Nebo-
rum. Os flhos, protegidos das potenciais sanes aos magos, no fcavam
totalmente de fora da partilha das benesses: os magos costumavamser bem-
sucedidos e, ricos, ofereciam a eles tudo o que precisavam e queriam.
O povo de Al-u-een era orgulhoso de sua cidade por vrios motivos.
Mas, de todas as coisas que eram e faziam, nada deixava a populao mais
contente do que a crena de que a cidade funcionava sem a dominao dos
magos. Na poltica, cada pessoa inclusive as crianas tinha direito a
um voto. Os votos elegiam mais de setenta parlamentares que, em debates
pblicos, discutiam assuntos relevantes para a cidade, tomando decises.
Prezando a justia e a equanimidade, a maior parte dos cidados de Al-u-
een, mesmo os que no viviam to bem quanto outros, via a si mesma como
modelo para toda Heelum, e acreditava-se imune forma egosta como os
magos lidavam com as vidas de todos que os cercavam.
Kan percebeu que no fnal do beco estavam os outros dois flinorfos.
Hiram pegou uma longa escada de ferro que estava encostada em um muro
nu entre as duas casas e a ps em contato com um parapeito dourado e
curvilneo no segundo andar.
Lenzo bateu porta trs vezes com fora desmedida.
Em Neborum, Kan e Gag viram as nuvens se movimentarem rapida-
mente em um cu que se tornou prpura, como se cada uma estivesse ten-
tando achar um novo lugar para estar, mas nenhuma conseguisse. Um cas-
telo de um cinza levemente amarelado apareceu no horizonte a aproximou-
se rapidamente, a terra entre ele e os dois magos tremendo com violncia
enquanto encolhia.
Ele est vindo. . . Sussurrou Kan.
A porta da casa se abriu, e um homem velho vestindo uma fna cala
verde e umgrosso bluso marromatendeu a porta. Seus dedos estavamsujos
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
de umvermelho aquoso, provavelmente vindo de uma soluo curativa feita
para a flha. A barba, irregular como jamais esteve, tomava conta de um
rosto plido e oleoso, e as olheiras profundas indicavamalgumas noites mal-
dormidas. Atrs dele podiam ver as costas de um sof vermelho, a ponta de
um tapete bege e preto, e parte de uma longa escadaria prateada.
Lenzo. . . O que est fazendo aqui?
Mantendo-se parados enquanto Lenzo cuidava da situao, Gag e Kan
rapidamente se aproximaram do porto principal do castelo, que era grande
e de madeira to escura como a porta da casa em Heelum, mas duplo. Com
grandes inscries e letras nele talhadas, possua duas trancas enferrujadas
que com um chute Gag desconsiderou, entrando no salo principal. Antes
de entrar Kan viu, ao longe, mais trs castelos. O salo no passava de um
trio vazio, com largas escadarias em U que Gag j subia correndo. Kan
seguiu o comparsa, deixando a porta aberta.
J no topo da escada de ferro, do lado de fora da casa de Hourin, Ra-
quel olhava para dentro do cmodo de janelas semicerradas. Via um quarto
imerso emrosa, comalguns poucos detalhes emverde, ambas as cores muito
suaves. A flha de Hourin, uma adolescente de cabelos castanhos e encara-
colados, estava deitada cama de grosso colcho e armao roxa que pouco
chamava a ateno, apesar da cor. As mos estavam juntas em cima da bar-
riga, com um cobertor de um rosa mais intenso fazendo um intermdio.
O castelo dela era uma muralha circular com um grande porto de ferro
cercando um prdio simples de cerca de trs andares, com uma torre apenas
umpouco mais alta e de paredes completamente ligadas ao prdio principal.
O porto estava aberto, mas ao tentar avanar Raquel e Hiram voltaram,
escondendo-se atrs da muralha do lado de fora. Hourin estava no ptio,
com a mo direita acima da cabea. O cotovelo estava num ngulo reto, e a
mo esquerda na mesma posio, mas segurando o punho do outro brao.
E agora? Perguntou Raquel num quase sussurro, sem esperar por
aquele empecilho.
Hourin virou a cabea para a esquerda por um momento e, aps engolir
em seco, voltou a olhar para Lenzo.
Oi, tio. Eu. . . Eu vim aqui saber como o senhor est.
Hourin olhou para Kan e Gag, que olhavam fxamente em retorno.
Quem so vocs?
Kan e Gag tropearam nos ltimos lances de escada e caram no cho,
que se destruiu em mil pedaos, e o teto que passaram a olhar balanou em
ondas como se uma pedra tivesse sido jogada com raiva numa poa dgua.
Meu nome Kan, este Gag. Disse Kan automaticamente, igno-
rando uma fsgada na cintura. Somos seus eleitores, senhor Hourin.
Gag balanava a cabea, concordando. Tentava prestar o mnimo de
ateno, j que tentava fazer as paredes do castelo aparecerem de novo ao
83
Voiui l
seu redor. Assim que se sentiu seguro quanto s apresentaes em Heelum,
comeou a correr em direo a uma galeria frente. Kan logo o seguia,
ainda aos tropeos.
Eles insistiram muito para vir, tio, porque. . . Falava Lenzo, com as
sobrancelhas arqueadas. Ele vai descobrir. . . . Porque estamos preocupa-
dos com o senhor. Faz dias que o senhor no sai de casa, e. . .
Ataque-o! Disse Hiram, mais com os lbios do que com a voz.
No, ele vai saber! Raquel respondeu, em fria quieta.
Ento cale a flha dele com as mos!
Ela concordou com um aceno de cabea.
Avise os outros.
Raquel deixou a escada e subiu no parapeito, que era preenchido com
terra e uma dzia de fores. Entortou a maioria com os joelhos. Abriu a
janela empurrando-a toda para a esquerda, e esgueirou-se pela metade livre.
Caiu em p em cima de um tapete rosa claro, ao lado da cama da flha do
poltico, que estava acordada. Seu tom de pele era mais escuro que o do
pai, mas estava insalubre, num tom quase esverdeado: os olhos, estreitos e
confusos, voltaram-se para a desconhecida.
Q. . . Quem. . .
Sem dizer palavra, Raquel aproximou-se e, sem que a garota tivesse
tempo de reagir, juntou os braos dela e segurou-os acima da boca, que fer-
via em febre. Ps seu corpo sobre o dela, um joelho de cada lado nas bordas
da cama. Com a presso que sentia, a garota logo comeou a entender que
estava sendo imobilizada para impedir que gritasse.
Gag, com Kan logo nos calcanhares, encontrou uma porta pintada de
rosa. Ignorando a espcie de mofo ao redor da maaneta, testou a porta, que
estava aberta.
A sala era grande, alta e bem arejada; possua trs grossas colunas dis-
postas na linha central e trs gigantescas janelas correspondentes, todas
abertas e pelas quais entrava uma clara luz azul, como se um cu de briga-
deiro fosse a fonte de luz em si mesmo.
O que no estava no lugar eram os retratos de uma menina de cerca
de trinta rosanos que Kan logo reconheceu ser a flha. As molduras esta-
vam rachadas, embora continuassem a segurar as imagens, ntidas e bem
desenhadas. O mesmo bolor que lentamente cobria a porta pelo lado de
fora espalhava-se pelo papel das fguras; o vidro que deveria proteg-la es-
tava quebrado e, estilhaado, cobria o cho como um mar de cacos. Havia
centenas desses retratos, em igual situao: pendurados nas paredes e nas
colunas, em cima de simplistas mesas e cadeiras, muitas delas tambm que-
bradas.
Gag no sabia o que fazer.
Para ele, ela j corre perigo.
84
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Eu. . . Comeou Hourin, piscando algumas vezes. Agradeo a
todos vocs, mas, agora, se do licena, eu preciso. . .
Lenzo no sabia o que dizer, ou se deveria dizer algo; se era preciso que
ele fosse embora ou se no podia deixar isso acontecer. Segurou o brao do
tio, arrepiando-se ao pensar, num impulso, se aquela seria a ltima vez que
o veria.
Tio, eu. . .
Raquel continuava apertando as mos da jovem contra a prpria boca.
Ela se agitava, da melhor forma que podia, para tentar se livrar da opres-
sora; os olhos cor-de-mel, despertos e amedrontados, viam nela uma per-
turbadora frieza. Seu castelo comeou a tremer, e o iaumo de Hourin caiu
pra trs, sem saber o que estava acontecendo; levantou-se e tentou sair dali,
mas os portes se fecharam, e o vento soprou forte como se uma tempestade
se aproximasse. O cu enegreceu.
Vocs. . . Disse Hourin, libertando o brao dos dedos de um Lenzo
atordoado. Percebeu que Kan e Gag no prestavam ateno conversa.
Hourin fechou a porta com um baque, e o som dela sendo trancada se
fez ouvir mais que depressa.
Quando Kan percebeu que a luz que vinha das janelas tornava-se roxa,
Hiram entrou na sala, ofegante.
Ele est vindo! Faam ele pensar que no h perigo!
tarde. Disse Gag.
Kan voltou a olhar para o dia claro, a parede verde e o explcito atordo-
amento de Lenzo de cara para a porta.
Vamos. Liderou Kan. Vamos sair daqui.
Hiram entrou com difculdade pela janela e se preparou para a embos-
cada, escondendo-se. Amenina ainda se debatia como umpeixe, mas Raquel
a mantinha presa, usando mais fora do que nunca, com os dentes raspando
uns nos outros, olhando diretamente em seus olhos desesperados.
Aporta do quarto escancarou-se, e Hourin, vendo aquela cena, vociferou
enquanto avanava coma espada emriste contra Raquel. Hiramaproximou-
se mais rpido por trs e perfurou decisivamente as costas do velho homem,
que gemeu alto de dor. Almina fatal, ensanguentada, encostou-se s costas
de Raquel pela ponta, que sentiu a espinha congelar por um instante.
Ouvindo o que havia acontecido e sentindo a espada do pai cair em cima
de suas canelas, a menina passou a se debater e virar ainda mais intensa-
mente, com os olhos arregalados, arrebentando o estrado da cama. As lgri-
mas vazaram dos olhos que ela fechou depois de um momento de particular
agitao.
Raquel, VAMOS!
Hiram passou pela janela e comeou a descer a escada. Quando Raquel
libertou as mos da garota, ouviu um choro convulsivo nos breves momen-
85
Voiui l
tos em que permaneceu olhando para ela. Despertando para a situao, saiu
de cima da cama e, aos tropeos, foi embora.
Vamos, Raquel, vamos! Dizia Hiram, tentando o menos possvel
chamar a ateno.
Quando Raquel enfm chegou ao cho e os dois comearam a sair do
beco, ouviram um grito feminino de dor e desespero que a vizinhana toda
pde notar. Um grito agudo, desafnado e sem flego, que fez o olho direito
de Raquel se contrair involuntariamente. Perceberam que as janelas das
casas se abriam, violentas, e muitas j estavam cheias, com pessoas de todos
os tipos e tamanhos a se debruar sobre elas, olhando para fora ao descobrir
o que exatamente era aquilo tudo. Raquel e Hiram comearam a correr.
86
Captulo 13
Monstros no existem
Grossas colunas de corvnia sustentavamumprdio comprido e austero
de apenas dois andares; o primeiro deles era uma grande galeria formada pe-
las colunas, o cho pavimentado com hexgonos e iluminado por minrios
amarelos. Aps esse espao, no qual as pessoas se refugiavam em caso de
chuva, paredes formavam salas altura da terceira linha de colunas. Entre
elas, escadas conduziam a um segundo andar andar de ainda mais vastas
salas, de pequenos gabinetes e janelas circulares.
Trs prdios iguais a esse e um lado aberto para o resto da cidade for-
mavam no centro de Ia-u-jambu uma fgura quadrtica no mapa. Em seu
interior fcava uma praa cujas rvores fechavam a vista, crescendo densas,
mas conviviam com trilhas organizadas e limpas. Havia reas afastadas,
cercadas de calma, onde palcos retangulares de madeira foram construdos.
Funcionavamcomo salas ao ar livre uma vez que preenchidos compoltronas
e mesas.
Esse era o corao da Universidade. Ela no se restringia queles trs
prdios, a casas ou mesmo a pessoas. A Universidade se fundia com o dis-
trito, e os dois passeavam de mos dadas, olhando-se de esguelha e dentes
mostra, cabea inclinada para o lado, sem vergonha da pura cumplicidade.
Era principalmente nos prdios e emsuas salas de aula que cursos e reunies
aconteciam todos os dias, mas por todo lugar havia espao para aprender e
pesquisar. Conhecer um estilo de vida.
Eram oito e cinquenta em Ia-u-jambu quando Jen passava pelo primeiro
andar do prdio norte da Universidade. No gostava daquele lugar; no
quela hora da noite, pelo menos. Era escuro demais naqueles vos aban-
donados, e o espao parecia se multiplicar e para da abrigar gente mal-
intencionada no demoraria muito. Havia histrias, como em todas as pla-
ncies e morros de Heelum; mas virar os olhos negros para aquela escurido
simtrica depois de ouvir os contos era uma experincia no mnimo preo-
cupante. Jen virou os olhos negros para a escurido simtrica vrias vezes,
fazendo balanar o curto cabelo loiro.
Parou de olhar quando sentiu-se tola. Riu, mas voltou a si: no era um
nervosismo infundado. Na tarde anterior Christine escorregou uma men-
87
Voiui l
sagem por debaixo da porta de seu gabinete, ou pelo menos algum a seu
mando o fez. A mensagem dizia, com uma letra cuidadosa:
Encontre-me em frente sala
230
s nove da noite.
Venha sozinha.
Jen conhecia a sala 230. Ficava no canto direito do primeiro andar no
prdio norte, e quase nunca era usada para nada. Muitas vezes, enquanto ela
passava por l, via uma placa de manuteno pregada acima da maaneta.
Era como se a sala fosse intocvel: era a nica na qual nada nunca acontecia.
Vestiu botas pretas, uma comprida saia rosa de algodo e uma camisa
azul-beb. A capa preta por cima da combinao foi o toque fnal. Graas
aos culos avistou Christine, uma forma mais baixa e mais larga que ela
prpria, por entre as colunas e as sombras. Inquietou-se menos e tomou
discreta coragem de se deixar engolfar mais pelas sombras do primeiro an-
dar, chegando perto do olhar diagonal da mulher de cabelos vermelhos e
franja reta por sobre as sobrancelhas.
Ento voc veio. Disse ela, desamarrando o semblante com um
sorriso to tangencial quanto o ngulo do rosto inteiro.
Ento voc veio! Disse Jen, cruzando os braos. Que mensagem
foi aquela?
Eu tentei falar com voc, mas voc no estava. Eu acho que voc vai
gostar do que vai ver aqui.
Jen percebeu que estavam mesmo em frente sala 230. A placa que
alertava sobre a manuteno estava l.
O que est acontecendo a dentro? Eu vi a programao na praa, mas
no diziam nada sobre essa sala. . .
Christine entortou a boca e olhou para o cho, como se dissesse que
aquilo seria difcil de entender.
Jen, faz. . . Algum tempo que eu frequento essas reunies. As que
ocorrem nessa sala. Jen franziu o cenho. Elas so secretas e muito,
muito fechadas, ento nunca pude te contar. Mas depois que voc me falou
das suas ideias. . .
Christine! Interrompeu Jen, instintivamente olhando para os lados.
No que achasse que algum estaria ali. So desconfanas!
Que precisam de pesquisa! Retrucou a amiga, num tom irritado.
Depois que voc me falou delas eu percebi que esse o lugar onde voc vai
encontrar uma chance, amiga.
Jen retesou as costas.
Uma chance?
88
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Sim, uma chance. Mas eu no posso te explicar aqui fora. A gente tem
que entrar.
Jen uma animloga, o que signifca que se preocupou, desde quando
criana, em estudar a vida dos animais; seus hbitos, sua vida, seus corpos.
Achava a investigao de um coelho ou de macaco muito mais interessante
do que pensar sobre pessoas. Alm disso, aprender mais sobre os animais
era uma forma de se conectar aos pais. Grandes pesquisadores, punham
os ps nos lugares mais no-habitados do mundo, juntos, para estudar as
formas no-humanas de vida. Morreram quando colocaram os ps em um
lugar muito arriscado.
Anos depois Jen encontrou entre os pertences dos pais uma srie de
papeis contendo observaes curiosas quanto a algumas de suas viagens.
Enquanto cortavam caminho rumo a Kor-u-een, tiveram um inusitado en-
contro com um grupo de vaziros. As observaes contrariavam, e muito, o
senso comum em relao aos animais que eram comumente chamados de
monstros.
Quando as duas entraramna escura sala, ummagro rapaz negro de cerca
de trinta rosanos se Jen tivesse que apostar, pensaria em algo como trinta
e cinco interrompeu a entrada. Portando uma espada e fazendo uma cara
sria, ordenou, com a mo, que parassem.
Boa noite, senhoras. O que vieram fazer aqui?
Viemos para a reunio, Richard. Disse Christine, como quemj teve
que repetir aquilo vrias vezes.
Ele abriu um largo e acolhedor sorriso, e piscou para ela.
Quem a sua nova amiga?
Velha amiga. Essa a Jen. Jen, esse Richard.
Boa noite. Disse ela, apertando a mo do rapaz.
Bem-vinda reunio. Sentem-se! A apresentao de Kinsley j vai
terminar. Quem chega tarde come frio! Christine esbofeteou displicente-
mente o brao do segurana, que voltou a encostar-se parede.
Acoisa mais notvel para Jen, assimque ela se acalmou e foi percebendo
melhor o ambiente sua volta, foi a quantidade de pessoas. Algo entre vinte
e trinta pessoas olhavam para frente, atentas, dispostas em um semicrculo
de confortveis cadeiras azuis. Reconheceu meia-dzia de pesquisadores,
mas o discursante em particular: Kinsley, um clebre historiador da Univer-
sidade. Cabelos cinzentos, mas oleosos. Nariz bem feito, mas orelhas um
tanto destacadas do rosto. Esteticamente, uma charada; intelectualmente,
uma arma afada. E sob sua mira estavam todos ali, ouvindo-o com caixas
direcionando a luz de dois minrios pentagonais verdes para ele.
89
Voiui l
. . . Ento, o que ns podemos entender com tudo isso? Que a car-
tografa de Heelum na poca da Primeira Guerra foi resultado de muito es-
foro, coordenao e inteligncia por parte dos nossos antepassados. No
foi o fato de que a luz ele marcou a palavra com desdm nos mos-
trou o caminho, e apontou, atravs do cruzamento de dados de diferentes
grupos humanos, os pontos cardeais e a localizao das coisas. Houve cru-
zamento de dados, mas foram trocas difceis, puramente humanas, diretas,
de material cartogrfco.
Kinsley continuou a falar, e quanto mais Jen ouvia mais comeava a
entender o motivo da reunio.
Aquilo era simplesmente revolucionrio. No havia dvida quanto ao
porqu de tanto segredo.
O historiador atacava cada vez mais a ideia de que a Rede de Luz havia
ajudado os humanos, na poca em que descobriam Heelum, a fazer mapas
que os ajudassem a se localizar no mundo. Ao invs disso, o que se sugeria
que a luz no teria tido nenhuma importncia na confeco desses mapas;
que tudo foi resultado do esforo humano bem empregado.
fascinante, no ? Perguntou Christine. Jen olhou para o lado e
viu que a amiga a observava com um sorriso sbio.
O que foi?
Voc est completamente ligada nele. E o pior que eu sei que no
que ele est falando, no naquele lindo rosto maduro. . . Ai. . .
Jen sorriu e comeou a observar melhor os entornos. Ficou surpresa ao
perceber que fnalmente havia entrado na sala 230, mas mesmo assim no
tinha prestado ateno ao que ela era por dentro isso porque, evidente-
mente, tudo que acontecia ali estava sendo muito mais importante e inusi-
tado. As paredes carmins eram dramticas; as janelas vedadas com tiras de
goma escura, muito mais.
Como se chama isso aqui?
Christine fez que no sabia com as mos.
Acho que no h um nome. Ns nos reunimos para discutir nossas
ideias, hm. . . Pouco ortodoxas. . . Uma vez a cada doze dias. Na maioria
das vezes algum faz uma apresentao interessante, mas em outras apenas
discutimos. Ns nos sentimos em casa aqui porque, bem. . . Podemos falar
o que quisermos.
E o que vocs querem falar?
Sobre toda a histria de Heelum, Jen. Muito provavelmente uma
mentira.
A novata piscou olhava para o rosto tranquilo da veterana.
Certo. . . Tudo bem. . . Ela olhou para a frente, ajustando os culos
sem necessidade alguma. Ou talvez fosse apenas a necessidade de colocar
90
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
alguma coisa em seu lugar. Isto eu estou disposta a considerar, mas. . .
Qual parte da histria?
Provavelmente tudo desde antes das primeiras Guerras Modernas e
do Conclio da Modernidade. Pessoas como Kinsley nos mostram como a
Rede de Luz provavelmente nunca existiu.
Mas. . . E o que isso tem a ver comigo?
Porque essas reunies so independentes da Universidade. Usamos
a sala, mas o dinheiro pra essas pesquisas vm do pessoal daqui. Alguns,
como o prprio Kinsley, so muito ricos, e esto dispostos a bancar essas
coisas que a Universidade normalmente no bancaria.
Jen balanou a cabea afrmativamente, voltando a olhar para frente.
Kinsley terminava a apresentao.
E voc acha que eu posso conseguir isso aqui?
Eu j disse que alguns, como o prprio Kinsley, so muito ricos?
Riu Christine.
Sim, mas eu vou precisar que eles me deem esse dinheiro.
No sei. Exponha a sua ideia e veremos o que voc pode conseguir,
que tal?
Luzes amarelas clarearamo ambiente. Kinsley tirava minrios de dentro
de caixas e os colocava de volta nos pedestais apropriados. As pessoas agora
conversavam animadamente, ainda que o burburinho fosse mnimo. O his-
toriador, ao posicionar o ltimo minrio, olhou de relance para o pblico e
fxou seu olhar em Christine.
Sim? Perguntou ele.
Jen viu que Chris estava com o brao levantado, e sabia aonde aquilo ia
levar. Era tarde demais para impedir, tanto ela quanto o vermelhido das
bochechas. Desgraada, pensou ela enquanto tentava controlar a raiva e
a ansiedade. A sala toda j estava prestando ateno nela.
Eu gostaria de apresentar uma nova integrante do nosso grupo, que
gostaria de dizer algumas palavras a vocs. Esta Jen, que estuda animais.
A recepo foi singela, mas afetuosa. Vrias saudaes, alm de silenci-
osos acenos com a cabea e com a mo todos acompanhados de sorrisos e
ateno cortaram o ar em direo a Jen, o que s aumentou sua vergonha.
Por outro lado, lhe dera o pouco de confana que precisava; no havia se
preparado para falar em pblico, ainda mais sobre um assunto to delicado.
Descobrira havia to pouco tempo que os ouvintes estavam supostamente
inclinados a apoi-la em suas dvidas que isso pouco importava.
Colegas. . . Disse Kinsley, apertando os olhos. Eu peo uma salva
de palmas flha dos dois maiores animlogos que Ia-u-jambu j conheceu.
Dwight e Jeanine.
Pegos de surpresa tanto quanto a prpria Jen, os estudiosos da sala a
aplaudiram; alguns, inclusive, levantaram-se para prestar ainda maior ho-
91
Voiui l
menagem. Jen fechava os olhos e curvava a cabea como uma forma simples
de reconhecer a recepo.
Oque a traz aqui, Jen? Perguntou Kinsley, da frente da sala, quando
a ovao terminou.
Meus pais. A prpria histria veio cabea, apesar do trocadilho
que ainda provocou algumas esparsas risadas contidas na sala. Foi um
caderno deles que me intrigou e motivou algumas pesquisas pessoais.
Pesquisas sobre o qu?
E ento Jen percebeu que talvez os monstros fossem um assunto to
delicado quanto a Rede de Luz. Ou mais.
Sobre monstros.
Alguns remexeram-se nas cadeiras. Outros olhares desviaram-se dela
durante algum tempo. O silncio permaneceu.
Sim, todos vocs conhecem a histria. Prosseguiu ela. Heelum
teve uma guerra antiga, contra o Yutsi Rubro, e trs modernas. A primeira
contra Mosves, de Prima-u-jir. A segunda contra Fennvir, em Al-u-tengo, e
a terceira contra Napiczar, da Cidade Arcaica.
Todos eles forammagos que tiverampoder demais nas mos e quiseram
mais. Destruram muitas vidas para isso. Dominaram muitas pessoas. Parte
dessa gente, conta a histria, foi destruda por dentro por essa. . . Essa fora
terrvel desses homens, desses governores. Algo dentro dessa gente mudou
e, ento. . . Surgiram os monstros. Humanos degenerados, que perderam a
essncia. Esto condenados a uma vida indigna.
Os vaziros fcamnas Montanhas do Sul, castigados pela vontade de Mos-
ves de jamais se render. Os furturos, num pntano na regio Noroeste, que
at leva o nome deles. Os procos, na Grande Cordilheira Oriental, tambm
a noroeste daqui.
Se os monstros so s humanos, mas degenerados prosseguiu ela
por que so to diferentes? Por que vivem de maneira to. . . To animal,
sem nem sinal de coisas como linguagem ou. . . Uma vida social complexa
como a nossa?
Mas qual a sua teoria, afnal? Perguntou um homem careca e
culos dourados sentado logo frente dela.
Ela pde ver a estupefao em seus olhos de uma forma que ningum
mais podia, j que ele olhava diretamente para ela. Parecia querer espant-
la com um brao, com as costas da mo aberta; com a armao dos culos
se fosse isso o que estivesse mo. X, umenau, x.
Ela no queria ser os umenau que ela tanto espantava quando criana.
Eu no tenho uma teoria. Respondeu ela. E. . . por isso que
eu quero pesquis-los. Quero saber mais sobre eles, s que. . . Para isso eu
preciso de dinheiro.
92
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Ela no conseguia dizer se a expresso de Kinsley era de slido interesse
ou de profundo ceticismo. Nem a dele, nem a do homem careca, nem a de
ningum mais.
93
Parte II
Planos e caminhos
Captulo 14
Realidades
Da colina mais alta de Prima-u-jir Tornero podia ver todo o pequeno
centro da cidade. Era composto, basicamente, por casas de no mximo dois
andares e algumas praas, mas havia outras coisas interessantes: uma ampla
regio aberta usada para as festividades da cidade, e tambmcomo mercado;
o prdio do Parlamento e o palcio do mestre da cidade; um pequeno teatro
decadente. A natureza acidentada da regio agradava aos olhos: as colinas
preenchiam grande parte do cenrio, e mais ao longe era possvel ver o Rio
da Discrdia e o Rio Pesado dando origem ao Rio Prima.
Uma charrete puxada por dois yutsis chegava perto, subindo a estrada.
Logo o transporte parou em frente s escadarias da manso de Byron. A
porta laranja se abriu, e por ela saiu uma mulher alta e magra, com um
rosto triangular e cabelos loiros muito lisos. Ela se vestia comelegncia; seu
longo vestido comeava azul-claro no cho e escurecia at fcar completa-
mente preto na altura dos ombros. Virou-se em direo a Tornero ao sair
da charrete e, com um olhar rpido e altivo, saudou-o com um movimento
da cabea. Tornero retribuiu o gesto. Intua que ela deveria ser respeitada,
especialmente na presena de seu mestre, mas ainda no entendia por que
E enquanto isso no fcasse claro se recusava a prestar a ela saudaes
muito efusivas.
Byron parou ao lado da mulher. Era baixo, comparado a ela; atarracado
e j bastante velho, seus culos conferiam ainda mais rosanos idade que j
aparentava ter. Seu cabelo e barba eramcomo que misturados, uma contnua
faixa curta e grisalha cobrindo seletivamente a clara superfcie da pele.
Tornero, esta Gisell. Ela uma bomin de Den-u-tenbergo que veio
fazer negcios conosco.
Seja bem-vinda a Prima-u-jir, Gisell.
uma terra belssima! Comentou ela, com uma voz levemente
anasalada. Essas colinas lembram muito Den-u-tenbergo.
Vamos entrar. Disse Byron, que sempre deixava os ouvintes con-
fusos quanto as suas intenes. Ningum sabia se aquilo era um convite ou
uma ordem.
Acolhido como discpulo por Byron logo depois que Lamar foi deixado
97
Voiui l
de lado, Tornero viu seu sonho se tornar realidade. Ele sabia que era mere-
cedor daquilo. Ele, e no Lamar. Afnal, era corajoso, ambicioso, inteligente
tudo que um mago deveria ser. Lamar era fraco, inseguro, e s tinha
conseguido aquela chance por causa dos pais. Tornero no tinha pais que
pudessem dar isso a ele, com favores ou dinheiro. Teve que lutar sozinho
pelo que quis. E venceu.
Os trs subiram as escadarias cinzentas em silncio; Byron na frente,
com passadas determinadas, e os outros dois atrs. De um harmonioso tom
caramelo, a porta combinava perfeitamente com a alvenaria bege da casa de
quatro andares a maior da cidade. Um empregado abriu a porta pelo lado
de dentro antes que eles vencessem os degraus, e o grupo encaminhou-se
diretamente para a sala de reunies, nos fundos do andar trreo.
Bem iluminada em amarelo, a pequena sala contava com dois retratos
de um Byron dez rosanos mais jovem em suas paredes; em um deles, vestia
uma capa laranja, e em outra as escuras vestes de ofcio de um parlamentar
de Prima-u-jir. O mestre bomin tomou assento na grande poltrona atrs de
uma mesa de escritrio bem organizada. De frente para ele restavam duas
cadeiras grandes e pouco confortveis, nas quais Gisell e Tornero sentaram.
Ele, puxando a cadeira com naturalidade e descaso. Ela, cuidando para cau-
sar menos rudo.
Pois bem. Byron observava a mesa e balanava a cabea, como se
visse, enfm, que tudo estava em ordem. O que voc tem para me dizer,
Tornero?
Eu vi Lamar.
Gisell o observava com a pacfca qualidade da desinteressada ignorn-
cia. J o semblante de Byron permaneceu na mesma seriedade pronta a rir
ou a explodir em berros.
E o que houve?
Ele est dando aulas. Vinte e cinco pessoas quando estive l. Isso foi
h dois dias. Como eu disse antes prosseguiu Tornero, com prazer na
autorreferncia ele fraco. Ataquei a ele e a seus alunos sem difculdade.
Ele deve ser eliminado imediatamente.
Trata-se de um alorfo? Perguntou Gisell. Byron discretamente fez
que sim. Pestes! No sei como vocs daqui lidam com esses baderneiros,
mas em Den-u-tenbergo eles fcam presos para sempre em uma casa em
uma jir bem distante.
Aqui ns somos cautelosos, minha cara Gisell. Explicou Byron.
As coisas so diferentes em Prima-u-jir. No poderamos fazer isso ou,
assim, de repente, tomar qualquer atitude impensada.
Tornero intuiu que ele disse, indiretamente, que no faria nada.
Creio, mestre, se me permite a recomendao, que devemos elimin-
lo porque ele a razo pela qual no futuro precisaremos ser ainda mais
98
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
cautelosos! preciso. . .
Tornero, acalme-se. Byron mostrou ao discpulo a palma da mo
com o punho ainda encostado mesa. Acredito que est sendo passional
demais para um bomin.
Tornero vira Byron dentro do prprio castelo, por detrs de uma coluna,
mas o deixou trabalhar sem interrupes. Sua fria contrastava com a rego-
zijante paz que comeava relutantemente a tomar conta dele. Sua mente lhe
ditava razes para odiar seu prprio mestre, mas sentia como se o sangue
se tornasse um fuido refrescante, pulsando de forma a relaxar cada parte
do corpo, contradizendo sua razo.
Mestre. . . Lamar ainda fraco. Ele pode ser liquidado enquanto ainda
cedo.
No. . . No estou to certo disso. . . Interveio Byron, tamborilando
os dedos sobre a superfcie da escrivaninha. Sua fraqueza de iaumo no
signifca falta de fbra. Sua histria deveria t-lo levado a esquecer a magia,
mas ele no apenas se tornou alorfo como teve a coragem de voltar para
Prima-u-jir com um admirvel projeto de transformao!
Gisell achou aquele um estranho arranjo de palavras, mas no disse
nada. Tornero no conseguia mais sentir o que quer que Byron estivesse
fazendo com ele. A sensao passara; virou fogo que o tomara por com-
pleto; seus lbios tremiam, e ele no conseguia encarar o mestre nos olhos.
Quando o fez, recebeu um olhar benevolente. Poderia jurar que viu Byron
dar um leve sorriso cnico escrnio!
Continue monitorando, Tornero. Pode ir.
Tornero se levantou e foi emdireo porta. Antes de sair, virou-se uma
ltima vez.
Da prxima vez que me atacar, mestre. . . Eu me defenderei.
99
Captulo 15
Sonhos
Lamar estava correndo desesperadamente por entre galhos, folhas e ra-
zes. Conhecia aquela foresta. Era sem dvida a Floresta dos Oniotos, em
Kerlz-u-een. Cortava com suas passadas descoordenadas uma nvoa que
encobria o lugar, iluminada por uma luz verde sem origem defnida. Tudo o
que ele podia ouvir era o som da prpria respirao ofegante. Corria de um
inimigo que sabia estar atrs de si; cada vez mais prximo, cada vez mais
rpido. Sabia que no poderia escapar dele, mas mesmo assim corria.
AGUENTA FIRME, LAMAR! AGUENTA! Berrava Kerinu. Estaria
correndo ao seu lado ou atrasando o caador?
Para onde estavam indo? Aonde aquele caminho os levaria?
Lamar foi atingido. Olhava para frente e, logo depois, viu-se caindo
como se o tempo passasse mais devagar. Algo acertara seu joelho direito,
e a dor era intensa; berrando e gemendo assim que caiu no cho, viu que
recebera uma fechada. Osangue escorria rapidamente pela canela. Nervoso
e sentindo uma excruciante dor a cada mnimo movimento, chamava por
ajuda, mas Kerinu parecia ter ido embora ou estava morto.
Ento algum se aproximou. Lamar sabia quem era. Era o atirador ar-
queiro. O predador de quem fugia. Aproximava-se com cruel demora, pi-
sando nas folhas espalhadas pela terra. Juntando o resto de suas foras,
levantou o pescoo o quanto pde para tentar olhar para seu nmesis. Viu
a si mesmo.
Sentou-se na cama num pulo, o corao batendo forte, o suor abundante
dando motivo para arrancar a coberta levemente esburacada de cima da
perna. O quarto do casal era escuro, e apenas duas coisas traziam um pouco
de claridade para dentro do cmodo se as janelas estivessem fechadas: o
minrio azul da cozinha e o sol. O minrio sempre brilhava por debaixo da
porta enquanto dormiam. O sol, por outro lado, os despertava. Sua lumino-
sidade estava ainda tmida na altura do peito deles; o horrio perfeito para
acordar era quando ela alcanava os olhos de Lamar. Mesmo antes disso
acontecer, Myrthes no estava mais na cama.
Deitando de novo, Lamar comeou a pensar com mais calma no sonho
que tivera. As imagens j se desgastavam, fugidias, mas ele sentia ainda o
101
Voiui l
medo apertando-lhe a mente. Lembrava de ter visto Kerinu, seu amigo de
Kerlz-u-een, alorfo desde tempos imemoriais e irmo de Myrthes. Lembrava
de ter visto a si mesmo.
Ouviu vozes. Uma era certamente de Myrthes, mas a masculina era
muito diferente da do flho. Ser que sonhara com Kerinu porque ele es-
tava ali? Improvvel. . . Tentou ouvir mais alguma coisa, mas o silncio
imperou novamente.
Levantou-se e, cuidadoso, abriu a porta do quarto. Viu Horacil emp em
frente aos armrios da cozinha. Myrthes estava sentada no banco, mesa,
tomando ch com as pernas cruzadas e o rosto srio. Lamar olhou para o
primo, que lhe devolveu o olhar por apenas um instante, voltando a olhar
para baixo.
Bom dia, Horacil.
Bom dia, Lamar. Respondeu.
E. . . Tem alguma coisa errada? Aconteceu alguma coisa?
Myrthes levantou os olhos para Horacil, que coou a nuca.
Lamar, eu. . . A gente est se mudando.
Lamar estancou, sem expresso.
Mas. . . Como, ou. . .
O barco sai s cinco. A gente vai pra Den-u-pra.
Era como receber outra fechada.
Ento l que. . . O pai e a me esto?
No sei, Lamar, a gente agarra a oportunidade que pode! Horacil
falava misturando defesa splica, com os ombros arqueando proporo
das sobrancelhas.
Oportunidade de fugir de mim. . .
As notcias esto se espalhando. . . Logo todo mundo vai saber que
voc um alorfo e est ensinando magia. Agente no pode arriscar. . . Nem
voc podia, tendo flho pequeno desse jeito. . .
Horacil, no. . . No, no, veja. . . n-no v, no v embora. Ele
aproximou-se do primo com as duas mos prximas frente do corpo. Que-
ria pegar as mos dele, mas deteve-se. Ns precisamos de voc, e-e sem
voc no amos ter nem vivido at agora, voc nos ajudou e ajuda tanto,
e-e. . .
Lamar. . . Disse Horacil, mais frio. Saiu da frente do primo e foi
para mais perto da sada. Eu podia dizer que por causa das crianas, e
voc sabe que eu no ia estar mentindo, mas. . . A verdade que eu tenho
vergonha. Myrthes agia como se ningum ali estivesse discutindo algo
daquela importncia. Eu posso ter te ajudado porque gosto muito de ti,
homem. Pelo nosso passado te dei o que eu pude. Mas eu no posso fazer
mais isso no.
102
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
E, murmurando um fraco adeus em tom mais baixo, abriu a porta e
saiu. Ela foi, com um leve rangido, fechando-se sozinha at que o trinco
encostasse no batente. Foi nesse preciso momento que Lamar realmente
entendeu que estava acabado. Ele realmente se fora. No voltaria atrs.
Lamar sentou-se ao lado de Myrthes, que tomou mais um gole de ch.
Ficou de cabea baixa, tentando digerir aquela notcia indigesta, esperando
por alguma coisa que sua mulher fzesse. Talvez ela pudesse dizer como de-
veriam agir dali para frente. Ao invs disso, Myrthes se levantou e comeou
a guardar os utenslios.
Voc no vai falar nada? Perguntou ele.
Terminou de guardar as coisas ao pr a chaleira no lugar. Respirando
fundo, voltou-se para ele.
Lamar, a gente. . . D um jeito. Ele foi embora. Agora a gente tem que
trabalhar mais.
Trabalhar mais como? De madrugada?
Sim, ou. . . Ou talvez. . . Ela olhou para as portas dos quartos, uma
do lado da outra. Lamar entendeu imediatamente o que ela quis dizer.
Ah, Myrthes, no. No, isso no. . .
Mas, Lamar. . .
Voc sabe o que a luz nos ensinou desde o comeo dos tempos e no
vamos fazer diferente. Ele no vai trabalhar nessa idade, Myrthes, por favor,
ele muito novo!
A luz ensinou mas foi embora, Lamar. Ele deixou de encarar a mu-
lher, preferindo a fria dureza do cho. Muitos fazemisso porque precisam.
Ele no precisa trabalhar muito, pode ganhar s um pouco. . . Qualquer
coisa para ns j uma ajuda.
Ela o deixou processar a acidez antes de puxar seu rosto gentilmente
para si. Com um beijo rpido, levantou-se do banco e entrou no quarto do
flho.
Trabalhar no era exatamente o melhor remdio contra as inquietaes,
mas tampouco era uma escolha. Ressentido, Lamar fcara distante por toda
a manh. At o flho, cujo sono s desaparecia por volta das dez horas, podia
perceber que ele estava abatido. Tentou saber o que havia acontecido, mas
a me abafou as perguntas, pedindo por silncio.
As horas passaram como marteladas. Lamar no conseguia parar de
pensar em sua nova situao; era um retorno sem fm mesma questo
de sempre: o que fazer agora? Tendo perdido o ltimo porto seguro, no
tinhamcomo se sustentar por muito tempo. Alguma coisa ia eventualmente
dar errado. O preo da comida ia subir. Ou o preo do aluguel. Algum deles
103
Voiui l
fcaria doente. Podiam ser demitidos. Podiam at mesmo perder o dinheiro
que tinham em algum acidente, em um roubo que, no obstante raro onde
moravam, nunca podia ser descartado.
As possibilidades faziamseu suor parecer mais molhado; seu corpo, mais
pesado, e o sol, mais quente, como se ele castigasse Heelum com um calor
fora do comum para a estao do frio. Como se j no bastasse, o saco de
laranjas demorava a se encher. Era como um pesadelo sutil e sdico, em que
a coisa mais terrvel era, na verdade, no ter o que fazer. Quanto a nada.
Pai?
Lamar virou-se. De cima de uma escada de madeira de cinco degraus,
lanou um olhar confuso e antecipadamente cansado para o rosto do flho,
que o observava com as mos para trs e os ps descalos juntos s os de-
dos apareciam por debaixo das vestes salmo desbotado, compridas demais
para ele.
Oi, flho.
As laranjas vo estragar, papai. . .
Que la. . . Mas. . .
Lamar ento percebeu que havia deixado um rastro considervel de fru-
tas pelo corredor de laranjeiras em que trabalhava. Devia estar as coletando
de um jeito to displicente que muitas vezes sequer acertava a abertura do
saco. Bufando de impacincia com o prognstico de ter que voltar um bom
pedao de caminho, desceu da escada para encontrar, com um arrepio, o
flho juntando do cho uma poro de laranjas.
Ele agachava e levantava diversas vezes, com o brao direito colocando
laranja sobre laranja no espao entre o brao esquerdo e o peito. Com o
tempo algumas laranjas caam, e ele pacientemente ia atrs delas de novo.
Ocorreu uma leve mudana de ttica: o brao esquerdo subiu, e as laranjas
agora eram pressionadas tambm pelo queixo. A tcnica no funcionou
muito bem; logo a presso da cabea impulsionou as esferas para o cho, e
dessa vez ele pareceu ainda mais resoluto a peg-las todas de uma vez.
Filho. . . Tudo bem, deixa que o papai pega. Deixa, flho.
Sem mostrar sinais de tristeza ou de conscincia de que falhara mise-
ravelmente em seus objetivos, Ramon observou o pai juntar as laranjas em
grupos de quatro, duas em cada mo, e lev-las at o saco, garantindo que
elas estivessem mesmo l dessa vez.
Papai, preciso fazer coc.
Lamar parou no caminho at o saco. Fechou os olhos em culpado deses-
pero.
Filho, a gente j no tinha conversado sobre isso?
Eu consigo fazer coc sozinho, papai disse o menino, riscando o
cho com um dos ps mas que a me disse que agora eu sempre tenho
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
que fcar junto de vocs e se fosse para fazer coc era para chamar ela ou
chamar voc, papai, ento eu chamei voc!
Ah. Respondeu Lamar, livrando-se das ltimas laranjas e pensando
no que aquilo signifcava. . . . Ela disse?
Disse. . . Vamos l, papai?
Lamar sentiu-se ainda pior por entender que Myrthes estava adotando
medidas de segurana. No que no fosse um bom conselho; estar por perto
dos pais era um adgio sempre reforado, mas que consequncias essa re-
gresso de comportamento traria ao garoto? Precisar da presena dos pais
para ir ao banheiro. . . Aparentemente, Myrthes esperava por uma con-
sequncia apenas: proteo.
Andarampor alguns minutos por entre laranjeiras cada vez menos altas,
at encontrarem uma das construes de latrinas da rea em que colhiam.
Voc vem, papai?
No. Respondeu ele, olhando em volta. Vai voc, flho. . . Eu fco
do lado de fora.
Ramon concordou e entrou. O medo de Myrthes alertara Lamar para
a cinzenta presso que ele conseguira gerenciar at ento ao racionalizar
que no fariam nada com ele. Afnal de contas, Prima-u-jir tinha leis e uma
polcia sensata. Ele no seria preso de uma hora para outra no poderia
simplesmente desaparecer. Isso provavelmente no faria bem reputao
de Byron. No podia fazer.
Pai? Perguntou Ramon, com uma abafada voz tranquila.
Hm.
Quando vai ter mais uma festa?
Ah, claro. No se pode esquecer de levar em conta o dinheiro para as
festas. . .
Hmm. . . No sei, flho.
No sempre no mesmo dia?
. . . Acho que , flho.
A clareira em que fcavam os banheiros estava decididamente calma. Se
Byron ou Tornero fossem tentar alguma coisa, no seria ali. No naquela
hora.
Ramon comeou a entoar uma velha cano. Ele tinha ouvido quando
era pequeno, ainda em Kerlz-u-een. Era uma festa que celebrava o comeo
de torn-u-sana, e a msica era festiva e alegre. Lamar sorriu de leve. Apro-
veitava seu sbito orgulho. O flho podia no se lembrar da letra, mas a
melodia ainda o marcava.
Naquela festa retornar a Prima-u-jir era uma ideia, apenas. Um cenrio
incerto emque Lamar via umpunhado de pontos positivos, muitos dos quais
mais relacionados ao passado do que ao futuro. Mas Lamar ainda lembrava,
fosse pelo qu fosse, daquela vontade borbulhante que lhe surgia ao p do
105
Voiui l
ouvido quando ele pensava em voltar. Voltara; viera, e ali estava, como
quisera como quiseram todos. No sabia mais se os riscos valeriam
pena. No conseguia mais sentir as bolhas de excitao; s as do espectro
que a qualquer momento, ele sentia, traria o obscuro infortnio.
A porta se abriu, e Lamar voltou-se para o flho, surpreendido. Ramon
agradeceu o pai, a seu prprio modo despreocupado, e comeou a correr de
volta aos corredores do laranjal. Lamar demorou at voltar para o saco e a
escada.
106
Captulo 16
Realidade fabricada
O qu?
Foi isso mesmo que vocs ouviram. Disse Josep enquanto assinava
alguns papeis com uma caneta-tinteiro. Vocs no trabalham mais para
mim.
Ao chegarem na propriedade Fjor e Leila foram convidados a entrar na
residncia de Josep e conversar umpouco. Nenhumdos quatro havia estado
dentro daquela casa emcircunstncias to amigveis e longe da formalidade:
entraram no lugar sabendo o que foram fazer ali e quando iriam sair (em
geral, o mais rpido possvel). Dessa vez foram ainda alm: no s entraram
na casa como foram at o segundo andar. L, em um gabinete apertado
com cheiro de couro de bufo exposto ao sol, o dono da fazenda sentava-se
numa posio bem disposta. O velho senhor mostrava rigidez, mesmo que
sua cabea careca e os globos oculares saltados, quase que perfeitamente
esfricos, lhe conferissem aparncia doentia.
Por qu? Questionou Fjor.
Eu no preciso mais do servio de vocs. Disse ele, sequer olhando
para frente, falando com a simplicidade de quem escolhe qual ser o car-
dpio do almoo. De nenhum de vocs, que fque claro. Os quatro esto
dispensados.
O senhor tem muita terra, eu tenho certeza que ns podemos encon-
trar uma. . .
Pare. Ele fnalmente olhou para Fjor, tirando os culos e segurando-
os na mo. Leila torceu de leve os lbios, expirando silenciosamente ao
sentir que seria impossvel convenc-lo a readmiti-los. Pare comisso. No
preciso e no quero. Quero que vocs vo embora. Tomem. E, dizendo
essa ltima frase em um tom levemente paternal, tirou de dentro de uma
gaveta no balco uma sacola negra. Entregou-a nas mos de Fjor, que olhou
dentro dela e viu algo em torno de duzentas moedas de ouro. Vo fcar
bem com isso ou no?
A-acho que sim, por um tempo, mas. . .
timo. Agora vo. No precisam mais voltar.
Depois de tanto tempo trabalhando para ele, Leila sentia-se trada. Fjor
107
Voiui l
fechou a sacola, impaciente, fazendo um n de qualquer jeito. Ele olhava
para ela de esguelha; ela buscava uma compreenso que ele, indignado, no
podia oferecer.
No sabiam como sair sem se despedir, mas aparentemente era o que Jo-
sep estava pedindo ao ignor-los de forma to clamorosa. Logo ele, que era
atencioso e respeitoso, sempre pagando em dia e com exatido (ao contr-
rio de outros patres, como ouviram falar). Mas agora, literalmente da noite
para o dia, ele agia daquele jeito. Pagava um valor inexato num montante
que julgava justo para se ver livre deles sem remorsos.
Sem ressentimentos. Falou ele, antes que fechassem a porta.
Negcios so negcios.
A viagem de volta foi silenciosa. Fjor s queria, enquanto podia s que-
rer isto, ouvir o barulho do cho sendo pisoteado pelos yutsis. O caminho
margeava colinas bem populadas, com casas simples em tons pasteis divi-
dindo o cenrio com cedros altos, com copas largas servindo de abrigo a
pequenos pssaros cinzentos. O sol no deixava que tudo fcasse muito frio,
e produzia sombras e contornos particularmente bonitos. Parecia sarcstico
que no pudessem aproveitar melhor uma paisagem que fazia querer rolar
na grama. Ou que nuvens negras se aproximassem pelo leste.
Oque deveriamfazer? Procurar outro emprego imediatamente ou, agora
que no havia risco de perder o emprego, viajar at Jinsel?
Ele no podia. . . Comentou Fjor, respirando fundo. Leila pensou,
por um momento, que ele fosse chorar. Seria a primeira vez que o veria
fazendo isso.
Fjor, talvez. . .
Eu sei o que voc est pensando. Rasgou ele. Ns no vamos,
Leila.
Leila no quis discutir. Sabia o que se passava pela cabea do amigo,
e no podia culp-lo. Sem esse emprego, como fcaria sua av? Sem esse
emprego, como fcariam eles mesmos? As moedas serviriam por um tempo,
se bem racionadas, mas por quanto tempo? Viajar para Jinsel no deixava
de ser arriscado s porque no tinham mais tanto a perder.
Desceram da charrete e, quando podiam avistar a casa, viram que Leo
e Beneditt sentavam-se em bancos de madeira do lado de fora; Beneditt
tocava a guitarra de Leo e este ouvia a sequncia de acordes. Leo pediu
que parasse e tentasse outra combinao; a partir desta, ele tentou encaixar
algumas letras que estava compondo. No deu certo, e Beneditt teve outra
ideia. Parou de falar quando percebeu os dois colegas de banda chegando
muito mais cedo do que o previsto.
108
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
O que houve? Perguntou ele.
Fomos demitidos. Explicou Leila. Obaixista da banda sequer olhava
para os outros integrantes, e mexia a perna compulsivamente.
Vocs dois? Questionou Leo.
No. Ns quatro.
Leo e Beneditt se assustaram.
Como assim?
Ns quatro, Leo, eu, voc, Leila e Beni. Demitidos por causa de nada.
Tem que haver uma razo! Disse Beneditt.
Ele disse que no precisava da gente. Fjor jogou a sacola entre eles,
no cho. Ele deu um saco com esse ouro e falou pra gente ir embora.
Leo e Beneditt olhavampara a sacola, paralisados. Leila estava de braos
cruzados, esfregando a prpria pele como se precisasse de um abrao.
Quanto tem aqui dentro? Indagou Leo, levantando a cabea.
Umas duzentas. . . M-mas a gente no contou.
A gente devia contar. Comentou Beneditt, colocando a guitarra no
cho.
Temos que procurar outro emprego. disse Fjor.
Ou podemos ir pra Jinsel. Respondeu Leo, levantando-se.
No d, Leo. Com a gente trabalhando era uma coisa, mas assim?
Voc no v, Fjor? a nossa chance!
Era antes. Agora no mais.
Ns precisamos de dinheiro. . . Podemos conseguir em Jinsel!
A gente viu aquele homem uma vez s.
, e ele entrou na nossa sala pra nada. S pra pregar uma pea na
gente, no , Fjor? Disse Leo, irnico e ameaador.
Fjor bufou, irritado, e caminhou rpido para dentro de casa. Leo o se-
guiu, com Leila e Beneditt logo atrs.
Por que voc fez aquela cara? Perguntou Leo, encostando no ombro
de Fjor, que movimentou-se rpido, sentindo-se provocado.
Porque voc no mede as consequncias do que quer fazer, Leo.
Voc quis dizer que eu corro atrs dos meus sonhos? No tenho razo
de fazer isso?
Voc no corre atrs de todos.
Fjor lanou um sorriso zombeteiro para o irmo antes de se servir de
gua. Leo fcou olhando para ele, perplexo como fato de que ele mencionara
aquilo.
O que exatamente isso era pra signifcar? Perguntou Beneditt, que
entendera to pouco quanto Leila.
Beni, isso entre mim e meu irmo. . .
No, no no. disse Leila, entrando na cozinha tambm, seguida
de Beneditt. Leo engoliu em seco, pensando no que ela quis dizer. Essa
109
Voiui l
uma discusso da banda sobre o futuro da banda. Ns todos somos partes
disso.
Ns no devemos ir. Disse Fjor, mantendo sua opinio.
Qual o seu plano, Fjor?
Arranjar um emprego, Beni. Todos ns temos que procurar por um.
Juntos, ou separados. . . Temos que ganhar dinheiro.
Fjor. . . Comeou Leo, procurando formar uma frase sem ironias de
qualquer tipo. Ele olhava para o cho, ainda irado, sem certeza sobre como
reagiria aos olhos do irmo. Voc. . . Pode nos explicar que diferena faz
procurar emprego antes de irmos a Jinsel ou depois?
Fjor fcou quieto por um tempo. Ainda estava nervoso, mas no queria
mais brigar.
Faz sentido isso, Leo. . . Apoiou Beneditt.
O meu plano o seguinte. Disse ele, animado pela possibilidade
de conversa. Olhava agora para Leila, sentindo-se mal por seu semblante
estressado. Vamos a Jinsel. Fazemos o show, e vemos o que aquele homem
quer com a gente.
Seimor. corrigiu Fjor. Os olhos dos irmos se cruzaram por um
instante.
Isso. Vemos o que ele quer. Se gostarmos, fcamos e o prximo di-
nheiro que ganharmos j mandamos para nossa av.
E se no der certo, viemos embora e arranjamos um emprego?
perguntou Leila.
. isso.
Era uma grande deciso. A viagem poderia mudar tudo para melhor, ou
fazer tudo piorar. Um momento de silncio alongou-se em uma pequena
eternidade enquanto cada um considerava as opes. Olhavam-se aqui e
ali, e daqui a pouco de novo, intermitentes; pareciam pensar juntos, mas
estavam sozinhos.
Vamos, ento. Concordou Fjor, ainda srio.
. . . Quanto ser que custa uma charrete pra Jinsel? Perguntou Leila.
S vamos de charrete se Cordlia morrer de fome. Respondeu Be-
neditt. Seu pai fora condutor de charretes que viajavam entre cidades, e ele
sabia que essas viagens no sairiam por menos de quinze mil moedas ou
quinze barras, quantias equivalentes. Precisamos ir a p.
E. . . Vamos chegar a tempo?
No sei, Leo. Mas acho que no podemos esperar pra ir. Tem que ser
amanh. . . Se no hoje.
Eu posso sair e comprar um mapa. Ofereceu Fjor. Enquanto isso
vocs comeam a arrumar as coisas.
Se voc quiser, eu posso. . .
No precisa, Leo. Quero fcar um pouco sozinho.
110
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
O que est acontecendo aqui? Perguntou Cordlia, preocupada.
Ela havia entrado na casa sem que ningum percebesse; a porta fcara
aberta. Todos se entreolharam brevemente, sem certeza quanto a quem de-
veria explicar.
V, aconteceu algo muito legal com a gente ontem. E algo. . . Ele
pensou em um adjetivo que coubesse. Ruim, hoje.
Ela espremeu os olhos, intrigada. Colocou a bolsa de algodo no quarto
e rapidamente entrou na cozinha.
O que aconteceu, Leo? Havia um pouco de medo em sua voz.
Bem, ontem, depois do show, um agente musical de Jinsel visitou a
nossa sala. Ela balanava a cabea, incentivando-o. Disse que tocamos
bem e que poderamos ter um acordo com ele se fssemos l e tocssemos
em uma casa de shows famosa.
Um grande sorriso brotou no rosto da velha senhora.
Ora, Leo, isso magnfco!
. Mas tambm fomos demitidos.
Ah, mas isso no nada! Disse ela, quase s gargalhadas de felici-
dade. Fjor levantou as sobrancelhas e olhou para baixo. Esqueam isso. . .
Vocs estariam desperdiando o talento de vocs num emprego normal, de
qualquer forma! Quando vocs vo?
Sem esperar uma resposta to efusiva, Leo olhou para trs, rindo. Leila
j se permitia sorrir.
Bom, acho que. . . Amanh!
Ento vamos, vamos organizar tudo. . . Disse ela, batendo palmas.
Fjor, v at o centro da cidade, como voc dizia antes, e compre um mapa!
Vocs precisam comprar tambm comida para a viagem!
Precisamos deixar dinheiro pra senhora tambm, v, ns. . .
. . . No, no, Fjor, eu posso me arranjar, no se preocupe. . . E tambm
os vizinhos podem ajudar, tenho certeza de que entendero!
Dona Cordlia, sabe quantos dias demora a viagem at Jinsel a p?
Perguntou Leila.
Sei sim, minha querida. Oito dias!
111
Captulo 17
O Conselho
Aerma regio do centro de Heelumera composta por umconglomerado
de colinas e rvores que, acreditava-se, era inabitado. Ainda que ningum
morasse ali, o lugar era usado como passagem: das Montanhas Iarna nas-
cia o Rio Joss, pelo qual desciam de barco aqueles que viessem da Cidade
Arcaica com destino a Kerlz-u-een. Era tambm um atalho, ainda que no
claramente defnido, para Imiorina; podia-se chegar cidade do deserto pelo
norte, atravs de uma longa estrada a partir de Enr-u-jir, mas aqueles com
pressa tinham a aventura como a opo mais adequada. Esse era o caso de
alguns magos que, pagando um pouco a mais, eram deixados logo na ou-
tra margem do rio, e adentravam um espao longo e solitrio que qualquer
um preferiria evitar. Aqueles que permaneciam na embarcao observa-
vam, meditativos, as reservadas fguras que se dispunham a seguir aquele
caminho, e concluam que eles deveriam ter uma boa razo para faz-lo.
De fato tinham. Desmodes seguia apressado rumo s Montanhas dos
Oniotos. A charrete seguia por um estreito vale em que o cho tinha mar-
cas de rodas e cascos; a trilha ladeava verdes campinas, oliveiras cujas folhas
mais baixas tinham frgil aspecto e eventuais coelhos e raposas. O cami-
nho seguia sinuoso, mas mantinha-se relativamente reto rumo ao centro
das altas montanhas. Na ltima meia hora de trajeto observadores fcavam
escondidos, camufados em uma mata um pouco mais fechada, para evitar
que estranhos seguissem o caminho at o fnal. Desmodes no era um es-
tranho para eles.
Agora o caminho era de subida, mas os yutsis no pareciam abalados;
seguiam frmes por uma terra j sem vegetao. Logo j era possvel perce-
ber o quo alto era o lugar: o tablado curvo de toda regio ao leste aparecia
ao longe.
Desmodes seguiu em frente e passou por uma abertura entre duas pa-
redes rochosas. Entrou em uma gigantesca plancie completamente cercada
pelas montanhas. Um suntuoso castelo fora construdo prximo entrada,
com colunas frontais exibindo ricos e complexos detalhes em prata e uma
torre de trs andares, no canto mais distante da entrada, para que pudessem
observar as terras mais baixas, situadas aps umdesnvel: umacampamento
113
Voiui l
militar, com cerca de duzentos homens de prontido, entre soldados e ofci-
ais. Aquele era o exrcito do secreto Conselho dos Magos, e o castelo servia
de reunio e quartel general do Conselho, alm de residncia para qualquer
mago membro do Conselho que quisesse fcar ali.
Desmodes parou a charrete. Desceu dela e, sem esperar por algum que
viesse tir-la dali primeiro, entrou no castelo.
A sala de entrada era ampla, alta e principalmente vazia; uma cmara
escura em que as luzes das janelas, uma a cada lado da porta principal, lan-
avam raios espectrais sobre um cho de escuros pisos azuis. Havia uma
entrada esquerda e uma direita, sem portas, e uma escada de pedra cor
de bronze em cada parede subjacente, ambas convergindo para o segundo
andar. De l vieram Igor e Ramos. Este, um homem mais velho e carism-
tico com alguns fos grisalhos no preenchido couro cabeludo e alguns fos
negros na aguda barba cinza e nenhum dos fatores dava a entender que
perdera o vio de sua juventude. Aquele, um sujeito baixo com um peculiar
bigode espesso, trazia na boca dentes irregulares e espaados.
Desmodes, no? Perguntou Igor, com um sorriso que parecia ser
torto devido a uma desfuno de tica.
Desmodes era novo no conselho; era natural que alguns magos no lem-
brassem seu nome.
Sim, de Jinsel. Respondeu ele. Vocs so Igor e. . . Ramos.
Certo. Disse Igor, enquanto Ramos confrmou com um aceno.
Est voltando de onde? De Jinsel?
Vim de Enr-u-jir. J esto todos aqui?
Quase. . . S esperando por Lucy, agora que voc est aqui. Igor
passou a olhar para algum lugar fora do castelo. Cremos que ela chegar
em breve.
A porta era grossa e pesada; a maaneta, reta e feita de um metal escuro,
exibia a letra E em relevo para quem entrava. Desmodes ocupava o quarto
que fora de uma maga esplica de Novo-u-joss.
OConselho dos Magos era composto por vinte e ummagos: sete de cada
tradio, independentemente da cidade de origem. Quando um entrava, ou-
tro deveria sair, e os escolhidos eram eleitos tendo em vista o envolvimento
com a comunidade. Com o conselho formado, um mago deveria ser esco-
lhido para liderar a todos. Este seria o mago-rei.
O Conselho foi formado durante a Aurora da Unio, antes de todas as
guerras modernas, por bomins e preculgos dispostos a colaborar uns com
os outros a fm de prosperar. Os esplicos no existiam ainda, mas depois
114
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
da guerra em que Napiczar aterrorizou Heelum com exrcitos disciplinados
e cruis, foram includos no grupo.
O quarto de Desmodes era longo e bem iluminado. esquerda da porta
havia um armrio e uma porta para o banheiro, enquanto que logo frente
fcava a alta e larga cama, coberta em rubros lenis. direita e sem slidas
divises estava uma pequena sala com sofs azul-marinho e uma mesa de
canto com duas cadeiras de madeira clara.
Logo uma mulher em um curto vestido amarelo apagado entrou, apres-
sada, trazendo uma bandeja. Emcima do prato, umlargo pedao de carne de
onioto azul-claro e suculento com alguns gros e folhas de alface, alm
de um doce marrom, fruta com uma polpa cremosa e doce. Enquanto isso
um homem usando vestes tambm amarelas entrou e deixou as duas malas
que Desmodes trouxera na charrete em cima da cama, comeando a abri-las
e organizar as roupas no armrio. O novo habitante do castelo olhava pela
janela, com apenas uma breve viso do acampamento militar, e sentia com a
mo direita em um bolso interno o raro minrio verde e marrom que havia
conseguido na breve passagem pela Cidade Arcaica.
Desmodes entrou emuma casa pequena demais para ser umcastelo, mas
luxuosa demais para pertencer ao tipo de pessoa que poderia ter uma casa
daquele tamanho em Jinsel. Fechou a porta atrs de si, dourada e alta, e
desceu alguns degraus azuis para chegar a uma sala estranhamente ampla.
Nela, quatro sofs verde-escuros formavam um quadrado de assentos em
meio a cho e paredes amarelos como o sol. O ambiente de janelas fechadas
s fez aumentar o calor, e Desmodes tirou o colete negro que trazia por cima
da camisa bord.
Desmodes! Exclamou uma mulher alta e magra, que entrara na sala
batendo palmas ritmadas. Parabns! Pa-ra-bns!
Ela continuou de p, olhando para ele comdois penetrantes e enraivados
olhos aquticos, plena de conscincia de que no haveria resposta. Seu curto
vestido azul-claro, que parecia no ter sado de seu corpo desde uma festa
sem hora para acabar, servia bem como clice para o cabelo loiro e seco
que abaloava a cabea, comeando a balanar assim que ela comeou a ir
embora.
Logo parou, como se houvesse uma parede invisvel que no pudesse
transpor. Seu corpo relaxou e ela fechou os olhos, respirando fundo. Virou
a cabea para a direita e encontrou um rosto frio no sof.
Vamos. Disse Desmodes, convidativo. Sente-se comigo.
Inasi-u-sana ainda no comeou. Rebateu ela, rspida. No cos-
tumo usar essa sala em outras estaes.
115
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No penso que tenha tantas salas boas como essa.
Eleonora desaprovou o comentrio do visitante, sem dar bronca qual-
quer impresso cmica ou amigvel. Seu andar era duro e frreo; seu fe-
chado sapato negro, o cume invertido de uma roupa apertada e nebulosa,
fazia uma som abafado e sinistro ao entrar em contato, p por p, com o
cho de etrea tonalidade.
Ento. Sentou-se ela no sof em frente, entrelaando os dedos das
mos. Como j disse, parabns. Voc deve ser muito poderoso.
Nem todos os magos do Conselho so poderosos.
Digo isso porque voc deve ter precisado de magia para entrar no
Conselho. Voc nunca fez nada por ns. Eu quase no lembrava do seu
nome. Como que voc foi escolhido para me substituir, Desmodes?
Eu no reconhecia o valor da comunidade antes.
Eleonora fez um muxoxo de rebelde incompreenso, olhando para a
porta que levava cozinha a sua esquerda. Balanava a cabea; seu p da
perna que cruzava sobre a outra, o esquerdo, comeava a tremer.
Mas voc est certo. . . Nem todos os magos do Conselho so pode-
rosos.
Fale mais sobre eles.
Ela o olhou diretamente nos olhos.
Se eu no falar voc vai me machucar, no ?
Desmodes concordou com um aceno breve. Eleonora deu de ombros e
reclinou-se sobre o encosto acolchoado.
O mago-rei Dresden. Ele um homem de honra, e no chegou l
por acaso. . . muito habilidoso, e que eu me lembre nunca usou magia l
dentro entre eles. . .
Um mago leal.
Sim, ele leal. Confrmou ela, levantando as sobrancelhas.
frme. . . E cuidadoso. Deve ser um bom homem. . . E, como eu disse. . .
De que tradio? Interrompeu Desmodes.
Ele preculgo. Os outros preculgos so. . . Ela comeou a contar
nos dedos, pensativa. Maya, Anke, Sandra. . . Saana, Sylvie. . . No, San-
dra uma bomin. Ela e Valeri so bomins. . . Temos o Igor tambm como
preculgo, e. . . O Duglas.
O que sabe sobre eles?
Bem, Maya muito organizada. Metdica. Eu no gosto dela. inte-
ligente, mas no muito boa. Anke, por outro lado, uma cobra. . .
Por qu?
Ela vai perceber tudo sobre voc quando voc comear a falar com
ela. Eleonora parecia ressentida, ainda que satisfeita por poder destilar
emalgumtoda sua crtica. Os instintos dela no devemser subestimados,
Desmodes, nunca.
116
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Lembrarei disto.
Quem mais. . . Ah, sim, Sandra. Sandra uma mulher de cabelo curto,
eu lembro. . . Encontrou o amor no Conselho, veja s. Valeri a sua compa-
nheira. Duas malditas, aquelas duas bomins. So diferentes, as duas, voc
vai ver, mas so todas insuportveis, cada uma de um jeito. Saana e Sylvie
so duas fracas, as duas preculgas, mas Sylvie pelo menos faz parte da corte
em Den-u-tenbergo.
Den-u-tenbergo. Confrmou Desmodes.
Sim. Ela no parece boba, mas eu nunca conversei muito com ela. . .
Voc conversava com algum, Eleonora?
Ela aproximou-se dele vagarosamente.
Eu conversava mais com os homens, Desmodes.
Ento fale sobre eles.
Eleonora voltou a se recostar no sof, bufando com fora.
Temos o Duglas, por exemplo. Esse preocupado. . . Detesta os fli-
norfos e os alorfos mais do que muitos ali, se no mais que todos.
Quem mais como ele?
De odiar flinorfos? Bem, temos o Elton. Vem de Enr-u-jir, o coitado,
o que podemos dizer? Vive com problemas e por ele matava esses rebeldes
um por um. . . O Duglas preculgo, mas o Elton bomin.
E os outros?
OSouta ummequetrefe daqui de Jinsel. Ele provavelmente vai tentar
socializar com voc, mas um tolo. um esplico, tambm. Bem, Desmo-
des, eu no sei mais o que voc quer que eu diga. Quer mesmo que eu fale
sobre todos os magos naquele lugar?
Desmodes a observou enquanto ela pedia por clemncia, mais entediada
que cansada.
Voltarei amanh.
Levantou-se para ir embora, e antes de alcanar a porta a ex-membro do
Conselho o chamou:
Tem uma coisa sobre Dresden, o mago-rei. Ele consegue se duplicar
com. . . Mais facilidade.
Desmodes virou-se para ela.
o que dizem. Reiterou Eleonora. No tenho certeza, mas. . . O
que eu ouvi dizer que ele nunca est numa cidade s.
A sala de reunies era do mesmo tamanho de um quarto e fcava no
andar trreo, logo abaixo das escadarias de acesso ao segundo andar no
salo de entrada. As luzes bruxuleantes de dez tochas oito distribudas
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Voiui l
entre as paredes longas, e uma para cada parede mais curta deixavam o
lugar pronto para o mais acalentador banquete.
A mesa era longa, com dez lugares de cada lado e uma cadeira posici-
onada em apenas uma ponta a cadeira do mago-rei Dresden. Ele usava
uma grossa capa verde-escura, refetindo sua tradio. Em seu rosto claro,
coberto por spera barba, havia uma cicatriz que comeava na orelha e pa-
rava na metade da bochecha, misturando-se s rugas de expresso.
Atrs da cadeira do mago-rei havia umgrande relgio negro, comnme-
ros, ponteiros e longo pndulo recortados em pura prata. A reunio estava
marcada para as quatro horas, e o tempo se esgotava. Antes que Dresden
pudesse anunciar o incio da reunio, os magos se olharam, numa chuva de
comunicaes redundantes.
Vamos esperar. Disse Dresden, sorrindo.
Desmodes ocupava seu lugar na ponta mais distante do mago-rei, do
lado esquerdo da mesa; sentava-se ao lado de Janar, um brando esplico de
Imiorina, e de frente para Robin, um carrancudo bomin da Cidade Arcaica.
Enquanto um era um moreno forte e alto de escuras sobrancelhas grossas, o
outro era plido, com cabelo cinzento, podendo ser confundido com alguma
espcie de irmo mais velho e menos satisfeito de Dresden.
Alguns dos magos estavam ausentes na primeira reunio de que Des-
modes participara, mas ele certamente lembrava-se dos outros. De Eiji,
no mesmo lado da mesa, bem arrumado com seu geomtrico cabelo escuro
curto. Eiji tinha pequenos olhos precisos, exatos em sua arquitetura enge-
nhosa, e trazia no formato dos lbios uma espcie de sorriso predatrio do
qual no conseguia escapar, estando triste ou feliz. Lembrava-se tambm de
Anke, atraente mulher que cultivava sua pele morena de maneira espetacu-
lar. Seus olhos claros destacavam-se, intensos, disputando do interlocutor
a ateno com sua fala macia. Maya, por sua vez, trazia nos olhos grandes
a irrefutvel identidade de seus agastadios encantos. De frente para Maya
estava Saana, com um brilhante cabelo loiro encaracolado, e do outro lado
de Anke fcava Sylvie, com seu pescoo longo e nariz arrebitado, o que aju-
dava a ossatura exposta a dar um carter morturio a uma maga que j no
praticava gentilezas com frequncia.
Desculpem o atraso. Disse Lucy, uma maga de voz doce e o mais
longo cabelo da mesa, loiro e ricocheteante. Sentou-se na cadeira vaga do
lado esquerdo da mesa.
O importante estarmos todos aqui. Atenuou Dresden. Esta
a nossa segunda reunio de Inasi-u-sana, no vigsimo-segundo dia da es-
tao. Suponho que no haver problemas se marcarmos a terceira para o
quadragsimo dia.
Ningum se manifestou.
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
timo. Imagino que esta reunio ser ocupada, haja vista a quanti-
dade de ausentes da ltima vez.
Realmente me surpreende que todos vieram hoje. Disse Elton.
Desmodes deslocou-se de leve para frente, observando o mirrado ho-
mem negro de Enr-u-jir, que tinha uma musculatura surpreendentemente
destacada, quase to notvel quanto os olhos revoltosos.
Voc parece incomodado, Elton. Disse Dresden, acomodando-se na
poltrona com uma das mos a massagear a testa.
claro que sim. E aposto que no estou sozinho. Ao fazer o comen-
trio, voltou-se para os colegas, dos quais alguns assentiam. A existn-
cia desse Conselho nos d esperanas, Dresden. Esperanas que no esto
sendo correspondidas.
Talvez o senhor no entenda o objetivo deste Conselho, Elton.
Respondeu o rei.
Eu creio que entendemos, Dresden. Disse Valeri, diagonal de
Desmodes. Sua voz, de todo contundente, era uma luta para transformar
um qu de frustrao em esforo conciliatrio. Valeri, que trazia em seu
rosto pouco vaidoso as marcas de uma indubitvel guerreira, era uma das
principais comandantes do Exrcito de Prima-u-jir. Ns, magos, temos
que nos ajudar. . . Mas j faz muito tempo desde a criao deste Conselho,
e hoje os tempos so. . . Simplesmente outros.
Temos mais alorfos agora. Alorfos e flinorfos. Disse Duglas, enfm
materializando o que estava na cabea da maioria deles. De corpo robusto e
compacto, apesar da no to baixa estatura, Duglas tinha uma voz rochosa
que bem retratava o jovem rosto. Enfrentamos resistncia. por isso que
eu estive fora. Eu, pelo menos, estava tendo problemas em Den-u-pra.
Isto besteira. Disse Dresden, com uma feio de desgosto. No
duvido que todos ns estejamos em animosidades contra estes. . . Grupos. . .
Mas nosso objetivo nos unirmos contra eles. No isso o que estamos
fazendo?
Mas como temos feito isso? Rebateu Elton. Ainda somos proibi-
dos em Ia-u-jambu e em Inasi-u-een. Em muitos lugares temos que evitar
nos revelarmos ou perderamos nossos cargos!
Temos que ter calma quanto a isso, Elton. Ia-u-jambu um caso
parte, voc conhece o orgulho daquele povo. Se ns somos proibidos hoje
porque j somos proibidos h muito tempo.
Ns estamos liderando a discusso quanto abertura aos magos em
Al-u-een. Colaborou Maya. Em um ou dois rosanos vamos ter uma
grande vitria para comemorar, eu tenho certeza.
Alm disso interveio Saana combinamos um incentivo em todas
as cidades para aprovar leis contra alorfos e flinorfos, no ? A polcia vai
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Voiui l
nos ajudar a combat-los. Ou vai investigar menos os casos em que nos
defendemos, pelo menos. . .
E temos apenas uma vitria quanto a isso, e que nem se pode contar
como vitria. . . Ironizou Duglas. Ia-u-jambu os probe apenas porque
nos probe tambm.
O importante que ns estamos agindo Opinou Saana, tirando os
braos da mesa e recostando-se cadeira. Eu penso que. . .
Essas medidas so ruins.
Os magos que no identifcaram de pronto a origem do comentrio logo
a descobriram atravs dos outros, que, prximos, viraram-se para Desmo-
des.
Qual o seu nome? Perguntou Duglas, com a testa exibindo leve
consternao.
Desmodes.
Por que no concorda, Desmodes? Indagou Dresden.
Fazer dos alorfos e flinorfos foras-da-lei e tornar o poder dos magos
mais visvel s vai aumentar a ira e intensifcar a ao dos mesmos alorfos e
flinorfos. Alm disso, vai provocar debate. Se eles devem ser condenados,
isso deve ser natural, e no objeto de polmica.
Ento supe que devamos deixar as coisas como esto. Presumiu
Duglas.
No. Alorfos e flinorfos se desenvolvem sombra da inao. Deve-
mos extermin-los.
J se v que voc vem de Jinsel! Replicou Elton, irritadio. Voc
pode no ter esses problemas l, Desmodes, mas alorfos tm famlia, tm
amigos, no so perdidos no mundo. Muitos deles vivem no centro das ci-
dades. Por quanto tempo acha que podemos segurar a polcia?
No disse que seria fcil. O plano exige competncia. Rebateu
Desmodes. Elton desviou o olhar de Desmodes como se precisasse fritar
alguma coisa.
Estamos claramente mal representados. . . Disse Sylvie, como se
pensasse alto.
Quer mais magos de Den-u-tenbergo, Sylvie? perguntou Eiji.
O nico modo de piorar seria termos mais magos de Den-u-pra. . .
Conversas paralelas dispararam ao longo da mesa. Eiji dizia para os
magos das imediaes que era um verdadeiro absurdo terem trs magos de
Den-u-pra no Conselho. Souta, um esplico baixo e calvo, prestava mais
esquiva ateno a Desmodes do que conversa. Elton concordava em si-
lncio, enquanto Duglas gerou sua prpria conversa ao concordar com res-
salvas, afrmando que todos os magos da cidade mereceram os postos. Igor
e Saana defenderam-se, um com contida veemncia, outra com justifcati-
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
vas, dizendo ora que ningum havia dito o contrrio, ora que eles tambm
haviam merecido os cargos.
Peri, um mago de modos gentis e colares de madeira pendurados no
pescoo, comentava o quanto Kerlz-u-een precisava da ajuda do Conselho.
Como apoio quieto de Brunno e ummais voclico de Kevin, Lucy defendeu-
se ao dizer que a necessidade da cidade no deveria signifcar benefcios
dentro do Conselho. Brunno era um jovem rapaz de cabelo loiro rasteiro e
desajustado em cuja pele macilenta estava estampada a glida indiferena
que sentia por todas aquelas disputas de cimes e inveja entre cidades. Ke-
vin, por sua vez, era um comerciante de nariz adunco e longo cabelo negro,
tendo por volta de cinquenta rosanos. J mais envolvido com os desafos
do sucesso ao lidar com diferentes vontades e modos de viver em Rirn-u-jir,
estava profundamente interessado no tema.
Sylvie dizia para Anke que, historicamente, Den-u-tenbergo e Al-u-ten-
go sempre tiveram menos magos no Conselho do que era justo. Maya le-
vantava a voz, tentando passar adiante a certeza que tinha de que as coisas
no eram desequilibradas daquela forma. Ramos, pescando no ar a acu-
sao, concordou prontamente com Maya (dando a ela chance de falar),
adicionando depois que na verdade lembrava-se de muitos magos de Al-
u-tengo no Conselho. Cssio participava de duas ou trs conversas, mais
observando-as do que lhes adicionando algo. Janar, num discreto tom elo-
gioso, congratulava Desmodes por seus argumentos, e os dois eram obser-
vados por Robin, com feies de leve desdm, aquilo que sente quem no
quer estar em um lugar mas, em funo do falatrio intil de outrem, no
pode sair.
Dresden precisou pedir por silncio algumas vezes at que todos se acal-
massem.
S estamos dizendo, Dresden disse Duglas, por fm que seria me-
lhor se pudssemos trazer trs magos por cidade. Um de cada tradio. Essa
uma proposta antiga, que h muito tempo ignorada aqui no Conselho.
Sabemos que h magos em Ia-u-jambu, mas h quanto tempo no os
ouvimos aqui? Eles no tm chance de serem conhecidos porque simples-
mente no podem se expr. Apoiou Maya, incrementando o argumento.
Desmodes, rangendo os dentes, permaneceu quieto.
No podemos fazer isso. No agora. Disse Dresden, balanando
a cabea negativamente ao dar a palavra defnitiva. O que vocs pedem
uma reestruturao muito grande para tempos como esses. H mais uma
coisa a discutir antes de pensarmos no que estamos fazendo em cada cidade.
Recomeou Dresden, no dando margem aos murmrio que j eram ge-
rados a partir do desapontamento dos magos. Precisamos visitar os al-u-
bu-u-na novamente.
121
Voiui l
Os al-u-bu-u-na viviamna foresta Al-u-bu, a nordeste do centro de Hee-
lum. Eramuma comunidade que no construiu grandes complexos urbanos,
preferindo viver de forma mais modesta em meio a adaptaes menos radi-
cais do meio. Foramdescobertos nas peregrinaes que visavamreconstruir
e recolonizar a Cidade Arcaica, mas desde ento mantinham uma relao
fria e distante com os outros em oposio no muito radical relao
anterior, simplesmente inexistente desconfados que eram das intenes
deles, e em especial das intenes dos magos.
H algum problema? Perguntou Robin.
No, mas ns sabemos como os alorfos tm nos dado dores de cabea.
Explicou Dresden, lanando olhares inquisidores para Duglas e Elton.
Temos que nos certifcar de que a lealdade deles continua conosco.
Eu irei, claro. Disse Robin.
Desejo ir tambm.
Robin, surpreso, apontou seus olhos negros para Desmodes.
Por qu? Indagou ele.
Acredito que uma boa chance de conhecer o tipo de atividade que
ns, magos do Conselho, fazemos de diferente e essencial para os magos de
Heelum como um todo.
A eloquncia foi o sufciente para convencer Dresden, que no fez mais
que agitar a cabea em sumria aprovao antes de voltar-se ao resto da
pauta.
122
Captulo 18
Lies de silncio
Osol se punha de maneira sempre igual, cena reprisada a cada dia aberto.
O abrao que unia Tadeu a Amanda parecia igual no que tocava mecnica
do movimento, em que um brao vai por l e o outro por ali. Os dedos se
arrastam enfm pelo tecido que separa as peles, e se acomodam quando os
msculos ou os ossos se anteparam, e no h mais como apertar ou para
onde ir. Dessa vez, tanto um quanto o outro sabiam o que dizia cada batida
descompassada de corao; o que signifcava o afastamento mais ligeiro, o
beijo mais curto, a mo trmula que h rosanos j no tinha o hbito de
tremer. Afnal, mesmo nos mais idnticos fns de dia as nuvens garantem
que nenhum pr-de-sol seja igual a outro.
Sabiam que no podiam falar nada, e o eco dessa regra repelia olhares
ansiosos. Sabiam, na verdade, que sequer poderiam se encontrar, mas ver
um ao outro era tudo pelo que esperavam todos os dias. Uma das coisas
que mais incomodavam os aprendizes de mago era justamente que preci-
savam vir, nem que fosse para cancelar encontros futuros embora isso
signifcasse cancelar muito mais do que meras reunies.
Como. . . E-esto sendo as aulas? Perguntou Amanda.
Tadeu suplicou pelo semblante que ela no fzesse aquilo. Ela entendera
a mensagem.
Isso to injusto. . .
, eu. . . Ela comeou, embarcando na fracamente expressa rebeldia
dele. Eu no preciso saber o que voc faz, mas. . . Por que a gente no
pode nem se ver?
Continuaram de p, os dois com as mos nas do outro.
E agora? Eu no posso deixar de te ver. No posso. . .
Lgrimas desciam pelos rostos de ambos. As mos se apertaram mais.
Meu pai disse que. . . Que no podamos fcar juntos porque todo
mundo ia desconfar da gente. Ns somos muito jovens. . .
Ele sabe?! Interrompeu Amanda, apavorada.
No emendou Tadeu mas quando ele me explicou por que ele no
queria me ver perto de voc, ele disso isso.
Amanda torceu os lbios.
123
Voiui l
Por que isso importante agora?
Bem, eu. . . Estava pensando. . . Talvez isso quer dizer que quando
formos mais velhos. . . Talvez possamos fcar juntos. Quando acharem que
ns vamos nos controlar melhor e. . .
Amanda puxou Tadeu para perto e o beijou. Ele reagiu lentamente, pas-
sando a beij-la depois de um tempo de estupor, tomado pela boa sensao
dos lbios mornos dela. No sabia se ela sorria ou se desesperava; no sabia
se havia pensado em uma soluo que no envolvesse pacincia, segredos e
riscos.
A gente vai consertar isso. Sussurrou ela ao se separar dele.
Tadeu suspirou pela boca, esperando ter um dia a mesma confana.
Eu estava pensando tambm. . . Recomeou ela. Voc sabe que
de vez em quando eu. . . Pensava em ser mdica, lembra?
Sim. E eu achava que a gente tivesse que escolher entre ser mago ou
ser outra coisa.
, eu tambm.
Como se ser mago fosse uma profsso, que. . .
. . . Que voc tivesse que fazer s isso! Completou ela.
Uhum.
Bem. . . Amanda parou, olhando para a boca de Tadeu. Ele sabia
que ela, na verdade, selecionava palavras com especial cuidado. Eu posso
ser mdica. . . E ser maga vai ser bom porque eu vou. . . Poder. . .
Tadeu abriu a boca e ela freou a frase, preocupada. Amanda levantou os
olhos para ele, e seus dentes apareciam num sorriso constrangido. Ela no
podia terminar aquela frase.
Dentro do quarto majoritariamente bege, com ocasionais detalhes rosa-
dos, Amanda experimentava um longo vestido verde-claro comprado pelo
pai. Era reto e liso no topo, tinha uma ala grossa que apoiava-se no pes-
coo, e se desenvolvia em volume e complexidade perto do cho, onde pa-
recia desfgurar-se em fumaa verde, intacta, apesar de difusa, sempre que
a garota se mexia. Permitiu-se sorrir de leve ao tocar no prprio cabelo, que
roava na nuca. Algum bateu porta.
Filha?
Entra, pai.
Barnabs, vestindo elegantes vestes negras, abriu a porta do quarto.
S quis ver como voc estava, e se estava pronta.
Acho que estou.
Ela tirou os olhos do espelho e, dando meia volta, sorriu ao pensar que
o pai estava realmente bonito.
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Estou bem? Perguntou ela.
Hmmm. . . Sim, minha querida, est deslumbrante. . . Dizia ele, em
um tom alheio que prenunciava reprovao. Mas acho que voc passar
frio, flha.
Eu queria pegar a sua capa. A verde-escura. Eu adoro ela.
Claro, querida. Disse ele.
Um sorriso satisfeito brotou em seu rosto. Ele permaneceu por mais
alguns segundos olhando para ela ao invs de ir buscar a capa. Quando
ela enfm chegou perto da porta, tencionando sair do quarto, viu que ele
continuava ali.
O que foi, pai?
No, no nada importante. Hoje vou apresent-la a outros magos.
Apresent-la no apenas como flha, mas como parte dos preculgos.
Amanda fez que sim, com um sorriso singelo. Pensava em Tadeu.
Bem. . . Estou ansioso por fazer voc vislumbrar seu futuro! Termi-
nou ele, alcanando a mo da flha. Quero fazer seus sonhos se tornarem
realidade, minha querida, nada menos que isso. Vou buscar sua capa. Ela
assentiu com a cabea. Antes de sair do quarto, ele se virou novamente e
viu que ela ainda olhava para ele. Sabe. . . Sua me achava que eu fcava
bem bonito naquela capa.
Tadeu colocava uma capa azul clara por cima da roupa menos impor-
tante que pde achar em seu armrio escuro, embutido de modo que a ma-
deira se transformava parcialmente na corvnia da parede ao fundo. Um
quarto feito sob medida: luzes amarelas para iluminar o bom, porm ne-
gro espao; moblia imvel, motivos prateados em todos os detalhes, uma
nica, central janela vermelha que a me abria mais que ele. No queria ir
quela festa dos magos bomins. Detestava no poder contar com Amanda
para entend-lo.
Levou um susto quando percebeu, ao virar-se para a porta, que a me o
observava da entrada do quarto.
Me, que. . . Que susto! Reclamou ele. Eva aproximou-se do flho,
sem sorrir mais do que j sorria antes, e tirou-lhe a capa.
Azul, meu flho, a cor dos esplicos. Ensinou ela. Laranja a
cor dos bomins. Procure us-la. Ou pelo menos no use azul nas reunies,
tudo bem?
Ele confrmou de qualquer jeito.
E os preculgos? Que cor so?
Ela no vai desconfar por causa disso.
Hmm. . . Voc no consegue adivinhar?
125
Voiui l
Ele imediatamente pensou nas roupas que Amanda usava, mas eram
tantas e podiam no signifcar nada j que ela as usava antes de ser maga,
ou aprendiz de maga. Tampouco conseguia se lembrar das roupas que o pai
dela usava.
Percebeu que Eva o observava enquanto ele se concentrava; ela sorriu
mais uma vez, um sorriso que o tocou como algo, de algum modo, forado.
Me. . . Voc uma maga, no ? Desviou-se ele.
Sou.
Eva alisou os ombros da capa laranja-escura que pusera no flho.
Voc. . . Est triste? Perguntou ele.
Ela olhou para baixo, suspirando com discrio.
Voc no quer que eu aprenda magia?
Voc quer aprender magia? Rebateu ela, tranquila.
. . . E-eu no sei.
Nessa cidade esperam muito de ns, flho. s vezes isso signifca que
temos que deixar algumas coisas pra trs.
E se eu no quiser deixar nada pra trs?
Tadeu xingou a si mesmo emsilncio por talvez ter deixado transparecer
nos olhos alguma das dezenas ou centenas de mentiras que escondiam tudo
dos pais. Eva passou a mo por seu rosto, expressando um sorriso apertado
que durou pouco.
s vezes no temos escolha.
Tadeu tentou no pensar atravs de uma perspectiva conspiratria, mas
lhe parecia que a me queria que ele tivesse.
Amanda entrou em um salo baixo, mas comprido, em que minrios
verdes e amarelos enchiam o lugar de luz. Claro como o dia, ainda que fosse
noite, o lugar era aconchegante e at mesmo divertido: um restaurante e
bar exclusivo situado no primeiro andar de um castelo reto e sem destaque,
espremido entre dois hotis no centro da cidade.
No foram muitos os que olharam para eles quando entraram no lugar,
mas Amanda percebeu que os rostos, bem dispostos sobre capas e golas, sob
chapis femininos e masculinos, fcaram positivamente surpresos. Havia
algumas pessoas de idade, outras que poderiam ser seus pais e mes mas
que, ainda bem, no eram, pensou ela e rarefeitas mesas exclusivamente
formadas por jovens, em geral separadas por gnero.
A msica do ambiente era clssica, com uma fautista tocando uma re-
laxante melodia em um canto mais ao fundo. Amanda acompanhou o pai,
que ia cumprimentando todas as pessoas que via (de outros polticos e bu-
rocratas at militares e arquitetos), o que signifcava que Amanda deveria
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
fazer o mesmo. Sua cabea estava confusa com todos aqueles nomes, dos
quais no conseguiria se lembrar, e todos aqueles olhos, que fcavamsempre
intensamente agradecidos pela nova presena no grupo.
Querida. . . H uma mesa com pessoas mais jovens l. Apontou
Barnabs. Acredito que prefra passar seu tempo com suas amigas do que
comigo, que devo falar de assuntos entediantes para voc a noite inteira. . .
Ela duvidou da sugesto por algum tempo. O que era pior? Fazer parte
da mesa emque todos a empurrariampara umfuturo semTadeu ou da mesa
em que nenhuma das pessoas era uma amiga de fato? Ela e aquelas meninas
no tinham nada em comum; aquilo sempre fcara claro para todas as partes
de cada conversa que j tiveram. Um desperdcio seguido de outro.
Na verdade, agora tinham algo em comum.
Tadeu descera da charrete com o pai no encalo. Pararam em frente a
um grande castelo na rea leste da cidade, bem perto do mar e das torres; a
maresia chegava at eles numa lufada de vento ou outra. Ele estava deco-
rado de amarelo e laranja por fora, e os portes principais, abertos, davam
acesso a um longo e bem iluminado corredor, em cujo cho se estendia um
vivo tapete vermelho.
Tente no se impressionar muito. Recomendou Galvino, com um
sorriso.
Tadeu olhava para os lados, esperando ver algo diferente, mas tudo que
havia era uma parede bronzeada de alvenaria e mais minrios simulando os
primeiros momentos do crepsculo vespertino.
Ao virarem direita puderamver umpiso azul-claro brilhante. Por cima
dele, mesas circulares, com toalhas alaranjadas que quase encostavam no
cho. Ao longe via-se algumas das mesas ocupadas com fgures da cidade;
generais, professores, donos de terras, muitos dos quais Tadeu se lembrava,
pois visitavam a casa do pai. Reconheceu o prprio professor de tradio
numa mesa logo adiante.
Quando fnalmente entrarampor completo no salo, Tadeu viu uma pro-
fuso de luzes em espiral cobrindo as paredes dos mais de quatro andares
do castelo sem cobertura: os convidados da reunio tinham o cu por teto
enquanto animadamente levavam garfos e copos boca, enchendo o local
de educado burburinho.
Est timo este rosano. Comentou Galvino, seguindo em frente.
Tadeu caminhou mais para o centro, maravilhado, procurando ver tudo
acima de si, e esbarrou semquerer emalgo maior que ele. Olhou para frente,
aparvalhado, e encontrou Jorge.
Oi.
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Voiui l
Oi, Jorge.
Tadeu voltou a olhar para o cho, o encanto das luzes quebrado por
aquele desagradvel encontro. Jorge, amigo de infncia, parecia ter o con-
tedo do rosto injustamente concentrado no centro. Tadeu viu que a mesa
que parecia ser dele tinha ainda outros dois garotos, cujos nomes levaria
infnitos segundos para lembrar.
Posso me sentar? Tadeu perguntou, num impulso.
Ham. . . , sim. Acho que sim. Jorge parecia ainda mais surpreso
que Tadeu.
Qualquer mesa seria melhor que, por falta de opo, a do pai.
Vocs sabem o que uma charrete com dois bomins caindo de um
penhasco?
O silncio que precede o humor.
Um desperdcio! Cabiam muito mais!
Risinhos insuportveis seguiam-se, todos diferentes uns mais agudos,
outros mais ritmados, outros obviamente exagerados mas igualmente des-
toantes enfadonha trilha musical. Amanda no rira; nem dessa vez e em
nenhuma outra. J tinha ouvido anedotas sobre trabalhadores rurais (O
que um campons disse para o outro quando acidentalmente descobriram
um minrio de luz? Estamos ricos! Com toda essa luz agora vamos traba-
lhar a madrugada inteira!), contos sobre alguns homens de Al-u-een (Mi-
nha me jura que eles quase desmaiaram quando viram a altura da torre.
No so uns fracotes?) e irritantes piadas sobre outras tradies mgicas
(Quantos esplicos so precisos para pendurar um minrio de luz na pa-
rede? Um s, e ele manda o minrio se pendurar sozinho!). Ela segurava
o queixo com a mo direita, o cotovelo em cima da mesa, e viu que o pai
lanava um olhar preocupado para ela enquanto ouvia algum outro homem
falar.
Amanda pensou que estava provavelmente desapontando o pai. Endi-
reitou-se na cadeira, perturbada com a vigilncia.
E ento, Amanda. . . Seu pai te trazendo a uma festa preculga, ?
Dizia Anna.
. Estou comeando a aprender.
Havia cinco meninas almde Amanda na mesa. As trs que no estavam
conversando todas comlongussimos cabelos loiros e impecveis vestidos
verde-gua arregalaram os olhos, surpresas. Havia uma outra dupla que
no prestara ateno na conversa, j que conversavamentre si; uma menina
de grandes olhos azuis e cabelo preto levantado em um coque e uma outra,
128
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
com um triangular rosto cadavrico que parecia concentrar todos os ms-
culos do corpo nas mas do rosto. Uma das loiras deu um tapa no brao
de uma das morenas, contando o que estava havendo. Anna, balanando e
levantando as mos, deu um sorriso largo.
Oh, querida, por que no disse antes?!
Tadeu no conseguia encontrar uma posio confortvel na cadeira. Sua
m vontade de estar de frente para Alex, aquele garoto de olhar esnobe e
ondulado cabelo frme, era tamanha que ele no conseguia olhar para ou-
tro lugar que no o centro da mesa, num ponto qualquer que fosse menos
mortifcante que aquela conversa.
Meu pai acabou de comprar mais terras em Kor-u-een. Dizia ele,
com o cotovelo esquerdo jogado para trs da cadeira. Ele disse que um
excelente negcio no leste l.
Onde Kor-u-een? Perguntou Jorge.
No Sul, seu idiota. Respondeu Geraldo, o garoto magricelo e com
um negro cabelo escorrido do outro lado da mesa, direita de Tadeu.
Acho que a minha me vai comprar tambm.
Mas a sua me uma. . . Arquiteta. . .
Geraldo olhou pela primeira vez na noite para Tadeu, logo voltando-se
para os outros dois para compartilhar signos de paternalista indulgncia.
Sim, mas. . . Disse ele, fazendo uma pausa para uma risada atra-
vancada. Ela vai comprar pra ganhar mais dinheiro.
Tadeu ponderou que no deveria ter pensado assim alto. Suportou com
irnica honraria o segundo momento na noite emque pensava balbrdias de
si mesmo e resolveu ir mais fundo fcou curioso quanto quela situao.
Amanda de fato havia dito que era possvel ser outras coisas alm de apenas
um mago.
A sua me no . . . No participa da poltica? Perguntou.
No, ela diz que irrita ela demais. Por qu?
Ele est aprendendo magia agora. . . Comentou Jorge, com um sor-
riso malicioso nos lbios acompanhando um vagaroso balanar vertical de
cabea.
Seu pai um grande poltico. Comentou Alex. Provavelmente
pensa que os magos so todos envolvidos com a poltica.
Quem pensa, eu ou o meu pai?
Voc, claro. Ele riu brevemente, franzindo as sobrancelhas. Os
outros o acompanharam. Que pergunta. . .
Tadeu no sabia o que fazer ao ser publicamente humilhado. Lembra-
va-se dos velhos tempos em que nunca soube o que era sentir-se superior
129
Voiui l
a algum, ou pelo menos igual. Todos os garotos com os quais conversava
chegavam a ele impondo respeito de qualquer jeito que pudessem. Tadeu
nunca jogou aqueles jogos. Eram uma estupidez; ele sequer conhecia as re-
gras. Aqueles jogos, no entanto, pareciam ser a essncia daqueles meninos,
mesmo tendo vrios rosanos se passado.
A beleza de ser um mago. . . Qual o seu nome mesmo?
Tadeu.
Tadeu. A beleza de ser um mago, Tadeu, que voc pode ser qualquer
coisa. As portas do futuro esto abertas para voc. Mas voc precisa ter as
chaves.
Tadeu no estava gostando do rumo daquela conversa. Desviou os olhos
dos de Alex antes que ele resolvesse ter ideias. Era melhor passar desperce-
bido por aquela festa.
Est na hora de ser iniciado, Tadeu.
Alex fez um movimento com a cabea, indicando uma das sadas. Sor-
ria abertamente agora; um sorriso sem controle, com os msculos travados
na expresso que inspirava loucura. Tadeu no fazia ideia do que estava
acontecendo.
Vamos l fora.
Iniciada? Perguntou Amanda, pega de surpresa.
Sim. Todas as novas magas devem passar por isso.
E. . . O que vocs vo fazer?
Simples! Vamos te invadir e brincar um pouco com voc.
Anna sorria, e os olhos das outras brilhavam de expectativa enquanto
respondiam, nem sempre silenciosa mas sempre afrmativamente, quando
Anna perguntou se no era assim que funcionava. Amanda olhou para o
pai. Estava distrado; conversava com uma mulher em longas vestes roxas,
encostando a palma da mo cuidadosamente em suas costas.
Depois disso, passou a pensar com frieza num fato novo que a deixou
mais quente. Se elas a invadissem, talvez pudessem descobrir sobre Tadeu.
Isso no podia acontecer.
No. . . Vocs no vo no. . .
Voc tem que deixar, Amanda.
No. . . Amanda tentou sorrir. Era uma brincadeira, afnal, no era?
Voc vai deixar ou fcar de fora Ameaou Anna.
Fora do qu? Retorquiu Amanda, irritada.
Anna a olhou comdeclarado desprezo. Balanou a cabea por umtempo,
deixando a boca aberta ao ponto de os amarelos dentes da fronte aparecerem
por completo, e por fm levantou-se com ares de determinao.
130
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Vamos, meninas. Deixem ela a.
A boca da aparente lder do bando j no jazia aberta quando elas se
levantaram e foram embora, para longe daquela mesa e em direo sada.
Andavam devagar, algumas com um passo mais estranho que outras, mas
todas acima de dourados sapatos abertos, todos iguais. Amanda se levantou
logo depois de olhar para o cho, refetindo sobre as consequncias do que
fez.
Pensou em cham-las de volta. Tinha todas as razes para querer que
elas no a atacassem, mas sabia que deix-las ir no era bom. Mas o que
diria para que voltassem? Que deixaria que elas a invadissem?
Filha?
Amanda fechou os olhos e tremeu, deixando o ar nos pulmes escapar
dolorosamente. Desapontamento paterno era algo de que no precisava.
Virou-se e encarou Barnabs, que parecia preocupado.
O que aconteceu?
Uma. . . Iniciao estpida. Elas queriam me invadir, e eu no deixei.
Voc lutou com elas? Perguntou Barnabs, mais interessado do que
preocupado.
No pai, eu mal consigo me manter de p l. . . Voc sabe disso. . .
Barnabs inspirou forte; foi o que Amanda pde ouvir, estando com a
cabea abaixada observando, envergonhada, o polegar direito digladiar-se
com uma pele sobressalente no indicador esquerdo.
Querida, eu. . . No posso te forar a fazer isso, e no quero pedir
que faa. Mas peo que pense bem no que est fazendo. Essas meninas
sero grandes mulheres um dia. Mulheres importantes. Podem um dia ser
a chave do seu futuro.
E, comumbeijo suave na testa da flha, Barnabs saiu de perto, deixando-
a sozinha em frente grande mesa, de braos cruzados e rosto culpado.
Prestou ateno ao som da fauta, que a tirava ainda mais do srio naquele
momento. Bateu a palma da mo na mesa, olhando em volta para todas as
cabeas, agora desobrigadas com os chapus, e que no pareciam prestar
ateno nela. Melhor, pensou Amanda, j que no era nada bom protagoni-
zar brigas memorveis.
Alex, Geraldo e Jorge acompanhavam Tadeu para fora do castelo. Seu
corao batia rpido, preocupado com o que lhe fariam; no tanto pela dor
que pudesse sofrer, mas apenas pela inquietude de ter que se submeter a
eles.
131
Voiui l
Chegaram. Alex empurrou Tadeu de leve, continuando at que ele en-
costasse no muro externo do castelo, e ento deu alguns passos para trs,
voltando a fcar no meio, mas um passo frente, dos outro dois.
Hoje ns vamos te atacar, Tadeu. J foi atacado antes?
Tadeu no tinha certeza, mas no conseguiu responder quilo. Pensou
imediatamente em Amanda. Seria fcil descobri-la em seu castelo? Seria
possvel descobri-la?
Naquele momento entendeu que seu segredo estava longe de estar se-
guro.
Ento. . . Chegou a hora!
E-eu vou contar pro meu pai!
Foi a nica coisa que conseguiu pensar para se livrar daquele julgo. Logo
a partir do sorriso manaco de Alex transformado em risada geral per-
cebeu que foi uma pssima ideia.
Vai contar para o papai, , Tadeu?
Voc faria a mesma coisa. Soltou, desesperado.
Poderia at falar sobre a me, que tambm era maga, mas por que pio-
rar as coisas? Piscou os olhos com fora. No percebera, mas apertava os
punhos contra a parede.
Voc est certo. . . Depois meu pai lida com o seu.
Alex!
A voz feminina, que no era adulta mas tampouco era infantil, veio da
escurido atrs do grupo. Tadeu conseguia discernir apenas que o vulto
usava uma capa que ia at o joelho, e de l para baixo a cala seguia at o
que pareciam ser botas. Os braos pareciam cruzados ou pelo menos no
cados pelos lados do contorno.
Anabel?
Deixa ele em paz.
Alex, vamos embora. . . Dizia Geraldo.
Eu vou te dar um soco na cara! Urrou Jorge, abandonando a magia.
Eu fao voc gritar de dor primeiro. Ela respondeu, afada.
Tadeu tentava parar de tremer quando Alex se virou, olhando para Ta-
deu uma ltima vez.
Vamos embora.
Amanda foi at o balco no fundo da sala, ao lado de onde antes estava
a fautista, e pediu para o garom um copo de gua. Olhou para o lado e
percebeu um garoto de sua altura, com um curto e organizado cabelo loiro,
pequenos olhos castanhos, e um copo que parecia conter suco de laranja.
132
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Eu vi o que aconteceu. Disse ele, mexendo o suco com uma vareta
de madeira.
Amanda o observou, incerta se deveria falar com ele. Como o dia pode
fcar pior?
Voc viu o qu?
O jeito como aquelas meninas te pressionaram.
Hmm. . . Entendeu ela, voltando os olhos para a gua que acabara
de chegar.
O que voc queria com elas?
Como assim?
Bem. . . Ele tomou um gole do suco e voltou a olhar para ela. Havia
algo de srio em seu jeito encantadoramente simples. Elas pensam que se
voc se aproxima como se j tivesse assinado um contrato. Elas assumem
que voc v se sujeitar a elas, e quando no faz isso, elas acham que voc
uma traidora.
Amanda concordou com a descrio.
. . . Eu no sabia disso.
Se soubesse no teria chegado perto delas?
que. . . Eu no quis que elas me atacassem.
Voc sabe que elas podiam ter te atacado de qualquer jeito.
Isso tambm a incomodava. Seu segredo no estava a salvo. S depois
dessa experincia que ela se dera conta disso por completo. Ele terminou
o suco e, levantando-se, virou-se para o lado de fora.
Estou indo embora.
No, espera. Pediu ela. Voc do tipo. . . Infuente?
Como? Sorriu ele, confuso.
. . . Como elas, voc algum importante para o meu futuro?
Ham. . . Ele olhou para o cho e ela percebeu que ele entendera
errado. No era pra menos. Voc franca.
No isso. que voc perguntou o que eu queria com elas. Eu j
conhecia elas, s no era amiga delas. Mas meu pai est comeando a me
ensinar magia agora e ele disse que era importante pra mim fcar amiga
delas e. . . Bem, eu estraguei tudo. Ele est decepcionado comigo. Se eu
fcasse amiga de voc talvez ele visse que pelo menos eu fz um amigo.
Bom, ento deixa ver se eu entendi. . . Voc no est me usando para
o seu futuro, mas est me usando para no decepcionar seu pai?
No bemisso. Disse ela, mas j reconhecendo a estranheza do que
havia proposto. Pelo menos no fui falsa, pensou. que voc legal. . .
Parece legal. . . E achei isso. . . Diferente. Meu nome Amanda, alis. Por
que eu nunca te conheci quando eu era menor?
Bem, se eu vou fcar e falar disso. . . Disse ele, sentando-se nova-
mente. Ento melhor eu sentar e pedir outro suco. Meu nome Gustavo.
133
Voiui l
Anabel aproximou-se de Tadeu, que deslizara para o cho, assustado, e
agachou-se frente. Ele agora a via por completo: ela tinha um liso cabelo
ruivo umpouco mais abaixo dos ombros, e a capa que vestia era uma mistura
sem sentido de laranja e preto.
Por que fez isso?
No gosto deles.
Procura briga por diverso?
Mais ou menos. E a, voc est bem?
Vou fcar. Garantiu Tadeu. S no queria. . . Participar daquela
coisa.
, mas voc sabe que agora tem trs opes. Ou voc fca longe de-
les. . . Ou fca perto e se prepara para ser atacado. . . Ou se prepara para
quando eles vierem.
Tadeu analisou as opes. Nenhuma parecia boa, ento ele imediata-
mente criou uma quarta: fcar por perto dela para que ela pudesse amea-
los mais uma vez.
Ele viu que os olhos dela eram pretos. Ela viu que os olhos dele eram
azuis. Os dois sorriram; ela mais que ele. Deixando a posio que j come-
ava a fazer doer os ps, Anabel sentou-se ao seu lado.
Voc podia me ensinar a ameaar eles do jeito que voc fez.
No, no posso fazer isso. Sou discpula, no mestre. Mas te digo, eles
vo voltar. Falar do seu pai no foi inteligente.
, eu sei. Mas eu precisava impedir que eles me atacassem hoje.
Mas voc sabe o que isso signifca, no sabe? Disse ela, mostrando-
se levemente confusa. Eles queriam que voc fzesse parte do grupo. Isso
era a iniciao, era. . .
, eu sei. Eles me disseram. Mas que eu no podia. . . Eles no
podiam me atacar.
Ele evitou o olhar dela, que parecia j ter entendido do que ele estava
falando.
Segredos.
Ele assentiu com a cabea. Fechou os olhos mais uma vez ao pensar no
risco que corria, sem saber que j o carregava havia rosanos.
Por favor no me ataque.
No, eu respeito isso. Eu tambm tenho os meus. Meus segredos.
Tambm no fz nenhuma iniciao.
A menina olhava para a frente, absorta. Com o canto do olho, Tadeu
notou que ela parecia ser apenas um pouco mais velha que ele embora
sutis diferenas de idade sejam sempre difceis de discernir.
Meu nome Tadeu.
134
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Ah, verdade! Eu nem perguntei antes. . . Bem, voc j sabe o meu.
Eu no sou daqui. Dizia Gustavo. Eu vim de Den-u-pra com o
meu pai h uns. . . Dois rosanos.
Hmm. . . Eu j tinha passado da poca em que procurava por amigas.
Ou era ofertada a elas. . .
Como assim?
que. . . complicado.
Hm. Tem a ver com o porqu de no querer aquelas meninas vascu-
lhando seu castelo?
O silncio confrmava enquanto ela olhava para baixo. E se ele a ata-
casse?
Bem, de qualquer forma. . . Eu sou novo aqui. Meu pai insiste que
eu venha nessas reunies pra conhecer gente da minha idade, mas. . . Eu j
conheci quem eu precisava nessa cidade.
Voc fala de um jeito. . . Disse ela, notando um qu de tristeza e
nostalgia na voz de Gustavo. Voc quer voltar pra Den-u-pra?
Sinto falta de l. De observar as estrelas, que eu sinto que brilhavam
muito mais do que aqui. Do teatro, do esprito daquelas praas.
Parece bom l.
E . Mas falo srio quando eu digo que eu j conheci quem eu queria.
Isso quer dizer que voc j faz parte de algum grupo que no tem
espao para mim?
Ah, isso seria triste. Seu pai fcaria muito desapontado.
Ela sorriu, na esperana de que ele sorrisse de volta e as duas frases
fossem tidas como as brincadeiras que eram. Ele sorriu de volta, permitindo
a Amanda aprender, aos poucos, a decifrar aqueles dois olhos brincalhes.
No, no quis dizer isso. Como eu disse, venho aqui por causa do meu
pai. Eu tambm no fz a iniciao. No gosto dessa gente.
Mas ainda assim j conheceu todo mundo que precisava. . .
, mas. . . Podemos ser amigos. Posso ajudar voc, se voc quiser.
Srio? Ela disse, esperanosa.
. Bem, voc j viu que eu no posso infuenciar muito o seu futuro,
mas. . . Pode dizer ao seu pai que tem um novo amigo.
E. . . Se eu disser isso pro meu pai eu vou estar mentindo?
Ele riu, levantando-se da cadeira.
Voc boa. Ele riu ainda mais. Muito, muito boa.
E, pagando pelo copo de suco a mais que consumiu, botou no balco seis
moedas de ouro e foi embora.
135
Voiui l
Espera, s mais uma coisa. . . Disse ela. Ele se virou, com uma
surpreendente ausncia de sinais de impacincia. O que o seu pai faz?
Ele mdico.
Amanda levantou as sobrancelhas, coma mente a mil. Pensou, enquanto
via o novo amigo distanciar-se com um andar altivo, que talvez ele pudesse
ajud-la em seu futuro mais do que ele poderia adivinhar.
136
Captulo 19
Fuga
Lenzo estava sentado; as costas curvadas e os cotovelos sobre os joelhos.
No sto completamente vedado, com ele, o mesmo minrio vermelho que
antes servira de guia aos outros flinorfos e o barulho da chuva, mais forte
na parte da casa que recebia o primeiro baque das gotas. S se podia entrar
por uma portinhola que abria mediante o uso de um truque, e ainda assim
Lenzo teria tempo de esconder o minrio e a si mesmo caso um estranho
adentrasse o lugar.
O ambiente refetia bem, em todos os sentidos, a situao do homem.
Fedendo a mofo e a todo tipo de coisas velhas, aquele era o depsito da casa
de Kan, que estava atualmente em estado de aluguel. Para o governo de Al-
u-een, naquela casa morava Gag que, discreto ao longo das mais recentes
atividades, conseguira fcar limpo de qualquer ligao comos flinorfos. Sua
fama no o precedia e, portanto, se a polcia viesse atrs de Kan, este no
seria um lugar por onde comear. Mas, por precauo, escondiam-se no
sto enquanto arrumavam as coisas para partir para Roun-u-joss, onde
estariam muito mais a salvo.
Enquanto cheirava a podrido de um lugar que no era seu, esperando
para ser jogado em uma jornada que no queria que fosse sua, Lenzo fcava
se perguntando, imerso emuma profundidade vermelha que s intensifcava
sua dor de cabea, por que fez o que fzera. Como pde fazer aquilo a seu
prprio tio?
No que ele tivesse sido um parente presente em sua vida, mas nada
justifcaria aquilo. Lenzo quase nunca havia feito algo por convico. Ficou
deslumbrado comos alorfos e com Neborum, e aprendeu os simples ataques
de algumas tradies e as tcnicas nicas do grupo do qual fez parte por um
longo tempo. Realmente acreditava naquilo? Se sim, como tudo parecia to
raso e sem sentido agora?
Sua crena era forte no mtodo, mas no aguentou a presso dos resul-
tados. Conhecera Hiram e tornara-se um dissidente; um flinorfo. Viu que
havia algo de errado com Heelum. Algo que os alorfos no podiam con-
sertar. Se ele desejava fazer a diferena de verdade, no podia continuar
mentindo para si mesmo. Era como se ouvisse Hiram repetir isso dentro da
137
Voiui l
prpria cabea: seu trabalho era irrelevante enquanto alorfo.
Eles incomodavam, certamente, e por isso estavam sendo cada vez mais
perseguidos. Mas no incomodavam a ponto de transformar as coisas. Nin-
gum transforma nada do conforto de um lar. Arriscar era preciso. E Lenzo,
apesar de ter se mostrado disposto a fazer algo, nunca teve de fato opor-
tunidade. Hiram tinha um paradeiro errante, e Lenzo sempre fora esquivo
quanto a suas determinaes.
Mas a hora havia chegado. Um plano estava bem arquitetado, e Hiram
veio comreforos. Agora, mais do que nunca, precisava de Lenzo: precisava
de um acesso simples e direto presena de Hourin, ou o plano seria muito
mais difcil de concretizar. Maldita hora em que Hiram disse que precisava
de Kan. No precisava. Kan foi um pretexto, uma armadilha; Hiram, a v-
bora Raquel e o bandido Gag o haviam atrado para aquela maldita casa
de fugitivos e, sabendo que Lenzo jamais cederia presso de um ataque,
confaram o golpe fatal ao amigo em quem Lenzo confava.
Kan o atacou e o convenceu a participar daquilo; era a nica explicao.
Agora sua vida estava acabada.
Tinha que escolher entre ser preso e, ainda pior, receber a ira dos magos
de Al-u-een, ou embarcar em uma viagem que provavelmente o levaria at
a costa oeste de Heelum sem nunca ser capaz de lhe trazer paz.
Um barulho no assoalho assustou Lenzo, que se levantou num salto e
bateu com a cabea no teto.
Sou eu. Disse Kan, tranquilizando o homem do lado de dentro.
Lenzo no respondeu. Permaneceu de p, mas curvado. Como que
Kan, que se dizia um alorfo, de repente fcara to confortvel andando na-
quele bando? No, uma conversa no o convenceria daquele jeito. Sabia
muito bem que uma conversa com Hiram no era uma conversa comum,
mas aquilo tudo foi uma armao. Tinha que ter sido.
Kan subiu, j estando completamente dentro do sto.
J empacotamos tudo e conseguimos uma charrete. Ele dizia, com
as mos nos joelhos. Um pouco mais alto que Lenzo, tampouco podia se dar
ao luxo de fcar de p naquele espao. Vamos esperar anoitecer um pouco
mais e vamos.
Eu vou embora, Kan.
Lenzo viu um sorriso tmido brotar no rosto abaixado de Kan.
claro que vai. Todo mundo vai.
Eu no vou com vocs.
Lenzo. . .
Voc mentiu pra mim, Kan! Interrompeu Lenzo. Voc. . . Voc
me atacou para me convencer! Voc me convenceu a matar o meu tio!
Que idiotice essa?
138
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Idiotice?! Idiotice? Eu vi a sua mo debaixo da mesa, Kan, e eu vi os
outros nos castelos deles, e mesmo no vendo os castelos eu via eles nas
janelas, nas torres, m-mas e voc? Onde voc estava?
Eu estava quieto dentro do meu castelo! Rebateu Kan, com as so-
brancelhas caindo para perto dos clios.
Eu estava preocupado com eles, Kan, mas no com voc. . . Foi real-
mente um plano perfeito, seu preculgo nojento!
Kan olhava diretamente para a raiva de Lenzo. Ficou irritado com a
impossibilidade de se levantar completamente; aquela discusso feita com
o corpo curvado era ainda pior, por irrisrio que aquilo fosse.
Eu estava com Hiram nessa. Ns armamos um teatro para voc.
Explicou ele, com a voz mais dura. Mas ns no usamos magia.
claro que no usaram, no ? Lenzo riu da prpria estupidez,
olhando para o cho. Se vocs matam. . . At usam a magia para ajudar
a matar. . . Usar a magia de vez em quando no nada. . .
Kan chegou mais perto de Lenzo, p por p, e este no conseguiu recuar
a ponto de evitar que os rostos estivessem separados por um palmo de ar
abafado.
Tenho uma notcia pra voc, Lenzo. Disse Kan, antes de levantar
arquear as sobrancelhas e balanar sutilmente a cabea. Ns no fzemos
isso sem voc junto.
N-no me importa. Nada do que voc me diz me importa, se a polcia
perguntar, isso que eu vou dizer para eles. Que vocs me atacaram. Que
eu fui obrigado a fazer isso.
Kan agitou a cabea ainda mais afrmativamente; a lngua percorria as
costas dos dentes.
Tudo bem.
Quer dizer, e-eu no vou polcia, mas n-no posso impedir que ve-
nham at mim. Se eles vierem.
Ele estava s cuidando de si mesmo, pensou Kan. Muito justo.
Eu fui fraco ontem e me deixei enredar por vocs, mas eu estou fora
disso. De vez. Culminou Lenzo, resoluto. E se vocs quiserem me
matar, v-vocs. . .
Cala a boca, Lenzo. Disse Kan, por fm. Ns vamos te deixar aqui
como voc quiser. S no venha depois pedir asilo para nenhum de ns.
Kan virou-lhe as costas tortas e foi embora, deixando Lenzo outra vez
na companhia de chuva e de pedra.
139
Captulo 20
Perspectivas
Dalki estava sentado em um grande sof marrom com os joelhos distan-
tes e a ponta dos dedos na tmpora. Olhava para a penumbra de sua casa,
no centro de Al-u-een. A sala combinava a cor do sof ao amarelo das pa-
redes com uma atitude positiva, e nada da harmonia branda do espao era
afetado por minrios porque Dalki gostava de fcar no apenas sozinho
tarefa fcil, j que morava sozinho mas tambm no escuro. A pouca luz
vinha do lado de fora apenas, dos postes da cidade.
Dalki era o chefe de polcia. De costas largas, o homem cultivava uma
aparncia simples; tinha uma grande marca de nascena na bochecha di-
reita, que ocupava quase um quarto do rosto. O formato de seus olhos suge-
ria que ele era um homem triste, mas a verdade que na maioria das vezes
estava inexpressivamente contente. Se no com seus resultados, pelo me-
nos com os desafos que lhe eram dados. Afnal de contas, ser um policial
era um trabalho complexo: Al-u-een almejava ter na realidade a justia que
se punha na cabea das crianas. Ele, portanto, precisava evitar a ao dos
magos, prendendo-os ou banindo-os da cidade caso fossem descobertos
qualquer mago que fosse, sem se preocupar com o modo como uns dese-
nhavam os outros. Bandidos ou mocinhos, ningum sairia impune de um
assassinato. No se Dalki pudesse evitar.
O caso em que ele se envolvera no dia anterior era peculiar. Hourin, no-
tvel parlamentar, fora mortalmente ferido com uma espada atravessando-
lhe o peito. Infuente e rico, sempre gerou a ira de parcela da populao que
acreditava nos boatos acerca de seu status enquanto mago. Ele, no entanto,
negava o rumor obviamente e jamais algo substancial foi encontrado.
Dalki foi chamado por um homem que morava na rua de Hourin, onde
os vizinhos ouviam gritos desesperados vindo da casa do poltico. Quando
ele e mais dois policiais chegaram l, no havia mais gritos. Espadas em pu-
nho, arrombaram juntos a porta da casa e procuraram por um pressuposto
agressor no andar de baixo. No viram ningum.
Subiram e comearam a vasculhar os quartos. Comeavam a chamar
por Hourin quando abriram a porta do quarto de sua flha. Viram a prpria,
lvida e ensanguentada, deitada na cama, virada para a direita; ele, de bruos
141
Voiui l
no cho, o peito levemente sustentado na direo da garota pela espada, que
ainda estava l.
A primeira coisa que Dalki fez foi verifcar a pulsao da flha ele,
certamente, no sobrevivera; alm disso, se os gritos eram femininos, ela
ainda estava viva quando presenciou o ferimento do pai. Ardendo em febre,
lutava pela vida. Dalki chamou os outros policiais e disse para um deles
trazer imediatamente uma charrete. O outro deveria alertar a casa de sade
da cidade, para onde ela deveria ser levada.
As portas no aparentavam violao, e todas as janelas estavam fecha-
das. As cortinas estavam cerradas tambm. Ao analisar o quarto onde en-
contrara a vtima, viu que os caules das fores do parapeito estavam quebra-
das, como se tivessem sido amassadas. No beco em frente janela viu uma
longa escada de ferro que alcanava o segundo andar da casa.
Procurou superfcialmente pela casa por algum papel solto e rabiscado:
algum tipo de carta explicando o assassinato. Se Hourin fosse mesmo um
mago, poderia ter sido morto por um flinorfo; algum que acreditasse estar
agindo em funo de alguma nobreza de alma. Nesse caso, era possvel
que tivessem deixado uma explicao, um manifesto, um desenho que fosse
explicando o motivo do crime. Nada encontrou.
Procurou por indcios de que fosse um ladro: se algo fora roubado,
ento talvez o assassino tenha subido a escada, fugindo de Hourin. Ao ser
encurralado no quarto do segundo andar, vencera Hourin emuma luta. Uma
altercao explicaria a presena de uma segunda espada no quarto da flha.
Isso, evidentemente, excluiria a noo de que Hourin fosse um mago. Um
mago no chegaria a ser uma pessoa da importncia de Hourin se no fosse
capaz de repelir um mero ladro com alguma artimanha. Contudo, no ha-
via sinais claros de que algo havia sido roubado, pelo menos no compressa.
Tudo parecia estar em seu devido lugar primeira vista. Dalki cuidou para
que uma segunda vista comeasse.
Tinha sorte de a flha do poltico ainda estar viva. Quando ela acor-
dasse, poderia esclarecer muitas coisas. Era improvvel que o corpo tivesse
sido simplesmente largado no quarto aps o acontecimento, j que no ha-
via sangue em nenhuma outra parte da casa. Ele provavelmente havia sido
morto na frente da prpria flha. Crueldade, pensou Dalki. Se isso de fato
acontecera, ela poderia ter visto o assassino. Quem sabe ter ouvido um
nome. Tambm seria capaz de verifcar a casa para se certifcar de que nada
havia sido roubado. Um cenrio promissor.
O prdio do Parlamento de Al-u-een era um dos mais bem cuidados da
cidade. Sua ltima ampliao era antiga, mas fez do lugar um imponente
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prdio de trs andares, largo e comprido, que misturava polidas esferas e
colunas cilndricas a monumentais estruturas de corvnia e vidraas azuis.
A praa frente do Parlamento era um espetculo parte; com trilhas sim-
tricas por entre um bosque iluminado por minrios rosados, continha, bem
ao centro, para onde todas as trilhas convergiam, uma esttua pela qual Al-
u-een era famosa.
Chamada de O Nascimento, a escultura mostrava uma exploso gi-
gantesca em que todas as cores estavam presentes. Do cerne da exploso
surgiam ondas em que a esfera macia ao centro expandia-se de maneira
cada vez mais catica, e de dentro da expanso saam braos, pernas e cabe-
as com expresses confusas nos no poucos rostos. O nvel de detalhe da
obra era impressionante, e via-se que as cores no eram escolhidas ao acaso
ou jogadas em qualquer parte: possuam zonas de infuncia especfcas, e
criavam um todo harmnico mas ao mesmo tempo complexo e difcil de
entender antes de admirar.
Dentro do Parlamento as notcias da morte de Hourin apareceram de
uma vez, e dali causaram massiva estupefao. Kent, uma fgura to antiga
quanto Hourin naquele palco, pediu por silncio logo no comeo da sesso
da chuvosa manh seguinte. Quis proferir um discurso na sala pequena,
como era a chamada a sala de reunies exclusiva para os parlamentares.
O nome, no entanto, no deixava de ser irnico: a sala era pequena se
comparada ao campo aberto que servia para as reunies pblicas a praa
em frente ao prdio mas no deixava de ser grandiosa. Por dentro, min-
rios verdes dispunham-se em losangos ao longo das paredes que ocupavam
dois andares do prdio. No havia cadeiras; apenas sofs voltados para um
plpito bem retilneo com um metlico smbolo de um martelo cruzando
uma espada acoplado frente. Aquele era o smbolo de Al-u-een, e embora
a maioria dos cidados pensasse no martelo como uma ferramenta que re-
presentava a justia (com boas razes para faz-lo), ele na verdade estava
ali por ser uma das mais antigas ferramentas usadas na arte da escultura.
Al-u-een, embora se preocupasse com o equilbrio entre os cidados, via a
si mesma, acima de tudo, como bela. Bela e poderosa.
Kent subiu no lugar de destaque. Os outros presentes, usando as ubquas
capas negras com botes no topo, logo abaixo do queixo, estavam prontos
para ouvir o que ele tinha a dizer. Otradicional homemde cabelo raso e fno,
com culos estreitos e a mandbula justa observou a plateia com sentimen-
tos mistos. Faria uma apologia arriscada; previu um discurso tempestuoso,
considerando que quem estava logo ali, frente, provavelmente escolhera
um lugar apropriado para tentar provoc-lo.
Colegas de profsso! Sua voz era arrastada, como se a garganta
precisasse de muito esforo, mas tambm era clara. Caros parlamentares
de Al-u-een, somos espectadores infelizes de uma verdadeira tragdia. Hoje
143
Voiui l
nos reunimos como em um dia qualquer. Mas sabemos todos que este no
um dia qualquer.
Irei mais longe esta manh!, continuou ele. E direi que no somos es-
pectadores de uma tragdia. A tragdia um destino. O destino de Hourin
no era falecer desta maneira indigna. Seu destino era muito mais glorioso.
Mas foi interrompido de maneira brbara. Senhoras e senhores, somos es-
pectadores de um crime. Um crime como esse h muito tempo Al-u-een no
presenciava. . .
Minoru, um poltico sentado em um sof logo frente do plpito, no
impedia que os lbios se alargassem em um sorriso. Regulava-se no apoio
mal fadado; os dentes perfeitamente alinhados em um largo sorriso contra-
diziam os olhos negros que falavam a linguagem da raiva agarrada.
. . . E ns temos que remanescer fortes frente a essa perda e essa ame-
aa. Sim, uma ameaa!
Minoru j ria ruidosamente, chamando ateno. Os cabelos escuros e
lisos altura dos ombros tremia junto com a caixa torcica do homem sar-
casticamente risonho.
Porque enquanto a justia no for feita. . . Enquanto no soubermos
o real motivo deste assassinato. . . No poderemos voltar a trabalhar tran-
quilos.
Ns sabemos porque ele foi morto, senhor Kent. E isso no vai atra-
palhar nossas atividades. Vai livr-las de uma sombra!
O burburinho nasceu como se estivesse preso desde o comeo, espe-
rando por um momento que o libertasse. Kent olhou por alto para as con-
versas dos companheiros. Estavam divididos; em todo foco de conversa
via-se mos agitando-se em discusses.
Ora, senhor Minoru. . . Retomou Kent. O silncio aos poucos retor-
nou. Se o senhor sabe. . . Deveria contar polcia! E se considera que. . .
O falecimento de um parlamentar far algum bem a Al-u-een. . . Ter sido
o senhor a tirar-lhe a vida?
Ora, no seja ridculo! Respondeu ele mais que rpido que as reaes
do pblico. Todos aqui sabiam muito bem o que ele era. Um mago! Ele se
foi por causa disso, no h dvida.
Est fazendo acusaes muito srias, senhor Minoru. Kent come-
ava a descer do plpito, lentamente.
O senhor est tentando glorifcar a vida de um mago, senhor Kent, o
senhor est consciente desse desrespeito com a memria dessa cidade? Ele
no deveria estar nesta casa ou sequer nesta cidade!
E o senhor est dizendo que a vida de um mago de nada vale? Este foi
um crime terrvel! Merece ser punido exemplarmente!
144
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Minoru se levantou. Os dois parlamentares se aproximavam cada vez
mais, numa tensa dana que se construiu ao largo das atenes da pequena
multido.
Se o senhor fosse um homemque se inteira dos verdadeiros problemas
de Al-u-een no diria as besteiras que disse. Dizes que por muito tempo no
vemos umcrime como este. No temos trinta dias corridos, trinta, semque a
polcia tenha que lidar com um alorfo ou um flinorfo morto nas imediaes
da cidade!
Ento o senhor cr que estes magos devemos preservar, senhor Mi-
noru?
Certamente so os mais inofensivos.
Hourin est morto, senhor parlamentar! Devemos honrar sua mem-
ria prendendo seu assassino como demanda nossa justia!
Hourin era um PSTULA! Um CORRUPTO! PENA que no temos
a morte como punio para esse crime, porque no s ele que enfrentaria
problemas, no mesmo, senhor Kent?
O homem que antes discursava perdeu a pacincia, rompendo a linha
que o impedia de cair em luta aberta como se o peso a mais que faltasse
tivesse sido jogado com satisfao. Kent partiu para cima de Minoru; a mo
prontamente alcanando a guarda da espada na cintura, seu oponente fa-
zendo o mesmo. No tiveram tempo para chegar a uma batalha de fato, pois
os polticos prximos a eles os puxaram para trs, impedindo o combate.
MENTIROSO! Bradava Kent, o rosto vermelho de fria, enquanto
era arrastado para uma parede da sala.
Minoru olhou para ele mais uma vez, de longe, depois que se livrou da
tutela preventiva de outros colegas. Ofegava, sentindo as plpebras vibra-
rem no ritmo do corao asfxiado.
Suas atitudes foram, de fato, inadequadas. Onde que estava com a
cabea? Via que Kent parecia to estarrecido quanto ele, sendo este um
indito contato visual, completamente diferente dos outros. Num arrombo
de vergonha, deixou o zunido incoerente da sala para trs.
145
Captulo 21
De Ia-u-jambu a Enr-u-jir
Jen saiu de casa e trancou a porta vermelha. Olhou para cima, onde o
telhado azul podre fazia as vezes de seta, apontando para cima. O resto da
casa, pequenina e bem moldada, toda bord em tijolos fnos, fcaria vazia
por um bom tempo.
Pisou na rua e se concentrou na tarefa. Tinha certeza de que ps tudo
o que precisava na pequena mala gorda. Encaixou-a no fundo da charrete,
junto de Richard, e deixou os braos carem e balanarem como um pn-
dulo aps o esforo. O cu claro, deixando Roun desimpedido, afastava o
frio, trazia pra mais perto a fadiga e mantinha a distncia segura a preguia.
Do outro lado da contenda estava o medo; expectativa azul frente ao des-
conhecido. Distante, mas similar o sufciente para ser confundido com a
letargia que desencoraja quem no precisa de fato viajar.
J podem ir? Perguntou Christine, aproximando-se com o mesmo
divertido olhar de esguelha que sempre lanava a Jen.
Desse jeito at parece que voc est feliz por se ver livre de mim.
Christine riu enquanto as presses do abrao se encontravam, fortes.
Voc realiza um sonho seu e um meu vai junto. Me parece bom!
Jen fcou boquiaberta, e Christine riu mais ainda, travessa. Quando as
risadas cansaram, Jen pensou pela mais cansativa das vezes no porte da
viagem na qual estaria prestes a embarcar.
Eu vou fcar fora por muito tempo.
Uma estao?
Duas. . . Se tivermos sorte.
Richard legal. Voc vai se divertir com ele.
Kinsley havia aceito a proposta de pesquisa. Financiaria tudo, do pr-
prio bolso. Jen nunca imaginara que levaria a cabo aquele sonho louco; a
Universidade nunca a ajudaria. Eram muitos os riscos envolvidos.
Ou talvez eu me canse. . .
Teria todas as despesas pagas: viajaria de charrete at Al-u-tengo, pas-
sando por Enr-u-jir, contando com muitas provises. Teria Richard, o guar-
dio das reunies secretas, como guia. L contratariam um guerreiro do
exrcito da cidade, e ento partiriam novamente. Iriam de charrete somente
147
Voiui l
at Rirn-u-jir, a cidade da chuva, na passagem entre as duas Grandes Cordi-
lheiras do Noroeste. De l abandonariam o veculo e seguiriam pela foresta
da regio a p at chegar ao Pntano dos Furturos, onde encontrariam o que
procuravam.
Richard se aproximava da charrete trazendo uma caixa cheia at a borda
de doces marrons.
No seria uma viagem divertida sem marrom. Explicou, causando
tristes sorrisos.
Boa viagem. Desejou Chris, enfm.
Obrigado. Respondeu ele, ajeitando os novos suprimentos junto ao
resto da bagagem.
Adeus, Chris.
At mais, Jen. Censurou ela. At mais.
Richard subiu na charrete, com Jen fazendo o mesmo pelo outro lado.
Christine se afastou quando Richard, com um movimento rpido e decidido,
fez os dois yutsis avanarem devagar pela ruela frente da casa de Jen.
Os dois viajantes logo chegaram ao incio da estrada que saa para o
oeste, circulando o Lago do Meio. Foi no ponto em que o rio de mesmo
nome desgua no lago que Ia-u-jambu fora construda. Aquele era o se-
gundo maior lago de Heelum, menor apenas que o Lago Ia do Leste.
Saram dos muros da cidade s dez da manh do vigsimo-quarto dia
de inasi-u-sana. Ia-u-jambu era a nica cidade murada de Heelum. Isso se
devia deciso de proibir os magos: toda vez que algum de fora entrava na
cidade, recebia um leno vermelho-berrante que deveria ser usado em todos
os momentos. Caso algo de anormal acontecesse, qualquer pessoa poderia
denunciar o forasteiro, e ele seria imediatamente expulso. Muitas vezes se
discutiu o fato de o sistema fazer da desconfana, prerrogativa, mas tempos
de desespero exigem medidas drsticas. A cidade sempre foi consciente do
preo das medidas, e sempre esteve disposta a pag-lo.
Saram da margem do lago e passaram por dentro de diversas jirs: cr-
culos de casas pequenas e simples, com apenas algumas mais elaboradas,
e vrias plantaes e culturas que continuavam mais ao norte, embora no
na direo em que iam. Em uma hora j estavam perto do lago de novo,
e as plancies, desertas de gente, de casas e de hortas, abriam-se limpas
frente. Jen admirava a paisagem enquanto o vento batia forte em seu rosto;
os yutsis, encorpados, deixavam facilmente o cho para trs.
Jen pensou nos pais, e pensou nos dirios que havia lido. Pensou no que
poderia encontrar a morte? Uma revelao que mudaria muita coisa?
Pensou nas outras pessoas na reunio secreta, que pareciam absortas em
148
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
pensamentos absolutamente transformadores, mas os geravampara prend-
los ali dentro, sufoc-los mesmo antes de lhes dar espao para respirar. Por
que no saam a pblico a respeito do que pensavam?
A primeira parada que fzeram foi cerca de trs horas e meia depois,
quando almoaram algumas frutas e verduras com po. Mas, goiabas e
uma ocasional laranja; rcula, tomate e alfaces e uma surpreendente ce-
noura. No princpio falaram apenas o necessrio para preparar o lanche;
sentaram na grama, comeram, beberam do reservatrio de gua que trou-
xeram e enfm descansaram mais um pouco.
Voc no trouxe carne, certo?
No. . . No valia a pena. Vamos comer melhor quando chegarmos
em Enr-u-jir.
Amanh?
Talvez. Provavelmente.
Ela olhou para a superfcie do lago. O cu estava claro, sem nuvens,
exatamente como antes. O lago s acompanhava a limpidez do cu, sem
protagonismos.
Por que vocs no tm um nome? Perguntou Jen.
Richard olhou para ela por um instante. Voltou a olhar para o lago.
Sabe, Jen. . . Dar um nome para alguma coisa como. . . como dizer
que ela existe.
Ela reforou o olhar para ele, confusa.
Mas o grupo existe.
Para ns.
Mas algo no precisa ter um nome para existir.
Claro que no, verdade. Mas como saber o que algo sem um sm-
bolo. . . Sem algo em que eu possa ancorar todo. . . Todo um conjunto de
coisas e. . . E ser capaz de passar esse smbolo a voc?
Jen pensava naquilo enquanto se perguntava se deveria externalizar
mais dvidas. No fnal, no quis interromper; ele parecia estar tendo uma
oportunidade de fnalmente dizer algo em que estava pensando h tempos.
. . . Enquanto algo no tem limites. . . Pode ser qualquer coisa. Se a
nossa reunio tiver um nome. . . como se reconhecssemos o que ela , e
pra qu ela existe. Ela no tem nome porque queremos que seja a coisa mais
secreta possvel.
Jen sorriu. Richard sorriu de volta.
Por que voc entrou no grupo?
Exrcito. Sa de l porque Kinsley me ofereceu esse trabalho.
Kinsley. Em todos os lugares. Fazendo tudo. Sabendo de tudo.
Ento voc no era especialista em nada?
No. Estudei bastante um punhado de coisas, mas gosto mesmo de
lutar, sabe? Trabalhar com o meu corpo.
149
Voiui l
Voc no parece muito forte. . . Disse ela, a sobrancelha levantada.
Ele riu, fechando os olhos.
Eu sou um cara que gosta de trabalhar com o corpo usando a cabea.
Gosto de estratgia. De ttica. Sou esse tipo de pessoa, entende?
Jen fez que sim com a cabea. Ser que preferia fcar quieta por haver
muito de tudo em sua cabea?
Continuaram pelo caminho margem do lago por outras duas horas,
at que enfm a estrada virou direita e a charrete se afastou cada vez mais,
entrando em campinas cada vez mais ermas. Os limites daqueles terrenos
enormes e sem dono eram as forestas Al-u-bu ao sul e ao oeste, para onde
estavam indo, e a Cordilheira do Norte.
Vamos entrar na foresta? Perguntou ela, quase berrando para se-
rem ouvidos em meio ao barulho dos yutsis.
Vamos! Respondeu Richard. Vai demorar um pouco pra chegar!
Quer dormir?
Quero! Vou l!
Jen entrou na parte coberta da charrete pela lona negra, acomodando-
se, compactada, em um espao com alguns cobertores. No era to ruim,
pensou.
Quando acordou, os ltimos raios de sol ainda brilhavam. O carro saco-
lejava demais para ainda estaremna mesma estrada desimpedida. Ela tomou
o lugar ao lado de Richard novamente, que no se assustou. Passavamagora
por um caminho estreito ladeado por oliveiras grandes e robustas, com as
folhas ouriadas e crespas, e o cheiro era ainda mais agradvel e doce que o
indefnido aroma leve das campinas.
Logo estava completamente escuro, e Jen precisou pegar dois minrios
amarelos e coloc-los em uma pequena cesta de vime tranado acima das
cabeas dos viajantes. Chegaram a uma clareira, um grande crculo sem r-
vores que a estrada cruzava. Era o lugar feito para parar e dormir; um ver-
dadeiro convite. Richard ps a charrete em um lugar afastado do caminho
central, pelo qual outras carroas poderiam passar rpido demais. Deixou a
charrete perto da borda da clareira, e eles se arranjaram para comer alguma
coisa.
O que poderamos caar aqui se precisssemos de carne?
Richard riu.
Voc realmente gosta de carne, no?
No, que. . . Eu sei que vamos ter que caar enquanto estivermos
viajando para ver os monstros.
150
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Com sorte no vamos ter que fazer nada. Vamos alugar um soldado
que faa isso por ns.
Jen meneou a cabea. No seria uma m ideia.
Da outra vez. . . Voc estava me contando sobre as reunies.
Sim.
E. . . O que foi que voc ouviu l?
Uau. . . Seria muita coisa. Precisaramos ir conversando a viagem
inteira.
Temos tempo agora. No precisamos acordar cedo amanh.
Os barulhos dos mais minsculos umenau da foresta acompanharam
um sorriso travesso por parte de Richard.
Eu ouvi muita coisa. Principalmente de Kinsley. . .
Jen balanou a cabea afrmativamente. Arranjou os culos antes de
comear a perguntar parte do que tinha fcado em sua cabea.
Ele alguma vez j chegou a dizer que a. . .
. . . Rede de Luz nunca existiu? Se antecipou Richard. Jen se limitou
a confrmar. J, sim.
Ele me parecia incerto quanto a isso naquela vez que eu fui reu-
nio. . .
Ele no faz das pesquisas anteriores dele base para as prximas.
Explicou ele. Todas partem do que j sabemos e descobrem coisas inde-
pendentemente.
E quando juntamos as partes. . . Disse Jen, pensativa.
A histria dos homens, Jen Disse Richard, descascando uma ma
a histria da diferena.
Que frase. . . Voc acabou de inventar?
No, do Kinsley. Ele fala muitas coisas, Jen, mas. . . Voc vai en-
contrar isso no que quer que ele diga. isso que move ele, entende? O que
motiva as pesquisas dele. o que eu sinto, pelo menos.
Mas o que exatamente isso signifca? Todo mundo diferente.
Mas h muito tempo agimos como se fssemos iguais. Explicou ele.
Claro que existem as desigualdades, mas a Rede de Luz uma coisa que
faz as pessoas acreditarem que devem ser iguais.
Bem. . . Jen sentia-se desconfortvel. Empertigou-se no cho.
No um objetivo ruim. . .
Ele se voc destruir as diferenas em nome dele.
E quando que fzeram isso?
Conveno da modernidade. Voc deve saber o que . Jen sabia
que havia sido uma grande reunio em Ia-u-jambu, convocada em todas as
cidades para decidir uma srie de padres que deveriam ser vlidos para
toda Heelum. Na poca em que fora idealizada, cada cidade falava de um
151
Voiui l
jeito to nico que lnguas praticamente diferentes estavam surgindo. Se
ela no tivesse existido, os homens falariam vrias lnguas.
Mas qual o problema? Ns falvamos uma lngua antes. As diferen-
as estavam comeando a atrapalhar, e. . .
Atrapalhar quem? Respondeu ele, sem nunca deixar de sorrir.
Nas cidades nunca houve tanta represso. As pessoas no queriam falar de
umjeito s. Cada cidade queria manter seu prprio jeito de falar, de escrever.
Voltar a uma linguagem comum. . . Criar uma linguagem comum foi uma
deciso dos chefes, imposta a todo mundo pela fora.
Mas isso foi muito depois de termos perdido a luz, Richard. Enquanto
ela existia vivamos em paz, na Cidade Arcaica. . .
A est. Voc supe que a luz existiu, e isso vira explicao para tudo.
Ele deu mais uma mordida na ma. Mas como explicar a luz?
Foi como se Jen tivesse levado umsoco no estmago, mas semdor. Oque
sobrou foi o atordoamento; ela tentava processar o que ouvira, sem conse-
guir conectar os pontos direito. Havia os mistrios, claro. Heelum estava
cheio deles, mas. . . E se houvesse razo para acreditar que no houvesse
mesmo uma Rede de Luz?
Talvez entendera, enfm, por que seria to difcil ter aquelas reunies
em pblico.
E esses. . . al-u-bu-u-na? Ficam aqui perto? essa a foresta, no ?
essa a foresta sim, mas eles fcam mais pro norte.
E eles, pro Kinsley? O que aconteceu com eles? Como se separaram
da Cidade Arcaica e foram parar l?
Sempre estiveram l.
Terminaram o jantar em relativa paz. O silncio no era exatamente
constrangedor, uma vez que nenhum deles esperava dizer ou ouvir coisa
alguma. Estavam perdidos em seus prprios pensamentos Jen, especi-
almente. Adormeceram dentro da charrete, com a abertura planejada por
Richard para acord-los em um momento oportuno pela manh.
Jen levantou no meio da noite, surpreendida por um pesadelo que ime-
diatamente esquecera. Desperta e de alguma forma decepcionada, fechou
os olhos novamente, procurando voltar a dormir.
No conseguiu. Ouviu umbarulho do lado de fora; umbarulho de grama
pisada. Era lento, como se algum estivesse avanando em direo a ela e a
Richard devagar como se tentasse ver quem ou o qu estava do lado de
dentro, sem ser visto. Jen pensou que no foi nada, e voltou a se concentrar
em dormir, se que algo assim existia. Devia ser um animal.
Outro passo.
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
O medo surgiu com fora, acelerando os sentidos de Jen. Ainda que sus-
pensa em uma sombria incerteza, pensou que poderia lidar com aquilo sozi-
nha; tirou o cobertor de cima dos minrios, que estavam perto dos prprios
ps. Logo ouviu mais passos, que pareciam fcar cada vez mais distantes.
Jen avanou, confante. Saiu da charrete empurrando a parte da tenda
que cobria por fora a entrada. Ps o minrio frente de si como brao, olhou
em volta e pde distinguir uma fgura certamente humana embrenhando-se
na foresta.
Richard. Chamou ela, voltando para dentro da charrete. Ri-
chard. . . Acorda. . .
Oi. . . Oi. Ele levantou-se, os olhos ainda semicerrados.
Tem algum l fora.
Hmm. . . Outro viajante?
No tem charrete e fugiu pra foresta.
Ele olhou para ela por alguns segundos, piscando. Ela devolvia umolhar
quase apavorado para ele.
Eu vou verifcar.
No, no me deixa aqui sozinha!
Ento o que fazer? Ficar sem dormir esperando ele voltar?
Podemos. . . Ir embora agora?
Humpf. . . Ele comeou a rir, de lado. Voc tem. . . Alguma
noo. . . De quo chatos os yutsis so quando acordam?
Piores que voc? Tentou ela, levemente irritada pela resistncia
oferecida.
Eu no fco mal. Respondeu ele, de bom humor, saindo da charrete.
Ela o seguiu, olhando para os lados. Como ele era? Voc viu?
S as costas. Vestia uma capa preta.
Certo. No podia ter sido um. . . Animal?
Jen quase no acreditou.
Eu acho que poucos animais se parecem tanto com homens a ponto
de usarem capas com capuzes, Richard.
Ele pensou naquilo.
. Isso verdade. Ele se abaixou e comeou a mexer vagarosamente
na cauda de um dos yutsis. Eu vou acord-los. Vai demorar uma hora.
Pode ir dormir enquanto isso. Vendo que ela no parecia satisfeita, tentou
tranquiliz-la. Eu vou fcar bem.
No, no isso. que uma hora muito, no ?
A alternativa eles no obedecendo ao meu comando e dando de cara
numa rvore. , eles so assim imprestveis depois de acordar. Ela enfm
aquietou-se, a contragosto. Bom saber que voc no se preocupa comigo,
alis.
153
Voiui l
Ela abriu a boca para falar algo, mas ele a interrompeu com uma risada.
Ela foi enfm contagiada de vez pelo humor. O homem estranho parecia
uma memria distante.
Pode dar a espada para mim? Para o caso de ele voltar.
Certo.
Ela lhe entregou a espada e voltou para dentro. Com a luz, a passagem
de uma ou duas charretes e os passos do colega, que se assemelhavam aos
da pessoa que vira antes, no conseguiu dormir. Talvez cochilar por alguns
minutos, no mximo. Cerca de uma hora depois, como o prometido, ele
entrou na charrete para acord-la apenas para descobrir que ela no havia
dormido. Negando a oportunidade de continuar tentando, ela assumiu seu
posto na charrete e os dois saram da clareira, voltando a entrar na estrada.
Tem certeza que este o lado certo?
Sim. Sei onde coloquei a charrete ontem. Ela no mudou de lugar.
Prosseguiram a viagem mais devagar para que pudessem conversar. Os
assuntos triviais logo fzeram Jen deixar o homem da foresta no lugar de
onde veio. Chegarama uma interseco de estradas, j fora da mata Al-u-bu.
Richard os levou para a direita.
Ainda era escuro; no podiam perceber com toda a clareza o lugar em
que estavam. esquerda as colinas amontoavam-se num tapete verde. Gra-
mneas e abetos pontilhavama paisagemirregular, mas comcurvas perfeitas
como as que uma navalha abre no momento de um corte rpido, inespe-
rado, cheio de raiva. direita a foresta assomava, to densa quanto antes,
com folhagens que em muito transbordavam os troncos fnos das noguei-
ras amareladas e das mangueiras plidas. Jen e Richard continuavam con-
versando, enrolados em cobertores, parando para se concentrar na estrada
apenas quando precisavam virar mais direita, dando passagem mais larga
a quem vinha na direo contrria.
Ento voc no acha que os monstros sejam tudo isso que dizem?
Isso eu no sei, Richard. Admitiu ela.
Como a histria dos furturos?
Foi na Segunda Guerra Moderna. Comeou ela, no sabendo se
ainda lembrava-se de todos os nomes. O governor era. . . Fennvir, de
Al-u-tengo. Governores so magos muito poderosos. Mais que os magos
comuns. Ele se tornou o mestre da cidade, mas, diferente do Mosves, ele
no queria dominar o resto de Heelum.
Mosves foi o primeiro governor. Confrmou ele.
Sim. Mesmo assim foi considerado uma ameaa, e a guerra progrediu
como sempre. No sei dos detalhes, mas sei que no fm ele estava cercado
por todos os lados, mas continuava de algum modo. . . Forando os habitan-
tes a continuar lutando, de alguma maneira.
E a eles viraram os furturos.
154
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Foram transformados, sim. Se tornaram algo que no era mais hu-
mano.
E como dizem que so os furturos?
Traioeiros, basicamente. Respondeu ela, com um leve dar de om-
bros Que vivem em grupos com hierarquias rgidas, mas que so sempre
desrespeitadas.
. . . No parecem gente boa.
No parecem nem gente, essa a questo. . .
Fisicamente, como eles so?
Consegue imaginar macacos sem pelos?
De pele rosada?
Mais avermelhada. So mais ou menos isso.
O sol comeou a nascer, pintando de amarelo e laranja as copas da fo-
resta. Depois de um tempo os raios comearam a incidir diretamente sobre
eles, que largaram os cobertores em favor do calor original. Agora viam a
magnfca paisagem, mas fzeram o contrrio do que se espera de quem as
observa: decidiram ir mais rpido.
Chegaram logo a um ponto em que comer tornou-se imprescindvel.
Alimentaram-se rapidamente, sem delongas ou cerimnias. O sol j bri-
lhava forte no cu de poucas nuvens quando partiram de novo. Deveriam
estar com sono; acordaram muito cedo, dormiram pouco e a estrada era de
traado reto e montono como a maioria das rotas em Heelum. Estavam,
contudo, bemdispostos; emduas horas chegaramao ponto emque a foresta
comeava a subir colinas, encontrando-se mais adiante com a Cordilheira
do Norte: montanhas enormes, rodeada por morros que a estrada cortava,
agora subindo e descendo junto a eles.
Ficaram por algum tempo debaixo da sombra das montanhas, e ento
viram o sol novamente quando comearam a passar por campos parecidos
com aqueles vistos quando deixaram Ia-u-jambu. Richard falava um pouco
sobre aquelas plancies; dizia que ali podiam encontrar rvores cheias de
fores e frutos na poca certa; durante o inasi-u-sana o mundo simples-
mente no era to bonito. Algumas rvores estavam, inclusive, completa-
mente sem folhas, nuas em toda sua complexidade arterial.
Chegaram s primeiros jirs atravessando o meio-dia. Eram casas peque-
nas, parecidas com as de Ia-u-jambu, mas sem muita variedade: amarelas,
fazendo uso intensivo de madeira, parecendo bastante apertadas para uma
famlia. As pessoas que trabalhavam nas plantaes e fazendas de min-
rios (viram duas fazendas do tipo j no comeo da cidade) usavam gorros
de goma escura que tapavam as orelhas, indo at o comeo das costas.
Por que eles usam esses gorros? Perguntou Jen.
No sei. Tradio da cidade.
155
Voiui l
Outras charretes saam da cidade, carregadas de produtos como roupas,
minrios e armas. Os comerciantes, tambm usando os gorros, saudavam
alegremente os viajantes. Jen sentia-se estranhamente bem-vinda. No es-
perava se sentir daquela forma.
No comeo as jirs eram espaadas, mas quanto mais avanavam mais
delas conseguiam ver. Viram ento o centro da cidade: uma combinao
confusa de prdios de dois e trs andares, casas, tendas e gente. As cons-
trues tinham um aspecto de permanente provisoriedade, como se nunca
fcassem prontas de fato. Uma tinha uma parede pintada pela metade; ou-
tra, janelas encostadas parede externa, no cho, como se algum logo logo
fosse coloc-las. A regra era a incompletude; a exceo, as belas manses
que s podiam ser vistas por quem estivesse no centro, escondidas em um
mar de reformismo perene.
Richard avisou que no poderiam prosseguir de charrete na cidade. Ne-
nhuma charrete podia; havia muita gente nas ruas estreitas, e com todos os
sons e todos os cheiros os yutsis poderiam se assustar e causar prejuzos de
todo tipo.
Escolheram um hotel em uma rea ainda no muito densamente ocu-
pada; era tematicamente amarelo, com todas as paredes e decoraes na
cor, excetuando o eventual laranja e o vermelho que ajudam a dinamizar
o ambiente. Enquanto o homem foi guardar o transporte e os animais, Jen
foi at a sala de reservas para escolher um quarto. Reservou um com duas
camas de solteiro, descobrindo logo depois o que mais isso signifcava: um
armrio simples, um banheiro anexo (to ou mais simplista), nenhum sinal
de gua. Assumiram que podiam pedir por ela quando precisassem, mas de
qualquer forma haviam trazido o prprio reservatrio na charrete.
Jen olhou para fora da janela. A cidade movia-se de sua maneira habi-
tual, embora para ela aquilo parecia uma algazarra: tantas pessoas, tanta
energia; tantas coisas a fazer, tantas coisas a lembrar e lugares para se es-
tar. . .
Ela no pde deixar de perceber que no apenas os trabalhadores rurais e
comerciantes-viajantes usavamos gorros. Todos o faziam, embora na cidade
a varincia artstica fosse imensa. Alguns pintavam-no de uma ou vrias
cores, com ou sem padres ou fguras; outros colavam coisas nele, como
papeis ou mesmo cascas de frutas. Jen no vira uma pessoa sequer sem o
gorro impermevel.
Aqui estamos. Anunciou Richard, saindo do banheiro. Como se
sente?
Bem. Nossa aventura mal comeou e j fomos quase assaltados por
um estranho em uma foresta que devia estar vazia. . .
. Ela no conseguia adivinhar qual era a opinio dele a respeito
do incidente. Fiquei um pouco cansado. Meu brao di um pouco. Hoje
156
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
temos que dormir mais para compensar. . .
Sim. Amanh chegamos a Al-u-tengo?
Sim. Chegamos amanh noite.
Jen suspirou ao voltar-se para os moradores de Enr-u-jir e seus gorros.
157
Parte III
Disfarces e mentiras
Captulo 22
As sutilezas do interesse
Na sala de jantar da casa na colina mais alta da cidade, Byron e Gisell jan-
tavam um verdadeiro banquete. Ela, acostumada aos hbitos fnos da corte
de Den-u-tenbergo, comia pouco e regularmente agradecia a hospitalidade
do mago.
Eu que fco muito feliz em t-la conosco, cara Gisell. Dizia ele,
em retorno. Confesso que estou curioso. Como vocs, magos, agem em
Den-u-tenbergo?
H geraes que lideramos o povo. Respondeu ela, com um notvel
orgulho na voz. Nossa cidade produtiva como nenhuma outra, e temos
orgulho de pertencer a uma grande famlia.
Este certamente um belo discurso. Replicou ele, sorrindo. Gos-
taria que pudssemos sentir desta forma por aqui.
Tenho certeza de que no por acaso que conseguimos isto. Nosso
esforo estende-se atravs das eras de Heelum!
Infelizmente esta cidade ainda guarda rancores de um de nossos ma-
gos.
Compreendo. No omitirei nada, Byron. Devo confessar que s vezes
temos pulso forte ao cuidar do nosso lugar.
Mas necessrio, minha cara. Concordou ele, compreensivo. To
necessrio como a unio daqueles preocupados com o bem-estar dos povos.
Ora, Byron, rodeios so lisonjeiros, mas no ligeiros; o que se diz
em minha cidade. Sei que agora voc j mudou de assunto completamente!
Se a senhora no se importa. . . J acabou seu jantar?
Sim. Estava estupendo. Muito obrigada.
Byron fez um sinal com a mo esquerda e dois empregados encostados
parede comearam a retirar os pratos, os talheres, os copos e as travessas.
Ele estava sentado em uma ponta da mesa de oito lugares, com ela na outra.
No perigoso deixar que os empregados ouam conversa? per-
guntou Gisell, desconfada.
Byron sorriu, divertindo-se com a pergunta.
Eles so fis o bastante. Agora, vejamos se temos em mente ainda
o mesmo acordo. Ele se arranjou na cadeira, com a postura mais reta, e
161
Voiui l
juntou as duas mos sobre a mesa. Prima-u-jir possui muitos produtores
de laranjas e de pssegos. Muitos desses produtores esto dispostos a vend-
los para Den-u-tenbergo, eu mesmo inclusive, a um preo mdico.
Que os comerciantes de l podem cobrir para o povo. No temos um
solo muito bom l, Byron, e nossa experincia nos ensinou muito bem a
aproveitar o pouco que temos.
E o pouco que tmmuito nos interessa, Gisell, pois vocs tmminrios.
No podemos trocar um minrio por laranja, claro. Disse Gisell,
com um sorriso transversal no rosto. Mas mesmo a uma taxa diferente, a
troca ser conveniente para as duas cidades.
Byron reclinou-se.
O acordo tratar de diminuir os preos de venda, mas no cobrir o
preo do transporte. Basta sermos ns a fazer isso e ganharemos na transa-
o.
Gisell balanava a cabea, em um movimento quase imperceptvel de
to pequeno.
Como funcionar a aprovao disto em Prima-u-jir, Byron? Isto voc
ainda no disse.
No to simples e direta como em Den-u-tenbergo. Disse ele, com
um ar de preocupao. Aqui temos um mestre e nove parlamentares. Eu
trouxe voc porque amanh teremos a ltima rodada de argumentos, que
como chamamos as discusses antes de votar em uma lei ou um acordo
como este. E ainda enfrentamos resistncia, minha cara. . .
Se me apontar um que no seja mago e possa ser favorvel sem sus-
peitas, posso atac-lo. Ofereceu ela.
Posso precisar deste tipo de ajuda. . . Respondeu ele, surpreso com
o quo direta ela podia ser. Mas estou falando de umtipo de apoio mais. . .
Explcito.
Caterina,
Por favor ajuda. A gente falou com o Rafaello, o menino bo-
nito pro sul das colinas. Na ribeira do Prima. Ele disse pra gente
mandar uma carta. Disse que voc podia ajudar.
A situao aqui no sul t ruim, porque nossas plantaes vi-
vem roubadas. A gente tem uma terrinha, dona Caterina, que cai
pro sul das colinas tambm, mas pro leste do Prima. uma ter-
rinha pequena que a gente tem laranja e uns ps de minrio que
meu av deixou pra mim. So. . .
Caterina lia na sala de estar. Tinha as pernas cruzadas em uma avultada
poltrona azul-marinho. Tirou da frente dos olhos cor-de-terra uma poro
162
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
da franja, nas quais fez voltas com os dedos. Seu rosto compenetrado rela-
xou com a curiosa constatao de que a prxima frase havia sido riscada,
borrada com tinta depois da metade do que parecia ser a palavra So. O
papel no estava nas melhores condies, mas era possvel ler com clareza
a tinta azul, beirando o negro na concentrao dos borres ocasionais.
Ela sabia de onde vinha aquela carta. Conhecia aquela famlia, aquela jir
constantemente depredado pelos donos do terreno vizinho. Estes quiseram
comprar aquelas terras h algum tempo, mas as famlias foram irredutveis.
No podiam levar as rvores de minrio juntas que eram poucas, mas
tinham um signifcado particular para eles.
Fechou o livro, uma pesada pea original de Den-u-pra, trancando a s-
plica amassada ali. Ia juntar as mos, mas mudou de ideia e levou a esquerda
ao curto cabelo castanho mais uma vez. Suspirou sem respirar, s com pe-
sar, estudando com cuidado o que poderia fazer por aquela gentil senhora
que mal sabia escrever; algum deveria t-la ajudado com a carta.
Caterina morava sozinha em uma casa pequena na esquina das duas
mais largas ruas de Prima-u-jir; uma das primeiras a ser construda naquilo
que era ainda um vilarejo, e ponto de ligao entre um teatro e uma casa
muito maior. O casebre de um andar e meio um andar e um baixo sto
no entanto, era tudo de que precisava. Nascida de uma famlia pobre e rural,
interessou-se desde cedo pelos problemas da cidade e pela poltica. No foi
acolhida pelos magos, e hoje bendizia sua ento falta de sorte: encontrou
os alorfos em Kerlz-u-een e recebeu a educao que queria. Passou a morar
sozinha e a defender o que achava certo por dentro do Parlamento. Tinha
alguns colegas, mas no geral precisava se esquivar sozinha pelos jogos sujos
que aprendeu a identifcar e a odiar; no sabia em quem podia depositar
confana, e quem tinha tantas armas para lutar quanto ela.
Passara dos quarenta rosanos naquela condio, e era assim que queria
permanecer. Era jovem ainda, mas sua resoluo vinha de um sentimento
nico e inalienvel: nascera para aquilo.
Algumbateu porta. Desfazendo o enlace das pernas exguas, levantou-
se da poltrona e foi atender a porta, j surpresa com o homem por detrs
dela.
Byron. Disse ela, de prontido. Viu o castelo do visitante prximo
ao dela, mas sem sinais de sua alma. Verifcou as portas do prprio castelo,
para ver se estavam de fato trancadas.
Boa noite, Caterina. Disse ele, sorridente. Posso entrar?
. . . Fique vontade! Respondeu ela, abrindo caminho.
Byron deu alguns passos retos e logo voltou-se para ela, esperando a an-
ftri fechar a porta. A sala era realmente minscula, com espao para duas
frias poltronas em cima de um pequeno tapete quente. Um minrio amarelo
estava pendurado comuma tira de couro de Bufo na parede, amplifcando o
163
Voiui l
tom rstico do lugar que, embora reforado estruturalmente com corvnia,
fora decorado por dentro com placas de morena madeira.
Bem, Caterina, no quero tomar muito de seu tempo.
Tudo bem. De que se trata?
Sabe que amanh teremos uma votao importante.
claro. Tanto que ainda no sei qual o benefcio que teremos nessa
troca.
Conheo sua opinio. Tambm conheo sua atuao.
Como? Perguntou ela, sem saber se havia ouvido corretamente.
Sei que voc uma alorfa.
O qu? Ela tentou no dar importncia declarao, nem destaque
sua surpresa. Sempre precisava calcular bem sua reao. Isso ridculo.
Escute bem. Disse ele, aproximando-se com passos mnimos.
At agora tenho suportado suas artimanhas. Amanh voc estar conosco.
Votar conosco.
Como ousa me ameaar desta forma na minha prpria casa? Os
nervos estavam for da pele; ela se dividia entre ele e seu castelo, esperando
por um ataque que no viria.
Voc sabe o que signifca uma denncia minha. Esta a sua chance.
Vote conosco ou o seu fm.
Saia da minha casa. Ela apontou para a porta, decidida.
Ele a observou por alguns segundos, j sem sorrisos, e foi embora sem
olhar para trs.
claro que era uma questo de tempo at que descobrisse. Precisou de
amigos da regio para ocultar seu castelo durante reunies e votaes
evitando ataques, especialmente de esplicos e em uma dessas ocasies
ele deve ter percebido sua ausncia em Neborum.
Ela se via obrigada a jogar um jogo perigoso.
164
Captulo 23
Argumentos
O Parlamento de Prima-u-jir no era, quanto a qualquer aspecto arqui-
tetnico, um prdio notvel. De um amarelo esparramado, como tantos ou-
tros, misturava-se, com a sutileza de um yutsi jogando-se ao mar, ao cinza
bruto dos pedregulhos das ruas do centro. Tinha dois andares e dimenses
modestas que no impediam a controvrsia; alguns consideravam, com po-
lida crtica, um exagero a alocao de um quarteiro inteiro para um prdio
com aqueles requerimentos. O argumento ganhava fora ao se notar que o
espao mais relevante era a sala de reunies, de frente para os fundos do edi-
fcio, onde aconteciam as deliberaes de rotina. O resto das salas variava
entre banheiros, pequenas estantes-arquivo e salas particulares.
Duas fleiras de cadeiras estavam dispostas ao longo da larga mesa da
sala de reunies, moblia mais suntuosa que o prdio todo junto. No lado
da mesa voltado para as janelas, bem ao centro, sentava Frederico. To
velho quanto Byron, tinha olhos enevoados que pendiam, inescrutveis, em
direo eriada barba negra.
esquerda do mestre estava Caterina, tratando de controlar suas mos;
primeiro a direita, e ento a esquerda. Vernica sentava-se logo ao lado,
uma ruiva de cabelos curtos e feies horizontais que olhava para a mesa
sem demonstrar nenhuma emoo em particular. Vestia um casaco ama-
relo de l tpico do Leste. Mais esquerda fcavam Alessandro, postura reta,
estatura mdia e lbios contrados, e Leonardo, forte e careca. Havia per-
tencido ao Exrcito de Prima-u-jir, e l tinha desenvolvido o vcio de bater
os punhos contra madeira. Ele gostava do jeito particular com que sua pul-
sao parecia se avivar e, mais fria, se assustar com a incomum interao
de que participava.
direita de Frederico estavam aqueles abertamente a favor do projeto
em razo do qual se reuniram para discutir. Byron, na posio mais longn-
qua da mesa, sentava-se ao lado de Gisell. Luca, de pernas cruzadas, parecia
relutante em voltar-se para o lado de dentro. Vestia um casaco longo de pele
de ronco, cheio de vincos infexveis. Marco posicionava-se ao lado, emuma
expansiva posio de debate e refexo. Olhava para todos os lados, e em-
bora tivesse um semblante calmo, sentia-se profundamente irritado com a
165
Voiui l
chuva que caa jocosa l fora. ngela e Alice, completos opostos fsicos,
seguiam-se ao grupo. Esta, com um rosto macilento; aquela, cheia dos ps
ao rosto bochechudo, passando pela batata das pernas, coxas e barriga. Do
lado de fora da sala estava Tornero, sentado com a cabea para baixo e as
mos na nuca.
Gisell levantou-se, incomodada comos gestos pouco sutis que seu corpo
precisava fazer para deslocar-se na sala. Sentou-se, enfm, em frente ao
mestre da cidade, que a observou com idosa impacincia.
Caros parlamentares de Prima-u-jir. Comeou ela.
Em Neborum, Caterina tinha os olhos vidrados na porta; esperava, des-
confortvel e torta, pelo momento certo de agir. Nos outros castelos os ma-
gos observavam, apreensivos, o crculo de edifcios que se formara em uma
campina grande e deserta. Ali no chovia, embora as nuvens escuras bor-
bulhassem para baixo, galopando sem sair do lugar. O castelo de Tornero
estava mais longe, fora do crculo, mas seu iaumo estava ao lado de Byron,
no topo de uma alta torre no castelo de seu mestre.
Devo dizer que me sinto honrada em representar Den-u-tenbergo
nesta assembleia. Continuava Gisell, dirigindo o olhar frreo a todos os
presentes. H semanas vocs vm discutindo o projeto. Ele foi aprovado
em minha cidade. L, todos fcaram muito felizes com os bvios benefcios
desta troca. Garantiremos uma maior diversidade de alimentos, e vocs ga-
rantiro o progresso atravs de mais amplo acesso a minrios de toda sorte.
No vejo por que no assumir este compromisso que visa o benefcio dos
povos de Prima-u-jir e Den-u-tenbergo. Sem mais, espero pelo melhor re-
sultado possvel saindo desta escolha de hoje.
Ela se levantou novamente, semdelongas. Vernica e Caterina digeriam,
em silncio por razes diferentes, aquelas palavras; Leandro e Alessandro
cochicharam. Byron sorriu de leve, tentando no parecer to confante, en-
quanto Marco observava os movimentos esguios de Gisell. Frederico pigar-
reou e, sentindo que falar no era necessrio, fez um sinal com os dedos
para Alessandro, que logo ocupou o indistinto lugar de discurso.
J tradicional no meio poltico, Alessandro herdara de seus pais a car-
reira, mas no o conhecimento mgico. Quando eles faleceram, vtimas de
uma estranhamente forte epidemia de doenas da noite, passou a viver en-
tre parentes no-magos. Cresceu para tornar-se um poltico que irritava
grande parte da bancada de parlamentares, fazendo crescer uma afnidade
com Caterina ainda que ela no ousasse confessar-se maga a ningum,
nem mesmo a ele.
Alessandro sentou-se, mecnico, e comeou um discurso em tom cor-
tante e seco.
Esse pacto entre as cidades traz benefcios pfos populao. um
acordo entre ricos e para ricos.
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Voltando-se para o cu que via atravs das janelas altas do prprio cas-
telo, Caterina ajoelhou-se. Fechou os olhos e abaixou a cabea; quando vol-
tou a abri-los, estavam cinzentos. As nuvens comearam a se dissipar, reve-
lando mais acima delas um cu negro, sem estrelas.
Os magos passaram a olhar para o espetculo com curiosidade, embora
Byron estivesse alerta, preocupado. Marco olhou para as janelas do Parla-
mento, distrado do discurso, para ver se a chuva havia parado.
Existem dois argumentos principais. Em primeiro lugar, que temos
laranjas de sobra. Depois, que temos minrios faltando.
A luz que vinha dos castelos comeava a ser abafada pela escurido que
descia terra, como uma densa neblina negra sugasse pouco a pouco toda
luminosidade. Em alguns segundos apenas, surpreendentemente, o lugar
estava escuro como breu.
Tornero! Conclamou Byron.
O discpulo bomin saltou da torre e caiu agachado no cho vrios anda-
res abaixo. Semdores nas articulaes, ps-se logo de p e comeou a correr,
percorrendo a borda interna do crculo de castelos. Ficou mais e mais veloz;
o que via transformava-se em um borro quase sem sentido.
Suas mos comearam a queimar. No incio um fogo suave e superf-
cial alastrou-se timidamente pelos membros superiores, mas logo ele pare-
cia carregar duas gigantescas tochas incandescentes nos braos. Curvou-se
para baixo enquanto corria, e o fogo encostou-se grama. Um incndio cir-
cular alastrou-se pelo campo, iluminando as imediaes. A nvoa foi recu-
ando para o alto, dissipando-se como um vapor acuado. To rpido quanto
descera, subiu.
O primeiro argumento uma mentira, como procurei mostrar. Nos-
sas laranjas so bem aproveitadas. O que temos potencial. Leonardo e
Vernica balanavam a cabea, compenetrados. ngela e Luca os observa-
vam com glida condenao. O que no precisamos os trabalhadores
sendo mais explorados, sendo pagos a menos pelas laranjas que colherem.
Ou algum aqui ingnuo de acreditar que novos trabalhadores sero con-
tratados?
Tornero voltou num pulo confante para o lado de Byron. Ambos obser-
varam, com a respirao suspensa, o campo iluminado.
O tempo em que nada enxergaram foi sufciente para que Caterina ves-
tisse uma capa negra e chegasse a um castelo com grossas divises entre os
tijolos pretos de sua superfcie. Piras com tochas roxas iluminavam as pa-
redes externas de um bloco de cerca de trs andares, dentro do qual saam
trs torres alinhadas, tambm negras, com no mnimo o dobro da altura da
base do castelo.
As trancas abriram-se para ela, que entrou o mais rpido que pde. A
porta se fechou com um estampido forte e ela se virou, sem saber como
167
Voiui l
encontrar o que procurava.
Foi simples. Alice estava ali, no meio de um salo espaoso cheio de ar-
cos trilobados, descansando pernas e antebraos em uma velha e desbotada
poltrona verde-escura.
Lanou um olhar curioso frente. Parecia ofensiva ao chacoalhar de
leve seu cabelo negro e espesso, mexendo os fnos dedos como se quisesse
mexer os fos do destino da inusitada convidada.
Agora sei com certeza que voc uma alorfa. Seus olhos se estrei-
tavam, acompanhando uma traioeira inspirao.
J que voc est falando comigo aqui replicou Caterina, tirando a
capa com displicncia, que se desfez no ar tambm sei que uma maga.
Voc deve ser uma alorfa.
Eu no fao o que voc faz! Sibilou Alice, irritada. Como ousa
ser to. . .
Como aquela antiga cano mesmo? Interrompeu ela, fngindo
difculdade em lembrar da letra. Ah, claro. . .
To logo o yutsi vermelho
Ponha roupa de homem
Veja, veja, ali no meio
Toda gente some!
O que voc quer?
Garantir a justia.
Humpf. . . Desdenhou Alice, desviando o rosto por um instante.
Ns vamos vencer. Vamos aprovar esse projeto. Isso no tem nada a ver
com justia.
Eu sei que vamos aprovar o projeto. Alice condenou, com fogo nas
entranhas, o uso da primeira pessoa do plural. Depois achou-o fatalmente
curioso. Estou falando de justia com voc, Alice.
E quanto ao segundo? Continuou Alessandro. Alice desviou o
olhar. Caterina continuava alheia. Sejamos francos. Minrios mais bara-
tos no signifcam nada se ainda so caros. Minrios so caros. Nosso povo
no tem condies de compr-los.
Justia comigo? Questionou Alice.
claro. Achei injusto quando soube que Byron no incluiu nenhum
de vocs no plano dele.
No. Disse Alice. Voc no vai conseguir nada do que quer.
Me diga, Alice, por que que Byron cuidou de tudo to pessoalmente
nesse caso? Com mais um gesto, sem tirar os olhos da anftri, Caterina
fez surgir um sof marrom ainda mais sujo que o de Alice. Sentou-se e,
sentindo a distncia entre as duas diminuir, prosseguiu. Por que vocs
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
nunca falaram diretamente com Gisell? Como que ele pretendia dividir o
lucro do transporte com vocs?
Alice silenciou, tentando decifrar Caterina.
Como ?
Eu estou com Byron, Alice. Ele no conseguiria aprovar essa votao
se eu no cuidasse de distrair os meus colegas da questo que realmente
importa.
tudo o que tenho a dizer. Alessandro terminava seu argumento.
Problemas novos demais que solucionam problemas imaginrios. Prima-
u-jir no precisa disso, mestre Frederico. Deixou a cadeira para trs.
A mesa caiu em um silncio desconfortvel. Frederico pediu, baixinho,
para que um assessor preparasse o sorteio da votao.
Byron precisa de mim para saber o que meus colegas sabem. Argu-
mentou Caterina. Eles tentam mudar a cabea de Frederico, e a esperana
deles conseguir outra rodada de discusses.
o que vai acontecer. . . Respondeu Alice, distante. Cinco votos
contra quatro garantem outra sesso. . .
Mas se eu votar a deciso de Frederico. E sabemos o que vai acon-
tecer.
Alice olhava agora diretamente para ela. Seus olhos quase chamusca-
vam, mergulhados em um sentimento novo e irreverente, mas seu olhar
parecia atravessar Caterina.
Byron sempre disse que o transporte era um detalhe sem importn-
cia. . .
Alice, acorde! Obrigados por um acordo entre as cidades, os fazendei-
ros aceitaro qualquer preo. da que vai sair o nosso ganho.
Se voc estiver mesmo metida nisso. . . Ameaava Alice, as palavras
transbordando os lbios fnos.
S vim avis-la porque no acho justo. Pressione Byron. Ele deve lhes
dar, a todos vocs, o que de vocs por direito depois que esse acordo for
aprovado.
As duas continuaram de frente uma para a outra por alguns momentos.
Caterina sorriu, mais tranquila. Olhou para a porta e no momento seguinte
no estava mais ali.
A Frederico foram entregues nove pedaos quadrados de papel nume-
rados. Uma vez amassados, escolheu aleatoriamente um deles.
Byron. Seu voto.
Sou a favor. Disse ele, sem sorrisos.
Em Neborum ele ralhava, baixinho, observando com um cuidado para-
noico o gramado arrasado. O fogo j ia embora, morrendo aos poucos, mas
ele ainda no vira sinal de movimentao fora dos castelos.
Vernica.
169
Voiui l
Sou contra. Respondeu ela, altiva, olhando com um orgulhoso ar
de vitria para Frederico como se os dois fossem os nicos na sala.
Caterina tinha os olhos blindados por um espelho dgua, brigando para
se manter fria e indiferente. Logo isso seria mais difcil.
Luca.
A favor.
ngela.
Sou a favor.
Alessandro.
Contra.
Frederico escolheu mais um papel.
Caterina. anunciou Frederico.
A favor.
Alice arqueou as sobrancelhas. Byron sorria, mas no deixou de se preo-
cupar; Tornero percorria o permetro, olhando na parte de trs dos castelos.
Alice voltou os olhos para Alessandro e Leonardo, que compartilhavam ter-
ror e raiva com olhares desesperados. Vernica parecia ainda mais chocada.
Marco.
A favor. Disse ele, alternando olhares entre um e outro lado da
mesa.
Cinco votos a favor e dois contrrios.
Alice.
Contra.
Todos passaram a olhar para ela, como se sua escolha fosse ainda mais
controversa que a de Caterina. Byron seguiu a direo das atenes por um
instante, devastado de raiva. Percebeu logo o que tinha que fazer.
Ele e Tornero desceram a torre e correram por entre as chamas do gra-
mado at o castelo oposto ao de Byron; logo viram de relance que Gisell os
acompanhava, correndo ao lado.
Leonardo. chamou Frederico. Seu voto.
Byron, ainda correndo, ergueu a mo aberta em direo aos portes do
pequeno castelo. O cadeado explodiu. Tornero e Gisell pararam um pouco
antes disso e, ajoelhados com as duas mos no solo, abriam com tremores
de terra um rasgo cada vez maior no cho. Byron atravessou a linha que
lentamente separava o castelo de Leonardo dos outros; levantou o brao
uma vez mais e a tranca cedeu. Uma lufada de vento escancarou a porta.
Gisell e Tornero levantaram-se e um terremoto de grande escala come-
ou a balanar as estruturas daquele novo pedao de terra que futuava, cada
vez mais distante, apartado deles mesmos por um literal abismo.
Eu. . . Disse o poltico, interrompendo a frase.
Leonardo sentiu-se zonzo e imediatamente caiu para frente, apoiando as
palmas das duas mos na mesa. Comeou a tossir e a piscar os olhos compul-
170
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
sivamente, arqueando-se para a frente com traos de pnico na mandbula
trmula
Ah, no, no, MALDITOS! Berrou Alessandro, levantando-se e ten-
tando controlar o colega. Caterina olhava para o lado, entendendo o que
havia de errado. Engoliu a angstia e permaneceu sentada. Captou um sutil
aceno de Alice do outro lado da sala. PAREM!
Ale. . . Ale. . . Leonardo voltava sua cabea para o lado; passava por
uma crise de falta de ar, e segurava com desespero intil a borda da mesa.
A outra mo puxava com fora o tecido da capa carmim de Alessandro.
Byron entrou no pequeno ptio interno do castelo. No tinha problemas
para se manter constante, ainda que um terremoto atacasse o prdio com
violncia. Parou na estreita passagem entre dois pilares de pedra, e rapida-
mente se esgueirou para o lado. Bateu com as costas em uma das paredes
e olhou, assustado, para o objeto que por pouco no o cortara: uma faca.
Viu Marco, futuando no meio de toda a baguna. Conseguiu distinguir seu
olhar severo e o movimento de seus lbios, que formava um grande, lento e
claro NO.
g. . . gua. . . Um. . . Leonardo tentava falar, choroso, virando-se
para a esquerda e quase caindo de onde estava.
Creio que ele no est em condies de continuar, Frederico! Disse
Byron, levantando-se com rispidez.
No subterrneo azul mal-iluminado de um dos castelos, Alice procurava
por algo em uma sala preenchida por vrias colunas equidistantes. Ao bre-
vemente deslizar a mo sobre um pilar, sorriu.
Frederico! Insistiu Byron. Marcos levantou, interpondo-se entre ele
e Frederico.
Com um suave empurro a coluna caiu para trs, derrubando todas as
outras na mesma linha em um levantar monumental de poeira e pedra.
No! Bradou o chefe poltico. Aquilo estava passando dos limites;
era preciso respeitar uma cerimnia como aquela. No adiaremos nada,
Byron.
Leonardo arfava, mergulhado no prprio suor com os olhos saltando s
rbitas. Parecia mais controlado quando se abandonou de volta cadeira.
Leonardo, qual. . .
Contra! Disse ele, enfm conseguindo se concentrar. Contra. . .
171
Captulo 24
De Novo-u-joss a Dun-u-dengo
Os quatro msicos da banda Buscando deixavam Novo-u-joss s oito
horas em ponto da manh do vigsimo-nono dia de inasi-u-sana. Subiram
algumas colinas, passando por outras jirs mais ao norte, e logo chegaram
a uma extensa ponte de corvnia por sobre o rio da cidade. Aquele era o
Rio Pudro, cuja nascente fcava na Montanha Umejinsel, contornada pela
estrada para o Oeste.
Beneditt carregava um conjunto mnimo da bateria, o que j era peso o
sufciente para ele. Leila carregava as duas guitarras; a dela e a de Leo. Este,
por sua vez, carregava a mala com frutas, verduras e pes compridos, quase
roscas de to secos. Fjor levava seu baixo e uma pequena mala com roupas.
Recebiam cumprimentos alegres de trabalhadores das jirs por onde passa-
vam, j que alguns os reconheciamcomo msicos. Sentiam-se curiosamente
apreciados, invadidos por boas sensaes de justia e autoestima.
Com uma deciso de partir to rpida, motivada por incidentes to re-
pentinos, eles no sabiam muito o que ou como pensar agora que estavam
indo a despeito de todas as discusses. No sabiam que tipo de pblico
os esperava em Jinsel. A esperana variava entre eles.
Vamos passar pela foresta Inasi. Observou Fjor, olhando no mapa.
O que ela tem a ver com Inasi-u-een? Perguntou Beneditt.
Logo vamos encontrar um rio. Respondeu Fjor. o Rio Inasi. Nele
a estrada se bifurca. Se formos para o norte vamos acabar em Inasi-u-een.
O logo de Fjor demorou a chegar. Depois de horas de paisagens seme-
lhantes e pessoas cada vez menos corteses, o desjejumparecia ter minguado
completamente no estmago, e o entusiasmo de aguentar aquele ritmo de
caminhada por dias a fo diminuiu consideravelmente.
No est na hora de comer? Perguntou Leo, tentando no parecer
muito cansado.
melhor a gente comer quando chegar na foresta. Argumentou
Fjor.
Ainda que os cedros e pinheiros comeassem a fcar cada vez mais pre-
sentes, campos ermos mais limpos desenrolavam como tapete o mundo ao
norte e ao leste. O caminho que at agora percorreram fzera a volta na
173
Voiui l
Montanha Umejinsel, da qual comeavam a ver a face norte, mais recortada
que a oriental. Passadas as duas horas da tarde apenas chegaram ao que pa-
recia ser o incio da foresta de fato. Havia uma pequena clareira no ponto
em que a estrada abria caminho por entre as conferas, com folhas de um
verde escuro, porm plido. Compartilharam algumas frutas, sentados em
um crculo, incertos sobre o quanto deveriam comer. Preferiram poupar o
que tinham, comendo pouco.
E ento, Beni chamou Leo. como foi ontem noite?
Hmm. . . Bem. Meu pai no estava em casa. . . Mas falar com a me
foi bom.
Isso bom. Disse Leila, balanando positivamente a cabea.
E a conversa terminou. Depois de planejar a viagem no dia anterior,
entregaram-se ao palco de memrias da noite. Nenhum deles foi capaz de
olhar para o futuro, na distncia confortvel e ameaadora em que ele es-
tava, sem tropear em um passado de peas incompletas. A me de Leo e
Fjor fora embora h tempos assim como o pai, que foi primeiro. A me
de Leila tambm foi, mas sabia-se que j no estava mais em Heelum. No
retornaria mais, nunca mais. O pai, vivo, vivia em Rirn-u-jir cuidando de
uma famlia que tinha entre os membros mais doentes que sos. H algum
tempo no se viam, pai e flha.
Beneditt, no entanto, tinha os dois pais vivos. A me, Serena, era uma
atriz. Ficava em casa a tempos comparveis aos do pai. Beneditt no sabia
se deveria sentir alvio ou inveja ao olhar para os amigos. Sentia-se culpado
por pensar daquele jeito, mas sempre que o fazia sorria com uma rpida
expirao pelo nariz, abaixando os olhos para as mos, como num cacoete;
lembrava da imagem difusa da me levando pela mo um menino como ele.
Com um cabelo como o dele, com uma roupa como a dele, caramelo, densa,
de mangas e pernas longas. Ele resistia, comeando a espernear. Serena,
com uma expresso de profundo incmodo, lanou-lhe um intenso olhar
verde, e as pupilas logo dilataram-se no reconhecimento de umerro. Depois
o par de olhos que Beneditt herdara, mais calmos, voltam-se para o ponto
de vista, e a farra musical da festa de torn-u-sana some numa nota que ecoa,
polmica, mais alto que o resto do arranjo.
Continuaram, como clima ameno favorecendo a jornada por entre a fo-
resta. Viram, invejosos, a primeira charrete mercante passar por eles. Pelo
menos j no transpiravamsob o sol, que os encarava de frente, enternecido.
Alguns veios de gua corriamao lado da estrada, pequenos, emprestando ao
lugar cheiro de terra molhada. Mais vontade, os viajantes chegarama can-
tarolar algumas das prprias canes ainda que a sugesto de caminhar
tocando guitarra, por parte de Leo, no fora bem aceita.
A foresta Inasi fascinava Leila, que fcava imaginando o quanto ela gos-
taria de ser amiga daquelas rvores, fossem elas pessoas. Deviam ser di-
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
vertidas e espontneas, mas com movimentos suaves e gentis. Leo tambm
gostava da sensao de andar por aquela trilha, e gostava de sentir a tex-
tura das plantas com as pontas dos textos, numa mmica involuntria da
companheira de banda.
A estrada seguia reta, sempre em frente. Foi fcando cada vez mais es-
curo, at que foram obrigados a parar.
No devamos ter chegado a um rio? Perguntou Leo.
No andamos o sufciente. . . Amanh chegamos. Respondeu Fjor.
Combinaram que deveriam dormir encostados a uma rvore para que,
brao a brao, pudessem se aquecer em meio ao frio noturno da foresta.
No apenas a estao era gelada, mas aquela foresta no tinha aquele nome
por acaso: inasi, na antiga lngua, era gelo.
As mentes foram silenciadas, mas nem por isso o sono vinha. Estavam
preocupados com a prpria vulnerabilidade. As estradas no eram famosas
por seremterritrio de ladres, mas tampouco eramconhecidas pelo oposto.
Eles no tinham nada de valioso com a exceo, talvez, dos instrumentos,
mais caros em outras cidades mas tinham medo principalmente pelos
suprimentos.
A noite passou, contudo, sem maiores incidentes; se algum dos trans-
portes que os incomodaram durante a madrugada fosse mal intencionado,
nada fez. Ou se intimidou com um grupo mais numeroso ou ainda sim-
plesmente no os vira. No outro dia verifcaram os pertences, que fcaram
espremidos debaixo das pernas, e viram que estava tudo em ordem. Parti-
ram enquanto o sol nascia, com a foresta fracamente iluminada.
Por volta das dez horas da manh encontraram-se com o Rio Inasi, de
gua gelada e clara. Atrilha prosseguia, depois, pela margemdo rio. Quando
pararam mais uma vez, noite, j no mais viam ou ouviam a gua. O sono
de Leila foi perturbado algumas vezes, mas com sorte sempre se tratava de
uma charrete mais veloz. Surpresa foi o fato de os outros no acordarem
afnal, o que mais no ouviriam enquanto dormissem?
Foi apenas na tarde do terceiro dia que enfm saram da foresta, en-
trando em campos largos e abertos. Fjor lhes disse que logo chegariam s
jirs mais perifricas de Dun-u-dengo, s margens do Rio Noroeste.
Leila acordou no meio da noite novamente. Viu as estrelas ao abrir os
olhos. Fjor e Leo dormiam ao seu lado, mas Beneditt no estava l. Ele
poderia ter ido a algum lugar mais afastado para urinar, mas Leila sentiu-
se estranha como se estivesse sendo observada. Levantou-se lentamente,
tentando no acordar os irmos, e olhou em volta. No viu sinal do amigo.
175
Voiui l
Eles no traziam arma alguma, mas Leila pensou que se pelo menos
pudesse fazer algum barulho poderia afastar algum mal intencionado, ou
no mnimo assustar algum animal, fosse esse o caso. Tirou sua guitarra de
dentro da mala e levou-a consigo para perto de um grupo de rvores mais
ao norte, prximo aos limites da foresta de que haviamsado algumas horas
antes, mas que ainda prosseguia, paralela estrada. Viu, ao se aproximar,
algo se mover entre galhos e ramos; no sabia ao certo o qu, mas parecia
ter percebido a presena dela.
Leila?
Ela pulou, num susto, e deu uma palhetada involuntria na guitarra. O
som um F engatilhado dissipou-se quando ela encostou a mo direita
de novo nas cordas, interrompendo a algazarra que assustou at mesmo
Beneditt por detrs dela.
Quer me matar?
No, desculpa. . . O que voc veio fazer aqui?
Vim atrs de voc. Devia acordar algum antes de sair por a, Beni!
Desculpa. Disse ele, ainda atordoado. Vamos voltar?
Vamos. . . Disse ela, andando frente.
Bela espada, alis. Comentou ele. Ela no rira, nem repreendera:
apenas olhou para trs, tentando ver de novo a silhueta que havia identif-
cado. No conseguiu discernir mais nada.
No quarto dia caminharam na maior parte do tempo por um caminho
montono, apesar de belo. Outras duas charretes passaram por eles, mas
ningum viajava a p. Fjor dizia que j deviam estar na metade do caminho
o que era timo, considerando que estavam chegando metade do tempo
que tinham para chegar a Jinsel.
Estava anoitecendo quando avistaram as luzes de cinco casas, quatro
verdes e uma rosa, formando uma linha margem da estrada. Para alm
delas podiam ver arrozais alagados, nos quais o brilho vermelho e amarelo
dos minrios refetia.
Devemos parar? Perguntou Leo.
Podemos ver o que eles podemfazer pela gente. Disse Fjor, decidido,
avanando para a primeira casa. Os outros o seguiram, trocaram olhares de
esperana indiferente.
Bateram porta. A janela, esquerda da porta, estava vedada com uma
cortina alaranjada. Ouviram barulhos, e logo a cortina fltrou uma luz que
surgia gradativamente. Algum se aproximou da porta.
Quem ? Perguntou rudemente uma voz masculina.
Somos viajantes, senhor. Disse Fjor. Queremos saber se. . .
176
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
V embora! Vociferou o homem, no deixando que a frase fosse
terminada.
As luzes se apagaram na casa, e logo no se ouvia mais nada.
Idiota. Disse Leo, baixinho.
Ele mesmo saiu de onde estava, direita de Fjor e um passo atrs, e foi
para a prxima casa.
Leo. . . Comeou Leila, mas ele no se deixou abalar. Bateu porta.
Quem ? Disse uma voz diferente, mas to hostil quanto a outra.
Somos viajantes, senhor, e queramos saber se. . .
No, no tenho nada. Vo embora!
Antes mesmo que o homem terminasse de mand-los para longe Leo
j se dirigia prxima porta, de uma casa tambm verde. Leila olhou para
cima, impaciente, sabendo o que os aguardava nas prximas trs tentativas,
mas foi atrs dele junto a Beneditt e Fjor, to pouco esperanosos quanto ela.
No sabiam dizer se Leo tinha expectativas mais altas, mas ele certamente
parecia obstinado, como se aquilo fosse algo que ele tivesse que fazer, mesmo
sabendo o que aconteceria.
Quem ?
Estamos indo para Jinsel, vindo de Novo-u-joss, senhor, e. . .
Ento continuem indo!
Leo fechou os olhos, respirou fundo, ignorou um outro chamado tmido
de Leila que logo depois se transformou em um chamado srio e partiu
para a quarta porta. As casas eram bastante similares, mas esta era mais
baixa que as outras, e a pintura parecia mais velha e desbotada. Leo precisou
bater duas vezes na porta, e logo uma mulher, parecendo j bastante velha,
veio receb-los com a porta ainda fechada.
Quem ?
Estamos indo para Jinsel, e viemos de Novo-u-joss, e eu gostaria de
saber se a senhora poderia nos ajudar de alguma forma.
Ajudar com o qu? perguntou ela, parecendo desconfada. Do lado
de fora puderam ouvir uma voz masculina dizer Saia da, Ann!.
Se a senhora puder nos deixar dormir encostados casa, ou. . . Se
tiver alguma comida que a senhora no queira. . .
No, no. No temos nada disso aqui. Respondeu ela, fazendo o
barulho de quem ia embora. Mais uma vez a luz sumiu da janela, deixando
o interior da casa s escuras.
Leo, no adianta. . . Disse Leila, irritada.
Eu vou l, Leila, me deixa! Replicou Leo, andando em direo
ltima casa.
Aquela era uma residncia igual, mas diferente; mais bonita e bem cui-
dada, tinha umparapeito na janela frontal, e fores vermelhas saamde vasos
verdes. As paredes, rosadas, fcavam quase laranjas com a luz amarela de
177
Voiui l
um minrio pendurado acima da porta. Leo hesitou antes de bater, e Leila
quase comeou a pedir para que voltassem para a estrada. Mas ele foi em
frente.
Demorou ainda mais que da segunda vez, mas ouviram barulhos do lado
de dentro. Ouviram uma voz feminina, parecendo pertencer a uma senhora,
como nos outros casos, de idade. Uma voz cansada, que arrastava-se pelo
ar.
Quem est a?
Estamos viajando para Jinsel a p. Viemos de Novo-u-joss, e. . .
Vocs sabem tocar guitarra? Perguntou ela.
Todos se olharam, confusos e surpresos.
Ham. . . Sim, senhora.
A porta foi destrancada e fnalmente aberta. Atrs dela surgiu uma se-
nhora com um sorriso doce estampado num rosto pequeno. Ralos cabelos
loiros envolviam uma cabea em formato de ovo, a ponta de um corpo baixo
e rolio envolvido por pudas vestes roxas.
Meu nome Mary Ann. disse ela, abrindo ainda mais o sorriso.
Entrem, vamos! Eu j volto. . .
Enquanto eles entravam timidamente em uma sala pequena, mas con-
fortvel, Mary Ann entrou em um quarto no fm de um curto corredor. An-
tes que todos pudessemse acomodar no sof amarelo-queimado emformato
de U, a dona da casa retornou com uma guitarra.
O instrumento era limpo, e brilhava luz do minrio amarelo suspenso
em um canto da sala. Mas era tambm bastante arranhado, e a mo parecia
estar lascada. Avelha senhora olhou, esperanosa, para os quatro; estes no
sabiam como responder ou mesmo como olhar de volta para ela.
Qual de vocs sabe tocar? perguntou Mary Ann.
E-eu sei. Disse Leo. E ela tambm e eles tambm.
Ela rapidamente estendeu a guitarra, segurada pelo brao, para Leila.
Toque, por favor!
Leila sentiu-se mal. Aquela guitarra lhe dava arrepios; era como se exer-
cesse uma fora sobre ela, uma fora nefasta que a fazia se sentir culpada.
Pensou que deveria aceitar logo aquele pedido, mas no conseguia mover
os braos. Vendo que ela comeava a desviar os olhos em repulsa, Beneditt
ofertou a mo.
Eu toco, senhora.
Ela voltou os olhos para ele, exalando umsilencioso agradecimento feliz.
Beneditt ajeitou a guitarra na perna e, ignorando olhares que sabia serem
certamente vacilantes, tocou uma nota um Sol na corda mais fna. Sorriu,
surpreso, com o som. Lembrava mel; o som se propagava como mel caa de
um favo suspenso. Mas, ao mesmo tempo, era cortante e cido como limo
forte.
178
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Todos sorriram, deixando transparecer umestranho e tenso alvio. Ase-
nhora sentou-se ao lado de Leila, ainda desconcertada, e Beneditt comeou
a tocar uma cano sem letras que lembrava dos tempos de garoto. Seu solo
inicial parecia ter sido feito com aquela guitarra em mente. Era perfeito o
tomque emprestava a uma msica que misturava sonho, ternura e nostalgia
com, na opinio de Beneditt, perfeio.
Quando Beneditt terminou, todos olharam, apreensivos, para Mary Ann,
que olhava para o cho com um ar ausente.
Senhora? Chamou Beneditt, tentando lhe devolver o instrumento.
O homem que eu amava se foi.
Beneditt se recolheu, decidindo fcar com a guitarra.
Seu nome era Scott.
O silncio crescia.
Sentimos muito, senhora. Disse Beneditt.
Ele tocava essa guitarra. Continuou ela. Ele mesmo a fez, sabem.
Leila confrmava de leve com a cabea, sem saber se deveria admir-la
ou tem-la.
Ela sempre. . . Teve esse som?
Ficou melhor depois que ele se foi.
Senhora. . . Comeou Leo, pensando em si mesmo como um ser
sujo por ter que ser pragmtico. Queremos saber se pode nos ajudar de
alguma maneira.
Mary olhou para ele enquanto os outros tentavam lhe repassar apoio.
Para onde disse que estavam indo?
Para Jinsel, senhora.
Leo no conseguiu suportar o momento em que ela lhe fxou os olhos.
Nuvens; eram nuvens cheias, mas da cor do cu. Claros, mas carregados.
Desculpem os meus vizinhos. . . Eles se ressentem muito dos viajan-
tes. Ladres, muitas vezes. Ela continuava, sria. Podem fcar com o
minrio em cima da porta.
Eles sorriram de alegria.
Obrigado, senhora! Disse Leo.
Mas cuidado! Interrompeu ela. Jinsel uma cidade traioeira. . . E
voc, minha pequena. . . Ela se voltou diretamente para Leila, que engoliu
em seco ao ver seus olhos prenderem os dela prpria. Voc pode tentar
evitar a tristeza. . . Mas ela sempre estar l.
179
Captulo 25
Mina de Prata
O quinto dia de viagem comeou com nuvens negras, ameaando uma
chuva que nunca comeava. Apesar do presente da velha mulher que
ainda deixou que dormissem na varanda dos fundos da casa, voltada para
os arrozais nenhum deles sentia-se verdadeiramente vontade. A viagem
drenava suas foras, e Fjor procurava manter a mente ocupada para no
se irritar por antecipao. Se deixasse a cabea deriva, ele logo estaria
prevendo a decepo de no conseguirem nada depois de terem passado
dias na estrada.
Uma chuva fna comeou a cair, e os peregrinos nada puderam fazer a
no ser seguir em frente. No podiam parar, e no havia nada com o que
se proteger sem se cansar mais e diminuir o passo. Passaram atravs de
algumas outras jirs margem do Rio Noroeste, mas no tentaram mais a
sorte com a hospitalidade de Dun-u-dengo.
A noite chegou quando estavam quase aos ps do pico mais ao leste do
Tringulo Seco dos Rios, umvasto campo entre trs montanhas. Apassagem
por entre as duas do norte levava ao centro de Dun-u-dengo, enquanto que
o centro de Jinsel fcava prximo do sul.
Dormiram preocupados. Puseram roupas secas, a comida bastava e a
chuva dera uma trgua, mas nada lhes garantia que o cu continuaria tran-
quilo.
Acordaram no mesmo horrio de sempre, e com o mesmo humor da
noite anterior, especialmente em relao ao prognstico climtico. Antes
do meio-dia chegaram a uma bifurcao na estrada. Avistaram a Fortaleza
Leste de Dun-u-dengo, um largo castelo marrom no qual a estrada direita,
que ia para o norte, esbarrava. O caminho deles estava ao sul, desimpe-
dido. Almoaram e continuaram o percurso. No pararam para mais nada,
e raramente viam outros viajantes. Uma vez apenas viram dois homens ma-
gricelos, com casacos azul-beb rasgados e plpebras pesadas, caminharem
com bengalas na direo contrria. Olhares constrangedores foram troca-
dos, mas foi tudo. De resto s charretes indo e vindo, algumas mais tortas e
desequilibradas as que geralmente tinham mais pressa outras decora-
das, altas e pacientes.
181
Voiui l
Perto da noite a chuva caiu mais uma vez, com ainda mais fora. Procu-
raram uma rvore com uma copa mais avantajada, e pararam ao encontrar
alguns cedros, vizinhos de um bosque de pinheiros fnos, rodeados por ar-
bustos e azevinhos. Dormiram protegendo-se o quanto podiam da tempes-
tade da madrugada.
Foi apenas no outro dia que os sorrisos surgiram novamente entre os
msicos. Depois de comerem a ltima fatia de po embebida na polpa
cremosa do ltimo dos doces marrons que haviam trazido recomearam
a caminhada. A montanha sul do Tringulo fgurava-se bem maior quando
eles viram uma casa.
Ela parecia abandonada; o capimcrescia emvolta das paredes, que j no
eram bonitas: retas e simples, pintadas com um amarelo sujo e irregular, as
janelas pareciamcomo que buracos mal planejados e mal abertos emlugares
que simplesmente no pareciam sob qualquer perspectiva ser os certos.
Comearam a correr, loucos de expectativa; pararam em frente casa
no momento em que uma mulher fechava a porta e saa. Ela mancava
usando um vestido decotado que ia at o joelho um tipo raramente visto
em Novo-u-joss. O cabelo, desarrumado e sujo, combinava com um rosto
mortalmente enjoado.
Com licena. . . Disse Beneditt, preenchendo o silncio que fcou
com o primeiro contato. Chegamos a Jinsel?
A pergunta fcou sem resposta, j que a mulher foi embora, caminhando
em direo ao mato do lado direito da estrada. Passou pelo meio do grupo
enquanto uma lgrima descia pelo rosto.
Que recepo. . . Comentou Leo, incrdulo.
Estamos ou no em Jinsel? perguntou Beneditt.
Sim, defnitivamente estamos. respondeu Fjor, olhando para o
mapa.
Seguiram em frente. No viram mais nenhuma jir: apenas terras pouco
cultivadas ao lado de casas, esparsas umas entre as outras. A estrada era
levemente curva, cobrindo toda a face oeste da montanha referncia da ci-
dade. Passaram a ganhar mais confana quando viam mais trabalhadores
simpticos e receptivos medida que avanavam. Nenhuma cidade bela
na fronteira mesmo, pensaram.
No fm da tarde as nuvens escuras moviam-se para o leste, deixando o
sol aparecer no outro lado justamente no horrio emque desaparecia. Cami-
nharam mais um pouco, e fnalmente perceberam que no havia charretes
indo para o centro. Teriam que andar por mais um dia no dia em que
deveriam se apresentar no Mina de Prata.
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
O centro de Jinsel era multicolorido, mas havia algo de desproporcio-
nal naquelas cores. Ora muito plidas ou de uma atratividade revoltante,
distribuam-se entre letreiros, prdios de trs a quatro andares e gigantes-
cas residncias, que um mais minucioso exame revelava serem pequenas
casas em uma mesma construo.
A cidade tinha uma diversidade natural de cheiros, mas havia um ar
ftido que os msicos encontravam com frequncia enquanto andavam pe-
las ruas abarrotadas. O mau odor poderia vir das fezes de yutsi, j que,
no bastasse a quantidade de pessoas, muitas charretes particulares passa-
vam apressadas pelo meio da multido, quase atropelando desavisados. A
polcia, vestindo uma farda negra que parecia particularmente quente o
que era, em teoria, bom em tempo de frio, mas devia ser horrvel durante a
torn-u-sana era uma presena constante, e no inspirava confana com
seus olhares cheios de ngulos para baixo. Riram com um esgar zombeteiro
quando perguntados sobre o Mina de Prata.
Com licena. . . Vocs sabem onde fca o Mina de Prata?
Duas mulheres fzeramque no coma cabea, e saramde perto dos m-
sicos depressa, olhando para o cho. Juntaram-se s correntes de gente que
criavam a fervilhante malha das esquinas do centro. Ali a populao, que
pulava, sorria e atirava onomatopeias ao esmo, mas tambm evitava susten-
tar olhar para os esquisitos novatos, camufava-se ao cenrio vaporoso com
a maestria dos nativos.
E agora? Perguntou Beneditt, frustrado.
Calma, o comeo da tarde ainda. . . Temos at a noite para achar
esse lugar.
Um lugar que deveria ser fcil de achar. . . Disse Fjor, com um leve
sarcasmo, sem olhar para Leo.
Os dois irmos trocaramolhares irritados por ummomento. Leila virou-
se de costas, evitando ver a possvel briga que surgiria. Todos estavam su-
jos e cansados. Haviam comido pouco durante uma viagem de oito dias
que culminou em uma cidade estranha, em que estava sendo praticamente
impossvel alcanar o objetivo pelo qual fzeram tudo aquilo em primeiro
lugar.
Leila no prestava mais ateno a nada; escutava o rudo das ruas do
cruzamento em que estavam e tambm as vozes dos homens da banda, mas
no os ouvia. Ao dar as costas para eles passara a olhar para um beco longo,
estreito, e menos cheio. Ainda que o letreiro fosse pequeno, estivesse dis-
tante e em um ngulo desfavorvel, Leila conseguia ver o que estava escrito
nele.
Ei. Ela no falou alto o sufciente. Ei, vocs. . . Olhem.
183
Voiui l
Os quatro foram correndo at o lugar; as malas balanavam dolorosa-
mente no ar, batendo em braos e pernas, e os instrumentos, duros e pesa-
dos, os machucavam mais ainda. Chegaram to rpido quanto a alegria de
ter enfm um fato com o qual trabalhar: estavam diante da casa de shows
prometida.
Aentrada do lugar no indicava importncia. Ficava numa pequena casa
de um andar, sem telhado sobressalente. Tanto do lado esquerdo como do
direito fcavammais conjuntos habitacionais esquisitos. Aparede era verde,
e a porta de entrada era de vidro, forrada por dentro com uma tapearia de
goma escura; no era possvel ver coisa alguma no outro lado. O letreiro era
simples: tipos retos de cor preta sobre uma faixa cinzenta.
No havia o que fazer a no ser esperar que abrisse. Sentaram-se so-
bre o cho de lajotas, que formava uma faixa de rua entre as regies mais
distantes, de barro amarelo queimado. No era confortvel, mas estavam
melhores. Conversaram, enfm jogando para fora uma lufada do que quer
que tivessem prendido dentro de si nos ltimos dias. Havia, naturalmente,
muito o que dizer. Falaram sobre expectativas, sonhos, medos, e como os
enfrentaram. Vises, dores de viagem, ideias para novas msicas. Falaram
sobre a alucinada mulher de Dun-u-dengo, que, coitada, devia sofrer muito
com a solido e a perda. Leila no disse que a entendia, at porque no
sabia se realmente esse era o caso; mal chegou a conhecer a me. Sentiam-
se agradecidos pelo minrio que no lhes deixou dormir no escuro naquelas
ltimas noites. Leila apenas desejava poder tirar da cabea aquele provrbio
particular. Enquanto falavam, comeram quase tudo que ainda restava, ob-
servando o dia passar sem pressa no indulgente banquete de parlamentares
(dadas as circunstncias) a que se entregaram.
E essa cidade. . . O que acharam dela? Perguntou Leo.
Horrvel. Disse Fjor, e todos caram na gargalhada.
Concordo! Disse Leo.
Todo mundo, eu acho. . . Adicionou Beneditt.
Essa cidade estranha, e. . . como se no tivesse vida. Disse Leila,
mais sria.
Todos ns j ouvimos histrias de Jinsel. Se metade forem verdade,
estamos mal.
Ah, no deve ser assim. . . Comeou Leo. uma cidade diferente,
mas tem muita gente cheia de dinheiro aqui. As agncias daqui levam a
gente para qualquer lugar.
Leila refetiu quanto quilo por algum tempo.
Levam a gente de volta pra casa?
O sol estava perto do horizonte, no oeste, quando fnalmente viram a
fgura conhecida surgir no comeo da rua, andando em direo e eles com
chaves na mo e um olhar satisfeito no rosto.
184
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Ento vocs vieram mesmo.
Seimor abrira o Mina de Prata s seis e o relgio, pendurado na parede
da diminuta sala, lhes dizia que j eram quase dez. Tudo o que Seimor lhes
disse ao encaminh-los pela porta dos fundos e deix-los trancados ali foi
um seco fquem prontos. Havia gua em cima da mesa quadrada, pequena
e sem graa, mas no havia comida. J era a segunda vez que tinham os
instrumentos em punho. J se prepararam antes havia mais de uma hora,
mas depois de um tero de hora aquilo no fazia mais sentido. Talvez fosse
hora de desistir por outros quarenta minutos.
Acho estranho no podermos ver o lugar. . . Comentou Beneditt.
Escutem. . . Leo tambm precisava falar. Estamos aqui, no esta-
mos? Viemos de longe, e-e essa uma grande chance. . . Talvez haja outras
bandas brigando pela mesma chance e Seimor no queria que soubssemos
disso.
Por qu? Perguntou Fjor, pensando que aquela era uma boa teoria.
No sei. Pra que possamos dar o nosso melhor, talvez. Replicou o
irmo. E isso que temos que fazer, entenderam?
Algum bateu porta. Surpreendidos, arrumaram a postura, preparan-
do-se para o melhor.
Entra! Disse Leila, mais rpida que Leo.
Era Seimor. Parecia estar com um pssimo humor, e mandou que to-
dos fossem logo para o palco, o que deixou Fjor irritado: gostaria de ter um
momento com o irmo. Desde que chegaram e se preparavam para o show
estivera pensando que tudo daria certo, afnal. Foi preciso que Leo acredi-
tasse na banda para que ela fosse a algum lugar. Devia desculpas ao irmo
ou, no mnimo, agradecimentos.
Mas no houve tempo para isso. Seguiu os outros, comSeimor liderando
a fla. Passaram por um corredor escuro, com luzes frias iluminando-os fra-
camente. O corredor no era longo, mas sentiram como se fosse infnito.
Quando ele fnalmente acabou, Seimor continuou a caminhada ao longo do
pequeno palco e se misturou ao pblico, sentando-se no banco mais dis-
tante que continuava sendo prximo. O banco, negro e redondo, estava
encostado a uma chapa metlica azul-marinho que fazia as vezes de papel
de parede. Quando Seimor enfmse acomodou nele e voltou-se para o palco,
sorriu.
O palco em questo no era maior do que o quarto de Leila. A bateria
de Beneditt montada por funcionrios da casa ocupava mais de um
quarto do espao. Todos trocavam olhares confusos, mas foram tomando as
posies usuais. Encararamo pblico: uma coleo aleatria de pessoas que
185
Voiui l
no prestava a menor ateno ao que estava acontecendo ali. Sentados em
mesas de quatro, cinco ou mais integrantes, conversavam animadamente
entre si. No percebiam que havia uma banda prestes a tocar. O lugar era
escuro; minrios azuis e rosas fcavam em um compartimento no teto, e
criavam no lugar um aspecto difcil de explicar, e ainda mais contraditrio
de sentir.
Certo. Disse Leo, voltando-se para o grupo. Fjor e Leila chega-
ram mais ao centro para comear a reunio emergencial. J tivemos um
pblico assim.
No era bem o que eu esperava, pra ser sincero. . . Disse Beneditt,
agitando as baquetas.
Vamos ver se isso mesmo. Disse Fjor, voltando-se para frente.
Seimor! Chamou ele, quase berrando. Tem minrios de som aqui! No
precisamos deles!
Seimor balanou a cabea num gesto sutil, e seu rosto claramente indi-
cava um Tanto faz. Com os cantos dos olhos Fjor confrmou que ningum
mais percebera a conversa. Comeou a esfregar o minrio de som. Leila
sorriu.
o que eu acho que ? Perguntou ela.
Fjor e Leo concordaram.
Vamos ver se no chamamos a ateno dessa gente. . .
Beneditt foi o ltimo a fcar pronto. Cada um testou, da maneira mais
silenciosa possvel, o som alto o sufciente para ser impossvel de ignorar.
Todos comearam a tocar ao mesmo tempo, fortes, incisivos e rpidos;
Beneditt atacava os tambores e os pratos com violncia, e os guitarristas
se olhavam furiosamente. Logo Leila comeou um solo rpido, mas longo,
e Leo a acompanhou enquanto Beneditt fcou ainda mais rpido, com Fjor
ainda mais ousado. Leo comeou a cantar, sorridente.
Se quer chegar perto de mim
melhor logo se decidir!
Voc no parece fcil, mas
Se vier at mim vai cingir
Leo cantava cada vez mais rpido, seguindo o ritmo pulsante; Fjor e
Leila comeavam a fazer vozes de fundo. O plano funcionava: mais e mais
cabeas comeavam a se virar para encarar a banda.
Eu sei que voc quer ver (Quer me ver)
O que eu tenho aqui pra voc (Pra voc)
E eu sei que vai at levar
Mas se for demorar
Pode ser que nunca v voltar a me ter, sim
186
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Leila largava o brao comfora, forando a guitarra a soar forte e potente
durante o refro.
Aposto o mundo que voc quer me ler assim
Passa dor, passa tudo, seja at o fm
Fao tudo pra no ouvir um no
Os trs frente cantaram em unssono a segunda parte do refro depois
de uma virada na bateria.
Aposto contra o mundo que voc quer me ter aqui!
No calor, nesse cho, pode ser ali
Por um beijo me d sua mo?
Leila saa do refro com suavidade, costurando um solo que a fazia sor-
rir para Leo, preocupado em acompanh-la bem. Aquela era uma msica
difcil para ele, em que precisava se concentrar anormalmente na guitarra.
Para Beneditt era simples, ainda que trabalhosa, e Fjor a tinha por fcil.
Ela representava troca rara e valiosa no arranjo da banda: Leo a escrevera,
enquanto Leila produzira a melodia rpida.
As pessoas do bar j no conversavam, e Fjor pde perceber alguns ros-
tos de aprovao e alegria. Ao mesmo tempo via feies carrancudas, como
se odiassem completamente todo aquele barulho. Fjor no pde deixar de
perceber tambm outras cenas no meio do pblico mais direita, em que a
sala se alongava, quase sem visibilidade para o palco.
A msica era to rpida em durao quanto o prprio ritmo que engen-
drava; foram em frente sem parar para a batalha de solos para uma audi-
ncia daquelas costumavam reserv-la para quando tivessem mais ateno.
Ao fnal da msica receberam aplausos no to intensos quanto gostariam,
e logo o burburinho de fundo voltou com fora, como se ningum esperasse
por mais. Deram o interesse que lhes foi forado (a msica estava realmente
alta, afnal) mas no precisavamde mais, obrigado. Voltaram-se para as pr-
prias vidas.
Leo balanava de leve a cabea, com a boca aberta sem que ele assim a
mantivesse. Leila percebia, intrigada, o rosto quase lvido de Fjor.
Seimor fazia sinais para eles enquanto vinha em direo ao palco. Era
isso o que ele queria. O show acabava ali mesmo.
187
Captulo 26
As entrelinhas
Oque foi aquilo? Perguntou Beneditt, entrando na sala dos msicos
primeiro.
Aquilo o qu? Rebateu Leila, ansiosa.
Voc tambm viu, Beni. Disse Fjor, que, apesar da inteno, no
conseguiu articular uma pergunta.
Muito bem, Banda Buscando! Seimor entrava no corredor seguido
do inquieto Leo. Era isso que eu queria ver!
Isso o qu? Fjor estava ainda mais rude do que no primeiro encontro
com o agente.
Ahabilidade de entreter umpblico desinteressado, meu caro baixista.
Seimor sorria, visivelmente mais contente do que quando veio busc-los.
Um show em Novo-u-joss em uma casa de shows fcil de fazer.
Mas no era uma casa de shows qualquer, era o Colher de Limo!
Respondeu Fjor, quase aos berros.
Calma, Fjor! Cortou Leo, a voz to alterada quanto a do irmo.
Seimor, o q-que o Mina de Prata?
Ora, um bar, um bar qualquer!
E aquilo acontece todas as noites num bar qualquer em Jinsel? Cor-
tou Fjor.
Leila no sabia mais para onde olhar. Achava que sua nica preocupao
era se a banda havia sido aprovada ou no, mas agora parecia que aquilo
envolvia algo muito maior. Seimor tinha uma feio de profunda confuso
no rosto.
Do qu voc est falando, rapaz?
Mataram algum l! Um homem enfou uma espada na barriga de
outro num canto do bar! Fjor terminou de falar e passou a mo na testa
suada, dando as costas para o grupo. Leila no vira nada. Podia ver pela
expresso dos companheiros que pelo menos Beneditt vira alguma coisa
tambm.
Ah, isso. . . Seimor no parecia surpreso. Lamento terem visto
isto, eu. . . Eu no vi. Isto foi uma falha da segurana do bar. No representa
uma ameaa segurana de vocs.
189
Voiui l
Leila sentiu-se melhor depois daquela explicao. Todos no ambiente
pareceram melhorar tambm. Seimor olhava para cada um deles, apreen-
sivo, mudando de foco rapidamente.
Isso no muda o fato de que viajamos por oito dias a p pra tocar
uma msica. Disse um Fjor mais calmo, mas ainda rspido e claramente
frustrado.
O modo como vieram para c no tem nada a ver comigo. Respon-
deu Seimor, to direto e frme quanto Fjor.
Ele tem razo, Fjor. . .
Leo!
Senhor Seimor, o que vai ser daqui para frente? Interrompeu Bene-
ditt, com uma voz cansada. O senhor tem interesse em ns ou no?
Leila j havia praticamente esquecido o que quer que havia acontecido
ou o quanto foram mal recebidos naquela noite. Leo levantou a cabea,
como se a realidade da pergunta tambm ofuscasse tudo: seu cansao, sua
fome e o quanto no suportava mais o contato da prpria pele comas roupas
que vestia. Apenas esperava que tudo aquilo tivesse valido a pena. Por
favor.
Conversaremos amanh. Disse Seimor aps mais uma rodada de
olhares para todos os integrantes da banda. Por agora eu levarei vocs
a um hotel. Com tudo que merecem. Um sorriso largo, mas claramente
artifcial brotava de seu rosto. Aquele sorriso nunca parecia estar no lugar
certo. Um bom banho, roupas limpas, camas. . .
Espera. Fjor estava cansado das conversas em que sempre era con-
denado por seu conservadorismo. Odiava ser uma voz de moderao em
meio a sorrisos confantes, e at mais que merecidos, mas precisava ser.
Seimor, pode. . . Nos deixar a ss por um instante?
Beneditt entendia aquela atitude, mas Leila e Leo pareciam no apenas
desapontados, mas desesperados. Antes que pudessem pedir ao agente mu-
sical que fcasse, ele aquiesceu ao pedido e retirou-se, fechando a porta.
O QUE QUE VOC TEM? Berrou Leo, explodindo de raiva.
Leo, para! Disse Beneditt, tambm nervoso.
Leila no queria ouvir mais nada. Sentiu-se confusa, exausta. . . Queria
s poder desligar seus sentidos. Simplesmente dormir de uma vez.
No podemos aceitar esse hotel sem poder pagar por ele. Estamos.
Completamente. Quebrados.
Exatamente por isso, Fjor! Onde voc prefere dormir essa noite, nas
ruas?
Pode ser uma armadilha pra nos deixar com dvidas, seu babaca!
Babaca, ? Essa a nossa chance, Fjor, e voc fca falando de. . . De
coisas que voc no tem nem certeza se viu!
Leo, eu vi tambm, aquilo foi um negcio. . . Mau.
190
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Cala a boca, Beni. . .
No manda ele calar a boca, Leo. Fjor se apressou a dizer, pacfco.
Por qu? Por que no posso mandar ele calar a boca? Porque ele est
do seu lado, isso?
Porque voc no quer ouvir ningum que no diga o que voc quer
ouvir!
E o que isso quer dizer, homem?
Que essa cidade ruim! A gente tem que sair daqui, e eu. . .
A ltima coisa que Leila ouviu foi algum berrando seu nome em meio
a uma discusso cada vez mais barulhenta.
Abriu os olhos. Sentiu uma lufada de vento gentilmente atingir o rosto
e o brao. O teto para o qual olhava era amarelo. Sentiu que ainda era noite;
olhou para o lado e a janela semiaberta confrmou a estimativa. Um minrio
amarelo brilhava intensamente atrs de si, na cabeceira da cama.
Ao se levantar, tentou lembrar do que acontecera, mas s a discusso
entre Fjor e Leo vinha cabea. Pesarosa, voltou a sentir-se ansiosa de
novo. Duplamente, agora que a deciso poderia ter sido tomada: Seimor os
aceitara ou no? O que aconteceu depois que ela desmaiou?
Onde estava?
Aquele era um quarto requintado. Passou a esperar to pouco de Jinsel
que no imaginava mais que podia encontrar dormitrios como aquele. A
cama era larga, e o lenol verde-gua estava impecavelmente liso sobre o
colcho, que era timo. Leila notou que a penteadeira frente estava vazia,
incluindo as gavetas. No obstante, era um mvel muito bem feito. Acima
dele um grande espelho com uma grossa moldura de madeira mostrava que
ela vestia algum tipo de camisola amarela. No cobria os braos totalmente,
e parava na metade da canela; sendo largo, o vento entrava pelas aberturas,
mas o frio era compensado pelo tecido mais grosso que o usual.
Tomou coragem e testou a porta. No estava trancada. Saiu do quarto,
insegura, e se viu em um largo corredor amarelo com vrias portas es-
querda e direita; um tapete vermelho cobria todo o cho, e minrios ala-
ranjados na parede fcavammais fracos medida que Leila, comos batimen-
tos cardacos acelerados, passava. Ela no tinha um bom pressentimento
quanto quilo.
medida que chegava perto do corredor, percebia que esquerda havia
uma grande escada de corrimo prateado e degraus de corvnia. Algum a
carregara.
Chegou ao fm e, no limiar das escadarias, olhou para baixo. Podia ver
parte de uma sala que parecia ser ampla. Era, pelo menos, bem clara; mi-
nrios azuis-piscina davam ao sof vermelho e ao tapete caramelo felpudo
191
Voiui l
um ar encantador. A porta de sada estava logo frente do fm da escada;
era grande e com bonitos detalhes curvos no que parecia ser uma grossa
madeira escura.
Ela decidiu se aproximar; p por p descalo foi descendo as escadas,
tentando ver algo a mais do lugar para onde estava indo. Encontrou um
homem frente de um grande e sbrio relgio que ocupava toda a altura de
uma das paredes da sala. O homem parecia segurar na mo direita um copo
de um lquido verde, cristalino como um suco de limo. Ele certamente
vestia as mesmas roupas de antes, assumindo que apenas algumas horas
haviam se passado.
Sem perceber o que fazia, ela j estava na sala. Observava, temerosa, as
costas do agente.
Bom dia, Leila. Disse Seimor, virando-se.
Ainda noite. Disse ela, rspida. Seu sangue pulsava; era assustador
para ela conseguir senti-lo. Que lugar esse?
a minha casa. Respondeu, comeando a andar.
No chegue mais perto, p-por favor. Pediu ela, mostrando vigoro-
samente as palmas das mos para ele, que parou onde estava. Ento este
o hotel de luxo que voc nos trouxe?
Ah no, no, claro que no! Defendeu-se ele rapidamente. Seus
amigos j esto no hotel, aproveitando-o muito bem, eu diria.
O que voc disse a eles?
Voc quer saber a verdade ou o que eu disse a eles? Perguntou ele,
srio. A mente de Leila deu um n. Felizmente para voc, as duas coisas
so a mesma coisa.
Para de brincar comigo. Disse ela, tentando parecer ameaadora.
Como? Mas. . . No h brincadeira alguma, Leila! Disse ele, es-
tupefato, quase ofendido. Eu disse a eles que eu sou um agente musical,
mas no sou o nico responsvel por escolher vocs. Minha opinio geral-
mente basta, mas h pessoas com as quais preciso conversar primeiro. Por
isso disse que amanh conversaramos.
E se nada der certo?
Vocs saem de Jinsel sem dvidas. O hotel todo por minha conta.
Leila deveria fcar mais tranquila. Pensou que se ele estivesse dizendo
mesmo a verdade poderia enfm se acalmar.
E eu? O que aconteceu comigo?
Disse a eles que a levaria para uma casa de sade.
Ela riu nervosamente.
Mas me trouxe pra c.
Ele se virou e deixou o copo em cima de uma mesa no canto da sala,
logo ao lado do relgio. Leila viu que eram quase duas horas. Ele se virou
novamente e se aproximou dela, ligeiro. Ela sentiu-se estranhamente mais
192
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
calma, mas sabia que no deveria. Ele chegou to perto que ela podia sentir
sua respirao, ainda que os corpos no se encostassem. Uma respirao
azeda. Sua mente lhe dizia para ter repulsa daquele homem, que agora a
olhava de uma maneira penetrante e invasiva; ela esperava, numa curiosi-
dade mrbida, para ver o que ele teria a dizer. No percebeu que lgrimas
comeavam a sair dos prprios olhos at que teve que enxug-los com um
movimento brusco.
Durma comigo, Leila. Disse Seimor, lascivo, para o horror de Leila.
Durma comigo e ter tudo o que sempre quis!
NO! Ela berrava, mas no conseguia convencer a si mesma a sair
de perto dele.
Durma, Leila, e ter tudo o que sempre sonhou! Ele avanou sobre
ela, que recuou at bater na pedra glida da escada. Te darei fama! Uma
vida com essa banda! Uma noite, Leila, uma noite!
NO, seu MONSTRO! Ela berrou, e saiu de perto dele, correndo
desajeitada para a porta da frente. Estava trancada.
Eu destranco pra voc, Leila! Disse ele, o que a fez virar e ouvi-lo.
. . . Se voc quiser. Mas pense, pense bem. . .
No quero pensar! Abre essa porta agora, Seimor!
No s uma oportunidade, Leila. todo o seu futuro. . . Se voc
no aceitar, possvel que seja cada vez mais difcil encontrar lugares pra
tocar. . .
Ela olhava para ele, despencando em um poo sem fundo de desespero.
Se aquilo signifcava o que ela achava que signifcava. . .
Seimor. . .
Chega de brincar! Ele vociferou, irritado. Voc tem que decidir,
Leila. . . No vou fazer nada fora com voc. Estou cansado.
Ela percebeu o quanto odiava aquele homem, que lhe deu esperanas
e agora dava terror. No havia outra sada daquela casa. Talvez houvesse
uma sada, mas no havia um modo de sair dela completamente. Para onde
iria? Jamais poderia estar segura de que a infuncia dele no se espalhava
pela cidade inteira. E os outros estavam presos a uma dvida naquele hotel
se ele a chantageava daquele jeito, nada que ele disse antes tinha mais
credibilidade. Oque ele seria capaz de fazer comeles at que ela se rendesse,
aceitando suas condies?
Ela no podia deixar isso acontecer. Veio a Jinsel por um sonho. No s
o dela. O de Leo, de Beneditt, de Fjor.
Pensou em Leo. Pensou no prprio futuro, e no que a velha senhora de
Dun-u-dengo disse.
193
Captulo 27
Feiura
Os al-u-bu-u-na se organizavamdentro de uma clareira larga e bempro-
tegida no corao da foresta Al-u-bu, perto das encostas austrais da Cordi-
lheira do Norte. Prometeram fdelidade aos magos desde os primeiros tem-
pos do Conselho, recebendo em troca a garantia de que ningum exploraria
a regio procura de novos minrios uma ideia de forma alguma impen-
svel, j que aqueles troncos intocados poderiam esconder algum segredo.
Os representantes do Conselho partirampela manh. Uma viageminc-
moda, em que atravessaram as colinas do centro tendo que se proteger da
chuva com a cobertura da charrete. Desmodes silenciosamente observava,
despreocupado, o caminho que os yutsis venciam com agilidade. Robin es-
tudava, frio, sua frieza. No precisavam chegar rpido, mas Robin quis ver
at onde Desmodes iria sem dizer nada. No perguntou pela parada para
o almoo, aceitando que a viagem seguisse dia adentro. Viraram ao sul na
estrada que cortava a poro leste das colinas, e s pararam mais adiante,
em um ponto do trajeto que, parecendo aleatrio, era na verdade o lugar
certo para avanar na foresta at os al-u-bu-u-na.
Comeram sombra de copas pouco largas, que deixavam cair gotas
aqui e ali; resqucios da tempestade que ia embora em direo ao oeste.
Preparavam-se para comear uma curta caminhada; isso era tudo que ainda
lhes restava, j que dali a cerca de uma hora seria preciso parar de vez. No
valeria a pena encontrar o povoado noite, j que os guerreiros no deixa-
vam nenhum estranho se aproximar. Estariam mortos antes que pudessem
averiguar os castelos dos sentinelas.
Desmodes comia voraz e rapidamente, sem cruzar olhares com Robin
uma nica vez. O homem mais experiente fcava imaginando no que aquela
estranha nova adio ao Conselho estava pensando. Como era possvel que
no se preocupasse, j que de nada sabia, com o lugar onde deixariam a
charrete para entrar na mata mais fechada? Foram em frente, de qualquer
forma, deixando o veculo para trs.
Desmodes no questionou o caminho, embora parecesse coletar avida-
mente cada detalhe do trajeto, olhando em todas as direes a todo mo-
mento. Ou era isso ou estava com medo, mas Robin conhecia o medo e
195
Voiui l
torcia a boca ao desistir de procurar por traos dele emDesmodes. Por outro
lado, ainda no havia motivo para isso. No havia sobressaltos de qualquer
espcie na caminhada.
Robin parou em um lugar mais espaado entre as rvores, perfeito para
descansar. J era escuro demais, e o passo fcara lento. Tirou quatro min-
rios amarelos de um bolso interior na capa laranja, que comeou a pendurar
em galhos baixos das rvores. Ao se aproximar da ltima rvore, a luz foi
enfraquecendo, e ao pestanejar de Robin a luz revelou um rosto masculino
embrenhado no escuro.
Desmodes afastou-se para trs aos tropeos, assustado com aquele mi-
metismo, certifcando-se imediatamente quanto falta de castelo vista. O
estranho, vestindo capa e capuz negros, ria, entretido. Robin olhava para o
cho, respirando devagar com o minrio ainda suspenso mo; as sombras
ao redor da foresta mostrando o quanto ela tremia.
Robin. Que prazer em rev-lo.
Tudo nele, da voz cor da sombra, parecia falso. Desmodes o observava,
lvido, e via, compupilas j atentas, umrosto de tal maneira desproporcional
que os olhos pareciam sair dos eixos a cada vez que os msculos da face
contraam. Sua pele era clara, mas ao mesmo tempo escura; talvez cinzenta,
umtompobre de verde. Foi apenas preciso que ele falasse para que seu rosto
alongado fcasse mais largo. Seu sorriso era to maligno quanto civilizado.
Qual o seu nome? Perguntou Robin.
Meu nome . . . Olhos esbugalhados voltaram-se para o canto su-
perior esquerdo, pensativos. Starcus.
Robin assentiu.
Tire essa luz de cima de mim. Robin abaixou o brao. Que motivo
traz voc aqui para falar com o meu povo, Robin? E vejo que trouxe um
amigo. . .
Voc um alorfo? Perguntou Desmodes, irritado.
Humpf. . . Respondeu o homem, como se achasse a pergunta sar-
cstica. Ele foi circulando a dupla de magos at o prximo minrio, a alguns
ps de distncia. Robin olhava torto para o outro mago. Eu pareo aquilo
que voc v quando olha para um. Mas no, no sou um alorfo. Nem um
flinorfo.
Mas no vejo voc.
Fique quieto, Desmodes! Repreendeu Robin.
Hmm. . . Talvez por que eu no exista? Respondeu Starcus, estrei-
tando os olhos para o interlocutor. Eles no voltaram ao formato anterior
ao voltarem-se para Robin. . . . E voc no me respondeu ainda, Robin.
Vim renovar o arranjo.
Renovar? O que h de errado com ele?
196
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
O interesse em sua voz jamais deixava de soar falso. Era como se sou-
besse a resposta, mas perguntasse mesmo assim.
Nada. No h nada de errado. Vim garantir que continue em vigor.
Robin era mais imponente, alto e forte que Starcus, mas aquele parecia se
encolher diante deste, com uma expresso corporal refreada, que suspirava
Por favor, deixe-nos em paz. Starcus olhou de esguelha para Desmodes,
que mantinha-se mais atrs exibindo a orgulhosa altivez.
No cuidarei da charrete dessa vez, Robin. No gostei do seu amigo.
Starcus deu as costas e partiu. O minrio mais prximo comeou a bri-
lhar mais forte, mas no se pde ver muito mais do vulto negro, que logo
misturou-se s plantas, sumindo na escurido.
Robin voltou-se imediatamente para Desmodes.
Voc desconhece os mistrios de Heelum, seu insolente estpido!
Eu os conheo. Respondia Desmodes com a mesma frmeza. Sou
um mago.
Robin bufou, pendurando o ltimo minrio de qualquer jeito e sentando
no cho.
Magia e minrios so processos. . . E coisas. Explicou, tirando as
botas. Voc no conhece os mistrios. Mistrios de verdade.
O que era ele? Perguntou Desmodes, ainda de p.
No ouviu o que ele disse? Ele o Starcus. Robin olhou brevemente
para Desmodes, que ainda estava no mesmo lugar, antes de continuar.
Seu nome Lato-u-nau. Ser feio, em na-u-min.
Ele no. . .
. . . No parece feio, mas s porque jamais mostra a verdadeira forma.
Todo dia tem uma aparncia diferente. Escolhe um nome diferente.
Desmodes balanava a cabea.
Se sabe tanto sobre os mistrios, por que falou daquele jeito?
No sabia sobre ele.
Ah. . . Sim.
Desmodes permaneceu em p. Robin deitou de barriga para cima.
Lato-u-nau o inimigo de Al-u-bu. Al-u-bu o mistrio que cuida
dos al-u-bu-u-na.
O que Lato-u-nau quer?
No o que quer, mas o que faz. Robin j respondia de olhos fecha-
dos. Armadilhas. . . Ele ardiloso. Paciente. Brinca com os al-u-bu-u-na
como se fossem caa. Al-u-bu os protege. Ele a vence, de vez em quando.
Mas no sempre, j que ele . . .
. . . Parte dela. Completou Desmodes.
Robin assentiu com um aceno que Desmodes, olhando para baixo com
o queixo rente em direo ao horizonte, pde apenas intuir. Ajoelhou-se
197
Voiui l
frente da cabea de Robin e, comumgolpe ligeiro, sacou a espada e encostou
a lmina sobre o pescoo do mago bomin, que limitou-se a abrir os olhos.
O que est fazendo?
Da prxima vez que pensar em me chamar de insolente estpido, es-
tar morto.
Voc ambicioso. Respondeu ele, levantando as sobrancelhas.
Mas se me matar, jamais sair dessa foresta com vida. Ganhar a antipatia
de Lato-u-nau no foi sbio, Desmodes.
Oesplico sustentou o olhar para a vtima empotencial por algumtempo
a mais antes de guardar a espada.
Quando Robin acordou, Desmodes j estava recolhendo os minrios de-
pois de haver terminado o desjejum. Estava, em suma, pronto. Robin no
recebeu uma palavra de explicao quanto quilo, e tampouco o questio-
nou. Desmodes parecia mais calmo; to centrado quanto fcava na apatia
que Robin j considerava seu normal. O fato de que j existia uma norma-
lidade no tornava as coisas mais amenas: observava o companheiro com
frequncia, cuidando da distncia entre eles.
Seguiram por cerca de uma hora e meia at que puderam ver os castelos
murados e bem protegidos dos al-u-bu-u-na em Neborum podiam v-los
ali, os trs, rapidamente se aproximando, mesmo que no enxergassemmais
ningum na foresta Al-u-bu.
No faa nada precipitado. Advertiu Robin, interrompendo a cami-
nhada. No tente domin-los.
Dois homens praticamente nus surgiram por detrs dos magos, surpre-
endendo-os.
Prima-u-na naufa ne! Exclamou Robin, com as mos erguidas.
Prima-u-na naufa ne!
Eles tinham a pele bronzeada e vestiam cangas de palha entrelaada,
trazendo a perna desnuda da metade inferior da coxa para baixo, bem como
o tronco e os membros superiores. Traziam na barriga lisa inscries em
vermelho vivo, pintadas numa caligrafa cuidadosa e perfeccionista; pare-
ciam-se com as palavras al-u-nauenago em um e revono, embora as le-
tras n erammais compridas, e o g perigosamente prximo a umnmero oito.
Carregavam arcos longos, feitos com uma espcie dourada de madeira; er-
gueram as armas, apontando-as para o tronco dos visitantes, que se viraram
para eles.
Neornauene! Resmungou um dos guerreiros.
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Ma! Disse Robin em retorno. Desmodes continuava parado mais
atrs, encarando os cidados daquele povo enquanto eles dirigiam olhares
afados para o outro mago. Robin naufa naue, ka prima-u-na naufa ne!
No naufa onmo? Perguntou o outro guerreiro, que no estava to
agitado.
Desmodes naufa no. Prima-u-na naufa ne. Ne neor tun-u-jir.
Eles abaixaram as armas vagarosamente, ainda ftando-os de forma des-
confada.
Eles nos entendem? Perguntou Desmodes.
No.
Podemos mat-los.
No. Robin lanou a ele um instantneo olhar de reprovao. Se
eles no chegarem vivos aldeia ns no entramos nem samos.
No demorou muito para que o comboio chegasse aldeia, com os al-u-
bu-u-na atrs dos magos, incentivando-os a seguir em frente. Estava ali um
espao enorme sem rvores, com uma fumaa ganhando a liberdade do cu
a partir do centro de um crculo limtrofe de cabanas marrons.
Aluz do sol, emseu monoplio de claridade, emprestava ao lugar inteiro
arenoso sotaque. Um veio de gua passava ao largo da clareira, descendo
da Cordilheira do Norte, para a qual eles tinham uma privilegiada viso. As
roas frente e s vezes ao lado de cada cabana foresciam e quebravam o
clima plido com verdes e vermelhos mais vivos, logo neutralizados pelos
plos sujos de capivaras e coelhos que corriam pela rea. A fumaa vinha
de uma fogueira de razovel tamanho, atrs da qual estavam um homem
sentado no cho com as pernas cruzadas e um outro de p. O resto da aldeia
estava em torno dos visitantes, em cerrada formao redonda, com apenas
uma brecha preparada para que os dois passassem para o lado de dentro da
roda.
Robin e Desmodes entraram, sentando-se frente da fogueira. Desmo-
des cuidava para imitar Robin, seus movimentos sempre atrasados. Perce-
beu que reproduziam a posio do raqutico senhor sentado frente deles,
que tinha um rosto enrugado e a boca trmula, mesmo enquanto no falava.
Seus olhos pequenos e ldicos se fxaram sobre Robin, mas ele no sorria.
O que estava em p, com as mos para trs, era mais jovem, e portava-se
de maneira disciplinada e asctica, o rosto imperturbvel, simtrico e limpo.
Parecia esconder, por debaixo do escuro e curto cabelo seco, um tipo nobre
de bravura.
Desmodes olhou em volta enquanto os outros homens, divididos pela
fogueira, no comeavam formalmente a conversa. Os componentes do cr-
199
Voiui l
culo humano tinham a cor da pele e a dos olhos parecida escura com
um formato do rosto bastante familiar entre todos. As palavras, por vezes
duas ou trs, em na-u-min, eram vistas em um festival majoritariamente
rubro, negro e roxo ao longo de barrigas, braos e canelas; algumas expres-
ses mais apagadas, outras mais orgulhosas. As mulheres vestiam a mesma
saia de palha que os homens. Alguns usavam colares; outros, braceletes,
e ainda havia duas ou trs excees que usavam vestes longas, geralmente
azuis. Pessoas de todos os gneros mantinham os cabelos curtos, altura
da orelha, e Desmodes no conseguia ver um nico fo loiro, embora alguns
fossem de um castanho que beirava o ruivo.
Uma ltima caracterstica, desta vez mais circunstancial, fazia com que
todos fossem bastante homogneos aos olhos de recm-chegados: estavam
armados com arcos, prontos para disparar fechas contra os estrangeiros.
De crianas a idosos, todos fexionavam a fecha contra o arco. Ten-
sionados e virados de lado, no sorriam ou conversavam: como soldados,
esperavam uma ordem para soltar a mo e dar incio a uma morte inevit-
vel. Os magos estavam com a vida por um fo, dependendo da mo frme de
crianas que no deveriam ter sequer dezesseis rosanos.
Por que fazem isso? Perguntou Desmodes.
No somos de confana. Explicou Robin, semdesviar os olhos. Se
algumdeles fzer algo inesperado, o resto dispara. uma medida preventiva.
O velho homem falou algo em na-u-min. Robin estava acostumado com
a lngua, mas no a falava to fuentemente a ponto de no precisar da tra-
duo feita pelo homem mais novo.
Os al-u-bu-u-na desejam saber o que os homens magos querem.
Queremos saber se o acordo ainda vlido. Disse Robin, olhando
diretamente para o al-u-bu-u-na mais velho. O jovem traduziu a questo,
e logo interpretou a resposta, que veio acompanhada de gestos com a mo,
que veio de uma batida no peito do mestre ancio e viajou por uma demons-
trao abrangente de todo o entorno da aldeia.
Enquanto nossas fronteiras estiverem protegidas eu, Termono, e ns,
al-u-bu-u-na, seremos leais.
Pedimos permisso para permanecer por algum tempo antes de re-
tornar.
Orosto do homemmais velho se fechou ao entender o que Robin quis di-
zer. Parecia ressentido e at mesmo acuado enquanto resmungava algumas
palavras no prprio idioma.
Podem fcar, mas no so bem-vindos aqui.
Obrigado. Disse Robin, soando verdadeiramente agradecido.
Depois da traduo, o velho se levantou e, acompanhado pelo tradutor,
juntou-se ao crculo de pessoas com os arcos prontos para o disparo. No
sendo mais exceo, serviu-se de uma arma e assumiu um posto. Todos
200
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
amontoavam-se para conseguir, mesmo por de trs de uma grande quanti-
dade de pessoas, um ngulo bom para atirar.
Voc pediu para fcar. Comentou Desmodes.
Para consertar a besteira que voc fez. Respondeu Robin. Temos
que encontrar Starcus de novo para que voc se desculpe, e o dia no serve
para isso. S fque quieto desta vez.
201
Captulo 28
O Prlogo da Jornada de Nariomono
O pequeno riacho que descia das colinas cheias de rvores passava fur-
tivamente pela clareira dos al-u-bu-u-na e entrava novamente na mata. Na-
riomono, que todos ali conheciam por Narion, seguiu o curso dgua at
avistar o que procurava: A sombra de uma rvore cheia de histrias. Na-
quele momento, ela signifcava apenas um lugar afastado da reunio, onde
poderia refetir em paz.
Agachou-se, acomodando os ps na terra escura at descobrir o lugar
ideal para eles. Ouvia ao falso silncio da mata, permitindo que aquilo lhe
trouxesse harmonia. Ficara um pouco inquieto na presena dos magos, no
sabia bem o porqu. No confava neles, embora sentisse uma espcie de
simpatia que ele tratava de abafar.
Narion era o tradutor da aldeia, responsvel por qualquer comunicao
com o mundo do lado de fora. Sabia falar a lngua moderna que nunca
ouvira ser designada como uma lngua diferente, o que o irritava considera-
velmente porque passara cerca de quatro rosanos em Ia-u-jambu. Sara,
vira o mundo em toda sua extica glria, e retornara inclume.
Olhou para o alto, com as negras pupilas danando ao focalizar dife-
rentes folhas, galhos e tons de verde. No voltara inclume da viagem, ao
contrrio do conceito popular que o transformava pouco a pouco em quase
mito.
Narion era um guerreiro com um inimigo particular. Na foresta Al-u-
bu, lugar que o corao jamais abandonou, estava tudo que ele aprendera a
amar, mas tambmdois dos maiores perigo que conhecera. Umdeles era um
perigo que vinha de dentro. Algo que nunca ia embora; apenas repousava,
suspenso no ar.
Desde pequeno experimentava aquilo que no ousava nomear. Sensao
forte e quente que o envolvia e o embebia pouco a pouco em insanidade
e vontade.
Lembrava-se com nitidez do dia em que ele e trs amigos brincavam na
mata, cansando-se por esporte em uma dana chamada treneor. Os pas-
203
Voiui l
sos de treneor eram simples, mas fcavam mais complicados, j que a ideia
era que a velocidade crescesse com o tempo. Encaixados pelos quadris, as
duplas pisavam para frente e para trs, seguindo o ritmo que todos canta-
rolavam com vozes ribombantes.
U. . . Bi, Tro, U. . . Bi, Tro, U. . .
No deviam ter mais de doze rosanos; os garotos, Nariomono e Kan-
mono, e as garotas, Kamoni e Barmoni ou simplesmente Narion, Kan,
Kami e Bari. Cada afastamento por parte de um dos integrantes da dupla
signifcava uma chance de fazer algo diferente. Narion danava com Bari e,
levando os braos frente, a jogou para trs, para depois pux-la novamente
em um giro rpido, que terminou com um giro dele mesmo. Logo estavam
de volta mesma posio de antes.
Danar era divertido, mas no deixava de ser um jogo um dos mais
complexos, no qual Kan e Kami eram melhores. Conheciam mais movi-
mentos. Com uma sutil indicao de Kami, Kan girou, mas logo foi travado
pelo brao direito dela, que o girou na direo oposta. Ela ento girou pelas
costas, agachou-se para depois subir rapidamente, e os dois acabavam de
frente um para o outro de novo. Com suavidade uniam-se, voltando para a
dinmica mais simples da dana, que fcava ainda mais rpida.
U. . . Bi, Tro, U. . . Bi, Tro, U. . . Bi, Tro, U. . .
Danar exigia coordenao e intimidade. Qualquer parceiro poderia to-
mar a iniciativa de se afastar, dando incio a uma srie de passos em que os
danarinos precisavam indicar o que podiam e queriam fazer. Entender os
limites, as intenes e as vontades do outro era uma capacidade vital para
no sair do ritmo ou estragar a dana com um movimento que no poderia
ser desfeito, levanto inevitavelmente confuso dos parceiros e derrota.
U. . . Bi, Tro, U. . . Bi, Tro, U. . . Bi, Tro, U. . .
Narion suava e ofegava, tomando a dianteira: olhara para o que Kan
fazia e tentava duplicar aquilo tudo. No ia em frente por receber inten-
es contrrias de Bari, que no se sentia segura de acompanh-lo. Narion
acabava tendo que fazer o que a parceira podia, embora ele sabia que podia
fazer o que o amigo podia.
O ritmo no dava trgua. Cantado por eles mesmos, parecia que fcava
rpido mais rpido; Bari comeava a fcar nervosa com o que Narion fazia,
completamente absorto na dana.
Narion Chamava ela, com a mo doendo da fora que fazia para
tentar controlar o amigo. Narion!
Ele no estava mais ouvindo.
U, Bi, Tro, U, Bi, Tro, U, Bi, Tro, U. . .
Ignorava a fora contrria que a parceira fazia, e no perdia um com-
passo sem a afastar para tentar algo novo. Os ps dela j estavam fora das
batidas.
204
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Narion!
Foi o fm. Quando ele tentou empurr-la para um giro por detrs dele,
ambos se desequilibraramcomos prprios ps e caramno cho, umde cada
lado. Kami viu e parou a dana com Kan, e os dois pulavam, felizes, rindo
dos perdedores.
O que tem de errado contigo? Seu idiota! Ralhou Bari, na prpria
lngua.
Narion permaneceu sentado no cho, sem conseguir olhar para nin-
gum. Era pequeno demais para entender o que quis fazer. Bari se afas-
tava, quase aos prantos de tanta raiva, e Kami olhava para ele com um jeito
assustado que ele teve pouco tempo para assimilar; ela logo saiu dali com
Kan.
No cair da noite do mesmo dia Narion no tinha nenhum lugar onde
fcar para evitar a reprimenda do desconforto. Os irmos e irms de casa
recolhiam-se a olhares de pena. Narion tinha vontade de gritar que no es-
tava doente, mas controlava-se, balanando para frente e pra trs no abraar
das pernas e no dedilhar dos ps.
Narion olhou para o progenitor e, emseus rudimentos de intelecto, iden-
tifcou raiva. Raiva nos descontentes traos bemmarcados emvolta da boca,
fazendo limite com bochechas infadas. Na sua me, Simoni, em p logo ao
lado do pai na parede curva da cabana, pensou ver apenas tristeza estam-
pada em um rosto fno e descolorido. No entendia por que tinha deixado o
pai irritado e a me triste.
Por que voc fez aquilo? Perguntou o pai, Bormono.
Eu no sei. . .
Bormono desviou o olhar. Caminhou mais para o lado, para onde Narion
no queria olhar. O pai logo voltou, agachando-se para fcar de frente para
ele enquanto as luzes da fogueira tremeluziam na incmoda ausncia de
som.
Voc no pode querer essas coisas. Disse ele. Se voc quiser essas
coisas vai trazer muita tristeza para todos.
Ns s estvamos brincando, pensou Narion. Talvez devesse pedir des-
culpas a Bari por ter se esforado tanto para ganhar.
Bari est aqui. Disse a me.
Narion olhou para ela, que estava ao lado da portinhola da cabana por
onde Bari entrou, olhando primeiro para ela com um sorriso atravancado e
ento para ele, que se desviou, abraando as pernas com ainda mais fora.
Ela trazia uma larga vasilha comgua, e cuidadosamente, para que nenhuma
gota fosse derramada, sentou-se ao lado do garoto.
205
Voiui l
Quer brincar, Narion?
Enquanto o pai sorria, encorajador, para a menina que parecia no saber
exatamente o que estava fazendo, a me tentava pescar os olhos de Narion.
Quando mais velho, Narion precisaria se acostumar cada vez mais com
a cerimnia noturna de gua e de fogo em que se envolvia sempre depois
de uma briga. Quanto mais crescia, menos parecia aos outros que ele queria
realmente pertencer aos al-u-bu-u-na pensar e agir como eles. Todos
brigavam, e se reconciliavam com as mos juntas na dor do fogo e no alvio
da gua, mas elas pareciam aprender a lio. Narion batalhava contra a
prpria opinio de que talvez a lio no fosse importante. Mas, mesmo
no sendo, os olhares passivos e silncios ativos batiam com dureza em sua
conscincia.
As noites eramumperodo do dia complicado para os al-u-bu-u-na. Eles
cercavam as fronteiras da clareira com tochas, e mantinham seus arqueiros
a postos, preparados para se defender de qualquer ameaa. Mesmo que ani-
mais pudessematac-los, eles no erama maior causa de medo. Oque todos
realmente temiam era o aparecimento de Lato-u-nau, o estranho das mil fa-
ces e dos mil nomes.
Na maior parte das vezes, antes de o dia se transformar completamente
em noite, grupos se sentavam ao redor de fogueiras para aproveitar o jan-
tar. Costumavam dividir histrias do passado ou casos do dia; lamrias do
futuro e aventuras que talvez nunca aconteceram.
A maioria delas girava em torno de Lato-u-nau e de Al-u-bu. Dos heris
que haviam escapado das tramas do ser feio com ou sem a ajuda da dama
da natureza ou dos valorosos guerreiros que haviam perdido ao longo do
caminho.
Todo tipo de homem era ali retratado: covardes e corajosos, fortes e fra-
cos, espertos e estpidos. Sucumbiam ou venciam, muitas vezes arrastando
consigo o destino da aldeia. s vezes a histria provocava risos. s vezes,
impressionava. Depois, fazia chorar, espalhando o medo pela madrugada e
impedindo metade da tribo a metade mais jovem, principalmente de
dormir.
Com o tempo Narion teve tambm sua prpria experincia, mas uma
que nunca compartilhara nas rodas noturnas. Era um dia nublado em que,
j bem mais velho, banhava-se, solitrio, no crrego mais prximo cla-
reira. Com o passar do tempo gostava mais e mais das horas solitrias que
conseguia ter de vez em quando; era quando podia ser ele mesmo. Ou pelo
menos a parte de si que no causava problemas, brigas ou mgoas.
206
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Foi quando a avistou. Uma alta fgura feminina, sentada em uma pedra
baixa e lisa na outra margem do crrego, em uma regio mais distante.
Nua, a mulher de longos e ondulados cabelos castanhos apoiava-se sobre
os braos, com o pescoo voltado para cima, relaxado. Esbelta, deixava um
p encostado ao fuxo de gua, e o outro erguia-se por sobre a pedra, com a
perna dobrada.
Narion sentiu-se imediatamente encantado por ela. Soube imediata-
mente quemela era. No poderia ser mais ningum, e disso ele tinha certeza,
mesmo que nunca a houvesse visto antes onde quer que fosse. Ela era to
diferente deles; marcante e singular, com uma difusa luz azul-clara saindo
de seu entorno, parecendo prenunciar o chamado que viera a seguir.
Ela chamara por seu nome, sem se mover. Narion se sobressaltou com
a voz clara e limpa, que ressoava como se viesse de dentro da prpria gar-
ganta. Aproxime-se, pediu ela.
Ele chegou mais perto, receoso. Cruzou as guas em um ponto em que
se estreitavam. Deu a volta na pedra e prostrou-se de joelhos, virado para
as costas da mulher. Elas eram uniformes e regulares; negras, lisas, sem
manchas ou sinais. Os braos eram fnos, carregando os cotovelos mais
graciosos e frmes que Narion j havia analisado.
V-voc Al-u-bu? Perguntou ele.
Mais veloz que o queixo de Narion, que caa em estupefao, Al-u-bu
levou as mos ao rosto do rapaz. Estava agora de frente para ele, nariz a
nariz. Ele fazia fora com a cabea, tentando livrar-se daquilo: descobrira
no momento emque a olhou de to perto que no conseguia suportar o peso
daquela ris negra profunda, emque folhas de rvores imaginrias caamem
um riacho muito mais sereno que aquele em que estavam. As folhas eram
levadas pela correnteza vagarosa, e perdiam-se em um mundo sem fm, do
qual era impossvel apartar-se sem continuar se perguntando o que mais
haveria nele que no a perfeio de uma planta de vio, do curso que no se
interrompe, da vida que no cessa por desastre.
Por mais intrigante que ele fosse, o olhar do mistrio era vazio e impre-
ciso, j que Al-u-bu era cega.
Nariomono, meu menino. . . Disse ela, tentando tranquiliz-lo. Ele,
tomando involuntariamente o caminho inverso, sentiu-se mais tenso. Por
que voc diz no a mim?
A voz terminou com uma interrogao grave. Ele reconheceu aquela
sensao. Atingia-o em seu estmago, enchia seus pulmes de algo que no
era ar e fazia suas articulaes pesarem como chumbo.
Levantou-se num pulo, sentindo o calor familiar; afastou-se de Al-u-
bu, que continuava olhando para a frente como se ele ainda estivesse ali.
Arrebatou-lhe uma onda de pnico mais forte que tudo, e ele a abandonou,
correndo dali o mais rpido que pde.
207
Voiui l
Pesquisadores de Ia-u-jambu quebraram a rotina quando visitaram os
al-u-bu-u-na muitos rosanos depois do incidente entre Narion e Al-u-bu.
Termono, o mestre, fora chamado para uma conversa, conjecturando com
preocupao o que aquilo poderia signifcar para o tratado entre o povo da
foresta e o Conselho dos magos, mas fcou em paz ao saber que a investida
nada tinha a ver comminrios. Os universitrios perguntaramse algumali
estava interessado em ajud-los com a prpria lngua, a na-u-min apren-
dendo, em troca, a lngua moderna.
Narion fcou interessado. J tinha quase trinta e oito rosanos quando
a ouvira, junto a muitos companheiros. A maioria no via nada de bom
na oportunidade. Era arriscado sair da proteo dos demais, pois Lato-u-
nau estava espreita. Alm do mais, iriam demorar at aprender uma nova
lngua, e at ento (ou mesmo depois) amargariam uma existncia solitria
na Universidade; seriam presena incompreendida numa cidade estranha.
Narion, contudo, no via problema algum nisso. Acostumara-se tanto
aos momentos de solido que preferiria o quanto pudesse alarg-los. J no
era compreendido ali dentro de qualquer forma, e perguntava-se o quanto
o mundo do lado de fora poderia ser diferente. Talvez fosse melhor apreci-
ado l, j que seria distinto, experiente em coisas dos quais aquelas pessoas
faziam pouca ideia.
E, pensou, olhando em volta ao procurar por olhares cruzados, deveria
haver ali quem o considerasse um candidato perfeito para ir embora de vez.
Tomou sua deciso. Da famlia mais prxima recebeu palavras de apoio,
carinho e coragem, ainda que ele percebesse um abismo entre todos: ele e
seu pai, ele e sua me (que chorava copiosamente), ele e seus irmos, que
pareciam buscar um no outro sinais de que o manto de ofcio j se havia
desprendido e eles pudessem comemorar a partida do mau elemento. De-
pois das conversas monossilbicas de despedida que teve com tantos outros
colegas, pensou que provavelmente superestimava viver ali. Por outro lado,
no conhecia nada alm. Era chegada a hora.
Narion ainda precisava pedir uma permisso fnal para Termono; uma
espcie de ltima conversa, um acerto de contas entre ele e todos os ou-
tros que acontecia por intermdio do lder. Entrou na cabana, localizada
nas bordas da foresta e guardando a maior distncia possvel das outras ca-
sas, sem imaginar o que poderia encontrar. A chefa, como era conhecida,
era a residncia vitalcia dos mestres dos al-u-bu-u-na. Eles viviam l, um
novo aps a morte do outro, reclusos, justamente por causa da funo que o
mestre exercia: saa apenas em ocasies especiais, em que sua presena era
absolutamente requerida. Aquilo, Narion nunca entendera. Por que o ad-
miravam tanto? Em suas aparies, nunca fazia o que Narion faria. Decidir,
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
demandar. Exigir. Resolver. Era um mediador carente de recursos, um mero
conciliador superestimado, conversador que por vezes prolongava proble-
mas que poderiamser resolvidos de forma simples. Bastava que fossemmais
prticos, que entregassem logo o cetro de juiz a quem fosse mais sbio. Mas
os mestres nunca agiam como sbios. No com aquela sabedoria.
Termono estava sentado no cho, ao lado de uma garrafa de barro. Den-
tro dela, um lquido de cheiro adocicado e insinuante que Narion no reco-
nhecia.
Sente-se. Ofertou Termono, com um amistoso sorriso velho.
Narion obedeceu, sem abrir a boca. Mantinha a cabea abaixada, mas
lanava olhares furtivos s paredes do minsculo lugar. Eram vazias, tanto
quanto o cho. No havia nada ali dentro. A passagem coberta com folha-
gens amalgamadas atrs do mestre deveria abrir caminho para uma espcie
de depsito.
Quer um pouco de ch? Indagou Termono.
No, obrigado, mestre.
No precisa falar assim comigo, garoto. Bebericou um pouco do
lquido verde e quente.
D-desculpe. Eu no conheo este ch.
feito com as folhas de uma pequena for amarela, que se chama
rounalver.
Narion tentou buscar aquilo na memria, mas no se lembrava de algum
dia ter ouvido aquele nome.
Nunca ouvi falar, mestre.
claro que no. proibida para vocs! Respondeu ele, com um
travesso entortar da boca.
Bebeu outro gole, segurando a garrafa de forma desajeitada nas mos
era grande demais e a ps de lado.
Ento voc vai viver em Ia-u-jambu. . .
Sim. Respondeu Narion.
Voc sabe continuou o mestre que h quemqueira ver voc longe
daqui.
Narion pigarreou, tomado por um agudo sentimento de excluso. No
esperava ouvir aquilo.
Mas voc deve entender. . . O que voc tem a dentro algo que evi-
tamos. No assim que vivemos. Ns, al-u-bu-u-na, temos medo do poder
que foge do controle. Mas ns, todos ns, somos sua famlia, e esta foresta
a sua casa. A luz no est mais entre ns, mas ns a fazemos existir. No
fque triste, sim?
Est certo, mestre.
Pode partir, Nariomono.
209
Voiui l
Narion se levantou, e de alguma forma estava grato por aquela conversa.
Era como se, mesmo que no conseguisse resolver nada na prtica, tivesse
desfeito parte do n que era entender por que no conseguia se relacionar
bem com ningum.
Mestre? Chamou ele, antes de partir.
Sim?
Por que o senhor vive desse jeito? Por que os mestres tm que viver
assim?
Termono fechou os olhos midos, deu um sorriso discreto em que a
pouca quantia de dentes se protuberou e balanou a cabea. Narion es-
tava comeando a ach-lo cmico, com seu jeito despojado de exalar uma
autoridade que no exercia.
Sou o poder que eles podem controlar.
A Universidade e o Exrcito duas instituies de que nunca ouvira fa-
lar na curta vida emmeio aos al-u-bu-u-na. Elas, no entanto, no podiamser
maiores exemplos daquilo que passou a lhe inspirar admirao. Disciplina e
hierarquia, respeito e ordem. Tudo aquilo o fascinara enormemente. Guer-
reiro que era, pleiteou fazer parte do exrcito, mas no podia por no ser
da cidade. O leno vermelho que usava no pescoo o denunciava, e aquela
era, alis, uma das coisas que mais o incomodava: as vestimentas grandes,
cobrindo quase o corpo todo, alm do leno que no podia em hiptese al-
guma deixar de usar. Tinha muito contato com pessoas, o que era bom e
ruim: se antes previra muito tempo sozinho, no imaginara que esse tempo
fosse majoritariamente a hora de dormir. Aprendera a lngua moderna com
rapidez, e logo ia se tornando capaz de explicar algumas coisas, traduzindo
do na-u-min, fazendo o servio ao qual se dispusera.
Apesar de precisar se repreender nos hbitos, via como era possvel (e
at mesmo desejvel) viver em meio tudo aquilo. Ele no precisava ter
dvidas sobre o que sentia ou pensava. Aceitava-se por completo, sua parte
mais obscura, semningumque o refreasse. Sua escurido ali no era menos
comum e desejvel que o amarelo das nuvens.
Se em alguns aspectos, entretanto, sentia-se enfm livre, longe do al-
cance de regras e amarras, olhares de estranheza e incompreenso; se por
vezes considerava-se um homem de sorte por estar longe da foresta que,
embora sem limites de concreto ou corvnia, fazia dele prisioneiro, com
seus postes vivos pronunciando sentenas de eternidade, no havia um dia
em que no contorcia os dedos do p ao sentir falta das razes. Sua vida no
era Ia-u-jambu. Com o tempo a rotina tornou-se maante, e a cidade das
novidades no oferecia nada de novo. Narion no se interessava por nada
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que pudesse aprender (para estrangeiros a Universidade, diferentemente do
Exrcito, estava de portas abertas) e intuiu que viajar para descobrir luga-
res novos no valia a pena; eram todos similares. Saciara uma fome que
ele no sabia que podia ser vencida. Estava mais velho, mais forte, mais
inteligente e mais experiente era o que qualquer um diria. Ainda assim,
quando sentava-se diante do Lago do Meio, ao longo do qual a cidade do
saber nascera grudada, o al-u-bu-u-na suspirava, querendo voltar.
Ele no era o mesmo sem aquela clareira no meio de lugar nenhum.
Era como se o prprio corpo pedisse por aquilo: pedisse para estar de novo
em contato com o cho daquela foresta, localizando-se de novo pela suti-
leza dos odores e a geometria irregular dos bosques. Os msculos do brao
estavam murchados: precisava caar. Precisava praticar o arco e a lana.
Precisava danar de novo, comer e beber como um al-u-bu-u-na de novo,
e ver as estrelas do cho iluminado por fogo, sentindo a proteo dos seus,
ao invs de uma cidade de minrios austeros e uma polcia que fazia dos
visitantes, inimigos. Seus quatro rosanos de atividade acabariam em breve,
e ele no queria estend-los. Voltaria para casa.
Saram da Universidade bem cedo na manh do segundo dia de torn-
u-sana; um dia em que o ar parecia ferver a pele, mesmo o cu estando
nublado. Voltava de charrete com um condutor que falava pouco. Sorte,
pois ainda que estivesse ansioso como quase nunca na vida, no gostaria de
conversar com quem quer que fosse; pelo menos no at chegar tribo.
Eram quase quatro horas da tarde quando enfm Narion avistou os tei-
xos, as oliveiras e os pinheiros da foresta Al-u-bu, e sentiu um arrepio.
Surpreendeu-se coma prpria alegria, j que explodira emumsorriso quan-
do a estrada deixou os vastos campos de onde a cidade de Ia-u-jambu tirara
seu nome.
Um vulto negro passou pela frente da charrete sem que Narion conse-
guisse ver de onde viera ou para onde fora. Cortara a estrada, assustando
os yutsis, que esganiavam-se, completamente enlouquecidos. Passaram a
correr mais e mais rapidamente, com o condutor incapaz de faz-los parar,
at que mais uma vez a volumosa sombra passou diante dos animais que, to
assustados quanto os homens, empinaram, perderam o equilbrio e caram
para trs, destruindo a parte frontal da charrete com o brutal peso.
Narion estava cado na poro traseira da charrete, com as pernas jo-
gadas para a direita. A porta lateral estava quebrada, j semiaberta. Na
confuso, o al-u-bu-u-na apenas protegeu o rosto com os antebraos e es-
perou pelo pior, que no aconteceu. Saiu da charrete tentando recuperar os
refexos, que no pareciam mais to atrofados. Olhou para todos os lados;
no via nada fora do comum.
Foi verifcar como estava o condutor do veculo. Parou ao dar de cara
com um homem de idade encostado em uma rvore beira do caminho,
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Voiui l
vestindo uma esvoaante capa negra. Seu rosto era torto, limpo e elstico.
Bem-vindo de volta, Nariomono. Disse ele, em na-u-min.
A partir do momento em que Narion prestou ateno ao jeito como o
senhor falava, parecia estar vendo outra pessoa diante de si. Algum certa-
mente no menos velho pelo contrrio, j que tinha agora uma quantidade
muito maior de rugas mas com um rosto bem mais regular.
F-fque longe.
assim que me recebe? Depois de todo esse tempo?
Logo depois de o homem se aproximar, rasteiro, o condutor tossiu, ten-
tando rolar para fora das estacas quebradas da charrete.
Voc s mata al-u-bu-u-na, e ele no um!
E por isso que ele no est morto. . .
E eu, por que no estou?
O velho senhor o olhou como se estranhasse a pergunta.
Humpf. . . Voc parece nunca ter ouvido falar de mim! Como se no
me conhecesse!
Sei que voc mata. Eu ainda sei lutar, Lato-u-nau!
CALE-SE! Ordenou o velho, furioso meno do nome. Quase fez
os olhos saltarem das rbitas ao tossir violentamente depois do berro. H
pessoas que eu preservo, meu pequeno garoto, porque gosto delas.
No quero nada de voc. Nem seu apreo nem sua simpatia! Disse
Narion, com o sangue correndo loucamente pelo corpo. As coisas vo ser
diferentes quando eu voltar. Eu sei quem eu sou e o que eu quero fazer. Vou
lidar melhor com tudo o que. . .
Ento aceitou que deve ser o novo mestre?
Narion travou, indeciso quanto a como interpretar aquilo.
Voc ingnuo se acredita que pode voltar e mudar as coisas. Conti-
nuou ele, parecendo envelhecer dez rosanos em alguns instantes. Deu mais
um passo frente, comeando a contornar os yutsis estirados no cho, que
ainda faziam barulhos estridentes de dor e confuso. Eles te odeiam por-
que querem que voc se adeque, Narion. . . Voc diferente, e ns dois sabe-
mos disso. . . Voc no vai mudar. O nico jeito de eles te terem por perto
te castrando. Narion estremeceu meno da palavra, que ecoou por um
tempo desmedido em sua cabea. Eles vo te fazer mestre, Narion. Te dar
todo poder que voc sempre sonhou para que com ele no faa nada!
Isso n-no vai acontecer.
Se voc aceitar o que quer fazer. . . Agir como quer agir. . . Ele
apontava, com o dedo tremendo, para o peito do al-u-bu-u-na. Narion des-
viou o olhar do dedo para o rosto barbudo e de claros olhos prximos
Tenho certeza de que vai acontecer. E, se quer minha sincera opinio, o
que deveria fazer.
No!
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Narion afastou comviolncia o dedo de Lato-u-nau, recuando at encos-
tar nos ramos baixos de uma rvore prxima. Sentiu-se mais do que nunca
um al-u-bu-u-na por consider-lo seu adversrio mortal; algum com quem
jamais faria um pacto ou um acordo. Arqui-inimigo de quem jamais aceita-
ria ajuda.
Agora que voc voltou, deve trazer de onde veio o que aprendeu. Deve
aceitar quem voc !
Eu no quero. . .
Sim, sim, nada que venha de voc. . . Interrompeu, zombeteiro.
Eu entendi. At logo, guerreiro.
Seria agora? Seria aquele o momento? Esperava por algo a mais; es-
tava tenso at os dedos das mos, o corpo pronto para lutar ou correr, para
qualquer coisa j havia aceitado a morte como possvel fm. Seria digno.
Falariam sobre ele noite, diante da fogueira. Seria o heri que ningum
acreditava que pudesse ser.
Mas nada aconteceu. Lato-u-nau apenas deu uma lenta meia-volta e
partiu, passo por passo, at no ser mais visvel.
Narion no conseguia dizer quanto tempo fcou ali, sob o abrigo das
prprias recordaes. Resolveu caminhar de volta, mesmo sabendo que ao
fazer isso perderia seu benefcio de tradutor. Teria que assumir uma posio
no crculo e, com o arco pronto em uma posio fxa e supostamente imut-
vel, ameaar os magos mas era melhor que fcar remoendo seu passado.
Sempre se torna mais difcil, com o passar do tempo, acreditar em redeno.
213
Captulo 29
O Massacre
Parados como esttuas, assumiam seus postos com tanta dignidade e
servitude que Desmodes chegou a pensar que poderia haver um lugar para
eles em Heelum. Um lugar em que poderiam ser felizes se apenas soubes-
sem ser um trecho ao invs de rebelde mancha. Em seus olhos cheios de
desconfana, contudo, emque raras vezes se via umlampejar de desconten-
tamento, descanso ou preguia, constatava-se a fora de um tipo diferente
de ser. Diferente demais para Desmodes.
Tudo aconteceu em um mover de olhos do esplico. Cada um dos guer-
reiros virou o arco contra outro deles em precisa sincronia e afrouxaram os
dedos, sem que houvesse tempo para que os berros e os gritos de que algo
estava errado se desenvolvessem plenamente. O alto zunido seco de fechas
cortando o ar prevaleceu, logo antes do rasgar de pele e abrir de carne.
Robin teve pouco tempo para ver a cena antes que ela acabasse; levantou-
se num salto desbalanceado, esbaforido em seu soar surdo, apenas depois
da saraivada e dos urros dos al-u-bu-u-na que se atacavam sem critrio ou
distino, numa loucura coletiva em que fechadas atingiam bocas abertas,
olhos desesperados, coraes adornados e gargantas vibrantes.
Robin no sabia que barulho seguir, e primeiro voltou-se para um lu-
gar onde uma criana no fora atingida completamente, mas perdera muito
sangue no brao; a menina estava de p, fragilizada, chorando de dor com
os olhos estreitados e enxaguados. Seus olhos perderam-se em incompreen-
so quando se encontraram com os de um apopltico Robin. Foi empurrada
pra trs com o forte impacto de uma outra fecha, disparada por um al-u-
bu-u-na ainda de p. Robin virou-se para ele, apenas para v-lo tambm
atingido, caindo por cima de uma mulher completamente avermelhada que
ainda tentava se reerguer.
H apenas um momento os magos tinham a vida por um dedo. Agora
estavam envoltos por um crculo agonizante de sangue e madeira.
As fechadas foram diminuindo, assim como o nmero de pessoas de p
e os sons que os cados faziam. Os que sobraram por ltimo no tentavam
fugir, esquivando-se de novas fechas; apenas esperavam, como rosto srio e
aptico. Robin viu, com os olhos completamente abertos enquanto chegava
215
Voiui l
mais perto, o ltimo suspiro de um corpo feminino irregular e fcido, logo
ao lado de um outro masculino, pouco atltico e com uma pequena cicatriz
na bochecha direita, mais visvel por causa do sangue ali depositado depois
de cair pela orelha.
Os sons, as lamrias e as pragas na lnguas antiga foram se esgotando
aos poucos, fenecendo febrilmente, como gua se afunilando por uma racha-
dura. Robin voltou-se para Desmodes, que permanecera exatamente onde
estava o tempo inteiro.
O QUE FOI QUE VOC FEZ, SEU IDIOTA?
Resolvi um futuro problema.
VOC NO V O QUE FAZ?
Robin colocou as duas mos na cabea. Recomeou a olhar em volta, e
percebeu que fcava mais difcil encontrar qualquer sobrevivente.
Sentiu-se empurrado para frente, mas parou antes mesmo de comear
a cair; fora atingido. Viu a ponta da espada de Desmodes, que atravessou
seu trax e, ao ser retirada, o fez fnalmente cair para frente, de joelhos. Sua
viso comeou a fcar turva. Os sentidos, em alerta. O corao bombeava
desesperadamente, j sem razo de ser.
O nico sobrevivente da clareira olhou em volta. Viu que dos castelos
sobravam runas que, pouco a pouco, desfaziam-se no ar como poeira no
vento, nublando como ummilho de umenau esvoaantes os campos emque
uma rubra grama crescia indolentemente. No crculo de vtimas fcaram os
al-u-bu-u-na, amontoados no cho. Alguns ainda apresentavam espasmos
ocasionais; abriam os olhos, davam-se as mos. Balbuciavam, os que ainda
podiamfalar, e choravamalguns outros, passando a mo por alguma tintaria
no corpo.
Desmodes passou por uma parte do crculo menos densamente ocupada,
o caminho por onde entrara na reunio, e entrou na foresta. Estava prestes
a comear a caminhada de volta quando foi pego de surpresa; violentamente
posto contra uma rvore, desembainhou a espada e virou-se, atrapalhado,
para encarar o agressor. No o reconhecia mais, mas certamente lembrava
daquelas roupas.
Lato-u-nau.
No me CHAME pelo nome! E guarde essa espada que voc brande
com tanta covardia!
Desmodes obedeceu, acalmando-se, sem tirar os olhos do homem de
capa negra.
Ento voc achou que escaparia, no ? Continuou ele. Achou
que faria tudo isso e iria embora, simplesmente caminhando?
Enfrente-me, ento. Desafou Desmodes.
Ora, no seja tolo! Eu no enfrento, eu mato! Rebateu ele, sibilando
as palavras at que seus lbios tornaram-se fnos e crispados.
216
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
O mago e o mistrio continuaram se medindo.
Mas no vou mat-lo agora. . . No, no. . . No agora. Mato quando
for a hora certa. A hora em que voc menos me querer por perto. Mas
agora. . . S v embora daqui.
Desmodes no se moveu. Lato-u-nau passou a encar-lo mais frme-
mente, como se estivesse prestes a entrar em combusto.
V! Gritou ele, desafnado, cuspindo em seu af hipertenso com
os olhos lacrimejados e os punhos fechados.
Desmodes foi embora. Olhou uma nica vez para trs, mas Lato-u-nau
no estava mais l.
Quando ele parou, foi como se o mundo parasse com ele. Como se
tudo despencasse em absoluto silncio, e nenhum movimento fosse permi-
tido at que aquilo fosse declarado algum tipo de iluso. Uma mentira, um
mal-entendido, um jogo sdico e mrbido de Lato-u-nau. Para Narion, que
forou-se a fechar os olhos com fora e abri-los com esperana, aquilo no
tinha o direito de ser nada mais.
Dezenas e dezenas de pessoas no cho, amontoadas umas por cima das
outras, embebidas em sangue, mortalmente feridas. Narion tremeu ao se
aproximar. Virou o rosto bruscamente ao perceber duas silhuetas difusas
de p em meio selvageria, perto fogueira, que fumegava mais alto que
nunca. Reconheceu o corpo irretocvel de Al-u-bu olhando para algum
ponto no cho, parada como uma esttua de corvnia.
Nada vive. . . Sussurrou ela. Ele, mesmo distncia, a ouviu como
se ela tivesse lhe falado ao p do ouvido.
O estmago de Narion se revirou, subitamente enojado; suas sobrance-
lhas arquearam-se, vencido. Jogou-se no cho, segurando-se com a palma
das mos. Controlou-se, e olhou frente; conhecia todos que estavam ali.
S o que via era destruio. O irremedivel, incurvel e irreversvel fm
da vida.
. . . Ma. . . Ma. . .
Anegao era tudo o que conseguia repetir, de novo e de novo e de novo.
Levantou-se e comeou a passar pela massa de corpos. Achou que s
depois de ver todos, cada um deles, podia ter certeza daquilo, mas depois
de apenas alguns percebeu que no havia dvida, no havia confuso. As
lgrimas rolavam por suas bochechas to rpido quanto suas passadas, que
por vezes aterrissavam em cima de pedaos pontudos de fechas quebradas.
Viu seu pai. Aquele era defnitivamente ele. Recebera uma fechada
no peito. O irmo, o mais jovem e menor deles, estava logo ao lado, com
uma estaca no pescoo. O sangue se espalhara em todas as direes, como
217
Voiui l
estrelas comdzias de pontas. Os dois no se mexiam, no falavam. Tinham
os olhos fxos. Narion chegou mais perto, procurando pela respirao. O
peito, que o al-u-bu-u-na vivo tocou com a ponta dos dedos apenas, no se
movia. No encontrara coisa alguma. Ali estava uma casca vazia e nada
mais.
Sua me no estava por perto. Ao olhar mais direita viu outro de seus
irmos com o rosto cravado por duas fechas. Narion no suportou olhar
para aquilo. Constatou, com um horror que parecia espremer seus olhos
como frutas, que no podia fugir. Para onde quer que se voltasse via mais e
mais sangue, msculos e ossos em lugares imprprios.
Ouviu um barulho prximo fogueira. Al-u-bu ainda estava l, imvel.
Um homem de capa negra andava por ali.
Voc. . .
Narion correu ao centro. Talvez fosse outro deles. Ao chegar mais perto,
viu o rosto do homem. Nunca tinha visto aquela face transversa e suja, mas
ela o fez tremer dos ps cabea, parando imediatamente e caindo para trs.
Logo se recomps, machucando a mo esquerda com outra ponta de fecha.
Seu. . . Seu MALDITO! Acusou Narion, ofegante. Seu maldito,
seu maldito, odioso, mentiroso. . . Quase tropeando, ligou a dor da mo
dor que poderia infigir; recuou e pegou do cho um arco qualquer e a
primeira fecha inteira que pde encontrar. Armando-as rpido como h
muito no fazia, seguiu sofrivelmente em direo ao mistrio, que manteve
forte seu olhar com uma raiva que no era contra o iminente inimigo.
SEU MALDITO!
Narion atirou. A fecha perdeu fora ao chegar perto dele, vergando-se
at cair no cho, mole e fexvel como uma simples folha de rvore. Narion
quase engasgou. Pegou outra fecha e atirou mais uma vez. No conseguiu
atingi-lo. Caiu, tateando em busca de outra fecha, mas s o que encontrava
agora eram pedaos. Sua mo procurava por um projtil de forma cada
vez mais alucinada at que ele desistiu, socando o cho com revolta. Seus
pulmes rangiam.
Percebeu uma sombra acima dele. Ergueu-se e se viu frente a frente
com o inimigo. Narion viu profundas olheiras debaixo dos olhos, ainda que
ele no estivesse chorando. Quando Lato-u-nau se ajoelhou Narion tombou
entre seus braos abertos.
Acalme-se, Nariomono. . . Pedia ele, dando desajeitados tapas nas
costas do homem.
Narion desvencilhou-se do abrao com raiva. Caiu para trs, sentado,
enxugando as lgrimas.
Voc conseguiu o q-que queria.
Eu jamais quis isso.
Voc MATOU! TODOS ELES!
218
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
No fui eu.
Lato-u-nau levantou-se solenemente e foi para perto da fogueira. Narion
o seguiu com o olhar at encontrar um corpo diferente no cho. Al-u-bu
aproximava-se lentamente, com s mos erguidas frente. Um dos magos
jazia ali, com os braos e pernas esticados, e uma larga mancha bord sobre
a capa laranja violada.
Ele fugiu. Disse Lato-u-nau.
Os dois se olharam. Narion demorou umtempo para entender. Lembrou-
se de que havia dois magos.
Voc pode encontr-lo, Nariomono.
Al-u-bu estava voltada para o sul, emabsoluto silncio. Narion esperava
que ela dissesse algo, mesmo sem saber confar nela nem pelo que esperar
alm de, na abundncia do silncio, no saber o que retrucar.
E-eu. . .
O que que voc vai fazer daqui pra frente? Perguntou Lato-u-nau.
Voc o nico que sobrou, Nariomono. o nico. No h mais nada que
valha a pena.
Eu posso. . . Posso. . .
A raiva que tinha de Lato-u-nau o cegava; tudo o que tinha para dizer
vinha da necessidade automtica de contradiz-lo. A verdade que no
sabia o que podia fazer, mas o fato de que comeava a enxergar com mais
clareza lhe abria os olhos para o fato de que, embora no houvesse razo
para querer contradiz-lo, fazer o que ele lhe propunha parecia igualmente
sem sentido.
Eu odeio esse mago tanto quanto voc. Mas voc quem pode fazer
alguma coisa.
Por que voc no faz?
No o tipo de coisa que eu fao! Respondeu ele, a voz saindo aos
murros pela boca, o rosto parecendo crescer para cima de Narion.
Porque um covarde!
Narion! Disse Al-u-bu, engolindo em seco. Voc deve escolher.
Isto no mais sobre mim ou ele. sua a escolha.
Ele queria, mas no tinha mais o que dizer. No conseguia exprimir a
indiferena que sentia em relao quela tarefa. O quanto a achava intil.
Os al-u-bu-u-na se foram, e se apenas um sobrou, que diferena faria? Ele
no conseguiria manter viva a chama daquela comunidade e de tudo que
representavam. Narion estivera do outro lado, e viu como era diferente o
mundo fora daquela foresta. No havia mais ningum como eles. Ningum
que quisesse viver como eles. Deveria era acabar com a prpria vida de uma
vez.
Narion sentiu o rosto quente e dolorido; viu-se repentinamente com os
cotovelos apoiados no cho, e antes que pudesse entender o que aconteceu
219
Voiui l
Lato-u-nau o levantou de novo e deu-lhe outro tapa. Desorientado, Narion
tentou rastejar, mas sentiu uma fora descomunal pux-lo pelos ps e lan-
lo para longe. Caiu distante da fogueira, perto de outra parte do crculo de
corpos, e apalpou as prprias costas e pernas doloridas.
Para. . . PARA!
No entendeu o que aconteceu, mas sentiu que revirava por completo
no ar at que fnalmente distinguiu um rosto enlouquecido acima do dele.
Lato-u-nau o segurava pelos ombros, apertando-o brutalmente.
Voc pediu pra PARAR? Berrou o mistrio. Agora PEDE pela
prpria vida? QUEM o covarde aqui?
Narion estava tonto. Lato-u-nau o jogou de lado mais uma vez, olhando-
o atravs de glido julgamento.
No sei o que voc vai fazer. Mas voc tem uma dvida com estas
pessoas. Ele continuou, saindo do campo de viso do homem cado.
Voc passou a sua vida tentando se impor sobre elas. Era sempre voc contra
eles! Como se Heelum inteira estivesse prestando ateno sua vida. Voc
no vale nada, Nariomono. Nada. Mas voc pode prestar ainda. Narion
ftava o cu azul, absorvendo com ateno a voz de Lato-u-nau. Pode
escolher fazer parte, e ser algum por eles ao invs de pensar em voc.
Demorou at que algum falasse novamente. Lato-u-nau quebrou o si-
lncio, parecendo ter ido ainda mais longe de onde Narion estava.
Se voc quiser ir atrs dele, guerreiro. . . Saiba que ele foi para Enr-u-
jir. E que seu nome Desmodes.
220
Captulo 30
No saber, no poder, no ver
Ser que podemos falar do que a gente fez nesses dias? Perguntou
Amanda, esperanosa.
No sei.
Aquilo continuava sendo estranho para eles. No podiam falar hones-
tamente, sem medo de dizer alguma coisa perigosa. Seguravam as mos um
do outro, pedindo por uma compaixo que no podiam receber.
Voc foi a algum lugar? Perguntou Tadeu.
, mas. . . Respondeu ela, hesitante.
Eu fui numa festa bomin.
Tadeu! Censurou Amanda, boquiaberta.
Que foi?
Por que voc me disse isso?
uma festa, Amanda, muitas pessoas sabiam!
Muitos bomins sabiam!
Eles compreendiam cada vez mais a loucura e a confuso em que se
metiamcada vez mais fundo, como umpasso emfalso na lama. Havia muitas
coisas que gostariam de dizer um ao outro, mas tudo fcou preso como
mais um passo na lama.
Viam um ao outro na torre mais alta de seus castelos. Era a primeira
vez que faziam aquilo; o cu prpura por detrs deles tinha nuvens azuis
que apareciam e desapareciam em um ritmo alucinante. Voltaram logo a
sentir a mo um do outro, no frio da colina de Al-u-ber, antes que fcassem
tontos demais. Amanda levantou-se e, sem se despedir, foi embora. Tadeu
percebeu o que acontecia quando era tarde demais; levantou-se tambm,
chamando pela preculga, mas ela no mais ouvia.
Amanda descia a trilha da colina esfregando os braos e tentando evitar
o choro. No conseguiu. Dava passadas mais seguras que o habitual, j que
vez ou outra a gua nos olhos deixava a viso borrada.
Sempre se perguntara por que que o pai implicava tanto com Tadeu.
Chegara a imaginar uma poro de coisas. Das mais convencionais, como
uma simples rixa poltica, s mais loucas, como o improvvel fato de que Ta-
deu fosse um flinorfo disfarado, um irmo gmeo perdido, ou fosse ainda
221
Voiui l
um mistrio algo que, sem saber, teria ativado desconfanas paternais
protecionistas.
Nada disso. Tudo fazia um esmagador sentido. Ao invs de algo que
fosse simplesmente estranho demais para entender ou simples o sufciente
para resolver, os dois tinham nas mos uma lgica depressivamente bvia,
mas muito maior que eles: algo impossvel de fazer sumir, seja com paga,
seja com guerra. Eles eram magos de diferentes tradies. No podiam se
relacionar ou, melhor, no podiam tornar pblico tudo que j fzeram,
tudo que j eram e tudo que sentiam.
O caminho estava quase acabando. Partes da charrete que a levaria de
volta para casa j podiam ser vistas atravs de muitas folhas, ramos e tron-
cos. Respirou mais aliviada, sem saber por qu. J havia pensado no que
aquilo tudo signifcava antes, mas nunca daquele jeito. To lcido. To
real.
No deveria ter sado de l sem se despedir. Sentia-se realmente est-
pida.
Com a testa encostada s rugas de um pinheiro, pensou que ainda havia
um jeito. Uma chance pequena, que iria requerer muito esforo. Continuar
se encontrando s escondidas e, quando estivessem mais velhos e consoli-
dados, fngiriam enfm um interesse romntico, que seria bem regulado por
toda a comunidade mgica. Valeria a pena?
Amanda fechou os olhos, expirou a pergunta e deixou-se encostar por
completo na rvore, semacreditar que estava de fato se perguntando aquilo.
claro que vale.
Mas seria preciso investigar.
Como foi seu dia? Perguntou Galvino, alimentando o fogo da la-
reira.
Na sala de reunies Tadeu aprendera a entrar emNeborume a fazer sen-
tido de uma realidade que, primeira vista, lhe pareceu fuida como vapor
dgua. Perguntava-se como seria o treinamento quando estivesse apren-
dendo a fazer aquilo que os magos faziam controlar pessoas. Mudar seus
sentimentos. Como praticaria aquilo?
Foi bom. . . Pai, eu. . . Preciso fazer uma pergunta.
Galvino abriu os braos, convidativo, incentivando o flho a falar.
O que. . . Exatamente os outros no podem saber?
O som de ar entrando nos pulmes do pai foi tudo o que se ouviu na
sala at o leve arrastar do vidro de um copo de gua por sobre o console da
lareira.
De quem estamos falando?
222
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Outros bomins. P-por exemplo.
Galvino balanava a cabea.
Isso tudo depende. Em quem voc est pensando?
Eu conheci uma garota. Tadeu nunca falava muito com o pai sobre
amizades, e logo enrubesceu ao pensar que aquela conversa parecia muito
mais do que uma conversa sobre amizades. Na festa.
Sim, lembro da festa. No me lembro da garota. Disse Galvino,
olhando com um estranho interesse para Tadeu.
Fiquei me perguntando, se. . . O que cada pessoa pode saber. E se, por
exemplo disparou Tadeu, engolindo em seco ao ter uma maligna ideia
esbaforida eu contasse a um esplico que fui numa festa bomin? Isso seria
perigoso?
No, claro que no. Assegurou o pai. Festas e reunies s so
secretas se isto for deixado bem claro.
Ento o que aprendemos aqui que eu no posso contar pra ningum.
Preste ateno, Tadeu. Galvino enfm sentou-se de frente para Ta-
deu, em seu lugar caracterstico. Voc tem que entender que magia co-
nhecimento e poder. Voc no pode contar sobre nossas tcnicas para um
esplico ou um preculgo. Mas voc pode cont-las para um outro bomin. O
nico problema que isso signifca que ele saber algo que voc sabe, sem
garantia de que voc saiba algo que ele sabe. No porque ele um bomin
que ele no pode atac-lo. Se voc contar o que sabe a qualquer um, voc
vai se tornar mais vulnervel.
Tadeu digeria aquelas informaes. No tinha medo de que Anabel pu-
desse atac-lo ela certamente podia, mas de alguma forma ele confava
nela. Talvez fosse seu ato heroico e benefcente daquela noite que transfor-
mara a relao dos dois em algo tranquilo e amvel mas, por outro lado,
talvez ele no devesse se pr tanto assim nas mos de algum.
E quando algum nos invade. . . Pode acabar descobrindo alguma
coisa? Uma memria, uma informao, ou. . .
Tadeu parou de falar ao perceber que aquilo estava mesmo estranho.
No precisou olhar para o pai para saber o tipo de olhar que dele vinha, ou
que a prxima frase seria lentamente sibilada.
O que est acontecendo, Tadeu?
Tadeu pensou que, ironicamente, contaria ao pai sobre o acontecido.
Alguns garotos da festa falaram umas coisas sobre iniciao. . . Disse-
ram que iam me atacar, e pensei que eles pudessem saber coisas sobre mim.
E a eu no quis que eles me atacassem.
Por um momento Tadeu pensou ter visto Galvino relaxar ao ouvir do
que se tratava.
O que aconteceu depois?
Doce iluso. . .
223
Voiui l
Eles foram embora.
O pai pensou um pouco antes de responder.
Bom. . . difcil dizer. possvel estar dentro do castelo de algum
e ver um desenho. . . Uma pintura de algo em uma parede. Pode ser uma
memria, mas tambm um sonho. Um plano para o futuro, um desenho que
a pessoa fez. No h como saber.
Tadeu concordava, com o olhar perdido.
E h tambm a sala verde.
Amanda achou que j havia ouvido tudo o que precisava para refazer
tudo que havia desmoronado com Tadeu, mas parecia haver mais.
Sala verde?
. . . Respondeu Barnabs, fechando a porta. Ele e Amanda acomo-
daram-se na notavelmente arejada sala em que j tradicionalmente estuda-
vammagia. o que me vem mente quando penso emobter informaes,
minha querida. . . Mas ainda assim no nada preciso.
M-mas o que essa sala?
onde fcam as coisas que nos so mais caras. Explicou ele. Mas
de que adianta? Mesmo se houver retratos de uma pessoa na sala, o que
bastante comum. . . Podem ser de uma pessoa que se admira. Ou de um
grande amigo. Um irmo, uma irm. Raras vezes temos como obter dados,
flha, esta a triste verdade.
Mas. . . Como eu acho essa sala? Perguntou Amanda.
Hmm. . . Bem. . .
Barnabs deu uma livre risada, olhando num leve ngulo para a flha,
querendo lembr-la de algo.
Hmm. . . Certo. Desculpa, pai.
No h problema.
Amanda lembrou-se do que Barnabs havia dito a ela logo depois de
comearem a entender melhor a estranha realidade de Neborum, em que
quase tudo era modifcvel, malevel, simplesmente passageiro coisas po-
diamaparecer ou desaparecer semrazo aparente, pessoas podiamir a qual-
quer lugar ou fazer coisas que ela, sentada no cho em seu corpo de carne e
osso, jamais conseguiria. E o segredo para fazer tudo aquilo no era o como,
mas uma mistura curiosa de conhecimento e inteno, j que em Neborum
nem tudo se torna possvel apenas porque possvel. Para que se faa algo,
preciso saber de antemo que aquilo em particular possvel, e por que se
desejaria faz-lo.
Saber da existncia da sala verde e para qu ela existia era o su-
fciente para que Amanda conseguisse ach-la se quisesse. Ela sabia que
224
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
conseguiria usar seu iaumo como uma espcie particular de guia, sentindo
a direo empurr-la em direo sala, a sala ser puxada em direo a ela.
Agora. . . Disse Barnabs. Durante todo esse tempo temos trei-
nado seu acesso a Neborum e como voc se porta por l.
Sim.
Voc j consegue fcar de p, andar, correr. . . O mundo lhe parece
melhor?
. . . Acho que sim.
Muito bem, flha. Muito bem. Agora hora de fazer tudo isso sem
mexer sequer um msculo desse seu corpo que est aqui, nesta sala.
225
Captulo 31
Infltrado
Dois dias haviamse passado desde que Dalki estivera na casa de Hourin,
e a flha do falecido parlamentar ainda no estava bem. Continuava na casa
de sade, num estado delicado. Sem poder contar com ela, Dalki fez o usual:
refez os traos que compunham a vida de Hourin e chegou a um nmero de
pessoas com as quais deveria conversar. Aquilo ia levar algum tempo.
A primeira visita seria justamente aquela da qual o chefe de polcia es-
perava obter menos informaes teis. Ianni j estava prxima aos cem
rosanos, sendo mais jovem que o irmo Hourin. Vivia em uma jir ao oeste
de Al-u-een, numa casa confortvel e amistosa, que no parecia ter sido
construda com muito dinheiro: tudo tinha um caracterstico ar de segunda
mo, desde o sof cqui ao vaso verde no corredor oblquo, passando pela
mesa bamba, as cadeiras consertadas com tiras grossas de goma escura e os
borrados azulejos vermelhos da cozinha, de onde vinha o cheiro agridoce
de um molho de tomate em fervura.
Deve saber por que estou aqui, senhora Ianni.
claro. Aquiesceu ela, fechando os olhos e sentando-se no sof.
Meu irmo.
Sinto muito.
Ele no me far falta, senhor Dalki. Ela era uma senhora magra e
baixa, com um ralo cabelo cinza escuro caindo do lado de um longo rosto.
Sua voz era baixa, embalsamada em experiente aceitao. Espero que o
senhor encontre quem o matou, pois este um crime lamentvel, claro. . .
Mesmo se fosse outra pessoa. Mas meu irmo, ele. . . Infelizmente no era
mais parte da minha vida.
Por qu? O que houve?
Bem, ele. . . Ela parecia sobretudo cansada. Ele deixou de par-
ticipar da nossa famlia h muito tempo. J era fechado antes disso, mas. . .
No h muito a dizer.
Entendo. Quando foi a ltima vez que falou com ele?
J faz rosanos! Encontrei-o no centro da cidade. Trocamos algumas
palavras, nada demais.
Certamente a senhora sabe do que dizem a respeito dele.
227
Voiui l
Sei, claro.
A senhora acaso sabe se ele era realmente um mago?
o tipo de coisa que ele mataria para encobrir, senhor Dalki. Eu no
estaria aqui se soubesse desse tipo de coisa.
Dalki se limitou a concordar.
Peo desculpas. Retratou-se ela, respirando fundo. que o senhor
no sabe o quanto tm me perguntado sobre isso. Eu s quero esquecer o
meu irmo. Ele nunca me fez nada de bom e desde que morreu s motivo
de tormenta para mim.
Quero acabar com isso para a senhora. Quanto mais cedo soubermos
o que aconteceu, melhor. Ele tinha propriedades aqui por perto?
Ela negou.
As terras que ele tinha fcavam no norte. Disso eu sei!
Dalki percebeu que ela passou a olhar para a cozinha. Talvez o molho
no fogo estivesse quase queimando, ainda que o cheiro continuasse convi-
dativo.
. . . Bom, creio estar incomodando a senhora por tempo demais.
Disse ele, levantando-se. Ianni levantou-se ainda mais rapidamente, olhan-
do-o com um belo par de olhos inocente. Se houver algo que a senhora
tenha para me dizer, saiba que posso ouvi-la a qualquer momento.
Bem, na verdade. . . Disse ela, lembrando-se de algo. No deve
ser nada demais, claro, mas talvez. . . Talvez meu flho possa saber de mais
pessoas que tenham entrado em contato com o meu irmo nesses ltimos
dias.
Seu flho. Repetiu Dalki, intrigado.
Lembro que Lenzo, este meu flho que falei, esteve aqui h algum
tempo e. . . Durante a visita perguntou sobre Hourin. Queria saber onde ele
morava. Acho que o senhor pode fazer algumas perguntas para ele. Algum
devia querer saber, no ? Por isso perguntou para ele, e ele perguntou para
mim.
Alguns policiais foramdesignados para vasculhar a casa de Hourin a fm
de encontrar novas informaes, uma busca minuciosa e atenta para a qual
Dalki no tinha pacincia. Enquanto ele terminava a conversa com Ianni,
Kenner acabava o andar de baixo da casa. O alto homem com negros cabe-
los de caracis e um ar malandro que jamais o abandonava, mesmo quando
vestia a farda de policial, foi encarregado da revista. Kenner passou os olhos
por todo o escritrio, cheio de registros de terras em Al-u-een, Al-u-ber e
Karment-u-een, alm de correspondncias quanto a decises fnanceiras e
administrativas em cada uma das propriedades. Afora isso coisas sem
228
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
substncia ou referncia a quaisquer problemas; frias cartas com comuni-
cados simples e impessoais fcavam ali algumas barras de ouro que j
haviam sido levadas para o prdio da polcia por Dalki, alm de uma poro
de roupas que no pareciam ser usadas h bastante tempo. Todas melhores
que o uniforme azul-escuro que vestia.
Lumier, que nascera em Den-u-tenbergo, era um atltico garoto, no de-
sabrochar da idade, que trabalhava com ele naquela operao. Acabara de
entrar para a fora policial de Al-u-een e, afoito por mostrar-se til, inves-
tigara com esmerada dedicao o quarto de hspedes da casa no segundo
andar. Ele descia as escadas quando anunciou que terminou de vasculhar os
pertences da flha do poltico.
Qual o nome dela mesmo?
No sei. . . Dalki no me disse. Respondeu Kenner. O que falta
l em cima?
O quarto do prprio Hourin. Deixei por ltimo. . . Vou l agora.
No, Lumier, olha. . . Kenner pensava em um jeito casual de dizer
aquilo. Voc pode ir. Embora. Voc trabalhou bastante, j. Eu cuido
daquele quarto.
No, essa a sua chance de descansar! Eu posso cuidar de l, j cuidei
do segundo andar todo mesmo, e. . .
Lumier sentiu-se estranho por um momento, com a viso turva seguida
por uma viso de si mesmo descendo a escada, passando por Kenner.
Eu. . . Tudo bem, ento, chefe. Disse ele, por fm.
Kenner no sorria, e seus penetrantes olhos verdes pareciamdeixar clara
a violncia para a qual s faltava a agresso. Sem dizer mais nada, comeou
a subir as escadas.
Lumier achou aquilo um pouco estranho, mas seguiu em frente. No
sabia mais o que tinha visto, afnal; quando tinha aquelas dores de cabea
fcava mal-humorado e tendia a ver tudo com olhos maldosos. Kenner deve
ter achado sua atitude esquisita; s isso. Descer a escada daquele jeito, com
a mo na cabea. . . Talvez tivesse passado tempo demais em contato com
a poeira dos quartos de hspedes. J havia sentido aquelas sensaes antes,
emDen-u-tenbergo, mas achava que elas tivessemfcado no passado. Talvez
fosse hora de procurar um mdico. Chegou at mesmo a chamar Kenner de
chefe, posio de autoridade que no lhe correspondia. Estranha confuso.
Kenner, do topo da varanda que o corredor do segundo andar formava,
observava Lumier ir embora da residncia bloqueada pela investigao. Es-
tava sozinho na casa do poltico mais controverso da cidade, e agora era sua
chance: se pudesse descobrir alguma coisa naquela casa. . .
A magia nem sempre funcionava maravilhosamente para todos os ma-
gos. Em Al-u-een, em particular, era difcil tentar alcanar tudo o que se
quisesse sem se expor demais. Kenner era policial h bastante tempo; um
229
Voiui l
sonho muito antigo. A ideia de ser o responsvel por manter a ordem na
cidade fazia com que ele se sentisse uma pessoa de valor. Sonhava com um
maior reconhecimento para esse valor Isso crime, por acaso?, pensava.
Ainda assim, no conseguira subir de posto tanto quanto gostaria. Sendo
um esplico, naturalmente conhecia outros magos, mas naquela cidade a
infuncia precisava de tempo para agir. Para Kenner, estava demorando
tempo demais. Tinha que encontrar algo. Algo irrefutvel. Algo que fzesse
surgir uma oferta uma proposta, um pedido, uma demanda irrecusvel.
Aquela era a oportunidade de ouro para descobrir algo que expusesse os
magos de Al-u-een.
Ou Hourin era um mago, pensava Kenner, ou era um yutsi famejante.
Procurou no armrio. Nada encontrou entre as roupas, nas gavetas e
portinholas. Procurou no banheiro. O ba de viagens estava vazio. Mas o
que procurava jamais seria guardado de maneira to bvia. Oque procurava
estava em um lugar um pouco menos simples.
O cho da casa era de corvnia. No havia uma parte que fosse mvel,
visvel, debaixo da cama ou em qualquer lugar acessvel. Kenner costumava
esconder moedas de ouro debaixo de um assoalho de madeira solto durante
a infncia. Aquilo no era possvel naquela casa.
No no cho, certamente. . . Mas as paredes do lugar eram todas de
madeira.
As casas da rua, da vizinhana inteira eram assim, afnal: estruturadas
em corvnia, mas cobertas com madeira. O quarto de Hourin era sbrio e
comum: os mveis eram marrons, nem muito escuros, nem muito claros, e
as placas retas que formavam as paredes eram de um empalidecido amarelo
solar.
A pintura era mantida em dia, mas se houvesse alguma brecha nas t-
buas que compunham a parede especialmente uma que tenha sido usada
recente e regularmente ela seria vista se o observador se aproximasse o
bastante.
Com o rosto quase colado parede, o policial esplico observou algo
que parecia ser um desnvel de luz na parede na parede em frente cama.
Olhou por um ngulo menor, ao custo de um pouco menos da luz da tarde
que entrava pela janela aberta. Deu um sorriso matreiro pensando no que
estava prestes a fazer.
Deu um chute no lugar certo: com um forte rangido seco, a metade de
baixo de uma tbua que ia at meia-altura da parede afundou para dentro,
com a metade de cima saltando em direo a Kenner. P e partculas secas
de tinta voavam sem rumo. A parte de baixo da tbua encostava na ponta
do que parecia ser um pedao de tecido, escondido mais esquerda no com-
partimento que Kenner desvelara.
230
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Era uma espcie de sacola de algodo. Como tecido amontoado no topo,
estava fechada com uma fna corda de couro de bufo num lao simples.
Dentro havia uma srie de papeis dobrados. Estavam bem dispostos, en-
chendo a sacola de maneira comportada.
Kenner pegou um dos papeis encaixados em um dos cantos. Leu o con-
tedo com difculdade: a letra no era das melhores, mas tampouco contri-
bua a pouca habilidade com a leitura.
Entusiasmado como h muito tempo no fcava, a ponto de ter fnos
calafrios de excitao, leu outra.
Perdeu cerca de meia hora ali, sentado na mesma posio de quando
comeou a primeira carta. No havia mais dvida quanto ao que achara.
No havia mais dvida quanto ao lugar para onde ir a partir dali.
Kenner entrou no saguo principal do Parlamento de Al-u-een com um
sorriso travesso. Aquele era um lugar de pouca luz, onde uma srie de es-
ttuas representando grandes momentos da cidade foi erigida ao longo da
parede, construindo um abrangente arco em torno dos recm-chegados. No
meio de colees coesas de homens, todos trabalhando em prol de algo, f-
cava uma bancada ptrea em que um homem loiro, de longos clios e pele
brilhante, informou a Kenner o caminho at o gabinete.
Bom dia, Kenner.
Bom dia, senhor Kent.
Kenner o conhecia de seus primeiros rosanos enquanto policial, fazendo
trabalhos de segurana na instituio. Agora os dois se encontravam na es-
cada para o terceiro andar; ele descendo, Kenner subindo. Nada que provo-
casse suspeitas, afnal.
Bateu porta, o que era uma formalidade: sabia que a pessoa com quem
queria conversar estava ali, e sabia que estava sozinho. Podia v-lo, solitrio,
no topo de umgrande e intricado castelo murado. Hideo, que no o conhecia
pelo nome, abriu a porta do gabinete francamente surpreso com a visita de
um ofcial da ordem.
Boa tarde.
Boa tarde. Quero falar com o senhor.
Quem voc?
Meu nome Kenner. Posso entrar ou no?
Seus olhos, bemempacotados numrosto achatado, acompanhavamuma
boca e um nariz medianos; suas orelhas de aspecto retangular iam bem com
a apresentao impecvel da roupa, do cheiro, do seco cabelo preto bem
aparado. O homem que, em suma, tinha tudo no lugar verifcou o vazio do
231
Voiui l
corredor antes de fechar a porta. Lidar com um policial no era exatamente
preocupante, mas receber um policial mago. . .
Sente-se. Sobre o que se trata?
Kenner admirava a luxuosidade clssica da sala enquanto sentava-se
frente da mesa do poltico. Armrios grandes no ambiente pequeno, uma
janela fechada, um sof planejado, uma planta podada e uma mesa de canto.
Hideo, eu vim aqui porque. . .
Perdo, mas ns por acaso nos conhecemos? Perguntou Hideo.
Ham. . . No, no nos conhecemos. Kenner ria, assumindo uma
postura cada vez mais casual enquanto avanava. Sou um dos policiais
que est cuidando da casa do Hourin. O senhor deve ter ouvido falar.
Do caso, claro. Do senhor que no. Ele baixou os olhos por um
momento, pensativo. Achei que somente o chefe podia fazer entrevistas.
No estou aqui para entrevistar ningum.
Hideo juntou as mos, entrelaando os dedos acima da superfcie met-
lica presa ao tampo da escrivaninha. Arqueou-se para frente, ensaiando um
sorriso, e desviou o olhar ao escolher as palavras da reprimenda.
que. . . Voc continua me chamando pelo meu nome. No entendo
nossa proximidade, garoto, me desculpe.
Voc vai logo entender.
Diga o que quer de uma vez. Sugeriu ele, desfazendo-se em inc-
modo, cruzando os braos. Pelo seu bem e o bem dessa cidade voc sabe
que eu no tenho tempo a perder.
Kenner tirou de dentro da longa jaqueta negra um papel, mais amare-
lado que o usual e um pouco amassado depois de ter sido irregularmente
dobrado. Hideo o tomou nas mos e o abriu, iniciando uma leitura descom-
promissada.
. . . Talvez agora entenda, Hideo.
Kenner seguia a pupila de Hideo como um predador. Ela parou de se
mover; sinal de entendimento. Ele estava refetindo. Seus dedos no se
moviam; ele sequer ajustava a carta para poder ler a metade de baixo.
Em Neborum, nenhum movimento.
Voc no faz ideia do que est fazendo, seu moleque! Vociferou em
voz baixa Hideo.
Fao sim.
Quanto voc quer?
No quanto, o qu! Consertou Kenner. Somos criminosos, eu e
voc. Mas eu ainda sou leal cidade. Leal de verdade.
Voc um hipcrita. O que a cidade ganha se voc me chantagear?
Isso voc quem decide. O que eu sei que eu quero ser chefe de
polcia de Al-u-een. Nada demais.
232
Captulo 32
Planos
J erammais de duas horas da manh quando bateram porta do simpl-
rio casebre. Saram das entranhas da cidade logo depois que Lenzo partiu;
uma fuga que Hiramentendera. Lenzo era umnefto assustado. No vivera
o sufciente para entender o quo necessrio era salvaguardar Heelum dos
magos. Ele deveria descobrir a si mesmo no podia ser forado a nada,
afnal.
Kan guardou para si o conselho que lhe dera.
O percurso foi cansativo e um tanto quanto inseguro, especialmente du-
rante a noite, quando abandonaram a charrete e seguiram por passagens
inabitadas entre as colinas ao sul do Rio Ia. Estavam em uma afastada jir
prxima aos giseres de goma escura em que aquela populao trabalhava,
amontoada em casas. Algumas eram pintadas; outras fcavam s na ma-
deira, despidas de vaidade pelos donos quase desprovidos de coisas mais
importantes.
Ouviram um estalido metlico. As trancas da porta se abriram, e um
homem do lado de dentro se revelou na luz do minrio vermelho que Hiram
trazia consigo. Tinha no corpo e no rosto marcas indelveis de labuta e
idade. Com barba e cabelo desorganizados, estava com o maxilar inchado.
Vocs demoraram. . . Disse ele, parecendo mal-humorado.
Entravam rapidamente, procurando em outras casas sinais de indesej-
vel viglia.
O que aconteceu com voc? Perguntou Hiram, apertando os olhos
em frente ao rosto do dono da casa.
Ah, nada. Um problema na boca. Falava como se estivesse com a
boca cheia. O que voc fez dessa vez, Hiram?
Voc no soube, ento. . .
Ah, aqui tudo chega tarde. Ele fechou os olhos e balanou a cabea,
desgostoso. Diga!
Pegamos Hourin. Disparou Raquel.
Os olhos do homemvidraram-se nela, que sentava-se emuma cadeira no
canto da pequena sala. Gag estava alerta, de olho no lado de fora atravs de
uma pequena abertura na janela esqueltica. Kan e Hiram permaneciam de
233
Voiui l
p enquanto o homem sentava-se lentamente, quase em estado de choque,
prximo parede que dividia a sala da cozinha. Uma, decorada com cores
quentes; a outra, com uma pintura azul-clara mal acabada.
Hourin? Aquele Hourin?
At o Hourin? Perguntou Kan, confuso.
Aquele Hourin? Repetiu o homem.
Sim. O parlamentar, Toroko.
Um tenso silncio seguiu-se. Kan, habituado com a casa, foi servir-se de
gua. Raquel parecia esperar que Hiram se virasse para ela. Queria poder
apress-lo.
Voc. . . Ah, Hiram. . . Dizia Toroko, soando ao mesmo tempo com-
preensivo e triste.
No precisa, meu amigo. No precisa. Interrompeu Hiram, sorri-
dente, colocando a mo por sobre o ombro de Toroko.
Bem. . . Aquele homem mereceu. J conheci muita gente boa que
trabalhou pra ele. . . Ele um monstro!
Kan no havia entendido direito o que Toroko disse, mas preferiu no
perguntar.
Queremos saber se pode nos ajudar com alguma coisa, Toroko.
Disse Raquel.
J deixamos a charrete no meio do caminho, como voc pode ver.
Hiram fez um aceno com a cabea para a bagagem que Gag carregava nas
costas. Kan voltava da cozinha com o copo mo. Qualquer coisa nos
ajudaria. De verdade.
Para onde vocs vo?
Para Roun-u-joss.
Certo. . . Disse Toroko, inquieto. No se preocupem, que eu no
vou dizer nada a ningum.
No tem problema. Disse Kan. Eles vo saber que fomos pra l.
Kan. . . Advertiu Hiram.
Como?
Lenzo. Um dos nossos que. . . Desistiu de fugir.
No! Gente detestvel que no se pode confar! Toroko ps a mo
no queixo depois de uma pontada de dor no rosto.
Ele diz que ns o atacamos para for-lo a nos ajudar. Piamente acre-
dita nisso, e o que ele vai dizer polcia.
E vocs fzeram isso?
claro que no.
Novamente a quietude desceu sobre a casa. Gag prosseguia, quase im-
vel, parado em frente janela. Ningum queria apressar Toroko, mas quase
sentiam que precisavam. Ele levantou-se e entrou na cozinha, passando por
234
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Hiram e Kan. Estes se olhavam, um sem conseguir fazer sentido do que o
outro queria dizer. Era apenas um medo; velado, escondido, calado.
Os barulhos de portas abrindo e fechando com estrondos lembravam
Kan, que dera uma rpida olhada no que havia na cozinha alm da gua,
que no podiam contar com muito mais que um pedao mordido de po e
alguns tomates. Toroko voltava do cmodo carregando dois deles.
o que tenho. . . Disse ele, srio. Hiram os entregou a Gag, que
comeou a arranjar espao para eles. Voc sabe que eu estou do seu lado,
Hiram. difcil no ter muita comida. . . Mas deve ser mais difcil no ter
uma casa para morar!
Raquel levantou-se, andando ansiosamente por perto de Kan. Pensou
que pareciam bandoleiros, roubando no meio da noite comida de quem j
tinha pouco.
difcil, Toroko, verdade que difcil. Disse Hiram, respirando
fundo. E voc tambm sabe como . Eu no me sinto em casa em lugar
nenhum. No me sinto em casa no meu prprio corpo, sejamos honestos.
Nesse mundo no existe mais autonomia, meu amigo. No existe mais li-
berdade.
Toroko parecia quase prestes a chorar quando aceitou de Hiram um
abrao cheio de energia vacilante. Tiveram todos uma vigorosa despedida,
seguida de desejos de boa viagem na escurido.
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Captulo 33
De Enr-u-jir a Al-u-tengo
O centro de Al-u-tengo era to parecido com todo o resto da cidade que
seria fcil passar direto por ele sem perceb-lo. Mas o fm da estrada para o
Norte, justamente em frente unio entre o Rio dos Roncos e o Rio Podre,
deixava claro que eles chegaram s entranhas da cidade dos arqueiros.
A arquitetura baixa e despretensiosa construa um cu estranhamente
amplo para um lugar populoso. Jen e Richard chegaram ao hotel na manh
do vigsimo-stimo dia de inasi-u-sana, por perto das onze horas da manh.
O lugar tinha escandalosos dois pavimentos uma verdadeira raridade
mas no era de qualquer maneira espetacular. Logo saram para ir ao nico
lugar que os interessava: o Exrcito.
A viagem que terminaram fora rpida e tranquila com a exceo, tal-
vez, do desaparecimento do mapa. Ele seria til, mas no era realmente ne-
cessrio para chegar a Al-u-tengo. Seguiram em frente durante todo o dia
anterior, passando a maior parte do tempo na Grande Floresta de Heelum,
muitas vezes margeando o Rio dos Roncos.
Os roncos eramanimais quadrpedes de porte mdio, comuma acinzen-
tada pele enrugada e seca. Eram pesados para o tamanho que tinham e leve-
mente assustadores no apenas pelos sons que faziam, que deram nome
aos animais, mas pelo rosto, que parecia exibir uma constante reprovao
irritada. Tinham uma carne tenra e suculenta, o que dava forma cidade:
jirs pequenas, em sua maioria familiares, espalhavam-se pela foresta com
criaes do bicho herbvoro. Jen o achava bonito, o que provocava risadas
em Richard.
O que foi? Dizia ela, alegre.
Os roncos so muito feios, Jen! Voc louca!
Voc tem que olhar para eles sem procurar ver o rosto de uma pessoa.
Replicou ela. Eu sei que eles parecem estar sempre mal-humorados.
Olham para voc como se voc tivesse feito uma coisa muito, muito
ruim. Melhorou ele.
Tudo bem. Mas os olhos deles so muito bonitos, na verdade.
Ah, que romntico! Bradou ele, rindo alto.
237
Voiui l
No viram nenhum ronco pela estrada, seja porque os bichos realmente
no estavam ali ou porque passaram rpido demais por eles. Jen sabia que
s teria outra chance de v-los no caminho de volta para Enr-u-jir, j que
a jornada no os levaria a outra parte da foresta em que aqueles animais
vivessem. Mas contentou-se, sabendo que teria muito tempo ainda para ver
roncos selvagens.
Voc no pode me deixar esquecer do mapa. Comentou Richard.
Sim.
srio. Temos que comprar um assim que chegarmos l.
Ou podemos esperar para voltar pra Enr-u-jir, Richard. L eles devem
ser at mais baratos. . .
Ele balanou a cabea, ponderando a situao.
, acho que no precisamos de um at sair de l de novo.
Jen deixou escapar um sorriso. Pensara em algo absurdo.
Os magos no podem fazer isso, podem?
Richard olhou para ela, confuso.
Fazer o qu?
Sumir com o mapa.
Ele negou com um sorriso surpreso.
claro que no. . .
Ah. . . Desculpa.
Ah, Jen, por favor. . . Me desculpe. Disse ele, arrependido. Talvez
p-possam. . . M-mas at onde eu sei os magos no mexem com as coisas,
entende? Eles mexem com a gente.
Certo.
Sabia que dizem que Kinsley um mago? Perguntou Richard.
Ela voltou a olhar para ele, intrigada.
srio?
No sei. Quer dizer, dizem mesmo. Mas se verdade eu no sei.
Mas ele no usa o leno!
Richard voltou a ateno para a estrada.
o que faz a acusao toda fcar bem sria.
O exrcito fcava do outro lado do Rio Podre, ao qual Richard e Jen logo
chegaram: uma larga depresso pela qual passavam ondas e ondas calmas
de gua limpa e clara. Jen viu que havia vrias pontes, no muito distantes
umas das outras, continuando ao longo da cidade nas duas direes. Saindo
da rota, admirou o rpido fuxo de cima da estreita, mas segura ponte de
madeira em que estavam.
Por que fzeram tantas pontes?
238
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Voc no conhece a histria do rio? Perguntou Richard, juntando-
se a ela.
No sei nem porque chamam de podre. to. . . Ela no sabia como
exatamente descrever aquilo que parecia ser simplesmente puro. Claro. . .
Ele tem esse nome porque ningum consegue atravessar o rio.
Por qu? Ele muito rpido?
No.
Ento por qu?
Richard deu de ombros.
Simplesmente no conseguem. No conseguem ir em frente. Nin-
gum consegue. Todos morrem tentando. A correnteza leva. Gente que
sabe nadar muito bem se afoga, e. . . As histrias so muitas.
A pesquisadora de Ia-u-jambu olhou para baixo de novo; para as guas
que pareciamtranquilas e amigveis. No conseguia acreditar naquilo. Orio
no era to rpido, nem to largo. Tambm no devia ser muito profundo, e
a transparncia fazia de qualquer peixe mal intencionado um pssimo vilo
no que diz respeito ao quesito surpresa. A no ser que ele fosse rpido
demais. Rpido demais para que qualquer um, at quem se preparasse para
ele. Por outro lado, Richard dizia que a correnteza levava as pessoas. No
era um peixe. claro que no era um simples peixe.
Ningum que morreu acreditava nelas. Reiterou ele, afastando-se
da borda.
Em cima da ponte o vento parecia soprar mais forte, como numa voz de
vento, mas inocente ao invs de bruta e disforme. Uma voz maliciosamente
pura, como aquelas guas. E sedutora.
Seriam aquelas guas venenosas? Seria esse o segredo?
Jen tentou se concentrar, decifrar o que o rio parecia querer lhe dizer.
Sentiu como se os ouvidos fossem libertados de uma bolha de ar quando
enfm ouviu Richard quase berrar seu nome.
Jen! Ela olhou de volta para ele. J era a terceira vez que a chamava.
Vamos ou no?
O rio no deixava ningum atravess-lo, mas aparentemente permitia
a passagem pelas pontes. Era curioso como o perigo forara aquele povo a
construir uma infnidade de passarelas, muito parecidas umas comas outras
com a exceo de algumas maiores, estruturadas em corvnia como se
aquilo pudesse conter a fora da natureza que erigiu aquele mistrio. Era
a fora do humano que precisava fazer alguma coisa, qualquer coisa que
fosse, em face do inevitvel.
Jen suspirou. No podia controlar o rio, evitando que funcionasse como
funcionava. No sabia nem mesmo se desejaria faz-lo se pudesse, ou ser
capaz de faz-lo, no mnimo. Nem mesmo entend-lo, afnal, mistrio de
Heelum que era. Mas o que a cidade podia fazer era ench-lo de desvios;
239
Voiui l
lembretes de que deveria ser evitado. No fnal das contas, pensava Jen, as
pontes nunca impediriam que algum se jogasse, dali pulasse, que casse.
No eram prova de deliberada ignorncia. Ou de bravura. Nem mesmo de
estupidez ou desconhecimento. Ou de suicdio. Tudo que era possvel fazer
era estender uma mo benevolente, esperando que a oferta de ajuda fosse
aceita.
Mas os monstros ela podia tentar entender. Talvez no fossem de forma
alguma misteriosos. Mas como isso era relacionado quele rio Jen no fazia
ideia.
Passaram por ruas cada vez mais apertadas depois que saram da ave-
nida que margeava o curso dgua. O caminho era aconchegante de to
diminuto, e o cheiro de pes e biscoitos entrava nas narinas sem pedir li-
cena algo capaz de provocar sorrisos igualmente no requisitados. Por
todo lado havia lojas de caf e doces, todas muito similares, com portas e
janelas de madeira subdivididas em quadrados envidraados, balces com
minrios de luz e balconistas seguindo os forasteiros com o rosto entedi-
ado. No havia muitos clientes, mas os poucos pareciam obstinadamente
relaxados, sem compromissos de qualquer espcie esperando por eles. O
segundo andar sobrado da maioria das padarias estava ocupado por salas
em que as mais diversas profsses se exerciam. Havia ceramicistas, arqui-
tetos, escribas, relojoeiros, teceles e at mesmo professores de guitarras ou
instrumentos tradicionais, agrupados to prximos que tornava impressio-
nante, algo beirando o esquisito, o relativo silncio da feira sob a pele das
paredes.
Desembocaram ento em uma outra avenida, um pouco menos larga
que a beira-rio. Uma charrete entrava, naquele momento, em um pequeno
ptio em frente a uma casa de fachada comprida, pintada uniformemente
com um verde pouco vivo poder-se-ia dizer que j em seus ltimos suspi-
ros. As janelas pequenas eram mais prximas ao teto que o usual, e a porta
principal era simples e velha, com uma aparncia desgastada. Era o lugar
que procuravam. O Exrcito de Al-u-tengo.
Passaram pelo porto sem que o homem dentro de uma pequena guarita
esquerda da entrada perguntasse qualquer coisa. A sala de entrada do
prdio era escura; a parca iluminao vinha de alguns minrios amarelos,
posicionados distantemente da entrada, perto de uma porta por detrs de
umbalco. Tudo ali era marrom: o assoalho, de tbuas, e tambmas paredes,
pintadas com um tom mais plido da cor sisuda. O balco, angular e simples
como umgigante bloco sobre o cho, segurava alguns papeis rabiscados com
coisas que Richard e Jen no tiveram tempo de ver, j que uma mulher com
um cabelo loiro preso veio se apresentar.
Bom dia. Disse ela, com um sorriso surpreendentemente feliz para
uma militar daquele porte. O que desejam?
240
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Ol, meu nome Richard. Apresentou-se ele, com Jen logo aper-
tando tambm a mo frme da anftri. Est Jen, uma pesquisadora de
Ia-u-jambu. Estamos em viagem e precisamos de companhia.
Meu nome Anika. Bem-vindos ao Exrcito de Al-u-tengo. Que es-
pcie de companhia?
Obrigado. . . Hum. . . Bem, precisamos de algum forte. . . Acostu-
mado a viver em meio foresta. De preferncia um arqueiro. Ele olhou
para Jen, buscando apoio no que dizia.
Vieram ao lugar certo, naturalmente. Respondeu Anika, parecendo
vasculhar a mente em busca de algo. Sigam-me, por favor.
Ela deu as costas para os dois, que apressaram-se para seguir o passo
marchado da mulher de ombros largos. Entraramna ala esquerda do prdio,
atravessando um corredor lotado de portas de madeira iguais, bsicas como
a porta de entrada: sem detalhes ou identifcao de qualquer tipo. Viraram
esquerda no fnal do corredor, depois de passar por quase trinta portas, e
viraram direita novamente para entrar em um pequeno escritrio.
Jen e Richard pararam, um tanto acabrunhados, em frente a uma pe-
quena mesinha no centro da mnima sala. Por dentro a sala era um trabalho
em progresso: um jeito otimista de descrev-la. Anika foi para detrs da
mesa, abrindo uma gaveta cinzenta dentre uma srie de outras parecidas,
sem etiquetas ou papeis que ajudassem a categorizar o contedo. Jen se ar-
repiou; Richard percebeu, sem entender bem o que ela estava tendo. Anika
leu um papel que a dupla no conseguia ler.
Para onde esto indo?
Pntano dos Furturos. Respondeu Richard.
Anika voltou-se para os dois, solene.
O que vo fazer l?
Jen e Richard trocaram olhares.
Eu no. . . Acho que voc precisa perguntar isso para nos mostrar um
arqueiro. Disse Richard, tentando no fazer a frase soar muito rude.
Perdo. Disse Anika, recompondo-se. Fechou a gaveta. Sigam-
me, por favor.
Anika passou por entre eles sem olhar em seus olhos, como se fossem
duas colunas prximas demais em uma passagem apertada, e os levou at
uma das salas do corredor do qual saram h pouco.
A sala era exgua; tinha o ausente luxo estimado para um cmodo em
concordncia com o resto do prdio: uma cama e um armrio pequeno,
com duas portas e uma gaveta. A parede no parecia ter sido pintada com
o mesmo marrom, e na verdade parecia ter dado errado: a tinta era uma
espcie de vermelho que cansava os olhos com apenas alguns segundos de
observao.
241
Voiui l
Encostado ao pequeno armrio estava o arco de aparncia compacta,
mas com curvas perfeitamente esculpidas: era letal como nenhum outro;
uma genuna arma de Al-u-tengo. Em cima da cama estava a fretra que
carregava uma srie volumosa de fechas, e ao lado dela um homem alto
e forte, sentado com os ps no cho o que deixava seus joelhos acima
da linha da prpria cintura. Ele lia um livro de capa negra felpuda, logo
guardado quando o guerreiro percebeu que a porta se abrira. Levantou-se e
olhou com frmeza para Jen e Richard, que o encararam de volta.
Gregor. Disse Anika. Estas pessoas de Ia-u-jambu esto indo
para o Pntano dos Furturos. Acredito que precisaro de voc.
Ento todas as suas atribuies esto esclarecidas?
Gregor fez que sim, e sorriu. Jen e Richard descobriramna maior parte
do tempo adivinharam, fazendo estimativas baseadas em evidncias que
ele era um homem experiente; certamente muito bem treinado. Tranquilo
e monossilbico, apenas afrmava que faria todas as tarefas com excelncia.
No fez nenhuma pergunta alm do bsico.
Ento pode subir e dormir. Partimos pela manh.
Ele assentiu, e logo deixou a mesa murmurando um simptico e quase
tmido boa noite. Jen o ftou com apreo enquanto ele carregava escada
acima o corpo construdo, a grande e larga face retangular e o cabelo negro
seco e preguioso.
Ele parece perfeito. Disse Jen assim que ele estava longe o sufci-
ente.
, verdade. Concordou Richard, bebendo o resto de gua do copo.
Acho que fnalmente vou viver uma aventura. Vamos, q-quer dizer,
ns dois. Ns trs.
. . . Mas voc que no v viver uma aventura com ele, hum?
Jen se surpreendeu, fazendo Richard abrir um sorriso inquisidor.
Que ideia essa, Richard? claro que no!
Sei. Ele fez uma voz fna para imit-la. Ele parece perfeito!
Ah, Richard, por favor. . . Eu no quero nenhumtipo de envolvimento.
, eu tambm no. Respondeu ele, recebendo um olhar curioso por
parte dela. E no se preocupe que voc no corre risco.
Ah, certo. Ento eu que devo te alertar para voc no viver uma aven-
tura com ele, porque se vocs brigarem eu no vou ter foras para lutar com
ele, obviamente. . .
Ele a nossa fonte de comida e nossa garantia de proteo. Eu no
sou louco de mexer com isso. . . Argumentou ele. Mas me diga. . . Por
que voc no est procurando por algum?
242
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
No sei. Penso que. . . Autoconhecimento, sabe? Penso que no s
por monstros que eu procuro nessa viagem. . .
Eles mantiveram um olhar frme, recproco, por mais algum tempo. Jen
pediu mais gua para o copo de Richard e, tomando-o do colega, levantou-o.
Bebo nossa viagem e ao nosso futuro, meu caro Richard!
E ela bebeu um gole, entregando o copo de volta a ele, que sorriu.
nossa viagem e ao nosso futuro, Jen.
243
Captulo 34
Mal educados
Pare.
Byron e Tornero estavam do lado de dentro da carruagem laranja do
mestre. O silncio, quente e nervoso, atravessava as paredes, as portas e as
janelas vedadas por cortinas cor-de-lavanda. Estavam em um lugar ao leste
da cidade, com algumas baixas colinas separando-os do Rio da Discrdia.
Chame um deles aqui.
Acredito que sim, mestre, mas se eles no estiverem. . .
CHAME UM DELES AQUI, Tornero! Ralhou Byron, furioso.
Tornero gostava dos riscos e sabia que no seria realmente difcil con-
seguir aquilo, mas o problema naquele momento era o fno equilbrio que a
relao entre Byron e ele sempre exigira. Um era tipicamente o homem da
estratgia, enquanto o outro jamais se cansaria de ser aquele a sentir o fogo
da batalha arder frente do prprio rosto. Mas Tornero sentia-se terrivel-
mente amedrontado quando convivia com o lado perturbado do mestre, que
vinha tona quando ele era contrariado. Sentia-se pego pelos calcanhares
comumgolpe rpido e indefensvel, e tudo o que podia fazer era se balanar
como um peixe. Odiava se sentir daquele jeito.
Logo ouvirampassos acelerados na grama, que acabaramquando a porta
lateral da charrete se abriu bruscamente com um estalido fno. Uma mulher
comcabelos longos, de umloiro sembrilho, olhou para o interior da charrete
com olhos curvados, como se permanentemente cansados.
Byron tomou conta da situao, expulsando-o do castelo dela com as
prprias mos. H um segundo estava prximo alma daquela mulher,
girando-a rudemente em uma ventania que ele no tinha pacincia de mol-
dar. A prxima coisa que percebera foi que estava rolando na grama, indo
parar a vrios ps da porta principal do castelo que invadira, dolorido e sujo.
Fechou os olhos e esmurrou a grama.
A mulher entrou na charrete, sentando-se ao lado de Tornero cheia de
reservas.
Quem voc? Perguntou Byron.
Enrita. . . Ela respondeu, distrada.
O que esto aprendendo?
245
Voiui l
Ela olhou para ele com as pupilas tremendo e o corpo acuado, que dei-
xava claro sua vontade de fugir dali o quanto antes.
Agora, por outro lado, queria fcar.
Lamar contou histrias. . . Respondeu ela.
O que esto aprendendo a fazer, sua ignorante! Respondeu ele. Ela
desviou o rosto, assustada, enquanto ele gesticulava grosseiramente, entor-
tando a boca ao falar. Em magia!
E-eu no sei, no nada no, ns s. . . Fazemos uma s-sensao nos
outros, d-de. . . De conforto, eu. . .
O rosto de Byron comeou a se transformar.
Conforto? Vocs andam por Neborum normalmente?
A confuso no rosto da entrevistada se acentuou de forma aguda. Olhou
por uminstante para Tornero, que ainda estava arqueado para frente, pondo
os cotovelos nos joelhos.
Neborum? O que isso?
Aconsternao sumiu da face de Byron to rapidamente quanto surgira,
e um riso dormente tomou seu lugar.
Ouviu isso, Tornero? O pupilo assentiu discretamente. Eles no
sabem o que Neborum, Tornero.
Sua risada fcou cada vez mais cheia e satisfeita, mas nempor isso menos
trpega. Enrita o encarava com um tipo peculiar de vergonha. No estava
entendendo quase nada do que acontecia.
Pode ir, mulher. Disse Byron.
Sem pensar duas vezes, Enrita abriu a porta da charrete e saiu correndo
para longe. A porta foi voltando devagar, sem ranger, ocultando para Tor-
nero a viso da fugitiva.
Tranquilize-a, Tornero.
Estou fazendo isso.
Faa mais. Ordenou ele. . . . Voc estava certo, Tornero. Arranje
tudo como quiser. Isto uma permisso e uma ordem.
Antes do encontro parcialmente espontneo com Enrita, Byron visitara
Caterina. Pediu a Tornero que permanecesse na charrete, cuidando de qual-
quer ateno que lhe fosse dirigida. Andou decisivamente at a porta da
alorfa, que a abriu antes mesmo que ele se anunciasse. Eles se viram, ento.
Em Neborum e ali, a um brao e meio de distncia um do outro. Ela marcara
sua posio como uma fortaleza do lado de dentro. Ele, do lado de fora, no
fez meno de entrar.
Voc me deve uma explicao.
246
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Voc est surpreendentemente alterado para um bomin, Byron.
Afrmou Caterina, to assertiva quanto ele, cruzando os braos.
Sei usar o que sinto contra quem merece.
Voc deve estar falando de Alice. Cortou Caterina. Ela foi o
problema, no eu. Eu votei com voc.
Quieta! Disse ele, num impulso.
Ou suas intenes so fceis de descobrir continuou ela, desafadora
ou pensamos de forma parecida.
Ele deu um passo frente. Ela bateu a porta parede depois de uma leve
recuada, afrmando-se com postura. Os dois se olhavam tambm, frente a
frente, do lado de fora do castelo de cada um. Ele sara primeiro, com mos
quentes de onde saa uma volumosa fumaa de fuligem; ela, com um longo
chicote negro nas mos, tentava disfarar as pernas trmulas ao regular-
mente trocar de lado o peso corporal.
exatamente por isso replicou ele que ns dois no podemos
ocupar a mesma cidade.
Voc no pode me derrubar, Byron. E isso no um desafo. um
fato.
Um vento seco atingia insidiosamente Neborum ao redor dos dois cas-
telos.
Muitos me colocaram onde eu estou e eu no vou desistir de lutar esta
luta. Continuou ela. Uma luta que muitos deles nem sabem que existe
ou o que .
Voc no tem condies de ganhar essa luta. Ele abaixou o tom de
voz, copiando o jeito passivo-agressivo da parlamentar. Prima-u-jir no
o seu lugar.
O meu lugar onde eu estou.
No. Voc ainda no est no seu lugar.
Byron virou-se e comeou a ir embora, desaparecendo de cena tambm
em Neborum. O pulso de Caterina disparava, e ela sentiu uma onda de
ousadia que no conseguiu impedir de explodir.
As pessoas esto acordando, Byron! Ele parou, ouvindo de cos-
tas. Voc no pode controlar tantos por tanto tempo! As pessoas esto
comeando a entender como tudo funciona, Byron!
Ele recomeou a andar. Caterina controlou a vontade de perguntar se
ele havia entendido o que ela dissera, e entrou de novo no prprio castelo e
na prpria casa. Trancou ambas as portas.
247
Parte IV
Memria
Captulo 35
Vida bandida
A priso de Prima-u-jir era um anexo apodrecido do exrcito da cidade,
que por sua vez era um grande prdio verde-claro, notavelmente bem ad-
ministrado. As paredes da cadeira eram vermelhas, tanto do lado de dentro
quanto de fora, e recebiam externamente a iluminao de tochas acopladas
laje do andar nico, que pressionava com um amarelo sujo e mofado as
cabeas dos prisioneiros. Do lado de dentro, cada cela era uma verso me-
nos luxuosa dos cmodos mais miserveis da cidade; um grupo de trapos,
uma espcie de prato cncavo acobreado e uma latrina rasa, ftida mesmo
quando vazia.
Nade de anormal havia acontecido naquela aula at ento, com a ex-
ceo, talvez, da chuva, que ameaava cair com fora nas prximas horas.
Lamar percebera que menos pessoas vieram, e nesse cenrio isso era per-
feitamente compreensvel.
Lamar comeara a aula ao propor, emluz de acontecimentos que ele con-
siderou prudente guardar para si, que as aulas fossem transferidas para ou-
tro lugar. Logo alguns alunos aventaram possibilidades. Algumas bastante
ruins, envolvendo espaos completamente desconexos da rede de estradas
o que poderia signifcar uma verdadeira viagem de duas ou trs horas
a p at o local. Outras eram interessantes, mas poderiam chamar muita
ateno. Lamar percebera que a sugesto deixara os alunos inquietos. Nada
anormal tampouco.
Comearam a aula de fato, deixando a discusso para depois. Apenas
alguns minutos haviam se passado quando o professor ouviu um barulho
incmodo. Numrefexo automtico lembrou-se dos risos histricos que Tor-
nero provocara em uma das aulas, mas no eram risos que ele ouvia. Era
algo de todo tmido e contido; um choro pequeno.
As duplas comearam a se dar conta do pranto, e Lamar correra para al-
canar uma mulher de pele escura e olhos grandes. Agarrou-a pelos ombros,
num gesto bruto, mas preocupado. O vento cada vez mais forte entortava o
caminho de lgrimas no rosto da moa de vestes esmeraldinas. Ela ocupara
suas tmporas com as palmas das mos, retas, e no parecia disposta a dizer
qualquer coisa.
251
Voiui l
Ouviram outra voz feminina chorar, e um homem prximo a ela na pr-
tica que faziam tambm comeou a estreitar os olhos e soluar, ajoelhando-
se ao cho.
Os alunos, atordoados, pensavam se seriam os prximos na inexplic-
vel sinfonia, e olhavam em volta como se um monstro estivesse espreita.
Lamar tentava pensar no que fazer quando ouviu uma voz masculina, que
reconheceu ser trazida at a aula por um minrio de som.
Esta a polcia de Prima-u-jir.
A voz veio de um lugar atrs da colina, mas no parecia muito longe.
CORRAM!
Os alunos dispersaram-se o quanto antes para todos os lados, desco-
ordenados, e logo os policiais surgiram. Vestindo grossas capas negras e
brandindo espadas, avanaram contra alguns alunos que tentaram escapar,
inutilmente, pelo lugar por onde vieram. Outros conseguiram fugir. Esta-
vam em maior nmero e muitos, mais jovens, corriam mais rpido.
Lamar lamentava a cena com um misto de raiva e desespero desde o
instante em que comeou. Ainda assim, tudo aquilo parecia surreal; aquelas
pessoas correndo, fugindo, e ele fcando para trs. Uma brincadeira, uma
interrupo semsentido, uma encenao que estava se prolongando demais.
Deixem! Deixem! Dizia Tornero, ordenando que os perseguidores
no se preocupassem com os alunos.
Lamar sentiu um agudo arrepio, e o dia pareceu ter escurecido ainda
mais. Deu meia-volta, engolindo em seco. Os policiais se aproximavam. Ti-
nhama boca leve e mecanicamente curvada para baixo, verdadeiras esttuas
de guerreiros que eram, donos de uma legtima fora sem misericrdia.
No p-p. . .
Lamar tentou falar, mas um dos guardas o interrompeu com um soco na
bochecha esquerda.
Lamar queria dizer que iria cooperar, mas o discurso sequer comeou.
Caiu com o rosto no cho, tingindo a grama com um pouco de sangue. Foi
posto de p novamente; no viu quemtorceu suas mos para trs das costas.
Contou pelo menos dez agentes da lei de Prima-u-jir, que se reuniram em
torno dele.
Ento nos encontramos. Disse Tornero, sorridente. Tem alguma
coisa a dizer, Lamar?
No conseguia pensar. Ainda tremia com o impacto que recebera, e a
sensao emseu rosto era esquisita, os msculos ainda procurando por uma
forma de se rearticular. Foi logo levado para um grupo de charretes, que
avanaram para o centro da cidade num turbilho.
Incrdulo, envergonhado, por fm esperando que aquilo tudo fosse um
pesadelo, Lamar era arrastado de um lado para outro, quase inconsciente do
252
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
que lhe acontecia. Foi recuperar parte do autocontrole quando foi jogado
na cela por dois brutos soldados.
Lamar no dormiu naquela noite. Sua cabea formigava com culpa,
raiva, frustrao nunca se sentira to mal, dentro de um jogo to srdido.
Sentado, apoiava as costas na parede da janela; o cubculo em que fora co-
locado fazia fronteira com outros dois. Uma parede separava os cmodos,
vazios. frente havia barras de ferro sujas e arranhadas, e para alm delas
o pequeno corredor que dividia as celas do lugar. Depois disso, mais e mais
celas, iguais umas s outras, vazias como as expectativas de Lamar.
Myrthes e Ramon fcaram para trs. Esse era o fato mais aterrador, do
qual no conseguia se livrar. Gastava boa parte do tempo imaginando como
eles estavam. Se o governo da cidade conseguiu pr as mos neles de alguma
forma ou se estavam em casa, preocupados com seu sumio.
Logo aps pensar em algo, encontrava argumentos para defender o ce-
nrio. Quando ele era muito preocupante, logo se punha a procurar por
motivos que fariam tudo aquilo perder o sentido.
Aquilo que deveria fazer o deixava ainda mais angustiado. Era nesses
momentos da refexo que o cansao era brevemente vencido, e Lamar aca-
bava precisando andar dentro da cela. No podia se comunicar com Kerinu.
No podia se comunicar com a famlia. O problema era, afnal, o quanto
Tornero sabia sobre ele. Ser que teria ido at Kerlz-u-een para buscar in-
formaes? Teria se dado a esse trabalho? Se ele sabia da existncia de
Myrthes e de Ramon e nesse caso, ainda, onde encontr-los ento seria
inteligente barganhar pela segurana da famlia. Daria qualquer coisa. Faria
qualquer coisa.
Por outro lado, sabia que no podia fazer ou dar qualquer coisa a ele.
Se Tornero queria apenas vingana, punio, prazer o que tudo indicava,
afnal ento a nica coisa que teria a oferecer era justamente a separao
em relao famlia, ou coisas ainda piores. Pensou em cenrios absurdos,
que o fzeram segurar-se parede por alguns instantes de vertigem. Uma
onda de calor passou por seu corpo, alertando-o de que uma barganha no
seria nada inteligente. Ele precisava ser prudente. Precisava estar seguro e
coloc-los em segurana. No podia mencion-los. No podia se preocupar
com eles.
Lgrimas de impotncia enchiam os olhos de Lamar enquanto ele per-
cebia quo pouco ele podia fazer.
Um dia se passara. Lamar deveria ter voltado para casa. Myrthes deveria
ter comeado a procurar por ele. E certamente o faria na cadeia primeiro.
Ou, no mximo, na casa de sade, na esperana de que fosse antes uma
doena do que a priso.
Ele deveria ter pressentido aquilo. Coisas assim no simplesmente acon-
tecem. Quanto mais pensava mais ele chegava concluso de que aquilo era
253
Voiui l
inevitvel.
Ainda que tivesse sido evitvel.
Estava cansado daquele jeito, preso ao mundo da lucidez. Ao mundo
do que escolheu e do que fez. Pensava nisso enquanto percebia, ao longe,
o som de uma porta prxima. Tentou se arrumar no cho, mas desistiu ao
sentir dor nas articulaes.
J est pensando que foi uma m ideia ter comeado a dar aulas, La-
mar? Perguntou Tornero, aparecendo no corredor por detrs das barras
de ferro.
Lamar tentou dar a ele um olhar cheio de desprezo. Respirou fundo,
pensando que devia evitar at mesmo esse tipo de sentimento.
No.
Tornero ps os cotovelos em alguns dos espaos entre barras, apoiando-
os em um cano transversal, e encaixou o rosto em outra reentrncia. Lamar
recostou-se ainda mais parede.
Eu no vou parar. . . sussurrou o homem do lado de fora Entenda
bem. . . At que voc sinta, Lamar, que foi uma m ideia ter nascido.
E isso que eu mereo? P-por ensinar as pessoas o que acontece em
Prima-u-jir?
Tornero distanciou-se, parecendo mais soturno como olho esquerdo por
detrs de uma sria sombra vertical.
Talvez. Talvez merea mais.
Lamar olhou para o cho, balanando a cabea. No fazia sentido olhar
para Tornero.
Por que voc me odeia? Foi porque eu fui escolhido primeiro?
EU era pra estar l! EU! Vociferou ele, prontamente apontando para
o prprio peito.
E eu no queria nada daquilo. . . Replicou Lamar, voltando-se para
o inimigo por momento. Viu de relance que Tornero ainda tinha os olhos
bem abertos, em uma postura exaltada. Eu no entendo. Voc conseguiu
o que voc queria. . . Voc conseguiu tudo.
Escute bem, Lamar. . . Ns temos o que temos porque merecemos.
No vamos deixar ningum se meter nisso. No vamos deixar ningum
tirar isso de ns.
Lamar no respondeu. Ficou um pouco tonto, mas sabia que no estava
sendo controlado. Sentia-se, de certa forma, protegido pelas barras da ca-
deira. Tornero podia vir insult-lo e prometer que ele sofreria; poderia at
tortur-lo enquanto isso no acontecia, mas enquanto Lamar estivesse ali
nada de pior lhe aconteceria.
Voc, Lamar, no deveria ter voltado.
Com um olhar de quem confere pela terceira ltima vez se o alvo fora
mesmo atingido, foi embora.
254
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Qualquer acontecimento demorava um tempo longo demais para acon-
tecer. Entre os horrios em que recebia alguma comida arroz e po, secos;
gua; por vezes uma poro de uvas roxas, a maioria podre ou batida so-
fria coma solido e a incerteza quanto ao que estaria acontecendo no mundo
de que fora excludo.
Passou a dormir mais, aproveitando ao mximo o dbil pano azul bor-
dado com motivos vermelhos. Era feio e gasto, mas servia; ora como col-
cho, ora como cobertor. No podia us-lo com os dois propsitos sem
torn-lo intil para ambos. Seu sono era agitado e inconstante, desconti-
nuado por fome, sede ou por momentos de viglia em que ele no sabia se
estava verdadeiramente acordado.
Houve um momento em que pensou ter ouvido a voz da mulher; talvez
o choro do flho. No deu muita importncia, j que ouvira tambma voz do
prprio pai, a voz de um Byron muitos rosanos menos velho, e imagens de
si mesmo mais jovem de todo tipo de experincia que tivera assaltavam
sua mente, aleatrias e tingidas com uma espcie de dor que no costumava
estar l. No daquele jeito.
No terceiro dia de clausura fora avisado que seria levado mais tarde para
um banho. Ele esperou, tentando novamente lembrar-se do que signifcava
o tempo, e como cont-lo. Ele no deveria ser muito grande, nem muito
dolorido de ver passar.
No entanto, a prxima pessoa a aparecer no foi um guarda. Um ho-
mem de meia-idade, alto e vestindo uma elegante capa azul, abriu a porta
de barras de ferro com a chave da cela. Lamar no entendia o que estava
acontecendo. O homem no sorria, mas tampouco demonstrava qualquer
emoo hostil. Olhou para o lado e chamou, com chiados discretos, um
garoto.
Ele devia ter vinte e cinco rosanos, comcerteza no mais que isso; baixo,
vestia uma verso menor e mais fechada da capa azul do misterioso ho-
mem. Reconheceu as mesmas feies nos dois: o mesmo formato do rosto,
a mesma inexpressividade.
O homem de azul olhou para o menino e fez um sinal para o lado de
dentro. O garoto obedeceu, de braos cruzados, parecendo levemente acu-
ado por alguma espcie de louca novidade que o prisioneiro representava.
Olhou diretamente para Lamar, que sentiu uma espcie de curiosidade he-
sitante crescer em um olhar que, antes de temeroso notava ele agora
declarava-se decididamente fascinado.
Lamar levantou-se, devagar. Percebeu que o homemestava tenso, olhan-
do ora para ele, ora para o garoto. As pernas de Lamar doam, e os braos
por pouco no excediam os membros inferiores em desconforto. Curvado
255
Voiui l
e praticamente manco, Lamar avanou lentamente em direo s barras da
prpria cela, para se apoiar e voltar ao normal. Omenino acompanhara seus
passos com um interesse que beirava o macabro.
Quem so vocs?
Lamar apoiou-se na barra de ferro horizontal frente quando come-
ou a sentir frio; um frio incomum, surgindo como se uma pedra de gelo
tivesse se materializado dentro do prprio tronco. Uma pontada o fez fe-
char os olhos. Sua perna tremia, mas o que antes eram movimentos rpidos
transformaram-se em uma contrao de msculos cheia de inteno. Como
num refexo, a perna direita queria dar a volta em direo parede.
Lamar olhou para o menino, que apertava os dentes com fora ao f-
xar um olhar raivoso no peito de Lamar. O suor comeava a encharcar seu
pescoo.
Lamar comeou a ser puxado para trs. Deixou de se segurar por um
momento, enlouquecido pela surrealidade daquele momento: o mestre trou-
xera o discpulo para treinar. Para treinar nele.
Deu dois passos para trs e se desequilibrou, mas no caiu; as coxas
doeram ainda mais. Seus ombros gritavam por socorro. Tentava manter o
p direito no cho, mas o esquerdo comeava a tremer loucamente. Tentava
manter a mo direita sobre o prprio quadril, impedindo-a de fazer qualquer
outra coisa, mas sentia a esquerda dormente. Desistira de tentar prevenir
uma queda que parecia inevitvel.
No. . . Murmurou ele, instantes antes de sentir-se vencido.
Deu uma desastrada meia-volta e, tomando um impulso que no sabia
que tinha, jogou-se com fora contra a parede.
Caiu de costas no cho, tonto e gemendo de dor. Sua viso fcou turva,
mas levantou-se como se algum o estivesse puxando.
Depois de fcar em p foi at as barras. Virou-se e correu como pde
em direo parede. Estatelou-se no cho com a cabea latejando, os lbios
arrebentados e o corpo desconjuntado como um saco de ossos desconexos.
Lamar sentiu os braos livres de uma presso que no tinha percebido
que sofriam. Fechou os olhos e tentou respirar fundo; seu rosto estava mo-
lhado de suor e sangue. Ouviu algo indistinto, e ento sentiu uma presena
quente e sorrateira ao lado. No teve coragem de abrir os olhos e ver o rosto
genuinamente impressionado do menino.
Voc um alorfo, no ? Disse ele, sem precisar da resposta para
seguir adiante. Quer ensinar magia para todo mundo? Voc acha que eu
quero todo mundo fazendo isso comigo? Seu idiota!
E partiram, trancando a porta ao sair.
256
Captulo 36
Vida nova
O cu, perfeitamente azulado e alinhado, parecia ter planejado os mni-
mos detalhes. Conspirador, isso que ele foi. O cu encontrou uma maneira
magnfca de favorec-los e era importantssimo que nada desse errado.
Sentavam, os dois, debaixo de um baob frondoso, to vigoroso quanto
sbio. A luz fcava vontade sob as folhas, e eles tambm. Ficaram de
joelhos na grama, empertigando-se. ALeila de vinte rosanos no tinha nada
para proteger suas articulaes, to fraquinhas, j que usava um vestido
quadriculado amarelo e laranja. Ele usava uma cala azul-escura. A melhor
que tinha, ainda que esse no fosse fato notrio e pblico.
Ela olhou bem no fundo dos olhos verdes de Beneditt, apenas um pou-
quinho mais velho que ela. Aquele seria o primeiro beijo dos dois, e eles
sorriam e tremiam juntos, divertindo-se, de mos dadas, ao curvarem-se
para frente e encostar os lbios em um toque carinhoso, sincronizado com
a inspirao profunda de cada um.
A verso infantil de Leila lembrava-se, sorrindo como boba, daquele dia.
Espraiou-se na grama enquanto o pai, de quem herdara os lbios faceiros,
sentava em um banquinho ao lado dela, tocando um ritmo leve na guitarra.
Ele parou e olhou para ela, que escondia os olhos da luz do gigante sol
com uma das mos.
O que foi?
Nada, pai. . .
Ele olhou para os campos e rvores ao redor, como se procurasse por
algo.
No, o rio no est por aqui. No consigo nadar sem gua.
Ah, pai! disse ela, dando uma risada.
Ele mexeu um pouco na afnao da guitarra, e ela disparou, incontro-
lvel:
Pai, sexo ruim?
Ele olhou para ela, curioso.
No, flha. De onde voc tirou isso?
Ah, que. . . Todo mundo fala bem pouco nisso, e quando falam pa-
rece que uma coisa. . . Ruim. Argumentou ela.
257
Voiui l
O pai voltou-se para a guitarra, pensativo.
No, flha, que. . . que ns de Novo-u-joss temos pudores, s isso.
Pudores? Perguntou ela, sem entender.
. . . Ns achamos que existemhoras apropriadas pra falar sobre sexo,
entende? Horas, lugares. . . Pessoas. Ela balanava a cabea afrmativa-
mente. Voc, por exemplo. Voc a minha flha, ento tudo bem falar
com voc. Voc sabe que pode falar comigo sobre tudo, no sabe?
Claro, pai! Ela sorriu. Assim que o assunto fcou suspenso sua
mente se voltou para o beijo de Beneditt mais uma vez.
Isso ter pudor, flha. Nememtodos os lugares assim. Ento a gente
no fala. . . Nem faz. . . Ressaltou ele. Sexo em qualquer circunstn-
cia. . .
Leila continuava balanando a cabea, comeando a sentir na vergonha
das bochechas o sentido do pudor. Tinha toda a liberdade para usar a pala-
vra, mas seu conhecimento era to vago e frio do que sexo de fato era que
o uso parecia imerecido; um clice de sabedoria e poder que tinha que ser
ganho na ponta de uma espada.
Est vendo aquela rvore, flha?
Ele apontou para uma planta baixa e seca que, com quase nenhuma fo-
lha, retorcia-se em direo ao cho. Leila no pde deixar de compar-la a
umcorvo. Ela parecia agonizar lentamente rumo morte do mundo vegetal,
que era sempre sutil e graciosa.
Uhum.
Ela parece feia, no ?
Leila deu uma olhada mais criteriosa na rvore.
No bonita como as outras. . .
porque ningum fez nada com ela. Ainda. Disse ele, com uma
voz didtica. A natureza capaz de coisas fantsticas, Leila, mas ela
muito. . . Irregular. Bruta, at! Mas se soubermos o que fazer. . . Podemos
tirar beleza de tudo.
Leila observava a rvore com mais cuidado, e agora at um pouco de ca-
rinho. Tendo admirao por tudo que o pai fazia, dera quela testemunha da
crueldade do tempo um status especial. Fora exemplo de um ensinamento,
afnal.
E isso no pouco, no ? Riu ele. Ela franziu o cenho. Sexo
tambm natural. . . Mas depende de ns. Disse ele, seu dedo em riste.
E isto um sonho, flha.
Leila observou o tempo parar enquanto o rosto do pai travava-se em
uma espcie de decepo sombria. Um estranho som de fundo surgia aos
poucos, preenchendo a cena com o mpeto da destruio iminente.
Ela acordou num nervosismo rpido. A luz da manh incidia sobre seu
corpo em um quarto azul-beb, agravando a sbita dor de cabea. Passou
258
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
a mo pela barriga, braos, cabelo. Certifcou-se de que no era mais uma
criana. Duvidava pela milionsima vez seus procedimentos para tal.
Tombou na cama de novo, com o crebro em frangalhos. Sentiu um
arrepio que perpassou o corpo inteiro, revelando numa onda cada dor que
sentia; nas costas, nas pernas, nos braos. Reconstitua os acontecimentos
da noite anterior, e viu com amargor que lembrava de tudo. De cada detalhe
asqueroso. Da presso dos dedos do homem rude que grunhia como ronco
doente. Do percurso tenebroso que fzera de madrugada emdireo ao hotel.
Fechou os olhos, esfregando as mos na testa e deixando a culpa consumi-la
pelas beiradas da conscincia, criminosa, injusta.
Sentia-se engasgada, e desejava no ter que levantar e enfrentar o que
quer que aquele dia reservasse. Mas, por outro lado, sabia que tinha um
lugar para ir se quisesse transformar sua dor emumsacrifcio minimamente
racional.
Leo estava de braos cruzados, a cintura encostada ao roupeiro. Bene-
ditt estava ao lado, tambm apreensivo. Seimor, de costas para eles, olhava
para fora pela janela. Fjor, sentado na cama com uma perna cruzada, lia o
contrato que a banda deveria assinar.
Os quartos do hotel eram todos parecidos; as diferenas se deviam ao
lado do prdio em que foram construdos. Padronizados, todos tinham as
mesmas paredes azul-beb, com a mesma cama de colcho confortvel e
cabeceira azul real, um guarda-roupa espaoso que estendia-se at o teto e,
por fm, um criado mudo de gavetas que parecia um rebento do gigantesco
armrio.
Um barulho na porta causou comoo. Leo e Beneditt chegaram mais
perto, afoitos, enquanto Seimor limitou-se a voltar a cabea para o curto
corredor de entrada. Leila entrava vestindo a mesma roupa do outro dia,
suja e amassada, enquanto os outros usavam vestes limpas, ainda que de
gosto duvidoso.
Leila? Voc est bem? Perguntou Leo. Por que voc no trocou
de roupa?
Ela deu de ombros, passando direto pelos olhares de incompreenso e
estranhamento. Acenou friamente coma cabea para Seimor, que sorriu por
um instante, e sentou-se ao lado de Fjor. Ele entregou os papeis recm-
chegada, que pegou na mo o contrato, olhando por cima algumas palavras.
Msica. Agente. Cidades. Viagens.
A verdade que estar naquele lugar dava vontade de vomitar.
Leo e Beneditt trocaram olhares consternados, mas assumiram que ela
ainda no tivesse se recuperado totalmente da noite anterior. Seimor tinha
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Voiui l
levado a guitarrista desmaiada para uma casa de sade, e os convencera a
aceitar a generosa oferta de abrigo e ajuda; era o mnimo que podia fazer.
Foraminformados de que ela voltara para o hotel durante a manh, mas pre-
feriu dormir mais. Ela vai melhorar, pensou Leo. Ofuturo a faria melhorar
logo, logo.
Parece bom. Disse Fjor. S no entendi o porqu da polcia.
Indagou ele, voltando-se para Seimor.
uma tradio da cidade. A polcia resolve as disputas legais.
Fjor est sempre dizendo alguma coisa. . . Disse Leo, rindo nervo-
samente.
Fjor ignorou o comentrio do irmo e fez umaceno rpido para o agente,
considerando a explicao boa o bastante. Leila entregou o contrato nas
mos de Leo.
Bem, se ningum mais tem nada pra falar. . . Disse Leo, dando um
passo frente, em direo ponta da cama. Leila percebeu o quanto ele se
controlava para impedir que a mo tremesse loucamente. E-eu. . . Quero
uma caneta, senhor Seimor. O senhor tem uma?
claro.
O agente tirou de dentro de vestes verde-berrantes uma caneta e um
pote cilndrico de tinta fechado. Leo o abriu cuidadosamente, equilibrando-
o sobre a cama, e mergulhou a ponta metlica do pequeno basto de madeira
no lquido negro e viscoso. Levou tudo at a estante em frente cama,
atrapalhado, e rabiscou seu nome por cima da ltima pgina.
isso? Leila via o brilho intenso nos olhos de Leo. isso, Seimor?
, meu caro rapaz. Disse ele, se aproximando e, comumgesto muito
mais seguro e preciso, ps ali sua assinatura. Parabns, Buscando. Vocs
tm um agente musical de agora em diante.
Leo abriu um sorriso de orelha a orelha, e ps as mos atrs na nuca,
rindo em um tipo desorientado de alegria; olhava para Fjor, que comemo-
rava de um jeito mais discreto, e Beneditt, que estava nervoso demais para
fazer qualquer coisa.
Leila achava que aquilo poderia ser mais fcil se a barganha fosse com-
pleta. Quando tudo tivesse dado certo, e ela enfm pudesse ver um sorriso
que compensasse a escolha que fzera. Mas ainda no era mais fcil, mais
simples ou indolor. A imagem magoada e ressentida da mulher de Dun-u-
dengo no saa de l; daquele lugar de onde sua mente no saa.
Bem, meu trabalho aqui est feito por ora. Disse Seimor, reunindo
os papeis em sua mo.
Obrigado, senhor. Disse Leo, mais do que rpido ao oferecer a mo
para um aperto grato. Muito obrigado por tudo.
Leila no conseguiu se controlar a ponto de impedir que uma lgrima
casse do olho direito. Coma mo que segurava a boca secou-a rapidamente,
260
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
querendo evitar que algum a visse fazendo aquilo. Precisava comear a
fngir que estava bem. No podia ter um desconforto to duradouro.
Quando teremos nosso primeiro ensaio?
Que bom que mencionou. Respondeu Seimor. Amanh mesmo!
Uma charrete vir busc-los em torno das duas horas. J estamos com os
instrumentos.
Que timo. Que timo, senhor Seimor. . .
Era inspirador, de uma forma amargamente trgica, que aqueles sorrisos
coexistissem com a tristeza que ela sentia.
Seimor foi embora, e Fjor levantou-se para falar algo que parecia muito
importante. Ele e Leo se olhavam, e um parecia estar pedindo desculpas
ao outro. Fjor agradecia Leo por ter acreditado. Leo agradecia Fjor por ter
acreditado, mesmo sem ter acreditado. Leila via tudo pelo canto dos olhos,
seguindo os sons como iscas mas sem entender o que era dito. No silncio
artifcial desenvolvia uma linha de baixo e uma sequncia de acordes de
guitarra.
Levantou-se e, com um olhar ausente, anunciou que iria voltar para o
quarto; que os veria no ensaio, que precisava descansar, que logo estaria
melhor. No soube como a mensagem saiu, mas a inteno foi sincera e
bem organizada. Saiu e encontrou o caminho das escadas.
Ento era isso que ganhava? Era isso que sobrava depois do ltimo
talvez o mais importante esforo? Sentia-se subitamente trada pela ima-
ginao. Queria tanto falar com o prprio pai vontade que o sonho da-
quela manh revelou ou instigou. No sabia se devia pedir desculpas, ou
simplesmente chorar em seu ombro acolhedor, mas queria decididamente
ser capaz de v-lo.
Como podia tirar beleza daquilo? Como podia transformar aquilo?
Deveria haver um jeito.
Tinha que haver um jeito.
Leila. . . Leila!
Beneditt a interrompeu no meio de uma vertigem; quando ela se recupe-
rou, percebeu que estava encostada parede, escorregando lentamente para
o cho. Beneditt estava ao seu lado, segurando-a nos ombros, assustado com
a garota lvida que via frente.
Leila, o que houve? Fala comigo, Leila!
Eu. . . Eu estou bem, Beni, srio. . . Respondeu ela, colocando a
mo na cabea dolorida.
Est vendendo sade, claro. Anda, vem comigo.
Ela j estava se sentindo melhor mas, por receio da solido e por apreo
companhia de Beneditt, aceitou apoiar-se no amigo. Caminharam juntos
para fora das escadas do hotel, entrando em um dos pavimentos.
Esse no o meu andar.
261
Voiui l
Eu sei. o meu.
Chegaram ao quarto vinte e dois.
Leila dormira a maior parte da tarde. Foi um sono tranquilo, vigiado
por Beneditt, que se perguntava o que que a havia deixado daquele jeito
indito. Beneditt passou a mo pelo longo e relativamente grosso cabelo
escuro de Leila, que espalhava-se selvagemente pela cama. Com as pontas
dos dedos ps sua franja lateral atrs da orelha, e com os ns acariciou seu
rosto suave. J escurecia e nem uma vez ela se mexera. Que bom, pensava
ele; um sono provavelmente livre de pesadelos.
Mais tarde saiu do quarto, trancando a porta pelo lado de fora por pre-
cauo. Foi at o bar do hotel, feito de um luxo marrom que os minrios
amarelos, uniformemente distribudos pelas paredes, no conseguiam tor-
nar claro; O ambiente era sustentado pelas sombras e pelo olhar cansado do
atendente, cujas plpebras cadas inspiravam simpatia. Beneditt pediu por
uma jarra de gua. Quando voltou para o quarto, Leila j estava sentada na
cama, com um meio-sorriso.
Desculpa, eu te acordei? Perguntou ele.
No.
Ele deixou a jarra em cima do criado mudo e sentou-se cama.
O que aconteceu com voc, Leila?
Nada. Sua barba est grande.
. . . Ele riu um pouco. No vai ser assim fcil, Leila, pensou ele.
Oito dias, sabe. Ficamos num hotel bom, mas no quis tirar ela ainda.
Leila balanou a cabea, criando com o movimento uma afrmao lenta
e compreensiva. Ele lanou um olhar de julgamento para a companheira de
banda.
Leila?
Sim?
Voc ainda no me disse.
Beni. . . Se voc meu amigo, vai me distrair hoje. s isso que eu
quero.
Ele olhou para baixo, pensando nas vrias coisas erradas e perigosas
naquele pedido.
Beni, por favor. . .
Ele menou a cabea.
Sobre o que eu no posso falar? Perguntou ele.
Por qu?
Podemos falar sobre o Leo, por exemplo?
Beni, eu j te disse. . . Comeou ela, impaciente.
262
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Baixa a guarda, Leila! Interrompeu ele. Pode ser sincera comigo.
Eu sei que isso que est te incomodando. ou no ?
Leila pensou que seria prefervel um assunto desconfortvel a outro.
Aplicando a lgica torta de que apenas uma doena pior para que a menor
deixe de fazer sofrer, Leila confrmou com os olhos. Continuava indecisa,
entretanto, quanto gravidade do problema. No era uma doena pior, mas
esperava que funcionasse mesmo assim.
Certo. . . Voc pensou que fcaria mais feliz quando tudo desse certo.
. . . . Ela no sabia se estava sendo sincera, o que tornava aquela
conversa ainda mais confusa.
Mas. . . Esse ainda no o problema. . .
Beneditt tentava adivinhar o que ela sentia. Seria melhor ajud-lo a ir
na direo oposta.
que. . . Eu sinto tanto por ele, mas. . .
Os dois conheciam a histria. Ela nunca conseguia se livrar da sensao
de que queria mais de Leo; de que queria estar com ele, ser sua mulher de
que o queria mas que aquilo nunca parecia ser o certo a fazer.
louco, eu sei. tolo. Eu sei que te chateio falando disso.
Ele no respondeu. Ela continuou.
Mas como se. . . Se algo me. . . Impedisse de chegar nele, sabe? No
chegar, como. . . Como se eu fosse fcar com ele por uma noite. Beneditt
olhava para o cho do quarto. Esse era seu jeito; Leila sabia que ele estava
ouvindo. Como se houvesse alguma coisa se colocando entre ns dois,
algum. . . Obstculo. Quer dizer, isso sou eu. . . Quanto a ele eu no sei.
Ele fca com outras mulheres. Voc fca com outros homens.
No tanto quanto ele, voc sabe disso.
Assim parece que ele faz isso demais.
No, mas. . .
Tudo bem, no isso que importante. Disse Beneditt, encerrando
aquela discusso.
Sim. . . Voc tem razo. , sim. . . Eu ter que ver ele com outras
mulheres bem ruim, mas. . . como as coisas so.
Beneditt olhou para ela com um olhar curioso, espremendo os olhos
como se tivesse encontrado algo estranho no que ela disse.
Eu sonhei com o nosso beijo hoje de manh. Disparou ela.
Beneditt afastou-se, ludicamente assustado.
Que beijo? O que no deu certo, quando ramos crianas?
. Mas no meu sonho deu certo.
Hm. . . Foi s isso o sonho?
No. Depois eu vi o meu pai.
Beneditt abriu um singelo sorriso.
E o que aconteceu?
263
Voiui l
Conversamos. At a parte que ele disse que tudo era um sonho.
Beneditt riu, lembrando de alguns de seus sonhos que j haviam acabado
daquele jeito. Eu ainda tinha uns. . . Vinte rosanos. Era pequena ainda. . .
E conversaram sobre o qu?
Ela travou. Passar tempo com Beneditt era sempre bom, e a conversa ia
bem. Satisfazia a necessidade que tinha de esquecer o que acontecera, mas
chegavam novamente ao assunto que ela preferia erradicar de sua cabea.
Sexo.
Ele concordou, silencioso. No sabia o que dizer.
E. . . Essa aconteceu? A conversa aconteceu de verdade?
Sim. S um pouco diferente, eu acho.
Na original ele no dizia que tudo era um sonho, eu imagino.
. . . Disse ela, perdida em pensamentos. Voc acha que a gente
exagerado, Beni? Q-quanto a s-sexo.
Exagerado? Perguntou ele, no entendendo a pergunta.
. Muito. . . No sei, hm. . . Cuidadosos.
Hm. Quem a gente?
Voc sabe, ns. . . De Novo-u-joss.
. . . No sei, Leila.
Voc no sai muito, Beni. Nunca vi voc namorar por muito tempo,
na verdade. Disse Leila, buscando brevemente na memria momentos em
que vira Beneditt com outra pessoa.
. . . Concordou ele, ausente. Eu acho que para algo valer a
pena. . . Para. . . Ser artstico de verdade. . . Precisamos ter a pessoa certa.
No s a situao ou. . . O sentimento. Entende? Ele parecia um pouco
frustrado por no conseguir dizer o que queria. Tem que ser algo. . . Ah,
eu. . . No sei como explicar.
Voc contraditrio, Beni! Comentou Leila, surpreendendo-o.
Voc diz que no sente como se quisesse ter uma casa, um lugar pra fcar
o tempo todo, mas quer ter uma pessoa especial. a mesma coisa, como
querer ter uma casa, um. . . Um lugar, entende?
normal ser contraditrio, Leila. Defendeu-se ele. E depois. . .
Eu posso encontrar uma mulher que queira ser minha companheira de via-
gem.
Voc acha que normal ser contraditrio? Ela falava como se con-
siderasse tal ideia como uma opo. Acreditar nisso seria bom.
Claro. Voc, por exemplo. Aceita viver essa situao com o Leo como
se isso fosse uma arte.
Qu? Perguntou ela. Claro que no!
Claro que sim. Rebateu ele, efusivo. Eu sei dizer quando voc
encontra algo que voc gosta. No sentido artstico, pelo menos. . .
E qual o problema disso?
264
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Se aquilo fosse verdade, pensou, pelo menos conheceria uma de suas
contradies.
O problema que voc acha que arte a gente que faz, no as coisas
como elas so. Ento como voc pode admirar uma coisa assim com o Leo
e pensar em arte desse jeito?
Se havia algo que Leila nunca vira como algo que pudesse mudar era
o estrangulamento que sentia quanto a Leo. Beneditt tinha razo, e por
isso no conseguiu falar depois de abrir a boca com essa inteno. Isso a
incomodava. Talvez fosse por isso que nunca conseguia ver a histria deles,
dela e de Leo, como algo bonito.
Voc no devia me incomodar. Devia me distrair. Reclamou ela.
Logo depois de sair do banheiro, Leo escutou batidas na porta. Pela
impacincia, calculou que devia ser algo importante.
Quem ?
Sou eu. Respondeu Fjor.
Abriu a porta, receoso quanto ao tipo de conversa que poderia vir a ter
com o irmo em uma hora to avanada. Fjor apoiava a testa no antebrao,
encostado no batente da porta.
Faltou dizer uma coisa hoje.
Leo cruzou os braos, curioso.
Peo desculpas tambm por ter dito que voc no corre atrs de todos
os seus sonhos.
Leo respirou fundo, lembrando da cena.
Bom, mas. . . Infelizmente voc tem razo.
, eu sei. Disse Fjor, sorrindo. Eu peo desculpas por ter dito isso
quando eu estava nervoso, mas. . . verdade. Voc no vai atrs dela, Leo.
Mas ela no gosta de mim, Fjor.
Como voc sabe disso? Argumentou ele, irritando-se toda vez que
ele mencionava o mesmo dilema. Voc j fcou com outras pessoas, mas
sabe o que sente. Sabe que voc dela. Por que ia ser diferente com ela?
Fjor sempre via fraqueza onde quer que percebesse hesitao para aquilo
que considerava uma das coisas mais simples da vida. Uma pessoa gosta de
outra; vai at ela, e se tiver sorte os dois tm prazer juntos. Por um dia,
uma noite, ou muito mais tempo; qual seria a diferena? Tudo o mais era
sofrimento desnecessrio.
Leo, contudo, sempre absorvia aquela opinio de maneira ctica.
No sei. Eu sei que eu sinto alguma coisa, e algo que. . . Ele parou,
fazendo um gesto no ar. No adianta tentar explicar aquilo, e a palavra
que deixava reservada era forte demais para ser usada na presena de Fjor.
265
Voiui l
Especialmente com aquela acusao pendente de covardia e inanio.
Mas eu no sei, eu no. . . Eu no sinto o mesmo nela. . .
Para, Leo. Voc no sente porque o medo no te deixa. Fjor afastou-
se da porta e olhou para o nada em algum ponto da parede alaranjada do
corredor, como se permitisse a si mesmo sonhar um pouco. Isso aqui vai
ser uma nova vida pra todo mundo. Voc deveria tentar uma nova vida com
ela tambm.
Leo parecia ter sido pego de surpresa por aquela ideia fascinante.
?
Voc s precisa de coragem.
266
Captulo 37
Impensvel
Desmodes parou a charrete um pouco antes da entrada do castelo do
Conselho dos magos. Encontrou dois companheiros se preparando para dei-
xar o lugar no meio da tarde nublada.
Desmodes? Perguntou Elton, ligeiramente surpreso. Onde est
Robin?
No veio. Voltou para cuidar de negcios.
Ele no avisou que faria isso. Elton lanou um olhar interroga-
trio ao mago que chegava. Janar, que viajaria com o bomin, levantou as
sobrancelhas grossas com um ar de curiosidade, acompanhando com leve
curiosidade a conversa.
Houve um imprevisto.
Como ele soube do imprevisto se estava entre os al-u-bu-u-na?
Ele esqueceu. Foi um imprevisto para mim.
Desmodes. . . Ns no fazemos isto por aqui. Disse Elton, em tom
de sermo. Se temos algo a fazer, algo que determinamos emuma reunio,
ns vamos e ns voltamos. Quando um mago no volta assumimos que algo
aconteceu.
Nada aconteceu, Elton. Duvida de mim?
Os dois mediam-se, um tentando parecer menos desafado que o outro.
Janar pigarreou, tentando lembrar Elton de que queria ir embora.
Para onde ele foi, Desmodes?
Eu j disse.
Voc no disse o nome da cidade. De onde Robin , Desmodes?
O que faz voc pensar que ele tenha me dito isso?
Elton balanou a cabea afrmativamente. Estreitou os olhos um pouco,
passou a lngua pelos lbios, e murmurou um inaudvel est certo.
Vamos de uma vez, Elton, que eu estou farto daqui. . . Disse Janar,
subindo a bordo.
Elton concordou com um aceno rpido e, despedindo-se de Desmodes
com outro balanar esguio de cabea, entrou tambm na negra charrete.
Partiram, apressados, e Desmodes observou o transporte virar a curva da
passagem entre as montanhas.
267
Voiui l
Os magos geralmente permaneciam no Conselho por algum tempo aps
uma congregao. J se passavam seis dias desde a ltima, e muitos deles j
haviampartido especialmente os que viviamemcidades distantes. Outros
partiriam dali a pouco, e alguns aproveitavam o lugar para descansar mais
antes de retornar s atividades do lugar onde viviam.
Desmodes subiu por uma das escadas, indo direto ao prprio quarto.
Tudo estava como ele havia deixado; apenas um pouco mais limpo.
Desmodes? Perguntou Dresden, passando pelo corredor. Quando
chegaram?
Nesse instante. Respondeu ele, virando-se para o mago-rei. Che-
guei sozinho.
O que houve?
Robin lembrou-se de que tinha algo urgente a fazer, e ento partiu.
Foi para onde?
Para a cidade dele. Desmodes tentou respirar fundo sem tornar o
ato bvio. Quem ainda est aqui?
No sei ao certo. . . Eu parto amanh. Poucas pessoas ainda esto
aqui, temos. . . Sylvie e Anke. Cssio, tambm. Como foi com os al-u-bu-u-
na?
Foi bem. Nosso acordo ainda vlido.
Bom saber disso. Quanto ao que disse na reunio, Desmodes. . .
Dresden pareceu estar tocando em um assunto que o incomodava. Olhou
para os lados, certifcando-se de que estavam sozinhos, e prosseguiu. No
tive a chance de te dizer, mas. . . H extremistas aqui, Desmodes. Pessoas
como voc. Desmodes assumiu feies de surpresa quando Dresden o re-
preendeu de leve com a centelha de perspiccia que faiscava em seus olhos.
Pessoas que acham que poderamos fazer mais, e que isso signifca ir l
fora e caar todo mundo. No seja mais um, Desmodes. Ou pelo menos no
os incentive. Devemos estar juntos agora, e precisamos ter cuidado. Este
conselho j sobreviveu a guerras demais sem ser descoberto. Ns j passa-
mos muito tempo sem sermos contestados. A hora chegou, e se lutarmos de
frente ser o nosso fm.
Desmodes confrmava, resignado, as palavras do rei. Apertaramas mos.
Minha charrete est esperando por mim. Preciso falar com o general
e ento irei embora. Ficar aqui?
Sim. Penso em fcar at a prxima reunio.
Vejo-o na reunio, ento.
Dirigiu-se s escadas que levavam ao trreo depois de dispensar um sor-
riso. Desmodes o seguia com os olhos.
268
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Entre.
Desmodes sabia que ela estava no quarto, e ela sabia que era ele do lado
de fora. J haviam se cumprimentado do alto das torres dos castelos, o dela
consistindo em seis altas e delgadas torres, agrupadas de maneira irregular
dentro de uma pequena rea murada. O dele era mais baixo, porm mais
extenso. Possua compartimentos de alturas diferentes, que formavam uma
espcie de pirmide de prdios. As torres de Anke eram douradas, e por
entre os blocos foresciam trepadeiras claras como os olhos da maga. O
complexo de Desmodes era uniforme e reto, cada prdio um bloco regular
e com janelas fnas. Militarmente ornado, era feito de uma espcie de pedra
negra que era mais arenosa que corvnia, mas ainda assimparecia escurecer
a atmosfera circundante em Neborum.
Vejo que est de volta. A viagem foi agradvel?
Sim. Respondeu Desmodes, fechando a porta atrs de si.
Espero que tenha boas notcias.
Est tudo conforme o esperado.
timo.
Anke vestia um felpudo roupo verde-escuro, cruzando os braos en-
quanto estudava o visitante. Corria com os olhos cada parte de seu corpo,
querendo encontrar aquilo que no sabia o que era, mas procurava; algo
que a despertava, que a interessava, e que ele por cuidado ou ignorncia
no revelava.
Pois bem. . . Por que veio falar comigo, Desmodes? Perguntou ela,
mostrando o sof verde com um abrangente gesto da mo.
Tenho uma ideia. Gostaria que ouvisse.
Ambos sentaram-se, ele seguindo o exemplo dela, que estreitou os olhos.
Uma ideia sobre o que, exatamente?
Ns sabemos como as coisas esto, Anke. No esto nada fceis.
Ela mudou de posio no sof, mostrando-se desconfortvel. Passou a
olhar para o cho.
Voc precisou de muito treino e muita dedicao para ser a maga que .
Continuou Desmodes emumritmo mecnico. E Heelumh muito sofre
com as disputas entre cidades e entre as pessoas, que esto desorientadas. . .
Aonde quer chegar, Desmodes?
Ela notou que ele nunca falava como se estivesse realmente prestando
ateno na conversa. Era como se algumlhe dissesse ao ouvido o que dizer,
e ele apenas repetisse.
Precisamos nos unir, Anke.
Ela se levantou, evitando que ele visse seus olhos cansados daquele tipo
de discurso. Foi at a janela buscar serenidade para suportar aquela chate-
ao, embora pensasse consigo que o mandaria embora assim que pudesse.
Eu j ouvi isso, Desmodes. H muito tempo ouvimos isso de Dresden.
269
Voiui l
Dresden quer um tipo de unio. Eu quero outro.
Que outro tipo? Indagou ela, virando-se para ele de novo.
Deixe-me ver se eu entendi. . .
Cssio era um bomin que agia como se fosse mais alto do que realmente
era. Com um atopetado cabelo escuro e um rosto pontudo e obtuso, an-
dava pelo tapete do prprio quarto cheio de cores das obras de arte que
entulhavam o lugar carregando uma taa de gua meio-cheia.
Voc est me dizendo que sua ideia . . . Basicamente Dizia ele,
gesticulando. fazer do Conselho um governo para Heelum inteira.
um jeito de frasear a ideia. Respondeu Desmodes, colocando o
punho fechado contra a mesa no canto do quarto.
E ento poderemos. . . Cssio ia reduzindo a voz a cada palavra,
passando para a ironia com uma ambiguidade simples, porm efetiva.
Governar Heelum e fazer as coisas do nosso jeito. . .
Desmodes voltou-se para ele, assentindo com a cabea.
Desmodes, me desculpe, mas isto no aceitvel.
Voc est dizendo que no direito nosso liderarmos este mundo?
Cssio abriu um sorriso amarelo. Atravessou a sala e ps a taa em cima
da mesa, ao lado da mo de Desmodes. Suspirou e olhou para o teto, como
se tivesse de lidar com um terrvel inconveniente. Olhou para Desmodes
novamente, to prximos que no podiam ver o corpo um do outro ao olhar
para a frente. Focavam-se um no rosto do outro, defendendo suas posies
em uma batalha verbal que comeara antes dos verbos.
Desmodes, Desmodes. . . Como dizer. . . Devo admitir que voc me
deixa intrigado. Voc assim ingnuo ou est se fazendo de idiota mesmo?
Cssio ps as mos na cintura, encarando o companheiro de Conselho
sem ressalvas. Se fssemos fazer isso mesmo Heelum se levantaria contra
ns. Em peso, Desmodes. As piores, mais. . . Asquerosas cidades viriam aqui
atravessar uma lana que nos partiria ao meio!
S perderemos se no estivermos juntos, e ao invs disso estivermos
discutindo qual cidade ou tradio a melhor.
Cssio riu de soslaio, e Desmodes saiu do diminuto espao pela lateral.
Eu no acabei, Desmodes!
Obrigado por seu tempo.
Me escute aqui! Ralhou Cssio. Desmodes estava parado, de costas,
j perto da porta. Eu j sei o que voc guarda a dentro. . . Essa, essa
confana arrogante. Voc acha que bom o bastante para ser um governor.
Olha aqui, esplico, melhor voc fcar quieto. Voc no vai sequer propr
um absurdo desses ao rei!
270
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
O silncio tomou conta da sala, largo e denso como o espao entre o
dedo levantado de Cssio e as costas imveis de Desmodes.
E se voc tentar alguma gracinha. . . Continuou, pegando a taa
novamente na mo esquerda. Eu vou acabar com AAAII!
Num estouro estilhaante, a taa quebrou na mo de Cssio. Quando o
mago percebeu, sua mo, que agora sangrava, apertava com fora a haste
do clice. frente, viu que Desmodes dava-lhe um sorriso contido como
despedida, fechando suavemente a porta do quarto. Seu castelo se afastava
rapidamente, levando consigo as ltimas nuvens da tarde.
271
Captulo 38
Hostilidade urbana
Acidade do comrcio adormecia, abraada por sombras compridas. Mui-
tos sonhavam que viviam na cidade do ouro, mas aquela era a cidade do
esforo e do reforo, no do osis da recompensa. Voltavam a dormir logo
depois de despertar. Pela manh j se esqueciam de tudo.
Uma fgura passeava pelas estreitas ruas, observando, impaciente, os es-
tandes fechados. Vislumbrava vez por outra os produtos soltos, esquecidos
ou negligenciados do lado de fora das travas e trancas, mas nada lhe inte-
ressava. Deteve-se ao virar uma esquina, observando do canto o homem
que, vestindo um grosso sobretudo azul-marinho, andava em crculos, sem
pressa. Era como se esperasse por algum com a conscincia serena de que
ningum viria. No parecia ter metas a cumprir ou lugar para ir. As mos
para trs, que encostavamnas costas dedos dodos de frio, indicavamcalma.
Ogorro azul como reconhecvel smbolo de duas tochas acesas cruzadas em
X sinalizava sua profsso.
O homem, por sua vez, viu um sujeito moreno de peito nu e rosto jovial
os primeiros detalhes a emergirem nas luzes rosadas e anis dos postes
sair das sombras e rapidamente armar um arco, apontando-o com frmeza
contra ele.
O que. . . Comeou o policial, confuso, pondo as mos para o alto.
Fique quieto. Disse friamente o agressor. Voc conhece o Des-
modes?
Quem?
Desmodes!
No conheo ningum com esse nome, rapaz. Por que no abaixa
essa, es-esse arco A arma era de um vermelho to orgnico que por um
momento duvidou que fosse mesmo de verdade. e vamos conversar?
Nariomono abaixou o arco e num rpido movimento o ps nas costas.
Surpreso com a audcia daquele desconhecido, o homem da lei respirou
fundo e meneou a cabea, sentindo um leve formigamento nas mos. Um
forasteiro no podia simplesmente fazer o que quisesse com o comandante
da polcia de Enr-u-jir.
273
Voiui l
Narion estancou depois de dar alguns passos, tentando ir embora. Seus
ps pareciam ter se grudado ao cho, mas por mais que fzesse fora no
conseguia tirar o calcanhar dos blocos e da terra. Achou estranho, j que
no sentia nada minimamente grudento na sola do p descalo.
Olhou para trs, e o policial exibia um sorriso cheio de satisfao, de
braos cruzados, se aproximando. Narion percebeu que os dois eram os
nicos homens na rua.
Voc no pode fazer isso, sabe? Apontar um arco pra mim. Os
msculos do pescoo de Narion se contraram. Sua cabea virou para frente
com um duro movimento espsmico. Quem voc?
Narion no respondeu. O policial continuou dando a volta no guerreiro
preso ao solo.
Hein, rapaz? Quem voc?
Narion movia os olhos, sentindo como se fossem as nicas partes do
corpo das quais ainda era dono, percebendo em detalhes a ignomnia feliz
daquele rosto fno de dentes tortos e olhos um tanto fora do lugar. Tentava
se libertar da priso sem ferro de todas as maneiras que concebia. Forou
as pernas, os braos, o trax mas ele estava completamente enrijecido.
No vai responder? O ofcial estava de novo atrs dele, bem pr-
ximo, falando baixinho. Narion podia sentir o quente bafo do homem pas-
sando pelos ombros, acompanhando a cinzenta fumaa que ganhava os cus
nos dias frios a cada expirao. Vai ou no vai? Eu posso fazer voc falar,
mas eu queria ouvir voc. Ande, rapaz, diga.
Eu procuro por Desmodes.
O policial fez que sim com a cabea.
Bem. . . Acho que voc no vai fazer falta, ento.
O policial desembainhou a espada e deu um passo para trs. Narion
sentiu-se ainda mais apertado, como se dezenas de cordas de ao o prendes-
sem e o tentassem matar por estrangulamento antes mesmo que a lmina o
atravessasse.
Sentiu cimbras no brao e uma espcie de vertigem enquanto a mo
esquerda alcanava o arco. A mo direita puxou pela ponta uma fecha e,
com duas presses sutis de ambos os polegares, o arco girou e a fecha con-
tornou o pescoo do dono; encaixando-se no arco com perfeio, disparou
com uma mnima tenso que o al-u-bu-u-na conseguiu imprimir antes que
a mo parecesse ter sido atravessada por uma espada em chamas.
A impresso foi real, mas a espada do policial despencou sem ter sido
usada. Narion atirou-se no cho, de joelhos, perdendo a fora que o man-
tinha tensionado de p; sentiu tremores violentos nos braos e nas coxas, e
caiu mais, rolando para o lado at fcar de barriga para cima. Logo sentiu-se
normal novamente, e pde se levantar.
274
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Viu que a fecha atingira a garganta daquele homem com uma fora ini-
maginvel. O sangue, viscoso, se espalhava em volta da cabea do coman-
dante, preenchendo as divisrias entre os blocos de pedra no cho. Narion
no sabia se o arco havia funcionado como Al-u-bu prometera, mas intua
que fosse mesmo o caso.
No queria ter feito aquilo. Na foresta, nunca teve de matar um outro
homem muito menos em Ia-u-jambu. Olhou para o policial, pedindo si-
lenciosas desculpas, relembrando todas as mortes semelhantes que vira no
fazia muitos dias.
Captou algo com o canto do olho, e ento viu que debaixo de um poste
mais largo e mais baixo, na esquina com outra rua, estavam um homem e
uma mulher vestindo trajes semelhantes aos do homem que deixara a vida
para trs. Narion conseguiu discernir rostos horrorizados embaixo de uma
fraquejada luz salmo.
A surpresa e o choque logo desapareceram. Comearam a perseguir
Narion.
A fuga durou um bom tempo, atravessando diversas partes da cidade, e
embora cada um dos pitorescos cenrios tivesse sua particularidade todos
tinham coisas em comum. Feiras ao ar livre, lojas com fachadas claras e
janelas largas, protegidas por grades metlicas retrteis, casas com pinturas
estranhas e improvisaes de todos os tipos. No se via avenidas, embora
algumas ruas parecessem mais largas que outras, com casas maiores e mais
bem arrumadas.
Narion virou direita ao perceber um espao com um pouco menos de
luz. Atraa ateno dos poucos cidados que encontrava pelo caminho, al-
guns passeando tranquilamente sob o bonito cu, outros que tinhamalguma
funo noturna parte destes, funo duvidosa.
Os policiais continuavam atrs dele, parecendo cada vez mais prximos;
sempre presentes, emboscavam-no, foravam-no a mudar de direo, faziam
barulho. Pareciam trazer reforos a cada nova regio pela qual passavam.
Viu ento que foi um erro ter escolhido aquele caminho: tinha menos
luz porque as rvores da primeira praa que encontrara, no fm da rua,
escondiam-na; ela ainda estava l, vindo forte de um numeroso grupo de
minrios verdes no centro do parque. No estava distanciando-se do cen-
tro. Embrenhava-se mais nele.
Suado, acabou parando, arcando-se para frente e pondo as mos nos
joelhos. Os policiais no estavam naquela rua, mas Narion sentia-se obser-
vado. Aquela oportunidade de tomar uma deciso lhe trouxe, em pssima
hora, uma renovada conscincia corporal. Estava cansado. Mais cansado do
que se sentira em toda a longa viagem at aquela cidade.
Erigiu o tronco e, olhando em volta, pensou melhor: a verdade que
no tinha chances contra a polcia de Enr-u-jir. Eles conheciam a cidade.
275
Voiui l
Sabiam o caminho que ele estava tomando, at onde podia chegar. Se eles
no estavamali ainda, porque o esperavamna frente. Aquela seria a ltima
das armadilhas.
Enquanto olhava para trs, viu algo que lhe chamou ateno. Uma casa
de trs andares, tijolos vermelhos vista e janelas fechadas. Aporta, grande
e marrom, envernizada e amigvel, estava semiaberta.
Narion no conseguia ver um palmo frente do nariz. Entrou naquilo
que julgava ser uma sala, avistando apenas umvaso escuro, comfores quase
mortas dentro, ao lado de uma estreita escadaria de madeira. Fechou a porta
suavemente, e esperou, imvel.
Ouviu passos do lado de fora. Chegavam mais perto rapidamente, e
Narion tentava se acalmar, retornando ao normal depois de uma intensa
corrida. Enfm o silncio reinou, do lado de dentro e do lado de fora.
Vai, vai. . . Disse uma preocupada voz feminina. Os passos reco-
mearam, agora se afastando.
Narion fechou os olhos, pensando que poderia enfm relaxar. Mas antes
de poder dormir tinha que se certifcar de que a casa estava abandonada, ou
que houvesse algum lugar em que podia fcar sem ser notado.
F-fque parado. Eu posso ver no escuro!
Narion teria fcado horrorizado com a afrmao, se no fosse pela voz
do interlocutor oculto jovial e insegura e pela dvida considervel que
o al-u-bu-u-na tinha de que algum possua mesmo aquela habilidade.
Quem voc?
Eu disse pra fcar parado!
Eu estou parado.
Ah, . . . Fique quieto tambm!
Narion levantou os braos, abrindo um sorriso. Calculava uns vinte e
cinco rosanos para o garoto, no mximo.
O que eu devo fazer agora? Perguntou.
Eu no sei. . . S-saia da minha casa!
Esta casa sua?
Para de falar comigo. . . E saia j daqui!
Eu no posso. Eles vo me matar.
Eu no me importo.
Por favor?
Por favor saia. . .
No, eu no. . . Narion balanou a cabea, irritado com a confuso.
No pedi para voc me pedir com educao. Eu estou pedindo para voc.
Eu posso fcar?
276
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Narion podia enxergar melhor agora que os olhos se acostumaram
escurido, aproveitando ao mximo a escara luz que conseguia atravessar
a grossa cortina da janela semicerrada. Ainda assim, no via com quem
estava falando.
A voz parecia vir da frente; estando em um pequeno corredor, avistava
um portal esquerda que conduzia para algum lugar com armrios altos
poderia ser um escritrio, mas tambm uma cozinha. direita havia uma
porta fechada, e o caminho paralelo ao primeiro lance de escada, cujo canto
era marcado pelo vaso de duvidoso gosto, levava a um lugar do qual Narion
nada sabia. No via os movimentos que vinham de l, mas ouvia coisas:
transferncias de peso nas pernas, o tecido das provavelmente numerosas
roupas mudando de posio, esfregando a pele de leve, o estalar de articu-
laes burburinhos e farfalhares que Narion poderia provavelmente usar
para atacar aquele incauto morador, no fosse ele inofensivo.
Quem voc?
Meu nome Nariomono. Voc tem luz?
No. Mentiu ele.
Sabe como conseguir?
Por que voc quer?
Qual o seu nome, menino?
P-por que menino?
Quantos rosanos voc tem?
Para com isso! Disse ele, veemente.
Como posso chamar voc? Parecia estar em Ia-u-jambu de novo.
Sempre tinha que perguntar isso.
. . . Meu nome Ralf.
Ralf. . . Eu no vou fazer mal.
Quem me garante?
Eu. Por favor, voc pode buscar um pouco de luz?
Contornos moviam-se por entre as folhagens murchas; Ralf ia mais para
dentro do corredor. Logo voltou, desembrulhando de dentro de um pano
grosso cor de sujeira um minrio azul-piscina, que brilhava fracamente.
Narion imaginara o garoto de umjeito bastante realista; s no esperava
as sardas e a ainda menor idade. No devendo ter mais de vinte rosanos,
era bochechudo. Tinha olhos fundos e vacilantes, e a parte do cabelo que
escapava por debaixo do gorro negro era de um loiro acobreado.
Voc esquisito. Disse Ralf, fazendo Narion se lembrar de que
tinha que lidar com o estranhamento do garoto, que no era desmerecido:
ele provavelmente nunca vira um al-u-bu-u-na, afnal. Por que voc est
sem camisa? Voc. . . Ele arregalou os olhos, mudando de posio no
corredor. Voc um al-u-bu-u-na?
Sim.
277
Voiui l
Narion examinou a casa enquanto o menino fcava boquiaberto. A sala
esquerda era uma cozinha; havia frutas e panelas nos armrios inferiores
da parede. As paredes foram cobertas com um papel de parede caramelo,
em que rosadas linhas verticais davam um tom quase infantil, apesar de
organizado, ao lugar. A mesma ideia fora aplicada no assoalho da escada,
embora o corrimo fosse da mesma cor que o piso, todo feito de lustrosas
tbuas. Narion percebeu que no gostava da sensao de seu p em contato
com aquele cho.
Por que voc entrou aqui? Perguntou ele.
Estou. . . Fugindo.
De quem?
Da polcia. De Enr-u-jir.
Ralf franziu o cenho.
O que voc fez?
uma histria complicada.
Ralf abaixou o olhar, como se no tivesse gostado daquela situao. Sa-
bia que no podia ganhar, de qualquer forma. No poderia mand-lo embora
pela fora, e Narion parecia bastante disposto a fcar ali.
Meus pais vo me matar se virem voc aqui. . .
Narion achou aquilo estranho.
Por qu?
Porque eles dizem pra nunca entrar em problemas com a polcia. . .
Narion esqueceu por um momento o que veio fazer naquela cidade, pro-
vavelmente o lugar mais longnquo que ele j visitara. Desfez-se da pos-
tura quase paternal em que, sem perceber, investira at aquele momento.
Lembrou-se dos prprios pais, e com eles vieram toneladas de recordaes
indesejadas, amontoando-se em um negrume cada vez maior. No topo da
pilha de memrias que vinha tentando reprimir estava a de todos aqueles
cones deitados no cho, mutilados, feridos, mortos.
O que foi? Perguntou Ralf, preocupado.
Narion chegou mais perto do jovem, que se afastou um pouco antes de
aceitar a aproximao. Narion ajoelhou, fcando um pouco mais baixo que
o garoto.
Um homem matou todas as pessoas que importavam para mim.
Ralf no sabia como reagir quilo. Deveria acreditar nele?
Ele era quem dizia ser; sequer sabia quem era?
Todos eles se foram. S eu sobrei.
Srio? Perguntou Ralf.
Sim.
Ento os al-u-bu-u-na no existem mais?
No. No existem mais.
278
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Para Narion, foi como se a cidade tivesse parado para que ele pudesse fa-
zer aquela declarao. Levantou-se, respirando fundo pela boca, e encostou-
se parede contrria escada. No havia dito para ningum ainda o que
acontecera, assim, em voz alta, e acabou se abrindo pela primeira vez desde
a solido a que se submeteu para um menino qualquer. No que falar adi-
antasse, de qualquer forma.
E por que voc veio para c?
Eu acho que esse homem est aqui. Nessa cidade.
E voc quer pegar ele?
Quero. A vingana parecia apropriada. . . . Mas - mais compli-
cado que isso.
E quem o homem?
Ele se chama Desmodes. um mago.
Um mago. . . Disse Ralf, baixinho, repetindo a frase para si mesmo.
O garoto contraiu os lbios, pensativo, e andou em direo porta. Na-
rion fcou preocupado por ummomento, mas ele se virou ao invs de abri-la,
e parecia querer dizer alguma coisa sem saber como.
Voc est dizendo a verdade mesmo?
Os olhos espetados em brilho do al-u-bu-u-na encontraram os receosos
anseios do garoto.
Sim.
Ento. . . Ento eu acho que eu posso ajudar.
279
Captulo 39
Decepo
Depois que as aulas com os respectivos pais comearam, cada encontro
parecia demorar o dobro do tempo para acontecer. A saudade apertava,
porquanto a distncia no estava s no tempo. Cada coisa que aprendiam
os unia e os separava mais, j que cresciam, a passos seguros e largos, em
um mundo que no podiam compartilhar, mesmo o frequentando todas as
noites.
As memrias atacavam o garoto, famintas, sedentas por nova compa-
nhia no arcabouo do passado. Nos ltimos dias, Tadeu repensava com
frequncia quase obsessiva cada uma das vezes em que viram o pr do sol
naquele lugar. O lugar secreto. Tentava se lembrar de tudo; das conversas,
dos risos, dos beijos muitas vezes detalhes que se perderam. Coisas que,
mesmo no parecendo importantes na poca, valiam agora mais que ouro
para ele.
Eram quatro horas da tarde quando ele resolveu sair mais cedo. Espera-
ria por Amanda l, no topo do morro, surpreendendo-a. Abriu a porta para
sair, com um sorriso de aventura no rosto, mas parou logo depois.
Ento aqui que voc mora!
Anabel olhava para a casa com os olhos apertados debaixo da palma da
mo; o sol incidia diretamente sobre o seu rosto. Vestia um suter verde por
cima de uma cala azul larga e elstica, e parecia estar de bomhumor. Tadeu
continuou no mesmo lugar, surpreso em frente ao curioso empecilho.
Oi, Anabel. Por que voc est aqui?
Bem. . . Eu ia te perguntar isso, mas voc obviamente mora aqui.
Ela continuava admirando o castelo. uma bela casa.
.
Bela mesmo. Depois de uma ltima olhada para a casa, indo da
esquerda direita, Anabel deixou cair a mo e deu um passou ou dois para
trs. Agora vem, vamos!
Vem? Repetiu ele.
. Voc vem comigo biblioteca, no vem? Disse ela, com um rosto
distendido em um sorriso esperanoso. Eu queria algum pra ir comigo,
mas no tinha ningum. Foi sorte ter encontrado voc aqui!
281
Voiui l
No, mas eu no posso. . . Respondeu ele, mecanicamente.
Ah, por que no? Voc est ocupado agora?
Agora no, mas. . .
Provocando o imediato arrependimento do menino semcabelo, que con-
cluiu que a mentira teria sido melhor, a ruiva o puxou pela mo, murmu-
rando um autoritrio ento. . . ajustado com um sorriso doce, ainda que
desajeitado.
Tadeu nunca tinha ido biblioteca da cidade; sequer conhecia o cami-
nho. Nunca precisou de um livro que o pai no tivesse em casa. Anabel
precisou gui-lo por entre algumas ruas largas e movimentadas at come-
ar a avanar por ruas estreitas, com casas de alvenaria pintadas em cores
claras e abetos longos nos jardins. Tadeu fcou surpreso ao passar pelo car-
trio da cidade naquela rea com seu roxo telhado pontudo por cima das
pedras marrons que muito lembravam a prpria casa.
Ela o levou ento por uma srie de escadas no meio de uma rua em que
os prdios eram mais frequentes, e as pessoas, mais raras. Entraram por um
mido tnel, que revelou-se o sto do cartrio, e saram frente de uma
praa que Tadeu s vezes visitara, quando era menor, mas nunca saindo do
cho. Agora, no entanto, tinha uma vista privilegiada, atravessando uma das
pontes que corriam de um lado a outro por cima da praa, ligando, apoiadas
em numerosas colunas, o cartrio a um hotel que funcionava em um antigo
castelo com cerca de cinco andares. L embaixo algumas crianas, jogando
fecha-roda, pareciam umenau carregando migalhas coloridas para debaixo
da terra, correndo suadas ao sabor da ttica.
Andaram por corredores e uma galeria alta at uma srie quadrada de
escadas que, espiralando, levava-os em direo ao andar trreo. Mas Anabel
interrompeu a descida no terceiro andar e os levou por uma outra conexo
com um prdio ao lado, mais austero e dividido em escritrios com portas
de tbuas juntas de qualquer jeito, feias e provisrias.
Tadeu se perguntava, rindo, onde estavam.
Forama outras praas, centros de bairros de nomes desconhecidos, atra-
vessando mais um ou dois atravs de atalhos e ruelas pelas quais poucos
passavam de p em pleno dia, ainda que muitos relapsos de olhar torto fa-
ziam daquelas paragens suas casas. Passaram at mesmo por uma porta
improvisada no canto de um muro, que os levou ao fm supostamente sem
sada de um beco.
Tadeu respirava pesadamente porque estava cansado de tanto subir e
descer por aqueles vos da cidade, mas tambm porque estava exasperado
com toda a selvageria urbana que ele, sempre acostumado a andar sob pro-
tees e tutelas, com cascos e rodas ao invs de pernas, nunca havia expe-
rimentado. Agora admirava, ainda que vacilante e assim, s de passagem,
a beleza daquele labirinto cheio de fora e variedade. Anabel complemen-
282
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
tava o caminho comexplicaes pessoais e histricas de vrios lugares pelos
quais passavam. Aprimeira bela torre a mais nova sendo ainda mais alta e
muito mais prxima ao mar; a primeira casa em que morou quando chegou
cidade, ainda pequena; a melhor loja da cidade para se comprar guitarras
especialmente porque era possvel experiment-las sem de fato comprar
o instrumento.
A biblioteca era um castelo comum visto pelo lado de fora. O nico
componente da construo era largo, com trs andares e um teto cercado
por uma murada denteada, cheio de mesas e decks de observao nos cantos,
que no chegavam a formar torres.
Por dentro a viso era similar: bonita, mas nada espetacular. Havia
pouca, mas sufciente luz que entrava por longas e fnas janelas. As es-
tantes eram grandes, aproveitando bem o espao deixado por pavimentos
altos, mas no cobriam horizontalmente nem mesmo a maior parte do que
era possvel cobrir, e muitas estantes tinham cerca de trs ou quatro livros
em exibio. Nenhuma estava cheia.
Sentaram-se em uma mesa no meio do primeiro andar, onde no havia
ningumpor perto. Umsenhor, exibindo galhardamente seus certeiros mais
de oitenta rosanos, lia alguma coisa atrs do balco principal, e alm dele
havia menos que meia-dzia de cidados aleatrios espalhados pelo salo.
Coincidentemente, a maioria deles de idade semelhante de Anabel e Tadeu.
Aqui no uma biblioteca boa, mas a melhor de Al-u-ber.
Imagine a pior. Comentou Tadeu, olhando em volta. Uma bibli-
oteca no deveria ser. . . Cheia de livros?
Eu sei. Nem se compara s de Al-u-een, ou s da Cidade Arcaica.
Muito menos s de Ia-u-jambu. . .
E o que voc vem fazer aqui?
Vou te mostrar. Disse ela.
Tadeu podia jurar ter visto um brilho incendirio nos olhos de Anabel
enquanto ela se levantava. Ela logo voltou, trazendo um livro grosso com
uma capa negra de goma escura e pequenos cortes na lombada.
Esse livro comeou Anabel est na seo sobre a histria de Al-
u-ber. Aqui ele fala sobre a construo da Torre Bela, a segunda delas.
E por que eu estou aqui? Perguntou Tadeu, confuso.
Anabel lhe lanou um olhar de decepo que o congelou por dentro.
Pode ir embora se quiser. . .
No, no isso. . . Desculpa, eu. . . que eu no entendo. Se voc vai
ler, precisa estar sozinha, no ?
. Mais ou menos. Respondeu ela. Agora Tadeu no sabia se ela
sabia o que estava fazendo. que. . . Eu costumo fazer isso com algum.
A gente gosta muito de histria, ento pegamos uns livros. Vamos lendo, e
contando um para o outro o que a gente vai vendo.
283
Voiui l
Tadeu balanava a cabea, entendendo e incentivando.
Parece bom.
Anabel parecia sentar no limiar de um sorriso, mas algo a segurava para
trs. Quebrando a conexo entre os dois, ela olhou para baixo e respirou um
pouco, tirando do ar coragem e inspirao.
Tadeu, eu. . . Disse ela, imprimindo calma a uma mensagem apa-
rentemente importante. Eu tenho que dizer. . . Voc legal.
Ah, no, pensou ele.
. . . Mas melhor dizer antes que isso acabe emconfuso. s amizade
que eu quero de voc. Entendeu? Eu j tenho algum.
timo! Disse ele, mais alto e rpido do que imaginava.
De tato Anabel passou a surpresa, quebrando a expresso cuidadosa com
risadas.
Voc est complicado hoje, Tadeu. . .
No, que. . . Eu entendo. Eu tambm tenho algum, e. . . Eu en-
tendo mesmo, Anabel. Explicou ele, e os dois balanavam a cabea, con-
cordando no acordo de paz e amizade.
Pode me chamar de Bel. Ou Ana, eu no ligo. S acho meu nome
muito grande.
Tudo bem.
por isso que voc no quis deixar eles te invadirem? Perguntou
ela.
Sim. Respondeu ele.
Tadeu sentiu vontade de falar mais, explicando que na poca no sabia
o quanto eles podiam saber sobre ele ao invadi-lo, e por que era perigoso
que soubessem de qualquer coisa que fosse. Queria perguntar a ela o que
ela sabia sobre a sala verde, se que sabia. Mas conteve-se, afastando as
intenes com rejeio.
Tadeu, voc sabe ler?
Sim, claro. Respondeu ele, ainda que estatisticamente aquela fosse
uma pergunta vlida.
Ah, que bom. Ento pegue um livro. Vou te mostrar como isso aqui
legal. . .
Se Amanda olhasse por uma das seis janelas daquela sala empoeirada
poderia ver o ltimo corte transversal que a luz de Roun fazia sobre a Praa
do Esturio, umbosque simples cercado por pedras que dividiama paisagem
das ruas circundantes. Se no fosse pela fortaleza logo do outro lado ela
poderia estar olhando para o mar, mas tinha que se contentar com apenas
284
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
uma vertente do Trojinsel, que se desgrudava do curso principal antes de ir
parar no mesmo destino salino que o resto do rio.
. . . Ateno, Amanda!
Ela voltou os olhos para Oscar, que a observava com a boca em um es-
tranho formato; era como se ele tivesse acabado de comer algo amargo, mas
no pudesse demonstrar sua insatisfao. Seus lbios sempre tremiam um
pouco, e seu hlito era particularmente azedo e velho, mas Amanda achava
que o aspecto mais detestvel de seu professor eram as orelhas peludas,
grandes a tal ponto desproporcional que seus ferozes olhos verdes, j es-
condidos por detrs de grossos culos, no conseguiam consertar para ela
a imagem do mestre de tradio.
A festa mais importante de Al-u-ber, Amanda. Recomeou ele, an-
dando pelo espao livre frente da sala com os olhos fxos na nica aluna.
Qual ?
Amanda no sabia porque estudara, ou porque prestara ateno; sabia
porque morava em Al-u-ber. Certamente nada lhe faria menos falta do que
as aulas de tradio; do que sentar nas cadeiras bambas de uma sala modor-
renta, cuja abbada esverdeada descascava regularmente, fazendo com que
quem quer que escolhesse ter ou dar aulas ali vivesse com medo de que um
pedao de alguma coisa vindo do cu esmeraldino atingisse algum.
a festa de Torn-u-sana.
Oscar no confrmou, mas tampouco lhe disse que ela estava errada.
Juntou as mos atrs das costas e, com seus passos ecoando, foi abrindo
caminho pelas flas e colunas de assentos at estar a apenas alguns espaos
de Amanda. Ela, por sua vez, esperava por alguma reao. Qualquer que
fosse s deveria se controlar e no olhar para o bosque. No olhar para a
praa.
Muito bem, Amanda.
Ele fnalmente deu meia-volta, mas mesmo que a jovem maga sentisse
que podia piscar livremente de novo, no era sua inteno descansar.
Para os prximos dias. . .
Professor. Interrompeu ela.
Ela entrou em seu campo de viso novamente. Ele esperou. Ela no
queria esperar mais. Precisava descobrir o que pudesse. Quais eram suas
chances.
sobre as tradies mgicas.
Oscar desviou-se, e num passo acelerado continuou a rota anterior em
direo mesa, bege como o resto das cadeiras, para arranjar seus livros e
papeis dentro da bolsa que trouxera.
Professor? Disse Amanda, levantando-se.
Seu pai deve lhe ensinar quanto a isso. Respondeu ele, sem olhar
de volta para ela. Eu no sou. . .
285
Voiui l
Mas eu quero ouvir do senhor!
Ele bateu com um livro na mesa, criando um baque que se espalhou pela
sala com vivacidade. Virando-se, mostrou que balanava a cabea negativa-
mente. Amanda sentia-se irritada, mas ao mesmo tempo estimulada sem
nem ao menos saber por qu.
E-essas tradies. Elas m-mudam com o tempo, no mudam? Elas
podem mudar, no podem?
Seus olhos se estreitaram de uma maneira peculiar. Amanda seguiu,
preocupada.
E-eu me lembro que o senhor disse que. . .
Lembra errado. As tradies no mudam. As tradies permanecem.
Sim, mas. . .
impossvel. Completou ele. Agora, me d licena. . .
Amanda viu as sobrancelhas grossas do velho homem se virarem para
a parede frontal. A bolsa dele estava praticamente pronta para partir; com
um novo olhar para trs colocou as alas por sobre a cabea, e enfm partiu.
Amanda sentou-se de novo. claro que ele iria afrmar que a tradio
nunca pode mudar, pensou ela. Se ela mudasse do jeito que ela desejava, ele
provavelmente teria menos coisas pra ensinar.
Ei, Ana, escuta isso. . . Dizia Tadeu, apontando para um pargrafo
no livro sua frente. Al-u-ber foi a primeira cidade a mandar guerreiros
contra Al-u-tengo. A maioria deles tinha menos que vinte e cinco rosanos.
Depois do fm da guerra, a cidade no quis jovens de outras cidades. Ao
invs disso, muitas mulheres com mais de setenta rosanos deram luz uma
nova gerao na cidade. Qual o problema com isso?
Por que voc acha que temumproblema? Disse Anabel, inclinando-
se para examinar a pgina.
Porque tem tinta vermelha em volta, e um trecho de texto meio. . .
Separado do resto.
Ah, claro. . . Riu ela, lembrando de algo. Porque mulheres com
mais de setenta rosanos no deveriamfcar grvidas. Os bebs podemnascer
com doenas, ou. . . Nascer mortos.
Certo. Respondeu ele, brincando com os pensamentos. Mas. . .
Elas no sabiam disso?
Sabiam. Mas Al-u-ber orgulhosa. Explicou ela, fazendo um mu-
xoxo de desconsiderao. Sempre foi. Eles se apegam a tradies idiotas.
Coisas tolas. Bem, no s eles, mas. . . Ah! Ela disse, mudando instan-
taneamente de humor. Lembrei de algo que eu preciso ler pra voc! J
volto.
286
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Anabel levantou-se e, quase correndo, foi parar na estante mais abaste-
cida da biblioteca. Tadeu tinha que dar o brao a torcer; aquilo era mesmo
empolgante.
Voltou-se para frente, observando as outras pessoas. Umjovembarbudo
abria a porta, saindo da empobrecida casa dos livros com um rosto compe-
netrado.
Tadeu se retesou na cadeira. A porta j se fechara, mas na frao de
segundo em que fcou aberta ele percebeu que j devia ser a hora de um
evento importante. Um evento que tingia o cu daquela mesma cor que
acabara de ver, e que por um breve momento se mesclara com fora em
todos os objetos ao alcance da viso.
Anabel voltou, falando alguma coisa que Tadeu no entendia. Um zum-
bido surdo estourou em seus ouvidos; ele pediu desculpas, correndo para
fora da biblioteca. No parou, nem olhou para trs, pois sabia que lutava
contra o tempo. Consumia todas as suas energias naquele esforo, mas ti-
nha o terrvel pressentimento de que seu suor no seria o sufciente.
Quando chegou entrada para a trilha, depois de perceber que o lu-
gar por onde passara era s um borro em sua memria, olhou em volta,
preocupado. No via ningum. Subiu, correndo por onde antes andava, tro-
peando por onde antes era cauteloso. Chegou ao topo segurando-se com a
palma da mo na torta parede de terra na qual ele esperava se encostar com
Amanda naquele fm de tarde.
O sol se punha. Amanda no estava mais ali.
287
Captulo 40
Fogo
Amanda caminhava nas sombras. Ignorou a charrete, mandando-a de
volta para casa. Preferiu voltar a p, esperando que andar fosse fazer algum
bem. Descobriu, minutos depois, que seu maior desejo era poder arrancar
com as unhas a pele do corpo e jog-la fora, num amontoado de folhas ca-
das.
Sentia raiva de todos que passavam por ela, por motivo nenhum. Cho-
rou o trajeto inteiro, em acessos espremidos, tendo um acesso de raiva a
cada vez que se imaginava perguntando para Tadeu por que ele no estava
l. Imaginava que ele pediria desculpas de joelhos, mas no sabia o que
visualizar quando ele comeava a se explicar. Ele gaguejava e a olhava, su-
plicante, e este era o momento em que ela apagava aquilo da mente como
se passasse a mo por uma nvoa grossa.
No soube dizer se o pai a vira quando ela entrou em casa, ou mesmo
se ele estava ali. Trancou a porta do quarto e jogou-se de qualquer jeito na
cama feita. Amassou quase que de propsito a colcha rosa em que pequenos
pssaros azuis, de bicos longos e asas abertas, voavam no cu simulado.
Fechou os olhos. Sentia at mesmo seus pulmes doerem a cada vez que
tinha contraes de pranto.
Virou-se de barriga para cima. Pensou em um jeito de fcar defnitiva-
mente sozinha, num lugar onde pudesse fazer o que quisesse.
Fechou os olhos e deixou que o formigamento tomasse conta de si. Em
breve sentia como se o corpo todo estivesse suspenso; uma dor nas tm-
poras surgiu enquanto ela deixava de sentir os membros. As lgrimas no
rosto evaporaram, e ela podia senti-las se despedindo com o vento. No ha-
via mais distncia entre ela, as mesmas lgrimas levadias e o cu prpura
acima do prprio castelo. Tudo era uma borrada juno de coisas e seres,
que se destacou como papel rasgado quando ela fnalmente abriu os olhos.
Olhou para si mesma. Usava um vestido longo e rodado, com bastos
ombros preenchidos, feito de um quente tecido roxo e bordado com mar-
cantes fos vermelhos. Estava dentro do prprio castelo, em um corredor
suspenso que ligava pelo segundo andar um grande saguo a outro. A pa-
rede tinha aberturas em toda sua extenso, janelas sem vidro, e a dbil luz
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Voiui l
de um gigantesco sol quase completamente desaparecido formava fleiras
de sombras compridas atrs dela.
A preculga debruou-se sobre uma das janelas, sentindo-se enfm em
casa. Respirou fundo, percebendo que no tinha vontade de fechar os olhos,
de chorar ou de gritar. S queria fcar ali, parada, por muito e muito tempo.
Ao olhar para frente, viu que o cenrio se alterava de uma maneira es-
tranha. A plancie perto de si continuava a mesma, com jovens eucaliptos
fazendo companhia grama sem fm. O problema era o prprio horizonte,
que parecia rolar para dentro em direo a ela, absoluto, gigantesco, fa-
minto.
Amanda se afastou do parapeito, dando passos estabanados para trs.
Um castelo surgia, avanando como uma espcie de navio; ele barrava a
vista para o que sobrava do sol, crescendo a cada instante, at enfm parar
exatamente frente do castelo de Amanda. Uma pequena torre destacada
lateralmente de uma outra, esta mais alta e mais grossa, fcou a apenas al-
guns ps de distncia da entristecida maga.
AMANDA! Berrou Tadeu, do cho. AMANDA!
Ela voltou janela, inclinando-se mais para a frente. Viu que ele estava
com as mos apoiadas sobre os joelhos. Ao sentir a presena dela, olhou
para cima; balanava o corpo, desconfortvel com o cansao.
Amanda. . .
Por que voc no foi, Tadeu? Perguntou Amanda, desabafando.
Por qu?
Amanda, desa aqui, eu posso. . .
Amanda teve umpensamento terrvel que a empurrou para fora da cama
num pulo. Embora no tivesse cado totalmente no cho, demorou a reco-
brar o equilbrio; escorregando um pouco, foi at a janela. Tadeu estava ali,
praticamente idntico ao seu iaumo em Neborum logo abaixo da janela
do quarto, no meio da rua.
Amanda! Disse ele, ao v-la.
Ficou louco? Disse ela, desesperada.
Queria gritar contra ele, berrar para que ele sasse dali, mas sabia que
isso s chamaria mais ateno. Olhou para os lados; umas poucas pessoas
passavam por ali, mas ainda assim estavam longe, com sorte se afastando
cada vez mais.
Amanda, desce aqui, por favor. . .
Tadeu, no. . . Voc precisa. . .
Ela no conseguia dizer a frase. Estava presa na garganta, e ela no
queria que ela sasse de verdade. Queria dizer o oposto. Queria pedir que
ele entrasse em casa.
Voltou-se com fora para dentro do quarto, esfregando as mos contra
o rosto. Retornou, fechou a janela e se jogou na cama de novo.
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Olhou para os lados e se sentiu desconfortvel: viu que estava deitada
em uma das colunas que dividia as janelas do parapeito. Avistava o des-
tacamento do castelo frente como se ele estivesse acima dela, prestes a
despencar.
Fez a fora que julgou sufciente, o que ainda pareceu maior do que seria
preciso para normalmente se levantar do cho, e o mundo endireitou-se com
um solavanco, lanando Amanda para frente. Comeava a fcar enjoada, e,
como se Neborum fosse um barco frgil, tudo parecia virar para o outro
lado.
Tadeu. . . Murmurou, procurando por sinais dele.
Amanda. . . ? Amanda! Me deixe entrar!
No. . . No. . . Ela se recomps, encontrando o bomin no mesmo
lugar de antes. V embora, Tadeu, perigoso!
Amanda, eu no. . . Abra a porta!
V EMBORA, TADEU! Gritou ela, sentindo que no podia suportar
muito mais.
Seu rosto comeou a arder. Achava que eramas lgrimas at que elas co-
mearama puxar sua pele como emcentenas de pequenos belisces. Depois
de enxugar o rosto com as costas da mo, viu um aquoso lquido vermelho
caindo dos pulsos em direo aos antebraos. A repulsa a deixou instanta-
neamente tonta.
Amanda, voc. . .
V EMBORA! P-por favor, v embora. . . Ela saiu da janela, caindo
sentada no cho. Se voc me ama. . . V embora. . .
Antes mesmo que os castelos completassem a lenta volta que refaziam,
entortando-se num giro que deixaria Amanda virada para o cu mais uma
vez, o mundo desinfou. Era como se tivesse sido achatado; logo a fna su-
perfcie daquilo que Amanda via recebia gigantescas gotas de chuva. O pri-
meiro pingo caiu no rosto desolado de Tadeu, e Amanda rolou na cama,
sentindo uma dor lancinante no pescoo.
Respirou fundo por alguns segundos, e a tontura passou. Levantou-se
e, com medo de ainda encontrar Tadeu em frente janela, foi at l. Olhou
por alto; aos poucos, sem pressa e sem inteno de ser notada por ningum
do lado de fora. Arua estava relativamente cheia agora, commais passantes
nenhum deles parecendo procurar por nada, pelo menos naquele ngulo
limitado. De Tadeu, contudo, no via sinal.
A porta bateu com um estrondo, mas no provocou em Galvino mais
susto que curiosa surpresa. Sabia que o flho chegava, e chegava rpido,
mas no esperava que batesse a porta daquele jeito.
291
Voiui l
Tadeu? Chamou ele. Ocastelo estava indo para longe, quase saindo
de vista, mas parou de se movimentar. Tadeu?
Estou aqui, pai! Respondeu ele, da sala.
Galvino continuou o que fazia antes. Colocou um pouco mais de gua
em seu copo e sentou-se ao sof, pensando que Eva aprovaria sua calma.
No brigaria com Tadeu. Certamente o repreenderia por se atrasar, mas ele
teria que vir por vontade prpria para a aula. claro que, se ele no viesse,
uma conversa sria estaria na ordem do dia.
Eva aprovaria sua calma?
Galvino comeou a percorrer algumas das salas dentro do prprio cas-
telo, dando uma olhada emcada uma, s vezes de relance, apenas garantindo
que tudo estava como da ltima vez que havia visto. Sorriu ao ver que o f-
lho chegara, sem interromper a pesquisa em Neborum. Tadeu sentou-se ao
sof, visivelmente cansado.
Eu. . . Disse o flho. Galvino pensou ter visto ele tremer por um
momento. Voltou parte de si para o castelo de novo. Me atrasei porque
eu estava com a-aquela menina que eu conheci na. . . Festa. Me desculpe,
pai.
Galvino tornou-se completamente presente outra vez.
Pois. . . Est tudo bem. Mas no se atrase mais.
Tadeu confrmou com um aceno de cabea.
Vocs esto se dando bem?
Sim. Respondeu ele, rpido.
Galvino sorriu, coando a nuca.
Fico feliz.
Amanda desceu as escadas de casa, que estava silenciosa como se ti-
vesse sido abandonada. A residncia era grande, mas principalmente por
fora; Com a exceo do terceiro andar, as salas do primeiro e do segundo
piso eram atulhadas o espao parecia encolher, mas o que perdiam em
liberdade de movimentos ganhavam em aconchego. Amanda se sentia me-
lhor na sala de visitantes, com seus minrios pentagonais roxos e seu sof
verde exageradamente grande, que no prprio quarto.
Ouviu vozes perto da janela. Balanou a cabea, buscando acordar por
completo, e foi at a porta.
. . . No, eu penso que disso no precisarei. Disse Barnabs, com
uma voz decidida. Amanda destrancou a porta, abrindo-a ao sentir que o
pai estava prestes a faz-lo. Ol, minha flha.
Oi, pai.
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Trs homens entravam na casa. Ela imediatamente reconheceu o ltimo
da fla.
Este Jorge. Disse o pai, e um sujeito mais velho sorriu, quase
com isso fazendo balanar seu desgrenhado cabelo loiro. Tinha a barba por
fazer, e olhos pequenos que ela reconheceria mesmo semprecisar olhar para
quem vinha ao lado. Ele o meu novo mdico. Por isso, o seu tambm,
claro. Este Gustavo, seu flho.
Oi, Amanda. Respondeu ele, com um sorriso confante.
Jorge e Barnabs trocaram olhares confusos.
Vocs. . . Se conhecem? Perguntou Jorge, com uma voz rombuda e
volumosa.
Sim. Nos conhecemos na festa bomin h uns dias.
Barnabs olhou para a flha com um sorriso de satisfao pessimamente
represado.
Bem. . . Vamos subir at o meu escritrio para conversarmos melhor,
sim, Jorge? Prometo que ser rpido.
Jorge fez para Amanda umgesto cordial coma cabea e seguiu Barnabs.
A amabilidade contradizia, pensou Amanda, sua voz montanhosa. Ele era
um mdico, afnal. No um monstro.
Seu pai fcou feliz? Disse Gustavo, arrancando Amanda de seus
pensamentos.
. . . Ficou. Entra, tira a mo da porta.
Ele obedeceu, dando alguns passos tmidos. Observou o lugar de ombros
encolhidos, balanando a cabea em aprovao.
Aqui legal.
, eu gosto tambm.
Voc no est bem.
No estou mesmo.
E o que aconteceu?
Ele se virou para olh-la nos olhos, como se exigisse aquela conexo.
Dava para perceber o quanto seu olhar realmente exalava confana, pensou
Amanda. Logo depois alertou a si mesma que aquela sensao podia ser, ao
invs de verdadeira, fruto de uma pea pregada pela desesperada vontade
de confar em algum. Em um outro algum.
Problemas.
Sabe que. . . Explicou ele, gesticulando vagamente com as mos
abertas. Se quiser conversar. . .
Obrigada. No precisa.
Ela desviou o olhar, constrangida. O silncio aumentava a tenso da
falta do que dizer enquanto Gustavo a olhava, fxamente, como se ele no
pudesse sentir o quo irritante isso estava sendo para Amanda.
293
Voiui l
Para com isso. . . Pediu ela, sentindo-se violada por aquele olhar
sem licena. Gustavo riu, zombeteiro, e os dois ouviram as vozes dos pais
surgindo na sala de novo.
Eu acho que se voc no falar alguma coisa vai acabar explodindo,
mas. . . Tudo bem. . .
Para, Gustavo. . . Reiterou ela, falando mais e mais entre os dentes,
j podendo ouvir Jorge retornando sala.
Verei onde posso conseguir este. Mas se eu no conseguir podemos
escolher aquele que eu recomendei?
Certamente. Respondeu Barnabs, sorridente.
Perfeito. . . Vamos, flho.
Gustavo assentiu no momento emque o pai parou sua frente, e fez uma
sutil saudao educada para Amanda. Depois chegou perto do ouvido dela,
fazendo ela quase dar um passo para trs no sobressalto do movimento.
Se precisar conversar s mandar um recado pelos nossos pais.
Sua voz era suave; a proximidade acstica fazia com que parecesse res-
pirada, como segredo que se esvai da concha das mos para a orelha.
T bom! Disse ela rapidamente, querendo que ele se afastasse logo.
Jorge apertou a mo de Amanda, que permanecia presa indeciso de
como se sentir com aquela visita. Ele tinha um aperto forte, que combinava
com as mos grandes. Quando eles estavam longe o bastante, Barnabs
trancou a porta e virou-se para a flha. Era hora de aula.
Existem duas coisas que se deve fazer dizia Galvino para invadir
algum. Isto , depois de encontrar o castelo. Em primeiro lugar, destrancar
a porta do castelo.
No posso entrar pela janela? Perguntou Tadeu, displicente.
No. A porta o nico jeito de entrar em um castelo, e o nico jeito
de sair se voc quiser ir para outro lugar que no seja o seu prprio castelo.
Ela muito importante, Tadeu, entenda bem: ela diz muito sobre algum.
Pode estar aberta quando a pessoa estiver emocionalmente vulnervel. Ou
doente.
Tadeu acordou com aquelas palavras, ponderando, com crescente an-
gstia, como estavam as prprias portas.
Ou pode estar cheio de travas, fechaduras e cadeados quando a pessoa
cheia de. . . Desconfanas.
A angstia transformou-se em um instinto de proteo: de qualquer
jeito sua porta levantaria suspeitas.
Uma vez em Neborum, correu para o saguo principal de seu castelo,
acelerando a uma velocidade que no sabia poder alcanar. As paredes
294
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
ao seu redor viraram um nico borro, e ele corria sem nem mesmo saber
quando parar. Ao ver um negrume cada vez mais forte em meio ao cinza das
paredes internas, pensou estar olhando para o cu atravs da porta aberta.
Tudo se recomps sua volta como nvoa que se dissipa, e ele viu seu pai
examinando a porta do prprio castelo do lado de fora.
Voc no pode. . . Deixar a porta aberta. . .
Tadeu fcou parado, sem saber o que fazer. Nunca seu pai se aproximara
tanto do prprio castelo ou pelo menos no nas aulas. Naquele momento
Galvino no o advertira num tom de urgente alerta. Parecia estar distrado
olhando para o porto. Tadeu logo percebeu por qu.
Pai. . . E-eu no coloquei essas. . . Fechaduras. . .
A porta, que tinha quase oito ps e meio de altura e era feita de uma ma-
deira marrom antiga e bastante arranhada sulcada fundo, como se tivesse
sofrido com vrias machadadas tinha tambm quase vinte fechaduras,
todas de um ferro escuro e sujo, mas grandes e densas.
Eu sei. . . Disse ele, e subitamente deixou de olhar para elas. Deu
as costas e foi para o campo do lado de fora do castelo. Venha, meu flho.
Tadeu o acompanhou.
Ns, bomins reiniciou o pai destrancamos portas ao manipular
fogo, gelo, gua, ar e terra. Os preculgos usam ferramentas para produzir
uma chave que funcione nas fechaduras. Os esplicos as derrubam com a
fora fsica.
Tadeu parou, estupefato.
Como voc sabe disso?
Isso todos ns sabemos, Tadeu. Galvino fez um aceno com a mo,
desconsiderando a preocupao. Todos os magos sabem. Isso o que
mais demoramos para aprender a fazer bem, ento no prejudicial que
saibamos. Voc vai passar tanto tempo treinando suas prprias tcnicas de
ataque que no vai querer desenvolver as dos outros. perda de tempo.
O que so tcnicas de ataque?
As que eu acabei de lhe dizer. Tcnicas para abrir as portas.
Mas por que tm esse nome?
Porque se voc estiver tentando invadir o castelo de um mago. . .
Explicou Galvino. Ele vai lutar com voc quando voc entrar. Ou antes
disso. E as tcnicas que vocs usaro para lutar so as mesmas que usam
para abrir as portas. Essa a segunda coisa a fazer para invadir algum.
E se a pessoa no for um mago?
Galvino deu de ombros.
Ela no lutar. A alma dela estar adormecida em algum lugar. Voc
pode entrar e fazer o que quiser.
295
Voiui l
Os dois pararam em frente ao castelo de Galvino. Ele era grande e sim-
trico, comtrs grandes torres emformao triangular e uma porta quadrada,
pouco usual nos poucos castelos que Tadeu j vira em Neborum.
Tenho que abrir a porta? Perguntou Tadeu.
Sim. A primeira coisa que vai aprender a fazer fogo.
Tadeu olhou para a porta, apreensivo. Ela parecia desaf-lo, forte e
orgulhosa, exibindo trs fechaduras douradas que se destacavamna madeira
escura. Minrios amarelos pendiam das paredes externas das torres, em
pares, at o topo; o porto recebia pouco daquelas luzes.
E-e como eu tenho que fazer?
Apenas faa! Respondeu Galvino, falando baixinho, mais perto do
ouvido do flho. Sinta sua mo mais e mais quente at ela pegar fogo.
Tadeu abriu a palma da mo direita e olhou para ela, sentindo-se enver-
gonhado.
Sua mo no vai se machucar, Tadeu. o seu fogo. Voc no vai se
ferir.
Tadeu ainda no havia pensado naquela possibilidade, e agora no podia
deixar o medo de lado. E se o pai estivesse mentindo apenas para incentiv-
lo? E se ele no fosse capaz de fazer aquilo? Seu pai nem mesmo piscava ao
observar o flho e sua concentrao. Quase podia ouvir o sangue de Galvino
passar mais rpido por artrias e veias, pulsando fervorosamente espera
do fogo.
A raiva pode ajudar. Disse Galvino.
Tadeu sentiu-se liberto. Ento era esse o segredo?
Pensou naquela mesma tarde. Pensou em Amanda e em seu atraso. No
rosto lavado em lgrimas rubras; em Anabel e na prpria mente estpida
que no pde recusar uma oferta abusada e inoportuna. Pensou principal-
mente em seu pai e naquelas aulas.
Aulas estpidas.
Isso, Tadeu, isso! Disse o pai, entusiasmado.
Tadeu no percebera, mas sua mo havia fcado vermelha. O que cha-
mou sua ateno foi a dor incipiente, que evolua para um embrulhar e alf-
netar internos que espalhava-se lentamente para o pulso.
No. . . No consigo. . .
Consegue.
No. . .
No seja fraco, Tadeu! Sussurrou o pai.
Tadeu rejeitou os impulsos de olhar para o pai e o de sair correndo.
No era necessrio sequer ativamente resistir: aquela frase o imobilizara
completamente antes de arrancar uma dzia de arrepios simultneos.
Tadeu lembrou-se de seus colegas aproveitadores de rosanos atrs; da
briga entre os pais e do namoro secreto com Amanda. Lembrou-se da inici-
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
ao da qual escapara por um triz e dessa vez a lembrana de Anabel j
no vinha acompanhada de raiva e de sua frustrao por estar envolvido
com aquilo tudo.
Sua mo j estava vermelha de novo, e a dor voltou, mais forte. Tadeu
pedia para si mesmo que o fogo surgisse, e ignorava a dor; a vermelhido
abrandou-se, e a mo fcou rosada, ainda que mais brilhante. E ela surgiu.
Tadeu sorriu, expirando irregularmente. Cambaleou para trs, mas logo
se recomps; no perdera o controle da pequena chama vermelha que se-
gurava na mo, futuando acima das linhas e vilosidades da pele.
Muito bem. Disse Galvino. A raiva no necessria.
Tadeu olhou para ele, cuidando, de uma forma inconscientemente bem
trabalhada, para no deixar a chama se apagar.
Por que mentiu?
Apague o fogo.
Por qu?
Apague, Tadeu.
Por qu?
Galvino estalou os dedos e criou uma onda que se chocou contra o flho,
encharcando-o por inteiro e apagando a chama. Tadeu fcou parado, de
olhos fechados, sentindo as gotas carem rapidamente da ponta do nariz e
das unhas das mos.
No acreditava no que havia acabado de acontecer.
Acenda de novo.
Tadeu olhou para a mo e sentiu tudo de novo. Desta vez foi at o fm,
obstinado. A dor foi menor. Pareceu apenas um tipo de ccega, uma leve
irritao muito mais gerencivel. Tadeu logo produziu novamente o fogo,
que desta vez bruxuleava, mais instvel.
O que eu vou ensinar disse Galvino, de braos cruzados a fazer
fogo sem se preocupar com fogo. Sem fcar com raiva. Sem olhar para a sua
mo.
Tadeu balanou a cabea, passando a mo esquerda pelos olhos incomo-
dados tanto pela gua quanto pelo calor.
Apague o fogo.
297
Captulo 41
Culpa
Era um abrir de olhos, mas era tambm um respirar. Era um respirar
profundo, um encher-se dolorosamente de espao em busca de ar.
Piscou os olhos mais algumas vezes. Sua cabea era tudo o que sentia.
Era tudo o que era. Cabea, ar e teto febril.
Engoliu com difculdade, e a partir da tudo veio tona. Estava deitada
de barriga para cima, vestida de azul emumpano semgraa, defnitivamente
mais apropriado para uma toalha. Movimentou os braos e as pernas, e viu
que estavam livres; apenas cobertos por um lenol esverdeado.
O resto voltou lentamente, mas voltou com convico. A testa parecia
querer abrir-se ao meio; este foi o retorno da cefaleia. Ela fechou os olhos e
desviou a cabea. Quis puxar a mo em direo ao rosto, mas mexeu-se de
leve apenas, descobrindo-se fraca.
A fome a atingiu tambm, gritando, pressionando para que desse aten-
o barriga, que se contorcia com ardor. Um formigamento incmodo nos
dedos dos ps tambm apareceu para dar as boas vindas.
Dalki entrou com pressa no prdio amarelo de quatro andares. Uma
construo reta, sem muitos atrativos alm das vigas de pedra bruta nas
arestas e das janelas envidraadas, que formavam do lado de fora, todas
juntas, um hexgono vermelho em meio a um fundo azul.
Quando o chefe de polcia ladeado por outros trs agentes parou na re-
cepo, confuso frente aos possveis caminhos, um homem calvo vestido de
verde aproximou-se depressa.
Dalki, no ? Chefe de. . .
Sou eu. Cortou ele.
P-por aqui, por favor.
Omdico os levou na direo das escadas largas e escuras. Subiramat o
terceiro andar. Os corredores eram longos, espaados e, ao contrrio das es-
cadas de acesso, bem iluminados, cheios de portas claras e lembretes de que
o silncio era fundamental. As luzes iamfcando mais fracas por onde passa-
vam, acompanhando com desvanecimento os quatro homens e uma mulher
299
Voiui l
que rumavam com passos decididos at a ltima porta direita. O mdico
abriu passagem e, antes de entrar, Dalki virou-se para os outros policiais,
apontando para si mesmo com um olhar sufcientemente comunicativo.
A janela estava fechada, mas ainda assim o lugar mantinha-se arejado.
Dalki sentia-se de forma ambgua ao estar ali; se por um lado tudo naquele
local fora projetado para ser agradvel, este mesmo objetivo marcava cada
mvel, cada lenol, cada canto com estigmas de luta e perigo. Aquele era
ou um lugar de morte ou um lugar para no se estar. Entre esses dois havia
desesperada resistncia, como a que a flha de Hourin visivelmente enfren-
tara. Os caracis de seus cabelos estavamespalhados pelo travesseiro verde,
e seu rosto maltratado pela doena e pelo pesar acompanhava de maneira
pouco graciosa suas madeixas.
Eu sei que ele morreu. Disse ela, com olhos enlameados.
Queremos punir quem fez isso. Disse Dalki. Queremos saber. . .
Eu vi tudo. Interrompeu ela.
Rainha fechou os olhos e fez uma careta de desgosto; Dalki olhou para
o mdico, que o despreocupou. Foi at uma pequena mesa ao lado da cama,
e de l tomou um minrio de seis lados, prateado e opaco, e o quebrou
batendo-o na parede com agilidade. Colocou as duas metades perto do pes-
coo da garota, e uma fumaa cinza comeou a subir do interior rasurado
das pedras. Ela abriu os olhos, respirando fundo o vapor curativo.
Por que no posso usar isso o tempo todo? Perguntou ela.
Porque precisamos saber se voc ainda tem dor de cabea. Respon-
deu o mdico, sereno.
Rainha. . . O que voc viu?
Ela estudou cada policial antes de responder.
Eram dois. Um homem e uma mulher.
Como era o homem?
Ela balanou a cabea, voltando a olhar para o teto.
Grande e mulato. . . s isso que eu lembro dele. . .
Dalki assentiu.
Foi ele que feriu o seu pai?
Foi. Ela engoliu, parecendo soluar por um momento. Com uma
espada. . .
E a mulher?
Era forte. . . Desviou o olhar mais ainda, preferindo a mesa ao lado
do mdico. Ficou em cima de mim. . . Eu no conseguia gritar. . . Eu
no. . . Eu no conseguia me mexer. . .
Voc j estava fraca, Rainha. . . Disse o mdico, preocupado em
fazer com que ela no se culpasse. Lgrimas j caam do olho esquerdo.
Eu sei. . . Mas ela era. . . Ela apertou os olhos, esforando-se para
lembrar. Alta. . . Tinha um rosto magro, era. . . Um cabelo castanho. . .
300
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Certo. Kazuo. . . Dalki virou-se para trs, chamando um dos poli-
ciais.
O nome dela era Raquel.
Dalki voltou a olhar para ela.
E o nome dele, Rainha, voc lembra do nome dele?
Ela negou com um movimento contido de cabea, ainda sem olhar de
volta para o chefe de polcia, que aceitou a situao aps um olhar agrade-
cido para o mdico. Um nome seria bom, mas no realmente necessrio. Ele
sabia de quem ela estava falando.
Vo at a delegacia e chamem todos que estiverem l. Vo para todas
as primeiras jirs saindo da cidade e perguntem por Hiram, um homem alto,
forte, moreno. Pode estar junto com uma mulher chamada Raquel, vocs j
ouviram a descrio.
Os policiais saram do quarto e correram pelo corredor. Dalki virou-
se para Rainha, que olhava para o nada no teto. O mdico verifcava sua
temperatura com as costas da mo, e tornou a olhar para o agente da lei.
Sinto muito. Disse Dalki.
Ele saiu antes de ver ela menear a cabea em agradecimento.
Ao sair do hospital Dalki teve a sorte de encontrar uma charrete. Em-
barcou e pediu ao condutor que fosse para o norte. No caminho, passaram
pela rua da delegacia, incorporada num edifcio de trs andares com seis
colunas sustentando a laje do topo. As colunas eram distribudas em trs
pares em frente a uma longa escadaria. Detalhadas bordas azul-escuras em
torno das janelas tornavam mais belos e encaixados os uniformes de mesma
cor de todos que ali trabalhavam.
Naquele momento, os policiais deveriamestar saindo do lugar emmassa,
pegando as charretes que estivessem disponveis e viajando para as jirs no
permetro da cidade. No entanto, nada disso acontecia; passantes caminha-
vampelos arredores normalmente, na pressa corriqueira daquela beirada da
cidade, com suas calas escuras e longos casacos de cores atenuantes. Uma
charrete do Parlamento estava parada em frente s escadas de forma quase
desleixada.
. . . Pare aqui, por favor. Pediu Dalki, incomodado.
Subiu as escadas com calma, com a inteno de perguntar a quem quer
que dali sasse alguma coisa quanto falta de movimentao. Nada parecia
estar fora do lugar, mas por outro lado no havia como confrmar com nin-
gum. Passou pela comprida recepo e, ao ver enfm outros funcionrios,
recebeu olhares furtivos quase imperceptveis, mas presentes, ftando-o
quando ele no podia mais saber que eles o faziam.
301
Voiui l
Chegou no saguo de trabalho, como era conhecida a rea cbica no
centro do prdio. No teto havia janelas que fcavam sempre abertas para os
corredores do terceiro andar, e dali que vinha a maior parte da luz durante
o dia. No cho, muitas e muitas mesas com papeis, armamentos e eventuais
pacotes de goma escura com comida espalhados por todas as estaes de
trabalho.
Os policiais estavam virados de costas para a entrada, olhando para um
plpito encostado parede, o gabinete do chefe de polcia seu gabinete,
pensou Dalki. Ali estavam, de p, o parlamentar Hideo e o policial Kenner,
aquele fazendo um discurso sem intonao para este, que trazia os braos
frente do corpo, e para uma plateia de braos cruzados.
. . . E a bravura deve ser recompensada, sempre, claro, jamais nos
devemos esquecer. Mas o bom trabalho tambm merece reconhecimento.
Nenhumpolicial vira Dalki na entrada, mas o chefe via duplas de colegas
entreolhando-se com feies de total incompreenso.
Sendo assim, um grande prazer reiterar que Kenner o novo chefe
de polcia de Al-u-een. Muito obrigado.
Aquele seria o momento em que a plateia de agentes explodiria em
vivas e congratulaes, parabenizando com entusiasmo e alegria o novo
chefe enquanto o parlamentar apertava a mo do policial promovido. Mas
apenas o silncio, decorado com o borbulhante burburinho de sussurros
condenveis e condenatrios, preencheu o ambiente da delegacia enquanto
Hideo entregava a Kenner um documento amarelo com escritos que ne-
nhum dos presentes, distantes do condecorado, conseguia ler.
Solenes e mandatrias palmas surgiram, vindo a existir tendo por me
a estranheza e a desconfana. Kenner vira que o agora ex-chefe de polcia
entrara no saguo, e o olhava com um sorriso de lbios apertados. Dalki
apertou os dentes, deu uma lenta meia-volta, e foi embora sem olhar para
trs.
Era compacta a casa de apenas um andar; um verde rosado cobria as pa-
redes, que erguiam-se logo depois de uma fna faixa de grama que separava a
propriedade da rua. A porta, amarela, tinha dois retngulos desenhados em
relevo na superfcie, e a maaneta era feita com a mesma madeira marrom
das bordas das janelas quadriculadas, comuns e opacas.
Dalki bateu porta e esperou, aproveitando para ver se algum o obser-
vava. Ningum nas redondezas. O morador apresentou-se, abrindo a porta
num vagaroso passo a passo acuado.
Boa tarde, senhor Lenzo.
Boa tarde.
302
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Meu nome Dalki. Sou o chefe de polcia de Al-u-een. Posso entrar?
Dalki apontou para o interior da casa, que comeava com uma mins-
cula sala de estar.
Sim.
Lenzo abriu espao para o visitante, que examinou o ambiente de p.
A parede do lado de dentro era azul, e uma cadeira clara com fnos ps
fazia companhia a outra, defnindo a moblia da sala em sua totalidade.
frente havia um curto corredor em que todas as portas, espcimes menos
enfeitadas que a da frente, estavam fechadas.
Quer sentar? Ofereceu Lenzo, mostrando com a mo as cadeiras.
Dalki viu que elas tremiam, e depois de observ-las por alguns instantes
lanou um olhar divertido ao anftrio.
No prefere sentar primeiro? Voc parece nervoso.
Lenzo recolheu a mo, tornando-se mais consciente de seus movimen-
tos. Esperou para engolir, e concentrou-se em no tremer nem respirar pe-
sadamente. Ainda assim, desviou o olhar pelo tempo em que quis escapar
do escrutnio do investigador.
O que o senhor quer? Disse, numa expirao s.
Dalki fez subir as sobrancelhas e, tranquilo, sentou-se em uma das ca-
deiras.
Vim falar do assassinato do seu tio, Hourin.
Eu n-no sei nada sobre isso.
mesmo? Eu acho que sabe.
Mas eu no sei.
Eu acho que voc o matou.
O qu? Lenzo deixou escapar uma risada esbaforida. Isso rid-
culo!
Voc o visitou nos ltimos dias, Lenzo?
Eu? No, eu. . .
Ns sabemos que sim, Lenzo. Disse Dalki, olhando-o de um ngulo
acusador. No minta para a polcia.
Eu no vi o meu tio, eu. . .
Voc est brincando comigo, Lenzo? Dalki se levantou de novo e
fcou peito a peito com o homem de olhos amendoados. H? Voc acha
que sou idiota?
Eu no matei meu tio. . . Respondeu Lenzo, dividindo as palavras
com a respirao irregular.
Eu sei de Raquel. Apostou Dalki, parabenizando si mesmo por
dentro quando os olhos de Lenzo encheram de terror. E sei de Hiram.
Eles me foraram! Disse Lenzo, com a voz afnando ao longo da
confsso.
O qu?
303
Voiui l
Eles me foraram, eles me levaram e me atacaram e eu no sabia o
que eu estava fazendo!
Voc vai sentar naquela cadeira. . . Disse Dalki, por entre os dentes,
apontando para o assento que ainda estava frio. E vai me contar essa
histria.
O quadro se desenhou com fuidez a partir da narrativa cheia de cuida-
dos de Lenzo. Raquel e Hiram de fato subiram no quarto atravs da escada
do lado de fora. Um deles assassinou Hourin Dalki j sabia que fora Hi-
ram. O sobrinho da vtima, um flinorfo chamado Kan e outro chamado
Gag distraram o poltico. Isso j estava planejado h muito tempo, e Hi-
ram enganara Lenzo, atacando-o magicamente para que fzesse aquilo tudo.
Depois do crime, esconderam-se na casa de Kan e ento Lenzo cortou rela-
es com o grupo. A mais til das informaes chegou no fnal da narrativa,
sempre cheia de aluses a sensaes estranhas quando na presena de Hi-
ram: os quatro foram para Roun-u-joss.
Quando tudo terminou, Lenzo parecia ter tirado uma adaga do corao
com as prprias mos e sobrevivido. Dalki no sabia se tinha pena ou raiva
daquele homem, que lhe parecia ora perturbado, ora oportunista.
Lenzo. . . Obrigado por me contar isso. Foi uma histria e tanto.
Era o meu dever, no era?
Dalki meneou a cabea.
Sem dvida. Para ser sincero, eu no sou mais o chefe de polcia.
Lenzo piscou mais forte.
No?
No. Soube antes de vir para c que um policial me substituiu.
Ento. . . O que vai acontecer comigo?
Dalki levantou-se, ajeitou a cadeira para deix-la na posio em que
estava antes, e olhou para a rua vazia.
Eu vou ser preso?
Dalki fazia planos. Tudo se encaixava perfeitamente.
No. Voc foi a vtima, Lenzo, claramente.
Havia um ditado em Al-u-een: um flho, depois que deixa de morar com
os pais ou tutores da infncia, jamais retorna casa antiga do mesmo jeito
exceto uma nica vez. Lenzo experimentava a sensao, desejando, sem
muita esperana, no ter que senti-la outra vez.
Chegou enfm em frente pequena casa que cheirava a tomates. Bateu
na rude madeira vermelha, com um olho na porta e o outro nos campos do
304
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
entorno. Ianni o recebeu com um alegre sorriso cansado, que se desfez
medida que pescava no ar que algo estava errado.
O que foi, meu flho? Perguntou ela, com uma toalha amarela nas
mos. Voc est cansado?
Sim, me, sim. Ele respondeu, evasivo. Sentou-se ao sof e ps as
mos na testa. Traz um pouco de gua pra mim, me. . .
Nada de gua. . . Disse ela, paciente. Ocupou o lugar em frente a
Lenzo, passando as mos de duras articulaes e macios gomos de carne nos
cabelos do flho.
Preciso de gua, me. . .
Nada de gua. . . Fale primeiro. Fale comigo.
Ele olhou para ela, querendo olhar para qualquer outro lugar.
Vamos, flho, fale. . . sobre Hourin?
Sim.
Voc sabe quem matou Hourin? O policial o procurou?
Sim.
Voc disse a ele?
Seus olhos aumentavama cada pergunta, incentivando-o coma inocente
ansiedade a seguir em frente. Lenzo fechou os olhos.
Sim.
Fez muito bem, querido. . . Voc no tem culpa de confar nas pessoas
erradas. Quem foi, meu flho?
Ele abriu os olhos de novo, e uma lgrima desceu por sua bochecha. Viu
um confuso medo estourar no rosto enrugado da me.
Foram quatro pessoas, me, e. . . E-eu ajudei elas.
Ianni levou as mos boca, afastando-se para trs no sof num instante
depois.
Eles eram flinorfos, me, e. . . E fcaram me dizendo coisas sobre
como ele era horrvel e. . . Como os magos eram horrveis e. . . E a senhora
sempre dizia. . .
Como voc. . . Como voc pde, flho?
Eu fui atacado, me! Defendeu-se ele, exaltado. Eles tambm
eram magos, e precisavam de mim e me foraram a fazer isso! Eles p-
precisavam que eu, que eu distrasse o Hourin, e. . . E. . .
Ah, flho. . .
Ela cobria o rosto inteiro com as palmas das mos. Ele fez o mesmo,
soluando por sobre as pernas. Quando voltou a olhar para frente, viu que
a pena tomava seus olhos comprimidos, voltados para ele de lado, emoldu-
rados no rseo rosto trmulo de vergonha.
Me. . . Eu no durmo direito h dias. . . Nem antes de fazer aquilo,
eu no. . . Eu no queria, mas eles me foraram. . . Eu juro que eles me
foraram. . .
305
Voiui l
Isso vai ser o seu fm, meu flho. . .
No, me, o Dalki disse que eu no vou ser preso, ele. . .
Ianni parou o rosto do flho com as mos, forando-o a olhar para ela.
Filho. . . Voc vai para a cadeia.
Lenzo foi forado a ouvir a verdade. Percebia que ela crescia dentro de
si num baque sem som: Dalki obviamente mentiu para ele. A esperana foi
a nica a lhe assegurar o contrrio.
Mas voc pode ir para Ia-u-jambu.
Ia-u-jambu?
Voc foi tolo para fazer o que fez, mas se esqueceu do seu irmo?
Disse ela, com a voz punitiva. Fuja! V viver com o Koti onde a polcia
desta cidade no vai te achar, flho. Voc tem que ir.
O afago na bochecha, aquele em que a mo desliza para baixo at que
s o que Lenzo sentia era a ponta das unhas da me, durou to pouco que
ele no conseguiu virar o rosto a tempo, fazendo os dedos dela tocarem sua
boca. Ianni levantou-se e foi para a cozinha.
Lenzo virou-se, preocupado no sabia com o qu. Ela entrara, e ele no
sabia se devia. Deu-se por perdido ao entender que aquela parecia ser uma
despedida; a mais torta de todas. A voz alta para se fazer ouvir, mas tambm
fria e aconselhando a fuga sembeijos e abraos de despedida, s podia signi-
fcar que as costas da me seriamprovavelmente a ltima parte de seu corpo
que ele veria no solo de Al-u-een, se ousasse ainda aproximar-se da porta
do cmodo. Comeou a soluar, a garganta involuntariamente expulsando
o choro. Afundou-se mais e mais no sof.
306
Parte V
Resistncia
Captulo 42
A potncia de ceder
Lamar acordou como barulho de porta que j lhe era familiar. Levantou-
se e esfregou os olhos, percebendo que a luz do sol entrava timidamente
na cela, abafada por uma atmosfera mida. Do cu caam gotas dgua de
grosso calibre.
Lamar virou-se e demorou alguns segundos at reconhecer o homem
moreno que entrava nas celas, escoltado por um guarda. Seu cabelo negro
e levemente encaracolado, seus escuros olhos de cansao intermitente, seu
rosto macilento tudo estava em seu exato lugar. Uma torta capa cinza
de viagem, por cima de roupas esgotadas de algodo e l, cobria o corpo
relativamente alto do amigo de Kerlz-u-een.
Do lado de dentro veio umsorriso apodrecido, tanto mais sincero quanto
mais os segundos passavam; do lado de fora, um rosto fechado, simptico
de relance. Quando os dois lados se encontraram, no limiar, um abrao forte
os uniu.
Kerinu. . . Lamar disse, buscando o ar com fora. A presso en-
cheu os olhos com lgrimas furtivas, que arderam. Kerinu, eu. . . Me
desculpe. . .
Tudo bem. Disse Kerinu, afastando o abrao. Parecia ocupado ob-
servando alguma coisa acima do ombro do amigo.
O-os dois esto bem?
Bem, todos bem. . . Disse ele, ainda perdido.
Eles no podem me visitar?
perigoso. Respondeu Kerinu, em um tom de ltima palavra, fnal-
mente olhando para Lamar.
Algo estava certamente fora do padro, mas havia algo a mais no ar.
Lamar sentia-se desconfortvel ao invs de livre na presena dele.
E-Eles sabem de mim, pelo menos?
Sabem. Tentaram te ver, mas a polcia no deixou. Lamar. . . Ele
deu uma olhada de esguelha para o guarda, de frente para os dois do lado
de fora da cela. Como tem dormido?
Mal. Muito mal, Kerinu, durmo mais de dia que de noite, e. . .
309
Voiui l
Que pena. . . Kerinu piscou com o olho esquerdo. Acho que no
posso te ajudar com isso. Voc vai continuar passando muitas noites ruins
aqui.
Lamar balanou a cabea. Lembrava-se mais e mais, pelo exerccio in-
discreto, do que era sorrir. Ainda assim, nem mesmo sob a proteo dos
ngulos certos Kerinu sorria.
Farei o possvel pra ajudar. Terminou ele.
Surpreendendo o policial, que imaginava que aquilo ia durar mais, Ke-
rinu foi embora sem nem olhar para trs.
Lamar estava simultaneamente tranquilo, preocupado e animado. Ti-
nha vontade de elevar o brao, clamando pelo retorno do amigo, mas ele se
fora rpido demais. Voltou para seu canto e fechou os olhos, pensando em
Myrthes e Ramon. Estavam bem, todos bem. Tal pensamento o manteve
acordado, e depois o fez dormir melhor que a chuva no telhado.
Prima-u-jir no fcava acordada at tarde. As casas da cidade exibiam
luzes envergonhadas durante a madrugada, e rarssimos noctvagos ocupa-
vam varandas e janelas com seus sonhos e suspiros.
Apenas um policial era responsvel pela guarda da cadeia. Quando no
havia nenhum preso, ou algum que no importasse to pessoalmente a By-
ron ou a algum outro parlamentar, no havia sequer um policial mas com
Lamar, as coisas mudaram. Uma mulher de rosto duro e fno, comumescuro
cabelo preso para trs comuma tira de algodo, cuidava da mal-cuidada sala
de entrada da priso. Vestia o negro uniforme policial da cidade, e passava
aquelas horas solitrias entre o sono e a entediada viglia.
Olhou para o relgio na parede, uma combinao horrenda de tinta azul
e vermelha por sobre pedaos de madeira em vrios pontos rachada. J
passava das trs horas da manh, e ela no teria companhia at as quatro
e meia. Sentiu os olhos pesados novamente, as plpebras escorregando de
encontro ao cho.
Levantou-se rapidamente, pulando da cadeira que cairia no cho se no
fosse pela mesa atrs dela. Tremendo, tirou a espada da bainha e girou sem
sair do lugar, apontando para todos os lugares.
Defnitivamente ouvira alguma coisa; algo como o barulho de uma pe-
dra caindo no cho, ricocheteando e parando. Talvez fosse o prisioneiro
arranjando uma brincadeira para passar o tempo. Mas podia ser, com igual
chance, algum tentando entrar na cadeia para ajud-lo a fugir.
A guarda, tentando cobrir com os olhos todos os cantos da sala, cami-
nhou lentamente em direo s celas depois de pegar na parede as chaves
310
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
dos portes internos. Certifcou-se uma ltima vez de que no havia nin-
gum ali com ela, e entrou de vez na regio mais fria e escura das jaulas
para humanos.
Muitos raios de luz de todas as cores, dos poucos que entravam no lu-
gar, eram absorvidos pelas barras de ferro. O cho do corredor por onde
a mulher passava era um mosaico confuso de todas as cores mutuamente
sobrepostas cada uma mais plida e arrefecida que a outra.
O fundo de cada cela era escuro como um abismo. Ela sabia onde Lamar
deveria estar, mas no conseguia v-lo ou ouvi-lo.
Um barulho distinto comeou a vir de uma cela esquerda, no fnal do
corredor. O medo e o susto logo se transformaram em uma curiosidade
absurdamente acentuada. O barulho que ela ouvia era um choro; mais es-
pecialmente, um choro infantil.
O espao envolto em trevas de onde vinha o choro, fraco e asmtico,
comeou a ser lentamente iluminado por uma nvoa marrom; uma espcie
de grossa poeira que revelou, em um redemoinho pacientemente revolto,
um menino com cerca de oito rosanos sentado no cho, vestido com uma
enrugada roupa preta dos ps cabea: bota, cala e jaqueta com capuz,
tudo de certa forma brilhante e plstico como roupagem de goma escura.
Com os braos cruzados, fazia pequenos movimentos soluantes.
Ei. . . Chamou ela, destrancando e abrindo a porta. Ei. . . O que
foi? O que voc est fazendo aqui?
Ela se aproximou, sentindo um arrepio ao pensar que tipo de mistrio
em Heelum teria trazido aquele pequeno garotinho at uma cela trancada
da cadeia. O choro continuava, no mesmo ritmo, na mesma cadncia, e a
guarda se aproximou, coma mo estendida, at chegar perto o bastante para
ver o rosto da criana.
Comumltimo soluo, o choro acabou-se emumeco profundo. Aroupa
esfacelou-se nas mos da policial, misturando-se ao ar marrom, que agitou-
se em reviravoltas enquanto a mulher via, com espanto, duas partes daquilo
que fora antes uma lustrosa esfera marrom.
Balanando a cabea para os lados em uma ntida revelao, voltou-se
para trs, comeando a correr mas foi interrompida por algum que no
conseguiu ver antes de ser atingida.
Um nico yutsi, marrom e magrrimo, levava a charrete de Lamar e Ke-
rinu, resfolegando-se ao correr no ritmo que o alorfo de Kerlz-u-een exigia.
J saram de perto da cadeia e o centro fcara para trs, mas ainda viam
muitas casas em ruas que em outro horrio seriam movimentadas. Estavam
indo para o sul, fugindo das nuvens carregadas que se distanciavam para o
311
Voiui l
oeste; corriam pelo molde urbano do que viria a ser a estrada que levava a
Den-u-pra. Em menos de uma hora j no viam mais casas que no estives-
sem cercadas por terras cultivadas, como grandes ilhas em um oceano de
propriedade.
O homem liberto, com rara satisfao, deixava o ar bater-lhe o rosto.
No podia reclamar do vento que aoitava era, dadas as circunstncias,
uma gentileza.
Como voc fez aquilo? Me deixou com medo.
Esfera de bronze. Explicou ele. Um minrio difcil de conseguir.
Hm. . . E-ele caro?
Kerinu fechou os olhos e balanou a cabea, confrmando. Avanavam
aos trancos e solavancos; A estrada que descia por entre colinas, que agora
s os cercavam pela esquerda, acompanhava em direo e sentido o Rio
Prima.
Desculpe, e-eu. . .
No precisa.
. . . Voc no tem dinheiro pra gastar comigo.
Kerinu deu de ombros.
Voc tambm no.
O animal continuava sendo guiado com percia atravs do trecho, que
no era sinuoso, mas conseguia balan-los o bastante para deix-los inse-
guros quela velocidade. Lamar agarrou-se mais s bordas da charrete.
Como sabia quando fazer tudo?
Temos algum com infuncia na cidade, Lamar. Voc no o nico
alorfo aqui.
Lamar voltou a olhar para a estrada, mas concentrava-se em si mesmo.
Vestia trapos imundos, muito piores que as j pudas roupas de Kerinu. Suas
costas doam. Suas orelhas doam. Seu peito e suas coxas doam. As pontas
dos dedos das mos estavamduros e ressecados; uma grossa crosta quase to-
talmente negra por cima da pele e a sola do p por pouco no estava igual.
Sentia-se to sujo que nenhum ponto no corpo lhe parecia mais limpo que
outro. Ainda assim, sentia mais coceira no meio das costas e em um ponto
perto do calcanhar. Pelo menos, pensou, sabia que no estava condenado
quilo por mais do que um ou dois dias.
Obrigado, amigo. Disse ele. Obrigado por vir me buscar. Por
voltar por mim.
Kerinu no virou totalmente a cabea, mas Lamar viu que seus olhos
rolaram para o lado, querendo fazer contato. O amigo engoliu em seco e
mais uma vez confrmou com a cabea dessa vez de um jeito longo e
contido, como se dessa vez aquele balanar signifcasse de fato algo.
No h de qu, amigo.
312
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Se voc no precisar de mim, eu. . . Vou dormir um pouco. Acho que
vou dormir melhor aqui. . .
Kerinu assentiu, e Lamar jogou seu corpo para trs comcuidado, aterris-
sando na fria e dura madeira do carro aberto, comlaterais to frgeis quanto
a base. Ele percebeu que as rodas faziam barulhos frenticos a cada rotao.
Depois disso, adormeceu profunda e tranquilamente ao lado de uma sacola
negra cheia de frutas e biscoitos salgados.
Por perto das cinco horas a dupla saa, ainda mesma velocidade, do
entorno das colinas e de uma pacata jir completamente s escuras. Kerinu
no encontrou um nico olhar que os registrasse.
Tudo estava indo bem, mas foi preciso sair da estrada, tomando um ca-
minho alternativo esquerda. Se fossememfrente, seriamobrigados a parar
na Fortaleza de Prima-u-jir, umposto avanado ao sul. Oyutsi recebeu o pu-
xo das rdeas e virou, comeando a jornada pelo interior sudeste da cidade
rumo a Kerlz-u-een.
Lamar roncava baixinho enquanto se recuperava. Depois que o sol nas-
ceu e as jirs que a charrete atravessava j no estavam to silenciosas e
inativas, Kerinu percebeu o sangue seco e os hematomas no rosto do amigo
de um jeito mais prximo e claro. Ficou se perguntando o que haviam feito
com ele na priso, e dizendo a si mesmo que, fosse o que fosse, no serviria
como desculpa. Ou como motivo para pena. No podia deixar isso acon-
tecer. No no agora que estavam s os dois, sem Myrthes ou outros do
grupo.
Faltavam ainda dezesseis dias para o fm da inasi-u-sana, mas aquela
manh estava mais quente que o usual. As nuvens comeavam a despontar
no cu, querendo um pedao do cenrio, e elas testemunharam o momento
em que, diminuindo a velocidade, os alorfos entraram na Floresta dos Oni-
otos. Depois de um pouco de mata esparsa, cheia de rvores enfraquecidas
de praxe, estavam prestes a entrar em um terreno em que a charrete mais
atrapalharia do que ajudaria.
Lamar, acorda.
Sim. . . Ele se levantou com difculdade, mas logo recobrou a cons-
cincia. Olhou em volta e fez que sim com a cabea. Sim, claro. . . J
chegamos?
No. Longe ainda.
Quanto tempo?
Vamos dormir na foresta uma vez.
Ah. . . Certo. Lamar no contava com tanto tempo antes de chegar
a um lugar em que pudesse se sentir em casa.
313
Voiui l
Com o dia mais ameno, os viajantes abriram caminho facilmente por
rvores que pareciam cair para dentro da terra ao invs de almejar subir
aos cus. Suas folhas eram encantadoras e de mdio comprimento, e esta-
vam cada vez menos presentes e mais amareladas. Por todos os cantos da
terra esfarelada brotavam arbustos radiais, sorridentes acompanhantes dos
peregrinos.
Andavam silenciosamente, e se em um primeiro momento o ar puro e
a paisagem eloquente conquistaram Lamar, depois j o desanimava o am-
biente menos entusiasmante entre ele e seu amigo. Kerinu estava estranho;
isso j estava fora de questo. Todas as oportunidades para que ele desamar-
rasse o semblante e se mostrasse como um dia fora j haviam aparecido, e
nada de aquilo acontecer. Ele continuava a lev-lo pelo caminho como o
lder de uma expedio de vida ou morte. No falava sem que fosse an-
tes perguntado especifcamente sobre alguma coisa, e suas respostas eram
brutalmente minimalistas.
A comida da cadeia dizia Lamar antes de dar outra mordida em um
pssego. era horrvel.
Kerinu concordou de leve, cuspindo sementes de laranja no cho.
Sabe, tinha. . . Arroz. Um arroz muito ruim. Bem amassado, e. . . Sem
sal. Nem do tipo vermelho, nem do tipo amarelo. Nenhum outro tempero!
Era. . . Muito ruim.
Kerinu olhou para o cho, lambendo os lbios.
Lamar, eu. . .
O ex-prisioneiro ergueu as sobrancelhas.
O que foi?
Eu ia esperar para dizer isso quando a gente chegasse, mas compli-
cado.
Lamar engoliu em seco.
Eu tenho muito respeito por voc. Continuou Kerinu. Voc
um grande amigo meu, e. . . tambm o amor de minha irm. o pai do
meu sobrinho. . . Entende? Ele se levantou, limpando as mos na cala
e fcando de costas por um tempo. E voc sabe que eu sempre achei
muito arriscado isso tudo de voc ir pra Prima-u-jir e ser um professor. . .
Alternativo.
Kerinu, mas. . .
Lamar, n-no por ensinar. por voc, e por Myrthes e por Ramon.
Kerinu j estava de frente para o amigo, mas no olhava em seus olhos.
Ou voc abandona tudo isso, todos eles. . . Ou aprende magia.
Lamar tremeu, levantando-se tambm. Pensou em Myrthes e em como
gostaria de t-la ali ao seu lado. Mas ela no estava; apenas o irmo, que o
314
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
apunhalava pelas costas depois de todo o trabalho que tiveram para fazer
aquilo em que acreditavam dar certo.
Eu achei que a gente tivesse resolvido tudo, e. . .
Lamar, voc tem que entender. . .
. . . Eu sou diferente, Kerinu, voc sabe. . .
. . . Questo disso, e eu sei, mas. . .
. . . Ela arranjou tudo isso, mas no pode ter sido s por isso. . .
. . . Mas por ELA, Lamar, por ELA, voc no V?
Lamar enrijeceu, e ao mesmo tempo em que queria virar o rosto, queria
continuar enfrentando Kerinu.
por ela. . . por eles!
por um futuro digno pro meu flho que. . .
Voc tem sorte, Lamar! Sorte que eles foram atrs de voc, e no deles!
Admita, Lamar, voc no vai conseguir defend-los! Voc est lutando sem
armas, sem foras, sem nada! Voc no tem nada, e eles tm tudo! Eu no
vou deixar voc colocar minha irm e o seu flho em perigo desse jeito de
novo. J me arrependi demais disso. . . Voc vai aprender magia sim, quer
voc goste da ideia ou no.
Eu j tentei, Kerinu, voc sabe disso. . .
Voc no tentou sabendo que so eles que voc arriscaria.
Lamar abriu a boca, sentindo seus pulmes borbulharem com alguma
coisa, mas nada saiu. Sua cabea dava voltas emantecipao ao que sentiria.
No queria aquilo. No queria se lembrar de como era entrar em Neborum
e l permanecer.
No queria ser um mago.
Voc ama a minha irm, Lamar?
Kerinu. . .
Ama, Lamar?
claro!
Lamar no percebera at ento o quo intenso era o olhar de Kerinu du-
rante toda aquela conversa e o quanto aquele olhar lembrava o de Myrthes
em situaes como aquelas. Um meio-soluo forou a garganta de Lamar,
que se controlou. Os irmos tinham a mesma frmeza ptrea que decidia e
imperava sem violncia.
Foi ela quemme ensinou que as pessoas no so s. . . Magos ou gente
que quer ser mago.
Kerinu sorriu pelo nariz.
Engraado. . . Isso achei que fosse eu. . .
. . . Voc me ensinou. Mas ela me deu o melhor exemplo.
E voc quer perder a minha irm, Lamar? Quer ver ela. . . Morta, o-ou
pior?
claro que no, Kerinu. . .
315
Voiui l
Ento voc no tem outra escolha. Interrompeu ele, defnitivo.
Quando chegarmos em casa, voc vai aprender a entrar em Neborum e a se
defender um pouco que seja l dentro. Ou eu juro, Lamar, juro por ns dois
que voc nunca mais vai ver a minha irm. Eu juro que no vai. Juro pela
Rede de Luz, por aquilo que h de mais branco, justo e bom em Heelum,
Lamar. Juro.
316
Captulo 43
O papel do agente
A banda entrou sem demora em uma charrete espaosa e confortvel.
Vermelha por fora e por dentro, tinha janelas diminutas cobertas por uma
fna cortina azulada, depois da qual era possvel ver, de uma forma borrada
e imprecisa, a grande montanha aos ps da qual a cidade havia crescido.
Circundavam-na devagar, com o transporte movendo-se lentamente pelas
estradas cheias de irregularidades. A montanha no era inspiradora, bela
ou mesmo a mais alta de Heelum era, contudo, notvel baluarte de fora
bruta, intimidante.
A guitarrista permitiu que Beneditt, que sentava ao seu lado, segurasse
sua mo. Leo conversava comFjor, mas sua mente j pouco presente absteve-
se ainda mais quando viu aquela cena. Tentando fngir que no vira nada,
voltou-se para Fjor o tempo inteiro.
A paisagem mudou sem que percebessem; viam-se no mais envolvi-
dos pela ambiguidade do centro, e sim por uma regio de casas espremidas
umas nas outras, compartilhando paredes e segredos. Crianas sem mui-
tas roupas quentes ou, coincidentemente, muitos dentes, caminhavam nas
sombras magras nas ruas, virando o rosto para a charrete com expresses
retas, bocas mudas abertas para o lado. Na densa jir, arranjada em torno de
uma praa, fcava um galpo amarelo de dois andares. A parede direita
da porta metlica, que parecia um improviso, estava suja e remendada com
amontoados de madeira e pregos, mas nenhum deles se importou o sufci-
ente para comentar em voz alta. O condutor da charrete confrmou o lugar,
e avisou que estaria de volta para peg-los no pr do sol.
Leo foi o primeiro a entrar. Por dentro, o galpo era cinza com muitos
minrios de luz azuis. Era alto o bastante para conter dois andares, mas tinha
apenas um. O teto curvo era sustentado por colunas de corvnia distribu-
das mais lateralmente, deixando um grande espao central no qual estavam
dispostos, em um crculo, os instrumentos musicais.
Umhomemestava ajoelhado sobre o baixo de Fjor, terminando de afn-
lo. Vestia roupas simples, de slidas cores neutras, e umgorro negro. Ele ha-
via percebido que os msicos chegaram, mas nada disse. Levantou a cabea,
e ento viram seu rosto cheio de dobras, marcado por um escuro bigode de-
317
Voiui l
salinhado e pequenos olhos escuros. Tornou a baix-la. Os msicos se olha-
ram, dando de ombros, mas terminada a tarefa o empregado levantou-se e
veio, com um sorriso estanque, cumpriment-los com apertos de mo.
Boa tarde! Meu nome Mumba. Vou ser o tcnico de som de vocs.
Qual o nome da banda?
Buscando, senhor. Respondeu Leo.
Ah, excelente, excelente! Respondeu ele, parecendo ansioso ao ten-
tar olhar para os quatro ao mesmo tempo, sem sucesso. A maioria das
bandas c-como vocs fca meio chateada quando ganha um tcnico de som.
Esto acostumadas a lidar com os prprios instrumentos. Vocs no se in-
comodam, no?
Leo balanou a cabea, sem saber se deveria responder to rapidamente
pelos colegas. Beneditt vira de relance o rosto de Fjor enquanto Mumba
arrumava o baixo e resolveu logo aplacar as coisas.
A-acho que no.
Ah, timo! Os dentes cheios de contraste se mostravam agora em
seu sorriso quase frentico. timo, timo. . . Ele fez um rosto de estu-
pefao, como se agora se lembrasse de algo, e um abrangente gesto para
trs com a mo. Querem tocar alguma coisa enquanto o senhor Seimor
no chega?
Por favor. . . Murmurou Leila enquanto avanava com a cabea
baixa em direo guitarra vermelha.
J estavamna metade da quinta msica quando Seimor chegou, fechando
a porta e fazendo um sinal para que fossem at o fnal. Mumba fcara o
tempo todo encostado em uma das colunas, observando-os sem sinais de
reprovao mas sem, contudo, se entusiasmar muito. Viam sua cabea
balanar no ritmo da bateria, e s.
Terminaram de cantar e tocar. Fjor estava de costas para Seimor, mas
logo se virou, abrindo o crculo. Beneditt sorria e olhava para Leo e Leila,
estes tambm ofegantes e alegres no calor do momento. Seimor chamou
ateno ao bater palmas duas ou trs vezes, entrando na roda com notvel
falta de desenvoltura.
Muito bem! Muito bem. . .
O silncio foi aos poucos conquistando o som das guitarras, que mor-
riam nos cantos do prdio. Reverberaram ainda por um tempo, resistentes,
centelhas daquilo em que Leila preferia continuar se concentrando.
Eu estive pensando. . . Seimor baixou a cabea, aproximando-se
deles. E acho que tenho um bom nome para vocs.
Leo parou de alisar sua guitarra, levantando o olhar.
318
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Nome? Pra banda?
Sim.
Mas. . . Ns j temos um nome, senhor.
Sim. E agora tero um novo.
Oque ele quer dizer comeou Fjor que gostamos do nosso nome.
No quer dizer que ele seja bom. Retrucou Seimor. Fjor ia dizer al-
guma coisa, mas Leila o alcanou e, segurando-o pelo brao, pediu baixinho
para que parasse. Mumba, o que acha?
Que foi, senhor? disse ele, do outro lado da banda.
O que pensa do nome Buscando?
Ele meneou a cabea, jogando-a para a esquerda e a direita vrias vezes,
formando a resposta aos poucos a partir de um som fno e especulativo.
. . . . . . No bem o melhor nome. . .
Ele representa a busca por perfeio, que uma busca que nunca
termina! Disse Leo, virando-se para Seimor novamente.
bom vocs se sentirem assim. Mas se esse o caso, devem reconhe-
cer que o nome no perfeito. . . E buscar um novo.
Qual a sua ideia, ento, Seimor? Perguntou Beneditt.
Ele deu um sorriso para o baterista, pondo as mos para trs.
Ponte Alta.
Leo e Fjor tiveramreaes parecidas: fecharamos olhos, virando o rosto
como se quisessem a chance de ignorar um comentrio ignorante, uma ati-
tude estpida. Leila continuou olhando para o cho, tentando descobrir o
que pensar e tambm o que fazer. No achava que tinha muita escolha.
Ponte Alta? Perguntou Leo.
Ponte Alta.
Ponte Alta.
No parece ruim. . . Murmurou Leila.
Leila! Disse Fjor, chamando a ateno da amiga.
No gostaram? Perguntou Seimor.
que. . . Disse Leo, voltando a olhar para a guitarra. Estimava, por
alto, quo intil seria o que ele estava prestes a dizer. que realmente
gostamos desse nome, senhor. Buscando. S isso.
Vo gostar mais deste. Todos os outros. E quando eles gostarem, vocs
vo gostar. Vamos, toquem outra.
Seimor, com as sobrancelhas ainda um tanto levantadas, deu as costas
e foi se encostar em uma das colunas. Leo evitou o olhar irado de Fjor, que
tocou uma nota no baixo, displicente, apenas para poder puxar a corda mais
grossa com tanta fora que ela quase encostou na mais fna. Leila e Beneditt
trocaram olhares de compreenso.
Vamos tocar a do Mina de Prata. Bem daquele jeito. Disse Fjor, com
uma voz decidida.
319
Voiui l
Por qu? Perguntou Leo.
Porque eu quero, Leo.
Fjor comeou sozinho comsua linha de baixo, e Beneditt logo o acompa-
nhou. As guitarras entraram por ltimo, com entusiasmo e inegvel raiva.
Leila olhou para Leo e este olhou de volta, indicando uma discreta desis-
tncia. Leila entendeu e comeou com o solo enquanto ele apenas a acom-
panhava.
No demorou muito para que Seimor interrompesse o treino.
Espera, para um pouco. . . Isto est bom. Tem vitalidade. . . Eu gosto.
Seimor olhava para todos, um a um. Leila virou o rosto quando chegou
sua vez. Mas Leila, voc. . . Voc deve tocar o que o Leo toca, e tanto voc
quanto o Leo tem que transformar as notas-chave em acordes.
Leo e Leila imediatamente se olharam, confundidos.
C-como, senhor? Perguntou Leo.
Vocs entenderam o que eu disse? Perguntou Seimor, olhando
agora para o vocalista.
S-Sim, mas por que fazer isso?
Faam. Explicou Seimor, mais didtico do que esperavam que ele
fosse ser. Vamos ver o resultado.
Recomearam a msica. Depois do trecho inicial, que nada mudaram,
tiveram que fazer um som que parecia mais um paredo musical caindo aos
pedaos a partir de uma srie de marretadas snicas sem sentido. A msica
tornou-se barulhenta e at mesmo irritante com as palhetadas coalhadas de
duas guitarras com acordes contnuos.
Eles pararam sem que Seimor precisasse pedir, embora o agente j esti-
vesse vindo a eles novamente.
No fcou bom. Precisamos de mais ajustes.
, pra fcar bom desse jeito temos que deixar essa msica mais lenta,
eu acho. Opinou Leo.
Ou que tal deix-la como est? Indagou Fjor, tricotando com ousa-
dia a nfase da ltima palavra.
Escute aqui, garoto. Seimor chegou mais perto, e Beneditt se le-
vantou. Leo aproximou-se num movimento automtico. Seimor virou-se
novamente, passando a encarar a todos. Escutem todos vocs. Eu no
estou aqui para facilitar a vida de ningum. Meu trabalho no ver quo
bons vocs so, mas o quanto vocs podem ser. Eu sei o que d certo e o que
no d. Se vocs querem ser alguma coisa, vo ter que confar em mim.
Seimor terminou o discurso como dedo emriste. Fjor olhava para baixo,
com algum estranho tipo de frustrao resignada. Leo, que j balanava
a cabea desde a metade do discurso, olhava na mesma direo. Beneditt
olhava para o agente com um rosto impassvel. Leila mantivera a distncia,
cruzando os braos.
320
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Ou, como alternativa, vocs podem ir embora.
No, senhor, . . . As palavras esbarravam em pensamentos fora
do lugar. Vamos fcar bem, vai. . . Vai dar tudo certo. Vamos confar no
senhor.
Seimor pareceu ter sido satisfeito parcialmente, apenas. Com os punhos
fechados ao lado de seu corpanzil aviltante, girou mais uma vez a cabea,
procurando olhar para todos e assertar a dominao. Leila gostaria de ter a
coragem de lhe dar um soco. Mas a a humilhao de Leo, no tendo nem
esfriado, perderia o sentido. A dele e a prpria.
Ento vamos l. De novo, com tempo menor. Leila ser a lder.
Antes mesmo de voltar aos instrumentos todos pararam, olhando para
a nica mulher no ensaio. Leila sentiu o rosto ruborizar, e algo dentro de si
afundar lentamente. Buscou apoio nas feies dos colegas, mas s encon-
trou pupilas vingativas, ressentidas, cansadas. Seimor virou-se assim que
chegou ao fnal da caminhada.
O que foi que eu acabei de falar?
Fjor soltou uma risada de incredulidade e balanou a cabea. Com um
olhar de esguelha solto antes de arranjar o baixo no corpo, ativou uma es-
pcie de vlvula pela qual Leila no pode deixar de expressar fria.
O que foi, Fjor?
Nada, Leila, nada. Respondeu o baixista, dando as costas para ela.
Canta. Pode ser uma boa ideia.
Beneditt comeou a marcao prvia, e quando Leila entrou na msica,
largou o brao na palhetada da maneira mais descuidada em toda sua vida.
321
Captulo 44
Tudo vai mudar
O Exrcito do Conselho dos Magos se preparava para o jantar. Cada
soldado, designado em rodadas igualitrias, levava sua tenda uma quan-
tidade exata de comida. Na tenda do general, Evan, Desmodes sentava-se
em uma das pontas da curta mesa de madeira com ps dobrveis. O teto
fcido de goma escura, pelo qual o acelerado vento passava, arrastado, no
fcava muito acima das cabeas de ambos, e as cadeiras em que ambos sen-
tavam tambm foram construdas tendo a mobilidade por princpio mais
valioso que o conforto. Com um gesto da mo coberta com uma luva ver-
melha, Evan dispensou o soldado que trouxera duas grossas peas da carne
azulada de onioto, alm de, em outra bandeja, acompanhamentos diversos.
Est com fome, Desmodes? Aqui comemos cedo. Perguntou Evan,
com o tornozelo posto sobre a coxa.
Posso acompanh-lo. Respondeu o mago do Conselho.
Evan sorriu, e Desmodes no foi menos cordial. Os dois aproximaram a
prataria do centro da mesa, que no fcava muito longe de nenhum deles, e
serviram-se sem reservas. Voltaram a falar assim que assentaram os pratos.
Desculpe-me a franqueza, Desmodes, mas sinto-me to. . . Surpreso
quanto feliz com a sua companhia. Disse Evan, fazendo uma pausa para
encher a boca de arroz e tomate. . . . No costumo receber visitas de
magos do Conselho que no sejam os reis.
E os reis devem visitar com frequncia.
Sim, naturalmente. uma das responsabilidades deles, afnal. . .
E razo pela qual ns estamos comendo em prataria do castelo do
Conselho, mas os soldados no.
Desculpe, no. . . Entendi o que quis dizer. Disse Evan, atencioso,
interrompendo a faca que j estava a meio caminho de cortar um bom pe-
dao de carne.
Quis dizer que todo mago-rei precisa de um bom general.
Evan tinha uma fsionomia similar de Desmodes; um cabelo curto e
escuro, um rosto reto e plido. Curiosamente, vestiam roupas similares ali
tambm: tanto umquanto o outro trazia emcapas fechadas e longas alguma
tonalidade de azul.
323
Voiui l
No entanto, quando Evan sorria, sua boca complementava o ardor dos
olhos expansivos, e o ambiente parecia se iluminar como se houvesse algum
minrio de luz novo por perto. Depois de um daqueles sorrisos cheios de
conforto, Evan voltou refeio sem deixar de prestar ateno ao visitante.
Por um momento pensei que estivesse falando de alguma revoluo.
E estou.
Desta vez Evan no parou de comer. Desmodes, no entanto, juntou as
palmas das mos frente do queijo.
No me tome por tolo, Desmodes. Disse Evan, tranquilo. Eu
entendi o que voc quis dizer.
No sei se entendeu.
Enquanto o visitante esplico punha os antebraos sobre a superfcie
da mesa, Evan terminava de mastigar uma garfada. O general deixou os
talheres encostados ao prato e olhou para Desmodes.
Eu sou mago tambm, Desmodes. Voc sabe que o Conselho jamais
deixaria suas tropas nas mos de um no-mago, se que h algum general
em Heelum que no seja mago. . . Desmodes assentiu, sem tirar os olhos
do militar. Mas isso no quer dizer que eu me importo com os jogos de
poder que acontecem naquele castelo. Sinceramente, eu no poderia me
importar menos com eles. Eu sou o responsvel pelo exrcito, e s. Fico
aqui. Nunca vou l.
Desmodes se recostou na cadeira.
O que quer dizer?
Eu que pergunto. Agora que sabe disso, ainda quer dizer o que veio
aqui me dizer? Se voc se tornar o mago-rei, Desmodes, eu no me importo.
No vou atrapalh-lo, e no posso prometer que vou ajud-lo. Eu no vou
fazer nada. Provavelmente s saberei se algum vier aqui me contar.
Desmodes olhou para o lado. A tenda no tinha rupturas no tecido que
funcionassem como janelas, mas Evan notou que o companheiro apenas
seguia com o pescoo o som daquilo que parecia ser uma discusso calorosa
entre soldados.
No vai fazer nada?
No preciso.
Eu posso resolver, se quiser.
No se incomode. Eles logo param.
Evan percebeu que Desmodes concordava, de leve.
difcil gerenci-los?
Evan deu de ombros.
Estes so to difceis quanto todos os outros.
Eu acho que no. Acho que eles so mais resistentes a treinar e a lutar
ao lado de pessoas de cidades diferentes.
324
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Evan abriu os braos em um movimento contido, com as palmas das
mos para cima.
O que podemos fazer?
Houve um tempo em que isso no existia.
Mais uma garfada por parte do general.
Est falando da luz?
Um tempo de unio em favor de um interesse comum? Isso no foi s
a luz quem promoveu.
Certo.
Evan coou a bochecha, olhando para um ponto aleatrio no cho de
terra parda.
Est falando da Aurora da Unio.
Desmodes concordou com uma simples troca de feies.
Ns, magos, podemos e devemos fazer isso.
Isso o qu?
Guiar as pessoas. Como um dia fzemos.
Guiar as pessoas para seus papeis.
Sim! Exclamou Desmodes, encerrando o punho como se segurasse
ali algo que quisesse esmagar. Para seus lugares!
E qual seria o lugar de cada um, Desmodes?
Aqueles que tm coragem e talento, como ns, comem com prataria.
Desmodes olhou para a quantidade razovel de comida intocada dentro
de seu vasilhame de prata. Os que no tm. . .
Mas no podemos fazer isso com os alorfos e os flinorfos solta.
claro que no. Nem se vivermos em um mundo desunido, que no
nos respeita da forma como devemos ser respeitados.
Evan comeu mais umpouco emtrs garfadas sucessivas. Percebia, entre
as investidas contra o alimento, que Desmodes continuava a observ-lo, sem
jantar.
A questo . . . Disse Evan, passando as costas da mo nos lbios.
Por que est me dizendo isto agora?
Evan percebeu que havia algo de psictico nas duas poas negras que o
encaravam decididamente, onde, duvidava ele, algum jamais encontraria
misericrdia, incerteza ou tolerncia.
Voc precisa estar pronto. Haver uma guerra. Muitos estaro co-
nosco, mas muitos no estaro. E voc vai liderar o exrcito de todos as que
estiverem do nosso lado para a vitria.
. . . Quo certo voc est disso?
Desmodes balanou a cabea de leve, no mudando em medida alguma
sua expresso.
Vai acontecer.
O general mais uma vez reiniciou o jantar.
325
Voiui l
verdade que voc nasceu em Ia-u-jambu? Perguntou Desmodes.
Uma ou duas horas depois do encontro no acampamento do exrcito, o
castelo comeou a receber de novo as charretes dos membros do Conselho.
Desmodes notou a movimentao, mas no achou nada atpico. Faltavam
apenas dois dias, afnal, para a segunda reunio de inasi-u-sana, e quase to-
dos os magos j haviam chegado. Desmodes saiu de sua sala assim que per-
cebeu que Dresden havia chegado, buscando conversar com ele. Quando o
mago-rei notou que o esplico o esperava do lado de fora do prprio quarto,
fez um olhar torto, ainda que a cumplicidade estivesse presente.
Desmodes. . . uma pssima hora.
Por qu?
Dois magos mortos. Dois! Enquanto falava, Dresden procurava
sua chave dentro de duas grandes malas. Maxim, um esplico da Cidade
Arcaica, e Hourin, um bomin de Al-u-een.
Como foram mortos?
Maxim tinha uma loja de minrios. Voc deve ter ouvido falar dela,
sua fama ia muito alm da cidade ou do Conselho. . . Dresden ps a chave
na fechadura, destrancando a porta, e no parou de falar enquanto entrava
no quarto. Foi morto por uma criana que trabalhava para ele. Ele pro-
vavelmente a dominava para que trabalhasse, e ela se vingou, mas nesses
casos nunca se sabe.
Como sabem que foi a criana?
Ela se matou logo depois. Tinha a faca que foi usada para matar Ma-
xim nas mos. Dresden desfazia as malas com pressa. Tirou delas muitas
roupas, sua espada e um grande cantil com gua. Desmodes, poderia por
favor deixar este cantil em cima da mesa de canto?
claro.
Desmodes tomou o cantil em suas mos e passou pela cama para ir at
o fnal do quarto.
J Hourin foi morto em casa, enquanto cuidava da flha doente. No
descobriramainda por que, mas. . . Humpf. . . claro que foramflinorfos. . .
claro. . . Dizia Desmodes, virado para a mesa.
Dresden entrou no banheiro, fechando a porta atrs de si. Desmodes
tirou de dentro da capa a pedra marrom e verde de sete lados e a ps em
cima da mesa. Ps a mo por dentro das vestes novamente e tirou dali uma
pequena faca, que sem titubear usou para fazer um corte na base do polegar.
O corte no foi violento, mas a linha que o metal deixou foi longa. O sangue
logo apareceu, cobrindo o machucado com um bord vivo, que Desmodes
deixou cair no minrio. Sem esperar por qualquer reao, ele recolheu o
326
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
objeto e o fez passar, ainda que com difculdade, pelo bocal do cantil. Agi-
tou bem o reservatrio de gua e despejou um pouco sobre um dos clice
encostados parede azul acinzentada.
Dresden saiu do banheiro e encontrou Desmodes o esperando com um
copo de gua. O mago mais velho, sorridente, pegou o copo oferecido pelo
mais jovem e o bebeu em alguns instantes, com um salutar brinde no fnal.
Obrigado, Desmodes. No temos muito o que comemorar hoje, mas. . .
Brindo cordialidade!
Desmodes concordou, com o canto da boca ascendendo brevemente em
seu rosto claro e limpo.
327
Captulo 45
Informao
Eu matei o policial
Mande um salvo-conduto
Ou conto TUDO
Mande o documento para a segunda rua do parque
a casa de tijolos vermelhos e trs andares
Voc tem dois dias
N
Elton dobrou a carta comvagaroso cuidado, semolhar para ela. O grupo
de policiais que a trouxera estava parado em frente mesa do mago em seu
amplo gabinete cinzento, esperando por instrues.
O chefe de polcia foi morto?
Os policiais concordaram, retrados na presena do mago. Um deles,
barbudo e rolio, parecia liderar a comitiva, indicando a representatividade
com o queixo levemente acima da linha do horizonte.
Uma fechada, senhor. Na garganta.
Elton olhou para a mesa, terminando de organizar os pensamentos.
Certo, deem a ele o que ele quer. E mandem mais policiais para esse
lugar.
Narion podia sentir-se quase em casa, como se ela ainda existisse em
algum lugar fora da foresta Al-u-bu. Os ps mergulhados no lago no eram
to familiares aos sentidos porque os al-u-bu-u-na no tinham exatamente
um lago; o riacho servia bem. Ainda assim, tendo ele se acostumado com
a gua fria at as canelas, a sensao era nada menos que boa. Atrs de si
tinha apenas a estrada para Al-u-tengo, que comerciantes e trabalhadores
tomavam nenhum dos dois, por motivos diversos, o tipo de viajante que
se importaria comaquele homemtranquilo descansando o corpo no cio. As
barras da cala foram puxadas para cima, e ele vestia uma camisa qualquer
329
Voiui l
de Ralf, transformada em colete. Era pouco menos que o ideal para o frio
atenuado pelo sol ativo, mas Narion no se importava mais com isso.
O lago era imenso no era possvel ver o outro lado com clareza, em-
bora uma linha fna de rvores altas fosse distinguvel. Ou, talvez, fosse a
imaginao de quem j sabia o que havia do outro lado.
O jovem comparsa de Narion se aproximou correndo, trazendo a tira-
colo uma bolsa de goma escura. Ele vestia uma roupa toda amarela, usando
tambm um chapu por cima do gorro para esconder o rosto inteiro do sol
prtica costumeira entre os carteiros da cidade.
Veio alguma coisa? Perguntou Narion, saindo da gua.
No sei. . . Vamos ver! Respondeu ele, com um sorriso aventureiro.
Ralf ps a bolsa no cho, e os dois puseram-se a tirar montes de papeis
de dentro dela. Papeis pardos; alguns mais claros e plidos, outros mais
alaranjados. Alguns mais grossos, outros mais fnos, meras cartas de pouca
pompa.
Espalharam as correspondncias por uma rea grande no cho, e Ralf
logo avistou um largo embrulho azul-claro com o desenho quadrado de um
prdio.
esse.
Tem certeza?
Sim! Quer abrir?
No, pode abrir.
Ralf arrancou a tira de papel que fechava o envelope, e de dentro puxou
um outro papel azul, desta vez dobrado e de superfcie brilhosa.
Ah, isso papel de aviso! Comentou Ralf, analisando-o sem desdo-
br-lo. So feitos com uma pequena poro de goma escura misturada a
uma poro de blis de ronco, e a eles envernizam o papel depois que ele
acaba de secar. . .
Ralf, voc pode. . . Disse Narion, pouco preocupado coma natureza
do papel.
Ah. . . Sim.
Ralf desdobrou o papel com o polegar, fazendo um barulho que fez Na-
rion fechar os olhos aps um ligeiro arrepio. L estava o salvo-conduto,
assinado por Elton, envolto com uma linear borda negra. O documento ex-
plicava que seu portador estava livre para cruzar a (e o papel especifcava,
nesse caso, sair da) cidade, imune ao da fora policial ou do exrcito.
Uau. . . Disse Ralf, impressionado.
Narion logo dobrou o papel duas vezes, sentindo mais arrepios, e colo-
cou o passe livre no bolso.
Obrigado.
De nada. . . Voc tem que pegar o homem que te fez mal, no ?
330
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Narion concordou com um aceno contido de cabea. Ralf juntava as
cartas para colocar de novo em sua sacola.
Voc matou mesmo aquele policial? Ele perguntou, sem interrom-
per o que fazia.
No. Mentiu Narion. Mas foi bomcolocar na carta, no ? A-acho
que eles tiveram medo. . .
Uhum.
E voc? Como sabia de tudo aquilo?
Ralf estava quase terminando de colocar as cartas na sacola quando pa-
rou, com o ltimo punhado na mo, engolindo em seco.
E-eu no posso dizer.
Seus pais contaram? Perguntou Narion, duvidando muito da hip-
tese.
No.
Os dois continuaram de frente um para o outro por mais um tempo, sem
um motivo claro. Ralf desviou o olhar, terminando de rearranjar sua bolsa,
e Narion se levantou.
Bem. . . Obrigado, Ralf. Desculpe por ter pedido isso.
Tudo bem. Disse o garoto. Eu nunca fz algo assim, sabe.
Assim? Ajudar algum?
. . . Com uma coisa assim. . . Importante.
Os dois se olharam por mais um tempo at que, com um ltimo aceno
de mos, Ralf voltou para a estrada, seguindo em frente rumo ao leste. Ele
gostaria de fcar mais com Narion, mas sabia que ele no estaria nem um
pouco a altura das expectativas que tinha quanto a umamigo daquele tipo
algum que viveu aventuras de verdade j que ele estava abatido. Queria
perguntar se aquilo ainda doa muito. Deveria ser to desconfortvel quanto
a prpria orelha por debaixo do gorro.
Quando olhou para trs mais uma vez, viu que Narion voltava para a
margem do lago. Pegava o arco e as fechas. No sabia se teria medo do al-
u-bu-u-na se ele tivesse realmente matado o policial. No sabia se ele seria
uma pessoa m se tivesse feito aquilo.
Narion aguardava dentro de uma sala sem janelas. As quatro paredes
curtas que formavam o pequeno espao eram duras como corvnia, embora
fossem feitas de comum alvenaria. Pintadas de cinza, serviam de apoio a
dois minrios pentagonais azuis enfraquecidos pelo calor. A porta, barata e
simples, estava trancada. Combinando com ela, havia no recinto apenas um
mesa quadrada com duas cadeiras extremamente desconfortveis e o fato
331
Voiui l
de que Narion trazia nas costas a aljava e o arco tornava o assento ainda
pior.
A porta foi destrancada pelo lado de fora; depois de aberta, Elton, o
negro com corpo e camada capilar fnos, entrou na sala vestindo uma roupa
pouco delatora de sua posio social.
Ento voc N. Disse ele, sentando-se com pacincia na cadeira
em frente ao al-u-bu-u-na.
Me chamo Nariomono. Voc deve ser Elton.
Muito bem. Sorriu ele. O que exatamente sabe sobre mim?
Sei sobre o lugar onde voc esconde os corpos dos alorfos e flinorfos
que mata. Sei que os guarda como prmios ao invs de queim-los. Sei onde
ele fca.
Elton balanava a cabea, entendendo a mensagem, com os braos cru-
zados sobre a mesa.
Vejo que algum mais sabe. Narion percebeu que o mago olhou
para suas orelhas por um instante.
Ningum que vai dizer o que sabe.
Mas voc vai me dizer quem .
Eu no quero nada com voc, Elton. Disse Narion, procurando
acalmar o mago ao ir direto ao ponto. Eu no vou dizer nada. E quem me
ajudou tambm no vai. Eu s quero informao.
Elton ergueu a sobrancelha.
Informao?
Sim.
O bomin ergueu-se vagarosamente e, com cuidado, sentou-se mesa,
com as pernas a um p de distncia do tronco de Narion.
Que tipo de informao?
Quero saber onde Desmodes est.
Elton estreitou os olhos.
Desmodes?
Voc deve saber quem .
O que quer com ele?
Ele destruiu a minha famlia. Matou. . . Matou todos que eu conhecia,
todos que eu amava. Ele destruiu minha vida.
Elton olhava para Narion, mas no prestava mais ateno nele. Estava
surpreso demais com as conjecturas aparecendo em sua mente, explodindo
em progresso geomtrica.
Voc. . . um al-u-bu-u-na. . .
Era. Respondeu Narion. No existem mais os al-u-bu-u-na. Des-
modes matou todos. Matou tambm outro mago.
Robin?!
Narion deu de ombros, sem saber responder.
332
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Elton levantou-se rapidamente e abriu a porta da sala, fazendo meno
de sair. Narion rapidamente puxou o arco por uma ponta e com a outra
puxou o mago de volta pela mo, fazendo-o se debruar sobre a mesa. De-
pois, largando o arco num canto, pegou o mago pela gola da camisa azul,
que mostrou-se mais elstica e frgil do que parecia, e o prensou contra a
parede.
Onde est Desmodes? Voc no disse!
Est no Conselho dos Magos. . . Disse Elton, falando com furiosa
difculdade.
Em que cidade?
Em NENHUMA! Resmungou Elton, ofegante. No fca em ne-
nhuma cidade!
J havia entrado no saguo principal de Narion, e corria com o sangue
em brasa para encontrar a sala certa.
Fica ONDE, Elton? ONDE? Narion berrava a pergunta, furioso.
Elton sentiu a presso no corpo afrouxar quando Narion caiu no cho,
contorcendo-se de dor com as mos por cima do abdmen.
Idiota. . . Comentou Elton ao alisar as dobras na camisa. Segurou
o trinco da porta semiaberta apenas pelo breve tempo em que olhou uma
ltima vez para Narion.
333
Captulo 46
Principiante
De um lado para o outro os lbios e as lnguas encontravam-se, furio-
sos, vvidos, vidos. Separavam-se e uniam-se, digladiavam-se comsorrisos,
entrechocavam-se indecisos, semsaber a hora de parar de celebrar o retorno
de uma metade do beijo outra.
Os magos principiantes reencontravam-se cinco dias depois do desastre
que foi a catastrfca (falta de) memria de Tadeu, e olhavam-se a um palmo
de distncia um do outro no costumeiro covil.
Eu nemsei o que dizer. . . Disse ele, segurando o queixo de Amanda
entre os dedos.
Eu tenho algumas coisas pra dizer, mas voc pode falar primeiro.
Bem, quanto quele dia. . . Eu fui horrvel.
. Ela riu, mas ele pouco fez para acompanh-la.
Eu fui realmente. . . Despreocupado, e. . .
No, Tadeu, desculpa. Eu exagerei. Admitiu ela. s que nunca
passamos por isso antes. Sempre conseguimos combinar quando vir ou
no. . . Eu fquei com medo.
Eu sei, e-eu no vou fazer isso de novo.
As duas coisas. Repreendeu ela. Aquilo foi muito arriscado,
Tadeu.
Ningum me viu.
Tem certeza?
Tadeu balanou a cabea, confrmando.
Onde voc estava? Perguntou ela.
Ele respirou fundo, molhando os lbios antes de olhar para o lado, cons-
truindo o que deveria dizer.
Lembra que eu disse que eu ia a uma festa bomin?
Sim.
Eu fz uma amiga l.
Uma amiga? Disse ela, surpresa.
Amanda ouviu com ateno a narrativa que se seguiu. Tadeu falou tudo
sobre a iniciao da qual no participou, e ela riu da coincidncia, contando
o que acontecera com ela. Falou sobre Gustavo e o novo mdico do pai.
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Voiui l
Tadeu explicou o que estava fazendo na biblioteca com Anabel, e a conversa
seguiu seu curso at o fm da tarde, preenchendo-a to rpido que pareceu
que falaram pouqussimo.
Amanda passava pelas ruas do centro de Al-u-ber com um sorriso largo
e adocicado na maior parte do tempo, sem prestar ateno ao que acontecia
do lado de fora. As pedras e as pessoas provavam de sua alegre indiferena
enquanto ela encostava a cabea no apoio traseiro da carruagem. Havia
manchas no que deveria ser imaculado: ela no pudia negar que pensava
indecisivamente quanto a Anabel. Desejava ser uma maga boa o sufciente
para substitu-la. Queria defender Tadeu e esperava, simultaneamente
condenando a si mesma, que Tadeu desejasse o mesmo.
A charrete parou, mas Amanda no precisou pedir por uma explicao.
O cocheiro, um homem magro e de bom porte com um rosto to antiquado
quanto antigo, abriu o compartimento de comunicao com o vago, olhou
atravs da cortina puxada para o lado com os dedos, e avisou que iria ao
mercado de frutas a pedido de Barnabs, e que no demoraria. Amanda fez
que entendeu com um despreocupado aceno. Depois de um leve balanar
de carruagem, sentiu-se sozinha. Sentiu-se tambmestpida ao lembrar que
estava duplamente no meio de uma aglomerao.
Passou a observar uma paisagem estonteante do alto da ponte entre os
dois prdios de seu castelo. De uma forma surpreendentemente estvel as-
sistia ao ir e vir de castelos que moviam o cho em todas as direes, uma
construo quase esbarrando em outra debaixo de um cu de nuvens car-
regadas uma tempestade em Al-u-ber deveria estar por vir. Ao longe,
colinas, rvores secas e arbustos faziam-se e desfaziam-se, e um desfle de
muralhas, torres e colunas de todos os estilos e tamanhos acontecia diante
dos olhos da jovem.
Um dos castelos parou bem em frente ao dela; era grande, exibindo uma
trindade de torres idnticas. A frontal dentre elas exibia uma grande porta
quadrada. Amanda parou de prestar ateno porta quando uma das ja-
nelas nas grossas pontas das torres se abriu, e de l surgiu algum que ela
imediatamente reconheceu.
Amanda quase no teve tempo de se jogar no cho; O fez instintiva-
mente, mas no sabia ao certo por qu; claro que ele j sabia ou supunha
que ela estava aprendendo magia.
Aproximou-se da porta da charrete e ouviu duas vozes em contraste: a
do pai de Tadeu, feita de experincia e belicosa completude, e a de umjovem
garoto, repleta de audcia.
. . . Qual o seu nome mesmo? Ela ouviu Galvino perguntar.
336
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Alex, senhor.
Alex. . . Sussurrou Amanda, tentando se lembrar do nome. Era
familiar.
O que foi que disse, Alex?
Estou apenas dizendo que acho uma iniciativa louvvel a dele, senhor.
Que iniciativa?
Se aproximar de outras tradies. Eu o vi no outro dia. Ele estava
tentando falar com a flha de Barnabs.
Tentando falar?
. . . Amanda podia sentir um sorriso vitorioso escapar do rosto de
Alex. Ele estava do lado de fora da casa dela, e tentou falar com ela por
ali mesmo, pela janela. Acho que o nome dela . . . Amanda, no ? Depois
foi embora. Acho que ela no estava, ou. . . No sei. Eu j ouvi dizer que
os preculgos no eram amistosos, mas se ela estava l mesmo isso foi uma
falta de respeito, no acha, senhor?
Comeara a chover forte, e Tadeu sentiu-se bem por j esperar o pai na
sala apropriada para a aula quando ele chegou em casa, fazendo um barulho
estranhamente alto com a porta de entrada. Tadeu pensou ser capaz de
ver se algo esquisito estava acontecendo com o castelo do pai. Viu, atravs
de todos os pingos dgua, que sua alma vinha em direo a ele com uma
expresso de furor no rosto, como se uma deciso tivesse sido tomada em
carter de indiscutibilidade.
Galvino entrou na sala, parando entrada.
O que foi?
Amanda, j completamente encharcada, viu que Galvino se aproximava
e deu a volta na torre principal do castelo de Tadeu. Contou com a falta de
iluminao naquela rea para escapar por pouco das vistas do experiente
bomin, cujas roupas comearam a esvoaar com violncia quando ele parou
em frente aos portes bem trancados do flho.
Tadeu olhou para o prprio tronco ao sentir um repentino frio na bar-
riga. Foi at o saguo principal do prprio castelo, chegando no exato mo-
mento em que o local inteiro parecia ranger loucamente ao ritmo da venta-
nia que tomara a noite de assalto. Algumas trancas j haviam voado para o
cho do lado de dentro com um estalido surdo. Todas iam sendo desarma-
das, uma a uma, pela intensa presso que entortava cada vez mais a madeira
da porta.
Filho! Chamou Eva atrs dele, olhando fxa e seriamente para a
porta. Suba!
337
Voiui l
Sem tempo para entender o que a me fazia dentro de seu castelo, obe-
deceu; correu para uma pequena sala onde havia uma escada, que circun-
dava toda a torre at o topo. Tadeu no chegou ao segundo andar; tropeou
sozinho, mas no caiu nos degraus. Caiu em uma escurido que logo se
transformou, medida que sua cambalhota se completava, na imagem do
pai jogando-o contra o sof.
Voc tem mentido para mim, Tadeu?
Pai. . .
TEM MENTIDO, TADEU? Berrou ele, expulsando fria dos pul-
mes.
As portas do castelo arrebentaram-se, e os pedaos voaram baixo com
o vento e a gua at carem com estrondo no cho e se arrastarem adiante,
suaves. Galvino entrou no saguo, sem nem mesmo olhar para os lados;
encarou diretamente a mulher.
Ele mentiu.
Saia do castelo dele.
Voc vai ter que me impedir.
Farei isso quantas vezes for preciso.
Ela se agachou ao lanar a mo para frente; de seu punho saiu uma
enorme labareda que Galvino desviou ao rolar para a direita. O vento re-
comeou, trazendo com ele um pouco da chuva absurda do lado de fora e
jogando Eva contra uma das paredes do castelo.
Amanda observava a luta, atnita; no havia outro jeito de entrar no
castelo precisava passar pela porta que Galvino abrira, mas a nica espe-
rana de seguir adiante seria andar desapercebida pelo cenrio do confito,
ou esperar at que ele continuasse em outra sala.
Um tufo de barro e vegetao rasteira em frente porta do castelo er-
gueu-se do cho como se algum houvesse chutado a terra, e a corrente de
ar que Galvino controlava a trouxe diretamente para Eva.
A terra se reagrupou e num rpido movimento formou um paredo
tenso que parecia to slido e inquebrantvel quanto o prprio cho. O
vento, impedido pelo solo recm-arranjado, parou de segurar Eva na pa-
rede. Caindo de p, a mulher jogou o bloco de terra contra Galvino, que foi
atingido com um baque surdo.
Pai. . . Pai, o que est. . .
Quieto! Respondeu ele, apontando o dedo para o flho.
Galvino se recuperava no cho quando Eva se aproximou.
Saia daqui. Exigiu ela.
E o seu castelo, Eva? Perguntou ele, passando o punho pelo canto
da boca aps uma cuspida. Voc est aqui por inteiro?
Amanda viu Eva dar uma olhada rpida para o lado de fora. A pre-
culga se retraiu nos muros externos, tirando a cabea da porta. Sentiu o cu
338
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
enrolar-se de medo; tinha clara em mente a perspectiva de que tinha sido
vista pelo menos pela me de Tadeu. Mas, segundos depois de fechar os
olhos, forando-se o autocontrole, s o que ouviu foi um sussurro que ela
no pde entender.
Eu no menti, pai. . . Dizia Tadeu na sala da lareira.
Eu j disse pra fcar quieto, Tadeu! Dizia Galvino, olhando fxa-
mente para o flho, ainda que este soubesse que ele no estava presente.
Dessa vez no vou tomar sua palavra em vo.
Tadeu levantou os olhos lacrimejados para o rosto do pai, sentindo que
o olhar era retribudo. Sentiu-se pela primeira vez de fato invadido. Virou
a cabea para o lado e viu que a me entrava na sala, com uma postura to
atordoada quanto a do pai.
Amanda viu que nem Galvino nem Eva estavam mais no saguo princi-
pal do castelo. Entrou, pisando com cuidado no cho cheio de terra e peas
de ferrolho. Pensou que ou invadir castelos no lhe daria nenhuma sensao
de diferena ou estava to preocupada que no sentiu nada ao atravessar o
portal violado.
Ficou parada, indecisa; percebeu que no havia muito que ela pudesse
fazer. Podia fazer crescer uma adaga na prpria mo, mas de que isso adi-
antaria? Sem uma tcnica, no sabia ainda o que podia fazer.
Pensou que no havia muito tempo. Olhou para o teto relativamente
baixo da sala em que estava e, pedindo omissas desculpas, comeou a gritar.
No comeo apenas fez de tudo para que seu berro fosse o mais alto que
conseguisse produzir, mas logo pensou que no deveria se revelar tanto. En-
rouqueceu a voz, perdendo um pouco de potncia, mas conseguindo o que
queria; via as luzes amarelas das paredes oscilarem como se a temperatura
mudasse emfraes de segundos, e pde sentir a estrutura do castelo se aba-
lar ao ritmo do corpo, que tremia de forma cada vez mais intensa. Sua viso
fcava borrada, e mesmo depois de parar de tremer continuava vendo tudo
daquela perspectiva. Tonta, cambaleou at apoiar-se naquilo que achava ser
uma parede. No seria a escolha mais inteligente continuar ali. Fechou os
olhos e deixou-se levar para o prprio castelo.
Desabou, envolta pela noite chuvosa e hostil, batendo com as costas na
fria corvnia. Estava encostada em uma reentrncia do lado de fora da casa
de Tadeu, e pestanejou enquanto escutava, ligeiramente desconfortvel, um
som que ainda no conseguia identifcar. No entendia por que, mas no
gostava do que ouvia.
Arrastando-se com as vrtebras pela parede, sua viso fcou turva, as-
sim como a viso do prprio iaumo, at que ela enfm sentou-se, perdendo
as foras. Desmaiou, empalidecida, vendo um rosto conhecido e amigvel
aproximando-se dela na escurido.
339
Captulo 47
Interveno
E para isso quer o cargo de volta.
Kent estava em p em seu escritrio, que no era muito diferente do de
Hideo. Os mveis e o estilo eram padronizados em todas as salas do gnero
no prdio, de modo que ambos viviam em um ambiente de austera osten-
tao. O espao do poltico idoso era mais limpo, entretanto; seus culos o
faziam enxergar de uma maneira excepcionalmente boa, de modo que suas
lentes, mantidas sempre em aguda transparncia, no o deixariam em paz
se ele tivesse uma sala exclusiva que fosse suja e bagunada.
Enquanto o parlamentar limpava energicamente os culos, pensando a
proposta de Dalki, o ex-chefe de polcia ftava-o tranquilamente prximo
parede. Preferia a mesma posio do poltico a se sentar. Sabia que no
conseguiria manter boa postura; que se sentiria estranhamente diminudo,
como algum estranhamente indefeso, fazendo negcios com um homem
cheio de astcia e experincia isso sem sequer precisar supor Kent como
um mago.
Se voc quer pegar os assassinos de Hourin, eu quero meu cargo de
volta.
Nada me garante que voc sabe quem eles so. Kent colocou os
culos de volta, ajeitando a manga das vestes negras. Quero o que sabe
primeiro.
Com todo o respeito, senhor Kent. Disse Dalki, sorrindo com cui-
dadoso sarcasmo. No vou negociar desse jeito com um poltico.
Al-u-een no uma cidade que se arrisca, Dalki. Por que acha que
vou me arriscar com voc?
O policial, que desta vez no se vestia a carter, olhou para Kent sem
entender como ele no via como era absurdo o que dissera.
Isso demonstra sua ignorncia quanto histria dessa cidade, senhor
parlamentar.
No, meu caro. Riu Kent, exibindo uma toro de msculos faci-
ais que se traduzia em sabedoria tcita. Demonstra a sua ignorncia de
pensar que o passado ainda diz algo sobre quem ns somos.
Ento quem ns somos, senhor Kent?
341
Voiui l
Assassinos cruis.
Kent deu a volta na mesa, indo ocupar a prpria cadeira.
Nem todos, senhor Kent.
Ento voc quer ajudar a prender os assassinos cruis! Kent di-
zia, irnico, com as mos fazendo abrangentes gestos sobre a mesa. Mas
apenas se isso lhe benefciar.
No quero benefcios, senhor Kent. Quero as coisas como eram antes,
sem magos para me dar ordens no trabalho ao qual h rosanos me dedico.
Magos? Outra desconfortvel toro de rosto em que o velho ho-
mem deixava clara, com a sano das rugas, sua opinio. Ora, Dalki. . .
Ento no acredita que eles so magos. Ou pelo menos ele.
Sinceramente. . .
Como explica que um policial que nunca foi destaque aparea com
um parlamentar a tiracolo e seja declarado chefe de um dia para o outro?
Kent abriu a boca, mas logo a fechou, contentando-se em us-la para
respirar.
E a sua teoria recomeou ele que h um mago na polcia me-
xendo com um parlamentar.
O senhor tem uma melhor?
Polcia e Parlamento se olharam, entrando emumacordo de olhares com
muitas clusulas no ditas, todas mltiplas e contraditrias, abarrotadas at
o ponto fnal de esperanas e contrapesos.
Senhor Kent, estou pedindo o que meu de direito para dar ao senhor
o que o senhor quer. Justia.
Tudo bem. . . Mas preciso de tempo at encontrar alguma coisa que. . .
J se passaram seis dias desde o assassinato. Interrompeu Dalki,
curvando-se sobre a mesa do poltico. E eles comearam a fugir desde o
primeiro momento.
Estavam os dois dentro da sala particular de Kenner, cheia de coisas que
ele no tivera tempo de transportar para o gabinete de chefe.
No estou surpreso. Disse Hideo. Voc no iria durar muito, de
qualquer forma. Dalki slido aqui dentro, garoto. Estava no meio de uma
investigao. Foi tolice sua ter tentado tir-lo de l.
Kenner apoiava-se com os cotovelos na janela. Suas escpulas desta-
cadas pareciam lhe transformar em uma espcie de pssaro agourento, e a
viso de seu rosto transtornado fez Hideo dar um passo para trs e fcar
ainda mais alerta quanto porta do prprio castelo.
Voc cala essa boca. Disse Kenner, com o indicador em riste. No
esquea do que eu posso fazer contra voc.
342
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Hideo levantou as mos altura do peito e abaixou a cabea, resignando-
se. Kenner comeou a andar irregularmente no pequeno espao entre o sof
e uma parede cinza-escura emque vrias anotaes e papeis estavampresos;
a mo, fechada emumpunho por sobre os lbios, tremia de leve comteorias.
Repetia com tanto afnco o mantra de que tem que haver um outro jeito. . .
que Hideo sentiu-se compelido a responder.
No h.
E se Dalki sair da cidade. . .
Kenner! Objetou Hideo.
Eu no vou sujar as mos, claro, mas voc pode. . .
Kenner! H outras coisas que posso oferecer para voc! Tenho ouro,
tenho terras!
No QUERO! Explodiu Kenner. Quero o meu cargo de volta!
Ento voc estpido. Acusou o parlamentar. Poderia usar a
magia para ser rico e ter tudo o que quer, mas quer insistir em um emprego
miservel e tolo!
No auge de sua coragem, o homem de preto sustentou o olhar voraz
contra o homemfardado, cujas pupilas oscilavam, surpresas. Kenner passou
a balanar a cabea negativamente.
No, no. . . Voc acabou de dizer que com a magia posso ter tudo o
que eu quero. E o que esse tudo? Tudo menos o que eu quero? No. No
. No mesmo. . .
Hideo desviou o corpo, caminhando em direo janela. Queria poder
matar aquele homem ali mesmo, apenas houvesse uma chance.
Na falta desta, contudo, sua outra soluo certamente no falharia.
Voltou a Neborumpara se certifcar de que estava seguro. Sob as nuvens
crespas do dia nublado, sentou-se no saguo principal, cansado e dolorido,
esperando poder sair da presena daquele detestvel rapaz o mais rpido
possvel.
Quer saber, Hideo? Apergunta, jocosa, puxou-o de volta diminuta
sala. Voc tem razo. Se eu quero ser um policial, no mesmo. . . Eu
tenho que ser um policial.
E Kenner foi embora, quase fazendo vento ao passar pela porta e fech-la
sem cerimnia. Hideo demorou alguns instantes para entender o que aquilo
queria dizer.
Mas no fazia muita diferena. As coisas logo voltariam ao lugar.
Kenner atravessou a cidade o mais rpido que pde a p, j que a char-
rete demorou para chegar. Passou por muitos lugares quietos, por algumas
343
Voiui l
aglomeraes barulhentas, comcheiro de gordura, e por duas pequenas pra-
as de sedutora beleza, nelas quase pulando por cima dos bancos duros sem
encosto.
Ele morava em um bairro afastado, nas bordas do centro, onde as casas
eram bastante similares em seu tamanho e arranjo bsico. A sua tinha uma
alegre parede externa um tom salmo, iluminado por dois minrios ver-
des, e janelas de ummarromvivo, quase vermelho. Kenner meteu sua chave
no trinco de qualquer maneira e, forando-o como sempre tinha que fazer,
entrou na sala.
Virou-se para o lado de fora antes de entrar, obrigando-se a parar e a
observar a rua. Visitou o prprio castelo e viu que havia outros distantes;
eram provavelmente vizinhos. Um deles, no entanto, se avolumava nas pro-
ximidades; um castelo escuro e alto, comtorres que surgiam nos cantos e no
centro de uma vasta construo de cerca de quatro andares. Iluminado com
minrios azuis, assemelhava-se a um grande urso de pedra, com centenas
de olhos luminosos.
Viu o homem antes de fechar a porta de casa. Ele era negro, alto e forte,
embora o casaco azul-escuro que usava fzesse de seu corpo um bloco parci-
almente compreensvel apenas. Tinha um cabelo curto que deixava visvel
o formato da cabea, adornada por olhos pequenos e grandes lbios curvi-
lneos.
Voc . . . Comeou Kenner, sentindo que o conhecia de algum
lugar.
Espiou o castelo do homem mais uma vez, de longe, mas no viu ativi-
dade.
Sim, sou eu. Monji. Sua voz era grave e livre de incongruncias.
Vamos entrar, sim?
Espera a. Monji continuou a andar at encontrar-se face a face
com o policial. Essa aqui a minha casa, o que quer fazer aqui?
Fique feliz que estou pedindo para entrar. Agora entre logo ou vai
entrar de outro jeito.
Kenner abriu passagemaps perceber que o homemsustentava umolhar
rgido. No havia concesses naquela frase.
Monji olhou com fraco interesse para o interior bem organizado. Ilu-
minado por um minrio verde no canto, ao lado de uma janela fechada, o
lugar combinava mveis de madeira forte, como a das portas e janelas, a
um aconchegante caramelo nas paredes e no sof. O tapete vermelho em
frente lareira, cheio de grossos fos sobressalentes em toda sua extenso,
era agradvel a ps descalos.
No entanto, ambos estavambemcalados. Combotas semfos ou marca-
es de qualquer tipo, Monji sentou-se no sof, sem ser convidado. Kenner,
secretamente estupefato, sentou-se tambm.
344
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Voc deve saber quem eu sou. Disse Monji.
Kenner sabia. Monji era um das pessoas mais ricas de Al-u-een, dono
do indubitavelmente maior banco de toda regio a leste da Cidade Arcaica.
Sua reputao o precedia, e Kenner se limitou a confrmar a presuno do
banqueiro com a cabea.
Sabe, Kenner. . . esse o seu nome, no ? Kenner confrmou mais
uma vez. Voc sabe como eu cheguei aonde eu cheguei?
Kenner negou.
Eu esmaguei os meus inimigos. Disse Monji, com simplicidade.
Tirei eles do meu caminho. Usando magia, ou. . . Dinheiro. O que foi
preciso. Hoje em dia sou o maior banqueiro de Al-u-een. Existem bancos
menores, mas. . . Eles no realmente competem comigo. No so preo para
mim. Ento. . . No me preocupo. Deixo-os viver.
Sua vida um sucesso.
Minha vida um sucesso. Repetiu Monji, balanando a cabea.
Mas sabe o que eu nunca fz, Kenner? H duas coisas que eu nunca fz, na
verdade. Kenner estava parcialmente por ali. Vigiava a movimentao no
castelo do banqueiro, freneticamente alternando entre a janela na varanda
do terceiro andar e o saguo principal. Em primeiro lugar, eu sempre fui
leal aos magos. claro. . . Alguns de meus inimigos eram magos. Mas aos
magos que me apoiaram, eu nunca faltei.
Como Hourin. Comentou Kenner.
Monji permitiu-se sorrir com um lado do rosto.
Voc foi bem informado.
Voc tambm.
A segunda coisa que nunca fz, Kenner, foi querer subir muito rpido.
Eu levei tempo para chegar onde estou.
Eu no tenho pacincia, Monji, e o que eu quero simples. Eu no
preciso esperar.
Se voc no quer expr muitos dos magos dessa cidade, sim, voc
precisa esperar. Rebateu Monji.
Kenner pigarreou, extremamente incomodado. Monji continuava olhan-
do para ele; o silncio sepulcral do mundo que naquele instante continha
apenas os dois castelos em perigosa proximidade abafava-o, e toda a rea-
lidade parecia estar pendurada por um fo, o menor desbalano podendo
causar uma ruptura sem volta.
Vamos entender o que est acontecendo aqui. Disse Monji. Hideo
me contou o que aconteceu. Planejava vir aqui hoje de qualquer forma,
mas Hideo me alertou antes e vim para c imediatamente, portanto j estou
bastante irritado com a perda de tempo que isto . Eu sou mais forte que
voc. J estou aqui e voc no consegue me expulsar. Se voc tentar sair, eu
o invado e trago de volta. Disse, fazendo um gesto com o dedo da porta
345
Voiui l
at onde Kenner estava sentado. Se o que eu quero demorar demais para
acontecer, eu o invadirei da mesma maneira.
Um calor arrepiou o corpo de Kenner, fazendo-o sentir cada gota de
suor frio que surgia na nuca. Seu corao palpitava, e ao mesmo ritmo ele
mudava de foco, prestando ateno ao que acontecia em seu castelo.
muita presuno, no acha?
Voc o presunoso, Kenner. Respondeu Monji, estralando os de-
dos das mos. V pegar as cartas. Eu quero que voc as queime ali na sua
lareira.
Kenner riu emumarroubo desesperadamente forado, desviando o rosto.
Lgrimas de raiva contidas ainda dentro dos olhos separavam nsia furiosa
de ao efetiva.
Quer me impedir de mandar voc fazer isso? Perguntou Monji.
Kenner no sabia se respirava fundo ou no respirava. No respondeu
pergunta.
Abriu a porta do castelo, partindo para a briga, mas no conseguiu dar
dois passos para fora; levou um soco de Monji, que parecia maior e mais
musculoso do que a verso de carne e osso. No vestia camisa, e seus punhos
pareciam grudados como se moldados na ptrea posio.
Atingiu de novo o rosto de Kenner, que rolou pelo cho. Tudo foi fcando
cada vez mais escuro at que o negrume desfez-se no rosto do Monji real,
que o pegou pelo colarinho e o jogou contra a parede caramelo da sala. O
impacto fez o minrio de luz cair no cho, e Kenner, ainda desorientado, s
teve tempo para desviar de outro soco num rpido refexo.
Alertado por uma dor no abdmen, Kenner se viu sendo chutado no cho
pelo Monji que parecia um animal selvagem, engrossando a veia pululante
na testa. Enquanto Kenner se arrastava para longe, aos poucos levantando-
se, viu que os olhos do inimigo eram vermelhos e vidrados.
Um tremor de terra fez com que olhasse para o teto do castelo, que veio
com estabilidade ao seu encontro; ao abaixar os olhos se viu cado no cho
do outro lado da sala. Intuiu que fora jogado por cima do sof, virado para
trs sob suas pernas. Percebeu que havia uma desconfortvel presso con-
trria ao seu corpo no cho vinha da espada, que no se vergara total-
mente.
Monji contornava o sof, e vinha ao encontro de Kenner quando este
sacou a arma com um rpido movimento lateral.
Tudo o que ouviu foi um fno rudo metlico seguido de perto por um
som esponjoso.
Monji cambaleou para trs, curvado e com a mo no rosto. Kenner
levantou-se, sentindo pores intermitentes de dor.
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O banqueiro olhava para ele com um dio gratifcante, em que seu olho
quase fcara vermelho. Um corte reto e fno abundava em sangue quente e
escuro na bochecha esquerda de Monji.
J recuperado e vendo que o invasor sem camisa estava desequilibrado,
Kenner partiu para o ataque. Ao mesmo tempo, levou a espada de leve para
a direita para desferir um golpe massivo.
Monji estava preparado emambos os cenrios da luta, e desviou do golpe
de espada deslocando-se para trs, reagindo tambm ao golpe em Neborum
segurando a mo do policial e o empurrando para trs. Com um chute la-
teral jogou-o para a esquerda um instante depois, e o homem surpreendido
cambaleou at se encontrar com a parede.
Kenner, j desesperado por ter perdido a oportunidade de expuls-lo de
seu castelo, seguiu golpeando-o com a fora dos afobados; uma, duas, trs
vezes, mirando na cabea, nos braos, mais uma vez na cabea com saltos
e esquivadas ligeiras para umhomemdaquele tamanho, Monji escapou ileso
e, aproveitando-se de um momento de cansao e fraqueza, aproximou-se do
ofensor armado e puxou sua cabea para um encontro com seu joelho.
Kenner passou a enxergar crculos e formas estranhas fustigando umca-
leidoscpio tonto em cima da imagem do irritado inimigo. Sentiu a espada
escapar da mo com um chute depois de um ou dois passos cambaleantes
para trs, e uma espcie de sufocao fez dos crculos, agora j todos rosa-
dos, a imagem da parede do outro lado do castelo, na qual bateu com fora.
Estava preso pelo pescoo, como se usasse uma coleira. O anel ao redor
da garganta ligava-se a um chicote que a verso maior de Monji segurava.
Tudo, do incio do chicote quilo que por pouco no impedia Kenner de en-
golir, era feito de uma espcie de negro lquido gelatinoso. Apesar de conge-
lante e fexvel, era resistente e impossvel de desfazer tentando arrebent-lo
com as mos.
Monji sorriu, desta vez com os dois lados do rosto. Satisfeito, fez um
breve gesto com o brao, brandindo o chicote para cima. Kenner levantou
voo com incrvel facilidade; foi suspenso no ar, leve como um punhado de
terra, e depois jogado com fora contra a parede quando Monji estendeu o
brao, abrindo a palma da mo em direo ao homem controlado.
O chicote comeou a se tornar mais grosso, e o brilho de sua superf-
cie mostrava que transformava-se em uma espcie de fuxo. A gargantilha
sufocante desfez-se medida que todos os membros do corpo de Kenner
eram presos parede, imobilizados e esticados, at que a cabea tambm foi
coberta pela cola obscura que logo o tomou por completo, enclausurando-o
em uma priso absoluta.
347
Voiui l
Kenner abriu os olhos, e observou a si mesmo sentado no sof. Seus
ouvidos zumbiam de leve, e os rudos do ambiente chegavam a ele abafados
e distantes. Sentia seu corao bater com absurda preciso, e podia ouvir
com clareza asmtica o ar entrar e sair dos pulmes, pouco a pouco, e ento
cada vez mais rpido, resultado da prpria agonia de ter conscincia daquilo.
Levantou-se. Seu corpo fazia sentido apenas da cintura para cima; as
pernas moviam-se, independentes e cheias de energia.
Olhou para frente. Passou por um curto corredor e entrou no quarto.
Foi a vez das mos serem tomadas dele, transformadas em algo alheio e
dormente.
Aquilo que ele sentia como instrumentos ligados aos punhos abriram
o armrio, e depois uma gaveta. Chegaram, ento, sacola encontrada na
casa de Hourin com todas as mais de quarenta cartas incriminatrias.
A mo direita ps a sacola nas costas e as pernas levaram Kenner cozi-
nha. L, a mo esquerda abriu uma porta no armrio de baixo e puxou para
fora uma estufada sacola de papelo. De dentro tirou um punhado de tiras
de madeira, que a barriga ajudou a carregar apressadamente para a sala.
Monji estava sentado com o calcanhar sobre a coxa. Supervisionava
Kenner, que colocou o carvo na lareira, acendeu o fogo com um longo
basto de porosa e suja ponta vermelha, e jogou as cartas, uma a uma, na
chama crescente.
Lenzo olhava para trs comummisto de saudade e arrependimento. Saa
da jir em que sua me morava, e embora pudesse avistar outra jir logo adi-
ante, sentia como se abandonasse todo sinal de vida humana. Cada pessoa
que j valera a pena ter conhecido.
Vestido da cabea aos ps comumgrosso casaco, cala e capa comcapuz,
todos de um tom de preto quase verde, levava nas costas uma pesada bolsa
contendo tudo o que ele julgara importante levar. A casa, deixara para trs,
sem aviso; acreditava no que a me dizia. A polcia viria atrs dele, no
importa o quo inocente fosse.
Andava na estrada para o Norte, e pretendia chegar Fortaleza de Al-u-
een no dia seguinte, fzesse chuva ou sol, o meio-termo sendo mais provvel.
Os campos ao seu redor, a maioria deles cultivados com feijoeiros de dois
ps de altura, pareciam desejar-lhe boa viagem.
Sentiu a terra tremer; sabia que uma charrete aproximava-se. O corao
quase pulou pela boca, reagindo mais rpido do que ele poderia prever. Por
um momento parou, considerando se deveria se esconder ou continuar o
caminho enquanto o viajante seguia em frente.
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Ela chegou mais perto, at que parou abruptamente ao lado de Lenzo,
que no conseguiu ignor-la. Dalki desceu da plataforma ao lado do co-
cheiro e sorriu, com a mo na cintura, sem sequer olhar para o fugitivo:
observava a paisagem, ignorando-o completamente.
Escolheu um dia bonito para fugir. Comentou, estreitando os olhos
para aquilo que parecia ser uma solitria rvore alta em meio s mudas
menores.
Fugir? E-eu no estou fugindo!
No? Perguntou Dalki, fazendo um gesto com a cabea.
Lenzo olhou para o lado. Dois policiais andaram a passos frmes em di-
reo a ele, amarrando suas mos enquanto ele se debatia, respirando tres-
loucadamente.
Dalki! Voc. . . Voc d-disse que eu no ia ser preso, voc DISSE!
Seu capuz caiu pra trs, desajeitado. Dalki aproximou-se, balanando a
cabea.
Eu menti.
Voc. . . Mas voc no chefe!
Agora eu sou. Longa histria.
Mas. . . Os policiais terminaram de atar um punho a outro, e j
o carregavam pelos cotovelos para dentro da charrete quando Dalki pediu
que parassem. Mas eu no fz nada, Dalki!
Era dever seu, como cidado de Al-u-een, ir polcia assim que soube
de algum aqui dentro que fosse um mago. Disse Dalki, aproximando-se
do prisioneiro, que retraiu-se, quase se jogando nos braos dos policiais por
detrs dele. Mas voc no foi, e preferiu brincar de flinorfo. Se fez o
que fez porque foi atacado ou no, pouco me importa. Voc culpado por
deix-los chegar perto.
Lenzo engoliu e sentiu a saliva se arrastar estranhamente pela garganta,
como se trouxesse junto aquelas palavras de desencanto. Olhou para Dalki,
perdendo j as esperanas e as foras para resistir priso.
Voc vai para Roun-u-joss agora?
J fomos. Respondeu o chefe, frio, acenando mais uma vez para os
policiais.
Lenzo entrou na carruagemdepois de olhar uma ltima vez para o cami-
nho sua frente. Conseguiu suspirar em pesar apenas j sentado, pensando
que sua carta chegaria ao destino e seu irmo esperaria por ele em Ia-u-
jambu, completamente desavisado. Lenzo jamais chegaria.
349
Parte VI
Pedidos e arranjos
Captulo 48
Instvel
Byron examinava de p a cena do atentado, trazendo no corpo a capa
laranja que usava para se orgulhar de sua tradio. Naquele dia, entretanto,
ostentava um semblante de algum que tinha poucas coisas valiosas na vida
e observava, em silncio, as cinzas de uma delas. Na cela estavam duas
metades de uma esfera de bronze. Tornero voltava da cela de Lamar, tendo
visto que ele no estava l.
Ele teve ajuda. . .
No diga! Disse Byron, sem tirar os olhos do mineral quebrado.
O que vai me dizer depois, Tornero? Que o policial foi iludido por este
minrio na madrugada de ontem?
Tornero calou-se, juntando as mos frente do corpo. Percebia, disfar-
ando neutralidade, o olhar de exausto que Byron lhe lanava com o canto
do olho.
Pensei que os policiais dessa cidade fossem menos estpidos. . .
Cuidado com as palavras, parlamentar. Disse um homem de uni-
forme policial que entrava no vo central do lugar.
Ele andava com determinao tal que seu rosto parecia uma extenso
das rgidas pernas e dos fortes braos. Byron manteve sua posio, olhando
com curiosidade para o observaram imediatamente os magos homem
comum que entrava no cenrio da fuga.
Quem voc?
Sou o chefe de polcia de Prima-u-jir, e digo que. . .
Nome, chefe de polcia. Interrompeu Byron. Eu quero um nome.
O homem de grossas sobrancelhas escuras olhou por um instante para
Tornero, que no ousaria se intrometer, e voltou-se para o poltico nova-
mente.
Meu nome Francesco. E ns somos policiais, pagos para cuidar da
cidade, no dos seus presos particulares.
Policiais so homens e mulheres que devem fazer um trabalho bem
feito e saber onde so seus lugares.
Byron caminhou tranquilamente em direo a Francesco, que desviou
o olhar ao perceber o aumento na prpria temperatura; sua presso dispa-
353
Voiui l
rara, descontrolada. Byron se perguntava, por diverso, se precisaria ser
um mago para causar aquele tipo de efeito se no conseguiria apenas por
sua autoridade e fgura deixar o policial arisco, dot-lo de passos vacilantes,
enred-lo em indeciso e temeroso respeito.
A policial de ontem viu alguma coisa?
No. Respondeu Francesco, de cabea baixa.
Ela no viu nada. Nem um vulto sequer.
No.
No ouviu um nome.
No.
A resposta com nfase atacou os nervos de Byron, que teve vontade de
causar alguma espcie de agudo desconforto naquele homem abusado. Mas,
entendendo que a resistncia faria parte da cooperao, controlou-se.
Voc entende que uma grave falha de segurana aconteceu aqui, Fran-
cesco?
O policial concordou com um balano enrgico de cabea. Byron o
acompanhou mais lentamente.
Devemos pegar o prisioneiro de volta, no?
Sim.
Posso esperar por sua cooperao? Perguntou Byron, amigvel.
Sim.
claro. Tornero, alguma ideia de quem poderia ajud-lo?
Creio que ele tenha ajudantes o sufciente, mestre.
Estava falando de Lamar.
Tornero piscou com veemncia por um segundou ou mais.
Ele veio para a cidade depois de viver em Kerlz-u-een. Trouxe uma
companheira e um flho.
Quem so eles?
J perguntei. Tornero respirou pesadamente, fazendo um sinal im-
paciente para o chefe de polcia. Para eles. Quando chegamos com Lamar,
dei ordens para que ningum o visitasse. . . A mulher e a criana tentaram,
mas foram impedidos. Voltou a olhar para o mestre, dando de ombros.
Como no entraram, ningum registrou nomes.
Ontemdisse Francesco houve uma visita, mas nenhumdos polici-
ais que estavam na guarda fzeram o registro. E-eu no sei o que aconteceu.
Ns sempre fazemos registros.
Byron balanou a cabea um pouco menos energicamente antes de vol-
tar a olhar para o minrio. Francesco, como se acordasse emumsusto, olhou
para os pedaos perfeitamente curvos da pedra e os juntou do cho.
Quemfez isso tinha acesso a minrios como este. Raciocinou Byron,
andando pela cela. Tambm atacou policiais. Se a mulher de Lamar veio
at aqui com o flho, no se arriscaria a tanto.
354
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
E isso foi h dias.
No eram as mesmas pessoas. Completou Francesco.
Muito bem. . . Pode ir, Francesco.
O policial quis que sua despedida fosse profssional, salpicada com obs-
tinada vontade de fazer um bom trabalho, mas pareceu antes uma comemo-
rao para a sorte que teve de poder ir embora.
O que eu penso explicou Byron enquanto adentrava, seguido por
Tornero, o corredor da rea de celas que Lamar fez amigos em Kerlz-u-
een. Outros alorfos.
provvel.
Esse amigo veio ao resgate. . . E agora j est longe demais para ns.
Mas voc, Tornero, vai ver onde a famlia de Lamar est. Quero os nomes
deles. E se eles no estiverem aqui, voc me avisar.
O que voc vai fazer?
Faa o que eu disse, Tornero.
Eu farei, mas preciso saber onde voc vai estar, mestre.
Byron assentiu, com a mente distante.
Procure por mim no Parlamento.
355
Captulo 49
Perdendo tudo
O dia de sol tornava mais suportvel, at mesmo alegre, toda a rotina
de trabalho com a qual a famlia se acostumara. O sol, que a tudo aquecia
e tudo revelava, transformava tambm em esperanosa e promissora uma
tarefa que at ento s trouxera afio curta vida de Ramon: guardar os
pertences importantes, preparando-os para uma longa viagem. Desta vez,
uma muito mais difcil, percorrida por uma vasta regio desrtica e sem a
presena do pai.
Myrthes e o flho entraram em casa. Metade do lugar estava virado de
cabea para baixo: a cozinha estava organizada como quase nunca antes
esteve, e os incisivos raios amarelados deixavam a vista com ares de uma
sensvel organizao. Os quartos, no entanto, quase nunca viram tamanha
baguna; as roupas estavam jogadas de qualquer forma em cima dos col-
ches, emboladas em uma grande tempestade mental de vesturio. Parte do
bolo j havia sido retirada; roupas que no seriam mais teis foram vendi-
das convenientes pechinchas. Destino semelhante teve o minrio azul da
cozinha que os acompanhara desde a poca em que moraram em casas mai-
ores e melhores. Tempos de harmonia com os pais de Lamar mas tambm
de mentiras e segredos, e disso Myrthes no podia dizer que tinha saudades.
Vender tudo aquilo era necessrio: precisavam guardar tudo o que pu-
dessem, j que precisavam de comida, gua e segurana em uma cidade
cheia de desconhecidos.
Vamos, flho. Est na hora de colocar as roupas nos sacos de viagem.
Desanimado, ele foi andando de um jeito estranho, com passadas duras
e aborrecidas, em direo ao quarto. Myrthes sentiu d do pequeno, to
desolado e fora de contexto.
Ramon? Chamou ela.
O flho virou-se, olhando para os joelhos da me.
Vem c. . .
Ela se agachou para receb-lo. Ela no pde evitar que as frases que
construsse fossem interrompidas, j na origem, pela observao que fazia
dos braos e das pernas do flho. Os trechos descobertos as canelas, os
antebraos, os cotovelos pontudos mostravam, abrindo feridas no corao
357
Voiui l
da me, o quanto eles no conseguiam se alimentar direito naqueles ltimos
tempos. Ela mesma j estava comeando a se parecer com ele.
Voc sabe pra onde ns vamos, no , flho?
Iminorina. Respondeu ele, baixinho.
Imiorina Corrigiu ela, gentil. E algum tempo depois que a gente
chegar l, vamos poder ver o papai de novo, est bem?
E a gente vai ajudar o papai?
Tambm, flho, tambm! Concordou ela, sorrindo. Vamos ajudar
o papai a sair de uma situao muito ruim se formos para l.
O papai fez algo perigoso, me? Perguntou ele, fazendo uma feio
nica que misturava medo e asco.
Hmm. . . Mais ou menos. Um dia ele vai explicar pra voc, est bem?
Voc vai sentir muito orgulho dele, flho. Ela passou a mo pelos cabelos
grossos do rebento. Ele no merecia estar na priso.
O papai ainda est na priso, mame?
Myrthes olhou para os lados, esticando-se para ver o mais longe possvel
para alm da janela, e apurou os ouvidos.
Provavelmente no, flho. Mas olha. . . Silncio, viu? Shhhhh fez
ela, com o dedo sobre os lbios Ningum pode saber! Finge que ele ainda
est preso!
Tio Kerinu tirou ele de l? Ele dava pulos animados enquanto a
me fazia sinais enrgicos para que ele fcasse quieto.
Eu acho que sim, meu amor, mas silncio! Confa na mame, voc
precisa fcar quietinho. . .
Est bem! Sussurrou ele.
O olhar dos dois se encontrou, leve, solto e espontneo, em todos os
longos momentos que antecederam um abrao forte e agitado.
Agora vamos, faz o que a mame pediu.
Ele foi correndo para o prprio quarto, e comeou a dispor ludicamente
das roupas que estavam na ponta do colcho. Myrthes levantou-se deva-
gar, lidando com a dor que surgiu nas pernas depois do tempo que passou
agachada, e olhou em volta. Aquela casa no tinha um grande nmero de
recordaes positivas. Foi o pior lugar em que moraram, e tambm o lugar
em que menos coisas boas aconteceram. Justia seja feita, pensou ela, talvez
no fora o lugar mais cheio de eventos negativos tampouco.
Me! Posso levar meu dente que caiu? Perguntou Ramon, berrando
do quarto.
Ela riu, surpreendendo-se com um bom momento recente.
Pode, flho!
Algum bateu porta. Myrthes virou-se, curiosa, e olhou para o quarto
de Ramon: ele estava l, seguro, ignorando o visitante.
358
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Abriu a porta. Viu, do lado de fora, um homem magro e com orelhas
excepcionalmente grandes. Todas as suas outras caractersticas eram ou
pareciam diminutas, exceto por seu rosto grave e suas roupas ofciais:
aquele azul misturado quele preto s poderiam signifcar que aquele era
um funcionrio da cidade de Prima-u-jir. Para completar a situao, ainda
que desnecessariamente, ele trazia nas mos uma folha de papel.
Pois no?
Boa tarde. A senhora se chama. . . Ele olhou rapidamente para o
papel. Myrthes?
P-por qu?
Perdo. . . Meu nome Rouguer, eu trabalho no prdio de registros
de Prima-u-jir. A senhora mora sozinha nesta casa?
Se isto sobre o aluguel, eu. . .
No, senhora, perdo. . . Por favor, a senhora mora sozinha?
Eu. . . Ela refetiu sobre qual seria a resposta mais apropriada.
Com o meu flho.
Nenhum homem adulto?
Impaciente, Myrthes resolveu ir logo ao cerne da questo.
Ele est preso.
O funcionrio fez um breve sim com a cabea, e olhou pra baixo. No
parecia estar lendo o papel.
Senhora, eu. . . Lamento ter que informar isto, mas houve uma tenta-
tiva de fuga na noite passada.
Por um momento Myrthes sorriu ou sentiu-se sorrindo, contente
com a notcia. O riso esfacelou-se logo depois.
D-desculpe, tentativa? D-de fuga?
Sim. O homem, . . . Rouguer tornou a ler o papel. Lamar, estou
certo?
Sim, o que houve?
Ele tentou fugir e foi capturado.
E o senhor est aqui para. . . Ela fez a pergunta, mas no esperava
realmente por respostas. Olhou brevemente para o quarto, e sentiu seu co-
rao bater mais rpido.
Ele resistiu priso, senhora, e lutou. Ele foi mortalmente ferido.
C-como?
Ele est morto, senhora. Sinto muito.
Myrthes riu, mais por necessidade do que vontade. Era uma risada ner-
vosa, como se os msculos do rosto precisassem se mexer para utilizar todo
o sangue que o corao bombeava em um ritmo desumano. Vendo que Rou-
guer falava seriamente, engoliu, descobrindo o quo seca sua boca e gar-
ganta estavam.
No, isso. . . Isso no pode ser. . . Isso um engano, isso. . .
359
Voiui l
Ele era o nico homem na priso, senhora.
Mas isso. . . Ele. . . Jamais lutaria, ele. . .
Senhora. . .
. . . Jamais resistiria priso, eu tenho certeza. . .
Senhora! Disse ele, conseguindo falar mais alto. Eu sei que
difcil. . .
Mais algum? Mais algum foi ferido?
Se Lamar foi capturado. . . Se ele foi. . .
Kerinu.
O mundo parecia desabar; a notcia ainda lhe soava mais do que irreal,
e o mundo acompanhava o ambiente como se fosse cmplice de uma men-
tira elaborada. O cu parecia uma cortina clara que, fragilizando-se com o
tempo, despencava do bordo da janela, podre, destruindo-se por completo.
Rouguer vacilou diante da pergunta.
Eu. . . Isso algo que eu no posso lhe dizer, senhora. Mas sim, ele. . . ,
Teve ajuda na tentativa de fuga.
E o que aconteceu?
Senhora, eu. . . No deveria dizer isso.
Por favor. . . Por favor.
Ela se esforou, barganhando com os olhos por mais informao.
A pessoa que o ajudava foi morta tambm.
Ela fechou os olhos quando um soluo surgiu, pondo abaixo o que quer
que a estava impedindo de chorar. Lgrimas rolavam em disparada pelo
rosto, buscando o cho tanto quanto ela.
Eu quero ver. . . Onde ele est?
Rouguer continuou quieto.
Onde ele est, R-Rouguer, no ? Onde ele est? Onde? Suplicou
ela em meio a um pranto ainda mais forte.
Senhora. . . Fomos informados de que no havia famlia, e infeliz-
mente ele. . .
No. . . Disse ela, cobrindo o rosto com a palma das mos. No,
isso no, no. . .
Ele j foi cremado, senhora, me. . . Infelizmente, eu. . .
Myrthes achou que ia enlouquecer, mas sentiu que no tinha por qu.
Olhou para o lado, para a vastido do cu, e deixou que as mos cassem.
No tinham foras para apertar uma outra, e ao invs disso acudiam inu-
tilmente a barriga, que doa. Olhou mais uma vez para trs. Viu que o flho
continuava brincando.
Eu sinto muito, senhora. Aqui est.
Ela olhou para o papel que ele carregava, e agora oferecia.
O que isso?
Um registro de bito, senhora.
360
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Ela olhou com dio para o papel que ela negava a aceitar como verda-
deiro.
E o que que eu devo fazer com isso? H? O QU?
Myrthes tomou o papel das mos de Rouguer e, com um puxo forte,
rasgou o papel. Rouguer observou, incomodado, fechando e abrindo a boca
vrias vezes.
M-Mais uma vez, eu. . . Sinto muito.
V embora.
Ela fechou a porta em tempo de ver um ltimo olhar de pena por parte
dele. Trancou a porta em um estrondo descuidado que Ramon no pde
deixar de perceber, j em alerta desde os berros.
O que a criana viu foi uma me irreconhecvel. Ao invs da fgura
decidida, que sempre tinha uma resposta tranquilizadora para tudo, viu uma
mulher esquisita, sustentada por uma coluna torta, comombros cados e um
vestido rosado que parecia um pano velho cilndrico. Viu um rosto cheio de
sombra, lavado por dois fuxos de lgrimas, e assombrado por uma fora
muito alm de sua compreenso.
Me?
Volta pro quarto, Ramon.
Mas a gente tem que. . . A gente tem que arrumar os sacos, e. . .
Vai pro quarto.
Demorou-se mais um tempo at obedecer a ordem, largando o bluso
bord de qualquer jeito e dedicando-se enfm tarefa. Ela sentou em uma
das cadeiras da cozinha. Cobriu a metade de baixo do rosto com uma das
mos, e no conseguiu impedir um outro soluo, que rompeu o silncio
crasso como um trovo atarantado. O barulho, fanho e dolorido, fez Ramon
estancar no quarto, petrifcado de medo.
Logo o que passou a sentir, por mais ininteligvel que fosse, tornou-se
palpvel como o que fosse aquilo que a me sentia. Sentimento molhado,
com gosto de sal e temor.
361
Captulo 50
Sacrifcios
Achuva caa semcuidados, desculpas ou no-me-toques emJinsel. Batia
sem misericrdia no cho, nos raros transeuntes, nos edifcios e nas char-
retes. Encharcava o que podia, invadia as aberturas do que no era slido o
bastante e ricocheteava no que era. Como resultado, o cinza das ruas virava
o marrom alaranjado da lama e a escurido tolerante das poas. Os toldos
de goma escura vergavam-se um pouco para o cho, criando cachoeiras rui-
dosas, e as luzes e cores dos minrios provocavam um mar de refexes nas
paredes banhadas por caminhos dgua; veias vertendo para o cho o que
no lhes era prprio, verdadeiros espelhos foscos aqui e acol.
Era difcil dizer qual lado o de dentro ou o de fora da charrete que cru-
zava a cidade, solitria, rumo a um hotel estava mais soturno. Leo olhava
para algumlugar entre a barriga e o pescoo de Beneditt, que estava coberto
por uma grossa camisa azul real. Fjor tinha um semblante carregado, pen-
durado em uma cabea inquieta. Beneditt olhava com frequncia para Leila
que, parecendo estar em algum tipo de choque, nunca o correspondia.
Para a charrete! Disse Beneditt, estimando a voz para que o cocheiro
escutasse.
A charrete seguiu em frente. O rudo da chuva estava muito alta para
o condutor, mas no o sufciente para todos os outros, que viraram-se para
o baterista sem saber o que estava acontecendo. Beneditt abriu a pequena
janela que dava para a parte da frente do veculo.
PARA A CHARRETE!
Ele fechou a portinhola de novo, um pouco constrangido com o pr-
prio berro e com o rosto ainda mais molhado. Leila observou os olhares dos
irmos quando os yutsis enfm descansaram e todos estabilizaram-se, pa-
rando de tremer. Por fm, Fjor virou o rosto enquanto Leo voltou a observar
o nada.
Ns temos que conversar.
No h nada pra dizer, Beni. Disse Fjor, sem olhar para o amigo.
No, h muito pra dizer, Fjor!
Fizemos um show ruim, s isso.
E quando que fzemos um show ruim, Fjor? Ruim desse jeito?
363
Voiui l
A culpa minha. Disse Leo, cortando os nimos. Eu vim pra
c prometendo que seramos grandes, que daramos certo. . . Mas talvez
nenhuma banda seja assim, eu acho. . .
Como assim? Perguntou Beneditt.
. . . Toda banda tem problemas, tem. . . Coisas ruins e shows ruins
antes de fcar boa.
Ns j ramos bons, Leo. . . Disse Fjor, tapando a fronte com a mo
que massageava as tmporas.
No, ns ramos bons pra o que a gente queria, e ns estvamos con-
fortveis demais. . . Acho que bom a gente fazer algo diferente, e. . .
E fcarmos ruins no processo? Perguntou Beneditt, sarcstico.
M-mas isso, Beni, um. . . Processo, entende? Estamos passando por
um processo, s isso!
Ns ramos bons pra o que a gente queria. Repetiu Fjor.
Qu?
Ns ramos bons pra o que a gente queria. Foi o que voc disse.
Respondeu Fjor, encarando Leo. Por que isso mudou, Leo? Por que temos
que fcar aguentando o que esse agente diz para a gente fazer?
Porque queremos viver disso, Fjor, e se a gente quer viver disso, temos
que fazer o que as pessoas gostam!
De novo falando do que a gente quer. . .
O qu? Perguntou Leo, remexendo-se como se quisesse levantar do
banco. No podia. Voc aceitou vir pra c, voc est colocando a culpa
em mim de novo?
No, a culpa minha tambm.
E vocs fcamfalando de culpa! Como se tudo tivesse sido umdesastre!
Desastre estarmos falando disso, Beni Rebateu Leo porque nos
sentimos mal, mas isso normal!
O nome da nossa banda agora Ponte Alta, Leo. Isso no normal.
Disse Fjor, fazendo as mos levantadas de Leo carem sobre as coxas, sem
gestos para dizer coisa alguma.
Eu s acho que. . . As coisas no tm sido como a gente esperava.
Disse Beneditt.
. Concordou Fjor.
o qu, Fjor?
Esquece, Leo.
Esquece?
Esquece.
Voc diz que as coisas no tm sido como voc esperava, e espera que
eu esquea?
364
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
A chuva continuava a cair, imortalizando o momento em que Leo apon-
tava para si mesmo. Naquele nterim Fjor decidia se respondia com sinceri-
dade ou com mais pedidos de desistncia de assunto.
Fala, Fjor. Pediu Beneditt.
que est tudo horrvel! Essa a verdade! Vociferou Fjor, engo-
lindo a forte pulsao no meio de um discurso desembestado. Tudo que
aconteceu at agora foi a gente mudar isso, mudar aquilo, mudar isso, mudar
aquilo e nunca se divertir tocando, nunca tocar o que ns queremos!
Beneditt e Leo estavam boquiabertos, ofendendo-se um pouco com com
cada palavra que ouviram.
No isso que eu queria, e. . . Era isso. Vocs pediram.
Leo olhou para frente, com um barulho que no vinha da chuva cha-
mando sua ateno. Fjor viu o que estava acontecendo, mas manteve o olhar
determinado. Beneditt foi o ltimo a perceber, confuso que estava com tudo
o que descobria dentro da banda.
Leila chorava, com os lbios trmulos segurando como represas cheias
de rachaduras as lgrimas salgadas.
O que foi, Leila?
Ela continuava, apertando os olhos de onde saa mais e mais choro. Des-
viando o rosto e afastando-se para trs, evitou a aproximao de Leo. Com
a palma da mo pediu que ele fcasse longe.
Eu. . . Eu. . . Comeou ela, controlando-se ao comear a falar. Eu
quero saber. . . Por que vocs vieram.
Eu vim porque achei boa a ideia de ganhar dinheiro fazendo o que eu
gosto. Respondeu Fjor, duro e direto. E o que eu gosto de rock. Do
rock que a gente fazia.
Fjor. . . Repreendeu Beneditt.
No, tudo bem. . . Intercedeu Leila. . . . No tem problema.
Eu acho que voc est exagerando, Fjor. Disse Leo.
Eu j falei que est tudo bem, Leo, eu. . .
No estou falando disso, Leila. Ele voltou-se para o irmo mais uma
vez. Voc se faz de responsvel e-e forte, e. . .
. . . Se faz? Quer dizer que acha que eu no sou responsvel?
. . . E voc acha que pode escolher tudo na sua vida, e fca reclamando
quando as coisas no do certo. . .
. . . claro, porque eu sempre fz isso, no , Leo?
. . . Claro que fez, e ainda faz, voc vive fazendo isso, Fjor!
. . . Eu sempre fui atrs do que eu quero, mas eu reclamo quando eu
no tenho o que eu quero por causa do que voc quer!
Por favor. . . Implorava Beneditt, cansado das brigas.
Mas claro! Porque tudo o que importa que voc tenha o que voc
quer, no mesmo?
365
Voiui l
Para o que eu quero e o que eu preciso eu no preciso levar os outros
junto comigo. Voc quem vive pensando que todo mundo quer a mesma
coisa que voc!
Se voc quisesse ter uma banda, ento, no precisava ser com a gente,
isso que voc quis dizer? Beneditt tentava mediar a conversa enquanto
Fjor rugia de estupefao ao ouvir, incrdulo, as concluses retorcidas do
irmo Muito prtico, isso, Fjor. At me lembra o pai!
Voc no disse. . . Falou Fjor, com os olhos ganhando um colo-
rido louco. VOC se parece com o pai, abandonando TUDO pelos seus
sonhos!
Eu no abandonei ningum, Fjor!
Se o Seimor transformar mais a Ponte Alta Conjecturou Fjor, com
mais sarcstica intonao vamos virar uma banda de rock de cidade.
E qual o problema?
Voc fcou louco. . . Quer envergonhar nossa v. Nossa cidade. Quer
abandonar tudo em que acreditamos. . .
Voc acha que eu penso em fcar agradando a v, Fjor?! Voc acha que
eu ligo para o que acreditamos? E voc me diz que eu falo dos outros por
mim!
Tanto faz, Leo. Voc s quer o dinheiro.
Seu HIPCRITA! Berrou Leo. Leila levou as mos aos ouvidos,
ainda instvel. Voc preferia estar aqui ou l? L, em uma fazenda qual-
quer, ganhando s o que dava pro aluguel e pra comida?
Leo. . . Por favor. . .
Fjor engoliu emseco. Amo emfrente ao rosto fechava-se emumpunho
nervoso.
Eu prefro ir embora.
Fjor, no!
Foi tarde. Beneditt no conseguiu agarrar nenhuma parte da vestimenta
esverdeada do msico, que saiu da charrete em meio chuva intensa, e
fechou a porta com um estrondo que fez Leo fechar os olhos.
. . . Por que voc fez isso, Leo? Perguntou Leila, baixinho.
Leila, eu. . . Perdi a cabea.
Voc no devia.
No me julga, Leila. Por favor.
Leo lanou um olhar chateado para Leila, seguido de um esgar de desa-
pontamento para Beneditt. Os dois msicos que estavam no mesmo banco
da charrete se olharam, sem entender.
Leo?
O qu?
O que foi aquilo?
O que foi aquilo o qu?
366
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Voc olhou pra mim de um jeito estranho.
No olhei.
Leo. Disse Leila, meneando a cabea, clamando por sinceridade.
Ele respondeu comumolhar hostil que nenhumdeles tinha jamais visto.
O que foi, agora? Tudo minha culpa?
Se eu bem me lembro voc comeou essa conversa dizendo que era
tudo culpa sua. Disse Beneditt, sem entender o motivo daquela fria re-
pentina.
E se eu bem me lembro, voc disse que ningum tinha culpa de nada.
No sobre culpa, Leo! Disse Leila, angustiada. O que foi aquele
olhar?
O que que voc tem, Leila? Soltou ele, parecendo instantanea-
mente aliviado, mesmo que nem um pouco menos nervoso. J faz uns
dez dias que voc est assim. Desde o Mina de Prata. Voc me evita, voc. . .
Voc parece sempre triste, ou. . . Ou sentindo. . . Dores. O que que voc
tem?
No nada, Leo. . .
Voc pensa como o Fjor? Quer ir embora, tambm?
Leo, para com isso!
Beneditt, o conciliador! Riu-se Leo, com olhos lacrimejados. Tal-
vez eu devesse perguntar pra voc o que ela tem.
Beneditt parou, honestamente esperando por uma explicao. Leo se
esforava para transformar a contrao do rosto, que insistia em provocar
o choro, em um sorriso amarelo.
O que isso quer dizer, Leo? Eu no. . .
Pra quem mais eu perguntaria? Se no para o confdente e compa-
nheiro de Leila?
A guitarrista fechou os olhos, balanando a cabea.
Leo, no. . . No fala isso. Disse ela, dividida entre a incredulidade
e a mgoa.
Vocs fcam o tempo todo juntos, devem saber tudo um do outro!
PARA, LEO!
Leo ofegava, esfregando num rompante uma nica lgrima que ousou
cair.
Que foi, Leila? Est mandando em mim agora tambm? Ah, mas
assim mesmo, no ? Esqueci que voc a lder, agora!
No seja ridculo, Leo! Bradou Beneditt.
Leo, eu no. . . Comeava Leila, balbuciando explicaes.
Como eu pude no enxergar, Leila? claro que voc a lder! Voc
sempre a primeira a pedir calma quando o Seimor muda tudo que a gente
faz!
367
Voiui l
H CINCOminutos atrs voc disse que no se IMPORTAVA! Brigou
Leila, com a voz rouca, passando a mo pelo cabelo enquanto se extenuava
falando.
Eu RELEVO, Leila, eu IGNORO, mas CLARO que eu no gosto!
Beneditt no havia percebido o quanto estava nervoso. Estava meio sen-
tado, meio levantado dentro da charrete, assim como os outros dois passa-
geiros. A chuva parecia ter diminudo.
E eu te. . .
No. Interrompeu Leila. Voc um ingrato, Leo.
Leo fcou paralisado, com o crebro comeando a doer. Percebeu o quo
zonzo estava. Olhou para frente para ver uma Leila que praticamente des-
conhecia: seu cabelo despenteado, seus olhos rudemente machucados, uma
expresso de profundo e inextinguvel descontentamento. Beneditt no es-
tava muito longe de representar as mesmas coisas. Leo estava sozinho na-
quela charrete.
Leila deu um soco surdo na parede s suas costas, que fcavam atrs do
condutor.
Vamos embora!
E entraram em movimento de novo.
O salo, grandioso em todas as dimenses, estava propositalmente es-
curo. Oteto no tinha cor, no uma que importasse; assimcomo as mulheres
que falavamcomele no tinhamnome; nemelas, nemas quase-salas criadas
por cortinas semitransparentes, nemqualquer outra coisa. Escadas roxas le-
vavam a um segundo andar que apenas circundava, em sacadas internas, a
grande pista central da boate.
Diretamente de Den-u-pra para Jinsel. . . Anunciava um homem
negro com uma aveludada e sorridente voz. Clarissa. . . Camp!
Todos foram ao delrio, aplaudindo e urrando em direo ao palco e
como era massiva a participao daqueles todos, ocasionalmente ilumina-
dos mas certamente afns com a escurido; sombras satisfeitas, pessoas cuja
carne e osso enchiam o lugar de vida mas tambm de ausncia.
Coberto com frias luzes azuis que desciam do teto oculto, um vulto fe-
minino alto e esguio ascendeu. Luzes amarelas surgiram, e ento outras la-
ranjas, e enfm vermelhas. A tenso construa-se enquanto a sombra, cada
vez melhor iluminada, desfazia a exagerada pose e aparecia por completo:
uma mulher loira e brilhante, vestindo uma roupa quadriculada vermelha e
prpura, alm de um torto chapu prateado.
Com um sorriso oportuno e sofrivelmente charmoso, Clarissa comeou
a andar no palco ao ritmo de uma batida que parecia vir de uma bateria. Fjor
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
logo percebeu que a batida estava sincronizada com uma srie de rpidos
fashes vermelhos que vinham do fundo do palco. Ao esticar o pescoo,
viu que havia uma pequena esfera rubra girando e brilhando a intervalos
regulares no palco esquerda de Clarissa.
Ento. . . Disse a garota de escorridos cabelos escuros que Fjor
envolvia pela cintura. Voc parou de falar na parte que voc. . . Dizia que
era um msico. . . verdade?
Viraram direita e enfmentraramemuma rua completamente ocupada
pelo bosque frontal do hotel, adornado com uma srie de pinheiros e alguns
exemplares admirveis de sequoias. Comprido, ainda que pouco espesso, o
prdio tinha cinco andares cheios de quartos com mveis confortveis, uma
jarra de gua sempre disponvel em cima de uma bem acabada estante e um
conjunto amarelo de roupas de cama com cheiro de erva-doce.
A charrete parou logo frente da entrada sem portas. A frente em si do
hotel contava apenas com essa porta e pequenas janelas com grades, teis
apenas para a ventilao. Aparede, de umrosa claro e verde-gua aplicado
toda altura da construo, fora rebocada de um jeito diferente, com rasuras
verticais speras. Em momentos parecia um trabalho inacabado. Em outros
casos, uma verdadeira obra de arte.
Leila, Beneditt e Leo saram do transporte e viram que Seimor esperava
por eles, com as mos para trs. Leila parou por um tempo; olhou para o
agente, mas retomou a marcha em frente sem dizer nada. Leo escolheu o
mesmo caminho. Beneditt, indeciso, seguiu os dois de cabea baixa.
Parou no segundo degrau da escada em direo ao interior do hotel.
Olhou para trs, no incio movido por certa curiosidade, mas logo tomado
por uma espcie de pena. Seimor continuava parado, mas agora olhava para
o cho com o rosto voltado para onde Leila e Leo tinham ido. Beneditt
no o tinha em alta conta, mas passou a considerar uma maldade ignor-lo
daquela forma.
Seimor, eu. . . Peo desculpas.
No deveriam chegar tarde. Disse ele, num tom seco. Onde est
Fjor?
Ficou pelo caminho.
Seimor estreitou os olhos e balanou a cabea num movimento rpido e
curto, como se quisesse tirar algo estranho da fronte do rosto.
Como fcou pelo caminho?
Ns brigamos. O Leo falou umas coisas pra ele, ele falou umas coisas
pro Leo. . . No fnal abriu as portas e foi embora.
369
Voiui l
Ele saiu da banda? Perguntou Seimor, aproximando-se e desconec-
tando as mos.
No. . . No. Beneditt sequer havia considerado aquela possibili-
dade. Ele s est nervoso. Ele vai voltar.
claro que vai. Ele tem um contrato a cumprir. Vocs pararam perto
de onde?
N-no sei, eu no. . . Eu no conheo a cidade. Era uma rua cheia de
casas, eu. . . No vi nada especial.
Humpf. . . Certo.
Seimor deu meia-volta. Beneditt fcou observando por um tempo en-
quanto ele comeava a andar em direo ao condutor, que procurava por
alguma coisa em uma das patas traseiras de um yutsi. Voltou-se tambm
para ir embora, mas antes que completasse o giro Seimor virou-se e cha-
mou por ele.
Ah, e Beneditt. . . Obrigado.
Beneditt respondeu com um aceno de mo, e enfm entrou no hotel.
. . . Eu fao msica! Respondeu Fjor, quase berrando para poder
ser ouvido.
Havia trs esferas vermelhas atrs de Clarissa Camp, que cantava e dan-
ava no palco. A da esquerda continuava brilhando no ritmo das fortes e
estveis batidas, enquanto que a do meio estava mais frentica, criando um
somdiferente de tudo o que Fjor j ouvira. Era incisivo, reverberante e abra-
sivo, lembrando uma forma slida e ramifcada da gua do mar. A terceira
era mais calma, criando com um som similar um ritmo de fundo.
Que msica? Perguntou, com um sorriso solcito, ainda que trans-
versal, a mulher loira ao lado do casal.
Rock! Bradou ele, suspirando ao fnal da frase.
Seus olhos focaram com uma dose de estranheza as duas mulheres que
o cercavam. Nunca nada tinha acontecido to rpido com ele. Bonitas. Com
a pele aparentemente saudvel, lisa. Fjor gostava disso. Disso e dos vestidi-
nhos.
Eu gostava de rock, sabe? Mas aqui mais divertido. Diz a loira,
com um riso tmido.
Essa a no sabe de nada! Disse a morena, rindo alto. Mesmo no
vendo graa, Fjor sentiu-se compelido a rir. Um segundo depois pensou que
estava sendo artifcial e ridculo. Para elas, de qualquer forma, no parecia
fazer diferena.
Devo dizer. . . difcil. . . Ressaltou Fjor, apertando os olhos e
afnando a voz. . . . Fazer rock nessa cidade!
370
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Mas por qu?
Fjor abriu a boca, puxando umpouco de ar, e parou para olhar combreve
desconfana para a garota. Ela havia perguntado aquilo de um jeito quase
irnico de to exagerado, mas ele resolveu ignorar aquilo. Ela sorria para
ele, boba, esperando por uma resposta sincera com, assumia ele, semelhante
sinceridade.
Porque esse rock que eles querem enfar garganta abaixo de todo
mundo umrock falso, chato. . . Estranho. . . Isso nunca foi o que eu sonhei.
Meu querido. . . Tirando uma das mos das costas do msico, tocou
seu rosto. Na tentativa de fazer um sutil carinho, acabou com uma grosseira
presso do polegar. Essa conversa de sonho muito estranha pra mim. . .
Eu vou te dizer uma coisa. . . Sonhos so coisas que no existem.
Isso verdade! Concordou a loira, balanando a cabea afrmativa-
mente.
E se no existem, por que a gente tem que se preocupar com eles, no
mesmo, meu guitarrista?
Eu sou baixista. Disse Fjor, srio.
Ah, tanto faz. . . Clarissa acabou uma msica, e o fm da melo-
dia danante revelou uma pequena dor de cabea que ele no percebera
que estava ali. Relevou, deixando-a facilmente em segundo plano, quando a
mulher a quem abraava segurou seu queixo. Ouve s, outra dia a gente
estava se perguntando. . . Qual a melhor coisa do mundo?
E eu disse sonhos. . . Sussurrou a loira, com a mo frente da boca
para simular ludicamente um segredo.
Mas ela estava errada, no mesmo, Fjor? Eu lembrei ela que a melhor
coisa do mundo so as mulheres!
E isso verdade, amiga. . .
Voc no concorda, Fjor?
. . . Respondeu ele, comeando a rir novamente. . . . Acho que
sim. . .
Ento eu s acho justo que quem goste da gente gaste um pouco com
a gente, j que a gente a melhor coisa do mundo. Voc tem dinheiro a,
Fjor? A gente podia ir para outro lugar. . .
Eu? No. . . Sa correndo de uma briga com o meu irmo. As duas
imediatamente fzeram um rosto de tpica pena. No tenho nada aqui
comigo.
Como voc entrou aqui?
Hmm. . . Fjor se aproximou do ouvido esquerdo da garota, cha-
mando a outra para mais perto tambm. Acho que eu penetrei.
A loira cobriu a boca com as mos enquanto a morena jogou a cabea
para trs, fascinada em histeria hilria.
Ai, safado!
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Fjor olhou para o palco, ao longe, com um riso mais que satisfeito. Cla-
rissa, com um rosto confante e poderoso, convidava todos a imit-la ao
bater palmas no ritmo incipiente da msica. A esfera de fogo da direita co-
meava a emitir um som chamativo e envolvente, e Fjor teve vontade de
danar por um breve momento que logo deixou existir.
A garota o puxou para um beijo ardente. Ele gostou, vendo com os
olhos fechados a fraca luminosidade da festa alucinante ao redor. Quando
os dois se separaram, sorrindo e respirando de um jeito que dava ainda mais
material para risadas, a loira voltou com um copo de gua na mo.
Quem quer gua?
Fjor tomou o copo da mo dela, tomando um gole. De pronto a poro
frontal inteira da cabea doeu emuma pontada que o fez pr a mo no rosto.
O que isso, hein? Esse jeito que eu me sinto. . .
Est tonto?
Um pouco. . .
Mas bom, no ? Perguntou baixinho a morena, j desfeito o
abrao.
. . . Acho que sim. No geral. . .
Voc no conhece mesmo? Disse a loira, surpresa. magia
espontnea!
Aqui a gente chama de esponta.
Esponta? Perguntou Fjor. magia, ?
Aham! Mas sem magos! Disse a loira, maravilhada.
Deixa a gente mais relaxada, mais engraada. . . Foi citando a mo-
rena Mais bonita, at, no amiga?
Bota o mundo no lugar de novo, isso sim! Falou a loira, voltando-se
para o palco por um instante. Uhul!
Fjor nem percebeu que sorria para a mulher sua frente, cujos olhos
negros j no brilhavam.
. . . Acho que isso vai ser bom pra mim. Botar o mundo no lugar.
Ento a gente vai fcar juntos? Perguntou a morena, fazendo a loira
virar o rosto, agora mais sria, para ouvir a conversa.
Sim.
Por causa do esponta ou por causa de mim?
Os dois. . . Fjor olhou para a mulher ao lado, e no encontro de
olhares umacordo ia se desenhando, para a transparente felicidade de todos.
Pelos trs. . .
Ento foi l. . . Disse Seimor, coando o nariz. Deve ter entrado
no show da Camp. . . No duvido que volte com algum grudado no pes-
coo. . .
372
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Ocondutor, umhomemde sobrancelhas grossas acompanhadas por uma
verruga no lado direito do rosto, o informara do lugar onde Beneditt pediu
que ele parasse. Seimor, tendo a resposta que queria, comeava a se afastar
quando viu Leila saindo do hotel.
Ei disse, voltando-se mais uma vez para o cocheiro v at l e
espere ele sair. No quero que ele arranje confuso l.
Ohomemassentiu comummexer singelo de cabea e os olhos fechados.
Voltou a andar rumo ltima tarefa do dia.
O qu? Perguntou Leila, ouvindo parte do que Seimor dissera.
O que quer?
Por que voc me fez lder, Seimor? Perguntou ela, serenamente
direta. Voc no me disse.
O que voc acha?
Acho que est tentando me compensar. Seimor desviou o rosto,
desconsiderando a hiptese. Se for isso, Seimor, eu. . .
No seja tola, Leila. Interrompeu ele. Acha que eu sinto remorso?
Acha que eu me arrependo? Ele gesticulava, apontando com as mos
abertas para cima em direo a si mesmo. Voc muito dramtica, Leila.
Ento por qu? Por que voc me colocou como lder?
Me responda voc, Leila, at quando vai fngir que s um apoio do
Leo quando na verdade a nica que tem potencial pra muito mais nessa
banda.
Leila, que percebera ter adotado uma postura ofensiva ao pressionar o
agente, agora jogava o corpo para trs.
C-como ?
Boa noite, Leila. Disse Seimor, passando por ela emdireo ao hotel.
373
Captulo 51
Desastre
No havia um olhar que no vagasse pela sala sem rumo, sem porto
seguro, evitando ao mximo o contato ao preparar-se em Neborum para o
que viesse a acontecer uma batalha de propores inimaginveis ou um
saudvel acordo entre damas e cavalheiros, para o bem de todos.
Ramos, possivelmente por ser um dos magos mais velhos e mais antigos
no Conselho, foi o votado para ir visitar o quarto de Dresden. H horas que
o castelo dele no estava mais visvel, e tanto os sentinelas do centro de
Heelum quanto os prprios funcionrios do castelo do Conselho disseram
no t-lo visto sair. Preocupados, os magos se reuniramumdia antes do que
foi combinado para a segunda reunio de Inasi-u-een e, votando por uma
inspeo forada do quarto do mago-rei, um deveria ser escolhido para ser
o invasor.
A quietude sepulcral s perdia em tenso para o intenso barulho de
vento do lado de fora dos castelos, trancados nos portes do p ponta com
cadeados e trincos os mais sofsticados. Olhares cruzaram-se ainda mais
assiduamente quando perceberam que o castelo de Ramos se aproximava,
remexendo a grama apodrecida. Ramos entrou na sala de reunio com um
semblante de paciente surpresa.
. . . Ele est morto.
Silenciosamente exaltados, os magos aprumaram-se em suas cadeiras
enquanto restabeleciam os pensamentos.
O que fazer, agora? Perguntou Saana.
Primeiro temos que saber quem foi. Disse o loiro e despojado es-
plico de Den-u-pra, Brunno. Isso foi obviamente obra de um mago.
Mas como aconteceu? Perguntou Janar.
Bem. . . Disse Ramos, lembrando-se do que vira no quarto. Eu
no sei, ele. . . Estava deitado na cama. No havia sangue. Ele no parecia
ferido de modo algum.
Ele j no era to jovem. . . Podem ter sido causas naturais Pensou
alto Saana.
A quem estamos enganando ou querendo enganar aqui, h? Disse
Souta, ao lado de Igor. Vocs sabem como ele foi morto. Ouviram a his-
375
Voiui l
tria tambm, no ouviram?
Do que que voc est falando? Perguntou Sylvie, de frente para
ele.
O roubo. Maxim, o vendedor de minrios da Cidade Arcaica, que foi
morto tambm. Alguns balanaram a cabea, confrmando conhecer o
caso perante o olhar inquisidor do esplico e seu escuro bigode de cerdas
pontiagudas. Pelo que encontraram quando o viram na loja dele, algum
deve ter levado alguns minrios de sete lados de l. . .
Achava que ele no os vendia mais. . . Comentou Anke, passando
as costas da mo pelo queixo.
Ento procurou por eles, Anke? Cutucou Duglas.
Voc sabe. . . Temos inimigos. Respondeu ela, levantando uma
sobrancelha para o preculgo de Den-u-pra.
Ningum mais falou. Ao longe, nenhum deles podia ouvir o som da
carruagem, que se aproximava rapidamente. O condutor fez uma parada
repentina em frente ao castelo, e Elton saiu de dentro do reboque, andando
a passos rpidos em direo porta do Conselho.
Passou por entre dezenas de castelos no idlico cenrio de Neborumcom
uma velocidade tamanha que nenhum dos magos, intocados dentro dos res-
pectivos sagues de entrada, puderam ver quem era. No entanto, sentiram
quando um amontoado de terra elevou-se do terreno em frente a um dos
castelos e forou a porta para dentro com gigntica fora, derrubando-a de-
fnitivamente.
Elton passou pelo pequeno morro de terra, parando em cima de seu
cume no limite do castelo que estava invadindo, procurando pela alma ad-
versria em um saguo escuro, iluminado por minrios de luz dourados em
colunas cilndricas. Estas abriam um corredor largo at uma outra porta,
tambm dotada de trincos e cadeados.
O monte de terra no qual pisava revoltou-se e, num movimento surpre-
endentemente rpido, abriu-se e o soterrou, recebendo a adio de mais
terra que vinha em lufadas sub-reptcias pela porta, fazendo-o rolar en-
quanto era englobado por todos os lados, impedindo-o de respirar. Quando
ele abriu os olhos novamente, sentindo como se apenas um segundo tivesse
se passado, irritou-se com toda a terra que permanecera nas plpebras e
clios. Zonzo, viu que todo o solo que manipulou estava dividido em dois
pequenos morros dos dois lados do saguo, no espao obscuro para alm
das colunas.
No teve tempo de considerar que o mago que ele invadia no deveria
ser capaz de fazer aquilo. Tudo o que sentiu antes de ter seu corpo unido ao
cho em uma simbiose gelatinosa foi a fria substncia preta que emanava
da mo de Desmodes.
O que foi isso? Perguntou Duglas.
376
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Entrou no seu castelo, Desmodes. . . Disse Anke, com olhos fxos
no mago de Jinsel.
Saiu de meu castelo. Corrigiu Desmodes, devolvendo os olhares
dos companheiros. Fui me certifcar de que no era um invasor.
Isto pode ter sido obra de um flinorfo, no podemos descartar isso.
Disse Janar, apoiando Desmodes.
Cerca de vinte magos como ns nesse prdio e ningum viu um fli-
norfo?
No signifca muito, j que eles podem tornar seus castelos invis-
veis. . .
A porta se abriu e Elton entrou, com um rosto suado e duro como pedra
em que desgosto e repulsa foram esculpidos.
Chegou em m hora.
O que houve? Perguntou ele.
Dresden faleceu. Informou Ramos, emp ao lado do recm-chegado.
No. . . Disse ele, rapidamente, olhando para o cho. Ora. . . Uma
lstima, sem dvida.
Depois do comentrio minimalista e aparvalhado, foi sentar-se entre
Sylvie e Peri, do lado da mesa voltado para o fundo do castelo.
Se ele tiver sido assassinado, apenas um de ns pode ter feito isso.
Reiterou Brunno.
Algum pode ter adicionar o minrio a um cantil fechado. Ele tinha
um? Perguntou Souta.
Isso ainda no explicaria como esse algum passou despercebido por
ns todos. Rebateu Duglas.
Nossos funcionrios esto sob rgido controle, mas quem sabe?
Prosseguiu Brunno.
Eles nunca teriamacesso a umminrio heptagonal. . . Complemen-
tou Anke, distante. Seria difcil. . .
Desmodes pode ter tido interesse. Disse Cssio.
Os pescoos voltaram-se novamente para a ponta da mesa oposta vaga
vazia do mago-rei.
Por que eu teria? Questionou Desmodes.
Voc tinha ideias de transformao bem radicais. Ideias que a gente
sabe que Dresden nunca ia aceitar.
Esse um conselho deliberativo, Cssio. Respondeu prontamente
Desmodes. Dresden escolhe, mas ele temque nos ouvir. Eu iria apresentar
a ideia mesa. Seria estpido assassin-lo. Atrasaria meus planos.
Que planos so esses? Perguntou Brunno, debruando-se sobre a
mesa.
No hora de falar de propostas. Intrometeu-se Elton. Temos
que pensar na cremao e em eleies.
377
Voiui l
A sugesto pegou muitos de surpresa. A pergunta que surgia para mui-
tos era qual seria, em tempos assncronos, a real necessidade de pressa para
as eleies.
Dresden estava preocupado com o papel do Conselho. Explicou
Elton, olhando cada um dos magos nos olhos. Hoje mais do que nunca
precisamos estar unidos e organizados contra a ameaa que nos cerca todos
os dias. Uma eleio rpida e a reunio de Inasi-u-een o que Dresden iria
querer se soubesse que seu tempo estava chegando ao fm. Depois podemos
reiniciar as investigaes quanto morte dele. Amanh mesmo podemos
entrevistar os empregados. E no se esqueam dos soldados l embaixo.
Os magos deliberaramemimplcita harmonia, murmurando concordn-
cias sem que algum se arriscasse a dizer em voz alta o que fazer. Desmodes
balanava a cabea, comungando com a opinio geral. Olhou para Elton,
que desviou-se para voltar a falar.
Sugiro que votemos amanh mesmo.
378
Captulo 52
Informao intil
Narion permaneceu por incontveis horas na mesma sala. A dor no
abdmen havia acabado, mas isso no o deixava menos preocupado. Ela era,
na verdade, o menor dos problemas, j que a ltima vez que ouvira qualquer
coisa do lado de fora foi quando Elton foi embora. Ningum havia vindo
lhe trazer comida, gua; uma ameaa ou uma oportunidade. No conseguia
arrombar a porta, por mais que tentasse. J dormira uma ou duas vezes, sem
saber por quanto tempo, e passava seu tempo consumindo-se em memrias
pontudas, irrealizveis planos grosseiros e refexes circulares.
Captou uma presena do lado de fora do cubculo; quase pensou que
aquele era um barulho acidental de quando se mexia. Ps-se de p, alerta,
quando a porta foi destrancada e trs policiais entraram na sala com espa-
das empunho. Vacilantes, vestiamo traje azul escuro aveludado que Narion
reconheceu, piscando na morosa inteno de fechar os olhos. A nica mu-
lher entre eles tremia tanto quanto os outros; com um rosto fno e cabelo
loiro preso para trs, chegava a quase se agachar em uma posio de luta
desconfortvel. Ohomemao seu lado na triangular formao do grupo tam-
bm segurava a espada com as duas mos e, compartilhando do entusiasmo
em relao quela tarefa, trazia nos olhos raiva e uma poro considervel
de receio. O mais gordo homem frente, no entanto, trazia menos medo
nas enormes pupilas negras, exibindo uma fascinao sanguinria pura e
fltrada.
Gostou do cativeiro?
Eu. . . Narion observou-os e, paciente, resolveu tentar negociar
sua sada. Pensou que suas chances, contudo, eram pequenas. No. Na
verdade, no.
? mesmo? Tanto faz. Viemos aqui te dar o teu prprio veneno,
al-u-bu-u-na maldito!
Com a voz trincando os dentes com esforo, os trs avanaram ruidosa-
mente contra Narion, o policial da ponta batendo com a bacia na quina da
mesa ainda que isso no os tornasse menos letais.
Narion no teve tempo de reagir; via os rostos suados e absolutamente
exaltados comandaremuma vingana premeditada e intencionalmente cruel,
379
Voiui l
com o fo perfeito da lmina descendo em direo aos prprios ombros com
letal preciso.
Antes que se desse conta, puxou com o brao direito o arco e em um rs-
pido movimento lateral interceptou as trs espadas com brutalidade, afas-
tando os policiais por um momento.
Foi s o que foi preciso para que ele o arranjasse na mo esquerda e
puxasse trs fechas com a direita, alinhando-as de forma ameaadora.
NO! No atire! Pediu o policial frente, com as emoes em
metamorfose.
Eu no quero atirar. Disse Narion, ainda tensionando o arco com
fora. Mas no duvide que eu vou se algum de vocs tentar ir embora.
Com as mos para o alto, os trs olhavam para o algoz que h segundos
tinham por alvo fcil.
Quem voc? Como. . . Como consegue. . .
No importa. Mas eu no quero matar mais ningum.
No quero matar nenhum de vocs, pelo menos.
Vo at a parede.
Ele vai matar a gente. . . Balbuciou o outro policial esquerda.
No, no vou. Eu s-s quero ir embora.
Permaneceramimveis, semconseguir acreditar. Narion estava cansado
e faminto. Estava pronto para atirar, e sabia que no havia como voltar atrs
no dependia mais dele. Ainda que belicoso, parecia um mendigo beira
de um desmaio.
P-por favor. . . Narion pediu, num quase sussurro.
Andava vagarosamente agora que estava mais seguro; correra do prdio
em que fcara trancado por aparentemente uma tarde e uma noite duvi-
dava que mais de um dia houvesse se passado. Arranjando os pensamentos,
recostou-se em uma murada amarela e tirou do fundo da aljava um papel
azul dobrado e amassado que, mesmo cheio de rugas e detritos inexplicveis,
servia bem. Era um mapa abrangente e detalhado, mas no qual Narion no
conseguia confar; fora um presente de Lato-u-nau. Ainda assim, era tudo
o que ele tinha, e j que o havia levado com segurana a Enr-u-jir poderia
muito bem lev-lo ao Conselho dos Magos com a mesma exatido.
Abriu a folha, que manteve os dois braos bem esticados quando com-
pletamente usada. Passou os olhos pela regio Noroeste, procurando pelo
conselho entre Novo-u-joss e Jinsel, mas nada encontrou. Na regio Sudo-
este havia uma mirade de cidades mas nenhum Conselho.
O mesmo processo desalentador se repetiu em todas as regies. O Con-
selho simplesmente no estava no mapa, e Narion pensou que, mesmo tendo
380
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
morado em uma cidade cheia de mapas e de conhecimento, jamais ouvira
falar de nenhum Conselho como esse. Com raiva, Narion comeou a cami-
nhar sem caminho pela ruela praticamente deserta em que entrara. O mapa
fcou para baixo por um tempo, ao sabor do vento e do cho, no qual roava
em desleixo at que Narion resolveu dobr-lo e coloc-lo de volta junto s
fechas.
Conferiu o entorno. Via um cenrio velho e alaranjado, decadente an-
tes mesmo de ter atingido um pice. Poderia, tendo em vista as escolhas
mais bvias, voltar avenida de onde viera, ou seguir pelo caminho quase
labirntico de pequenas vias que formavam aquela parte pouco notvel da
cidade.
Logo na primeira curva viu uma banca simples e quase unidimensional
de madeira. Comandada por um homem de pele vermelha e cabelos escuros
quebradios, vendia uma variedade pequena de frutas que, j pecando pela
quantidade, tampouco transbordavam qualidade.
Aproximou-se da venda, pensando que pelo menos poderia localizar-se
um pouco mais. Viu que havia mais algum ali: um senhor de idade se-
melhante do dono da frutaria, vestindo uma camisa azul-clara com fnas
listras verticais vermelhas. A cala marrom fazia par com um gorro grosso
de tom exatamente igual. Estava sentado em um banquinho, parecendo en-
tretido com as prprias ideias.
Que dia hoje? Perguntou Narion.
Ol, amigo! Disse o homem, falando alto. Como posso ser til?
. . . Que dia hoje? Repetiu Narion.
Hoje? . . . Trinta e nove!
O homem tinha um sorriso bem disposto constante e afnado. Expan-
sivo, dava a impresso de que a nica coisa o impedindo de abraar o fregus
em potencial era o prprio estabelecimento comercial.
Obrigado, senhor.
No quer uma ma, homem? Disse ele, fazendo o al-u-bu-u-na
parar e virar-se novamente. Vai sair daqui de mos vazias? Que isso!
Olha, eu tenho abacaxi, manga, la. . .
. . . N-no, obrigado. No tenho dinheiro.
Ah, certo. . . Ovendedor lanou umolhar condescendente a Narion,
que acabou tendo uma ideia.
. . . Voc sabe onde posso arranjar dinheiro?
Voc quer dizer trabalho?
Sim.
Ele assumiu uma expresso de quem no poderia estar mais longe de
saber daquilo, balanando a cabea para os lados.
No sei. . . Mas sabe que. . .
Austino. . .
381
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O homem de gorro marrom chamava o vendedor com o dedo indicador
levantado, e s ento Narion percebeu seus olhos estreitos e seus movimen-
tos perniciosamente suaves.
Austino olhou para ele, de volta para Narion e, decidindo-se, pediu por
um momento. Juntou-se ao homem e ouviu algo que Narion no conseguia
discernir; estavamlonge demais para isso. Austino voltou-se para o fugitivo
que procurava emprego e, com um sorriso de constrangido alvio, ps as
mos na cintura.
Bem. . . Quem diria? Acho que eu tenho alguma coisa pra voc aqui,
homem.
382
Captulo 53
Ataque-me
Eu j disse. Foi o Alex.
Galvino, Tadeu e Eva sentavam-se nas cadeiras prateadas, diminuindo
a luz dos minrios vermelhos nelas cravejados. Tomavam desjejum em um
quase-silncio que se tornara regra durante os ltimos trs dias. Tadeu su-
portou tudo pacientemente no tinha outra escolha; o que quer que dis-
sesse era encarado com desconfana, e qualquer coisa a mais o denunciaria
sem esperanas de recuperao.
Galvino abriu o po de trigo e arrancou uma poro generosa do mi-
olo amarelado com a mo, colocando no lugar um omelete laranja e verde,
espalhando-o com uma colher. Tadeu balanou a cabea para os lados;
aquele era o dia em que deveria encontrar Amanda, mas ainda no podia
sair de casa.
Voc no. . . Est nem ouvindo. . . Reclamou Tadeu em baixo tom.
Voc viu o Alex? Perguntou Galvino, ainda concentrado na refeio.
Sim. Eu fui o nico que vi porque vocs estavam preocupados em
lutar. . .
E ele faria tudo isso apenas para te irritar. Correria tantos riscos, em
um dia chuvoso, apenas para pregar uma pea.
Ele j comeou tudo mentindo pra voc antes da chuva. Voc no
conhece ele, eu sei que ele faria isso.
Eu conheo o pai dele. A famlia dele.
Voc meu pai. Comentou Tadeu, sem ter encostado um dedo em
qualquer um dos alimentos mesa. Eva comia pouco tambm, ouvindo a
discusso com a j clssica apatia. Se no confa em mim no deve ser
confvel tambm. . .
Galvino no repreendeu o flho. Tadeu ainda pensara em perguntar por
que o pai jantava com Barnabs antigamente de maneira to frequente, mas
concluiu que se o plano era desbancar a ideia de que tinha algumsentimento
por Amanda, uma pergunta desse tipo no ajudaria.
Havia outras perguntas que ele preferia perguntar. Que provavelmente
sairiam boca afora quer ele quisesse ou no.
Para onde quer ir?
383
Voiui l
Ningum me disse como voc estava dentro do meu castelo, me.
Para onde quer ir, Tadeu? Reforou o pai, como se nada tivesse
ouvido.
O nico jeito de entrar pela porta, foi isso que voc me disse, pai,
e. . .
Galvino apontou para o flho com o dedo indicador frmemente ereto.
Esta a sua ltima chance. Para onde quer ir hoje tarde?
Tadeu suspirou, evitando devolver o olhar frio do pai.
Para a aula de cultivo.
Galvino voltou a se concentrar no po, balanando a cabea de um jeito
sutil demais para que Tadeu entendesse a resposta.
A voz que pronunciava uma saudao elaborada morreu num abrao
forte logo depois de surgir.
. . . Voc conseguiu vir! Eu fquei com tanto medo, Tadeu. . .
Eu tambm.
No sabia do que aconteceu com voc depois, eu s. . .
Eu estou bem. Disse Tadeu, sugerindo que sentassem no cho.
Como voc fez aquilo?
Eu berrei. Respondeu ela, rindo. Eu no conheo nenhuma tc-
nica, ento. . . Eu s queria fazer alguma coisa louca para chamar a ateno.
E conseguiu. . . Mas onde voc estava?
Do lado de fora, no lugar mais prximo da sala que vocs estavam, eu
acho. Eu andei em torno da casa inteira at encontrar o seu castelo.
E depois, voc fcou. . . Normal?
No, claro que no! Respondeu ela, enfatizando a afrmao com
os olhos. Eu acabei desmaiando, mas o condutor me achou e me trouxe
de volta para casa.
O que ele falou pro seu pai?
Ele disse a verdade.
Tadeu continuou esperando.
Bem, pra nossa sorte ele no sabia qual era a verdade, ento. . .
Explicou ela.
Mas e voc, o que disse?
Que eu fui atacada por um esplico, e que ele fez isso por diverso.
Seu pai. . .
. . . Ficou muito nervoso, claro. Parece que ele fez uma ameaa para
os esplicos que tmflhos emtreinamento. No sei ainda o que exatamente
ele fez, mas. . . Ele fcou bem chateado.
Deve ter achado que voc no soube se defender.
384
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Amanda deu de ombros, voltando-se para Nauimior com uma expresso
menos divertida que antes.
Obrigado. Voc me salvou.
Sim, mas e voc? Perguntou ela, chacoalhando a cabea. O que
aconteceu?
Eu disse que foi o Alex.
Aquele idiota. . . Comentou ela. Tadeu sentiu-se paradoxalmente
bem ao ver o quanto ela parecia irritada. Afnal, ela havia se identifcado
com a raiva dele por um de seus amigos. Seu pai acreditou?
No sei. Mas ele me deixou vir hoje. No pude ir pra lugar nenhum
desde aquele dia.
Srio?
Sim. Faltei a aula de tradio. Amanda sorriu, querendo aproveitar
para falar sobre uma das ltimas aulas; ambos sabiam bem o quanto detes-
tavam as horas gastas com os ortodoxos professores. No fm das contas,
Tadeu j estava adianta na prxima frase, e a ideia desvaneceu. Nem para
uma reunio que o meu pai marcou para mim ele me deixou ir.
Que reunio?
Parece que os bomins so responsveis pela festa de Kerlz-u-sana.
. . . A-acho que no. . . Disse ela, estreitando os olhos. Eu lembro
de ter ajudado uma vez quando eu era menor. S coisas pequenas, que eu
podia fazer e quem era adulto no tinha mais pacincia. Devem ser todas as
tradies que so responsveis. Tadeu concordou com tmidas vocaliza-
es. Mas est um pouco cedo pra isso, no est?
Foi a vez de Tadeu dar de ombros, passando tambm a encarar o ho-
rizonte. Havia esperado por aquele momento, por aquela coleo inteira
de momentos, que amarrava proximidade, carinho e intimidade. Mas algo
o incomodava. Todas aquelas mentiras, todos aqueles segredos. . . Tadeu
queria a calma do passado, mas conseguia no mximo ser tranquilizado por
medidas cautelares no presente, e o futuro no era mais certo do que quando
tinham apenas que se esconder sob a desculpa de plantas e razes.
Amanda arrumou-se como se fosse deitar no colo de Tadeu, mas de l-
tima hora parou, olhando para o peito do namorado com uma expresso de
incerteza. Ele, que esperava por ela, percebeu que havia algo fora do lugar.
O que foi? Perguntou ele.
Tadeu. . . que. . . No, no nada.
Desistindo de continuar aquela frase, Amanda se ajeitou de novo, f-
cando com os dois joelhos juntos em contato com o cho. Tadeu pressentiu
que ela estava preparando-se para dizer algo importante potencialmente
polmico e, portanto, arrumou-se tambm, mais inquieto que ela.
Amanda?
Estava vindo. Ele quase podia senti-la tremer.
385
Voiui l
. . . que. . . No porque o que eu fz necessrio, que. . . Que tenha
sido. . . Certo.
Mesmo depois de alguns segundos processando a mensagem Tadeu no
havia entendido o propsito.
T-tudo bem. . .
No, no est tudo bem, Tadeu. Disse Amanda, com a postura
desabando. Eu te ataquei. Te invadi. Isso no certo.
Bom. . . As minhas portas j estavam abertas quando voc entrou,
ento. . .
Ainda esto, na verdade. . . Comentou ela, baixinho, desviando o
olhar.
Amanda! Protestou Tadeu, chocado.
Desculpa! Desculpa, Tadeu! Pediu ela, to ou mais assustada que
ele. Desculpa. . .
Ele queria dizer que estava tudo bem, mas estava surpreso demais. Os
dois continuaram se olhando, cobrindo-se com mantos de remorso. A cada
segundo em que nenhum sorriso conseguia se libertar, parecia ser mais e
mais difcil relaxar de novo.
Tadeu, eu. . . Eu s quero que saiba que eu no vou mais fazer isso e
que. . . Que eu quero que voc me invada.
O mago bomin piscou uma ou duas vezes; balanou a cabea a esmo,
abriu a boca apenas o sufciente para que um quase som dela sasse, mas
mesmo assim no conseguiu afastar a estupefao que o atacara.
Amanda, isso no. . .
isso que eu quero.
Amanda, eu no quero.
Mas no justo, Tadeu! Argumentou ela. Eu te invadi, voc tem
que ter a mesma chance!
No! Voc fez o q-que tinha que fazer, e eu faria o mesmo no seu lugar,
e-e eu no quero te atacar!
Amanda desistiu de discutir, bufando com as mos apoiadas nas coxas.
E depois. . . O que que eu faria com voc? Eu no sei fazer nada.
Sim, mas. . . Amanda levantou a mo direita, fazendo-a voar inde-
terminada pelo ar at pous-la de novo na perna. Deixa.
Ela no voltou a se encostar nele, preferindo a parede consideravelmente
mais slida. Encarou o sol com um rosto que Tadeu estava cansado de de-
codifcar. Seria raiva? Ou era aquela pssima sensao indefnida que ele
sentia em relao a si mesmo que o impedia de achar coerentes aqueles mo-
mentos de silncio?
Amanda. Chamou ele. Ela passou a olhar para ele. Estamos
fazendo a coisa certa?
Sobre o qu?
386
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Nada vai acontecer com a gente?
Amanda desviou os olhos para baixo, de leve.
Eu no sei. O Alex te viu.
Meu pai ainda no tem certeza se foi ele quem me atacou.
. Isso quer dizer que, se o Alex contar a mais algum, o seu pai pode
fcar do seu lado achando que ele est indo longe demais com uma brinca-
deira ou Enfatizou ela, pondo a mo no brao dele. Pode fcar do lado
dele.
. . . Tadeu desviou o olhar, triste com a perspectiva que tinha para
o futuro. Talvez aquilo estivesse se tornando perigoso demais.
Se eu j soubesse fazer isso. . . Eu podia fazer o seu pai acreditar em
voc.
Amanda trazia no rosto uma arquitetnica decepo.
Voc. . . Voc faria mesmo isso? Perguntou Tadeu, indeciso quanto
ao que pensar.
Seria aquilo um confortante desejo de um futuro melhor ou uma frus-
trada vontade de dobrar algum a ela?
claro. Disse ela, achando a pergunta estranha. Isso por ns
dois, Tadeu.
E voc ia invadir meu pai?
Voc est. . . Defendendo ele agora?
Os dois continuaram se olhando, percebendo o abismo de incompre-
enso que se abrira entre eles. Tadeu ainda se perguntava se ela estava
magoada.
s que. . . Eu pensei que nenhum de ns gostasse de usar magia. Eu
acho. . . Meio errado.
Mas necessrio, Tadeu. Disse ela, baixando o tom de voz sem
quebrar um constrangedor contato entre os olhos. Se. . .
. . . Voc viu, Amanda, isso tudo interrompeu ele, exasperado
est tornando tudo mais difcil!
No culpa nossa, Tadeu!
Mas. . . Ele parou, fcando sem palavras.
Tadeu, no fca assim. . . Voc conhece a magia agora, voc sabe do
que os magos so capazes. . . Ns temos que proteger o nosso segredo.
Tadeu a puxou para mais perto, beijou-a com romntica simplicidade e
a encostou no prprio peito, acariciando seus cabelos, que j estavam um
pouco mais compridos do que o normal. Perguntava-se se ela os cortaria
logo, ou se os deixaria crescer, como a maioria das garotas fazia.
387
Voiui l
O recente bomin chegou em casa com o mximo cuidado para no se
atrasar. Tampouco queria chamar ateno; fechou a porta silenciosamente
e subiu as escadas com cuidado. Estava prestes a virar direita, em direo
ao quarto, quando sentiu que algum o observava.
Oi, flho. Disse Eva, de braos cruzados na base da escada.
Oi, me. O pai j est esperando por mim?
Ela balanou a cabea.
Ser mais tarde hoje. Como foi a aula?
Foi boa. . . Senti falta dela.
O que aprendeu hoje? Indagou ela, levantando as sobrancelhas em
expectativa.
. . . Ele olhou para o esquerda, controlando seu nervosismo re-
pentino. No esperava por aquilo. . . . Foi. . . Alcauz.
Alcauz? Perguntou Eva, balanando positivamente a cabea.
, em Inasi-u-een, ela boa para. . .
Tosse?
Mesmo j estando parado, Tadeu sentiu cada msculo do corpo parali-
sar de medo. A memria voltava como ferro quente, marcando em toda a
extenso de sua pele o ardor da miservel queda inevitvel. J havia usado
aquele mesmo exemplo, que h muito tempo Amanda lhe ensinara. A me
no havia esquecido.
Filho. . . Venha aqui um instante.
Me, eu. . .
Filho. Interrompeu ela, olhando-o com uma expresso frmemente
indecifrvel. Venha aqui. Comigo. Por favor.
Ele desceu as escadas degrau por degrau, segurando-se ao corrimo. Era
necessrio; no sabia se poderia ou no cair. No sabia pelo qu esperar;
por uma surra, ou por uma repreenso que chegaria aos ouvidos do pai o
repdio por parte da me, que tambm era maga? A lentido era sua forma
de tentar enganar a morte, que o espreitava no fm do caminho. Escondida,
longnqua. Mas anunciada.
Por que ela parecia uma brincadeira? Uma coisa que no podia acontecer
com ele?
Eva o levou at a mesa da sala e o fez sentar na cadeira da ponta. Ela
sentou-se em outra, prxima dele. Tadeu no conseguia olhar para ela, e
adivinhava que estava provavelmente plido de qualquer forma tremia,
e comeava a sentir gotas de suor por detrs das orelhas, nas axilas e nas
pernas, fazendo a cala parecer mais apertada. Assustou-se quando a me
segurou sua mo em cima da mesa, com um olhar doce de uma situao
como qualquer outra.
Filho. . . Se isso for verdade. . . O que Alex disse de voc. . .
388
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
No , me, no . . . Suplicou ele, sendo interrompido pelos olhos
fechados de Eva.
. . . Tudo bem, flho, mas oua. Se for. . . Eu quero que voc entenda
os riscos que est correndo.
O pai j me disse, ele falou que. . .
Seu pai, meu flho, no soube explicar direito. Disse ela. Eu quero
te explicar. Se voc for pego, possvel que voc no morra. Seu pai no vai
querer isso. Eu no vou querer isso.
Talvez por isso ela no parea real, pensou Tadeu.
Mas possvel que Amanda morra. possvel que ela morra por sua
causa.
Me, eu. . .
Tadeu, me escute. Eu entendo como . No conseguir pensar na eter-
nidade. Em coisas que so para sempre. Humpf. . . Riu-se ela, olhando
para o lado por um momento. Quando eu aprendi a ser uma maga, eu. . .
Usei muito a magia. Eu consertava tudo. Fazia tudo ser do jeito como eu
queria.
Eu no sou assim.
No foi o que eu quis dizer. O que eu quero dizer, flho, que para
mim era difcil entender coisas que so para sempre. Sempre foi difcil. At
eu ter voc.
Tadeu olhava para os olhos ligeiramente marejados da me com uma
ateno renovada.
Eu sou sua me, Tadeu. E isso. . . permanente. Nada nunca vai
mudar isso, entende? Consegue entender?
Ele fez que sim com a cabea.
Agora imagine um fato como este. . . Que voc no pode mudar, e
para sempre. Mas que seja ruim. E voc se culpa todos os dias por ele.
Ele pensou em Amanda, e surpreendeu-se com o peso que viu, afado,
afundar em seu peito. Era como se estivesse jogando na lareira da sala onde
tinha aulas com o pai todas as memrias que os dois tinham juntos. Aquele
era um sacrifcio que ele precisava fazer; era libertador, antes de sofrvel.
Era necessrio antes mesmo de desejvel, mas ele no se sentia mal.
Ele estava errado, afnal. A morte no esperava por ele. A vida esperava
por ele. E isso era irreversvel.
Ento, flho. . . Se voc realmente a ama. . . Deve deix-la ir.
Por rosanos se encontraram no topo de um morro que para ambos tor-
nar-se-ia logo sinnimo de perdio. Por quanto tempo aguentariam? Quanto
tempo at algum descobrir alguma coisa e eles serem condenados? De que
forma morreriam? Jogados ao fogo, degolados, envenenados?
Na verdade, deve faz-la ir.
389
Voiui l
Tadeu encostou a mo no pescoo. Tornou a olhar para a me, que de-
senhava crculos com o polegar nas costas de sua mo esquerda.
Voc sabe que o certo a fazer. E voc sabe como.
Obrigado, me. Disse ele, tirando a mo da mesa e levantando-se
em um salto. Fica tranquila. N-no precisa. O que o Alex disse mentira.
E, ainda debaixo do olhar da me, subiu as escadas e correu para o
quarto, sentindo-se ao mesmo tempo devastado e reconstrudo. Fechou a
porta e, ao olhar ao redor, tomou a deciso que sentia ser a nica que os
salvaria mesmo expensa de si mesmo, deles dois, e de tudo que j havia
sido.
390
Captulo 54
Morte ao Conselho
Era noite alta e iluminada quando os quatro viajantes chegaram For-
taleza Norte de Roun-u-joss. Vinham andando, mas s eles sabiam da fora
que faziam para no rastejar pelo cho at um lugar afastado da estrada,
onde sonhavam poder dormir em paz e acordar misteriosamente saciados e
sem preocupaes. Continuavam andando, sendo ajudados pela certeza de
que no tardaria muito para chegar a um descanso minimamente similar.
A Fortaleza Norte era uma regio murada que a estrada atravessava; a
no ser que fosse contornada, era a nica estrada para Roun-u-joss para
quem viesse de Al-u-een. Os muros escuros iluminavam a rea exterior e
interior a partir de uma mirade de minrios, e do lado de dentro havia uma
pequena vila de administradores, fazendeiros e pecuaristas, com uma rea
para a criao de bufes e plantaes diversas, as residncias dos moradores
e uma zona militar com uma poro notvel do exrcito da cidade. Aqueles
que, como Hiram, Kan, Raquel e Gag, vinham da estrada norte, encaravam
uma torre de seis andares, marrom e quadrangular, com um porto sufci-
entemente resistente em seu andar trreo.
Enfm chegaram. Olharam uns para os outros, de posies relativas di-
ferentes no bando. Estavam ansiosos por sorrir mas cansados demais para
tentar. Hiram respirou fundo e se aproximou de uma espcie de minscula
janela do lado direito da porta. Kan observava as muralhas, que logo faziam
curvas, mas no via nenhum sentinela caminhando por elas; as janelas da
torre tambm estavam fechadas. O lugar parecia inabitado.
Hiram bateu algumas vezes na janela, que assustou ao se abrir imedia-
tamente.
Mas quem so? Perguntou uma voz masculina.
Hiram era capaz de enxergar apenas os olhos do rapaz, realados por
uma luz azul parcialmente encoberta.
Meu nome Hiram. Joana nos espera.
Um instante.
O homem tornou a fechar a portinhola, e Hiram olhou para os compa-
nheiros. Poucos segundos depois, um estrondoso som de correntes fez-se
presente. Todos entraram na fortaleza pela porta, que se abria rangendo.
391
Voiui l
No havia ningumno grande ptio logo aps a porta, onde se podia ver
claramente a estrada continuar o caminho que logo ladeava casas de um ou
dois andares. Por dentro os muros projetavam, perto das bordas, espaos
emque alguns soldados se escondiame pelo qual outros ainda patrulhavam,
ocultos para quem estivesse do lado de fora. O cho margem da rua j no
era verde como antes, mas coberto de terra batida e seca.
O homem que os atendera tinha olhos grandes e um rosto alongado.
Apesar de sua postura militar, era baixo e andava com difculdade, man-
cando na perna direita. Saindo da torre por uma porta ao lado do porto
principal, que agora se fechava com mais uma sequncia de torcimentos
metlicos, lanou a Hiram um olhar respeitoso que continha uma centelha
distinguvel de orgulho alheio.
Vou comunicar a Joana que esto aqui.
Hiram balanou a cabea de leve, e um agradecimento quase mudo de
to rouco saiu de sua garganta.
isso? Perguntou Raquel, analisando o bairro familiar quando o
homem se fora. Estamos salvos?
Depois de virar a esquina de uma rua cheia de casas fxas ao ritmo parado
da madrugada, o grupo de flinorfos enfm enxergou uma convidativa luz
amarela vindo de uma porta aberta. Era uma casa diferenciada; tinha apenas
um andar e pouco espao, com o exterior pintado em um verde alegre e
cativante. Joana estava em p, encostada ao batente da porta com os braos
cruzados. Era uma sorridente mulher alta de curto cabelo claro, cortado de
maneira estranha, e cultos olhos esverdeados que se divertiam ao observar
os extenuados viajantes.
Pensei que nunca mais fossem chegar. . . Disse ela, lentamente
envolvendo Hiram em um abrao.
Eu pensei tambm, minha cara. . . Respondeu ele, gentilmente.
Estes so Gag e Kan.
Muito prazer. Disse ela, recebendo cordiais e singelos comprimen-
tos em retorno. E voc. . . Eu acho que eu j te conheo. . .
Sua loba. . . Disse Raquel, apertando a amiga em um quente abrao.
Diga-me que tem algo para nos oferecer, Joana, por favor.
Ora, mas duvidas de minhas provises, Hiram? Perguntou a anf-
tri, com as mos na cintura. Vamos entrando, amigos, vamos, vocs no
sabem o que espera por vocs. . .
Eles entraram na casa, observando que ela era to diminuta quanto o
exterior dava a entender. Havia uma mesa retangular de nogueira em uma
sala cheia de pacotes e papeis pardos encostados e empilhados s paredes.
392
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Hiram e Kan sentaram-se de um lado, apertados, e Raquel e Gag, de outro.
A cozinha fcava logo frente, sem divisas, e um fogo baixo crepitava
lenha no canto do cmodo. Joana fechou a porta e foi para l, de onde tirou
alguns pedaos de carne e colocou em uma tbua.
O que que nos espera, Joana? Perguntou Hiram, alisando sua suja
camisa azul-escura.
Isto! Disse ela ao colocar a tbua cheia de pedaos de carne em
frente a eles.
Todos reagiram exclamando murmrios de fome. Comearam a comer,
pegando os pedaos bemassados coma mo e os despedaando vorazmente.
Ficaram bons? Perguntou Joana, que os observava sem participar
da refeio.
Muito, Joana. . . Disse Kan, provocando risadas com sua paixo
pela comida.
Posso perguntar o que isto?
carne de coxa, no ? Perguntou Raquel, apontando para Joana
para conferir se o chute fora acurado.
isso, Quel, carne de coxa, sim.
Voc cozinha muito bem. Elogiou Gag.
Obrigada! Sorriu ela. Mas digam. . . Joana pediu licena e
espremeu-se ao lado de Raquel. O que aconteceu em Al-u-een?
Hourin est morto.
Ah, que timo. Menos um rato. . .
E voc, o que tem feito?
Trabalhado aqui, sendo sincera. Recentemente prendemos um mago.
timo tambm. Parabns, Joana. Como aconteceu?
Foi engraado, na verdade. . . Comeou ela. Uma senhora veio
procurar a polcia h uns dias. Disse que um homem estava perseguindo a
pobrezinha.
O mago. Arriscou Kan.
Sim, era ele, mas a polcia no sabia de nada. O engraado mesmo
o jeito que ela descrevia o homem. Parece que quando ela chegava em casa,
ele surgia e pedia para entrar. A sabe o que ela disse que sentia dele? Pena.
Ele fazia ela sentir pena dela para deixar ele entrar? Deduziu Ra-
quel, franzindo o cenho.
Mas tu sabe que era essa a estratgia dele, Quel. Confrmou Jo-
ana, balanando a cabea. O maldito fazia ela ter pena, para ela abrir a
porta para ele e ele entrava e conversava com ela. Queria fcar ntimo dela,
descobrir as coisas, fazer ela confar nele.
Mas por que pena? Indagou Kan, partindo com os dentes um outro
pedao de carne.
393
Voiui l
Ento, pelo que eu ouvi a mulher era muito fechada, muito tmida,
sabe? Ele deve ter tentado fazer ela aceitar ele na casa dela vrias vezes,
mas ela no aceitava. A pena foi o nico jeito.
Esperto.
Nem tanto, Quel, a que est. Ele fazia ela sentir pena, mas esqueceu
de tranquilizar ela porque ela sempre fngia estar calma, mas na verdade
estava morrendo de medo dele.
Por isso ela foi polcia. Completou Kan.
Os policiais perguntaram para ela se da prxima vez ela ia querer
abrir a porta para ele. Ela disse que na verdade queria que ele nunca mais
aparecesse na casa dela. A eles s precisaram se esconder perto da casa
dela. Ele apareceu de novo e conseguiu fazer ela abrir a porta. Foi a que
prenderam ele.
A histria trazia um elemento a mais de calma para as bocas cheias dos
flinorfos, que se limitaram a se sentir bem com a refeio.
Vocs j decidiram para onde vo? Perguntou Joana.
Hiram olhou para os outros, buscando confrmao.
Ns no discutimos isso ainda, Joana, ns. . . Ainda no decidimos.
Bom. Disse ela, continuando a olhar para a mesa. H algo que
eu preciso mostrar a vocs, mas podem. . .
Ela foi interrompida por trs batidas fortes na porta. Sobressaltada, Jo-
ana se levantou, indo at a porta. Ao inspecionar o castelo do intruso, pre-
cavidos, sabiam de quem se tratava.
O que foi? Disse Joana ao abrir a porta.
O que eles no puderam perceber atravs de Neborum era o quanto o
guardio das portas da fortaleza estava ofegante.
A polcia de Al-u-een. . . Est l fora. . . Dizendo. . . Que vo entrar
de qualquer jeito!
Os flinorfos mesa pararam de comer, entreolhando-se.
No se preocupem. Disse Joana, com o corpo j do lado de fora da
casa. Eles no vo entrar, mas mesmo assim escondam seus castelos!
Joana abriu a janela do segundo andar da torre. Nas do primeiro e do
terceiro andar arqueiros j estavam posicionados, prontos para atirar. Nas
muralhas ao lado, mais de vinte soldados tomavam suas posies, com ou-
tros do lado de dentro preparados para substitu-los caso fosse necessrio.
Do lado de fora trs charretes estavam paradas; no mnimo oito poli-
ciais carregados por seis yutsis. Apenas dois deles traziam arcos, e estes,
mais afastados, olhavam para o topo como se procurassem por brechas de
segurana. Do resto do grupo de agentes que traziam espadas na cintura,
394
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
um se adiantara com as mos para trs, as largas feies barbadas e os olhos
estreitos voltados para cima, diretamente para a janela de Joana.
O que querem?
Temos razo para acreditar que fugitivos de Al-u-een entraram nesta
fortaleza, senhora. Respondeu o porta-voz.
Perguntei o que vocs querem, policial.
Queremos entrar e vasculhar por eles.
Infelizmente no posso deixar.
Eu fui autorizado pelo delegado e pelo Parlamento de Al-u-een.
Argumentou ele, olhando para a frente por umtempo. Tenho que cumprir
minha misso, senhora.
Aqui no Al-u-een, senhor. Respondeu ela, impaciente. Para
mim de nada importa que a permisso venha de Al-u-een ou de Dun-u-
dengo. Se quer uma permisso que me faa comear a pensar, contorne a
fortaleza e v at a cidade.
O policial recuou, sem voltar a olhar para a chefe de segurana, e reuniu
os outros ofciais. Joana esperava com a ponta do p batendo nervosamente
no cho.
Vamos buscar a permisso. Disse o policial de Al-u-een, voltando-
se para o porto de novo. Mas alguns de ns fcaro aqui.
Joana ponderou a deciso.
Afnal. . . A fortaleza fca dentro dos muros, no mesmo? Insistiu
o policial.
claro. Disse ela, por fm. Podes fazer o que quiser fora daqui.
Obrigado.
Joana rispidamente fechou a janela e, encostando as duas mos na testa,
organizou a mente enquanto o porteiro da fortaleza a observava, com as
sobrancelhas arqueadas.
Vigie-os. Recomendou ela, por fm. No precisamos de muitos
soldados para isso, mas. . . Toma cuidado.
Quando Joana entrou em casa novamente, viu que todos j estavam de
p, os braos fechados ao lado do corpo, praticamente prontos para partir. A
carne j era carnia, e Gag estava acabando de pr a bolsa de mantimentos
nas costas.
E ento? Perguntou Raquel.
Vieram procurar vocs. Mas no os deixei entrar.
Mas eles vo entrar, no vo?
395
Voiui l
Eventualmente. . . Confessou Joana, j sem prestar ateno. Foi at
a cozinha, com os outros a seguindo com o olhar enquanto ela alcanava
uma pequena caixa preta em uma estante particularmente alta.
Precisamos ir embora. Disse Kan. Para onde voc vai?
No, j gente demais para onde o meu grupo vai. . . Disse ela,
pondo a caixa sobre a mesa e retirando dela um papel dobrado, de aparncia
frgil. Aqui. Leiam isto.
Joana entregou o papel a Hiram, que abriu-o cautelosamente.
Leia logo. . . Disse Raquel, voltando a se sentar. Kan posicionou-se
atrs do ombro de Hiram, procurando ler com ele. Gag observava a cena
de longe, encostado parede.
Robin,
H um tempo no nos dedicamos palavras; seja no papel, seja
face a face. Como vai? Ouvi dizer que adquiriste uma nova casa
na velha cidade. verdade? Acaso me convidars para um jan-
tar? Saiba que trarei suculentas frutas e gordos bufes. Isto,
claro, se eu for convidado.
Perdoe-me tambm pela ausncia. Sei que parte da culpa por
h muito no nos falarmos minha, mas devo dizer que a vida em
Roun-u-joss para um mago como eu no simples. Por outro lado,
pensei que j tivssemos superado aquela fase de nossa amizade
em que fcaste irritado por eu ter escolhido esta cidade para viver.
Como poderia no faz-lo? Tu s um solitrio que nunca amou,
tu no me entendes. No sairei daqui at ter o amor da mulher
que amo. No tem problema viver entre esses grossos orgulhosos
que s o que sabem fazer de bom cozinhar.
No entendo. Disse Hiram. O que. . .
Leia at o fm, Hiram. Repreendeu Joana.
Ouvi dizer outras coisas a seu respeito tambm. Se forem ver-
dade, meus parabns. Por que nunca me contaste? De que im-
porta, de qualquer forma, se podes ainda fazer um favor ao teu
velho companheiro, diga ao Conselho que no esquea de Roun-u-
joss. H magos bons nesta cidade que no podem se comprometer
a participar, mas desejariam muito. Ah, como desejaria que al-
guns esplicos pudessem vir aqui nos ajudar. . . Como fazem os
preculgos em Al-u-een, estou supondo. Esta cidade rica, Robin,
consegues crer nisto? E ainda assim, eles cometemo erro de purgar
todos os cargos de magos. S precisamos de uma pequena ajuda e
teremos muito o que comemorar.
396
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Mas isto deixamos para outra hora; para quando me convida-
res para o jantar, por exemplo.
Saudaes,
Renan
Quem escreveu isto, Joana?
Os outros magos fcaram alertas, curiosos. Raquel levantou-se e tirou o
papel da mo de Hiram. Logo dividiu a leitura com Gag.
Renan foi o mago que prendemos. Explicou Joana. Essa carta
nunca foi enviada.
Ento voc acha que. . .
Eu no acho, Kan. Eu tenho certeza! A mulher tinha um brilho
to intenso e resoluto em seu olhar que quando Raquel acabou de ler, no
conseguia deixar de olhar para ela. A aliana magocrata real! Os magos
se ajudam, no so inimigos! Ajudamuns aos outros. Acontrolar as cidades.
Eles controlam tudo.
Conselho. . . Soltou Hiram, refexivo.
Isso tem que acabar. E vocs. . . E ns. . . Podemos pr um fm a isso.
para onde voc vai? Perguntou Kan.
No. Eu e mais trs de ns vamos a Al-u-ber. Temos uma misso l.
J estamos nos preparando h muito tempo para mudar as coisas de ltima
hora. Mas vocs, por outro lado, precisam sair daqui. Hoje, ainda. Agora.
Joana, isso . . . Um absurdo. . . Disse Raquel, sem desgrudar os
olhos dos dela.
Joana respondeu com um expirar cansado, comprimindo os lbios. Con-
cordava com todos os pesos da frase.
Esse mago, chamado Robin, eu no conheo. Recomeou ela. Mas
vocs podem ir at a Cidade Arcaica para descobrir mais sobre ele. Segui-lo,
ou. . . Ou mesmo faz-lo dizer onde fca o Conselho.
Ns temos que ir, Hiram. Disse Raquel.
Gag balanava a cabea energicamente ao olhar para o flinorfo que
mais frequentemente tomava decises. Hiram olhou para a direita, procu-
rando aprovao nos olhos de Kan, mas encontrou uma feio sria que no
ousava olhar de volta para ele.
Ns temos que ir. Concordou ele, por fm, andando para longe do
grupo.
E tm mesmo. Confrmou Joana. Agora, antes que seja tarde. Eu
conheo um lugar que os policiais de Al-u-een no conhecem.
Raquel dobrou a carta e a entregou para Gag, que comeou a encaix-la
na mala s costas.
397
Voiui l
Venham. Disse Joana, abrindo a porta novamente. Vou dizendo
como encontrar o que comer no caminho at a estrada para o Oeste.
398
Captulo 55
Lutar por algum
Voc. . . Quer?
Tadeu imaginou que Amanda fosse ter paz ao satisfazer qualquer senso
de justia que ela havia desenvolvido ao invadi-lo.
No o que voc queria?
No, s que no o que voc queria. . . Respondeu ela, diminuindo
a velocidade ao longo da frase.
Eu s. . . Disse ele, segurando as duas mos delas com um um
carinho que quase o fez hesitar. Percebi que o certo a fazer.
Tudo bem. Disse ela, parecendo ainda procurar por uma centelha
de novidade em seus olhos, que no hesitavam. Eu vou abrir a porta para
voc.
Quando Galvino chegou, Tadeu andava de um lado para o outro, visi-
velmente perdido em pensamentos. Ele poderia apostar que ele estaria em
Neborum, mas achou uma aposta muito arriscada.
O que foi, Tadeu?
Oi, pai. Eu quero perguntar uma coisa.
Voc no parece bem.
Eu queria saber se. . .
Acalme-se. Galvino levantou a mo, interrompendo-o, e logo trans-
formou o sinal de parada em um convite para que ele se sentasse. O fogo
ardia na lareira; ele no podia estar daquele jeito por causa do frio. Per-
gunte.
Antes de comear a aula eu queria saber se existe alguma tcnica para
fazer algum gostar de outra pessoa. E se voc podia me ensinar.
Galvino sentou-se em frente ao flho e, sem tirar os olhos dele durante
todo o processo, respirou pesadamente antes de comear a responder.
Existem. . . Muitas tcnicas quanto a isso, meu flho, mas no vou lhe
ensinar nenhuma.
Por que no? Perguntou Tadeu, franzindo o cenho.
399
Voiui l
Voc no est pronto. Disse ele, fazendo cair o olhar do aprendiz.
Sim, Tadeu, essa a realidade. Tcnicas dessa natureza so complexas
demais.
Por qu? O que preciso para dar certo?
No vou lhe dizer, Tadeu, no insista. Reforou Galvino. Mas
posso explicar por que elas no so simples.
Tadeu no piscava enquanto apertava uma mo com a outra, com os
dois antebraos sobre as pernas.
Pessoas que no so magas, Tadeu, e at mesmo os magos que no
sentem a sua presena no castelo deles. . . Eles podem no lutar contra voc
enquanto voc os ataca, mas no signifca que sua tcnica ter o efeito que
espera.
C-como assim?
Voc pode controlar as pessoas de muitas formas, Tadeu. Galvino
ajeitou-se, voltando a encarar o flho com mais proximidade. Mas elas
tambm podem resistir. Voc pode tentar fazer com que eu sinta vontade de
me jogar na lareira, mas no signifca que eu v fazer isso.
Mesmo que voc tenha vontade. . .
Sim, mesmo que eu tenha muita vontade, eu ainda posso vencer se
acreditar naquilo que eu penso.
Funciona com todas as tradies?
Galvino meneou a cabea, calculando as palavras.
Sim. . . Voc pode resistir a uma tcnica preculga se acreditar no que
voc sente, e tudo aquilo que voc sente e pensa pode fazer voc resistir ao
que um esplico queira que voc faa. Tudo depende de muitas coisas. De-
pende do mago tambm. Da fora dele, no caso dos esplicos, mas tambm
da discrio, por exemplo.
Tadeu concordou, olhando para o cho. Quais eram suas opes?
E no possvel mesmo fazer magia em si mesmo?
No, isso no possvel. Voc sabe disso, no assim que magia
funciona. Magia acontece quando uma pessoa ataca outra. Isso magia.
Tadeu passou pela porta de uma das largas torres do castelo de Amanda.
O iaumo da garota fechou a porta com suavidade, e Tadeu no pde deixar
de olhar para as costas dele. Amanda estava reconhecvel, mas diferente.
Em Neborum ela parecia brilhar; parecia ser mais alta, ter um cabelo mais
claro e uma pele mais limpa.
O saguo, ocupando toda a extenso e forma da torre, estava bem ilu-
minado pela luz do sol que entrava pelas paredes. Nelas desenhos rudimen-
tares se formavam com as divisrias de pedra entre pedaos planejados de
400
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
vidro. Enquanto animais e formas humanoides eram representados nas ja-
nelas, um mosaico gigantesco e colorido de formas geomtricas cercava a
rea de uma escada circular de corvnia.
Agora era Amanda quem o via, atnito, analisando com a boca semia-
berta o trabalho meticuloso no interior do castelo. Ele se voltou para ela,
que sorria.
Os dois ainda estavam de mos dadas e o sol ainda no comeara a se
pr; Tadeu no resistiu e beijou-a de surpresa, demorada e calorosamente,
apertando sua mo por volta da cintura dela.
Seu bobo. Disse ela, risonha, ao afast-lo gentilmente. Ficou tudo
tremendo l. . .
Tadeu abafou umriso e voltou a observar a companheira no castelo dela.
Sobe! Disse Amanda, apontando para a escada. D uma olhada. . .
Eu vou fcar esperando.
Tadeu reencontrou, com a ajuda do condutor da famlia, a biblioteca que
tinha visitado com Anabel. Entrou e varreu o lugar com os olhos, encon-
trando quem procurava. Aproximou-se dela no fundo do primeiro andar ao
sentar em uma cadeira livre na mesa. A jovem, sem se assustar, simples-
mente virou uma pgina do livro que lia, sem entusiasmo. Logo fechou-o
de todo, olhando para o visitante.
Oi, Tadeu. Saudou-o Anabel, com um sorriso tristonho. Como
vai?
Bem. Respondeu ele, sem a menor preocupao de esconder a ur-
gncia da voz. Eu preciso de voc.
O qu?
Eu preciso da sua ajuda. Quero saber s-se voc consegue fazer uma
coisa.
Fazer o qu?
Uma tcnica bomin de. . .
Sshh! Disse ela, automaticamente procurando por algum que ti-
vesse acidentalmente escutado quilo. No havia ningum perto o sufci-
ente. Fala mais baixo!
Desculpa. . . Pediu Tadeu. Quero saber se voc consegue fazer
algum gostar de outra pessoa.
Anabel entreabriu a boca, olhando com curiosidade para Tadeu.
Gostar. . . Gostar como?
Eu quis dizer. . . Amar.
Hm. . . Por que voc est perguntando isso pra mim?
401
Voiui l
Porque meu pai no quer me ensinar e. . . Eu sei que voc mais
experiente, ento. . .
Eu. . . Comeou ela, sem conseguir terminar o que quer que pre-
tendia dizer.
Tadeu a olhava fxamente, como se esperasse dela uma deciso que fosse
salv-lo de uma doena.
muito importante, Anabel. Por favor. Eu sei que magos no costu-
mam compartilhar as coisas assim, mas eu no vou usar isso contra voc.
claro que no. Disse ela. . . . Voc quer fazer algum gostar de
voc?
Tadeu negou, olhando cautelosamente para os lados.
Quero fazer outras duas pessoas se gostarem.
Anabel parecia julgar a questo internamente. Passou os dedos pela
grossa capa do livro sobre a mesa, que ela acabara de fechar.
Vai haver consequncias, Tadeu. Sempre vai.
Eu sei. Eu quero as consequncias.
Amanda abriu os olhos, mas Tadeu continuava com os seus fechados.
Era estranho, pensava ela, que ele ainda no conseguia fazer algo to simples
quanto simplesmente andar por Neborum de olhos abertos. Apenas para se
certifcar de que ele j tinha subido as escadas, olhou para o saguo. No
encontrou mais ningum ali.
Ela suspirou enquanto esperava o fm da visita. Pensou que era curioso
que no sentisse nada, mesmo sabendo que algum a invadia. Nenhuma dor
ou sensao estranha. Nem mesmo ccegas. Ou clicas.
Tadeu, por sua vez, parecia estranhamente compenetrado. Engolia com
difculdade, e por vezes apertava os olhos, como se tivesse um pesadelo.
Pigarreou uma ou duas vezes, e comeava a apertar fortemente as mos
dela.
Ai! Reclamou Amanda. Cuidado, Tadeu. . .
D-desculpa. . . Pediu ele.
Ela no disse mais nada, temendo atrapalhar sua concentrao. Por que
ele precisava se concentrar tanto, afnal?
Deixou sua cabea vagar para longe daquilo; no adiantava pensar muito
naquele instante. Mais tarde teria outra aula com o pai e aprenderia a lu-
tar. Se houvera alguma aula que ela tinha esperado no ter era uma daquele
tipo; jamais se dera bem com o corpo em movimento e nunca se interessara
por armas. Era umgrande azar que os preculgos lutassemjustamente assim.
A imagem de Jorge, grandiloquente e levemente ameaadora, surgiu em
sua cabea. , talvez o pai tivesse alguma reunio comele ou algo do gnero,
402
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
e a deixasse sem uma aula por um dia. Mas que diferena faria? Algum dia
teria que aprender aquilo de qualquer maneira, ou jamais seguiria adiante.
Pensou logo em Gustavo. Em quanta sorte tinha por encontr-lo. Ou,
talvez, nem tanta sorte; ele no a estava ajudando muito ultimamente. Mas,
por outro lado, por que precisava de sua ajuda? Gostava dele, independente
de o quanto ele fosse til ou no talvez ele at voltasse para a cidade da
qual tanto sentia falta, mas. . . Mesmo se o fzesse, ela ainda gostaria dele.
E sentiria sua falta. Que timo seria se no precisasse senti-la!
Voltou a se lembrar da primeira vez em que o viu. Como ele foi sol-
cito, ainda que intrometido, e como a honestidade dela acabou ferindo-o
um pouco. Ser que ele j havia se recuperado daquilo, e agora confava
nela? Amanda no queria perder sua confana. No, defnitivamente no
queria.
Sorriu, pensando que era realmente algo ter comeado a se importar
tanto com ele.
Abriu os olhos, percebendo com um constrangido susto que os fechara.
Tadeu? Perguntou ela. Ele continuava de olhos fechados. Tadeu?
Acabei. Disse ele, de supeto, abrindo os olhos. V-voltei pro meu
castelo.
Acabou o qu? Perguntou ela, afastando-se dele.
Eu no fz nada, Amanda. Defendeu-se ele.
No justo, Tadeu! Eu disse a voc o que eu fz, e-e voc me invade
e. . .
Eu no fz nada, eu juro! Amanda sentiu um arrepio ao ver a ima-
gem de um Tadeu assustado. Ela o havia deixado daquele jeito? S cami-
nhei pelo castelo, mais nada!
Mas. . . Dizia ela, percebendo o quanto ofegava. P-por que voc
estava de olhos fechados, ento?
Eu. . . No sou to bom quanto voc.
Ele a olhava como se esperasse por alguma reao; uma que ela no sabia
corresponder. Forou um sorriso e avanou em direo a ele, abraando-o
forte. Ps a mo na nuca quente do rapaz, revisando a estranha experincia.
s praticar, Tadeu. Voc vai melhorar.
Eu no sei se eu quero melhorar. . .
O sorriso desapareceu do rosto de Amanda, que sentiu como se uma
ncora a puxasse para do mar, arrastando-a por toda a cidade em direo
praia.
C-como assim?
Eu no sei se gosto de ser um mago, Amanda.
Tadeu, isso o nosso futuro. Disse ela, voltando a segurar as mos
do namorado. Isso vai ajudar a gente a sermos o que a gente quiser,
porque. . .
403
Voiui l
Menos um casal, Amanda. Disse ele, quebrando com crueldade o
pensamento de Amanda, que passou a olhar para ele com olhos assustados.
Podemos ser qualquer coisa, menos estar juntos, ento. . .
Tadeu!
. . . Se eu tiver que escolher entre ser um mago e estar com voc, eu. . .
Tadeu, no d pra voltar atrs! Ela o segurava pelos pulsos, chacoa-
lhando-o. E-e voc tem que. . . Tem que abraar a magia e fcar o melhor
que voc puder para que no controlem a gente e-e. . .
Amanda, voc no faria o mesmo por mim?
Ela parou de agit-lo, percebendo o quo nervosa fcara. Ele a olhava
com um rosto deprimido. Ela viu-se desviando o olhar, envergonhada.
Tadeu, eu. . . Heelum dos magos. Voc tem ideia de como os que
no so magos vivem?
Eu sei. Muitos so pobres.
Mas voc no sabe o que ser pobre, Tadeu. . .
Voc tambm no! Argumentou ele, aumentando o tom de voz.
Eu sei, mas o que eu sei que eu no quero ser pobre. . . Se ns no
usarmos a magia em nosso favor, vai haver outros magos que vo usar, e
ns vamos fcar para trs. Ns temos que fazer isso.
Ele deixou de olhar para ela.
Tadeu?
Engolindo o choro que se aproximava com uma fora monstruosa, o
mago bomin balanou a cabea e esfregou o nariz. No silncio, prevaleceram
os signos; ele a trouxe pra perto e a apertou, barrando as lgrimas com uma
determinao que ele nunca havia sentido. Ele certamente entendera. Ele
tinha que fazer aquilo.
404
Parte VII
Brilhante futuro
Captulo 56
Vencedor
O silncio, artifcial, era um bloqueio surdo e opressor dos sons que a
cada segundo apertavam-se contra as orelhas de Lamar naquela noite. Ke-
rinu encostava a palma e os dedos da mo nas costas e no brao do mago,
respectivamente, e se antes eram completamente percebidos agora queima-
vam como brasa, alastrando pelo corpo uma sensao de dormncia que
Lamar interrompeu, mais uma vez assustado. Arrepios assentaram Lamar
em si mesmo; a dormncia sumiu como capa que se despe, e ele pde ouvir
de novo a voz de Kerinu.
Lamar. . . Lamar!
Ele ainda no havia percebido que Lamar voltara. Passou alguns segun-
dos fngindo se concentrar antes de perceber que no conseguiria mais nada
naquele momento. Soltou os ombros, enfm, murmurando desculpas.
Kerinu saiu de perto, bufando depois de umsilncio curto. Lamar sentia-
se frio. Abraou-se enquanto olhava para o assoalho de madeira, tremendo
de desconforto e vergonha. Sentava no cho. Vestia roupas verdes e velhas
de Kerinu, que nele fcavam apertadas; pensava, contudo, que o objetivo de
fugir no era ter conforto.
Est pronto? Perguntou Kerinu, voltando com um tom de voz con-
trolado.
Estou.
Lamar fechou os olhos e baixou ainda mais o pescoo. Sentiu Kerinu
apoi-lo nas costas enquanto sua viso fcava vermelha.
Contraiu o tronco pra frente, sem querer ou saber; Kerinu forou o peito
do mago para trs, segurando-o num equilbrio forado e difcil. Luzes, ton-
tura, sons de ferro e fogo tomaram seu crnio de assalto. Procurou a cabea
comas mos; encontrou-as e sentiu tanto alvio quanto Kerinu permitiu que
sentisse o mestre logo arrancou as mos de l com violncia, e os mundos
oscilaram.
Ele abria os olhos, piscando, mas via apenas escurido. Mesmo sem
enxergar intua uma sala em expanso, com as paredes para todos os lados
tornando-se mais e mais distantes. Via-se em um mundo gigantesco, escuro
e solitrio.
407
Voiui l
Seu corpo enrijeceu; j no tinha mais certeza se sentia mesmo seu corpo
ou se olhava para mos que eram suas de fantasia; meros brinquedos de
verdade. No sentia Kerinu ao seu lado, mas de alguma forma sabia que
ele estava ali. Foi criando uma conscincia cada vez maior, recuperando os
sentidos, e a dormncia tomou conta de um envlucro que ele sentia unir-
se mais e mais aos prprios pensamentos tristes. Entendeu que fechara os
olhos. Ao abri-los, recuperou a audio.
S ento ouviu que berrava a intervalos regulares, numlamurio urgente.
Sua barriga fremia em espasmos no mesmo ritmo tresloucado do peito.
Kerinu se levantou. Lamar, caindo de lado, no conseguia ver a expres-
so em seu rosto.
Acasa fcava perto das copas das rvores mais altas que Lamar j vira em
sua vida; sequoias eretas como soldados destemidos. Mesmo feito com uma
madeira feia e irregular a casa dava uma sufciente impresso de solidez.
No cho havia minsculos buracos e frestas em que se podia vislumbrar o
verdadeiro cho, distante e cheio de folhas.
No havia portas ou janelas; apenas lugares em que tbuas no foram
postas. A diferena entre os cmodos era marcada por tiras de folhagens
que balanavam quando algum passava, devolvendo o distrbio em leves
ccegas, e aquilo que convencionou-se ser o quarto era atravessado do cho
ao teto por um tronco de espessura mdia e textura doce.
Kerinu estava sentado em um canto, olhando para cima enquanto os
dedos de uma das mos massageavam os da outra. Lamar estava em frente
a ele, inerte. J havia dois dias que estava ali e o resultado era sempre o
mesmo; tentativas fracassadas de chegar a Neborum.
Lamar se assustou quando ouviu um som esganiado vindo do cu, pa-
recendo terrivelmente prximo a eles. Quando o eco se acabou e a sombra
do onioto passou, Lamar olhou para Kerinu com um sorriso conciliatrio,
buscando naquilo uma fatia de humor que fosse.
Eu tinha me esquecido de como eles eram grandes.
Lamar. . . Retorquiu Kerinu.
Eu acho que voc no precisa fcar as. . .
Voc tem que fazer isso, Lamar. . . Interrompeu Kerinu, apertando
a testa com os dedos.
Lamar no sabia para onde olhar. Suava como se precisasse contar uma
notcia ruim.
Por favor. . . Por favor, Lamar, voc tem que fazer isso. . .
Eu estou tentando, eu juro que tento, mas. . .
No est tentando o bastante.
408
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Eu estou, Kerinu, que. . .
Voc no pode nemdizer que eu no sei como , porque eu sei. . . Voc
s tem que se entregar. . .
. . . E depois comea o horror de viver naquele lugar. . .
Enquanto voc pensar assim. . .
No fcil para mim, nunca foi, e. . .
No vai ser fcil quando eu me arrepender da deciso da Myrthes,
Lamar! disse Kerinu, levantando-se abruptamente.
Segundos vazios seguiram-se hesitao de Lamar. Kerinu deu uma
volta no quarto, como se precisasse dar vazo comas pernas ao que pensava.
N-ns somos amigos, Kerinu comeou Lamar c-como voc pode
se arrepender d-da deciso da. . .
Porque ela MINHA IRM, Lamar! Ela irm de um alorfo, voc no
entende? As coisas. . . Ele apontava para si mesmo com mais tristeza do
que raiva. As coisas que eu faria por ela, voc. . . Se descobrissem quem
eu sou e quem ela de mim seria to fcil machuc-la para me atingir!
E voc no acha que eu sinto isso? Eu me preocupo!
Enquanto voc no souber se defender, Lamar, minha irm no vai
fcar em segurana.
Os dois trocavam meias certezas com peculiar fatalismo. Kerinu estava
irredutvel, e Lamar rendia-se de corao ao alto quelas palavras. Lembrou-
se de tantos momentos ao mesmo tempo que soluou, os olhos enchendo-se
de lgrimas numa pancada s. Kerinu fechou os olhos, irritado coma reao.
Eu. . . Eu juro, Kerinu, eu. . .
No jure, Lamar. S faa. . . Respondeu Kerinu, voltando a se sentar
no canto. Virou a cabea e fechou os olhos, ignorando os outros sons na sala.
O sol j no estava mais to baixo no horizonte de folhas quando os dois
acordaram.
Nenhumdeles descansou o bastante. Lamar esfregava os olhos enquanto
Kerinu j enchia uma tigela com cereais frios. Sentavam no cho, meio
distantes, meio prximos. A luz amarela entrava no quarto atravs de raios
irregularmente distribudos; a rvore ao centro do cmodo fazia dos feixes
verdadeiras espadas de fogo.
Kerinu comeu comvelocidade, e Lamar apressou-se para acompanh-lo.
No se olharam ou se falaram; os sons da foresta lhes fzeram companhia
por um tempo que esticava-se, modorrento. Depois que percebeu, com o
canto do olho, que Lamar acabara, Kerinu foi at ele para recolher os reci-
pientes. Logo voltou, sentando-se ao lado do aprendiz.
Vamos l. Murmurou com objetividade Kerinu.
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Voiui l
Lamar sentiu o cauteloso toque do alorfo em seu ombro e fechou os
olhos, sentindo arrepios que ele j no mais sabia de onde vinham. J estava
quase indiferente a eles, de qualquer forma. Respirou fundo e deixou os
ombros carem, tentando relaxar o quanto pudesse, preocupando-se pouco
com o prprio corpo.
Deixou de ver a negritude dos olhos fechados e passou a enxergar a
cor de sangue, viva e quente. A mesma presso nos ouvidos do outro dia
selou sua audio, e ele a sentiu em seu corpo todo, horrivelmente forte,
como se fosse puxado por cinquenta correntes. Lamar sentia sua pele sendo
tragada cada vez mais para o fundo. Sua garganta se fechava, e algum
parecia apertar algo em seu nariz e seus olhos. Tentou apert-los; acabou
respirando mais fundo e ouvindo de algum lugar acima de si uma cristalina
mensagem de esperana. Precisava deixar acontecer.
Kerinu observava com preocupao a respirao apavorada de Lamar,
que vergara-se para trs como se esperasse eternamente por um espirro.
Uma mo espalmou-se contra o cho em uma contrao sbita.
Sua cabea foi atravessada por uma dor lancinante, como se as correntes
que o puxavamse concentrassemali empressionar sua cabea; emapert-
la, pux-la, tortur-la. Depois que a dor passou, era como se estivesse dentro
de umcorpo novamente. Umcorpo que parecia muito o seu. Estvel e slido
como o seu, e no etreo como o que quer que tinha sido at ento.
Quando abriu os olhos, sentiu-os queimando imediatamente. A verme-
lhido intensifcara, escurecendo, e era tudo o que ele via; ao abrir a boca
para expressar sua dor comeou a sufocar com uma nsia de vmito que
nunca se realizava. Ele dizia a si mesmo que devia deixar acontecer, mas
nada acontecia. Nem as lgrimas ele sentia mais.
Agarrou o pulso de Kerinu, mesmo sem saber. Abriu bem os olhos e,
arrastando a garganta para formar um arranhado sussurro, clamou:
A. . . Ajuda. . .
Kerinu engasgou.
Em dois segundos j estava atravessando o corredor estreito de gram-
neas que separava os dois castelos. Explodiu o porto do muro decadente
de Lamar, e fez o mesmo com facilidade na porta, mesmo sem ser preciso;
estava entreaberta, e com um estrondo abriu caminho, irrelevante.
ONDE? ONDE, LAMAR? Berrava Kerinu para um corpo que j no
respondia com palavras.
Kerinu examinou o saguo de entrada e estava tudo no seu lugar, como
ele se recordava de ter visto h apenas algumas horas. O salo era cinzento
e pequeno o castelo de Lamar em geral no era espaoso. As colunas
eram as nicas coisas limpas em meio a um caos de poeira e abandono, e
no canto direito havia um amontoado gigantesco de terra contra a parede.
Kerinu estava prestes a comear a procurar por Lamar em uma das salas do
410
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primeiro andar quando um pouco da terra caiu, rolando at o cho a partir
de um tremor em toda a estrutura da pirmide de gleba.
Kerinu olhou de novo, incrdulo. Mexeu-se, enfm, passando rapida-
mente a cavar a terra. Achou um indcio de tecido; passou a cavar ainda
mais rpido, achando enfm o rosto de Lamar.
Kerinu sentiu algo estranho e voltou casa na rvore. Percebeu que
acompanhava Lamar, que se levantara e agora cambaleava no mesmo lugar.
Lamar comeou a libertar-se da terra e de razes persistentes, fazendo
fora para sair de dentro da terra. Kerinu comeou a ajudar enquanto, de
volta casa na rvore, viu que Lamar comeava a empurr-lo para fora da
sala.
Lamar! Lamar!
Kerinu tentava resistir, mas dividia sua ateno entre o corpo e o iaumo
de Lamar, que tossia e esfregava freneticamente os olhos.
Calma. . . Lamar, CAL. . .
No chegou a terminar. Lamar o fez atravessar os dois cmodos. Che-
garam at uma rea completamente aberta; uma espcie de varanda sem
apoios, usada como via de acesso atravs de um pequeno elevador lateral.
Lamar, completamente alheio, s parou quando perdeu contato comKerinu,
que caiu.
LAMAAAAAAR!
Kerinu berrou de dor quando conseguiu agarrar algumas tbuas sobres-
salentes, fcando suspenso pelas mos. Os galhos embaixo eramfnos e raros
demais para salv-lo de uma queda brusca.
LAMAR, VOL. . . LAMAAAAR. . .
Lamar andava de um lado para o outro, absolutamente tonto e com os
olhos marejados. Tudo o que via era formas e cores que no faziam sentido.
Lamar. . . Ofegou Kerinu, com o corpo perpassado por calafrios.
Perdo. . .
Ergueu a palma da mo direita, projetando uma corda negra que voou
em direo ao pescoo do mago aturdido.
Kerinu continuava pendurado na sacada, suportando a dor nas mos e
nos braos; j no balanava mais, mas no sabia quanto tempo conseguiria
aguentar.
A corda girou o iaumo de Lamar e o levou em direo parede, trans-
formando-se logo em uma massa que o cobriu por inteiro.
Lamar parou de zanzar sem rumo no primeiro cmodo da casa drvore
e, recuperando o tino, correu at a varanda. Desprovido de expresses ou
palavras, comeou a puxar Kerinu de volta pelos pulsos. Ele no era muito
forte, mas Kerinu o obrigou a dispor de toda sua fora.
Depois de um momento de adrenalina, estavam ambos com todos os
braos e pernas seguros, descansando ao lu. Kerinu dissipou a corda que
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Voiui l
prendia Lamar parede do prprio castelo e saiu dali, deixando de prestar
ateno a Neborum completamente. Deixou que a bochecha fcasse encos-
tada na fria e mida madeira do cho e fechou os olhos. Sentia a prpria
respirao em unssono com a de Lamar, que simplesmente olhava para o
cu.
Kerinu. . . Disse ele, voltando-se para o lado. Kerinu, eu voltei. . .
Est tudo bem?
O que foi, Lamar? Indagou ele, sem abrir os olhos.
Eu te. . . Eu te levo para dentro. . .
Lamar observou o corpo, olhando para os membros com indecisa von-
tade de agir. No sabia qual era a melhor forma de carreg-lo, mas preferiu
tentar levant-lo pelos braos. No conseguiu nada alm de pux-lo um
pouco, o que foi o sufciente para incentiv-lo a se mexer. Kerinu levantou-
se sozinho e, com Lamar o acompanhando, sentou-se no cho da sala com
um tom semimelanclico no rosto exausto.
O que aconteceu no meu castelo, Kerinu? Eu vi que eu sa de dentro
de. . . Alguma coisa.
Eu no. . . Consigo imaginar o que voc sentiu ou viu, Lamar, eu. . .
No imagino.
Kerinu balanou a cabea antes de continuar, ainda se recompondo.
Voc estava debaixo de um monte de terra. Sua alma. Um monte de
terra. Por isso foi tudo to. . . Ou mais. . . Difcil para voc.
Um monte de terra? Dentro do castelo?
Kerinu confrmou com a cabea.
No sei como, mas voc estava l. Soterrado.
Lamar franziu o cenho enquanto olhava para os prprios ps. No pres-
tava ateno aos pelos que cresciam, desgovernados, ou s unhas comple-
tamente rosadas.
Foi Tornero.
O qu?
Foi Tornero, ele. . . Na minha segunda aula em Prima-u-jir ele me
visitou, e. . . Foi aula e me atacou para que eu no notasse quem ele era e
depois veio pedir que eu parasse.
Que parasse de dar aulas?
Sim, e-ele contou que me atacou e atacou os meus alunos, e. . . Eu
lembro que ele disse que me soterrou. . . No meu prprio castelo.
Kerinu inspirou lentamente, deixando as plpebras carem sobre os
olhos.
Eu fui atacado depois disso. Continuou Lamar, comprimindo a me-
mria. Mas foi tudo arranjado por ele. Devo ter sido deixado debaixo da
terra de novo. . .
Sim, voc estava debaixo da terra.
412
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Os dois ponderaram a situao por mais alguns momentos de paz aps
a guerra. Aquilo mudava tudo; Kerinu pensava em como pedir desculpas ao
amigo por ter sido to duro embora no duvidasse de que se no fosse por
isso talvez jamais chegassem quele ponto. Lamar parecia poder perceber o
vento passando por dentro dele, como se toda aquela terra na qual estivera
tivesse sido retirada, deixando-o oco.
Deixando-o fnalmente pronto.
Ainda no consigo ver direito em Neborum, Kerinu.
Confe em mim. Kerinu esboou um sorriso tremeluzente, ainda de
olhos fechados. Voc vai ver.
413
Captulo 57
Eleio
Os soldados foram organizados em flas, ainda que necessariamente tor-
tas, j que de outra maneira no desviariam das barracas. As linhas de ho-
mens e mulheres srios, comas mos para trs e a postura ereta, convergiam
para uma grande fogueira no meio do acampamento. O corpo de Dresden
queimava sobre toras de madeira, e uma negra fumaa subia aos cus, rpida
como neurtica fugitiva, juntando-se s nuvens amarelas que j populavam
o frmamento e empesteando o ar ao redor. Dezenove magos estavam de p
em frente ao corpo, comportados enquanto a silenciosa cerimnia prosse-
guia. O calor das altas labaredas, no entanto, no impedia as reunies que
aconteciam a cu aberto em Neborum.
As quase duas dezenas de castelos estavam dispostas em duas fleiras,
formando uma espcie de avenida. Para alm de bosques cheios de fores
esparsas e escurecidas fcavam os contornos difusos de centenas de outros
prdios, formando a silhueta de uma gigantesca cidade da qual os magos se
afastavam, preferindo aquele simulacro de uma pequena vila rural. Como
sinal de respeito, no falavam enquanto o corpo queimava, mas como prova
e requerimento de sincera abertura, conversavamentre si empequenos gru-
pos na terra em que no havia luto.
Precisamos nos coordenar Dizia Maya, em frente a seu castelo.
Onde est Elton?
Resolveu fcar no castelo. Respondeu Peri. Disse que no estava
se sentindo bem.
Ser que est envenenado tambm?
No, no assim que funciona, Sylvie. Disse Saana, olhando para
o cho. Quem morre por um minrio morre sem dor. Morre rpido. Sem
esperana de saber que precisa de uma cura.
No to ruim morrer assim, com calma. Opinou Peri.
E ela existe? Perguntou Sylvie. H uma cura?
Saana voltou a sentir o calor da fogueira por alguns momentos, incomo-
dada.
No.
415
Voiui l
O silncio caiu sobre eles, num desconforto que queriam evitar a qual-
quer custo. Tinham braos cruzados e olhares vazios, desviados, que vira-
ram-se ao mesmo tempo para a sombra que chegava rapidamente, transfor-
mando-se num segundo em Cssio.
Ol. Disse ele, no menos srio que os outros. Estou aqui para
tratar do nosso futuro.
O agora j no complicado o bastante? Perguntou Sylvie, levan-
tando as sobrancelhas.
Infelizmente. . . No. Respondeu Cssio, chamando a ateno dos
magos novamente. Vocs tm que me ouvir. . . Desmodes no minrio
que se esfregue.
Acha que no percebemos isso? Indagou Maya, olhando para os
companheiros.
Na verdade eu no percebi, no. Qual o problema com ele? Disse
Peri, frustrando a maga que contava com o consenso.
Ele veio me procurar, faz uns dias j. Contou Cssio. Disse que
tinha um plano que ele ia apresentar a Dresden. Um plano para que ns nos
declarssemos a Heelum, exigindo a obedincia delas.
Por que ele faria isso? Questionou Eiji, fazendo a cabea tremer em
um balanar de confuso.
Isto estupidez, me perdoem, mas. . . Isso nos destruiria. Disse
Peri, pondo a mo no pescoo.
Ele no acha. Olhem. . .
Cssio fez umsinal para trs coma cabea e abriu umpouco de caminho.
Os seis magos passaram a observar um grupo em frente a um castelo inten-
samente decorado com minrios de luz vermelhos. Era o castelo de Valeri.
Alm dela estavam l Duglas, Janar, Kevin, Souta e Brunno; dispunham-se
como numa mesa retangular, e em uma das pontas estava Desmodes, que
falava com sua calma assertividade usual.
Com aquele tom de voz. . . Comentou Saana, atraindo olhares in-
quisidores.
Ele um esplico, ento no temos que nos preocupar com ele al-
terando nosso julgamento. Disse Cssio. Precisamos votar em uma
pessoa s. Nos concentrar e mostrar para os outros uma opo vivel.
E quem seria essa opo vivel? Perguntou Maya.
Bem. . . Eu gostaria de s-la.
Todos passaram se concentrar em Cssio, que devolveu gentilmente
cada um dos olhares que buscavam vislumbrar nele um lder, como se per-
guntassem honestamente e sem ofensas se aquela imagem era factvel. An-
tes que algum deles dissesse algo, Cssio abriu a boca, puxando ar para o
que viria a seguir.
Eu sei. . . Sei que repentino. Mas isto tudo repentino, no ?
416
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Cssio, no se faa de heri. . . Disse Maya, entortando o olhar.
Alguns seguiram seu exemplo, enfm expressando a desconfana que por
educao preferiram guardar. Se formos lutar contra algum, pode ser
qualquer um de ns. Mostre-nos o que voc quer fazer.
Cssio segurou uma mo com a outra, mexendo as bochechas enquanto
pensava. Sentia a presso de sessenta dedos sobre seu peito e doze olhares
sobre seu rosto, todos prestes a julg-lo por suas ideias.
Bem, eu. . . Aumentarei a representatividade de cada cidade.
Maya estreitou os olhos. Eiji soltou uma risada que beirou perigosa-
mente o sarcasmo, certamente adentrando o terreno da descrena.
Est dizendo que vai trazer quantos magos para c por cidade?
Cssio abriu as mos para o alto, sinalizando indeterminao.
Vamos discutir, meus caros. . . Quantos vocs querem?
No temos estrutura para isso. . . Comentou Peri, preocupado.
Sempre podemos reformar o prdio, no ? Sugeriu Cssio. Olhou
para Desmodes por um instante. No como se fssemos us-lo como
quartel general ou coisa parecida. . .
Na outra ponta do conjunto de prdios fcava um terceiro grupo de ma-
gos; reuniam-se em frente ao castelo de Anke, em que cada uma das torres
parecia brigar com as outras por supremacia.
Nunca gostei dessas reunies em dias solenes. Disse Ramos, cami-
nhando at o crculo e assumindo um lugar entre Lucy e Igor. Sempre
achei um desrespeito, mesmo que os outros no vejam.
Acredite, Ramos, isto importante. Ressaltou Anke, persuasiva.
Olhou para Sandra, que se mostrava desanimada ao dirigir os olhos de brasa
para o cho, pondo as mos nos bolsos externos da longa capa alaranjada
que vestia.
Isto sobre as eleies? Perguntou Igor.
No. . . No totalmente. Eu quero lhes dizer que eu tenho um conhe-
cimento que pertence aos alorfos e aos flinorfos.
Sandra pareceu fcar imediatamente mais inquieta; Ramos, Lucy e Igor
franziram seus cenhos de maneiras particulares, cada um deles ao mesmo
tempo maravilhado e estupefato por aquilo.
C-como voc. . .
Isto no importante. Interrompeu Anke. O que relevante
que eu consigo deixar os castelos de vocs invisveis.
E voc quer fazer isso? Perguntou Lucy, olhando para as redondezas
primeiro.
Eu acredito que consigo expor o assassino de Dresden.
417
Voiui l
Igor estancou seu olhar, no sabendo se deveria confar na maga. O que
ela propunha era difcil de acreditar para Ramos tambm, que no conseguia
encontrar uma posio confortvel para as pernas enquanto permanecia
parado de p. Sandra estava to atnita quanto Lucy, que aproximou-se
de Anke ao invadir o centro do crculo, fechando a mo ao redor do pulso
da preculga.
Voc tem certeza? Perguntou ela.
No. Estou sendo sincera. Sublinhou ela ao ver os rostos de meia de-
cepo. Mas no posso faz-lo falar se ele souber que est sendo vigiado.
Preciso escond-los.
Quando quer fazer isso? Indagou Sandra.
Daqui a pouco.
Acho que sei de quem estamos falando. . . Disse Ramos, num tom
de monlogo interno. Igor concordou com a cabea e olhou para Anke,
confrmando o plano. Depois foi a vez de as magas direita, com a mesma
ausncia de palavras, dizerem sim.
A cerimnia h muito j acabara, e a tarde caa com peso. A eleio fora
marcada para a noite, e Desmodes se preparava com cuidados que beiravam
o ritual. Ps a capa azul escura, a pea de roupa que faltava, e comeava a
aboto-la em frente ao espelho quando Anke bateu porta.
Entre.
A maga esgueirou-se pela porta, fechando-a de novo em seguida. Vestia
uma bela capa azul curta por sobre calas negras, chamando a ateno do
esplico quando colocou-se em um ngulo em que podia ser vista.
Voc est usando azul.
. Disse ela, com um suave dar de ombros. Eu no me importo
com as cores, na verdade.
Desmodes terminou e, considerando-se perfeitamente pronto para aque-
la noite, virou-se para a visitante.
O que veio fazer aqui?
Vim fazer uma pergunta.
O que quer?
Por que voc matou Dresden?
Desmodes continuou olhando para ela, impassvel, deixando o silncio
ditar a inao.
Por que acredita que eu o matei?
Eu sei, Desmodes. No minta. O que pretende?
O que voc sabe eu tambm sei.
418
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Um barulho esquerda chamou a ateno da maga, que viu a porta se
abrir. Ramos, Igor, Lucy e Sandra entravam na sala, enfleirados, sem qual-
quer expresso facial que denotasse medo ou pavor.
Anke viu, ao visitar Neborum, os castelos dos magos controlados apa-
recerem, um a um, como se um lenol invisvel estivesse sendo puxado pelo
ar, misturando-se ao belicoso cu arroxeado.
Ento voc acha que preo para mim. Disse Desmodes, come-
ando a andar em direo aos magos, que se encostaram parede em frente
cama.
Desmodes, eu no sou. . . Anke tentou correr em direo aos caste-
los, mas tudo o que viu foi uma grossa escurido, impedindo-a de se mover.
Eu no. . .
Ele a impedia de falar. Anke sentiu um calor de revolta subir a garganta,
uma coceira impertinente, mas no conseguia transformar aquilo em coisa
alguma. Desmodes dava passos lentos comas mos para trs. Parou quando
chegou a Ramos, que olhava para frente sem parecer sentir coisa alguma.
Voc pode se juntar a mim, Anke. Me ajudar a construir esta Heelum
que ns sabemos ser a certa. A Heelum que ns merecemos.
Anke no estava mais nervosa, nem mais sob o efeito da proibio de
Desmodes. Sentindo que podia falar, recuperara a postura, tentando no se
deixar abalar por ter sido desmascarada.
Eu ainda penso que isto loucura, mas. . . Posso colaborar com voc.
Desmodes comeou a fazer o caminho inverso. Comeou a sorrir quan-
do chegou perto de Anke o sufciente para encostar emseu ombro. Ela virou
o rosto, apreensiva com o toque mecnico e sem vida, e quis que aquele
pesadelo terminasse.
Como voc consegue controlar. . . Cinco magos. . . Como ns?
O sorriso de Desmodes transformou-se em uma expresso sonora de
arrogante superioridade. Quando ele se virou para a porta a impacincia e a
tranquilidade tomaramconta de Anke; umde cada vez, dividindo o segundo
em que a paz perturbada durou. Num movimento rspido e seco, Desmodes
estapeou o rosto da maga.
Anke caiu na cama; no gritou, mas ouviu algum grunhir, a solidarie-
dade escapando ao domnio de Desmodes por outro segundo de liberdade.
A bochecha ardia quando ela fxou-se de novo ao cho.
Mentirosa. Disse Desmodes, olhando para ela com um dio cheio
de profundas razes. Voc no ter opes. No vou confar em voc. Em
nenhum de vocs. Completou, voltando-se para os outros. J est na
hora.
Desmodes saiu do quarto em um passo apressado, e logo Anke comeou
a andar com as pernas que no mais obedeciam ao seu desejo de fcar.
419
Voiui l
Amaioria dos magos j estava emseus lugares na sala de reunies. Joga-
vamconversa fora: estavampreocupados coma alarmante proximidade dos
seis magos que ainda no estavam ali. Cssio, em especial, visitou Saana em
Neborum, que andava nervosamente no saguo de seu castelo. Perguntou
se ela havia conversado com algum deles a respeito da eleio. Ela negou,
tambm consternada. A espera continuou.
Os castelos comearam a se mover instantes depois . Desmodes chegou,
sentando-se em seu lugar sem maior alarde. Logo depois veio Anke, e ento
todos os outros em um compacto grupo.
Vamos, Ramos. D incio cerimnia. Disse Elton, com uma voz
de quase monotonia.
Ramos olhou para a mesa, parecendo desorientado. To srio e compe-
netrado quanto os outros que chegaram, espalhou pela mesa, com a hesita-
o, a insegurana da solenidade. Sentou-se no lugar de Dresden e, entre-
laando os dedos das mos por sobre a mesa, olhou para o centro da longa
tbua.
Iniciemos a eleio. Quem deseja se candidatar?
Alguns segundos de silncio contiveram o olhar que Cssio lanou a
Desmodes, desafador e imerso em despeito.
Eu, Ramos. Disse ele, bradando as palavras. E acredito que Des-
modes tambm.
Voc est certo, Cssio.
O que aconteceu com o seu plano de fazer uma proposta a Dresden?
Perguntou Cssio, pendendo a cabea para um lado ao fngir curiosidade.
Com todo o discurso de que mat-lo no seria til para voc?
Dresden ter morrido foi uma fatalidade. Respondeu Brunno, sen-
tado diagonal do primeiro candidato. Mas ns no precisamos que outra
pessoa implemente uma boa ideia para Heelum. Desmodes pode fazer isso.
Cssio balanou a cabea afrmativamente, voltando a olhar para o opo-
nente.
J vejo que fez boas alianas.
Chega, Cssio. Alertou Ramos. Na condio de membro mais
antigo e de maior idade, presidirei a eleio. Saana. . . Seu voto.
Cssio. Disse ela, sem pestanejar.
Muito bem. Confrmou Ramos, com a voz distante e cansada. Anke
mordiscava a prpria boca ao olhar para Desmodes. Duglas.
Desmodes. Disse ele, sorrindo para a outra ponta da mesa.
Igor.
Desmodes. Respondeu ele, to desapaixonadamente quanto Saana.
420
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Cssio esfregava os prprios joelhos por debaixo da mesa, respirando
pesadamente.
Souta. Conclamou Ramos.
Desmodes.
Eiji.
Cssio.
Ocandidato bomin comemorou comuma inspirao tranquila e umsor-
riso confante, que Eiji devolveu de forma mais singela.
Brunno.
Desmodes.
claro. . . Cssio ironizou, em voz baixa.
Lucy.
Desmodes.
Quando Ramos chegou prpria cadeira, que estava vazia, fxou toda
a raiva, angstia e promessa de vingana que poderia fazer em Desmodes,
pela primeira vez tirando o foco da mesa. Momentos depois engoliu emseco
e, voltando a olhar para frente, simplesmente ditou o nome de Desmodes.
Janar. Prosseguiu ele.
Desmodes.
Desmodes.
Voto em mim.
Cssio via-se em uma situao difcil. Com nove votos a favor do adver-
srio e apenas dezenove votantes, precisava que todos votassem a seu favor.
Naquele momento, sentia que seu estmago dava voltas afitivas em torno
da perspectiva de que teria Desmodes como mago-rei.
Maya.
Cssio.
Anke.
Anke levantou os punhos cerrados mas no os bateu na mesa como dera
a entender. Cssio fechou os olhos, pensando que aquela certamente no
estava sendo uma votao justa.
Eu. . . Depois de um balanar de cabea e um acalmar de mos,
olhou para o nada sua frente e votou. Desmodes.
Sylvie.
Cssio.
Elton.
Desmodes.
Peri.
Cssio. Disse ele, abrindo as mos. Via que alguns magos, de
Brunno a Janar, passando por Duglas e Souta, sorriam, regozijando-se com
o resultado e congratulando-se da maneira mais discreta que podiam.
Kevin.
421
Voiui l
Desmodes.
Cssio.
Em mim. . .
Sandra.
Desmodes.
Valeri.
Desmodes.
A partir da ltima resposta Cssio expirou, irritado. No ousava olhar
para Desmodes, mas no podia evitar os olhares vitoriosos de metade dos
magos daquela mesa. Tinha a forte impresso de que nada ali havia sido
justo ou positivo, e que aquela escolha lhe custaria caro que custaria caro,
na verdade, a todos eles.
Robin no se juntou a ns nesta reunio. Anunciou Ramos, fna-
lizando a votao. Como ela estava marcada, de qualquer maneira, ele
perde o direito ao voto. Desmodes. . . Ramos titubeou antes de terminar
a frase. . . . Voc o novo mago-rei do Conselho dos Magos.
422
Captulo 58
O contrato
O tempo passava a machadadas no escritrio ao mesmo tempo inte-
ressante e falecido. Sobre as paredes de um vermelho hipnotizante fca-
vam, pendurados em molduras escuras, documentos que descreviam sucin-
tamente bandas que j passaram pelas mos de Seimor. Serviam muito mais
como borda para as assinaturas dos msicos em peas que deveriam orgu-
lhar, mas conseguiam apenas assombrar de um jeito bastante peculiar.
Leila olhava para a frente, sria, enquanto esfregava a concavidade do
brao esquerdo com a mo direita. Leo piscava, quase no ritmo dos segun-
dos, pensando comdesiluso no que acontecera na outra noite. Fjor cruzava
os braos, isolado, largado, mal-dormido; Beneditt o acompanhava com mi-
santrpico estilo, ranoso do mais prontifcado sarcasmo.
Seimor entrou na sala, provocando uma srie de pequenas comoes.
Olhou criticamente para os artistas enquanto passava ao largo deles. Sen-
tou-se, enfm, na poltrona confortvel por detrs da mesa na qual to dis-
plicentemente Leila prestava ateno. Uma vez em repouso, Seimor no
ocultou que pretendia transformar seu olhar em instrumento de dor.
Eu entendo que temos uma briga aqui dentro.
O agente procurou por confrmao, mas ela no surgiu nos longos se-
gundos que se seguiram.
O que est acontecendo? Insistiu ele.
Brigamos sim. Foi s isso. Respondeu Fjor.
Seimor, que vestia uma espcie de capa marrommal cortada, ps os coto-
velos em cima da mesa, afastando um bloco de goma escura bom de apertar.
Assumiu uma posio pensativa, quase to distante quanto os msicos o
que os trouxe mais para perto.
Ns no espervamos por isso. Disse Beneditt.
Seimor concordou, torcendo os lbios.
Vocs vo melhorar.
Melhorar como? Perguntou Fjor, arrumando-se na cadeira. Cru-
zou as pernas e, jogando-se para trs, sentia-se de alguma forma em um
momento privilegiado. O que voc vai fazer com a gente?
Seimor lanou um olhar duro ao baixista.
423
Voiui l
Vocs treinaro mais. Vou fazer mais ajustes em vocs.
Eu no quero nada disso, sabe.
mesmo? Quer sair por a, danar? Se divertir?
No. . . Respondeu ele, irritado. A pergunta atrara olhares tortos.
Eu quero voltar a ser da banda Buscando. Quero voltar a fazer o rock pelo
qual ns ramos respeitados.
Voc assinou um contrato, Fjor. Alertou Seimor.
Eu no assinei. Leo assinou.
Em nome de vocs, e portanto voc tente nos abandonar e veja o que
acontece!
O que acontece? Perguntou Beneditt.
Leila engoliu em seco. Leo girava o pescoo com frequncia, acompa-
nhando o debate. A conversa fcou suspensa pela pergunta de Beneditt;
Seimor s se pronunciou depois de um tempo que serviu para acalmar os
nimos de todos.
Era como se inalassem camomila.
Vocs. . . A banda Ponte Alta. . . No podem. . . Abandonar a banda.
A cidade. A vida que escolheram.
Beneditt ia a seu modo compreendendo, juntando pedaos que se en-
caixavam bem uns nos outros. Sentiu uma lufada inesperada de gratido.
Acompanhava bem a passividade em que mergulhava.
Franziu o cenho ao pensar naquilo. Por que deveria se sentir daquele
jeito, se tudo estava dando errado? Os planos, a realidade; no sobrava nem
um nem outro. A ideia de que tudo estava sob controle era falsa, e falso era
tambm o sentimento que Seimor queria transmitir com atitudes medidas
e palavras brandas. No estava tudo sob controle. Estava tudo caindo aos
pedaos.
Estranhamente, um olhar em volta revelou cabeas balanantes, confor-
madas com a aparncia das coisas e com uma morna certeza de justia. Em
algum lugar no futuro.
Agora. . . Quanto apresentao. Vamos ter mais uma.
Onde? Perguntou Leo, parecendo mais animado.
Em um lugar em uma jir no sul. Temos que ensaiar mais, ento estou
pensando que vamos ensaiar todos os dias, e. . .
Seimor, por que. . . Disse Fjor, inclinando-se para a frente. . . .
Voc no desiste de ns de uma vez?
Leo e Leila se olharam, neutros, enquanto Seimor tentava entender a
pergunta.
Somos um fracasso. Argumentou Fjor, com simplicidade. Ns
no fazemos o que voc quer, resistimos ao que voc manda. No mais
fcil trabalhar com quem queira fazer isso?
E vocs no querem?
424
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Queremos, Seimor. . . Comeou a dizer Leo o mais rpido que pde.
No! Interrompeu Fjor, lutando para ser ouvido. Eu quero poder
viver de msica, mas da minha msica!
Ento voc acha Seimor teve que mostrar a palma da mo a Leo,
pedindo que parasse de tentar se explicar que nada que eu falo tem valor,
Fjor?
No, no . . . Isso. Fjor colocou a mo na cabea, sentindo-se preso
em um labirinto de palavras.
Olhe sua volta, Fjor. Recomendou Seimor. Beneditt pensou que
aquela era uma expresso retrica, mas mesmo assim olhou. Esta sala
est repleta de artistas que confaram em mim, e hoje esto muito bem.
Crescia dentro de Fjor uma raiva de si e de Seimor que s tinha por
par a quietude que sobre ele se abatia, abafando o fogo como se tentasse
sufocar um ser imortal; uma luta da qual este no podia fugir, mas aquele
no podia ganhar.
Se eu preferia trabalhar com algum menos arrogante que voc?
claro. Fjor teve sucesso em converter aguda irritao em sorriso culpado.
Mas vocs tm talento. Isso, acredite ou no. . . Seimor virou-se para
Leila, que desviou-se na direo de Leo. difcil de encontrar.
Era fmda apressada tarde quando Beneditt fnalmente achou o que pro-
curava. A casa de documentos no era muito distante do hotel, para onde
foram logo depois da reunio. Ainda assim foi preciso pedir por direes
para vrios comerciantes at encontrar o antigo prdio amarelo e laranja.
A porta estava aberta, mas as janelas estavam fechadas. Minrios ver-
des pendurados em pedestais prximos ao teto eram os responsveis por
complementar a luz que vinha do lado de fora, j no muito til perto do
balco. Por detrs dele duas mulheres trabalhavam, e uma delas ouvia o re-
querimento de um elegante homem negro, alto e de roupas azuis. Beneditt
abordou a outra mulher, que nada fazia; loira, de envidraados olhos azuis
e um sorriso prestativo.
Oi. Disse Beneditt.
Ol. Procura alguma coisa?
Sim. . . Na verdade, e-eu no sei se voc vai poder achar.
O que ?
um contrato.
De que tipo?
Um contrato musical. Um que os msicos assinam com um agente.
umcontrato de agenciamento. Explicou ela, balanando a cabea.
Se ele estiver em valncia, ele est aqui.
425
Voiui l
mesmo? Eu no sei como isso funciona. . .
assim: se est tudo assinado como deveria colocamos o contrato
aqui. Enquanto ele estiver aqui, ele vlido. Est em valncia, como se diz.
Se todos concordarem em acabar com ele, todos que assinaram tm que vir
aqui e ento ele destrudo. Ento se o seu contrato for vlido eu ainda vou
poder ach-lo.
Certo. . . Beneditt pensou em algo que pudesse identifc-lo. No
sabia como catalogavam os contratos. O que eu preciso te dizer para voc
ach-lo?
Nesse caso, o nome do agente. Respondeu ela, com o sorriso inf-
nito. E se ele tiver vrios contratos, o nome dos msicos.
O nome do agente Seimor. E eu no sei como est no nome dos
msicos.
Por qu? Perguntou ela, levantando-se da cadeira e girando o corpo
levemente para trs.
uma banda, mas quem assinou foi o vocalista, ou. . . Ex-vocalista,
ento. . .
Qual o nome dele?
Leo.
Leo. Volto j.
Ela passou por um batente sem porta a alguns ps de distncia do balco
e fez uma curva, embrenhando-se no que parecia ser uma das muitas salas
do lugar repletas de estantes nas quais papeis empilhavam-se, brotando e
ramifcando-se loucamente por sees, subsees e trechos que, ao crescer,
tornavam-se selvagens e ininteligveis.
Pensou, ao ver que alguns segundos depois ela voltava com um papel
na mo, que talvez as estantes fossem mais bem cuidadas.
Aqui est.
Obrigado. Disse Beneditt, pegando-o nas mos com um apreensivo
suspiro.
As folhas estavam unidas por um pregador metlico que o baterista ar-
rancou em primeiro lugar. Contou rapidamente os papeis, e observou que
havia mais folhas do que ele havia contado no dia em que vira o contrato.
Olhou para a atendente, que levantou as sobrancelhas.
Algum problema? Perguntou ela.
N-no. Disse ele, voltando a ateno para o papel.
Passou os olhos por cima do texto. A primeira pgina era bastante si-
milar quilo que ele se lembrava de ter lido. A segunda tambm lembrava
a primeira com bastante acuidade, mas a terceira fez da pulsao do msico
um instrumento audvel.
Em letras normais, misturadas entre os pargrafos normativos de praxe,
estavam linhas que Beneditt jamais havia lido:
426
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Os sicos NXo voui si sivvv u nNu.
Os sicos NXo 1 vivv iiNi N1o \ vvouuXo
usici.
O ciN1i 1i o uivii1o ui iN1iviiviv N vvouuXo usi
ci uos sicos.
Voc est bem? Perguntou a mulher, preocupada.
Como Beneditt no respondia, ela com um olhar discreto chamou a ou-
tra, mais velha e menos sorridente, que pediu licena a uma mulher que
estava prestes a atender.
Qual o problema, senhor? Perguntou ela.
N-nenhum, eu s. . . Beneditt no conseguiu terminar de respon-
der. Foi imediatamente at a ltima pgina para verifcar a assinatura, e l
estavam as duas: a de Seimor e a de Leo, lado a lado como ele se lembrava
de t-las visto.
O que foi? H algo errado neste documento, senhor?
No. Respondeu ele, veemente. Eu s estou. . . Olhando.
. . . C-creio que o senhor j achou o que procurava, no mesmo?
Sugeriu a primeira mulher, amedrontada.
No, espera. . .
Beneditt voltou a folhear o contrato, procurando por outras diferenas.
Na oitava pgina, a penltima, encontrou outras frases que no lhe eram
familiares. Duas gritaram por sua ateno, fazendo com que seus ouvidos
doessem em uma sintonia que logo o atingiria por inteiro, tirando-lhe as
palavras para reagir s mulheres. O documento foi preso e, depois de um
olhar protetor da funcionria loira, levado novamente para os escombros
em que se escondera a liberdade da banda Buscando. Onde a prpria banda
se enterrara, deixando de existir para dar vida Ponte Alta.
Enquanto a mulher mais velha pedia para que Beneditt se afastasse com
um olhar acuado e uma grande palma da mo aberta, o artista s conseguia
pensar nas duas frases que lera. Lera e fcaram gravadas em sua mente
como smbolos e cones; ele no conseguira sequer ler as determinaes
legais para si mesmo, imaginando o vulgar vozerio de Seimor reprimindo-o
com elas.
Saiu da casa sentindo que estava no pior lugar para se estar. O som aos
poucos lhe voltava, e ento tudo fez sentido. Dos narizes dos guardas ao
fedor rido das charretes, passando pelas roupas das mulheres aos olhares
dos homens, sem curvas nem sombras.
Estavam proibidos de lutar. Proibidos de reagir. Desrespeitar qualquer
clusula do contrato lhes levaria cadeia, mas Beneditt sentia que aquela
no era mais uma consequncia possvel: era uma realidade que ele sentia
427
Voiui l
na pele, no vento e na textura na textura vertical daquele balco onde o
som se perdera.
428
Captulo 59
A sala verde
Gustavo morava em uma regio ao norte de Al-u-ber. Era preciso atra-
vessar uma ponte de corvnia por sobre o Rio Trojinsel e continuar andando
por alguns minutos em uma rua parcialmente sustentada por grossas colu-
nas antigas. Abaixo da avenida elevada fcavam casas mais prximas mar-
gem do rio, que descia abruptamente naquele ponto ao fcar mais prximo
do mar revolto.
Amanda seguiu em frente, passando por restaurantes alojados em pr-
dios de arquitetura semelhante da ponte; blocos dourados constituam as
paredes e as colunas que, ao redor de todo um quarteiro, serviam como
passagens sem portas. Entrou em uma rua direita, logo depois de uma
praa pela qual algumas pessoas de idade passeavam, com os olhares ca-
dos e o andar precrio. Amanda no se demorou ao observ-los, mas o fez
por tempo sufciente para que um homem sem cabelo ou barba, com roupas
azuis por cima da fna pele, balanasse a cabea. Estava de braos abertos, os
cotovelos enganchados em um banco de tiras de madeira. A maga apertou
o passo.
Logo avistou a casa de Gustavo, uma residncia que, embora simples,
transbordava classe elegante at mesmo no modo como humilhava a vi-
zinhana comjanelas meticulosamente pintadas de umvivo vermelho e uma
bem arranjada alvenaria marrom.
Amanda abriu o porto de ferro, que deslizou suavemente pelas dobra-
dias negras. A frente da casa no era muito larga, e a proteo parecia
meramente decorativa; as barras eram espaadas e fnas, sem pontas no
topo que pudessem machucar um intruso. Ainda assim, havia um porto, e
Amanda sorriu levemente ao terminar a divagao fechando-o novamente.
Aproximou-se da porta. Era escura e escovada, levemente envernizada,
com uma maaneta cbica que fez Amanda levantar as sobrancelhas, im-
pressionada. O nico detalhe encravado na madeira com preciso e majes-
tade era um opaco minrio hexagonal smbolo da medicina. Aquele era
azul, e Amanda sabia o que ele fazia. Aproximou a mo dele, esperando
que o frio daquele quase fm de tarde de cu spia passasse, pelo menos em
uma parte do corpo. Nada aconteceu, e ela voltou a cruzar os braos ao se
429
Voiui l
lembrar de que o minrio precisava ser rachado.
Vasculhou a rea rapidamente, percebendo dois castelos ao todo: um
prximo ao dela, que parecia ser o que ela vagamente lembrava do castelo de
Gustavo. Outro, muito menor e mais longnquo, movia-se vagarosamente,
quase saindo de vista no horizonte alaranjado. Olhou em volta e no viu
coisa alguma se mexendo. Devia ser um transeunte; talvez at mesmo um
dos idosos da esquina passada.
Amanda sentiu-se um pouco nervosa ao pensar que poderia acabar en-
contrando o pai de Gustavo mais uma vez. Balanou a cabea, tentando
fazer cair a prpria agonia. No havia por que fcar nervosa, afnal. Gus-
tavo apareceu porta depois que Amanda se anunciou.
Oi. Disse ele, apertando os olhos. No esperava ver voc aqui.
E voc no viu meu castelo antes de abrir a porta? Perguntou ela,
sorrindo.
Bem, na verdade. . . Na verdade sim. Mesmo assim no esperava ver
seu castelo por detrs da porta.
, bem. . . Eu vim de surpresa.
Como sabe onde eu moro? Perguntou ele, em uma mistura de cu-
riosidade e desconfana. Perguntou ao seu pai?
, perguntei. Ela olhou para o lado de dentro, pensando que pro-
vavelmente admiraria mais o interior da casa do que o exterior. Contraiu
os lbios e olhou para o mago com outro sorriso melindroso. No vai me
convidar para entrar?
Ah. . . Claro. Entra.
Amanda viu-se dentro de um cmodo que combinava com artstica ma-
estria luz e escurido. A base de todas as paredes era coberta por tbuas
uniformes de madeira escura; na parte de cima um amarelo decidido era
adornado por pares de minrios verdes e beges que enchiam o teto com
uma dana esttica de paz. Havia uma lareira de corvnia que se destacava
de uma das paredes, sem fogo. De frente para ela fcava um sof da mesma
cor da madeira nas paredes, e um tapete vermelho e caramelo seco e raso,
mas cheio de motivos circulares e espirais.
Esta minha casa. Disse Gustavo. Eu gosto do teto.
Eu tambm. Respondeu Amanda, voltando-se para ele. O que
voc estava fazendo?
Ah. . . Lendo. Nada demais.
Eu atrapalhei voc? Perguntou ela, preocupada.
No, no, de modo algum. Respondeu ele, apressado. Sente-se,
por favor. ngela vai trazer gua para voc. . .
No, no preciso! Disse ela, rapidamente, enquanto encaminhava-
se ao sof. ngela . . . O outro castelo?
430
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Sim, se chamar aquilo de castelo. . . Disse ele, com um sorriso de
deboche que Amanda no conseguiu acompanhar. Ela trabalha para ns.
No estou com sede, Gustavo, no precisa tra. . .
Era tarde demais, denotava o sorriso do anftrio. Passos macios pelo
corredor denunciavam a presena da ngela, mulher magra cujo rosto de
olhos e lbios grandes empalideceu assim que viu Amanda.
A empregada estancou no limiar da sala, surpresa como se visse um
animal selvagem estirado no sof, morto e dissecado. Amanda fcou apenas
alguns segundos sem compreender que aquele profundo olhar castanho es-
tava espantado. Uma onda de vergonha varreu seu corpo dos ps cabea, e
ela se virou para a parede, analisando os minrios de luz com uma estranha
sensao no peito.
Amanda ouviu Gustavo respirar pesadamente. Virou-se e, passando reto
pelo olhar incmodo de ngela, viu que ele a encarava de modo parecido,
mas preenchido com uma espcie de indignada fria. A empregada enfm
despertou da prpria expresso, largou o copo no sof entre os dois e saiu
da sala num passo apurado. Amanda teve que segurar o copo negro para
que a gua no fosse derramada quando Gustavo levantou-se de supeto,
fazendo meno de ir atrs da empregada.
Gustavo! Chamou Amanda, fazendo-o parar e olhar para trs.
No tem problema, olha, eu. . .
Ela uma IDIOTA! Berrou ele, fora de si, passando a andar pela sala
a passos largos. IDIOTA se pensa que vai fcar assim!
Gustavo! Amanda levantou-se e ps o copo no console da lareira.
Puxou o preculgo pelo brao e segurou-o, forando-o a olhar em seus olhos.
Gustavo, deixa isso, no foi nada!
Amanda. . . Me desculpe. Disse ele, bufando para recuperar o equi-
lbrio. Me desculpe. . .
Tudo bem. . . Senta comigo no sof.
Ele aquiesceu com um balanar de cabea, apesar de olhares sugestivos
que ainda lanava em direo ao corredor.
Bem. . . Me desculpe mesmo, Amanda.
Tudo bem.
. . . Ahm. . . J est fcando tarde, e eu no ouvi barulho de yutsis.
Voc veio a p?
N-na verdade vim.
Por qu?
Porque. . . Ela parou, sem saber como dizer aos olhos prestativos
de Gustavo que por alguma razo precisava falar com ele sem que seu pai
fcasse sabendo. Sem que ningum fcasse sabendo. Eu no sei.
Voc est bem? sobre aquele dia em que voc estava mal?
431
Voiui l
Sim, eu. . . Quer dizer, no. . . Tem algo que eu preciso pedir para
voc.
O que ?
Amanda ajeitou-se no sof. Queria poder bebericar um pouco da gua,
mas no quis levantar-se e ir at a lareira.
Eu quero que entre no meu castelo.
Gustavo a olhou com surpresa similar de ngela, terminando a inspe-
o momentnea com uma risada seca.
Voc no est bem. . .
No, eu estou sim, que. . . Eu posso explicar.
Por favor, explique. Disse ele, angulando o rosto em desconfana.
que voc um mago mais experiente, e. . . Desde ontem eu me sinto
realmente estranha. Eu deixei que um outro mago me invadisse, e ele me
disse que no fez nada em mim, mas. . . Eu realmente me sinto estranha.
Tenho pensamentos que no tinha antes.
Que tipo de pensamentos?
Eu. . . No devo dizer. Disse ela, fechando os olhos enquanto Gus-
tavo comeava a balanar a cabea. Mas por favor, Gustavo, voc est
nisso h mais tempo que eu. No sei se eu poderia ver alguma coisa mesmo
que estivesse na frente do meu nariz. . .
Eles se olharam por mais um tempo, e ele agora balanava a cabea em
uma direo diferente.
verdade. No acho que conseguiria se tentasse.
Por qu? Perguntou Amanda, pega de surpresa.
Veja, Amanda, seu pai provavelmente no te disse. . . Ainda. . . Mas
ns no podemos fazer magia em ns mesmos.
Sim, foi uma das primeiras coisas que ele me disse, na verdade. . .
Sim, claro, claro, mas isso no tudo. Mesmo quando ns olha-
mos dentro do nosso castelo, ns no vemos as mesmas coisas que outras
pessoas.
C-como assim?
Voc pode ver uma coisa, e eu posso ver outra. Voc pode acabar
identifcando uma magia que eu no veria, mas eu tambm posso ver algo
que voc no veria.
Entendo. Confrmou Amanda, olhando para o tapete ao organizar
as ideias. Mas. . . Tudo bem. Eu ainda iria me sentir mais segura se voc
olhasse o meu castelo.
Amanda. . . Disse ele, com tom e olhar repressivos. Voc no pode
sair por a convidando magos para te invadir, o que aconteceu com voc?
Eu sei! Disse ela, engolindo em seco. Seu corao estava prestes
a pular da boca com aquele pensamento que no parava de lhe atravessar,
432
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
cortando a prpria liberdade pelos lbios. Eu convidei voc porque somos
amigos!
Ele recebeu as palavras com mudo e contundente abalo; pasmo que no
queria ser descoberto. Amanda sentiu fundo aqueles duros momentos em
que ele nada disse. Ainda assim, foi ele o primeiro a quebrar o prprio
silncio.
. . . Eu. . . Ah, tudo bem.
. . . Mesmo? Indagou ela, num quase sussurro.
Sim.
O subsequente sorriso de Gustavo causou um sorriso duas vezes maior
em Amanda, que inclinou-se para frente em rejubilante familiaridade.
Posso? Perguntou ele.
Claro. Vou abrir as. . . Portas.
Amanda. . . Disse ele, antes que ela comeasse a se concentrar.
Eu fco feliz de saber que ns somos amigos. Desculpe meu. . . Pequeno. . .
No tem problema. Respondeu ela, fechando os olhos e perdendo,
assim, um olhar contente do jovem mago.
Gustavo saiu de seu castelo, uma construo preta e de interior obscuro
cujos muros, de similar negrume, eram quase to altos quanto a prpria
torre principal, grosseiramente genrica e de sujas telhas vermelhas. Ves-
tindo uma sedosa roupa verde, passava por um bosque onde esparsas r-
vores o impediam de ver com clareza os contornos do castelo de ngela,
direita. Ao voltar-se para a esquerda, parou no meio do caminho ao ver um
outro castelo.
Amanda abriu os olhos ao sentir que Gustavo sara do sof, indo at a
janela que dava para a parte da frente de casa. Abriu as cortinas com violn-
cia, e do outro lado da rua viu um homem idoso de roupas azuis. Amanda,
esticando-se por curiosidade, percebeu que era o mesmo homem que ela
vira na praa.
Quem ele? Perguntou Amanda.
Ningum. Respondeu Gustavo, fechando as cortinas com outro
movimento descuidado.
Aquilo tinha que funcionar.
Assim que viu o preculgo fechar as cortinas, Tadeu correu para a frente
da casa. O senhor para o qual pediu ajuda continuava l, encostado ao muro
da casa frente como se esperasse por algum.
Muito obrigado, senhor. Disse Tadeu.
Espero que ajude, meu rapaz. Respondeu ele, com uma voz gentil
e rouca.
433
Voiui l
O homem comeou a se afastar, e Tadeu no parou de observ-lo at
se dar conta, pela centsima vez, do que estava fazendo. Tinha certeza de
que no podia abandonar a ideia, mas mesmo assim aquela era a coisa mais
difcil que j fzera.
Ps um p em frente ao outro, quase esquecendo-se de como andar. J
era difcil o sufciente, afnal, controlar aquele batimento cardaco.
Encostou-se com peso murada acinzentada do vizinho da esquerda,
longe do olhar da janela. Passou por um calafrio que o levou a uma terra
ainda mais congelante do que a Heelum daquele quase fm de inasi-u-sana;
via-se j fora do prprio castelo, escorado atrs de uma rvore retorcida.
No perdeu tempo; calculando o cenrio, correu por entre as plantas e
chegou porta do castelo que sabia no ser o de Amanda. Sem olhar para
trs, viu que precisaria de muita fora para derrubar a porta de mais de treze
ps de altura.
Olhou para a prpria mo. Sabia que o calor que sentia vinha da pr-
pria determinao, mas por um segundo conspiratrio pensou estar sendo
observado; olhou para trs, procurando nos agora mais esparsos carvalhos
sinal de outro mago. Nada viu, e assim que constatou-se sozinho observou
fragmentos do castelo de Amanda.
Concentrou-se no inimigo imediato. Sua mo logo incendiou-se, ar-
dendo como ferida cortante. A dor logo passou e a chama trmula cons-
truiu corpo, fcando cada vez maior e mais cheia. O bomin esticou o brao,
impedindo que o fogo chegasse ao rosto e ele diminuiu, acuado.
Tadeu suava demais; quis olhar para trs, mas concentrou-se na tarefa:
no podia deixar que o medo vencesse.
Logo o fogo chegou ao nvel que ele desejava. Estava pesado, difcil de
manter, mas ele estava dando tudo de si para gerar aquilo uma chance;
uma soluo acima de tudo. Por um momento achou que ia desmaiar, ou
pelo menos cair para trs, mas conseguiu se equilibrar compassos vacilantes
e, arcando o corpo para trs o quanto podia, jogou-se para frente, lanando
a labareda contra a muralha.
A porta recebeu o impacto com difculdade; as estruturas pareceram ba-
lanar e o fogo no se dissipou sem causar danos colaterais: pores cada
vez maiores do porto viravamlenha, crepitando emestalos de absoluta ren-
dio. Tadeu ria, neurtico, do espetculo. Enquanto esperava que alguma
brecha fosse aberta, olhou mais uma vez para trs.
Ningum.
Agora no havia mais volta.
Avanou sobre a porta, j completamente em chamas, e chutou algumas
largas tbuas. Abriu um buraco grande o sufciente para que ele se esguei-
rasse para dentro. No esperou para se localizar ou entender o lugar; viu
434
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
rvores em um pequeno bosque interno, e uma pobre porta entreaberta na
qual Tadeu esbarrou ao entrar na torre principal.
Subiu as primeiras escadas que encontrou, que eram curtas e sem corri-
mos. Chegou ao terceiro e ltimo andar por instinto; suas pernas corriam
usando seu crebro para farejar o que procurava. Podia sentir a textura do
papel novo, bem organizado e dobrado, e das molduras com cheiro de ser-
ragem.
Estava em frente porta.
Tremeu para estender a mo at a maaneta redonda e envernizada.
Apertou-a com desproporcional fora e jogou a porta para frente, abrindo-a
com um empurro nervoso.
Paralisou de susto. O que deveria ser um grito abafado transformou-se
em uma respirao mal-sucedida, uma espcie de soluo incompleto.
Apertou os olhos, abrindo-os j no conforto do prprio castelo e, instan-
tes depois, na pujante escurido da noite iminente. Sabia o que tinha que
fazer.
Amanda e Gustavo caminhavam por um corredor no segundo andar de
um dos prdios que formavam o castelo de Amanda. Ele parou em frente a
uma porta clara, de maaneta e batente dourados, e ela o olhou com ldica
curiosidade.
Ns j no. . . Passamos por aqui?
Na verdade sim, mas eu ignorei esta porta. Respondeu Gustavo,
olhando para ela com particular interesse. Deixei por ltimo.
Que sala essa?
Qual sala ainda no visitamos?
Osorriso de Amanda foi lenta e gradualmente desaparecendo, e no lugar
dele surgiu uma desesperada, ainda que silenciosa, preocupao.
J que no achamos nada nos outros lugares, acho que se voc real-
mente se sente estranha. . .
. . . Gustavo. . . Disse ela, baixinho, tentando interromp-lo.
. . . Ento o que procura est aqui.
Gustavo, no entre.
Dividindo a ateno entre a porta fechada e Amanda, Gustavo reagiu ao
pedido com um sorriso machucado.
Achei que fssemos amigos.
E ns somos! Disse Amanda, chegando mais perto dele para agarrar
seus pulsos. Mas. . . Para sua prpria segurana, acredite em mim. . . No
entre. Voc no quer saber o que. . . Voc no quer entrar.
E voc? No quer?
435
Voiui l
Quero, mas. . . Nesse caso no posso envolver voc. No mais.
A boca aberta indicava que ele queria dizer algo a mais, mas ela fechou-
se instantes depois, aliviando-a imensamente. Os dois sorriram, constrangi-
dos, e Gustavo afastou-se da porta, olhando para uma janela que mostrava
interminveis campos gramados em um cu quase completamente escuro.
Gustavo, est fcando tarde. Eu preciso ir embora.
Tudo bem. Disse ele e, com um ltimo sorriso, sumiu do castelo.
Amanda suspirou uma ltima vez ainda, olhando de relance para a pr-
pria sala verde antes de tornar a prestar integral ateno na sala da casa de
Gustavo.
Bem. . . Disse ele num tom mais srio, j de p em frente lareira.
J est fcando escuro mesmo. Voc tem que ir.
Sim.
Ela se levantou e, aproximando-se do anftrio, no sabia o que deveria
fazer. No poderia abra-lo, embora certamente tinha vontade de faz-lo.
Queria pedir desculpas, mas no sabia se ele estava chateado. Como no
tinha nenhuma resposta quelas inquietaes, apenas parou em frente a
ele e, tentando ser clara quanto ao que sentia, seja com minsculos vincos
nas bochechas ou atravs da combinao entre posio das sobrancelhas e
brilho nos olhos, sorriu antes de dirigir-se porta.
Amanda. Chamou ele, antes que ela chegasse sada. Obrigado.
Me desculpe.
No tem problema. Respondeu ela. Obrigada.
Tenha cuidado.
Terei.
E, com o clique da porta e o baque do porto, voltou s ruas de Al-u-
ber, pensando que provavelmente chegaria atrasada para a aula com o pai.
Apressou o passo, perguntando-se por que fora at l em segredo. Respon-
deu a si mesma, com um calor simultaneamente reconfortante e amedron-
tador, que a resposta podia muito bem estar na prpria sala verde.
Chegou enfm mesma casa velha e deprimente em que estivera, para
vergonha da moradora, h apenas alguns dias. No fcava muito longe da
modesta manso de Gustavo, embora fosse necessrio atravessar o rio de
volta.
O bairro todo era feito de casas pouco caprichadas, mas aquela era di-
ferente: memorvel, mesmo em face de todos os problemas. Pequena e de
estrutura torta, contava com dezenas de rachaduras na alvenaria coberta
436
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
com uma forte tinta vermelha. As trincas tornavam-se ainda mais eviden-
tes e grossas luz de um minrio verde-escuro do lado de fora, esquerda
da porta de madeira mal trabalhada.
No foi preciso que Tadeu batesse nela. Enquanto pensava se deveria
realmente fazer aquilo, Anabel a abriu.
O que est fazendo aqui? Perguntou ela, irritadia.
Tadeu notou que ela vestia uma espcie de roupo felpudo esverdeado.
Rendia-se a uma noite em casa coisa que ele deveria estar fazendo ao ter
aulas de magia com o pai. J estava prestes a se atrasar. No se importava
mais.
Eu sei do Gustavo.
O rosto da maga tornou-se impassvel, e Tadeu sorriu com o susto que
conseguira aplicar, ainda que involuntariamente.
E-eu no sei de nenhum. . .
Eu vi os retratos, Anabel.
Ela continuava com uma das mos no batente da porta. Com o olhar
vago e levemente lacrimejado, recuou um pouco para dentro de casa.
Tadeu. . . Sussurrou ela, triste.
Voc no precisa se preocupar. Eu posso ajudar.
Aquelas palavras foram acordando-a como gua fria, com uma vivaci-
dade que fez Tadeu ter certeza de que haviam fnalmente entrado em sinto-
nia um com o outro.
Me ajudar?
Sim. Eu posso explicar tudo. Me deixa entrar!
Olhando furtivamente para a rua, Anabel puxou o visitante para dentro
de casa e trancou a porta.
Gustavo! Dizia Jorge, numa voz cheia de urgncia.
O flho irritava-se com a demanda, nervoso como j estava. Andava de
um lado para o outro no quarto de cortinas azul-claras fechadas, cheio de
compartimentos, gavetas e portas de armrios. Fizera algumas besteiras.
Brigar com ngela foi uma delas, certamente, e uma da qual poderia vir a
se arrepender. Mas confar em Amanda foi muito pior: deveria ter percebido
que s havia um segredo do qual ele no pudesse participar em segurana.
Uma porta que ele no pudesse abrir sem se arriscar.
Maldita.
Ainda no sabia, como se o resto no bastasse, como consertar a porta
do prprio castelo. Via apenas pedaos cinzas largados ao cho, franga-
lhos do que antes era um grande e resistente obstculo. Viu a porta resistir
a algumas tentativas de invaso durante sua vida. Nenhum deles veio de
437
Voiui l
algum realmente competente, mas aquele incndio deveria ter sido real-
mente grande.
Gustavo! Chamou o pai novamente.
Jorge bufou e, batendo a porta ao sair, deu passadas ruidosas pela escada
at o corredor, e ento virou direita. Chegou na sala, e viu uma cena
que denunciava o que estava para acontecer. O pai provavelmente passara
alguns minutos depois da chegada conversando com ngela que estava
de p ao lado dele, no sof, com rosto de quem foi ameaado e sofreu a
ameaa prometida. A mala que o pai carregava durante o dia inteiro ainda
estava no sof, jogada.
Ele nunca fazia aquilo.
Que foi?
Jorge levantou-se e aproximou-se do flho, silencioso. Arranjou o punho
da camisa que vestia; a capa j estava jogada no sof, ao lado da maleta.
Olhou para o rebento durante um segundo de terror e raiva, e esbofeteou-
lhe na bochecha esquerda instantes depois de Gustavo ter visto nos olhos
vidrados, cheios de pequenas veias ao longo do espao amarelado, o desejo
ardente de severamente punir.
Gustavo se desequilibrou, chocando-se com a madeira na parede. Seu
rosto ardia ao ponto de faz-lo gemer, e ele olhou com absoluta incompre-
enso para o pai.
Seu idiota. Disse o pai, impiedoso.
Pai. . . Disse Gustavo, conseguindo soltar-se da parede. Olhou para
ngela, que de cabea abaixa simplesmente permaneceu em seu lugar.
Sabe, flho. . . Comeou Jorge, voltando a se sentar. Gustavo no
sabia o que fazer ou pelo qu esperar; permaneceu de p, olhando para o
brao do pai. Se h uma coisa que eu sempre fz atacar meus emprega-
dos, ou quemquer que me servisse, para que eles acreditassemque me servir
bem traria recompensas. E funciona, Gustavo! No era sempre preciso dar
uma recompensa, mas eu era tratado da melhor das maneiras.
Pai, por. . .
Calado. Cortou Jorge. Agora, flho, eu no sou como a maio-
ria dos preculgos. Eles querem resultados rpidos. Mais efcientes. Mas,
engraado, flho, so os que deixam mais rastros, e, no fnal das contas,
o que gera uma srie de problemas, me entende? Ele falava cada vez
mais rpido, cortando fonema ou outro. Gustavo podia sentir seus pulmes
contraindo no ritmo das palavras, sabendo que o pai estava apenas se aque-
cendo. A maioria dos preculgos faz o empregado pensar que se no obe-
decer vai ser mandado embora.
Ela estava sendo impertinente com uma convidada! Disse Gustavo,
empurrando a frase por entre os dentes, incapaz de entender por que o pai
lhe batera em nome de uma mera serva.
438
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Que convidada, Gustavo? Anabel?
Gustavo engoliu em seco, esperando passar a tontura de entender o que
se passava. ngela levantou-se e, correndo tanto quanto podia, saiu da sala
em direo cozinha.
Pai. . .
No apenas descobri que meu flho um pssimo preculgo, mas atra-
vs de minha cara ngela levantou a mo para ela, com um sorriso
descobri tambm que voc anda compartilhando conhecimento com uma
bomin.
mais do que isso, pai, voc no entende. . .
No ENTENDO? Descontrolou-se ele, levantando-se lentamente,
numritmo diferente do tomde voz brbaro. NOENTENDO, GUSTAVO?
NO, NO ENTENDE!
Vamos VER se no entendo, Gustavo!
Jorge foi at o flho como uma charrete com a inteno de atropelar e
agarrou-o pela camisa. Jogou-o contra a parede, apertando a palma da mo
aberta contra seu peito. Gustava ofegava, confuso; logo viu que o pai havia
laado seu corpo no pequeno bosque do castelo sem defesa. Jorge, com um
puxo de uma longa corda, jogou-o para o alto.
Gustavo viu o horizonte descer enquanto o vento passeava pelos seus
ouvidos. Depois, comeou a cair e, antes que entendesse onde estava, que-
brou vidro e madeira. Embolou-se no cho, aterrissando sobre estilhaos
e farpas. Procurou por um lugar seguro para apoiar as mos e se levantar,
mas o pai j o jogava para dentro de uma sala que ele acabara de abrir com
um chute.
No, pai! Dizia Gustavo, choroso, enquanto o pai mantinha suas
costas pressionadas contra a parede ao lado da porta.
OLHE! OLHE para isso, Gustavo! Dizia Jorge.
Estavam na sala verde de Gustavo, e ele podia ver agora toda a glria do
trabalho que Anabel havia feito. Retratos dela, coloridos e precisos, por todo
o lugar: mesas e mais mesas cheias de retratos entulhados sobre o tampo e
por debaixo delas. Nenhuma luz poderia entrar pelas janelas, pois estavam
cobertas por retratos. Apenas os minrios alaranjados nas paredes foram
poupados da cobertura dos desenhos emoldurados em rosada madeira.
Jorge tirou a mo do peito do flho, que caiu para frente antes de voltar
a se apoiar nos mveis da casa.
Eu a amava, pai. . . Eu a amo. . .
No. Ela ama os magos preculgos. Ela precisava que voc a amasse
tambm.
439
Voiui l
Eu e Amanda podemos continuar nos encontrando explicava Ta-
deu e voc e Gustavo tambm. Ns temos um lugar que ningum nunca
descobriu, e se fngirmos estar juntos ningum vai desconfar de nada.
Era difcil para o jovem bomin entender o que Anabel sentia. Seu rosto
estava esttico, como se o choque da descoberta do amigo ainda no tivesse
passado. Seus olhos, que o ouviam sempre de lado, no mostravam conf-
ana. As mos juntas sobre as pernas, paradas como se ela estivesse morta,
tampouco ajudavam a entender o humor da menina.
Podemos fcar juntos, ento. Eu e Gustavo.
Sim. Eu no sei se concordo com o seu mtodo, Ana, mas. . . Eu vi
que havia molduras que no eram rosas ali. Havia molduras de outros tipos
tambm, d-devem ser as genunas. . .
S-sim. Respondeu ela, comumcurto e frentico balanar de cabea.
. . . Ento vocs se amam tambm. Vocs merecem isso tanto quanto
ns.
Anabel esfregou o roupo por um momento e, olhando para baixo, con-
frmou com um aceno tmido de cabea.
Tudo bem.
timo!
Mas deixe que eu falo com Gustavo. Pediu ela, frme.
Sim. - claro.
Voc tem que ir, agora.
Tadeu concordou e levantou-se num salto. Anabel o acompanhou at a
porta, e o silncio dos segredos perigosos que agora guardavam juntos es-
tourava entre os dois. Despediram-se simplesmente ao trocar olhares cm-
plices.
Eu sempre expliquei, Gustavo, sempre disse o quanto devemos nos
controlar. Tentei enfar isso nessa sua cabea. Ralhava Jorge, andando de
um lado para outro na sala. Gustavo sentava no sof, as canelas cruzadas
perto do cho, a cabea pendendo em direo a elas. Voc tem muito a
aprender, mas quero que saiba o quo desapontado estou com voc. . . Voc
nem mesmo viu que esta bomin destroou a sua porta!
No foi ela.
Jorge interrompeu a mo, que levava um copo at a boca, e olhou com
preocupao para o flho.
Quem foi?
Hoje tarde a flha de Barnabs veio aqui. Amanda. Eu confei nela. . .
Mas ela me disse que tinha um segredo perigoso na sala verde dela.
No. . . Sussurrou Jorge, com o olhar perdido.
440
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Foi ela, pai. Ela ps fogo minha porta. Deve saber se duplicar, essa
a nica forma, pai. Ela tambm est com um bomin, tambm tem aprendido
coisas com eles. . .
Gustavo foi interrompido pelo som de Jorge chutando com fora um dos
ps do sof.
a SEGUNDA pessoa que voc confa e que no DEVERIA, Gustavo!
Amanh voc vai at ela e vai for-la a dizer o que sabe. Entendeu? Ele
fez que sim. Temos que garantir que ela no vai dizer nada. Vamos fazer
isso antes de partir.
Jorge amontoou mais um copo no console da lareira ainda sem fogo.
Gustavo precisou de algum tempo para entender o que o pai dizia.
Partir?
Vamos embora. De volta pra Den-u-pra.
NO! Berrou ele, quase tropeando ao levantar-se do sof. Pre-
tendia pedir ao pai que fcassem, mas Jorge virou-se completamente para o
flho com um olhar do mais puro repdio. E. . . E Anabel?
A essa hora. . . Disse ele, com a sincera voz de quem no se impor-
tava. Deve estar presa.
441
Captulo 60
Refm
A charrete, simplssima, descia as colinas suaves e convidativas a pe-
quena distncia do Rio da Discrdia. Os viajantes vestiam roupas ainda
mais longas do que as esperadas na baixa temperatura: casaces negros e
calas pardas, alm de panos que cobriam a cabea, deixando espao para o
nariz e os olhos.
Retornar cidade de origem pela segunda vez era algo surpreendente-
mente novo. Desde quando voltara da vida que vivera em Kerlz-u-een j
no via Prima-u-jir com os mesmos olhos. No tinha os mesmos olhos; eles
fcaram para trs. Tudo havia mudado. Da primeira vez, voltara com uma
companheira e um flho, com um propsito oculto e com mais experincia.
Era um ser novo em pele antiga.
Dessa vez era diferente. Voltava sem a mulher e o flho, mas com a
cincia de que logo os sentiria mais prximos que nunca. Tinha tambm
outros olhos, outra mente e um corao razoavelmente mais fbroso. Seu
propsito era um s: sair daquela cidade e morar onde fosse aceito. Tinha
que conhecer seus limites antes que pagasse um preo alto demais. No
tinha mais a famlia para a qual uma vez voltou aquela se foi, decomposta
por julgamentos e medos de toda sorte. Todo aquele bosque, todas aquelas
jirs; toda aquela gente pouco signifcava agora.
Para onde vamos? Perguntou ele.
Primeiro vamos fazer uma visita. Respondeu o condutor, falando
mais alto para que a voz ultrapassasse os panos ao redor da boca. Desco-
brir se est tudo bem.
Certo.
Lamar virou o pescoo para o norte, que expressava promessas e desa-
fos com a ousadia dos invencveis como se, querendo pr-se como prova
coragem do alorfo, punha-se entre ele e aqueles que ele amava. Roun,
o sol, menos provocador, estava no topo dos cus, de onde logo desceria
com moribundo conforto; entregava-se a Nauimior para que Heelum pu-
desse existir, e Lamar sentia-se grato. Em apenas cinco dias Inasi-u-sana
chegaria ao fm e Roun se tornaria mais forte. A fora no o impediria de
sucumbir no fm do dia, claro, todos os dias. Lamar esperava adquirir com
443
Voiui l
o tempo aquele tipo de sabedoria, que ele no sabia explicar e dissecar, mas
silenciosamente admirava.
Aparte preocupante era estar no centro: Lamar poderia ser reconhecido
e todo o plano cair por terra. Tornero e Byron poderiamaparecer a qualquer
momento.
Mas isso no aconteceu. Cortaram caminho o quanto puderam por ru-
elas de pedra e s vezes mesmo puro cho batido: estranhos, certamente
que poderiam chamar a ateno. A paranoia crescia, e alcanou um pico
particular quando chegaram a uma esquina entre duas largas ruas. Kerinu
parou a charrete em frente a uma pequena casa baixa, e os pelos de Lamar
se eriaram.
Quem mora aqui? Perguntou Lamar.
Kerinu desceu da charrete, e Lamar logo fez o mesmo. Checaram duas
ou trs vezes a retaguarda. Ningum parecia particularmente interessado
neles.
Nosso contato. Respondeu Kerinu, baixinho.
Seu castelo estava ali desde que chegaram, e a cada passo tornava-se
mais vivo e presente. Lamar o enxergara rapidamente, logo voltando a se
concentrar na curta caminhada at a soleira da porta. Demorou um pouco
mais do que eles secretamente desejavam, mas algum abriu caminho para
dentro da residncia.
Lamar a olhou como pde com o rosto coberto. A mulher de cabelos
castanho-escuros deixou-os entrar sem precisar pedir por segredos. Desli-
zou o corpo com pesada suavidade e fez um gesto bruto com a mo. No os
encarou; preferiu o cho.
Os visitantes fcaram parados na entrada da pequena sala. Havia apenas
duas poltronas, e nenhum dos homens avanou sobre um assento. No foi
problema para Caterina, que sentou-se virando para eles.
Caterina. Disse Kerinu. Este Lamar.
Ela olhou para ele com muda e bela gravidade. Os barulhos da rua, que
j no eram muitos, abafavam-se completamente dentro da casa. A poeira
sonora comeava a incomodar Kerinu, que olhou para o teto por um ins-
tante.
Caterina. . . Quem est aqui?
Ele est comigo. Respondeu ela, fechando os olhos. Abriu-os nova-
mente e, pondo os pulsos sobre os braos da poltrona verde-clara, balanou
a cabea negativamente. No quero envolv-lo em nada disso.
justo. Concordou Kerinu. Aconteceu alguma coisa?
Sim.
444
A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Lamar engoliu em seco, no sabendo se falavam em smbolos e expres-
ses internas ou se havia realmente acontecido alguma coisa. Sabia que
aquela mulher, que agora parecia to abalada e inerte, fcara responsvel
por cuidar de Myrthes e Ramon por alguns dias antes de eles viajarem.
O qu?
Eu fui falar com ela porque um homem foi falar com ela antes. Um
homem estranho, que eu no conhecia.
Kerinu levantou uma sobrancelha.
Voc sabe que no devia. Agora ela sabe quem voc .
No mais.
Foi a vez dela de engolir, voltando as atenes para Lamar.
O que. . . Comeou ele, buscando confrmao em Kerinu. O que
est. . . ?
Ela morreu, Lamar. Me desculpe.
Caterina. . . Interveio Kerinu, como se ela tivesse dito algo fora de
contexto.
Ela se foi. Insistiu ela, com simplicidade.
Kerinu arqueou as sobrancelhas. Ela no voltou atrs.
Mas. . . Disse Kerinu, estupefato C-como, o-o que. . .
Pouco a pouco sentia a falta de resposta pergunta que no foi feita, e
uma revolta contra aquele silncio maldito crescia em seu estmago como
um turbilho enquanto Caterina batia nervosamente com os dedos indica-
dores na poltrona.
Lamar estava paralisado, sem fazer qualquer esforo que no fosse o de
se manter em p. O que foi que tinha acabado de ouvir? Era o barulho
dos passos nervosos de Kerinu no espao diminuto atrs de si ou o olhar
cirrgico daquela mulher odiosa sua frente?
Caterina, o que. . . Quem. . . Dizia Kerinu, alternando perguntas e
respiraes. Quem fez isso, Caterina?
Foi Tornero. Ele ps fogo casa na noite anterior viagem deles.
Caterina no mexia mais os dedos. Olhava incisivamente para Lamar,
que mantinha os braos presos ao tronco e nada mais.
Caterina. . . Comeou Kerinu, parecendo mais controlado. Eu. . .
Eu preciso de um. . . Preciso ir ao banheiro. Pode me dizer onde fca?
Caterina moveu os olhos, brusca. Balanou a cabea efusivamente e
apontou com o dedo indicador uma porta direita.
Kerinu observou o caminho. Pediu a Lamar, quase sem olhar para ele,
que no sasse dali. Tambm ouvia pouco alm das prprias batidas acele-
radas no peito.
O corredor que Kerinu adentrava era baixo e pouco largo. Amarelo do
incio ao fm, perdera a nica esperana de transmitir alegria ao invs de
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Voiui l
repulsa quando foi projetado sem janelas. Logo no incio uma porta singela
dava para o banheiro.
Sem querer apostar no acaso, vasculhou-o; no encontrou nada. Ha-
via ali um pequeno ba de roupas, duas jarras de gua feitas de barro, um
minsculo espelho torto em cima de um prato fundo sobre um suporte me-
tlico e a tampa cinzenta de uma latrina. Mais ao fundo, uma enorme tina
metlica que no conseguiria esconder ningum.
Kerinu deixara a porta aberta, segurando-a coma mo enquanto investi-
gava o cmodo. O banheiro tinha apenas duas aberturas a prpria porta e
uma para cima, o que fazia com que a luz dourada invadisse indiretamente
o recinto. Curioso, o alorfo esticou o pescoo para conseguir ver algo do
telhado, mas nada viu de concreto.
Sabia que o castelo estranho no estava to perto, de qualquer maneira.
Fechou o banheiro e voltou ao corredor, avanando sem pudores em di-
reo ltima porta. Por ali entrava outra poro de claridade, fragmentada
e lcida.
Virou-se de pronto, jogando o corpo contra a porta aberta encostada
parede. Os cantos do quarto, de corvnia, enquadravam de maneira bizarra
paredes de madeira pintadas de azul-beb. O armrio, logo direita, e a
armao da cama, logo frente, erampuro marrom. Ojuiz do jogo horrendo
de cores era a janela pastel de comum paradigma quadriculado voltada para
a cama. Sem cortinas, deixava ver um estreito corredor sem teto que fora
bloqueado pela casa ao lado, uma construo muito maior. Do outro lado
da rea aberta, uma porta para a cozinha.
Kerinu, com os olhos vidrados em adrenalina, no conseguia ver ne-
nhum movimento estranho, sombra suspeita ou respirao abafada. Af-
nava todos os sentidos. No deixava o saguo de seu castelo, e adicionava
mais trancas ao porto principal, fazendo-o balanar com leves estrpitos.
Deu um passo para trs e agachou-se, olhando por debaixo da cama.
No havia ningum. Levantou-se, ligeiro, e permitiu-se olhar para fora da
janela. O outro castelo, de tamanho mediano, continuava ali. Logo frente.
To prximo que seria um erro considerar aquilo um acaso.
Tinha que ser a janela.
Kerinu avanou; um, dois, trs passos, a cada um deles virando o pes-
coo. Nada se movia, nada vivia; nada era to ameaador quanto aquela pre-
sena estranha, aquele corpo incmodo, a nica chance de explicar aquela
loucura.
Ao chegar aos ps da cama e ser capaz de enxergar a maior parte do
pequeno ptio externo, viu o castelo se afastar levemente.
Virou-se tarde; a porta do guarda-roupa se abriu comumgrito comprido
e de l saiu uma espada que, passando rente ao corpo esquivante de Kerinu,
quase lhe tirou o dedo.
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
Tudo agitou-se dentro do castelo, comos limites e os tijolos misturando-
se em um fcido baque. O alorfo rolou para o centro do saguo, assustado
com a fora do impacto sobre o porto; viu o mundo todo inclinar-se tortu-
osamente enquanto era encurralado no quarto de Caterina, onde a ponta da
lmina aproximava-se do peito de Kerinu enquanto os olhos encaixotados
do inimigo faiscavam.
Kerinu avanou direita para tentar escapar ao golpe, mas sofreu um
longo e ardido corte nas costelas; caiu com um giro por sobre a cama. Um
segundo mais tarde via a mesma lmina, sedenta, preparada para descer-lhe
outro golpe.
Com um gemido retesou o corpo e chutou o homem para o canto. Rolou
para o cho, sentindo os cortes se abriremmais umpouco quando agachado;
o inimigo fcou desorientado ao bater na parede. A espada pingava sangue
no cho, desleixada.
Kerinu levantou-se em uma exploso de raiva e prensou o nmesis na
parede. Voltou a Neborum, onde percebeu a presso que a porta recebia.
Correu para l e encostou as palmas das mos na parede esquerda da en-
trada sob ataque; optava por uma ttica arriscada.
Num momento de confuso e medo os corpos tontos digladiaram-se;
um queria libertar-se de um julgo pfo para usar a vantagem da espada,
enquanto o outro tentava ganhar tempo, sem estratgia. Kerinu afastara-se
o mais rpido que pde com o tronco para dar um soco no rosto do outro
mago. Dois socos depois e j o segurava com a mo esquerda pelo ombro.
Umsoco depois e fcou lento demais; o ferimento e o despreparo atingindo-o
com fora.
Abriu os olho para Neborum, e viu que integrava-se com sucesso pa-
rede do prprio castelo, o corpo derretendo-se nas extremidades e desli-
zando para o muro obscuro que o envolvia em frio, grandiosidade e onisci-
ncia. As pancadas e chutes decididos que o invasor lanava aos portes do
castelo passarama ser verdadeiras estacas no abdmen; resistiu ao contrair-
se por inteiro.
Via agora a face do inimigo. Os lbios tremiam, deixando a boca entrea-
berta; sua barba suja se projetava, sua sobrancelha desalinhada arrepiava-se
e as notrias orelhas permaneciam ali, fazendo nada. Kerinu estava preso
imagem deplorvel do agressor que lhe cortara parte das costas com a
espada na mo direita.
Rouguer arrancou a espada com rispidez para trs, fazendo Kerinu cam-
balear. Chutou o alorfo, que caiu de costas.
Kerinu entrou empnico ao pensar que no podia respirar daquele jeito.
Devia se controlar, acima de tudo se controlar. As costas fcavam cada vez
mais molhadas em rubro desespero, passando a palpitar em contraes fora
de ritmo quando a cabea de Rouguer apareceu em meio ao teto negro e
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Voiui l
alaranjado. Kerinu balanava a cabea, sentindo frio, agonia, dio; raiva,
tristeza, incerteza; acima de tudo, seus braos.
Rouguer levantou a espada e tentou enterr-la semmisericrdia no peito
do mago cado, que reuniu o que lhe restava de fora e jogou os antebraos
para a esquerda, defendendo-se da espada. Rouguer, bufando de raiva, logo
se arrumou para terminar a tarefa, mas Kerinu aproveitou a deixa e, num
esforo, chutou a canela frme do inimigo.
Rouguer caiu por completo, perdendo o equilbrio; cego de raiva, fcou
no cho por tempo demais. Expulsando o ar dos pulmes com fora, Kerinu
tateou pela guarda da espada que cara entre eles.
Rouguer se aprumava mas, de ccoras, conseguiu apenas se esquivar de
um ataque aleatrio do alorfo. Kerinu no conseguiu se levantar quando
tentou se apoiar no cotovelo esquerdo, com a espada na mo direita voltada
para o cho, e ao cair viu que Rouguer j se avolumava junto a ele para
recuperar a arma.
Em um suspiro que julgou ser seu ltimo esforo, usou a espada como
uma adaga.
Arregalou os olhos enquanto assistia, com a mandbula suspensa, a vida
quente verter do pescoo torto de Rouguer. Ele tremia, desfalecendo por
etapas. Kerinu viu o tempo perder o sentido dentro de olhos cheios de rancor
e desespero. Ainda apertava o cabo da espada comfora quando pensou que
j no olhava para pupilas animadas.
A dor aumentou, vingando-se de Kerinu por t-la ignorado. Quando
julgou no sentir mais resistncia alguma deixou tudo de lado, caindo em
cima do peito do corpo morno.
Sentia ainda os batimentos fracos e frementes de um corao abatido.
Seu castelo devia estar desaparecendo emchamas ou na bruma, mas tambm
o prprio devia estar. No tinha certeza, uma vez que no conseguia ver
Neborum. Nem desejava.
Ouviu passos. Revigorou-se com os sons, mas no conseguiu reunir
foras para ver quem estava ali.
No!
Ele sentiu a mo de Caterina tocar-lhe o rosto e vir-lo; engoliu e sor-
riu, ignorando todas as dores que o atacavam como unhas escavando suas
entranhas.
Caterina olhou por alto o ferimento que Kerinu no conseguia avaliar
e foi embora. Kerinu fechou os olhos, comeando a sentir uma quantidade
confusa de pontadas e repuxes.
Fechava os olhos para no abri-los mais. Pensava em Myrthes. Em Ra-
mon, que h tempos no via deveria estar muito maior, j. Do tamanho
de uma rvore velha. Ou no. . . Menor, um pouco menor que isso. Sorriu.
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Pensou em outros amigos e companheiros, de luta e de vida, de infncia
e de amor, de casa e de famlia. Dos pais aos primos, dos prximos aos dis-
tantes. Tentou revisitar cada lugar que um dia importou. Sentiu o pescoo
tremer, e o sorriso foi vencido pelo medo.
Relembrava cada momento de solido e deciso. Cada vez em que se
questionara se estava fazendo a coisa certa, e cada desagradvel momento
que, se no destrua a dvida, aplacava-a com ponderao equilibrada que
tornou-se, um dia, insuportvel de ignorar. Aquilo no podia ser s uma
opinio guardada e escondida. Seria sua vida ou no seria nada; foi sua vida
e agora era sua morte.
Lamar chegara enfmao topo. Mesmo sendo a colina mais alta da cidade,
aquele no era um percurso por demais exigente. Era o justo, no mais que
o necessrio; aquele era o lugar certo para a manso bege do homem mais
poderoso que j conhecera. O homem que tentara lhe dar tudo tudo que
Lamar no queria e, por despeito e orgulho, destrura sua vida.
Ali estava o decadente e pattico mago alorfo que quase tornou-se um
grande bomin. Praticamente nu por dentro. Despira-se, fora despido;
despiram-lhe todos os sonhos e medos, todas as rotas de fuga e planos auxi-
liares. Tornara-se casca, abandonado sorte de ser s algum, semningum
nem nada.
Estavam ali todos os jovens rosanos de angstia.
A mo vacilante girou a maaneta da porta principal. No esperava que
estivesse aberta, apesar do gesto, mas se enganou.
Fechando-se no covil dos bomins, admirou a suntuosidade rubra dos
mveis e atapetamentos que cobriam o largo cmodo. Minrios vermelhos,
verdes e amarelos iluminavamo ambiente comnobreza por detrs de empo-
eirados prismas de vidro afxados s paredes. Lanavam raios surpreenden-
temente harmoniosos por sobre o tampo envernizado de uma longa mesa
no centro deslocado do ambiente.
Segurando-se com uma das mos na parede esquerda, Lamar arriscou
um olhar pela janela do prprio castelo em Neborum. Via um outro lon-
gnquo e indiscernvel, mais ao longe. Movendo-se em uma linha de frente
bem mais prxima estava um outro, com um gramado que misturava-se ao
da paisagem geral, convidando o desavisado a passear por um corredor que
cingia o conjunto mais vigilante e sombrio de torres que Lamar jamais vira.
Kerinu ouviu um estalo distante e, instantes depois, foi tomado por um
formigamento intenso na pele das costas e da barriga. A sensao, que no
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Voiui l
comeo s provocou um mrbido sorriso, foi convergindo para suas feridas
e cortes, e passou a borbulhar numa mistura misteriosamente fugaz de calor
e frio. Sentiu comaguda clareza umpuxo violento que Caterina deu emseu
corpo para afast-lo do de Rouguer, e comeou a perceber que ela apertava
um objeto duro e levemente spero nos machucados que antes lhe afigiam.
Lentamente abriu os olhos. Caterina, visivelmente aliviada, o envolvia
nos braos. Kerinu experimentou se levantar e, para sua surpresa, conseguiu
sentar sem problemas ou dores. Virou o corpo para Caterina, encostada aos
ps da cama, e ela lhe mostrou o que trazia na mo direita: metade de um
minrio dourado de seis lados.
Kerinu balanou a cabea, olhando para o prprio corpo; suas roupas
estavam encharcadas, com apenas partes do brao, da gola e dos tornozelos
intocados por sangue. Levantou o casaco e a camisa para poder ver do que
fora curado, e tanto a grande perfurao como o longo corte, todos do lado
esquerdo, pareciam machucados simples e superfciais h muito cicatriza-
dos. A pele estava rosada e rida, mas completamente reconstituda.
Isso . . . Incrvel. Disse ele, voltando a olhar para a dona da casa.
. . . Obrigado, Caterina.
Ela ps a pedra opaca sobre a cama, sorrindo com leveza para o nada da
memria.
Desde antes de entrar no Parlamento eu carregava esse minrio para
onde quer que eu fosse. Achei que ele. . . Poderia me salvar um dia. Achava
que podiam tentar me matar a qualquer hora. Depois de um tempo guardei
ele no banheiro. Se eu o levasse para todos os lugares poderia ser roubada,
ou poderia perd-lo de vez. . . Balanando a cabea, voltou a olhar para
Kerinu. De qualquer forma. . . Voc tambm me salvou.
Quanto a isso. . . Disse ele, assumindo um tom preocupado. Ela
est viva, no est?
Sim. Me perdoe, Kerinu, eu estava sendo controlada. Eu no quis
dizer nada daquilo, voc sa. . .
Est tudo bem, Caterina. Eu entendi a sua mensagem. Sabia que era
mentira.
Sim, uma mentira de Rouguer. Ela foi para Imiorina, eu mesma a vi
partir. . . Mas ele conversou com ela.
Kerinu olhou para o corpo a apenas dois ps de distncia.
Este Rouguer. Quem ele?
Um esplico que trabalha com documentos. Eu no fao ideia do que
ele fazia falando com Myrthes, Kerinu, mas eu sei que tudo correu como o
planejado, eu tenho certeza. . .
E quando comeou a dar errado?
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Tornero ateou fogo casa. No sei se ele sabia que no havia mais
ningum ali, mas ele no fez nada para capturar algum do lado de dentro.
Simplesmente cobriu o lugar em chamas e foi embora.
E depois Rouguer veio?
Sim, ele veio aqui. Me controlou. . . E o resto voc sabe. Contou
ela, com um qu de impacincia na voz.
Levantou-se, fnalmente, apoiando-se na borda da cama. Ofereceu pron-
tamente a mo para Kerinu, que destacou-se das prprias paredes, saindo
pelo lado de fora do castelo em passos trpegos. Reconheceu por alguns
felizes instantes o majoritariamente vazio terreno ensolarado ao seu redor:
via apenas o castelo da amiga nas redondezas.
Voltou ao quarto, percebendo que Caterina olhava com abjeo o corpo
de Rouguer. Kerinu fcava cada vez menos vontade naquele lugar.
Temos outro problema. Disse ela.
Lamar tirou a mo da parede, assustado, quando viu que Tornero o ob-
servava do outro lado da sala. Vestia uma capa laranja e trazia no rosto sua
austeridade carregada; desceu do nvel do corredor e os dois se olharam por
alguns instantes.
Como voc quer que eu o mate, Lamar? Perguntou Tornero, dando
um passo frente. Narrando cada passo que dou de acordo com a sua
ateno ou. . . O que um privilgio. . . Silenciosamente?
Visitou Neborum e encostou o punho na madeira torta da prpria porta,
agora cheia de travas e cadeados. Voltou a observar Tornero, percebendo
que perdera por pouco o surgimento de um sorriso malicioso.
Pensou no garoto que conhecera. Um garoto presunoso, claro, mas
Lamar chegara a duvidar que ele guardasse em si a mais fria das vocaes.
Por outro lado, desde que aquele garoto se transformara em um bomin La-
mar no podia mais dizer que o conhecia.
O que que eu quero, afnal?, pensou Lamar. Que propsito teria aquilo?
Deixou as mos carem, saindo de perto da porta em seu castelo. O que
Tornero fez no tinha um nome certo.
O que foi, Lamar? Perguntou ele, com os braos abertos. Tornero
dava passos curtos frente e Lamar dava outros para trs, fazendo a curva
em direo grande mesa da sala.
Queria brigar com ele. Sair do castelo e fazer o que achava que seria
capaz de fazer; sem controle, sem regras, sem estratgia. Queria dar socos
naquele rosto intrometido, arrogante e pretensioso. Arrancar dentes com as
mos fechadas.
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Secou uma lgrima na bochecha direita com uma mo desgovernada.
Todo aquele trabalho foi por eles. Tudo o que ele passou foi para poder
voltar e ir embora com eles. Eles eram mais importantes tinham sido
mais importantes, tinham se tornado mais importantes, defnitivamente
qualquer coisa por eles. No valeria pena se ele acabaria preso ou morto.
No, queria viver com eles. Eles foram mais importantes.
Byron quer voc morto por que voc nos desafou. Ele no se importa
com voc. Voc foi para a cadeia porque isso era mais fcil, mas agora todos
pensam que voc fugiu. Se te matarmos agora ningum vai saber. Mesmo
assim, pra c que voc vem. Voc . . . Ele no conseguiu segurar o
sorriso dentro da boca. Ah, Lamar. . .
Tornero ainda disse algo que Lamar ouviu pela metade, em um som aba-
fado. Prestou ateno por um momento no saguo de seu castelo, ainda ina-
balado e silencioso, e logo voltou a olhar para Tornero, que se aproximou
mais. Lamar andou para trs, fcando no fnal do espao entre as cadeiras e
a parede decorada com um grande espelho emoldurado em corvnia.
Voc parece ter medo. Disse Tornero, analtico. . . . Mesmo sem
ter nada a temer. . .
Lamar permaneceu quieto, segurando com desproporcional fora o en-
costo de uma das cadeiras. O olhar de Tornero era o de um monstro. Era
um monstro que ele enfrentava. No um garoto, no um homem.
Voc quer vingana. . . Mas no sabe se vai conseguir.
O cu continuava claro e cristalino em Neborum, mas Lamar podia sen-
tir uma mudana no tempo. O vento reunia-se em tufos, assoprando timi-
damente as janelas; as torres de Tornero estavam por perto, mas no havia
nenhum sinal de seu iaumo.
Tem razo, Lamar. Voc no vai conseguir.
Desvencilhando-se do sorriso, Tornero puxou com rapidez a espada por
debaixo da capa e avanou com golpes geis, mas displicentes. Lamar sabia
que tinham a funo de deix-lo ocupado, e conseguiam. Cortavam o ar,
faziam o alorfo fugir, esquivando-se pelos espaos limitados da sala.
Correu como pde e conseguiu fcar do outro lado da mesa. Olhou para
o prprio castelo, sem saber como socorr-lo; baques explosivos traziam a
fumaa para dentro do saguo. Duas trancas j estavam no cho do lado
de dentro, estouradas, e a ventania fazia uma crnica premonio; focos
de negra fuligem chegavam aos cus, espalhando a escurido por todo o
cenrio.
Pode fcar o quanto quiser, Lamar! Disse Tornero, interrompendo
os golpes.
Voc no PRECISAVA, Tornero! No PRECISAVA!
No precisava, Lamar, mas eu fz. Voc no precisava voltar a Prima-
u-jir, MAS VOC VOLTOU!
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Isso no MOTIVO!
PARA MIM !
A porta foi enfm arrebentada, caindo em chamas frente de Lamar. O
cenrio do lado de fora estava arrasado; um campo de brasas com o qual
Tornero cercara o castelo.
Nada aqui mudou. Comentou ele, invadindo triunfalmente o cas-
telo. Olhava para o teto e as paredes, pensativo. Mas l apontou para
um canto atrs do iaumo de Lamar. havia terra.
Lamar voltou sala de Byron, com medo do que podia estar aconte-
cendo, mas Tornero sorria com a espada embainhada novamente.
Vamos l, Lamar, volte! VOLTE! Eu quero que veja tudo!
Lamar voltou. No perdeu mais tempo e, concentrando-se, reuniu toda
a repulsa trancada em cada msculo do corpo.
Virou as palmas das mos para cima. Tornero observou comcuriosidade
o surgimento das chamas por todo o cho do castelo. Lamar aos poucos
juntava as mos altura do peito, aproximando-as como se apertasse algum
objeto no ar at reduzi-lo a nada. As labaredas tornavam-se mais intensas
e, bruxuleando com violncia ao redor dos magos, fez brotar um sorriso no
rosto mgico de Tornero. Seu olhar enviesado durou pouco; s o tempo
que custou a Lamar, com as pernas tremendo com a presso e o calor que
provocara, libertar toda a fria que conjurara com um berro de dor e dio
criado no fundo da garganta.
O fogo juntou-se numa torrente horizontal que voou em direo a Tor-
nero. O alvo no se moveu; o fogo o atravessava, consumindo-o, mas Lamar
nada via; o deslocamento das chamas produzia tanta fumaa que todo o cas-
telo encheu-se de uma densa neblina.
As mos de Lamar caram, formigando de uma forma indita para ele.
Caiu de joelhos, com a planta dos ps em frangalhos.
A nvoa invadiu Lamar ao mesmo tempo em que, assumindo um borro
de cores quentes, transformava-se em uma pancada. Atordoado, percebeu
que fora buscado do outro lado da mesa e jogado no cho. Ouvia os passos
da bota de Tornero aproximando-se. Apoiou-se sobre os cotovelos e viu o
sorriso debochado do inimigo, que o levou bruma cinza do prprio saguo.
O fogo se extinguira, e s as nuvens baixas sobraram. Lamar conseguia
distinguir a luz azul escura vinda das janelas, e tambm a luz amarela dos
minrios perto do teto do saguo. Todos os focos de luz estavam borrados
e distantes, e no colaboravam muito com a visibilidade do lugar, cujas co-
lunas continuavam ocultas sob o manto da poeira. Ao olhar para a frente,
onde antes estava Tornero, uma sombra humanoide projetava-se imvel e
tranquila.
Lamar tremeu instantes antes de ter toda aquela vista despedaada. Viu-
se novamente na manso, cado para o lado direito. Seu rosto ardia, e ele
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instintivamente levou a mo bochecha esquerda. Voltou o pescoo para
trs e viu um Tornero serenamente psictico. Arrastou-se como pde para
longe dele, mas parou ao alcanar o desnvel que levava ao corredor.
Eu treinei muito com fogo, Lamar. Elucidou ele. Nenhum fogo
me machuca.
Sons do lado de fora chamaram a ateno dos combatentes, que se vira-
ram para a porta de entrada. Kerinu e Caterina subiram correndo as esca-
darias e quase derrubaram a porta ao abri-la com violncia.
NO! Bradou Lamar. Vo EMBORA! No ERA pra vocs estarem
aqui, NO, NO, N-
Eles no esto mortos, Lamar! Caterina cortou.
Tornero fechou os olhos, bufando em impacincia. Lamar olhou para
a feio cheia de culpa e urgncia de Caterina, e por alguns segundos seu
corao adquiriu uma leveza que fez o mundo suspender-se em um s mo-
mento de salvao.
Porque ele sabia que ela dizia a verdade.
Lamar Chamou Kerinu, que olhava fxamente para Tornero Voc
tem que ir embora. Agora.
Lamar levantou-se sem coordenao e juntou-se ao grupo de alorfos na
entrada da casa. Tornero parecia estranhamente conformado com o resgate,
parado em frente aos sofs tintos da sala.
Vocs dois vo. Disse Kerinu, dando um passo frente. Eu cuido
dele.
Kerinu. . .
No discuta, Lamar. Respondeu o reconhecvel mestre. . . . V
embora.
Vamos. . . Disse Caterina, decidida, puxando o brao de Lamar.
Kerinu esperou que os dois descessem os ltimos ptreos degraus e fe-
chou a porta atrs de si.
Seu grande erro. . . Kerinu Disse Tornero, com nojo espumando na
boca foi achar que voc pode cuidar de mim.
Kerinu balanou a cabea, respirando fundo.
Vamos ver.
Sacarama espada ao mesmo tempo e correramao encontro umdo outro,
chocando-se no ar e trocando de posies na sala. Seus castelos moviam-
se na terra, criando tremores no crculo onde as duas almas se encaravam,
furiosas.
Lamar e Caterina comeavam o declive que os levaria de volta cidade
quando a maga estancou.
O que foi? Perguntou Lamar.
Caterina olhava para ele com uma expresso de puro terror. Ela no
precisou responder, tampouco ele precisou voltar a Neborumpara entender.
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A AiiN uos Cs1iios Ocui1os
O som dos yutsis anunciava a chegada da charrete laranja, que subiu a uma
velocidade espantosamente desesperada a ltima parte do morro. De dentro
do veculo saiu Byron, que dirigiu-se dupla com tranquilidade.
Vocs no vo a lugar algum. Disse ele, arrumando a capa negra
que alongava-se at os ps.
Tornero e Kerinu continuavamlutando na sala, como alorfo golpeando-
o com rapidez; Tornero escapou a um ataque por baixo, quase acertando as
costas de Kerinu num contra-ataque; Kerinu defendeu-se ao conseguir pr
fora na espada para empurrar o inimigo, os dois trocando de posies no-
vamente. Continuarammedindo foras enquanto Tornero corria emdireo
a Kerinu com as mos famejantes em Neborum.
Kerinu correu em direo a ele tambm, e no choque os dois foram joga-
dos para longe, caindo de bruos no cho. Kerinu levantou-se prontamente,
mas no to rpido quanto Tornero, que j lanava chamas contra ele.
Kerinu desviou do fogo ao jogar-se para a direita e, em uma cambalhota
que lhe colocou de p de novo, correu at sentir que no estava mais perto
do inimigo. Olhou ao longe e o avistou em frente aos castelos que tremiam
e ziguezagueavam no entorno do cu cada vez mais lils.
Tornero levantou o brao direito e uma linha fogo surgiu no cho, pro-
vocando exploses cada vez maiores ao atravessar os ares, agora cheios da
perigosa infuso de vermelho e amarelo que tanto agradava ao bomin. Com
um outro gesto, as chamas preguiosas que lambiam e sujavam ainda mais
o cu organizaram-se e voaram, ainda mais cheias de vida e combustvel, na
direo de Kerinu.
Tornero encurralava Kerinu com a espada, que passara a receber im-
pactos mais do que atacar; num descuido abriu demais a guarda, foi lento,
e Tornero avanou contra o peito do alorfo, que precisou atacar a lmina
inimiga para o alto, tirando-a do caminho. Tornero voltou a golpe-lo com
ainda mais fora e, escorregando na ponta do tapete, Kerinu perdeu o equi-
lbrio e recuou ainda mais, por pouco no conseguindo se defender de mais
uma investida de Tornero, defnitivamente um melhor espadachim.
O fogo estava chegando perigosamente perto quando Kerinu cruzou os
dois antebraos em frente cabea baixa. Uma fna parede de vidro ergueu-
se a partir dele, dividindo o mundo em duas partes do cho ao cu. O
fogo chocou-se com a muralha parcamente visvel, desaparecendo imedi-
atamente.
Lamar, no. . .
Tarde deAAAAAAAHHHHH!
Lamar caiu no cho de joelhos, pondo as mos na cabea; logo todo seu
corpo estava no cho, contorcendo-se em uma posio cada vez mais fetal.
Caterina saiu de seu castelo e encontrou Byron esperando por ela. Uma
lufada de vento a jogou, imobilizada, de volta contra a prpria porta tran-
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cada.
LAMAR, LUTE! Gritava ela para o corpo desesperado no cho, que
espremia lgrimas dos olhos. Byron recebia, impassvel, os olhares de es-
guelha da maga.
Ela bateu com as duas mos nas portas do prprio castelo, que se abri-
ram. O vento a empurrou para o fundo do saguo de entrada, e da mo
direita esticou-se um negro e longe chicote que ela lanou contra uma co-
luna, enroscando-se. O ventou a levou, mas a presso da corda a catapultou
para fora, jogando-a contra o corpo de um Byron despreparado.
O vidro que Kerinu construa pegava fogo, derretendo ao mesmo tempo
que se decompunha, com a chama se alastrando por toda a extenso mais e
mais rpido. Quando ele deixou que os braos cassem, o fogo desapareceu
por completo. Tornero olhou em volta em antecipao.
No instante seguinte o vidro se estilhaou com um estrondo ensurdece-
dor, e milhares de cacos voaram, indefensveis, contra o corpo em acelerada
fuga de Tornero.
Lamar cambaleava pelos corredores do prprio castelo, vendo neles for-
mas geomtricas de todas as cores, sons e texturas. Seu castelo tremia, saa
de sintonia e ele, sentindo ora as dores de cabea ora o prprio corpo sem
membros, monoltico, tentava subir at a torre mais alta do prprio castelo
frgil, cheio de obras e alas inacabadas.
Byron empurrou Caterina para longe; os dois se levantaram juntos e
ela, ligeira, chicoteou o mago, que se esquivou do golpe. Quando ela tentou
atac-lo pela esquerda, foi atingida por uma onda que a fez cair para trs.
A gua rapidamente desapareceu na terra, que comeou a amontoar-se por
cima da maga, lamacenta.
Kerinu perdia a fora e a concentrao necessrias para manejar a es-
pada. Tornero atacou-o com especial fora ao ser atingido pelos pedaos de
vidro nas costas, e o alorfo caiu sentado no sof. Fechou os olhos no susto,
mas logo abriu-os, alerta, e bloqueou umataque defnidor de Tornero. Girou
a espada para fora, empurrando o bomin; num salto que misturava coragem
e fuga, jogou-se no cho e girou com o auxlio do punho livre, alando a es-
pada contra as pernas de Tornero, que recuou.
Tornero estava de p, cambaleante. Kerinu lanou a negra e viscosa
corda esplica em direo a seu pescoo, mas ela foi interrompida por cha-
mas que Tornero, rugindo de raiva, conjurou ao inutilmente se afastar. Ke-
rinu chegou mais perto e o chutou, sem misericrdia. Tornero caiu, com
longos cortes abertos no corpo inteiro, e Kerinu o dominou por completo.
Tornero recuou at uma das cadeiras. Controlou sua respirao e ps a
mo sobre o peito. Olhava para o cho, piscando compulsivamente. Kerinu,
ainda se equilibrando, olhava com desprezo para o discpulo bomin. Fez
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questo de faz-lo olhar em seus olhos. Sob novas ordens, Tornero ps a
espada sobre a mesa.
Lamar chegou num cmodo ao fm de uma feia e suja escada circular
comos sentidos divididos entre a psicodlica viso de Neborume o cheiro de
terra quente do cho no qual se amontoava de punhos cerrados, esperando
poder resistir dor. O lugar ardia com um fogo traioeiro, que ele sabia
se conseguisse como apagar.
Caterina lutou contra o solo que parara de se erguer sobre ela. Conse-
guiu sair de baixo do amontoado de terra e corria em direo ao castelo de
portas escancaradas quando o cu clareou-se e ela, sentindo-se tropear e
rolar sem ver isso acontecendo, soube estar olhando para o cu pacfco de
Prima-u-jir.
Era a vez dela de cair no cho e ter vontade de arrancar cada fo de cabelo
com as prprias unhas.
Deitou-se de qualquer jeito ao lado de Lamar. Byron assistia impassvel
ao conjunto de gritos, gemidos e prantos dos dois alorfos. Olhou ento para
a porta da prpria casa.
Kerinu saa frente. No tinha uma espada, e andava coma cabea baixa
e as mos para trs. Logo atrs vinha Tornero, carregando duas armas.
Lamar meu. Disse Tornero, caminhando em direo ao nmesis.
Kerinu engoliu em seco. Tentava no fazer movimento algum.
Quando olhou para o lado em Neborum, de p em frente massa escura
que encobria Tornero no cho, viu um sorridente Byron de braos cruzados.
No sou facilmente enganado.
Byron avanou contra ele, que desfez o encordoamento negro na mo.
Fechando o punho, jogou-se para trs e no momento em que Byron estava
sua frente, pronto para queimar por completo seu iaumo, e abriu a palma da
mo emumviolento e perfeito tapa na testa do velho mago, que desapareceu
no mesmo instante.
Tornero parou no meio do caminho. Olhou para Kerinu com o canto do
olho e, sem dizer nada, prosseguiu o caminho como se ainda estivesse sob
controle do alorfo.
TORNERO! Disse Byron, cujo discpulo lhe entregou uma das espa-
das e continuou seu caminho.
Com a outra, preparou-se para atravessar o peito de Lamar que, com um
ar extenuado, abria-se em entorpecido xtase para o cu.
Kerinu retomou o controle do debilitado Tornero no momento em que
Byron passou-o o atac-lo em frente s escadas cinzas da manso. Ele es-
tava mais nervoso que o aprendiz, e atacava rpido e com fora; Kerinu
contentava-se em recuar, esquivando o quanto podia da busca incessante
do inimigo por um bom golpe.
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Tornero estava parado acima de Lamar, imvel como uma esttua. A
espada apontava para baixo, e seus olhos ignoravam as ordens de Kerinu,
que os queria fechados. Os punhos, acima da cabea, estavam prontos para
fncar a estaca de metal no homem que reconhecia pouco a pouco o perigo
em que estava.
Caterina via que ele ajustava a ponta da espada de acordo com os espas-
mos esparsos de Lamar, que diminuam cada vez mais. Percebeu que a dor
desaparecia, e agarrou como pde Lamar para tir-lo de baixo do bomin.
Lamar. . . Lamar. . . Lamar, por favor. . .
Ca. . . Caterina. . . Meu. . . Lamar tossiu duas ou trs vezes. . . .
Filho. . .
Ele precisa de voc, Lamar. . . Ns temos que ir embora. . .
Os dois ouviram um curto gemido de dor aps um estrpito metlico.
Lamar sentia os efeitos colaterais do dano que Byron lhe causara, mas virou-
se na direo do chamado e assistiu Byron apontar a espada para o queixo
de Kerinu, cado e desarmado.
CORRAM! Berrou ele, soando como se aquelas fossem suas ltimas
energias. CORRAM!
Vamos, Lamar, VAMOS! Disse Caterina, forando-o a se levantar.
SAIAM DAQUI!
Byron recolheu a mo e num gesto irritado fez um corte transversal no
rosto do alorfo, ao que Lamar respondeu com um urro lacrimejado de pesar.
LAMAR! LAMAR!
Caterina venceu a resistncia do mago e os dois correram colina abaixo.
Byron observou-os sair de seu campo de infuncia. Olhava pela janela de
seu castelo para Kerinu, que, inabalvel, continuava alimentando o domnio
sobre Tornero.
Solte-o. Disse Byron.
Kerinu, exausto e com o rosto sangrando do canto do nariz base da
orelha, balanou a cabea afrmativamente. Fechou os olhos, e ouviu a ex-
presso de dio e frustrao de Tornero quando ele fncou a espada na terra
seca.
Tornero. Chamou Byron. Ajude-me a lev-lo para dentro.
NO! Resmungou ele. NO! Eu posso ir atrs deles, eles no
foram muito. . .
TORNERO! Ralhou Byron. Kerinu observou uma profunda frus-
trao crescer no rosto do subordinado, tomado por suor, vermelhido e
vergonha. . . . Em instantes poderei sair de meu castelo de novo. Preciso
que me ajude a lev-lo para dentro. Isto uma ordem.
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Captulo 61
O novo mago-rei
Ordenada diretamente pelo novo mago-rei, a guarda militar do Conse-
lho dos Magos reuniu-se e enfleirou-se, esplendidamente mbar, ao redor
do castelo do Conselho. Os outros magos estavamali tambmalguns com
orgulho, outros a contragosto emumplpito de madeira feito para aquela
ocasio misteriosamente forjada. Por detrs deles um conjunto de dez char-
retes, cada uma comtrs soldados do Exrcito do Conselho, preparadas para
partir.
Desmodes, numa elevao na regio central do plpito, observava as
feies disciplinadas dos guerreiros. frente da tropa, que no cabia toda na
pequena plancie nivelada acima da rea do acampamento, estava o general
Evan. Sua seriedade no incomodava o novo detentor do poder mximo no
rgo. Evan seria fundamental em seu plano.
Bravos guerreiros do Conselho dos Magos. Comeara Desmodes,
falando perto de umminrio de somapoiado por umrudimentar brao verti-
cal de madeira. - Meu nome Desmodes, e na condio de novo mago-rei,
reuni a todos para um anncio da mais extrema urgncia e importncia.
Durante a gesto anterior muito fcou por ser feito. Dresden foi um
mago honroso e digno, que lutou por nossos interesses, por nossos direitos
e por nossa existncia. Temos que honr-lo, mas no preciso concordar
com seus feitos e suas escolhas. Podemos fazer mais. Devemos fazer mais.
por isto que representantes, nossos soldados, iro percorrer Heelum e
entregar a cada cidade um comunicado. Ns nos revelaremos, explicaremos
nossos objetivos e a razo de nossa existncia. Ns entendemos que o papel
dos magos liderar; mostrar o caminho. Um caminho melhor. Mais orga-
nizado, integrado, inteligente e prspero, onde todos ns nos encaixamos e
vivemos como devemos.
s cidades ser pedido que demonstrem sua lealdade ao entregar seu
exrcito para a formao de uma fora conjunta, que atuar na segurana
deste projeto. Sabemos, afnal. . . Que algumas cidades so movidas por
interesses baixos e ultrapassados. Elas no concordaro em deixar o pas-
sado para trs para se juntar a esta nova ordem. Devemos convenc-las,
e lutaremos com tudo que temos. Usaremos todo e qualquer meio de que
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dispormos.
Guerra. Disse Peri, baixinho, com Elton e Kevin, cada um de um
lado, olhando de soslaio para ele.
. . . Podemos dar incio aos procedimentos diplomticos.
Com um aceno discreto de Desmodes, os soldados comearam a puxar
as rdeas dos yutsis, dando partida s charretes. Saam, uma a uma em cada
vez maior velocidade, para ganhar as colinas do centro de Heelum, depois
as estradas e, por fm, as vinte e duas cidades de Heelum.
Sob o som de surpreendentes e surpresos urros e brados de excita-
o, Desmodes dava incio a uma nova era.
460
Mapas
Regio Noroeste de Heelum, divididas do resto do continente pelas
Grandes Cordilheiras (Ocidental e Oriental). Entre elas, a Grande Floresta
de Heelum e a Floresta Noroeste, a cidade de Rirn-u-jir.
Regio central de Heelum, ao sudeste da Grande Cordilheira Oriental do
Noroeste. Em proeminncia parte da Grande Floresta de Heelum, ao norte.
O Rio Al-u-bu (ao sul da foresta homnima) separa a regio central da
regio Sudeste.
Regio Leste de Heelum, com parte de Ten-u-rezin aparecendo ao norte.
Regio Sudoeste de Heelum. O Rio Imioraunk corta o deserto Imiorina.
Mais ao sudeste de Kerlz-u-een (que fca em meio Floresta dos Oniotos),
pode-se ver parte de Kor-u-een.

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