A Rua Do Ouvidor Na Reforma Do Rio de Janeiro 1902

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ENTRE CONTINUIDADE E RUPTURA: A RUA DO OUVIDOR NAS


REFORMAS URBANAS DO RIO DE JANEIRO (1902-1906)


Paula De Paoli
IPHAN-BA
pauladepaoli@ig.com.br





RESUMO

A administrao de Pereira Passos como prefeito do Districto Federal (1902-1906) foi marcada pela realizao
de grandes reformas urbanas, que atingiram, sobretudo, a rea central da cidade do Rio de Janeiro. As obras
foram justificadas atravs de um discurso que contrapunha nitidamente duas imagens: de um lado, a velha
cidade colonial, com vielas estreitas e casares insalubres e sem arte. E do outro lado, a cidade nova e radiante
que estava sendo produzida. Este discurso parecia, primeira vista, condenar os espaos da velha cidade,
ainda que se tratasse espaos nobres como a Rua do Ouvidor, a mais importante rua comercial da cidade antes
das reformas urbanas. Por outro lado, ao reforarem a centralidade urbana tradicional, agindo
preferencialmente na rea da cidade velha, as reformas urbanas do Rio de Janeiro contriburam para a
valorizao daquela rea, a incluindo as ruas que no foram diretamente atingidas pelas obras, como a Rua do
Ouvidor, que manteve a mesma vitalidade de antes. O exemplo da Rua do Ouvidor funciona, assim, como um
contraponto para as reformas urbanas de J.J. Seabra em Salvador, que, ao promoverem o deslocamento da
centralidade urbana, comportaram um esvaziamento inexorvel do centro urbano colonial, que se aprofundou ao
longo do sculo XX.

PALAVRAS-CHAVE: Anlise de discurso. Modernizao. Experincia urbana.



ABSTRACT

The administration of Mayor Pereira Passos at the Federal District (1902-1906) was marked by the
implementation of major urban reforms, which came mainly in the central area of the city of Rio de Janeiro. The
works have been justified through a discourse that contrasted sharply two images: on one hand, the old colonial
city with narrow streets and unhealthy houses without art. And on the other hand, the new and radiant city that
was being produced. This discourse seemed at first sight to condemn the spaces of the old city, even if they


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were noble spaces as Rua do Ouvidor, the most important shopping street before the urban reforms. However, as
they strengthened the traditional urban centrality by acting preferably in the area of the old city, the urban
reforms of Rio de Janeiro contributed to the enhancement of that area, which included the streets that were not
directly affected by the works, such as Rua do Ouvidor, which kept the same vitality as before. The example of
Rua do Ouvidor thus works as a counterpoint to the urban reforms carried out by Governor J.J. Seabra in
Salvador, which, by promoting the displacement of the urban centrality, inexorably led to an emptying of the
colonial city center, that has deepened over the twentieth century.

KEYWORDS: Discourse analysis. Modernization. Urban experience.
1. INTRODUO

A administrao de Pereira Passos como prefeito do Districto Federal (1902-1906) foi
marcada pela realizao de grandes reformas urbanas, que atingiram, sobretudo, a rea
central da cidade do Rio de Janeiro. As obras foram justificadas atravs de um discurso que
contrapunha nitidamente duas imagens: de um lado, a velha cidade colonial, com vielas
estreitas e casares insalubres e sem arte. E do outro lado, a cidade nova e radiante que
estava sendo produzida, dotada de amplas avenidas para a circulao do ar e do trfego,
ladeadas por belos edifcios higinicos. Este discurso parecia, primeira vista, condenar os
espaos da velha cidade, ainda que se tratasse espaos nobres como a Rua do Ouvidor, a
mais importante rua comercial da cidade antes das reformas urbanas. Mas por outro lado,
ao reforarem a centralidade urbana tradicional, agindo preferencialmente na rea cidade
velha correspondente ao ncleo urbano colonial as reformas urbanas do Rio de Janeiro
contriburam para a valorizao daquela rea, a incluindo as ruas que no foram
diretamente atingidas pelas obras, como a Rua do Ouvidor, que manteve a mesma
vitalidade de antes. O exemplo da Rua do Ouvidor funciona, assim, como um contraponto
para as reformas urbanas de J.J. Seabra em Salvador, que, ao promoverem o deslocamento
da centralidade urbana, comportaram um esvaziamento inexorvel da centralidade
tradicional dada pelo ncleo urbano colonial, esvaziamento este que se aprofundou ao
longo do sculo XX.

A reverso do processo de esvaziamento do centro histrico, em Salvador, vem sendo
tentada em tempos recentes, onde a cultura parece ter-se tornado uma palavra-chave para
as intervenes e polticas de regenerao de partes de cidades, em especial daquelas de
formao mais antiga. A cultura aparece ao centro de estratgias de projetos urbanos,
num processo de globalizao e massificao cultural. Dentro destas estratgias, o
patrimnio histrico desempenha um papel especial, como um dos atrativos culturais
capazes de dinamizar a economia das cidades, e como tal, vem sendo inserido numa
dinmica de consumo globalizada atravs da fruio turstica. Estas estratgias agem com
frequncia em reas urbanas degradadas, e tm como objetivo a regenerao destas reas


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e sua reinsero na dinmica da cidade. Neste quadro, o caso de Salvador um exemplo
clssico, pois a revitalizao do patrimnio histrico atuou numa rea esvaziada,
abandonada pelos habitantes da cidade, com as edificaes em runas, e produziu um
espao urbano voltado exclusivamente para a fruio turstica, numa iniciativa liderada pelo
Governo do Estado da Bahia para atrair visitantes, e assim redinamizar a economia local.

Talvez por sua artificialidade, a iniciativa em Salvador parece no ter surtido o efeito
desejado. O centro histrico no voltou a ser ocupado pela populao local, e tornou-se um
grande parque temtico, um cenrio frio do qual os prprios turistas se ressentem. A
chamada de trabalhos para o presente seminrio pensar a cidade a partir destas reas
centrais tradicionais [...] permite refletir sobre a descentralizao demogrfica, a disperso
fsica, a especializao de usos, [...] a espetacularizao, a falta de regulao, as estruturas
urbanas e arquitetnicas recuperadas ou restauradas com funes de pouco impacto social,
a museificao parte visivelmente de uma preocupao com os limites deste tipo de
interveno, incapaz de atrair a populao local, de recuperar a rea central da cidade para
a fruio de seus habitantes. Observa-se aqui uma inquietao com a situao atual da
cidade de Salvador, na qual a crescente valorizao de outras reas levou ao abandono do
centro histrico ao esvaziamento da centralidade passada, ou tradicional por uma
poro importante da populao. Produz-se aqui uma situao inslita, na qual o principal
carto postal da cidade o centro histrico, imagem exportada para todo o mundo no
frequentado pelos seus prprios cidados. Transforma-se numa imagem vazia, ao mesmo
tempo em que a vida urbana se desenvolve em outros espaos.

O esvaziamento do centro histrico de Salvador decorre de processos de desenvolvimento
urbano ocorridos no longo prazo, mas teve como momento decisivo as reformas urbanas
realizadas durante a administrao do governador Jos Joaquim Seabra, entre 1912 e 1916.
Estas obras vieram consolidar o processo de deslocamento da centralidade urbana em
curso desde o sculo anterior, j que a maior parte do ncleo urbano colonial no foi
contemplada pelas obras, ao mesmo tempo em que foi valorizada uma outra rea da cidade,
na regio da Avenida Sete de Setembro / Praa da Piedade, adjacente ao ncleo histrico
cuja decadncia se acentuou. Neste sentido, as reformas urbanas realizadas no Rio de
Janeiro durante a administrao de Pereira Passos, na primeira dcada do sculo XX,
funcionam como um contraponto s reformas de Seabra, pois vieram reforar a centralidade
urbana pr-existente, agindo nas principais reas do ncleo urbano colonial e valorizando
seus espaos.

Este trabalho tem por objetivo analisar o papel da Rua do Ouvidor nas reformas do Rio de
Janeiro, papel este que seria marcado pela ambiguidade. Tratava-se da rua comercial mais


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importante da cidade antes das obras, mas que no foi includa no Plano de Melhoramentos
da Cidade. Por este motivo, alguns discursos da poca apontaram que ela seria superada
pelos novos espaos elegantes que estavam sendo produzidos na cidade. Mas por outro
lado, a manuteno da centralidade urbana e a crescente valorizao da rea central da
cidade engendrada pelo Plano fizeram com que a rua mantivesse sua vitalidade, mesmo
no tendo sido reformada. O trabalho pretende evidenciar a distncia entre os discursos que
reproduziam as justificativas das reformas urbanas, condenando a cidade velha, e a
dinmica urbana efetivamente engendrada pelas obras, na qual a Rua do Ouvidor continuou
a desempenhar um papel preponderante.

2. O PLANO DE MELHORAMENTOS DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

A administrao do engenheiro Francisco Pereira Passos como prefeito do Districto Federal
(1902-1906) foi marcada pela realizao de grandes reformas urbanas, que atingiram,
sobretudo, a rea central da cidade do Rio de Janeiro. As obras foram empreendidas por
dois setores distintos da administrao pblica. O Governo Federal, sob o comando do
Presidente da Repblica Rodrigues Alves, ficou encarregado da remodelao do Porto do
Rio de Janeiro, empreendimento que compreendia a construo do trecho final do Canal do
Mangue, na regio da atual Avenida Francisco Bicalho, e a abertura de uma avenida que
conectava o porto ao centro comercial da cidade. Esta avenida, batizada de Central, foi a
obra mais emblemtica dentre todas aquelas realizadas na poca, e tornou-se o grande
smbolo das reformas urbanas. As obras a cargo da Prefeitura foram condensadas no Plano
de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, organizado pela Commisso da Carta
Cadastral, repartio que integrava a Directoria Geral de Obras e Viao. O Plano consistia
na abertura de novas ruas e no alargamento e prolongamento de algumas ruas j
existentes, localizadas, em sua maioria, na rea central da cidade, com algumas
ramificaes para os bairros adjacentes. A obra mais emblemtica realizada pela Prefeitura
foi a construo da Avenida Beira-Mar, sobre aterro, ligando o centro Praia de Botafogo.
Embora se tratasse de dois mbitos distintos da administrao pblica, ambos estavam bem
sintonizados e afinados no principal aspecto do discurso, que era a necessidade de
modernizar a ento Capital da Repblica, transformando-a numa cidade civilizada, smbolo
do destino radioso que o Brasil desejava para si.

O conjunto das obras projetadas iria atingir profundamente o centro da cidade, a rea que
concentrava os principais servios e negcios, mas tambm a rea de formao mais
antiga, cujo traado virio provinha do perodo colonial e no havia sofrido modificaes
substanciais desde ento, apesar dos planos urbansticos e dos numerosos projetos de


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alargamento de ruas elaborados ao longo do sculo XIX, mas nunca realizados. Alm do
traado virio, considerado inadequado para a circulao do ar e do trfego, o discurso
tcnico da poca condenava as velhas edificaes da cidade, dotadas de alcovas, cmodos
de dormir que no recebiam ar nem luz diretamente do exterior. As alcovas foram
consideradas o principal vilo da insalubridade daquelas edificaes. Por este motivo, uma
das principais justificativas do Plano de Melhoramentos da Cidade foi a necessidade de
sanear as edificaes, o que deveria ser obtido atravs da demolio das casas mais
antigas e sua substituio por edificaes modernas. A escala urbana das intervenes e a
escala da produo arquitetnica aparecem intimamente ligadas no documento de
exposio de motivos do Plano:

Certamente no basta obtermos agua em abundancia e esgotos regulares para
gosarmos de uma perfeita hygiene urbana. necessario melhorarmos a hygiene
domiciliaria, transformar a nossa edificao, fomentar a construco de predios
modernos e este desideratum smente pode ser alcanado rasgando-se na cidade
algumas avenidas, marcadas de forma a satisfazer as necessidades do trafego
urbano e a determinar a demolio da edificao actual onde ella mais atrazada
e mais repugnante se apresenta. (PREFEITURA DO DISTRICTO FEDERAL,
1903. Grifos meus.)

As reformas urbanas foram, portanto, justificadas atravs de um discurso que contrapunha
nitidamente duas imagens: de um lado, a velha cidade colonial, com suas vielas estreitas e
seus casares insalubres e sem arte. E do outro lado, a nova cidade que estava sendo
produzida, dotada de amplas avenidas para a circulao do ar e do trfego, ladeadas por
belos edifcios higinicos. A construo de uma nova imagem urbana era um dos objetivos
principais das reformas em curso no Rio de Janeiro durante a administrao de Pereira
Passos, e os discursos de saneamento da cidade e melhoramento da circulao viria
estavam estreitamente associados questo do embelezamento urbano.

Quando observamos a contraposio das imagens da velha cidade e da cidade
modernizada que emerge deste discurso, notamos que a narrativa do passado foi uma
etapa fundamental da construo das justificativas das reformas urbanas. Isso aconteceu
porque o significado da palavra novo relativo o ato de declarar-se novo ocorre sempre
frente a algo considerado velho. Assim, a imagem da nova cidade radiante que as obras
pretendiam produzir s poderia ser delineada em sua plenitude quando contraposta a uma
outra imagem, que retratava uma cidade decrpita, decadente, insalubre. Como (no plano
do discurso, bom lembrar) s teria sentido promover reformas to profundas numa
estrutura urbana considerada decrpita, a imagem da nova cidade, saneada e bela, tinha
como contraponto necessrio e fundamental a imagem de uma cidade velha e decadente.
As duas imagens olhavam-se como num espelho s avessas, onde uma no poderia existir
sem a outra.


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Mas havia mais. Os discursos reformistas do perodo Passos condenaram abertamente o
passado, mas ao fazerem isso, condenavam veladamente o presente. Isso ocorria porque o
passado no seria condenvel enquanto passado, mas apenas na medida em que se
reconhecia que suas condies, consideradas negativas, se perpetuavam no presente. As
reformas urbanas foram justificadas com base na condenao da velha cidade do Rio de
Janeiro vista como uma cidade de vielas estreitas e casares insalubres e sem arte
porque os reformadores projetaram aquela imagem no ento presente da cidade. A partir
desta narrativa, deveria ser construda a nova cidade, atravs de reformas aptas a reverter
as condies consideradas naquele momento indcios do atraso da cidade. Assim, o
discurso reformista revelava sua face operativa. As narrativas do passado funcionavam
como estratgia discursiva para criticar o presente e justificar os projetos de transformao
da cidade, em direo ao futuro.

Por outro lado, importante notar o esquematismo desta construo, a bipolaridade que ela
traz consigo, reduzindo as inmeras leituras possveis da cidade a duas imagens estticas,
como quadros. Estas imagens estavam atreladas a uma estratgia discursiva precisa, da
qual os reformadores lanaram mo para justificar as obras. Mas para alm desta estratgia
estava a cidade, habitada por outros sujeitos, com outras expectativas e vises de mundo.
Estava tambm toda uma cultura de produzir e habitar a cidade, de resto compartilhada
pelos prprios tcnicos que elaboraram os projetos de renovao urbana. Os discursos que
justificaram as obras nos termos de uma antinomia entre velho e novo pairavam sobre esta
cidade, conferindo-lhe uma imagem extremamente emblemtica, tanto que dominou as
leituras posteriores a respeito das reformas urbanas at os dias de hoje. Mas tal imagem,
em seu esquematismo, no capaz de abarcar a complexidade dos processos de
construo da cidade que estavam em curso. A anlise de certas situaes urbanas que se
configuraram naqueles anos aponta que diversos elementos da cidade velha foram
incorporados na produo da nova cidade, ao mesmo tempo em que esta no constituiu
uma anttese em relao velha, justamente porque aqueles elementos no eram velhos,
mas faziam parte do presente da cidade, da vida cotidiana e da cultura de seus cidados.

3. A RUA DO OUVIDOR NAS REFORMAS URBANAS DO INCIO DO SCULO XX

Esta questo seria particularmente visvel no caso da Rua do Ouvidor, templo do comrcio
elegante do Rio de Janeiro no sculo XIX, constantemente evocado na literatura da poca.
Devido ao seu papel central na cidade e na sociedade do sculo XIX era ali que corriam
as modas, as fofocas das rodas de literatos, as intrigas polticas a Rua do Ouvidor tornou-


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se uma espcie de cone s avessas das reformas em curso durante a administrao
Passos. Funcionava, por um lado, como ponto de referncia, cuja elegncia deveria ser
superada pelos novos lugares elegantes que se estavam produzindo na cidade. Mas, ao
mesmo tempo, possuiria caractersticas das quais a nova cidade deveria se afastar. Esta
ambigidade transparece, por exemplo, na narrativa de Brasil Gerson a respeito da Rua do
Ouvidor, em sua Histria das ruas do Rio de Janeiro. Por um lado, ele mostra a rua como
centro importante e vital de comrcio da cidade, com lojas vistosas. Por outro, este vio
seria apenas o precursor das lojas modernas, ao mesmo tempo em que o luxo do comrcio
da rua iria conviver com um calamento de m qualidade, esburacado, e com a passagem
de carros de boi! Embora no escondesse sua admirao pela rua (talvez justamente desta
admirao, to viva nos autores que vivenciaram a Belle poque carioca, decorra a
ambigidade do seu relato), a Rua do Ouvidor aparece aqui como algo a ser suplantado
para que a cidade desse o salto definitivo em direo ao progresso:

At a chegada de D. Joo VI, em 1808, nada a distinguia particularmente
das demais do centro da cidade. Para o padre Perereca o que nela havia ento de
mais destacado era a pequena Igreja da Lapa dos Mercadores.
Com a abertura dos portos do Brasil ao comrcio internacional, ingleses e
franceses, mais do que outros estrangeiros, logo se estabeleceram entre ns, os
primeiros como importadores e atacadistas, os segundos como varejistas tambm,
especializados em cambraias, sedas, chapelaria, barretes de seda e algodo,
perfumes, objetos de modas e fantasia, jia, alfaias de luxo e livros. Com os
comerciantes vieram ainda modistas, cabelereiros, sorveteiros, doceiros, etc., com
seus modos e suas artes expondo seus produtos em vistosas armaes de
jacarand, precursoras das vitrines modernas e desde a uma outra vida principiou
para a Rua do Ouvidor, sempre de mistura, porm, com a antiga representada
pelo seu precrio calamento de alvenaria, suas guas empoadas, sua pobre
iluminao a azeita de peixe, com os carros de boi a percorr-la lentamente...
(GERSON, s/d, pp.48-49. Grifos meus.)

Por este motivo, Gerson afirma que a Rua do Ouvidor foi superada, no incio do sculo XX,
pela Avenida Central, o novo templo da elegncia. Para ele, a Avenida seria uma espcie de
Rua do Ouvidor passada a limpo, na qual estariam presentes as modas, o luxo, as belas
gentes, mas sem a largura exgua daquela (de resto a mesma at hoje), sem a precariedade
de seu calamento (tambm esta bastante presente), e, sobretudo, sem os velhos hbitos
que conviviam, na Rua do Ouvidor, com o desfile dos personagens da alta sociedade que
faziam dali a sua vitrine, j que o prefeito Passos ter-se-ia encarregado de promover uma
faxina social no centro da cidade, coibindo certos usos sujos, como o comrcio ambulante
e os quiosques. No relato de Gerson, a elegncia da Rua do Ouvidor concentrava-se em
algumas horas do dia, e dividia espao com as cadeiras na calada aps o almoo, com
carroas e vacas, fadadas a desaparecer da cidade modernizada. Na nova Avenida
Central, a elegncia seria completa e por inteiro, em todas as horas do dia, porque a cidade
enfim estaria liberta do rano do passado. Por isso, a Rua do Ouvidor deveria perder sua
condio de lder:


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A abertura da Avenida Rio Branco, nos primeiros anos deste sculo, veio
destron-la dessa sua condio de nossa rua lder, que manteve por quase 90 anos.
Evoquemo-la, pois, tal como a viu ainda Coelho Neto nesse apagar das luzes do seu
esplendor, quando as picaretas comandadas por Pereira Passos punham paredes
abaixo bem perto dela de madrugada funcionando como uma espcie de esfago
da cidade, a dar passagem a carroas atulhadas de verduras, frutas e lenha, e s
vezes, at de rebanhos de bovinos que se espantavam, pondo a gente a correr, a
esgueirar-se pelos vos das portas; das dez s onze servindo para a digesto dos
seus comerciantes vindos de dentro das lojas, bem almoados, para as cadeiras
postas nas caladas; e a tarde, das trs s cinco, para a defile da elegncia e do
esprito, do vcio e da misria tambm, numa promiscuidade fantstica de roda
concntrica de lanterna mgica, baralhando-se, confundindo-se... (GERSON, s/d,
p.56. Grifos meus.)

A imagem da Rua do Ouvidor desbancada pela Avenida Central nasce no seio do prprio
discurso reformista que justificava a transformao da cidade. Estava permeada pela idia
de que as reformas urbanas empreendidas durante a administrao Passos seriam mesmo
reformas totais, que o velho seria integralmente removido para dar lugar ao novo, sem
possibilidade de coexistncia ou compromisso. E, sobretudo, pela idia de que o velho era
velho, justamente, e no parte integrante do presente da cidade. Esta condenao de um
momento atual considerado velho tornava-se ainda mais paradoxal no caso de um
presente reconhecidamente glamoroso como o da Rua do Ouvidor. Da decorreria a
ambigidade destes relatos, permeados ao mesmo tempo pelo desprezo por sua estreiteza
e mau calamento, e por uma indisfarvel admirao pela elegncia da Rua do Ouvidor.

A idia do ocaso da Rua do Ouvidor, abraada com entusiasmo por parte da imprensa e da
literatura da poca das reformas, foi o mote de um divertido texto do cronista Gil, publicado
na revista Kosmos em novembro de 1905. No texto, intitulado A grande arteria (de Aleixo
Manoel Avenida Central), aparecem contrapostas a Rua do Ouvidor e a Avenida Central.

Por volta de 1774 a rua de Aleixo Manoel descia do Campo de S. Domingos
at a praia de Salvador Corra. Tinha sido o Caminho do Mar e j era naturalmente
a arteria da cidade, ligando-lhe o corao palpitante orla maritima onde os navios
de velas pojadas e arcabouo repleto esperavam a hora da descarga ou o apito da
partida. [...]
Aleixo Manoel era barbeiro da nobreza e a sua casa uma das melhores da
rua, que nessa epocha orava por pouco mais de um carreiro aberto no solo verde e
salteado de construces ligeira; [...].
Foi essa a genese da grande arteria. No havia, por esses tempos, a
preoccupao da rua, a predileco systematica por este ou aquelle trilho de
passeio, o dominio de uma via da moda, mas a arteria fez-se naturalmente porque
alli passava toda a gente, desde os homens de negocios que iam aos trapiches e
aos armazens da rua Direita s mulheres de egreja que iam ao Carmo e a S.
Sebastio, e nella paravam, porta do barbeiro da nobreza, os que tinham tempo
para ouvir novidades e maledicencias. [...]
[...] A rua foi mudando successivamente de geito, de feio, de habitos e de
nomes, at ser, com o trabalho transformador de dezenas e dezenas de annos, a
rua do Ouvidor e a grande arteria da cidade e da moda.
[...] pela rua do Ouvidor passou, atravez de quatro seculos, a moda, o
requinte, o genio do Rio de Janeiro, desde a cadeirinha silenciosa, carregada por
escravos, da dama rica do seculo XVII at o motocyclo ruidoso, impellido gazolina,
do pedalador faceto do seculo XX. [...]



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Mas, dominando a evoluo, as mudanas, o tumulto, essa vida crescente,
ficaram eternamente a casa, a navalha, a alviarice, a maledicencia, o criterio de
Aleixo Manoel. Transformaram-se os usos, as modas, as lettras, as formas
movedias da populao; mas a cidade permaneceu immutavel no seu caracter
primitivo, fixada nos seus predios e na sua vontade sem altura e sem luz, nas suas
ruas e nas suas ideias estreitas. O Rio de Janeiro, factor e producto, ao mesmo
tempo, da Grande arteria, conservou, na sua maneira intima, a tradio do barbeiro
da nobreza, patrono da grande dominadora; e o seu criterio de conforto, de
grandeza e de ordem moldou-se pelos ideaes de Aleixo Manoel, circumscriptos
sua casita feliz de grades de madeira e ao privilegio de escanhoar as faces dos
fidalgos e de fallar de alto da vida de toda a gente da cidade.
E o Rio de Janeiro foi durante decennios sem conta a resistencia, o tropeo,
a opposio a todas as tentativas contra a tradio rotineira, a maldade contra os
que se abalanaram a tanto. [...]

A grande arteria dominava o Rio e o Rio suggestionava o Brasil; e sobre a
grande arteria, dominando a casquilhice das suas lojas, a elegancia de seus
flaneurs, a competencia dos seus politicos, a philaucia dos seus discutidores
avultava a tradio de Aleixo Manoel, estacionado e feliz na sua casita de grades de
madeira e na sua navalha prestadia.
A Avenida veio desfazer, corrigir, transformar tudo isso. Houve um
administrador intelligente bastante para comprehender que a rua estreita era a razo
de ser da suggesto doentia e bastante energico para prover cura, mesmo com a
opposio provavel do curado. [...]

Resurgimos. Quem, ao claro sol da tarde ou reverberao dos grandes
fcos electricos, percorre com o olhar a formosa perspectiva da Avenida, a linha das
construces magnificas onde a agulha dos lanternins e a curva das cupolas se
recortam no ar leve, [...] no pensa em invejar as terras e os homens que invejava
em outro tempo. A multido que tumulta no pavimento polido em que os carros de
passeio silenciosamente desfilam, a que se crusa nas ruas largas que cortam a
avenida, realmente a populao nova e forte de uma forte e nova cidade; [...].
Este milagre fez-se com uma audacia de operador e uma arteria nova. Hoje
temos realmente a Grande arteria.

Como podemos ver, o texto consiste numa espcie de histria da cidade do Rio de
Janeiro, que narra, numa linha evolutiva, a formao da Rua do Ouvidor, com sua natureza
de centro nevrlgico da vida social urbana (gravitando em torno da barbearia de Aleixo
Manoel), sua posterior transformao em centro de comrcio de luxo, e finalmente, a
abertura da Avenida Central, o passo definitivo em direo ao progresso, onde as
condies negativas que estariam presentes na Rua do Ouvidor seriam finalmente
superadas. Tais condies negativas decorreriam do fato de que a Rua do Ouvidor,
mesmo em seus tempos de esplendor e glria no sculo XIX, conservaria os traos de
quando se chamava Rua de Aleixo Manoel uma rua estreita, ladeada por uma arquitetura
mesquinha e sem gosto. A completar o quadro, a prpria figura de Aleixo Manoel
mostrada como a de um homem sem ambio, satisfeito em sua pequena casa, a falar da
vida alheia e escanhoar as faces dos verdadeiros fidalgos. Embora fosse uma figura popular
na cidade, Aleixo Manoel no seria mais do que um pobre barbeiro. Numa palavra, o autor
acusa a Rua do Ouvidor de ser a expresso material da falta de ambio, da mentalidade
estreita do carioca de antanho, que se teria contentado em construir seu espao de luxo e
elegncia naquele corredor acanhado. E a Avenida Central teria vindo corrigir de forma
definitiva este defeito.


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Quanto figura de Aleixo Manoel, o relato parece ter subestimado deliberadamente sua
importncia. Ele referido por Brasil Gerson como um dos mais abastados habitantes da
cidade, e, segundo a usana dos tempos coloniais de dar s ruas o nome de seu morador
mais importante, o ento Desvio do Mar, primeiro nome da Rua do Ouvidor, foi conhecido
durante muitos anos como Rua de Aleixo Manoel (GERSON, s/d, pp.47-48). J Paulo
Berger, no verbete dedicado Rua do Ouvidor em seu Dicionrio histrico das ruas do Rio
de Janeiro, tambm destaca a importncia de Aleixo Manoel, por diversas vezes vereador
da Cmara do Rio de Janeiro. (BERGER, 1974, p.96). Desta forma, podemos observar no
texto do cronista Gil, acima citado, o uso da mesma estratgia discursiva presente na
construo terica das reformas urbanas a depreciao de algo caracterizado como velho,
frente ao qual se constri a defesa de algo apresentado como novo. A representao de
Aleixo Manoel como homem conhecido na cidade, mas sem ambio, permitiu ao autor a
construo de uma metfora depreciativa, embora divertida, da origem da Rua do Ouvidor,
contra a qual ele produziu sua imagem do triunfo da Avenida Central.

Mas nem sempre a idia de que a Rua do Ouvidor seria suplantada pela Avenida Central foi
motivo de jbilo. Na edio da revista Kosmos de fevereiro de 1905, o artigo intitulado A Rua
do Ouvidor, de Jacomino Define, refletia sobre a incerteza do futuro da rua, j que as
principais lojas, pensava-se, migrariam para a Avenida Central. Escrito num tom diferente,
de melancolia pela rua tradicional que perdia sua majestade, o artigo interessante por
situar a Rua do Ouvidor de forma positiva no presente da cidade, ao passo que a Avenida
Central, referida com fina ironia, aparece em algum ponto de um futuro incerto, embora
radiante. importante notar, porm, que tanto este artigo quanto o outro, A grande arteria,
partiam da mesma idia as reformas urbanas como ruptura, que marcava o fim de um
tempo e o incio de outro. Embora com sinais invertidos, ambos reproduziam, assim, o mote
dos discursos reformistas da poca.

Mas apezar da tua gloria, do teu encanto, da tua feminilidade que desarma e
enleia, houve homens audazes, que em nome de leis supremas e inflexiveis, te
vararam de lado a lado, te cortaram ao meio, com a mesma ferocidade com que os
iconoclastas truncavam as estatuas das deusas antigas. E sobre os teus destroos,
ainda annuviados de p, passou a tua rival triumphante, e j comea a erguer-se e a
estender-se, ameaando a tua hegemonia. Sobre o teu destino pesa a melancholia
das dynastias que se extinguem. E tu nada podes oppor outra, a essa magestosa
Avenida que ainda no sahiu dos limbos e j te atravessa o passo e j te offusca.
[...]

E por uma extranha ligao de idas, pareceu-me que tu eras semelhante a
essa fina matrona, e a Avenida igual moa morena, ambas to bellas e to
diversas; tu, com a tua graa sapiente e requintada, com a gloria do teu passado e
o fulgor do teu presente, ella com o esplendor e a pujana da sua belleza e da sua
mocidade divina, e a amplido radiosa e inabrangivel do seu futuro. Mais uma
vez em ti e na tua rival se enfrentam duas geraes, duas epochas oppostas: e a
que surge, quasi sempre dominadora e sem piedade. Tu nada podes oppor


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outra: porque ella vae ter tudo o que tu no tens: a novidade, a largueza, os predios
magestosos, as arvores fazedoras de frescura, e uma doce virao que vae de mar
a mar.
E que ser de ti ento?
Uns dizem que sers sempre a mesma, senhora da Elegancia e da
Intelligencia; que sers sempre o mesmo salo, o mesmo lugar do flirt, a mesma
vitrina continua, o mesmo fco de luz do Pensamento, da Palavra e da Belleza. Que
a outra ser um vasto emporio commercial, cheio de sol e atordoante, e que nunca
os teus finos fieis trocaro a sombra de teus passeios e a graa fidalga do teu
ambiente, pela agitao trabalhosa, atropellante e plebea da outra.
Outros que conhecem talvez melhor o futuro e o corao dos homens,
predizem que todos te abandonaro, desde as bellas damas at os cafs, desde os
jornaes at as joalherias fulgurantes que te engemmam. J alguns destes, deram o
signal de debandada. E todos os outros, affirmam, iro, levados pelo mesmo vento
de novidade, pela mesma onda fatal e irresistivel, assim que surgir a outra branca e
pura, a Rainha nova, que se apparelha e trabalha infatigavelmente para o triumpho.
Assim annunciaram elles o fim da tua hegemonia, e fazem pesar sobre o teu
destino a melancholia das dynastias que se extinguem. (Grifos meus.)

Apesar da eloquncia destas narrativas da fora da idia de que a Rua de Ouvidor
perderia seu posto para a magnificncia da Avenida Central, que, como vimos, foi alm dos
relatos da poca e perpassou tambm os escritos de Brasil Gerson, vrios anos depois ,
podemos nos perguntar at que ponto as reformas urbanas constituram, de fato, uma
ruptura nos hbitos e na vida da cidade.

Outros relatos de pessoas que vivenciaram a Belle poque carioca nos permitem questionar
a idia de que a Rua do Ouvidor seria suplantada pela Avenida Central. Isso porque nos
mostram que no houve esta dicotomia. Parecem apontar mais para uma convivncia, para
a coexistncia de diversas ruas elegantes algumas novas, algumas velhas, algumas
alargadas, algumas no. Dentre as principais estavam a Avenida Central, certamente, e a
nova Rua da Uruguayana, alargada pela Prefeitura. Mas tambm as antigas ruas do
Ouvidor e Gonalves Dias, sendo que estas ltimas no passaram por melhoramentos
substanciais alm da reforma do calamento, permanecendo com a mesma (e pequena)
largura de sempre. O que no as impediu de continuarem sendo das ruas mais importantes
da cidade. Citando um pequeno exemplo, data de 1912 o atual edifcio da Confeitaria
Colombo na Rua Gonalves Dias. O fato da mais importante confeitaria da cidade
reconstruir sua sede naquela rua (a confeitaria fora fundada na dcada de 1890) e no
numa das novas avenidas recm-criadas um forte indcio da manuteno da vitalidade e
da centralidade da Rua Gonalves Dias depois das reformas urbanas.

Podemos perceber isso no livro O Rio da Bela poca, de memrias do jornalista Carlos
Maul. O livro comea com a chegada de Maul ao Rio (ele era natural de Petrpolis e fora
para a Capital para concluir os estudos). Narra a viagem, primeiro de trem, e depois de
barca, at o desembarque no cais da Praa Mau, de onde se descortinavam os trabalhos
de abertura da Avenida Central.


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Por fim a Prainha... Todos se dirigem a seus pontos de destino. So indivduos
apressados, de maleta na mo, uns tomam carruagens prpria que os aguardam,
outros saem a p. Fao o mesmo. Em dado momento, quando me encontra ainda
sob a emoo daquele ato de ingresso em terreno desconhecido e misterioso, paro
e observo. A minha frente rasga-se uma perspectiva de espanto. Centenas de
trabalhadores atacam pardieiros que se esboroam aos golpes das picaretas.
Paredes desmoronam. O ar enche-se de poeira. Ao longe tambm h mar. Num ou
noutro trecho dessa imensa abertura feita atravs de quarteires que somem
rapidamente, ergue-se um edifcio recm-construdo, dos raros que na ocasio
assinalam que ali ser a artria principal da cidade, com dezoito metros de largura e
perto de dois quilmetros de extenso: a Avenida Central. qualquer coisa de
espantoso para o rapazinho da provncia acostumado s ruas e praas reduzidas do
seu lugarejo silencioso e buclico... Vou caminhando aos saltos sobre montes de
pedras, alcano uma calada cheia de rombos, ando nos meio-fios de cantaria que
em breve sero o prolongamento da parte j concluda. (MAUL, 1967, pp.10-11)

Mas nem tudo era destruio naquelas paragens. O percurso do jovem Maul prossegue, ao
longo do canteiro de obras da Avenida, at a esquina da Rua do Ouvidor. Ali, ele nos
descreve um outro cenrio uma moderna confeitaria, com mesas na calada, onde ele se
senta a observar o movimento dos pedestres que dobravam na Rua do Ouvidor.

Mais dez minutos, e eis-me na esquina da rua do Ouvidor, a via famosa com uma
histria pontilhada de incidentes e que muito me daria para contar mais tarde sobre
coisas e sobre figuras da bela poca... Nas imediaes ainda no terminara o prdio
mais alto, onde se instalaria o Jornal do Brasil definitivamente. Ao lado uma
confeitaria com mesas na calada. Tomo lugar diante de uma delas [...]. Da calada
em frente confeitaria da Avenida, eu contemplava os transeuntes que subiam e
desciam, quase sempre apressados, e dobravam a esquina da rua do Ouvidor.
(MAUL, 1967, pp.10-11)

Podemos duvidar da temporalidade deste relato, j que as demolies para a abertura da
Avenida Central ocorreram de uma s vez ao longo de todo o seu traado, e que esta fase
antecedeu a construo das novas edificaes, sendo, portanto, muito difcil que houvesse
uma confeitaria pronta e funcionante, com mesas na calada, convivendo com demolies
nas proximidades da Praa Mau. Mas esta diversidade de cenrios composta por Maul nos
diz muito sobre a natureza de seu discurso. Trata-se de um livro de memrias, fiel
lembrana dos fatos, mas no muito preciso quanto s datas. Talvez o autor simplesmente
no tenha suportado a idia de mostrar um cenrio de destruio nas proximidades da Rua
do Ouvidor (ela mesma atravessada pela Avenida Central, contando com diversas
edificaes demolidas para a sua abertura), e tenha ento superposto em seu relato dois
tempos distintos destruio e reconstruo.

O que nos interessa aqui que Maul confirma a manuteno da importncia da Rua do
Ouvidor, mesmo aps a abertura da Avenida Central. Em primeiro lugar, pelo grande
movimento dos transeuntes, digno de ser observado. Os pedestres vinham pela Avenida
Central e dobravam na Rua do Ouvidor, isto , percorriam as duas ruas, indistintamente. A
velha rua no fora suplantada pela nova. Em segundo lugar, porque ele afirma que a Rua do


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Ouvidor lhe rendera boas histrias sobre os personagens da Bela poca. Ora, se ele afirma
que a Bela poca se iniciou no momento das reformas urbanas e prosseguiu pelas trs
dcadas seguintes, isso significa que a Rua do Ouvidor continuou a ser freqentada por
personagens centrais para a vida intelectual da cidade mesmo depois das reformas. No foi
abandonada como alguns temiam. A seo do livro intitulada As conversas na Garnier
reafirma este fato.

A Livraria Garnier, na Rua do Ouvidor, era a Meca dos provincianos que de
longe viam naquele centro de mercancia de livros uma espcie de casa de Deus da
literatura. Entrar ali, tarde, exibir-se na porta aos transeuntes, constitua motivo de
orgulho para determinados moos de alma ingnua e povoada de esperanas que
se sentiam felizes pelo respirar o mesmo ar sagrado que respiravam as figuras
eminentes reunidas no fundo da loja. At 1907, um ano antes de sua morte,
Machado de Assis era o pontfice daquelas tertlias que congregavam Alberto de
Oliveira, Jos Verssimo, Mrio de Alencar, vez por outra Coelho Neto, tambm
passageiramente Olavo Bilac, e outros nomes de proa. Alguns eram como rvores
cuja sombra se acolhiam certos pretendentes a uma futura vaga na Academia. [...] e
era na Garnier que se processavam os entendimentos, Joo do Rio, dava umas
escapadas da Gazeta de Notcias, que ficava fronteira, e ia atrs das novidade
preparatrias do pleito a que concorreria com o filsofo Herclito Graa [...]. (MAUL,
1967, p.173.)

Este trecho do livro aponta vrias questes interessantes. Em primeiro lugar, Maul nos
mostra que a Livraria Garnier no mudou de endereo, no trocou a Rua do Ouvidor pela
Avenida Central, assim como a redao da Gazeta de Notcias, que ficava em frente. Alm
disso, mostra que, em pleno 1907, ela continuava freqentada pelos mesmos personagens,
conservava o mesmo movimento de antes da abertura da Avenida Central. No teria havido,
portanto, a ruptura nos hbitos propalada nos discursos da poca entre o antes e o
depois. E assim, o antigo Desvio do Mar, Rua de Aleixo Manoel e, posteriormente, Rua do
Ouvidor, adentrou o sculo XX e sobreviveu s reformas urbanas como uma das mais
importantes ruas da Capital da Repblica.

Luiz Edmundo, adente defensor das reformas urbanas, descreveu a Rua do Ouvidor no
incio do sculo XX (antes das obras), no livro O Rio de Janeiro do meu tempo, num captulo
intitulado A Rua do Ouvidor pela alvorada do sculo. Trata-se de um relato precioso, por
conter uma reconstituio minuciosa das casas de comrcio estabelecidas na rua,
sobretudo nas ltimas quadras, entre o Largo de So Francisco e a Rua dos Ourives (atual
Rua Miguel Couto), consideradas as mais elegantes.

A artria principal da cidade, a mais elegante, a mais limpa, a de aspecto
menos colonial, ainda a Rua do Ouvidor. [...] A rua, que a Municipalidade de
ento chama Moreira Csar e o povo, como sempre, rua do Ouvidor, apenas um
pobre corredor entre tantos corredores da cidade, um bor menos rstico que os
outros, embora mais festivo, e, sobretudo, muito mais freqentado.

A parte de maior animao e maior vida a que se fixa entre os quarteires
que se estendem do Largo de S. Francisco, que ento se chama Praa Coronel
Tamarindo, at a Rua dos Ourives. A esto as lojas de mais requintado luxo e


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aparato, de melhor clientela e considerao. Todo um bazar de modas. So rasges
claros em montras de cristal, resplandecendo, faiscando ao sol, arcos de entrada em
boa cantaria, de madeira de lei envernizada ou mrmore, conjunto dizendo certa
distino, capricho, destoando na linha geral do casario irregular de vulgar
arquitetura. Nelas vem-se caixeiros e patres dentro de uniformes de linho branco,
muito limpos, muito bem barbeados, afetando maneiras, mostrando sorrisos e
falando em francs...
Nesse trecho, com pouco mais de cem metros de extenso, que palpita a
vida elegante da cidade, trnsito obrigatrio dos que chegam dos arrabaldes parte
central da cidade, a compras ou a passeio. [...]

Quando se avana, entanto, um pouco mais para diante e vai-se alm da
linha que defronta a joalheria do Farani, no ngulo com a Rua dos Ourives, alm da
Casa Tour Eiffel, armazm de novidades do barbaceno Portela, figura
popularssima, sempre porta do seu magazin, e dos imveis onde se instalaram a
Gazeta, O Pas e o Jornal do Comrcio, j se comea a sentir grande diferena. A
vitrine no mostra mais a graa, o apuro e o bom gosto das primeiras que deixamos
atrs; os homens das lojas, por sua vez, no parecem os mesmos. A caixeirada j
se agita em mangas de camisa. Menor o movimento, a animao, o rudo. E, se
descermos mais um pouco, atravessando a Rua 1 de Maro, em caminho do mar,
Santo Deus! Ao invs de vitrines ou de lojas, mesmo de aparncia regular, o que se
v o armazm mal arranjado e sujo, com as rstias de cebola dependuradas pelos
tetos, mantas de carne-seca enodoando portais, o toucinho de fumeiro, mostra o
bacalhau da Noruega, o polvo seco em falripas, crucificado em ganchos, e, em meio
a todo esse mostrurio de comestveis, a clssica, a eterna, a infalvel ruma de
tamancos! [...]
H de se concordar que a elegncia da Rua do Ouvidor, nesse trecho, um
tanto precria. E cheira em demasia ao pouco amvel tempo da Colnia. Os
palavres parte.
Imundo quarteiro!
Ao tradicionalista, porm, o trecho sujo e barulhento interessa, porque o Rio
de cem anos atrs. (EDMUNDO, 1957, pp.65-71.)

Podemos notar no relato de Luiz Edmundo as caractersticas j apontadas nos textos
analisados acima. Tambm aqui a Rua do Ouvidor foi referida como um pobre corredor
estreito, ao qual apenas as boas lojas emprestavam um vio diferente dos tempos da
colnia. Destoam, as lojas, daquilo que ele considera o casario tosco da rua. Suas portas de
entrada, guarnecidas de cantaria ou mrmore, e seu mobilirio interno luxuoso constituiriam
rasges de luz no cenrio lgubre. O relato traz ainda outra informao relevante. A
distribuio das lojas elegantes no seria uniforme ao longo de toda a rua. O comrcio de
luxo estaria concentrado nas ltimas quadras, entre o Largo de So Francisco e a Rua dos
Ourives, e escassearia descendo em direo ao mar. As primeiras quadras da rua (a
numerao parte do mar para o interior), onde ele identifica armazns mal arranjados e
caixeiros de maus modos, pareciam transpostas dos tempos da colnia. Ele constri assim
um quadro que contrape a elegncia de inspirao francesa das ltimas quadras a este
cenrio empobrecido, onde se ouviria o rufar dos tamancos, de derivao
inconfundivelmente portuguesa.

Muito se poderia dizer sobre o anti-lusitanismo de diversos autores daquele momento
histrico, que consideravam o passado colonial uma vergonha e culpavam Portugal pelo
atraso do Brasil, ao mesmo tempo em que buscavam, sobretudo na Frana, um novo
modelo de cultura no qual espelhar-se. Mas nos basta apontar aqui que Luiz Edmundo,


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embora admire a elegncia do comrcio da Rua do Ouvidor, compe um quadro onde tal
elegncia no completa. A contraposio entre Frana e Portugal aparece para conferir
tintas mais vivas a este quadro, inserindo a Rua do Ouvidor num degrad que vai do alto
luxo mais absoluta desolao. Faltar-lhe-ia algo para que sua elegncia fosse plena um
algo que ele menciona na introduo do livro, dedicada exaltao as reformas urbanas,
ao mesmo tempo em que lana crticas aos tradicionalistas da poca, como se estes
defendessem apenas a sujeira e o atraso da cidade colonial.

O qu teria acontecido s lojas elegantes da Rua do Ouvidor aps as reformas urbanas?
Ter-se-iam mudado para a Avenida Central? Teriam entrado em decadncia? Ou teria a
Rua do Ouvidor conservado sua dinmica, mantendo o ritmo de construes e reformas de
prdios, indcios de vitalidade? Os escritos analisados acima nos permitem supor que a rua
manteve sua vitalidade, e continuou a ser frequentada pelos mesmos personagens de
antes. O estudo da dinmica imobiliria da rua tambm aponta nesta direo. Esta ser
analisada atravs das licenas de obras depositadas no Arquivo Geral da Cidade do Rio de
Janeiro (AGCRJ), que permitem avaliar a natureza das obras por que passaram algumas
das casas comerciais mais importantes da rua na ltima dcada do sculo XIX e nas duas
primeiras do sculo XX.

A Casa Colombo, de Portella & Cia., destruda em um incndio, foi reconstruda em 1898
(AGCRJ, cod.21.2.18, fls.168-170.). A petio do caso menciona que a casa destruda era
nova, e o proprietrio desejava reergu-la tal como era. Tambm foi reconstrudo o prdio
da editora Laemmert (AGCRJ, L.O.1898, cx.01, doc.02.). Ainda em 1898, o alfaiate Gabriel
Jos Raunier realizou modificaes internas em seu estabelecimento, localizado em dois
lotes contguos, com o remembramento parcial dos dois imveis (AGCRJ, L.O.1898, cx.04,
doc.02.). Em 1899, a Confeitaria Paschoal, de Carvalho & Cia., passou pela reconstruo do
4 andar e da cobertura, consumidos num incndio, e por reparos gerais. At aquele
momento, havia alcovas no 3 e 4 andares, que foram suprimidas com a abertura de uma
rea interna, de acordo com os novos preceitos da Hygiene, mas sem que o proprietrio
fosse intimado pela Sade Pblica a faz-lo (AGCRJ, cod.21.3.5, fls.31-38.).

Em 1900 foi reconstrudo o Caf do Rio, de Joo Ignacio de Brito, na esquina da Rua
Gonalves Dias. A petio para modificao do projeto aprovado d a entender que,
inicialmente, pensou-se em aproveitar alguns trechos da fachada da edificao pr-
existente, idia esta abandonada no decorrer da obra: Demolindo todas as paredes antigas
do predio em construco, se requer modificao das larguras das portas da loja no projeto
aprovado, visto ter cessado o motivo da desigualdade existente no projecto approvado que
era o aproveitamento das paredes existentes (AGCRJ, cod.21.3.17, fls.115-117 e


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cod.21.4.7, fls.35-36.). Tambm foi construdo um imponente sobrado, sede da Livraria
Garnier (AGCRJ, cod.21.4.6, fls.41-55.). Em 1902, a Companhia de Seguros Sul America,
pediu licena para anexar a rea dos terraos que ladeavam o 3 pavimento ao interior da
construo, produzindo uma sala ampla na frente do imvel, localizado na esquina com a
Rua da Quitanda (AGCRJ, cod.22.1.24, fls.170-171.). interessante notar que este imvel
estava situado no mesmo local onde, posteriormente, a empresa construiu sua nova sede
o grande edifcio ainda hoje existente, que ocupa uma quadra inteira entre as ruas do
Rosrio e Ouvidor.

Em 1903, a Sociedade Anonyma do jornal O Paiz requereu para obras internas na sede do
jornal, com projeto do engenheiro Adolpho Morales de los Rios. No fica claro na petio se
o prdio era o antigo ou se fora reconstrudo recentemente. As obras consistiam em
substituir as divises internas de estuque por divises almofadadas de madeira, construo
de uma nova escada, de carter monumental, inspirada no Renascimento italiano,
renovao do vestbulo e reparos gerais (AGCRJ, cod.22.3.13, fls.15-21.).

Em 1904, foi reconstruda a loja A Torre Eiffel, de Portella & Cia. O pedido de habite-se
ocorreu antes que fossem concludas as obras, j que os requerentes viram-se obrigados a
mudar-se dos prdios que ocupavam ( Rua do Ouvidor, n77-79) por exigncia da
Commisso Constructora da Avenida Central (AGCRJ, cod.22.4.22, fls.98-105.). Este caso
bastante interessante, pois mostra que os proprietrios, mesmo obrigados a mudar-se do
antigo estabelecimento, desapropriado para a abertura da avenida, optaram por continuar
na Rua do Ouvidor. Ainda em 1904, foi pedida a reconstruo do prdio localizado Rua do
Ouvidor, n28, na esquina da Rua Primeiro de Maro. Sobre o projeto, o arquiteto Alfredo
Burnier, da Directoria Geral de Obras e Viao, escreveu em despacho: acho demais
singelas as fachadas para ser edificadas nas duas ruas mais concorridas e centraes da
cidade (AGCRJ, cod.23.1.8, fls.149-156.). Este caso tambm confirma a manuteno da
importncia da Rua do Ouvidor, mesmo no quadro de reformas urbanas nas quais ela no
fora includa.

Ainda em 1904, os joalheiros Farani Sobrinho & Cia. requereram a abertura de uma
clarabia, eliminando a alcova que havia no sobrado, e pequenos reparos no imvel
(AGCRJ, cod.23.2.7, fls.166-167.). Pelos dados contidos no processo, no possvel saber
se se tratava de uma construo proveniente do perodo colonial ou no, j que o fato de
possuir alcova no conclusivo neste sentido. Mas a petio nos mostra que uma loja de
luxo podia estar instalada num imvel considerado inadequado pelos padres de
salubridade ditados pelas posturas municipais ento vigentes. Mostra ainda que a
adequao de resto perfeitamente possvel partiu de uma iniciativa do proprietrio, e no


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de uma intimao da Sade Pblica. Em 1905, o prdio foi objeto de um anncio de jornal
que mencionava seu bom estado de conservao:
SOBRADO NA RUA DO OUVIDOR. Aluga-se o espaoso e bem arejado 2 sobrado
do predio da rua do Ouvidor n.109, proximo rua Gonalves Dias, achando-se
completamente pintado e forrado de novo. Para tratar com Farani Sobrinho & C. na
loja do mesmo predio. (Gazeta de Noticias, 24 de Abril de 1905, Segunda-feira)

Tambm em 1904 foi reconstruda a Casa Gro Turco, de Estella & Cia. A casa era
composta por trs prdios contguos, mas independentes entre si, unificados por uma bela
fachada temtica, com motivos mouriscos (AGCRJ, L.O.1904, cx.06, doc.27.). Em 1905, foi
construdo o grande edifcio da Casa Raunier, do alfaiate Gabriel Jos Raunier, na esquina
da Rua da Uruguayana, ocupando toda a quadra da Rua da Uruguayana entre a Rua do
Ouvidor e a Travessa do Rosrio (AGCRJ, cod.25.2.35, fls.104-108.). Como nos informa
Luiz Edmundo na descrio da rua acima citada, o estabelecimento do alfaiate Raunier
estava localizado na ltima quadra da Rua do Ouvidor, entre a Rua da Uruguayana e o
Largo de So Francisco. Mas no ficava na esquina de Uruguayana, e sim, ao lado da casa
da esquina, ocupada por uma leiteria da Companhia Laticnios. Com o alargamento da Rua
da Uruguayana, a leiteria desapareceu, e ele ficou localizado na esquina. Negociou sua
permanncia com a Prefeitura e tratou de adquirir os lotes que davam para a Travessa do
Rosrio, constituindo, assim, o maior lote da nova Rua da Uruguayana, onde foi erguido seu
edifcio mais importante.

Em 1906, foi reconstruda a sede da Gazeta de Noticias, com o remembramento de dois
edifcios, que mantm uma diviso interna quase independente. A fachada seguiu o
repertrio da arquitetura ecltica erudita, inspirada no Renascimento italiano (AGCRJ,
L.O.1906, cx.17, doc.03.). Em 1909, foi reformado o prdio da Companhia de Calado Clark
Limited, localizado na esquina da Travessa do Ouvidor. A reforma compreendia o acrscimo
de um quarto pavimento e a reconstruo da fachada para a Rua do Ouvidor, cortando o
canto por um plano de 2,00m, segundo as disposies legais da poca (AGCRJ, L.O.1909,
cx.09, doc.13.). Segundo informao de Brasil Gerson, a Companhia Clark estava localizada
na Rua do Ouvidor desde 1822 (GERSON, s/d, p.53.).

Tambm em 1909, foi reconstrudo o edifcio do Caf Java, na esquina com o Largo de So
Francisco, ainda hoje existente, do lado mpar da Rua do Ouvidor (AGCRJ, L.O.1909, cx.48,
doc.07.). O edifcio, de trs pavimentos, abrigava diversas pequenas salas comerciais nos
sobrados. Em 1910, o sto foi transformado em ateli fotogrfico, dando para um terrao
que eliminou o telhado (AGCRJ, L.O.1910, cx.50, doc.20.). Em 1911 foi reconstruda a bela
loja Au Palais Royal, ocupando dois lotes que sofreram um remembramento. A fachada
seguia um repertrio formal ecltico, com clara inspirao na arquitetura francesa (AGCRJ,


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L.O.1911, cx.29, doc.11.). Em 1913, foi reconstrudo o Hotel do Rio Minho, localizado na
primeira quadra da Rua do Ouvidor, entre o mar e a Rua do Mercado (AGCRJ, L.O.1913,
cx.43, doc.1844.), e ainda hoje existente sob o n8. O lote onde est localizado o hotel
pertencia Irmandade da Santa Cruz dos Militares, de resto proprietria de todos os
terrenos do lado par da Rua do Ouvidor entre o mar e a Igreja da Santa Cruz dos Militares,
na esquina da Rua Primeiro de Maro. A Irmandade promoveu, ao longo do perodo em
questo, diversas reformas e reconstrues dos imveis de sua propriedade, todos ainda
existentes.

As licenas de obras acima mencionadas foram entremeadas por diversos outros pedidos
de construo e reconstruo de prdios, alm de uma srie de pequenas reformas, que
nos do uma idia da vitalidade da Rua do Ouvidor, e nos permitem conhecer a natureza de
suas edificaes. Preocupei-me em citar aqui apenas as obras relativas s lojas e casas de
negcios mais importantes, observando que elas se iniciam na ltima dcada do sculo XIX,
atravessam o perodo Passos e prosseguem depois, entrando pela dcada de 1910, de
maneira contnua. Isso mostra que as reformas urbanas em curso durante a administrao
de Pereira Passos no constituram uma ruptura na vida e nos hbitos da cidade, embora os
discursos da poca afirmassem o contrrio. Mesmo que as obras tenham produzido novos
espaos nobres no Centro da cidade, estes vieram a somar-se aos pr-existentes, ao invs
de eclips-los. A elegncia e a vida cultural no abandonaram a Rua do Ouvidor.

4. CONCLUSES

O estudo do caso da Rua do Ouvidor durante as reformas urbanas de Pereira Passos
mostra que o esvaziamento de uma rua no pode ser decretado por certos discursos. Este
depende de processos urbanos muito mais profundos e de muito mais longo prazo,
processos estes que no se observaram no Rio de Janeiro, onde as tendncias de
desenvolvimento urbano e os sucessivos planos de modernizao da cidade sempre
reforaram o papel do ncleo urbano colonial como centro da cidade. (Esta manuteno da
centralidade urbana faz com que a expresso centro histrico quase no seja usada para
designar a rea central do Rio de Janeiro. Isso ocorre porque aquela regio pensada
como centro o centro de comrcio e de negcios da cidade e no como um centro
histrico, expresso que parece designar uma centralidade passada, depreciando seu
papel como centro ativo, vivo e atual da cidade.) Justamente por este motivo, embora
defendessem as reformas urbanas e reproduzissem os argumentos usados para justific-
las, os discursos de certos autores do incio do sculo XX em relao Rua do Ouvidor


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foram ambguos por um lado, admitiam que ela no era plenamente moderna, mas por
outro, no podiam disfarar a admirao por sua elegncia.

As reformas urbanas ocorridas durante a administrao de Pereira Passos, ao agirem nas
reas mais centrais da cidade, reforando sua centralidade e ampliando sua valorizao,
contriburam para a manuteno da importncia da Rua do Ouvidor, ainda que esta no
tenha sido diretamente includa no Plano de Melhoramentos. As obras funcionam, assim,
como contraponto para as reformas urbanas de J.J. Seabra e os processos de
desenvolvimento urbano de Salvador, onde o deslocamento da centralidade levou a um
inexorvel esvaziamento do centro histrico um processo que o tombamento da rea pelo
IPHAN no foi capaz de deter, e que as recentes polticas de revitalizao encontram muitas
dificuldades para reverter.



REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

BERGER, Paulo. Dicionrio Histrico das ruas do Rio de Janeiro (I e II Regies
Administrativas: Centro). Rio de Janeiro: Grfica Olmpica Editora, 1974.

EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. 2 ed. Rio de Janeiro: Conquista, 1957.
5v.

Gazeta de Noticias, 24 de Abril de 1905.

GERSON, Brasil. Histria das ruas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura do Districto
Federal / Secretaria Geral de Educao e Cultura, s/d. Coleo Cidade do Rio de Janeiro.

MAUL, Carlos. O Rio da Bela poca. Rio de Janeiro: So Jos, 1967.

PREFEITURA DO DISTRICTO FEDERAL. Melhoramentos da cidade projectados pelo
Prefeito do Distrito Federal Dr. Francisco Pereira Passos. Rio de Janeiro: Gazeta de
Noticias, 1903.

Revista Kosmos. Fevereiro, 1905; Novembro, 1905.

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