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Revista Graphos, vol.
14, n 1, 2012 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 173
O CONTO BRASILEIRO DO SC. XXI
Rinaldo de Fernandes 1
NOTA:
Para compor o presente ensaio me vali da minha experincia de crtico (em minha coluna no jornal Rascunho, de Curitiba, tenho sempre tratado de contos contemporneos), de professor de Literatura Brasileira e, sobretudo, de antologista. Como alguns sabem, organizei, j nos anos 00, trs antologias: Contos cruis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contempornea (So Paulo: Gerao Editorial, 2006), Quartas histrias: contos baseados em narrativas de Guimares Rosa (Rio de Janeiro: Garamond, 2006) e Capitu mandou flores: contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte (So Paulo: Gerao Editorial, 2008). Constam dessas antologias 118 contos, que li atentamente. Convivi meses com eles, comentei-os com muitos dos seus autores. Um corpus to amplo, envolvendo escritores dos mais expressivos de nossa literatura atual, alguns j consagrados (a exemplo de Luiz Vilela, Dalton Trevisan, Moacyr Scliar, Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles e Nlida Pion), a maioria emergentes, outros ainda jovens promessas, no poderia, pelo menos em parte, ficar de fora de uma pesquisa sria sobre o conto brasileiro do sc. XXI. Procuro, assim, no exclusivamente, j que utilizo vrias outras referncias, dialogar com esse corpus, atento em especial fora dos emergentes. No ensaio, comento 28 contos, distribuindo-os em cinco vertentes, que, penso, podem ser teis como primeira tentativa de classificao do conto brasileiro do sc. XXI. Se s vezes o ensaio beira o depoimento pessoal ou se faz em tom de quase conversa, afastando-se da dico acadmica, isto no impede que, no corpo-a-corpo com os contos, o comentrio crtico seja criterioso, objetivo, esforando-se o mximo para interpretar uma primeira e indispensvel camada da narrativa, o que poder auxiliar o leitor comum ou mesmo o pesquisador. E ainda o professor devidamente equipado com os contos aqui abordados em sala de aula.
1 Rinaldo de Fernandes doutor em Teoria e Histria Literria pela UNICAMP e professor de Teoria da Literatura e de Literatura Brasileira na UFPB. autor de 9 livros. De fico, publicou O Caador (contos Ed. da UFPB, 1997), O perfume de Roberta (contos Rio de Janeiro: Garamond, 2005) e Rita no Pomar (romance finalista do Prmio So Paulo de Literatura 2009 Rio de Janeiro: 7Letras, 2008). Organizou as seguintes coletneas: O Clarim e a Orao: cem anos de Os sertes (So Paulo: Gerao Editorial, 2002), Chico Buarque do Brasil (Rio de Janeiro: Garamond/Fundao Biblioteca Nacional, 2004), Contos cruis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contempornea (So Paulo: Gerao Editorial, 2006), Quartas histrias: contos baseados em narrativas de Guimares Rosa (Rio de Janeiro: Garamond, 2006) e Capitu mandou flores: contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte (So Paulo: Gerao Editorial, 2008). Atualmente assina a coluna Rodap/Ponto de vista crtico nos suplementos literrios Rascunho, de Curitiba, e Correio das Artes, de Joo Pessoa.
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No Brasil hoje h bons escritores, prosadores e poetas, sendo que, at onde tenho acompanhado, o conto tem sido o gnero de destaque. No apareceu ainda o grande romancista ou o grande poeta, aquele autor que de alguma forma desestabiliza, que traz algo de impacto, com cara de novo. Parece-me que os dois ltimos grandes romances brasileiros so Zero, de Igncio de Loyola Brando, e A Festa, de Ivan ngelo, ambos da dcada de 70. No quero dizer com isso que no tenham surgido outras obras de qualidade. no sentido mesmo dessa desestabilizao formal de que falei. Mas cito aqui alguns bons romancistas mais recentes: Miguel Sanches Neto, Andr SantAnna, Milton Hatoum, Luiz Ruffato, Paulo Lins, Patricia Melo, Aleilton Fonseca, Ronaldo Correia de Brito, Chico Buarque, Maria Esther Maciel, Bernardo Carvalho, Altair Martins, Aldo Lopes de Arajo, Nelson de Oliveira, Ricardo Lsias e Beatriz Bracher (formalmente, Chico Buarque e Ruffato talvez sejam, do conjunto, os mais inquietos). Com a poesia acontece algo parecido. Os poetas mais velhos ainda dominam a cena. Caso especialmente de Ferreira Gullar e Manoel de Barros. Os contistas, por sua vez, esto num momento muito instigante. Nota-se uma variedade de formas no conto, que vai do minimalismo ao realismo brutal, passando pela vertente intimista (ainda nas pegadas de Clarice Lispector), pela narrativa fragmentria ou mesmo experimental. O conto tem narrado situaes tpicas do homem contemporneo como, por exemplo, a violncia ou mesmo a penria, a misria brasileira de forma aguda, veemente. Isto pode ser comprovado nas antologias ultimamente organizadas por mim, por Nelson de Oliveira e por Luiz Ruffato. Os contistas tm at mesmo se aventurado, e s vezes de forma bem original, a recriar autores consagrados de nossa literatura. mesmo um desempenho formidvel do gnero. No que se refere aos escritores nordestinos: o Ciclo do Romance de 30 foi um acontecimento notvel em nossa literatura, revelando autores como Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, Jos Lins do Rego e Jorge Amado. Eles renovaram o romance brasileiro, projetando o Modernismo para a problemtica social. Creio que, atualmente, autores nordestinos como Antnio Torres, Francisco Dantas, Ronaldo Correia de Brito ou mesmo Aldo Lopes de Arajo conseguem manter um dilogo rico, no raro original, com essa tradio do nosso romance regionalista. H autores com outros traos, a exemplo de Jos Numanne Pinto, com o romance O silncio do delator, que retrata, de forma pardica, alguns cones da cultura urbana e de massa da segunda metade do sculo XX. Outro exemplo, ainda inserido na tradio regionalista mas com solues diferentes, a narrativa dialgica, intertextual, de Aleilton Fonseca, que resgata o universo e a oralidade de Guimares Rosa (refiro-me ao romance Nh-Guimares) ou mesmo o imaginrio e as teorias interpretativas de Canudos (no romance recente O pndulo de Euclides). Cito ainda Homero Fonseca e seu romance Rolide, que se relaciona com a tradio picaresca. Por outro lado, no Nordeste hoje h metrpoles, com os mesmos problemas de todas as metrpoles, e uma literatura nova, urbana, est surgindo forte ou mesmo, em certos casos, j se consolidou, tendo como bons exemplos as narrativas curtas de Ronaldo Correia de Brito, Antonio Carlos Viana, Trcia Montenegro, Marcelino Freire, Raimundo Carrero, Marilia Arnaud, Carlos Ribeiro, Nilto Maciel, Pedro Salgueiro, Luzil Gonalves, Sunio Campos de Lucena, Carlos Emlio Corra Lima, Jorge Pieiro, Carlos Gildemar Pontes, Ronaldo Monte, Wellington Pereira, Geraldo Maciel (falecido precocemente), Antonio Mariano, Arturo Gouveia, Lima Trindade, entre alguns outros. Ainda autores importantes, nessa direo, so W. J. Solha e Maria Valria Rezende, que, sendo de outras regies, h muito tempo vivem no Nordeste. Essa nova literatura urbana nordestina, por tratar de problemas parecidos com Revista Graphos, vol. 14, n 1, 2012 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 175
os dos grandes centros, no tem muita diferena da literatura produzida no Sudeste/Sul. Claro: h outros autores, aqui no citados, que esto fazendo literatura de qualidade em outros pontos do pas. Como o caso de Vera do Val, paulista radicada no Amazonas, ganhadora do Prmio Jabuti de 2008 com o livro de contos Histrias do Rio Negro. Disse, de incio, que o conto tem sido o gnero de destaque em nossa literatura. Observo, nesse sentido, cinco vertentes principais do conto brasileiro do sc. XXI: 1) a da violncia ou brutalidade no espao pblico e urbano; 2) a das relaes privadas, na famlia ou no trabalho, em que aparecem indivduos com valores degradados, com perverses e no raro em situaes tambm de extrema violncia, fsica ou psicolgica; 3) a das narrativas fantsticas, na melhor tradio do realismo fantstico hispano- americano, s quais se podem juntar as de fico cientfica e as de teor mstico/macabro; 4) a dos relatos rurais, ainda em dilogo com a tradio regionalista; 5) a das obras metaficcionais ou de inspirao ps-moderna. O que une todas essas vertentes o olhar cruel e irnico sobre as situaes configuradas. O olhar cruel sobre a existncia que os nossos melhores contistas herdaram de Machado de Assis. bom dizer, por outro lado, que s vezes num mesmo autor, numa mesma obra, coexistem duas ou mais dessas vertentes. A seguir, tratarei mais detalhadamente das cinco vertentes, comentando contos e indicando autores que as representam.
1) a vertente da violncia ou brutalidade no espao pblico e urbano
Quando, no segundo semestre de 2002, ministrei para universitrios (na UFPB) um curso sobre o conto brasileiro, percebi que os textos mais perversos, brutais, despertavam nos estudantes um enorme interesse. Talvez porque eu que tenho admirao pelo elemento cruel do gnero de algum modo influenciasse os alunos ao ler de forma mais enftica determinadas narrativas. Na ocasio, fizemos leituras comentadas de cerca de 30 contos de autores brasileiros da segunda metade do sc. XX Guimares Rosa, Murilo Rubio, Jos J. Veiga, Moreira Campos, Dalton Trevisan, Clarice Lispector, Rubem Fonseca, Joo Antnio, Lygia Fagundes Telles, Luiz Vilela e alguns autores da chamada Gerao 90 (a que Nelson de Oliveira deu visibilidade, ao organizar prestando um grande servio ao conto recente as antologias Gerao 90: manuscritos de computador e Gerao 90: os transgressores, que incluem nomes hoje j bem conhecidos, como Luiz Ruffato, Marcelo Mirisola, Maral Aquino, Marcelino Freire este j premiado com o Jabuti , Cntia Moscovich, Altair Martins vencedor em 2009 do Prmio So Paulo de Literatura/Autor Estreante/Romance , Andr SantAnna, Ivana Arruda Leite, entre outros). O resultado daquele curso no poderia ser melhor muitos dos estudantes disseram que passaram a gostar de contos depois de nossas leituras lentas, detidas, sempre em frescas manhs de sbado. E foi a partir do curso que tive a idia de organizar a coletnea Contos cruis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contempornea, lanada em 2006 e que se compe, como o prprio ttulo indica, de textos brutais, trazendo o choque do real. Parece que a minha intuio (e tambm era algo no muito difcil de perceber quela altura), ao ministrar um curso sobre contos violentos em 2002 e organizar a coletnea Contos cruis em 2006, estava em boa medida correta, como diagnstico no s da literatura, mas, de forma oblqua, do cinema e mesmo de outras mdias Revista Graphos, vol. 14, n 1, 2012 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 176
contemporneas. Na edio de O Estado de S. Paulo de 21/10/2007 cinco anos, portanto, depois do curso que ministrei e um ano aps o lanamento dos Contos cruis saiu uma entrevista de Luiz Zanin Oricchio com a professora Beatriz Jaguaribe, da UFRJ, que lanou pela Ed. Rocco O choque do real: esttica, mdia e cultura. Neste livro Beatriz Jaguaribe defende a tese de que ressurge com fora um fenmeno: o cinema (sobretudo), a literatura e outras artes retomaram o realismo esttico, ou o choque do real, como uma das manifestaes mais importantes da cultura globalizada (a expresso choque do real assim definida pela professora: a utilizao de estticas realistas que visam a suscitar um efeito de espanto catrtico no espectador ou leitor). Seria esse o motivo de filmes como Cidade de Deus e especialmente Tropa de Elite fazerem tanto sucesso (Tropa de Elite, como todos sabem, gerou muita polmica em torno da perspectiva narrativa adotada). Na entrevista so citados autores como Paulo Lins, Patrcia Melo, Maral Aquino, alm de Ferrz, como os principais representantes recentes da literatura brutal no Brasil. Concordo em parte. Um conto como A Cabea, do mineiro Luiz Vilela, vale por toda uma srie de textos de brutalidade, no s pela (mais que inslita) situao narrada mas tambm por sua alta qualidade esttica, notadamente a costura dos dilogos. A matriz narrativa dos (bons) autores citados so certamente os textos de Rubem Fonseca. Paulo Lins, Patrcia Melo, Maral Aquino e Ferrz so algo no muito difcil de perceber epgonos do autor de A coleira do co, Feliz Ano Novo, Passeio noturno, O Cobrador, entre outras obras-primas da literatura brutal. Nos contos de Rubem Fonseca, que privilegia a primeira pessoa, vale especialmente a tessitura do narrador, o ponto de vista violento (e incrivelmente verossmil) adotado por ele. A Cabea, escrito em terceira pessoa, um conto que, no que se refere vertente violenta, ao que tudo indica, no tem matriz em nossa literatura. original. E sua originalidade, ao invs do narrador, reside especialmente na profunda ironia dos dilogos. Isto um achado de Vilela (e o dilogo , certamente, um dos recursos mais notveis desse autor s conferir, nesse sentido, a novela Bris e Dris, de 2006). Manh quente de domingo. Uma rua de um bairro distante do centro. A encontrada uma cabea humana. Logo se juntam em torno dela alguns populares o homem de terno e gravata, o da bicicleta, o baixote, o gordo, o barbicha, a moa, a ruiva, dois meninos... A cabea do morto desconhecido , de repente, identificada pela moa como sendo a de uma conhecida A Zuleide l do salo. Mas a sua amiga, a ruiva, rejeita a hiptese: Que isso, menina? Voc est doida!. O conto (exemplo primoroso, em certos passos, da chamada funo ftica), cujas falas vinham se tecendo em torno de questes como o odor dos defuntos, Deus, o homem, a vida (Deus uma cagada, o homem uma cagada, a vida uma cagada, resume em determinado momento um dos personagens), passa ento a se desenvolver em torno da questo de gneros, pois um dos curiosos ali presentes, o gordo, acredita que o crime envolveu adultrio: A mulher estava chifrando o cara, e a ele sssp!... (sssp! o gesto de cortar a cabea, conforme indica o narrador). A reao da ruiva, preocupada com a reputao feminina, intempestiva: Como voc pode falar uma coisa dessas sem saber de nada?. Homens e mulheres, a partir daqui, tornam mais tensos os dilogos (em que visvel a carga machista e preconceituosa da fala dos homens). No final, os meninos ficam imaginando uma bola da cabea. Um diz: D vontade de dar um balo; o outro emenda: A eu corro l pra frente e mato no peito. A brutalidade de nossas relaes est em tudo neste conto de Vilela. Est na cabea cortada e atirada na rua. Nos dilogos, repito, beirando o deboche, e to espontneos, dos populares. No choque de uma viso masculina das coisas com uma viso feminina. Na forte ironia do narrador, que expe tudo isso com uma sutileza tal, que termina nos assombrando e exigindo, inevitavelmente, uma reflexo acerca da Revista Graphos, vol. 14, n 1, 2012 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 177
natureza da violncia que nos cerca. E a ironia, no caso, torna-se talvez a forma mais eficiente de abordagem de questo to grave de um tempo. O tambm mineiro Andr SantAnna, no conto A lei, cria um policial narrador que s v o mundo pelo vis da fora. Autodenominando-se burro (eu sou muito burro), e vendo na lei um poder opressor, nela se recosta, se sente protegido para assumir sua estupidez: ...ns, a polcia da sociedade, a lei, de vez em quando, pega um moleque desses, um desses adolescentes maconheiros, que usam drogas, e d um sumio neles, fica a noite inteira dando porrada.... Estupidez que s abate o mais fraco: a gente fica horas e mais horas [...] batendo na puta, rindo da cara da puta, enfiando coisas.... Estupidez que certamente reflete a filosofia de vida do personagem, que alerta: A gente tem que fazer os direitos humanos com as prprias mo. Flertando ainda com a metalinguagem, o conto de Andr SantAnna traz um personagem emblemtico da violncia policial brasileira. tambm amparados na lei que, no conto Santana Quemo-Quemo, do sergipano Antonio Carlos Viana, agentes pblicos engravatados se voltam contra uma famlia faminta e indefesa. A voz severa de um deles se ergue para fazer cumprir a ordem de despejo: rea de preservao ambiental, a ordem derrubar tudo. [...] Aqui no pode fazer barraco. Deviam saber. Metonmia da aspereza dos agentes o trator e o som que ele emite ao triturar os barracos feitos de papelo e de pedaos de madeira podre: crec, crec, crec, crec. Sobra entre os escombros apenas a panela com a galinha que a irm do narrador cozinhara e que tinha sido apanhada num quintal longe dali. E uma irnica ceia em meio aos destroos, e para apetite to intenso de tal famlia posta sob uma amendoeira. Uma narrativa custica sobre a penria e a opresso de nossas periferias. Pouca munio, muitos inimigos, do paulista Maral Aquino, um conto sobre a banalizao da violncia, remetendo ainda ao racismo. Ambrsio e Ambrosinho. Pai e filho. Gente de posses. Uma briga no estacionamento de um restaurante acaba resultando na morte de Ambrosinho por um garoto de nove anos. O negro Rodrigo, apelidado de Silncio, guarda-costas de Ambrosinho, assiste a tudo sem intervir, por achar que a briga no vai render. E, por falhar em servio, ser perseguido pelo pai do morto. Silncio esconde-se num hotel junto com um colega, tambm funcionrio de Ambrosinho. Enquanto Silncio cochila, seu colega fala ao telefone. E ento o colega recebe um recado do advogado de Ambrsio: Mate o preto. Linguagem exata, frases curtas, o conto traz, em sua parte final, um dilogo (o momento do telefonema e o seguinte, quando Silncio pergunta o que o advogado queria) que expe a hesitao, a ambigidade da natureza humana. O tragicmico Da Paz, do pernambucano Marcelino Freire, desfere uma crtica cortante s passeatas pela paz, tpicas de certa classe mdia, que procuram resolver o problema da violncia mais por seus efeitos e menos por suas causas. Passeatas que, no fim, pressionam por polticas de segurana pblica, por mais policiais na rua. O conto traz como narradora uma mulher pobre que, ressabiada com essas passeatas, termina expondo a dor de ter perdido o filho, supostamente assassinado (e eis a ironia da situao) pela polcia: Quem vai ressuscitar meu filho, o Joaquim? Eu que no vou levar a foto do menino para ficar exibindo l embaixo. Carregando na avenida a minha ferida. Marchar no vou, muito menos ao lado de polcia. Toda vez que vejo a foto do Joaquim, d um n. Uma saudade. Sabe? Uma dor na vista. Um cisco no peito. Sem fim. Uma dor. Dor. Dor. Dor. Paz , no conto, metonmia da prpria passeata e o Da Paz do ttulo, em sua ambigidade, sugere o nome da protagonista. O conto de Revista Graphos, vol. 14, n 1, 2012 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 178
Marcelino quase um texto para teatro tem fora ainda em sua oralidade e traz um ritmo que por vezes o aproxima de um poema. No conto do cearense Nilto Maciel Punhalzinho cravado de dio, revisto e reeditado pelo autor em 2009, todo um universo da misria urbana do Nordeste, com seus tipos e ambientes soturnos, deflagrado em apenas duas pginas. A protagonista, a an Ana, um pobre-diabo. Mora na periferia de Fortaleza a periferia pobre e penumbrosa do Pirambu. Ana cria galinhas e, diariamente, se dirige mercearia de Bodinho para comprar milho para suas criaes. Solitria, humilde das humildes criaturas, foi ficando spera com a vida da armazenar todos os dios do Pirambu. Um dia, cedo da tarde, sofre uma investida (um estupro, com a anuncia de Bodinho, presente no ato) do cafajeste Pu, um tipo bebedor, com o qual ela no passado experimentou as primeiras dores do sexo, e que, ao reencontr-la na pequena e suja mercearia (salpicada de escarros e onde zunem moscas alvoroadas e pegajosas), arreganha os dentes podres. Ana, nesse dia da mais cruel humilhao, do mais terrvel rebaixamento, crava na virilha de Pu um punhalzinho enferrujado e cheio de dio. O sorriso de brinquedo (Contos cruis), do tambm cearense Carlos Gildemar Pontes, um conto impiedoso, na linha minimalista do gnero, sobre a violncia que decorre da disputa, entre mendigos, por sobejos de valor de um lixo: L nos viadutos fizeram a partilha. Quero a boneca pra minha neta. Que nada, ela minha! Sem conversa o chefe saltou sobre o da boneca e dividiu sua cara ao meio com uma giletada. O sangue quente nos dentes... Todos sacaram suas giletes e retocaram uns aos outros. O velho barrigudo segurava a torneira da jugular. A boneca cone da inocncia de uma menina de rua (a neta, no caso), que passa a pedir esmolas num farol e que, no fim, j desperta o desejo de um adulto: O sujeito do outro lado da rua tem planos para a menina.
2) a vertente das relaes privadas, na famlia ou no trabalho, em que aparecem indivduos com valores degradados, com perverses e no raro em situaes tambm de extrema violncia, fsica ou psicolgica
O conto contemporneo, por outro lado, no se fixa apenas no espao pblico volta-se, de forma aguda, para relaes privadas, na famlia ou no trabalho. Relaes em que por vezes aparecem protagonistas pervertidos ou mesmo violentos. Quatro exemplos retirados de Dalton Trevisan, Trcia Montenegro, Marilia Arnaud e Altair Martins. Primeiro, uma nota interessante. A Folha de S. Paulo de 23/10/2005 noticiou: pesquisa coordenada pela professora de Literatura Brasileira Regina Dalcastagn, da Universidade de Braslia, revela: Os personagens dos romances brasileiros contemporneos so homens, de classe mdia e moram em cidades, e negros, mulheres, velhos e pobres tm pouca ou nenhuma voz. Em nmeros: 62,1% dos personagens so homens; 79,8% dos personagens so brancos (contra 7,9% negros e 6,1% mestios); 73,5% dos personagens negros so pobres. O professor da USP Alcides Villaa questionou a validade da pesquisa dizendo: Eu ficaria espantado se o resultado tivesse sido outro. Disse ainda: Se a literatura tivesse sido, desde o incio, espelho das virtudes desejveis, no se teria recomendado a expulso dos poetas da Repblica. E os estudos literrios se organizariam como um ramo positivamente exemplar da pedagogia. Bom, com todo respeito, eu discordo do ponto de vista do professor. Na minha opinio, a pesquisa da professora da UnB bastante vlida um termmetro Revista Graphos, vol. 14, n 1, 2012 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 179
que avalia ideologicamente (e por que no?) a posio de nossos narradores contemporneos. Talvez o recorte da pesquisa, restringindo-se a romances publicados entre 1990 e 2004, que seja um pouco problemtico, haja vista, por exemplo, o grande impulso do conto recentemente. Um conto e, claro, estou falando o bvio pode ser mais significativo do que um romance. Pode ser um resumo implacvel de uma certa condio humana ou mesmo um smbolo candente de uma ordem social ou histrica, conforme Julio Cortzar. Quer um exemplo de contista que poderia perfeitamente entrar na pesquisa da professora e ficar ao lado de Paulo Lins (Regina Dalcastagn afirma que a partir de Cidade de Deus houve uma preocupao dos novos autores em trazer personagens que estavam margem da sociedade. Ele [o romance do escritor carioca] abriu algumas frentes que ainda no esto completamente preenchidas)? Quer um exemplo? O paranaense Dalton Trevisan e seu conto Maria, sua criada, que abre o livro Rita Ritinha Ritona (Record, 2005). O conto narrado do ponto de vista de uma empregada domstica negra, que, saindo do Nordeste (nasceu num mocambo do Recife), vai parar no Rio de Janeiro e, depois, em Curitiba. A protagonista, Maria das Graas, tem muita personalidade. Padece horrores: mora em vrias residncias, estuprada, me solteira, e chega a dormir no cho de uma sacada. Mas, decidida, enfrenta todas as dificuldades, chegando, com o dinheiro que guarda (tinha sempre o meu dinheirinho), a pr a filha mais nova na Universidade (consegue tambm uma bolsa de estudo para a mais velha, que termina se casando com um dentista). Se os nossos romancistas recentes representam de forma estereotipada as classes sociais e tnicas menos privilegiadas, como indica logo no incio a matria da Folha, eu diria que um contista como Dalton Trevisan navega contra essa corrente. Maria das Graas (que em certos momentos lembra a Mocinha do conto Viagem a Petrpolis, de Clarice Lispector), mesmo na sua penria, talvez seja uma das representaes mais fortes e afirmativas do negro na literatura brasileira contempornea. Tambm no campo das (degeneradas) relaes privadas e familiares, registro um conto de valor de Trcia Montenegro. Trcia, ao vencer em 2000, com o livro Linha frrea, o 1 o Prmio Redescoberta da Literatura Brasileira, promovido pela revista CULT, se consolidou como uma de nossas principais contistas. No pelo prmio em si, que certamente foi muito importante para a cearense de Fortaleza, mas pelo valor mesmo do trabalho da escritora. O conto que d ttulo ao seu livro bem elaborado: zelo, amargor, decadncia, cobia, morte tudo misturado numa narrativa de pouco mais de duas pginas. So dois personagens: um velho tetraplgico e um adolescente. O velho, estranha carcaa, braos e pernas inteis, olhares cheios de fria, d ordens constantes, em voz alta, ao adolescente, um filho adotivo (conhece-o criana, magro e sujo, prximo a uma ferrovia). O velho, cabea aflita e corpo indiferente, possui uma fortuna em dinheiro e terras, mas no tem herdeiros. O adolescente, que faz a comida, a barba e d banho no outro, se sente distante da velhice. Cuidando do pai, est preso, impedido, de certo modo, de ir e vir. O velho v no rapaz tudo aquilo que no pode mais ter, a juventude e a sade, a vida pela frente e a possibilidade de desfrut-la. Da a raiva, a rispidez com o rapaz, que, no entanto, calado, cumpre com suas obrigaes: Escovava os dentes do boneco de carne, penteava o cabelo escasso. E um curioso pacto se estabelece. Para manter o jovem ao seu lado na casa (de jardim quase morto, repleto de folhas secas), para ter a proteo do rapaz, o velho usa de um artifcio: acende-lhe a cobia. Assim: Certa vez mesmo disse o valor de seu testamento, incentivou o filho a falar, e foi das poucas vezes em que o rapaz conversou com ele. Os olhos ento ficaram alegres o seu menino fazia planos, ia comprar um carro belssimo, hein? E uma fazenda, que tal? O dinheiro d e sobra. Fazendona cheia de bichos. E viagens poderia viajar para onde quisesse, sair daquele fim-de-mundo. Revista Graphos, vol. 14, n 1, 2012 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 180
[...] O rapaz chegou a rir, excitado pelos projetos. Dava palmadinhas na coxa do velho, que tambm se exaltava, esticando o pescoo. Ainda falaram de bebidas e mulheres, parecendo antigos companheiros de bar, at que o homem tossiu uma, duas vezes e se calou. Depois o olho ficou novamente srio, a voz agravou-se: Mas isso tudo, eu lhe digo, s depois da minha morte. At l, voc fica comigo, sua obrigao. O velho aqui, portanto, est propondo: voc cuida de mim, nesses dias que me restam, e ter como garantia frente usufruir de minha fortuna. Ou seja, oferece um prazer, mas prorroga-o. No permite o gozo que a ele no possvel. O menino, despertados os desejos de posse (dinheiro, terras, viagens por que o velho foi falar), no resiste ao passar lento dos dias do outro. De protetor passa a assassino: uma noite, amordaa o pai, carrega-o na cadeira de rodas e o deita na linha frrea para ser esmagado pelo trem. Um texto certamente rico em nuances humanas, denso, cruel, como parece ser prprio do olhar dos bons contistas. Um ndice inventivo da narrativa: a coluna do velho, diz o mdico mostrando o raio X aps o desastre, parecia uma linha frrea desativada. A mesma linha frrea perto da qual o velho conhecera o menino e onde, afinal, ocorre o assassinato. Outra contista que vem explorando essa vertente das relaes familiares decadas a paraibana Marilia Arnaud (entre outras coletneas, ela integrou Mulheres que esto fazendo a nova literatura brasileira, preparada por Luiz Ruffato). A fico adulta feita com protagonista adolescente sempre muito difcil, sobretudo se o adolescente o prprio narrador da histria. Tudo tem que ser bem recortado, medido, para evitar a confuso com a fico infanto-juvenil. Em O livro dos afetos, Marilia Arnaud produziu uma pea de muita qualidade. Falo de Nem as estrelas so para sempre, de pronto recomendada pelo orelhista do livro, Luiz Ruffato. Narrado do ponto de vista de um garoto de treze anos, o conto traduz o temperamento de algum tomado por uma tristeza terrvel, decorrente, por um lado, pelo sofrimento da me moribunda e, por outro, pelo pavor que lhe provoca a figura paterna. Um pai rigoroso, rspido, reservado: No sei se possvel um pai no gostar nem um pouco de um filho. Um conto sobre relaes humanas difceis, danosas ao indivduo, mas inteiramente insufladas pelos prprios cdigos familiares. no silncio que o garoto aptico para o pai, um corretor de imveis tece sua tristeza, narrando para tentar compreender o que se passa em torno dele, ou entre ele, a me cancerosa, o pai perverso e a tia dedicada (veio, com a doena da irm, para ajudar a famlia). Tudo para o garoto, no que se refere me, ao pai e tia (sobretudo a estes dois ltimos), cisma, suspeita. Tudo intolervel de to insondvel. O dia mais triste para o garoto aquele em que descobre que o pai tem um caso com a tia: Meu pai tentava abra-la, mas ela o empurrava e balanava a cabea, sem falar nada. Ele dizia no ter culpa, que aquelas coisas, obra e graa do destino, aconteciam, que no podia mais viver sem ela, sem seu amor, que o que estava sentindo era mais forte que ele, e que Mame no precisava ficar sabendo, que no iria saber nunca, que ela, Tia Corina, podia confiar nele. O garoto avalia o tempo todo, atravs de uma voz tensa, todos os truques de convivncia dos membros da famlia. Para ele, muito pantanoso o mundo dos adultos e padece por isso. Pena por no entender as coisas como elas so. Interroga-as, mas, impotente, no as alcana: So tantos os porqus! Quero continuar acreditando que quando eu crescer vou ter todas as respostas que preciso, embora Mame, que sabida demais, tenha me dito que isso no ser possvel, pois, medida que a gente vai crescendo, e depois envelhecendo, algumas respostas vo dando o ar da sua graa, mas tambm outras interrogaes, algumas maiores e mais difceis, vo surgindo. O garoto rola na existncia como quem patina em pedregulhos. Sente, j forte, ferina, a dor de viver. Contudo, uma coisa parece precisa, palpvel, para ele: Esse porqu, da paixo secreta Revista Graphos, vol. 14, n 1, 2012 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 181
de meu pai por Tia Corina, to grande e perigoso quanto o da doena de Mame. Eis a chave do conto. Um texto bem montado, em que dor e desejo, dedicao e desconfiana tecem o principal da trama. O mar, no living, do gacho Altair Martins, a narrativa de um rito familiar s avessas. O conto flagra uma situao que, de leve, por sua prpria natureza, se faz pesada, opressiva: o aniversrio de uma menina acontece diante de um av aborrecido, que se isola para no bater de frente com o genro: O av [...] encontrou uma poltrona magra de frente para o mar que, naquele momento da tarde, acenava espumas brancas. Dali viu sua mulher se divertir com as duas meninas. Ele no. E por isso, slido de silncio, virou os olhos para det-los fixamente no horizonte. Um clima de amargura atravessa todo o conto, em que, no fim, o horizonte rubro e calmo contrape-se ao clima difcil da famlia.
3) a vertente das narrativas fantsticas, na melhor tradio do realismo fantstico hispano-americano, s quais se podem juntar as de fico cientfica e as de teor mstico/macabro
Talvez nunca tenha tido muito xito, entre ns, o conto macabro. Suas frmulas soam batidas, pouco frteis. Mas, na mo de um bom escritor, podem render. Embora contendo pouca coisa de novo, de inventivo, o longo conto O vo da madrugada (o livro com este ttulo obteve o Prmio Jabuti/2004), do carioca Srgio SantAnna, bom, tem flego, poesia, tenso, densidade. E tambm, ao final, um desfecho surpreendente, isto aps prender o tempo todo a ateno do leitor, como cabe ao bom conto, revelando um autor com pleno domnio da tcnica. So muito bem tecidos os planos do real e do inslito, uma vez que se trata de uma narrativa fantstica (isto se dermos crdito informao final de que o protagonista, tambm narrador da histria, j de volta para o seu apartamento em So Paulo, na verdade um deles, ou seja, um dos mortos no acidente areo em Roraima). Mais uma narrativa pstuma, nas pegadas do Machado de Brs Cubas (em Srgio, no entanto, o roteiro bem diverso, j que seu conto no deixa de ter como objetivo final e estou pensando na revelao do desfecho atemorizar o leitor; alm disso, h um apego decisivo s solues de sempre do gnero suspense e mistrio). No conto, chama primeiro a ateno o aborrecimento, a natureza entediada, do protagonista. O enfado, provocado pelos permanentes deslocamentos, pelas viagens a servio da empresa onde trabalha, inicialmente a sua principal marca. Um tipo, de vida errante e burocrtica, que detesta o seu cotidiano rido na cidade de So Paulo. Mas, estando em Boa Vista e antecipando a passagem para pegar um vo extra para So Paulo no qual estaro os parentes e os corpos das vtimas de um desastre areo (repito que, s ao final do conto, ficamos sabendo que o protagonista-narrador uma das vtimas do acidente), no poupa palavras aborrecidas e, mesmo, preconceituosas, contra o lugar: o hotel Viajante, onde fica hospedado, tem um velho e empoeirado condicionador de ar; perto do hotel, um bordel miservel (como tantos, em toda parte do pas) lhe chama a ateno por ostentar o nome ridculo de Dancing Nights; o bordel e um beco prximo, onde avista uma adolescente ainda impbere, e a quem deseja, mobilizam a sua parte nefasta; Boa Vista apontada como uma cidade perdida nos confins mais atrasados; seu aeroporto, cuja estrada esburacada, no passa de um grande galpo e uma pista de pouso. O protagonista de Srgio repele as imagens do pas real e pobre. E por qu? que a viso de mundo do personagem remete Revista Graphos, vol. 14, n 1, 2012 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 182
de um tipo metropolitano, da classe mdia, buscando em tudo o conforto, e que pensa que o Brasil apenas aquele dos grandes centros. Um tipo que, com a cabea no Primeiro Mundo, tenta desconhecer ou ser indiferente s mazelas do Terceiro. Tenta desconhecer ou ser indiferente ao Brasil amaznico, sertanejo; enfim, ao Brasil atrasado. A alienao do protagonista de Srgio, a sua perspectiva, at certo ponto, de estrangeiro na prpria terra, soa deslocada mas muito atual, e lhe d densidade, consistncia. O encontro do protagonista com a moa (encontro de dois mortos, j que ela est tambm entre eles, entre os mortos no acidente), na penumbra da madrugada, durante o vo, descrito com leveza e poesia: Abri dois botes do seu vestido e tocava de leve os seus seios, encobertos pelos seus cabelos longos, negros e lisos que ela deixou cair para a frente como para nos ocultar [...]. A histria de O vo da madrugada, em si, como indiquei, parece trazer mesmo pouca novidade (para um autor inquieto, com uma trajetria um tanto experimental). Mas a linguagem de Srgio, madura, prazerosa de ler, rtmica, o coloca entre os bons autores que despontaram h algumas dcadas atrs e que prosseguem produzindo literatura de qualidade. J O dia dos prodgios, do paulista Nelson de Oliveira, na linha da investigao filosfica, da perquirio da mentalidade judaico-crist, est entre os principais contos brasileiros recentes. A protagonista uma mulher rejeitada e ressentida com Jesus Cristo, pois queria integrar o grupo dos apstolos. A apstola que no conseguiu ser assiste ltima ceia dos arredores, de longe, achando-se a 13 a
discpula. Inquieta, intensa, considera-se potencialmente traidora, se no tivesse existido Judas. Moldada entre o feminino e o masculino (da a ambigidade aparente da construo da personagem), ela blasfema contra Deus por no lhe obter revelaes. Diz, em seu dilogo ininterrupto com um interlocutor (um viajante) que nunca se manifesta, tratar da vida e da alma. Marcada por profunda oralidade, a narrativa vai se desenhando ainda em torno da figura do filho de Zebedeu, que o apstolo Joo, seqestrado e torturado pela mulher (ela lhe rouba o dom de enxergar o futuro). H um aproveitamento permanente do duplo na construo das personagens da mulher e do filho de Zebedeu. A mulher no blasfema s contra Deus, mas ainda contra o futuro (com os desastres mais estupendos) da humanidade. As blasfmias contra Deus vm na forma de interrogaes ou juzos de valor: do que que Deus tem medo? de que ele tanto se esconde?; Deus no to onipresente quanto se imagina. Vm ainda nas acusaes s traquinagens de Deus. No conto, o Cristo que aparece humanizado, carnal: viveu os clamores da carne e foi castrado antes de ser crucificado. A mulher, na sua inquietude e impetuosidade, se considera conhecedora dos vcios e virtudes de Deus. Da a invisibilidade/medo de Deus ser tambm questionada. Quanto a Cristo? Espanta a mulher a determinao com que defendia os interesses de Deus. Um conto que desconstri/inverte parodicamente um modelo consagrado, arquetpico, de mentalidade. Agudo, espcie de desabafo bblico, faz o leitor pensar. O tambm paulista Marcelo Mirisola, no conto Sobre os ombros dourados da felicidade, de Memrias da sauna finlandesa (Ed. 34, 2009), tece uma crtica impiedosa aos valores e condutas da classe mdia alta do Rio de Janeiro. Proprietrios de um Pet Shop requintado da Zona Sul, Bebel e seu marido vivem no melhor dos mundos uma vida de paz (por conta da Cherokee blindada na garage) e de felicidade. Um o espelho do outro, nas atitudes e ambies. O narrador da histria o marido de Bebel. A desfaatez desse personagem-narrador fica de imediato patente; mais frente, ao final do conto, sua brutalidade tambm. Os bens e produtos de sua preferncia e de seu amigo Peninha vo sendo prontamente enunciados: alm da Cherokee, seis meses em Miami, visita de Vera Loyola ao Pet Shop (Sabem o que Revista Graphos, vol. 14, n 1, 2012 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 183
Verinha Loyola e o Bidu [o cachorrinho da socialite] significam numa festa Pet? Prestgio, sucesso e garantia de negcios milionrios), Mitsubishi L200 Triton, Toyota Hilux D40, jet ski, lancha de 20 ps, flat em grande resort, personal-house... O personagem-narrador tambm apegado ao seu cachorro (chamado de meu beb) que surfa e toca piano e aos livros de auto-ajuda ( neurolingusitca aplicada do dr. Shinyashiki). Embora no fique claro no conto se se trata de um cachorro ou de uma criana. E, inevitvel, a pergunta se impe ao leitor: Que tipo de gente essa que chama cachorro de meu beb?. Por vezes desabrido, narrando com zombaria (caracterstica dos narradores de Mirisola) e certo desprezo aos que no integram o seu universo, o protagonista no esconde o orgulho de ter o negcio que tem: A loja era frequentada por socialites, apresentadoras de televiso, gente de bem interessada em projetos sociais, negros e negras globais, jogadores de futebol e os filhos da estirpe mais nobre da nossa MPB. E arremata: Aquela loja era o Leblon das novelas de Manoel Carlos. Se o melhor conto fantstico, conforme ainda Cortzar, aquele em que o inabitual se torna logo regra, em que o elemento inslito se integra, sem mais demora, na ordem comum do cotidiano, o texto de Mirisola um exemplo acabado do gnero. No ombro de Bebel, logo no incio do conto, surge um cisto, uma bolota (que vir a ser o elemento inslito da narrativa). Bebel convive naturalmente com o tumor, mas, com o tempo, e por presso do marido, se torna insocivel. que o cisto passa a produzir um cheiro terrvel, desagradvel; a liberar pus. A mulher a comea a ser tratada como um animal, confinada pelo marido e o veterinrio numa jaula. A bolota no ombro, ao final, vem a se transformar num japonesinho faminto, que devora sushi... Um conto que brinca com valores preconizados pela sociedade globalizada, com a insensibilidade de pessoas sofregamente apegadas s aparncias, ao acmulo cego: Na loja, no, berra, em certo momento, o personagem-narrador, incomodado com o cisto e a presena de Bebel em seu estabelecimento comercial. O conto Eternas angstias de um imortal, que consta de Idias noturnas sobre a grandeza dos dias, do jovem escritor mineiro Eduardo Sabino, traz uma boa reflexo sobre o tema da imortalidade. O protagonista, angustiado pela impossibilidade de morrer, tudo o que deseja, ao comparar-se aos demais indivduos, ser frgil e decadente. Da a sua opo (a nica que lhe resta e que lhe reserva algum sentido vida de andarilho num parque) de passar a admirar e cobiar os mortais, todos abenoados porque morrero. O que o pequeno conto ensina que, se a morte mesmo a nossa principal angstia, a vida sem ela torna-se um pesadelo. A vida eterna no nos resolve a angstia de viver eis a chave do conto. O paulista Atade Tartari ligado aos escritores que, no Brasil, pensam e praticam a fico cientfica. Esta vertente vem cada vez mais tendo adeptos entre ns e os editores parecem agora se interessar pela produo pujante, persistente, de certo grupo que atua principalmente entre So Paulo e Rio, mais ou menos de modo coeso. Quando esses autores so agregados num projeto srio, saem produes como a coletnea Futuro presente: dezoito fices sobre o futuro, que a editora Record publicou em 2009, com organizao de Nelson de Oliveira, e de cujas pginas consta A mquina do saudosismo, um conto muito bem composto de Atade Tartari. A mquina do saudosismo, abordando inicialmente o desejo de imortalidade, acaba sendo um conto sobre a solido. Csar, o protagonista, promovido para o cargo de administrador-chefe de um fundo de penso, quando recebe a notcia: est com uma grave doena. Morre, seu corpo congelado e Csar ressuscita no ano de 2217. O conto se passa em So Paulo. Uma So Paulo com seus gigantescos edifcios (o Mackenzie, onde Csar se formou, foi demolido e no local construram uma torre de trezentos metros); com seus Revista Graphos, vol. 14, n 1, 2012 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 184
txis robotizados que no param nunca (apenas para embarque e desembarque); com seus administradores ousados (como o protagonista), que j de muito estavam literalmente comprando o mundo. Uma So Paulo onde tudo foi privatizado, onde no h mais servio pblico algum (pois os prprios governos e pases deixaram de existir). Csar, porm, se v profundamente triste e inadaptado ao sculo XXIII em que despertou. E passa a ter saudades de seu sculo, o XXI, da boa convivncia com os amigos. Adquire ento um simulador mental (ou a mquina do saudosismo, que lhe permite percorrer a memria com perfeio). Atravs dele Csar regressa So Paulo do sc. XXI, rev os amigos de faculdade, entre eles, Amanda, por quem fora interessado. S atravs do aparelho Csar (um avarento empedernido, pois, sabendo-se doente terminal, e para no deixar os bens para o irmo, prefere investir todo seu dinheiro na empresa SobreViver, que providenciar o congelamento de seu corpo) abranda a sua incontornvel solido. Um conto engenhoso, de linguagem lapidada, entre os mais importantes da recente fico cientfica brasileira.
4) a vertente dos relatos rurais, ainda em dilogo com a tradio regionalista
A coletnea Inimigos (7Letras, 2007), do cearense Pedro Salgueiro, indicada para o Prmio Jabuti, compe-se de 20 contos curtos. Contos que se passam em vilarejos do Serto, com estradas, poeira, serras, forasteiros, e reportando-se a pocas mais remotas. O espao predominante o do Serto mas as situaes so universais. Contos de frases contidas, secas, como a paisagem de rochas no raro configurada, com momentos de maestria potica, de palavras ou torneios que nos surpreendem pela fora e exatido. Em boa parte dos contos da coletnea, o que aparece o desempenho da linguagem, o estilo bem posto. Em seguida que o leitor vai percebendo que a histria, os seus personagens e situaes, tambm tm fora, abrem-se muito em seu significado. O conto que d ttulo coletnea cheio de susgestes todo um longo enredo est contido em pouco mais de duas pginas. Esta e vrias narrativas do livro tm forte carga alegrica. O conto descreve um contexto de guerra, de uma invaso, por um peloto, do territrio inimigo. A invaso tem carter demolidor devasta moralmente os inimigos, abate-os, subjuga-os (alm de ret-los, roub-los, os vencedores relacionam-se com suas mulheres). O peloto vencedor, de to confiante, de tanto apostar na fraqueza dos inimigos, termina relaxando, retraindo-se em seu mpeto. E, ato imprevisto, os inimigos reagem. E reagem de que maneira? No vou tirar o gosto de o leitor saber como. S adianto que o pequeno conto a viva metfora de que, enquanto no finda o embate, a fora do vencedor pode ser relativa, que o respeito ao adversrio, compreendendo-o no como um fraco, mas como algum momentaneamente sem recursos para resistir, crucial. Descoberta pode ser lido como uma alegoria do desterrado, do migrante cearense, nordestino. A estrada aparece como uma condio atvica, ancestral. A estrada o meu destino, afirma o personagem-narrador em certo momento. Personagem nascido em Papaconha que aparecer no livro como lugar de povo peregrino, em permanente deslocamento. O reencontro com Papaconha, para o personagem, questo crucial, de recomposio/reintegrao da prpria identidade. Mas A passagem do Drago, narrando o episdio do eclipse solar de 1919 em Sobral (CE), que foi acompanhado por uma comisso composta por astrnomos de vrios pises (os quais estariam interessados em comprovar a teoria da relatividade, de Einstein), possivelmente o principal conto do livro. Um conto que mistura fato e fico na medida certa. Cincia e misticismo, razo e crena se mesclam nessa pequena Revista Graphos, vol. 14, n 1, 2012 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 185
histria que termina sendo uma grande metfora do nosso atraso. Pedro Salgueiro, em Inimigos, reinveste em motivos (como, por exemplo, o misticismo e as desavenas/violncias por terras, domnios) caros nossa tradio regionalista. Mas o faz com solues novas, na forma de pequenas e contundentes alegorias. O tambm cearense, radicado em Pernambuco, Ronaldo Correia de Brito (vencedor do Prmio So Paulo de Literatura 2009 com o romance Galilia) um contista das tragdias familiares, algumas se passando no serto profundo. Exemplo disso Faca, que abre o livro do mesmo nome. Trata-se de um conto sobre traio (ou suposta traio) e vingana, reativando cdigos to remotos, como machismo e lavagem de honra, da cultura sertaneja. composto fragmentariamente, alternando cenas curtas do passado e do presente. No passado, a vida do casal Domsio Justino e Donana; as fugas dele para a capital, onde se apaixona por outra mulher; o recolhimento da rejeitada Donana, que se banha no riacho atrs da casa; a traio de Donana na beira do riacho, segundo desconfia Domsio, que termina assassinando a mulher; Domsio o traidor que no suporta ser trado. No presente, cem anos depois do crime, os ciganos com a faca o cabo revestido de ouro que matara Donana e com a qual os irmos desta tentaram a vingana, impedidos pela interferncia da filha mais velha da mulher. A faca, na briga, foi sacudida para longe, imagem que o narrador, num lampejo potico, capta: Um vaqueiro que vinha do curral viu uma ave prateada, reluzindo e voando no espao. Durante os anos, as pessoas procuraram e no acharam a faca faca lendria, cone da maldio. At que os ciganos a encontram. A prosa enxuta de Ronaldo Correia de Brito tem dbitos com a de Graciliano Ramos. E o ambiente seco de sua narrativa, em certos passos (A viagem era comprida. Os homens comiam rapadura, farinha e carne-seca assada), lembra situaes de O Quinze, de Rachel de Queiroz.
5) a vertente das obras metaficcionais ou de inspirao ps-moderna
Aqui, um outro registro sobre a minha modesta contribuio como organizador de coletneas de contos contemporneos. Em Quartas histrias: contos baseados em narrativas de Guimares Rosa e Capitu mandou flores: contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte, a primeira de 2006 e a segunda de 2008, nomes expressivos do conto brasileiro atual foram convidados para reescrever narrativas de dois grandes mestres de nossa literatura (Rosa e Machado). Para preparar a antologia Capitu mandou flores (e confesso que foi essa tambm a inspirao para compor as Quartas histrias) me baseei na proposta de Osman Lins, que, na dcada de 70, j havia organizado a coletnea de recriaes Missa do Galo variaes sobre o mesmo tema. Retomei o projeto de Osman e o ampliei. Em Capitu mandou flores no apenas Missa do Galo reescrito, mas ainda nove outros contos de Machado: A Cartomante, O Espelho, Noite de Almirante, A causa secreta, Pai contra me, O Alienista, Uns braos, O Enfermeiro e Teoria do medalho. Os contistas que integraram a coletnea: Lygia Fagundes Telles, Amador Ribeiro Neto, Moacyr Scliar, Nelson de Oliveira, Deonsio da Silva, Glauco Mattoso, Ivana Arruda Leite, Antonio Carlos Secchin, Bernardo Ajzenberg, Marilia Arnaud, Ceclia Prada, Joo Anzanello Carrascoza, Leila Guenther, Maria Valria Rezende, Raimundo Carrero, Aleilton Fonseca, Carlos Gildemar Pontes, Trcia Montenegro, Andr SantAnna, Andra del Fuego, Aldo Lopes de Arajo, Fernando Bonassi, Sunio Campos de Lucena, Carlos Ribeiro, Ronaldo Cagiano, Srgio Fantini, Marcelo Coelho, Maria Alzira Brum Lemos, Revista Graphos, vol. 14, n 1, 2012 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 186
Mrio Chamie, Daniel Piza, Godofredo de Oliveira Neto, Hlio Plvora, Nilto Maciel e W. J. Solha. Todos, reafirmo, nomes expressivos uns j consagrados, outros emergentes. Contistas de vrios estados e que junto com os citados e emergentes (alguns j de grande destaque) Vera do Val, Cntia Moscovich, Maral Aquino, Luiz Ruffato, Antonio Carlos Viana, Ronaldo Correia de Brito, Marcelo Mirisola, Marcelino Freire, Pedro Salgueiro, Altair Martins, Atade Tartari, Eduardo Sabino, Miguel Sanches Neto, Maria Esther Maciel, Lima Trindade e ainda Joca Reiners Terron, Jos Rezende Jr., Joo Filho, Srgio Faraco, Amlcar Bettega Barbosa, Ana Paula Maia, Luci Collin, Marcus Vincius Rodrigues (que acaba da ganhar o Concurso Nacional de Contos do Paran/Prmio Newton Sampaio), entre alguns outros esto fazendo o conto brasileiro do sc. XXI. Em Capitu mandou flores h contos bem concebidos, como o caso de Missa do Galo: um outro enfoque, de Moacyr Scliar. Neste conto Scliar reinventa Conceio, a personagem machadiana de Missa do Galo, tornando-a uma mulher mais desbloqueada, que assume seu discurso, seu desejo, seu poder de seduo (o conto de Scliar narrado por Conceio; o de Machado, sabe-se, narrado por Nogueira). Uma mulher de vontade e vingativa, que no fim investe contra o marido Meneses. Se Machado flagrou, criticamente, a imagem tpica da mulher casada (e portanto reclusa/reprimida) do sc. XIX, Scliar apresenta uma mulher mais atual, mais liberada e dona de si. Capitu mandou flores traz tambm, do mineiro Srgio Fantini, A face esquerda, um conto certamente original, montado a partir de datas histricas intercaladas com trechos de O enfermeiro, resultando numa interessante ressignificao do relato de Machado. Traz ainda Trem das onze, de Marcelo Coelho, que, alm de ficcionista, conhecido colaborador da Folha de S. Paulo. Trem das onze, costurado com vrios clichs acadmicos, parodia certas anlises da obra machadiana, discutindo ainda a forma (pragmtica, mais voltada para os programas de vestibular) como a literatura utilizada na escola. Em Quartas histrias o primoroso Lalino t na rea, de Andr SantAnna, pe os personagens de A volta do marido prdigo, de Rosa, no morro carioca, nas bocas de fumo. Linguagem eltrica, malandra, o conto de Andr retrata a paixo, os afetos e desafetos de um traficante que vende e depois tem de volta a mulher; mistura trfico com poltica ao fazer desse traficante esperto e de histrias envolventes cabo eleitoral de um candidato a deputado (ex-policial, vereador e, conforme o narrador, bandido srio), que termina controlando o morro. O baiano Carlos Ribeiro tambm aproveita alguns personagens de A volta do marido prdigo na composio do conto Traos cenogrficos de Salino Lalthiel (ttulo que inverte as maisculas de Lalino Salthiel, o protagonista de Rosa). Outro conto original, em que um diretor ps- moderno adapta para o teatro a narrativa do escritor mineiro. O diretor (que, confundindo fico e realidade, no esconde sua paixo pela personagem Maria Rita, a mulher de Lalino Salthiel) concebe como cenrio a cidade de Salvador e empenha-se o mximo para tornar a ao e os dilogos de sua pea eficientes. O conto narra a prpria adaptao da pea e uma mescla inteligente dos gneros narrativo e dramtico. Em Man ful, a paulista Ceclia Prada, com linguagem apurada, modifica o desfecho de Corpo fechado, trazendo agora um protagonista que, de orgulhoso por ser filho ou ter sangue de Peixoto (referncia, no relato de Rosa, a Nh Peixoto, o maior negociante do arraial), vinga-se, com extrema violncia, do pai pelo dio de se ver bastardo, miservel e sem direitos. Natividade, do tambm paulista Joo Anzanello Carrascoza, um conto experimental, elaborado a partir de trechos de O burrinho pedrs, Sarapalha, Conversa de bois e A hora e vez de Augusto Matraga. Ainda Revista Graphos, vol. 14, n 1, 2012 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 187
de Quartas histrias Duelo, da pernambucana Luzil Gonalves. Baseado no conto homnimo de Rosa, muda o ponto de vista da histria original. narrado por Silivana, que conta sua paixo por dois homens: o marido, Turbio Todo, e o amante, Cassiano Gomes. Trata-se de uma narrativa bem humorada, que parodia a representao do masculino no relato do escritor mineiro. Parodia a briga incessante de Turbio contra Cassiano briga que se transforma, j para o final do conto de Luzil, em desbragados risos e abraos, alm de bebedeira, dos inimigos mortais. Por outro lado, esses autores que acabo de citar, e ainda os demais, das duas coletneas de reescrituras que organizei, no intentaram, em hiptese alguma, fazer uma disputa com Machado de Assis ou com Guimares Rosa o que seria uma imperdovel ingenuidade. Mas sim proporcionar (na maioria dos casos) com suas recriaes um dilogo reverencial com os nossos clebres escritores. Por vezes, um dilogo desconstrutor como ocorre em vrias metafices ps-modernas. De todo modo, um dilogo inteligente, instrutivo at.
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Nessa exposio sobre as cinco vertentes do conto brasileiro do sc. XXI procurei apresentar contos significativos e no apontar os melhores contistas tarefa, do ponto de vista crtico e metodolgico, muito difcil, e mesmo arriscada, em se tratando de produo to recente. s vezes um contista algo que frequentemente acontece entre os novos autores se d bem na elaborao de um texto e comete pecados na elaborao de outro. Neste caso, fica um impasse, pois o desejado, para uma posio entre os melhores, sempre uma regularidade no conjunto da produo. Esta regularidade dificlima e muito poucos escritores, em cada gerao, conseguem.
Maro de 2010
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