Arruti - Arvore Pankararu-Libre PDF
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I n tro du o
Esse texto resultado de um trabalho que, originalmente, pretendia descrever a
sociognese do grupo de remanescentes indgenas Pankararu, localizado entre os atuais
municpios de Petrolndia, Itaparica e Tacaratu, no serto pernambucano, prximo ao rio So
Francisco. As terras reivindicadas por esse grupo, desde os primeiros registros do Servio de
Proteo ao ndio (SPI), na dcada de 1930, correspondem a uma lgua em quadro,
delimitada em 14.290 ha. O eixo central dessas terras o Brejo dos Padres, local para onde
uma antiga misso de Oratorianos teria transferido seus ancestrais, depois de expulsos do
local em que hoje se situa a cidade de Tacaratu. O ltimo censo oficial da Fundao Nacional
do ndio (FUNAI) registra cerca de 3.500 Pankararu vivendo entre a rea efetivamente
demarcada e homologada na dcada de 1980, com 8.100 ha, e a rea restante, que est sendo
submetida a um novo processo de identificao. Essa distino entre duas reas e duas
populaes implica em que os Pankararu ainda estejam em processo de territorializao e a
sua sociognese, sob um determinado ponto de vista, ainda possa ser considerada um questo
em aberto.
Alm disso, mesmo no sendo to rigorosos, o trabalho de descrio da sociognese
Pankararu, mostrou-se indomesticvel por outros motivos, transbordando os limites do grupo
e de seu territrio, ou melhor, tornando esses limites confusos e problemticos. As tentativas
de organizar cronologicamente as referncias documentais dos etnnimos Pankararu e
descrever a situao social de contato cultural no Brejo dos Padres, acabou por me obrigar
a perseguir atores, agncias, coletividades e formas culturais no tempo e no espao. No lugar
de um etnnimo, encontrei um rvore e diversos enxames, no lugar de uma situao e de
uma narrativa, uma rede e suas conexes, que estendiam os fios da sociognese Pankararu a
diversos outros grupos de remanescentes indgenas, ao longo do So Francisco.
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Por isso, esse texto, ainda que mantendo seu objetivo inicial, cede tentao de
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persegui-lo por horizontes bem mais largos, oferecendo uma interpretao sobre as prprias
condies dessa sociognese, assim como sobre a emergncia de um conjunto bem mais
amplo de remanescentes. De fato, por meio da conjuno desses termos semanticamente
contraditrias, mas historicamente complementares que procuro configurar meu objeto de
anlise: os remanescentes emergentes. Esses grupos so remanescentes porque foi difcil
design-los simplesmente como ndios: eram caboclos que se supunha serem descendentes
de indgenas aldeados, mas que "no possuam mais", como veremos, os "sinais externos"
reconhecidos pela "cincia etnolgica". So emergentes porque se apresentam sob novas
identidades indgenas, mas que reivindicam uma ancestralidade autctone que no
manifesta: resultado de recuperaes e recriaes tnicas que lhes permitem destacarem-se
na superfcie da rica mas indistinta cultura nordestina sertaneja.
Os limites da anlise que ser apresentada so basicamente dois. Primeiro, esta ser
uma crnica escrita do ponto de vista dos grupos que a viveram, tendo por base fontes orais,
o que significa recorrer histria documental apenas na medida em que esta se fizer
necessria na inteligibilidade daquela, numa inverso do movimento mais comum. Nesse
sentido no estarei to preocupado em delimitar os contextos que envolvem as atuaes e as
razes do rgo indigenista ou dos personagens que surgem nessa crnica como mediadores
entre ele e os remanescentes emergentesi. Segundo, est ser uma crnica relativa apenas a
um primeiro momento dessas emergncias tnicas no Nordeste, que vai da dcada de 1920 a
de 1940. No me estenderei sobre o segundo momento, iniciado na dcada de 70 e ainda
inconcluso, que parece responder a uma lgica distinta e a uma forma diferente de se
imaginarii, a no ser nas situaes diretamente ligadas rvore Pankararu. Alm desses dois
limites, esse texto se pautar tambm por dois focos analticos, que buscam colocar a
situao dos remanescentes emergentes em dilogo com o campo mais amplo dos estudos
tnicos. Estrategicamente, definirei esses dois focos a partir de duas consideraes crticas
acerca das formulaes de Roberto Cardoso de Oliveira sobre a identificao tnica, ainda
representativas desse campo de estudos.
Em um texto de 1971 (Cardoso de Oliveira, 1976 [1971]), este autor cita alguns
casos limite, nos quais um conjunto de indivduos, na falta de um grupo tnico de
referncia efetivamente existente, pode apelar sua histria para se representar como
categoria tnica. A noo de grupo tnico com que o autor trabalhava era retirada de Barth
(1969), podendo ser definida, nesse contexto argumentativo, como um grupo organizado
(organizational type), que se utiliza das diferenas culturais de forma contrastiva, para
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demarcar suas fronteiras com relao a outros grupos. Nos citados casos limites, no
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Este texto se pautar justamente sobre esses dois pontos crticos, buscando elevar ao
ARRUTI, 1999
A te c e du ra da s e me rg n c i a s : a n o s 2 0 - 4 0
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Hoje em dia,... vae sendo um verdadeiro patronato agrcola, dentro de seus minguados
ARRUTI, 1999
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funcionrio (1922) afirmaria que os pretensos ndios Potiguara no apresentavam qualquer
ARRUTI, 1999
dos sinais externos geralmente admitidos pela cincia etnogrfica, fossem eles fisionomia,
ndole, costumes ou idioma. Eram mestios (em promiscuidade com os civilizados) e
indolentes (vendiam seus coqueiros para seus vizinhos empreendedores) que mereceriam
por parte do Estado no a proteo que deve amparar o autctone legtimo ou seus
descendentes diretos, mas a assistncia dispensada aos trabalhadores nacionais (cit. in:
PERES,1992).
No outro extremo, os Fulni-, afirmava o relatrio, apesar de alguma miscigenao
racial e de despossudos de suas antigas terras por polticos locais, conservavam a lngua
e os costumes de seus antepassados, assim como sua coeso social. Alm disso, ainda que
as terras reivindicadas por ambos os grupos apresentassem posseiros, no caso dos Potiguara,
as indenizaes teriam que ser muito altas, enquanto no caso dos Fulni- os ocupantes j
haviam manifestado a disposio de pagar foros a um recebedor legal e idneo (idem). Os
Fulni- reuniam, portanto, as condies bsicas para o empreendimento indigenista, que
traduziam um outro par de razes que justificavam a entrada do rgo no Nordeste. Uma
racionalidade etnolgica ou folclrica (os tais sinais externos)viii e econmica, mas agora
em um sentido mais estrito, onde o clculo no dizia respeito economia nacional ou
regional, mas promessa de viabilidade econmica do prprio rgo indigenista. O que o
funcionrio do rgo no sabia, mas talvez Pe. Alfredo Dmaso tivesse conhecimento, era
que os Fulni- reuniam tambm outras qualidades, que os fariam ponto de partida das
emergncias seguintes e que condicionariam e mesmo orientariam as aes posteriores do
prprio rgo.
O Dr. Carlos e o crculo Fulni- e Pankararu
Depois que o SPI reconheceu os Fulni- como ltimo grupo a resistir ao assdio
civilizatrio na regio, a ateno dos etnlogos, volta-se sobre eles. Carlos Estevo de
Oliveira, diretor do Museu Goeldi, publica tambm em 1931 um artigo sobre o grupo,
centrando sua ateno nas suas possveis afiliaes lingsticas e na sua organizao social,
apresentada como verdadeira raridade etnolgica.
Filhos do sol e da lua, os Fulni- so divididos em duas bandas exogmicas, estas abrangendo cinco
cls totmicos. Que eu saiba, de todos os povos indgenas do Brasil, estudados conscienciosamente,
no existe um, talvez, no qual o totemismo seja melhor caracterizado. As crenas dos Fulni-
pertencem ao mesmo crculo que as das populaes de Brejo dos Padres, de Palmeiro, e muito
provavelmente tambm de Palmeira dos ndios. Isto, de tda evidncia, no significa que todas sejam
inteiramente idnticas. (OLIVEIRA,1931. Grifos meus)
Como se v, os Fulni- servem a Estevo de Oliveira como base a partir da qual, mais
tarde, por um largo mimetismo, ele teceria a legitimidade etnolgica de outros grupos de
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remanescentes que, apesar de no partilharem mais daqueles sinais externos,
ARRUTI, 1999
participariam de uma espcie de rea cultural. A omisso de seus textos sobre as datas
precisas das suas visitas a cada uma dessas comunidades no permite reconstituir como
Estevo de Oliveira produziu sua interpretao acerca desse circulo, mas, justamente essa
omisso, que permite o efeito circular de sua argumentao. Se, em 1931, ele citava o Brejo
dos Padres para respaldar sua interpretao dos Fulni-, em 1937, em sua palestra no
Instituto Histrico e Geogrfico de Pernambuco (Oliveira, 1943), ele citava os Fulni- para
respaldar sua interpretao dos Pankararu, do Brejo dos Padres, que s teria visitado em
1935.ix
Naquela palestra, Carlos Estevo contava que, levado um dia a visitar a cachoeira de
Itaparica e as obras da Cia Industrial e Agrcola do Baixo So Francisco, teria feito uma
descoberta toda filha do acaso. Na procura de uma elevao que me proporcionasse a
possibilidade de transportar para o 'film' de minha 'Roleflexe' [a] imagem do lindo ocaso que
se descortinava diante dos meus olhos, descobriu em uma pequena gruta um ossurio
indgena de real valor cientfico, que o levaria, guiado por um caboclo do local, aos
remanescentes indgenas Pankararu da aldeia Brejo do Padres. Depois de descrever
rapidamente as festas, mitos, a economia e o secular processo de espoliao a que aquele
grupo foi submetido, o autor d notcias tambm dos remanescentes indgenas que ainda se
encontravam em Colgio, guas Belas e Palmeira dos ndios, dirigindo um dramtico
apelo aos seus ouvintes. Apelava a todos para que tomassem sob seu valioso amparo e
proteo [os] remanescentes indgenas que ainda vivem em terras nordestinas e que o
instituto Histrico e Geogrfico Pernambucano tornasse extensivo o seu apelo aos institutos
de Alagoas, Sergipe, Bahia, Paraba, Rio Grande do Norte e Cear, para que esses tambm
amparassem e protegessem os remanescentes indgenas que, por ventura, existam naqueles
estados. Ao repetir sua palestra no Museu Nacional do Rio de Janeiro, seu o apelo, em
funo das relaes que esta instituio mantinha com Cndido Rondon, dirigia-se no mais
ao instituto de pesquisa, mas ao prprio rgo indigenista oficial.
Mas, se a presena do SPI chama a ateno dos acadmicos para os Fulni- e, por
meio deles, para os remanescentes do Nordeste em geral, os Fulni-, por sua vez, chamam
a ateno de uma srie de comunidades, com as quais mantinham laos rituais, para o SPI.
Os Pankararu, que desde o incio da dcada de 20, por meio de suas relaes com os Fulni-,
haviam estabelecido contatos com o Pe. Dmasox, depois de tomarem conhecimento das
existncia de um rgo oficial que oferecia proteo aos remanescentes indgenas contra os
com proprietrios locais, passam a intensificar suas viagens para guas Belas. , portanto,
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por essa triangulao que passa pelo Pe. Dmaso, em guas Belas (BA), que Carlos Estevo
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faz sua primeira viagem ao Brejo dos Padres em 1935. No mesmo ano daquela palestra, em
1937, o Ministrio da Guerra, a que o SPI estava subordinado, envia ao local um funcionrio
para uma primeira avaliao. Os trabalhos no teriam continuidade at que, trs anos mais
tarde, depois transferncia do SPI para o MAICxi, o rgo instalasse um Posto Indgena no
Brejo dos Padres. Assim que soube da deciso, lembram os Pankararu, o prof. Carlos
voltou aldeia para dar pessoalmente a notcia, fazendo festa, abraando a todos em grande
alegria e comunicando que seus problemas estavam resolvidos.
Atravs da mesma mediao e mesma poca, Carlos Estevo entra em contato
com os Xukuru-Kariri de Palmeira dos ndios (AL) e, junto com o deputado Medeiros Neto,
d incio ao seu processo de reconhecimento pelo SPI. O grupo no entanto, teria que esperar
at o ano de 1952 para que o Servio adquirisse uma fazenda, instalasse um posto indgena e
depois passasse a reunir e a receber ali famlias indgenas oriundas de diferentes localidades
prximas.xii Os Kambiw, localizados na Serra Negra (PE), local de quilombos e de refgio
de um grande nmero de grupos fugidos das guerras justas e dos aldeamentos, tambm
iniciam seu processo de reconhecimento oficial ao final da dcada de 1930. Provavelmente
por intermdio dos Pankararu, com quem mantinham contatos regulares, os Kambiw
conseguem auxlio do Pe. Dmaso e, por seu intermdio, uma autorizao do governo federal
para voltarem a ocupar a Serra Negra (BARBOSA,1993). Efetivamente, diversas famlias se
organizam para voltar a ocupar a Serra, mas o seu principal lder capturado, torturado e
morto por fazendeiros locais. Acuadas, as famlias se retiram para uma regio prxima, onde
permanecem at 1954, quando conseguem estabelecer novos contatos com o ministro da
Agricultura, que finalmente demarca suas terras.
Um pouco depois desses primeiros contatos, em 1944, mas tambm por intermdio
Pe. Alfredo Dmaso, o SPI estabelece um posto indgena em Porto Real do Colgio (Al),
junto aos remanescentes Cariris, que reivindicavam as terras de um aldeamento jesutico s
margens do rio So Francisco, extinto em 1759. Ao tomarem conhecimento, os Xoc,
tambm localizados s margens daquele rio, algumas lguas acima, no municpio de Porto da
Folha (SE), intensificam sua migrao para junto dos Cariri. Segundo a memria tribal de
ambos os grupos, o direito s suas terras teria sido dado diretamente pelo Imperador que, em
uma viagem Cachoeira de Paulo Afonso, teria se sensibilizado ao tomar conhecimento do
sofrimento a que estavam sendo submetidos (Dantas e Dallari, 1980, Dantas et alii, 1992 e
PETI,1993). Como os Xoc j estavam migrando para junto dos Cariri em funo do
acirramento do processo expropriatrio das terras do antigo aldeamento da Ilha de So Pedro,
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a sua reunio em um mesmo territrio no momento da criao do Posto Indgena os faz
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Mais tarde, os prprios Tux seriam a ponte entre outros grupos e o rgo indigenista.
ARRUTI, 1999
Esse o caso dos Truc, localizados na Ilha da Assuno, municpio de Pesqueira (BA), 60
km acima dos Tux na margem oposta do So Francisco. As terras do antigo aldeamento da
Ilha de Assuno, reivindicadas pelo grupo, teriam sido expropriadas ao longo do sc. XIX,
apesar do grupo continuar ocupando parte das terras da ilha. Na dcada de 1920, no entanto,
o bispo de Pesqueira toma posse do que restava dessas terras sob a alegao de que elas
teriam sido doadas pelo prprio grupo para Nossa Senhora, devendo por isso estar sob a
administrao da Igreja. Reeditava, assim, uma das mecnicas da expropriao dos
aldeamentos indgenas descritas no relatrio da Diretoria de ndios de 1857xiv, com a
diferena que, na dcada de 1940, essa comunidade alertada pelos Tux da possibilidade
de, sendo reconhecidos como remanescentes indgenas, terem de volta as terras do antigo
aldeamento (BATISTA,1992).
A emergncia Atikum, grupo localizado na Serra do Um, municpio de Floresta
(PE), tem lugar tambm na dcada de 1940, em conseqncia de seu contato com os Tux.
Segundo relatos do grupo, foi em uma das feiras da antiga Rodelas (hoje inundada pela
barragem de Itaparica) que um morador da Serra do Um, reclamando dos problemas da sua
regio, alis comuns a muitas daquelas localidades, como a invaso de roas pelo gado de
fazendeiros vizinhos e a cobrana de altos impostos pela prefeitura, ficou sabendo atravs
de um Tux que, como remanescentes de ndios, poderiam alcanar o apoio do SPI e a
demarcao de uma reserva, como os prprios Tux j reivindicavam. Primo, aqui no
conhecido que ndio? Ento procure os direitos que o governo t dando... (cit in:
GRUNEWALD,1993). Depois disso foi formado um pequeno grupo que se dirigiu ao Brejo
dos Padres, para se informarem junto aos Pankararu, com os quais tambm mantinham laos
rituais, sobre a forma de entrar em contato com o SPI. Queriam ir em busca dos direitos que
foi dado (idem). A malha que comea a se estender entre os grupos j identificados e
aqueles que esto por emergir desenha, assim, outros nexos, mais horizontais que os
anteriores. Nesse ltimo caso, por exemplo, os Tux levam aos caboclos da Serra do Um
(Atikum), que levam aos caboclos da Serra Negra (Kambiw), que ento recorrem aos
Pankararu e, por meio deles, tm acesso aos nexos verticais j estabelecidos, isto , o chefe
do Posto Indgena Pankararu, o chefe da Inspetoria de Recife e a Diretoria do rgo, no Rio
de Janeiro.
Esse o primeiro desenho da rede de relaes que, do ponto de vista dos grupos
envolvidos, possibilitou sua passagem do estado genrico e pejorativo de caboclos, para o
estado tambm genrico mas juridicamente diferenciado de ndios, na luta pela reconquista
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da terra de morada e de trabalho. Mas um elemento fundamental desse quadro ainda deve ser
ARRUTI, 1999
A i n s ti tu i o da s vi a g e n s
Fluxos tradicionais
A trama dessas emergncias sugere, e os depoimentos confirmam, que parte do
percurso coberto pelo rgo indigenista no seu reconhecimento de grupos indgenas pelo
Nordeste respeitou os caminhos pr-definidos por uma rede de trocas intergrupais.
[P: Na poca do seu av j viajavam de uma tribo pra outra? ] J. Ajudando um ao outro. Pegavam
aqueles barco, tinham aqueles brancos que tinham os barcos e tinham vezes que tinham contato com
aqueles ndios e eles vinham pra essa Petrolndia velha. Atravessavam pra Rodelas, pros Tux e iam
faz aquelas festas. Quando no, pegavam o barco aqui em Petrolndia e subiam e levavam pra faz
aquelas festas. A foi quando o negcio da CHESF acabou... [referindo-se s barragens do rio So
Francisco] (Antnio Moreno, capito Pankararu)
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Isso aconteceu durante uma revolta muito violenta, que ocorreu em Pankararu na poca de um
Cavalcanti. Os ndios corriam procura de um lugar onde pudessem viver mais tranqilos. O ndio
Jos Carapina, que veio de Pankararu, ao chegar no lugar, onde hoje a aldeia Jeripanc, pediu o
apoio a um proprietrio...[...]... Depois que o Z Carapina j estava aqui, ainda na poca da revolta em
Pernambuco, muitas pessoas vieram procurar os parentes aqui no Ouricuri, e Z Carapina deu apoio
pra eles. Vieram primeiro o Manuel Carapina, primo do meu av, chefe de famlia, trazia at filho.
Depois chegou Joo Porsena, de Palmeira dos ndios e a esposa dele era de Pankararu, era da famlia
Jacinto... (Gensio Miranda da Silva, cacique Jeripanc, depoimento transcrito em BRITO,1993)
Dessa forma, as viagens ligam grupos, de origens diferentes ou no, por laos de
afinidade e parentesco na produo de uma comunidade ritual mais abrangente e em
expanso, levando constituio de circuitos abertos de trocas de homens, informao e
cultura. Em muitos casos, a presena das viagens e mesmo dessa comunidade ritual so
fundamentais na formao dos prprios indivduos, cuja memria pessoal indissocivel
desses vnculos coletivos. A seguir apresentarei um depoimento mais extenso, que considero
exemplar da impresso desses vnculos sobre a trajetria de um indivduo, no caso
envolvendo os Pankararu, os Jeripanc e os Xucur.
[...] Meu pai e minha me saram daqui [Brejo dos Padres] fugindo da seca e da revolta..., sei l, no
tinha o que comerem... Mas a mesma coisa, corre pra cima...Eu nasci no Pariconha, entre o
Pariconha e o Brejo dos Padres, quer dizer, eu sou mais pernambucano que alagoano. Foi a perto de
Moxot que eles atravessaram. Depois de oito dias fomos pra l, chegando l fui batizado, e j tinha l
ndio daqui, que os ndios ia trabalh e ficava por ali, constitua famlia. Dessa famlia Cangula, do
Joo Toms, tinha muitos deles l. onde deu origem tribo dos Jeripanc, que todos aqueles ndios
foi pra l. A FUNAI comprou mais terra e ns descemos de Palmeira abaixo e fomos ajud a erguer a
aldeia dos Xucurus. Isso foi na poca de 1932 pra 33. A eu fiquei l menino, a minha meninice quase
toda foi l. Ns voltamos pra c na poca do Dr. Carlos. Viemos s passear. Ns acompanhamos a
demarcao de l.
[...] Eu fiquei na aldeia Xucuru, mas ainda no era aldeia. Tinha aquela aldeia porque ns morava num
ranchinho de palha e tinha mais dois ndios daqui [...] Eu fiquei l e me criei, no ritual deles. Ns
danava, ns fumava, tudo isso, todo mundo tinha que lev uma lembrana l toda semana. Um
comprava fumo, outro comprava rapadura, tudo assim. A meninada toda saa pra feira pra ganh frete
daquelas mulheres que fazia feira. Ia com o balaio na cabea e ganhava 200 ris, 300 ris para lev pra
l e can a noite toda, pra pedir pros Encantados que vierem a terra. De modos que eu fiquei rapaz, eu
tinha que vim pra c [Brejo dos Padres] porque o menino tem que ir pro Por [...] Tinha que ir l pra
ver o esconderijo onde os ndios fumava [...] faz uma festa, que nem aqui diz um menino do rancho,
tinha que ir pro rancho. Eu j tava com 14 anos, a vim pra c e a terra j tava demarcada, mas sem
lugar pra fic. A viemo embora, eu mais meus pais. Diziam, venham embora que aqui vocs tm
terra, num fiquem nas terras dos outros. A essa altura eles [seus pais] j trabalhavam na Cafua, nos
Xucurus e ns cantvamos l as noites, dia de sbado pra domingo e na semana todo mundo ia trabalh
[...] Nesse tempo Palmeira dos ndios era uma cidadezinha pequena, ns atravessava, ia praquele lado
de l de Porurica, no meio do mundo. (Joo de Pscoa, ex-paj Pankararu)
Esses circuitos parecem desempenhar o mesmo papel que Anderson (1989) atribuiu
s peregrinaes, que esto na base das antigas comunidades religiosas imaginadas, sob a
experincia das quais emerge uma conscincia de conexo (ANDERSON,1989). Tais
circuitos entre os ndios do Nordeste formaram uma comunidade de problemas (o gado sobre
as roas surge em todos os relatos e a expropriao das terras de antigos aldeamentos em
quase todos) e memrias comuns. H, no entanto, um limite muito claro para o alcance
dessas memrias comuns, que dificulta a compreenso de toda a profundidade e extenso
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histrica dessa comunidade. preciso recuar um pouco mais nesses relatos, assumi-los de
ARRUTI, 1999
um ponto de vista menos individual, a fim de investigar carter coletivo, tnico, dos laos
que permitiam a articulao e funcionamento dessa comunidade que as viagens
constituem, para alm de sua disperso e fragmentao.
A estratgia da mistura e os territrios politnicos
O ndio parece aqueles, ... o senhor no v esses bichinhos que nascem no p de pedra? Porque
ningum sabe das primeira origem, agora que j t se sabendo de onde veio o ndio. Veio ndio de
Pankarar, veio ndio de Tux-Rodelas, veio ndio de Atikum, veio de cada lado e foram casando.
Quer dizer que, de cada aldeia tem um ndio. S no tem aqui dos Fulni-. A chegou os padres e
formaram a santa misso. Foi o padre Santa Clara, o padre Baltazar, os Jesutas, ficaram l. Quando
era domingo, celebravam missa al pros ndios. Por isso ficaram uma parte catlica, mas a nossa
parte no pode esquecer (Antnio Moreno, capito Pankararu)
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governadores de Pernambuco e Bahia proibindo que tais ndios sejam recebidos em aldeias
ARRUTI, 1999
Como se v, as fugas desses ndios traduziam no s sua luta por autonomia, com a
manuteno das antigas relaes de afinidade e trocas entre aldeias, como se inseriam, em
um outro nvel, ora na disputa entre Estado e proprietrios privados de grandes poes de
terra pelo controle da mo-de-obra, ora entre as prprias administraes estatais das
diferentes capitanias de Pernambuco, Bahia e Paraba, por pores de territrios j ocupados,
mas cuja populao era incontrolavelmente flutuante. Sua importncia era revelada pelas
queixas quanto quebra da produtividade dos aldeamentos, base da prpria sustentabilidade
do empreendimento missionrio (LIMA SOBRINIIO,1929), Assim, em 1729, depois de
muitas queixas e de vrios requerimentos ao vice-rei, foi preciso que o Rei interviesse nas
disputas entre os governadores de Pernambuco e Bahia para estabelecesse um modus vivendi.
Reforavam as ordens para que nas duas capitanias se proibissem aos moradores admitir em
suas casas ndios fugidos das misses, e se providenciasse a sua priso e envio s aldeias de
origem. Quase cinqenta anos depois a situao continuava conflituosa nas margens do So
Francisco, onde novamente as duas capitanias se enfrentariam em funo da posse sobre a
Misso de Rodelas, em 1772. (Barbalho, 1985: vol. 8, 1416).
Sem negar esse carter de resistncia dominao, entretanto, como aponta John
Monteiro (1994), tais fugas apresentavam uma grande ambigidade. Ainda que relativa a um
outro contexto, a anlise desse autor chama ateno tambm para o fato das fugas muitas
vezes servirem como recurso na negociao com os administradores das misses e
aldeamentos, j que atravs delas os ndios podiam se engajar em outras administraes que
se mostrassem mais brandas ou legtimas, segundo um padro estabelecido na prpria
relao entre dominador e dominado. Atravs de alguns depoimentos documentados em
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inventrios ou processos judiciais, Monteiro identifica entre as motivaes destas fugas a
ARRUTI, 1999
recusa em servir aos herdeiros do antigo senhor, a busca de parceiras para casamentos em
outras aldeias, a recusa em aceitar um novo dono imposto por venda, em um somatrio de
exemplo em que o fugido, em lugar de recusar definitivamente a vida nos aldeamentos,
procurava melhorar sua vida entre eles. Tais fugas serviram para reduzir as tenses inerentes
relao senhor/escravo e para realizar uma redistribuio de mo-de-obra, j que elas
acabaram sendo capitalizadas por alguns senhores mais fortes, que conseguiram reverter em
seu benefcio uma forma potencial de resistncia ao sistemas de trabalho forado.
No caso dos aldeamentos das margens do So Francisco, a ambigidade das fugas
nos interessa no que ela revela, no apenas do sistema de aldeamentos e de sua possvel
crise, mas de um determinado padro de mobilidade daquelas populaes tnicas. Se esse
padro pode ser buscado em formas culturais nmades anteriores aos aldeamentos, ele
certamente tambm corresponde a um dos efeitos especficos da dinmica de
territorializao dos prprios aldeamentos, quando estes, a fim de maximizar sua
administrao, juntavam e repartiam grupos de diferentes origens, criando, com isso, laos
entre aquilo que os missionrios e outros administradores concebiam como unidades
administrativas estanques. Caracterstica que seria ampliada pela estratgia da mistura xv,
operada pela poltica das reunies. Esta poltica surgiu depois da eliminao do poder
temporal dos missionrios sobre os aldeamentos, da transformao dos aldeamentos em
vilas, dos missionrios em procos (1758), do incentivo oficial aos casamentos mistos entre
portugueses e ndios (1775) (Hoornaert, 1992) e sob o argumento de que em vrios dos
aldeamentos restavam apenas um pequeno nmero de sobreviventes. A poltica das
reunies consistia em extinguir a parte dos aldeamentos existentes considerada subpovoada,
para que sua populao fosse reagrupada junto de outros mais numerosos, acelerando tanto
o processo de mistura e, portanto, de descaracterizao tnica daquela populao, quanto a
liberao de novas terras. O resultado era a ampliao do carter pluritnico dessas
organizaes territoriais.
Esse carter pluritnico dos aldeamentos e misses chama ateno, portanto, para
razes dessas fugas que no eram aparentes aos missionrios e administradores. Reunindo
uma grande variedade de grupos e, em muitos casos, os separando de suas metades, alocadas
junto a outros grupos, a poltica das reunies em lugar de levar mistura definitiva
daquela populao, homogeneizada e isolada em territrios administrados, reconvertida,
pela mobilidade indgena, em uma rede de referncias tnicas sobrepostas. Essa hiptese
reforada pela observao de que, ao contrrio dos casos relatados por Monteiro para So
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Paulo, nos aldeamentos do So Francisco tais fugas no eram individuais, nem se
ARRUTI, 1999
constituam como fugas em massa. Segundo os relatos, sua escala parece ter sido familiar.
Assim, a relevncia que tais fugas para nossa interpretao est sugesto de como elas
desenharam circuitos de troca de homens e informao (fatual e cultural) entre territrios
politnicos.
Lideranas peregrinas
Se nas pginas anteriores buscou-se apresentar um esboo desse circuito de trocas
ancestrais, que orienta o fluxo de populaes e, mais recentemente, o prprio circuito das
emergncias, nesse ltimo tpico faremos referncia a um outro gnero de viagens. As
viagens de lideranas dessas comunidades s capitais do estado e at mesmo ao Rio de
Janeiro, em busca dos direitos, que tem origem como resposta ao ltimo momento das
polticas de expropriao territorial, que levou tambm extenso oficial dos aldeamentos.
Essas viagens passam a ser uma marca da luta indgena do perodo compreendido entre o
ltimo quarto do sculo passado e o primeiro deste, servindo tambm como modelo a partir
do qual se conformaro as alteraes nos arranjos de autoridades internos queles grupos
depois do advento do SPI na regio.
O sculo XIX parece assistir a passagem dos pedidos de missionrios em favor dos
ndios, para pedidos dos ndios em seu prprio nome, por meio de peties ao Imperador ou
de viagens que realizavam a fim de v-lo pessoalmente. A viagem do Imperador regio em
meados do sculo teria produzido o efeito de dar realidade figura mtica que lhes era
apresentada como um grande pai (Dantas et alii., 1992). Como lembra Revel (1989), a
itinerncia do rei no novidade, fazendo parte, desde a Alta Idade Mdia, do repertrio de
recursos que o soberano tem para conhecer o reino e se fazer conhecido por ele. As viagens
soberanas serviam para que o Rei reafirmasse seus domnios periodicamente, atravs do
consumo no local dos seus produtos e rendimentos. No caso de Pedro II, depois da recente
Lei de Terras, tornava-se importante sua presena por toda parte, arbitrando conflitos,
regularizando situaes de fato, pacificando o espao nacional e se fazendo necessrio aos
seus sditos: Quando se desloca, o rei delimita o seu territrio. Faz o seu reino existir e
toma posse dele (REVEL,1989).
A novidade, no entanto, foi que, ao se fazer presente, o poder soberano mostrou-se
acessvel, abrindo a possibilidade de ser tambm buscado. Com o mesmo objetivo de tomar
posse de seus territrios, ndios passam a empreender viagens ao Rio de Janeiro, com uma
freqncia grande o bastante para fazer necessrio ao governo central enviar circulares s
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provncias determinando que fossem proibidas tais viagens (DANTAS et alii., 1992). Apesar
ARRUTI, 1999
desta tentativa, parecia ter sido instaurado um padro, ou mesmo poderamos dizer uma
tradio. As comunidades indgenas passam a ver nas viagens aos centros de autoridade,
capazes de as conectar aos poderes extra-locais, o nico recurso para a conquista ou garantia
de seus domnios territoriais. Mas s excepcionalmente essas viagens ganhavam algum tipo
de registro documental, como as dos Xukuru-Kariri no incio do sculo XIX, dos Xoc e
Xucur nas ltimas dcadas desse mesmo sculo, e as novas viagens conjuntas de Xoc e
Kariri-Xoc entre as dcadas de 1910 e 1920 (Dantas e Dallari, 1980, SOUZA,1992 e
PETI,1993).
No no vazio, portanto, que surgem, desde o incio do sculo, as viagens de
representantes da comunidade de Brejo dos Padres s cidades vizinhas, na busca de proteo
contra o gado dos fazendeiros que invadiam suas roas. A dcada de 1930, aparentemente
sob o impacto dos programas do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as
Secas), amplia a presena de poderes extra-locais na regio, produzindo novos centros de
autoridade. Mas na cidade de Bom Conselho que, apesar de no apresentar qualquer papel
regional destacado, a presena do Pe. Alfredo Dmaso e o seu apoio s demandas de grupos
de remanescentes criaram um centro de autoridade que passa a substituir outros possveis
centros, at ento ineficientes.
Meu pai viajava pro Rio de Janeiro pra resolv esses problemas e nunca resolveu, tinha partes que
andava at de p, pra parte de Minas. De Governador quase a Trs Rios andava de p, pegava carona
num canto e ni outro... Mas ns no, porque graas a Deus agora a coisa melhorou mais, porque o
governo sempre d uma passagem, uma coisa e outra... [P: Quem viajava com ele?] O Bernadino
Pereira, o Mariano Ti, Lino Barros, que tinha o apelido de Lino Cabeludo [risos], o Jos de Barros
que morava l dentro do posto, cinco, seis pessoas. [...] A primeira comarca pra que eles viajaram foi
pra Flores, a primeira cidade de Pernambuco Flores, comearam pra l, pra falar com o Interventor,
um doutor que eles chamavam na poca Interventor, mas se fosse da parte da lngua indgena
era...[silncio]... Maribixaba. Seja doutor, Juiz de direito, governador, chamava Maribixaba Apaua.
(Antnio Moreno, capito Pankararu)
Nesse circuito, a importncia que passa a ter a cidade de Bom Conselho deriva do seu
papel de ponto de convergncia de dois circuitos rituais. O efeito de nodosidade
(RAFFESTIN,1993) assumido por aquela cidade criado pelo fato do seu proco, o Pe.
Alfredo, ter no seu roteiro de servios espirituais a cidade vizinha de guas Belas, onde
localizam-se os Fulni-, mais um dos pontos do circuito de trocas rituais dos Pankararu,
Xukuru, Xukuru-Kariri, Tux, Kambiw e outros. A circulao e a comunicao,
intimamente associados em contextos de pouca especializao das redes de comunicao
(idem), encontravam naquele ponto geogrfico um eixo para a articulao do circuito dos
possveis centros de autoridade. No se tratava de um lugar privilegiado a priori, mas que foi
construdo como nodosidade em grande medida contingente, onde era possvel pr em
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contato e, por isso, dar uma dimenso de experincia coletiva s narrativas particulares e
ARRUTI, 1999
trocar informaes sobre formas de buscar seus direitos. por meio desse n que aquele
circuito de trocas rituais tornar-se- o circuito das emergncias.
As demandas dos caboclos do Brejo dirigidas ao Pe. Dmaso inicialmente no
falavam na criao de qualquer rea de exclusividade que distinguisse entre aqueles que eram
ou no eram ndios. A memria de uma ancestralidade indgena servia como fiadora dos
direitos que sabiam ter sobre as terras, mas no implicava desde o incio na pretenso de uma
delimitao formal, subordinada a uma unidade identitria e poltica. A referncia no era um
territrio, mas posses de uso familiar. No existia um permetro circundando um territrio
abstrato de uso coletivo (ainda que se conhecessem os marcos do antigo aldeamento), mas a
terra sobre a qual se investia um trabalho social, de base familiar e sobre a qual havia um
domnio no legal, mas hereditrio. Era desse domnio que sabiam estar sendo expropriados.
... e aquilo al, pra sobreviv uma famlia de 10 filhos al com aquele p de abbora... A o meu pai foi
vendo que aquilo no dava certo e foi pedindo de um lado e outro, pro governo, uns achava que era
certo, correto aquilo, outros que no era, e foram at que deram o apoio de confiana quando
cercaram. Os ndios j no podiam fazer nada mais, vigiando o bicho noite, quem plantava um p de
abbora, outro de macaxeira, aquilo al era numa correria danada... A ele foi, falou com o Pe. Alfredo
e fale com o interventor, que era o governo l de Recife, e ele foi embora l pra Recife de p, porque
naquele tempo no tinha carro... (Antnio Moreno, capito Pankararu).
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conjunto de pessoas cujos interesses tm nessas pessoas um porta-voz (BOURDIEU,1989).
ARRUTI, 1999
ARRUTI, 1999
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vai encolhendo, 14.200 ha j t passando pra 8.100 e eu quero sab onde que ns vai fic, no vai
cab ns no. (Joo de Pscoa, ex-paj Pankararu)
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O Tor, brincadeira de ndio ou de caboclo, como os prprios indgenas o
ARRUTI, 1999
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A instituio do Tor como expresso obrigatria da indianidade cria um nexo de
ARRUTI, 1999
outra natureza entre os dois circuitos de viagens de que j tratamos. De agora em diante um
circuito levar ao outro, no eventual ou acidentalmente, mas necessariamente, j que a troca
ritual transformada em pressuposto da conquista de direitos. tambm a conexo entre
esses circuitos que permitir s lideranas peregrinas assumirem um papel poltico ainda
mais largo do que aquele que j desempenhavam como representantes de sua comunidade.
Alm de realizarem o trnsito de informaes sobre os direitos entre os centros de autoridade
e seu grupo, passam a atuar como os agentes que disseminaro as regras da expresso
obrigatria da indianidade. Agregam comunidade ritual prvia, uma comunidade da busca
por direitos, que estar ligada ao isolamento, descontextualizao e padronizao de um dos
seus rituais. novamente Joo Moreno que, depois do reconhecimento dos Pankararu e com
toda a legitimidade que isso lhe dava, passa a desempenhar tambm esse papel para os
grupos mais diretamente ligados pelos circuitos rituais ao Pankararu.
Meu pai que foi l [ao Brejo do Burgo] faz como o antroplogo, pr lev algum conhecimento pra
eles. [P: Mas, pera, como foi isso? O seu pai foi at l pra ensinar? ] Pra ensinar sobre o ritual das
festas, sobre as festas deles, que eles to mudando como assim,... como uma muda, cantavam num
outro ritmo, tinha outro som, parecido, mas j outro som, a dentro daquelas mudanas, a pessoa vai
cantando aquele toante e no suspend daquele toante, a pessoa vai suspend diferente, no suspende
como esse daqui, pra ter modificao. [P: Quer dizer que os Pankarar no sabiam fazer isso?] No
sabiam, foi na poca que eu era moleque, tinha uns sete pra oito anos [1947-1948], e que fui eu mais
meu pai [...] meu irmo. Mas ele j tinha ido mais vezes l. Foi l pra represent de como era pra fazer
as festas, pros toantes serem diferentes. [...] L tem parente da gente tambm, porque a famlia da
minha me tem famlia l tambm. [P: A famlia da sua me veio de l ou foi pra l? ] Foi pra l. A
famlia dos Antnio Vieira tem l tambm. [P: E aqui no teve nenhuma relao com os Tux?] Teve
tambm, mas como convite, porque as festas deles eles j faziam. Faziam convite pros daqui mand
uma parte de apresentao pra l e de l praqui. [...], nessa poca eu no era nascido ainda no. Eles j
tinham aqueles contatos. (Antnio Moreno, capito Pankararu)
ARRUTI, 1999
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O delegado no mostrou maior interesse pelo caso e consentiu que seguissem viagem.
No entanto, isso parecia pouco e Joo Toms insistiu:
No, mas pera, eu t indo mas eu vou querer autorizao do senhor. Porque eu vou a fim de brincar e
no sei se uma noite, se duas ou se 15 dias. Eu preciso de sua autorizao escrita. (idem)
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Novamente o delegado no fez qualquer resistncia e escreveu a autorizao que Joo
ARRUTI, 1999
Toms a colocou no bolso partindo em seguida para o Brejo do Burgo. Chegando l no meio
da tarde, chamou a comunidade para brincar: tava todo mundo muito tempo sem dan, a
eles tacaram o p no Tor. Quando j era alta noite, um rapaz chegou assustado dizendo ao
Joo Toms que o delegado e o prefeito estavam chegando, com cinco soldados para acabar
com a brincadeira. Joo Toms pediu ento que parassem o Tor e os colocou em formao,
lado a lado, enquanto ele mesmo foi para a entrada do terreiro esperar a chegada das
autoridades e dos soldados. Ao chegarem, o prefeito perguntou quem era o Joo Toms e
quem tinha autorizado a realizao do Tor. Joo Toms se apresentou, e respondeu que a
autorizao no era de ningum, ele que havia autorizado e que podia autorizar porque ele
era ndio, estava no meio dos ndios e os ndios quando se encontram uns com os outros tm
que danar o Tor, porque no tem outra diverso, porque no so brancos, no so
civilizados, e a sua dana era aquela mesmo. O prefeito pensou um pouco e pediu para que
o Joo Toms suspendesse o Tor at que ele se entendesse com o delegado regional do
rgo indigenista, em Recife.
O Tor estava sendo realizado no terreiro levantado em frente casa de uma das
lideranas e, de madrugada, as roas prximas ao terreiro, que estavam sendo disputadas pelo
irmo do prefeito, amanhecem destrudas. Ao tomar conhecimento do fato, Joo Toms se
dirigiu Paulo Afonso para pedir ajuda do Major Renixviii, que consegue responsabilizar a
famlia do prefeito pela destruio das roas e os obriga a pagar os prejuzos causados.
Vitorioso e comemorado entre os Pankarar, Joo Toms volta aos Pankararu. Dias depois,
alguns Pankarar procuraro novamente Joo Toms, agora para avis-lo das ameaas do
prefeito e do delegado diretamente sua pessoa e para aconselha-lo a no mais voltar ao
Raso da Catarina, porque aquelas autoridades haviam fincado um moero no meio da
comunidade do Brejo do Burgo anunciando que ele serviria para acorrentar o Joo Toms, se
ele aparecesse novamente. No dia seguinte, ele volta a procurar o Major Reni em Paulo
Afonso, pedindo que ele lhe acompanhasse no seu retorno ao Brejo do Burgo. O Major
destaca dois soldados e um sargento para acompanha-lo, este ltimo armado tambm de
mquina fotogrfica para registrar o Tor. Ao chegarem na comunidade, bem cedo, eles
arrancam o moero e passam a organizar o Tor, que dura todo o dia.
De madrugada, depois do Joo Tomas j ter ido embora, o prefeito chega com a
polcia e leva preso o dono do terreiro onde havia se realizado o Tor. Quando estava
chegando de volta Paulo Afonso, Joo Toms fica sabendo de priso e pede nova
autorizao ao Major Reni para que ele fosse soltar o rapaz. Ele volta acompanhado de um
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cabo e um sargento e consegue interceptar o carro do prefeito, com o delegado, soldados e o
ARRUTI, 1999
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tambm do seu anncio e da sua transmisso, legitimado por uma ordem de exceo, para a
ARRUTI, 1999
qual a tutela abria ento, assume ele mesmo o papel de disseminador do campo de ao
indigenista.
o Fulni- um tribo muito velha igual aqui a nossa. Ramo daqui Pankarar e Kambiw, quer dizer, j
existia mas foi fundada por gente daqui. Kambiw j tinha a tradio deles, mas pra erguer foi gente
daqui pra l. Pankarar a mesma coisa, j tinha a tradio deles mas teve que ir gente daqui. Esse
Joo Toms mesmo daqui teve em todas. Se pra levantar uma aldeia ele levant direitinho. Os
posseiros querem prend ele, eles quizeram amarr ele l num tronco, mas nada, ele gosta de levant
uma aldeia... (Joo de Pscoa, ex-paj Pankararu).
Os tro n c o s , a s po n ta s e o s e n x a me s
Por apresentar um estilo bastante acabado de engendrar emergncias, a situao
Pankararu especialmente boa para pensar, no s pelos vnculos concretos com outras
emergncias, como vimos, mas porque ela fornece uma espcie de modelo simblico, que d
inteligibilidade elas. No que tal modelo Pankararu possa ser apresentado como resumo ou
sntese da diversidade de situaes histricas, polticas, e cosmolgicas que envolvem os
grupos da regio, mas porque, por meio dele, possvel mudar a qualidade do nosso olhar
sobre esse fenmeno, passando de uma descrio dos fluxos e da mecnica, para chegarmos
potica das emergncias. Isto , s categorias que permitem compreender simultaneamente a
unidade e a variedade desses grupos, tomando como objeto no o conjunto de todas as
emergncias catalogveis, mas o discurso que as viabiliza, poderamos dizer, o discurso da
etnicidade, enquanto princpio de engendramento dos significados que se erguem a partir do
sistema de metforas, o no aleatrio da inveno cultural.
O tronco Pankararu
O sistema de metforas que descreve essas concentraes, disperses e cristalizaes
tnicas organiza-se segundo o par Troncos Velhos / Pontas de Rama, que traduz para esses
grupos a distncia entre eles e seus antepassados, ou entre grupos mais antigos e mais novos,
tanto no que diz respeito sua aparncia fsica quanto s suas tradies. Soluo
classificatria para os fenmenos de natureza identitria da mistura, esse par de categorias
permite considerar como parentes grupos poltica e territorialmente distintos, tendo por
referncia ancestrais comuns (reais ou imaginrios) de uma forma que pode ampliar-se at
incluir todos os ndios, por oposio a todos os civilizados, brancos ou brasileiros. A
oposio, continuidade e complementaridade entre troncos e pontas, que marca tanto a
relao entre geraes e famlias dentro da aldeia Pankararu, quanto entre os Pankararu e
outros grupos, serve como uma forma de pensar o tempo e seus efeitos segundo um jogo
26
entre a imagem de laos naturais e experincias eminentemente histricas. O par Troncos /
ARRUTI, 1999
Pontas no implica em um sistema fixo de relaes hierrquicas, mas opera como uma
espcie de shifter (Jacobson, s/d), cujo significado depende do contexto de enunciao. Esse
par no nomeia pessoas ou grupos tomados isoladamente, mas os introduzem num sistema de
relaes, que estabelece a distncia com relao a um ideal de ndio puro. Assim, os
Pankararu podem ser tronco velho com relao aos Kantarur ou aos Jeripanc, que se
constituram como seus enxames, mas j so ponta de rama com relao aos Kayap ou
Xavante, por exemplo, com quem travam relaes durante suas viagens Braslia. No
contexto do Brejo dos Padres, os grupos que vieram a se combinar no composto hoje
designado como Pankararu seriam troncos velhos com relao a este ltimo, considerado
como ponta de rama daqueles.
Segundo o levantamento realizado por Hohental (1960), as notcias mais antigas do
etnnimo Pankararu (Pancarars ou Pancars) so de 1702, surgindo nos relatrios de uma
das Misses das ilhas do So Francisco, junto a outros trs grupos, os Kararzes (ou
Carars), os Tacaruba e os Pors. Mais tarde, h notcias dos Pankararu e dos Pors em
outros dois aldeamentos missionrios e , finalmente, com a criao do aldeamento de
Brejo dos Padres, possivelmente em 1802 (Hohental,1960), a partir do ajuntamento destes
com os Uman, Vouve e Jeritac (BARBALHO, 1985), que se define sua atual localizao.
Ampliando o leque de etnnimos associadas aos Pankararu, segundo sua tradio oral, eles
seriam parentes dos Pankarar (localizados na margem oposta do So Francisco), dos quais
teriam se separado bem antes de sua reunio em aldeamentos, assim como teriam ligaes
com as famlias da Serra Negra (atuais Kambiw e Kapinaw) que, depois de reiteradas
tentativas estatais e missionrias, foram parcialmente agrupados no mesmo aldeamento do
Brejo do Padres. O aldeamento do Brejo dos Padres transformou-se, com isso, num territrio
de reunio e combinao tnica compartilhado por vrios grupos de origens diferentes, alm
dos negros ex-escravos que vieram a ser alocados a em fins da dcada de 1870.
Processos semelhantes foram vividos em outros aldeamentos, mas a particularidade
Pankararu est em que eles geraram um recurso prprio e original de recusar a reduo
imposta por essa mistura. Mantiveram, independentemente de sua designao oficial, um
outro nome composto, de conhecimento geral, mas de uso apenas memorial como seu
verdadeiro nome, Pancar Geritac Cacalanc Um Canabrava Tatuxi de Ful. Segundo
eles cada um desses sobrenomes corresponderia a uma das outras principais etnias que
vieram a compor historicamente o grupo. Cada um deles guardando a memria da
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diversidade tnica que os constitui e que coberta apenas parcialmente pela
ARRUTI, 1999
Se, no passado, diferentes grupos puderam ser reunidos num mesmo territrio como
estratgia de sobrevivncia, porque no pensar que hoje, tambm como estratgia de
sobrevivncia, um grupo possa dar origem a outros, multiplicando os territrios indgenas?
Originada do mundo animal, mas intimamente ligada aos processos de reproduo vegetal,
essa nova metfora agrega mobilidade imagem do tronco/pontas, carregada que est de
uma idia de expanso e fracionamentos para a constituio de novas unidades. O enxame
um movimento em geral compulsrio, localizado em um tempo entre o histrico e o mtico
que, dos troncos velhos, produz pontas de rama. Sua contrapartida contempornea o
levantamento de aldeias, movimento voluntrio, de carter poltico e cultural que, das
pontas de rama, vai buscar apoio e ensinamento nos troncos velhos. Completando a sintaxe
das emergncias e restituindo-lhe seu aspecto dinmico e essencialmente poltico, o
enxame menos uma categoria classificatria o elemento ativo que movimenta o conjunto
e estabelece seus vnculos, expressando tambm seus efeitos territoriais.
As pontas de rama Pankararu
por meio desse sistema de metforas que envolvem de um lado os Troncos Velhos
e as Pontas de Rama e, de outro, os sobrenomes e os enxames, que podemos
compreender a emergncia de ao menos outros seis grupos, que conformam hoje, a grande
rvore Pankararu: os Pankarar, dos quais j descrevemos a emergncia, os Jeripanc, os
Kantarur, os Kalanc, os Pancaru e os Pankararu de Real Parque.
O ncleo do Pariconha, como os Jeripanc eram conhecidos na documentao do
rgo indigenista at meados dos anos 80, teve origem nos deslocamentos de famlias
Pankararu poca da extino do aldeamento e da instalao das linhas. Nessa poca, um
certo nmero de famlias deslocou-se para o Pariconha, mas nunca deixou de manter relaes
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com o Brejo dos Padres. Com a instalao do Posto Indgena no Brejo dos Padres no incio
ARRUTI, 1999
dos anos 40, essa comunidade passou a usufruir tambm de alguns de seus servios,
principalmente os relacionados sade, at que, em 1985, o chefe de posto da rea
Pankararu, considerasse o ncleo do Pariconha com tamanho suficiente para ser
reconhecido como rea autnoma. No momento da escolha do nome para oficializao da
rea, em acordo com seus parentes do Brejo dos Padres, acertou-se a adoo de um dos
sobrenomes do grupo maior, dando origem aos Jeripanc.
Os Kantarur, por sua vez, afirmam ter origem no deslocamento de uma jovem
Pankararu nas peregrinaes religiosas da imagem de N. S. da Sade, ltimas graves secas do
final do sc. XIX, casando-se e estabelecendo famlia no sop da Serra da Batida, onde deu
origem aos caboclos da Batida, como eram conhecidos. Em 1987, uma das mulheres dessa
comunidade abordada na feira da cidade de Glria por ndios Tux que, atravs de seus
traos fsicos e de perguntas sobre sua origem, chegam a concluso de que ela ndia e lhe
recomendam procurar seus direitos junto FUNAI. A partir de ento a comunidade dos
caboclos da Batida entra em contato com os Pankarar, com os Xukuru-Kariri, com os
Pankararu e conseguem que, em 1989, a FUNAI envie uma antroploga para fazer o primeiro
reconhecimento, formalizado apenas em 1998.
O mesmo mecanismo se reproduz na histria de fundao dos recm surgidos
Kalanc, que afirmam terem origem na migrao, tambm ao fim do sculo XIX, de um dos
filhos de um antigo paje Pankararu. Nesse caso, os primeiros contatos foram realizados em
1998, quando, por meio dos Jeripanc, de quem so vizinhos, conseguem ateno da FUNAI.
O rgo indigenista, entretanto, ainda no providenciou a identificao do grupo, mas seus
paj e cacique j iniciaram visitas ao Brejo dos Padres na poca de suas principais
festividades.
As ltimas pontas de rama do tronco Pankararu a serem relacionadas diferem das
anteriores em funo do seu carter controverso, seja este com relao autenticidade da
afirmada descendncia, seja com relao legitimidade de tornarem-se um novo enxame. Os
Pancaru, que foram identificados e reconhecidos pela FUNAI no final dos anos 70, afirmam
ter origem na migrao do seu patriarca, ainda vivo, do Brejo dos Padres nos anos 20, depois
do que ele formou famlia e perambulou pelo serto at estabelecer-se, na dcada de 50, nas
terras atualmente reivindicadas, no municpio de Serra do Ramalho (BA). Tendo recorrido
FUNAI por encontrarem-se sob a ameaa de grileiros, foram reconhecidos como
remanescentes pelo rgo oficial, mas no como seus descendentes pelos Pankararu, que
por sua vez, solicitaram ao rgo indigenista a correo do erro.
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A outra situao controvertida merece uma ateno mais demorada. Os Pankararu de
ARRUTI, 1999
Real Parque formam um grupo estimado em torno de 1500 pessoas, que ocupa parte da
favela de mesmo nome no bairro do Morumbi, grande So Paulo. Esse grupo tem origem na
intensificao do fluxo de deslocamentos de trabalhadores do Nordeste para as grande
cidades do Sudeste a partir da dcada de 1940. O trabalho, na maioria dos casos, era nas
equipes de desmatamento da Cia de Luz do Estado e, inicialmente era agenciado por gatos
que iam busc-los na prpria aldeia, para entreg-los, em lotes, ao empreiteiros das obras.
A sucessiva elevao de um desses trabalhadores ao papel de gato e mais tarde de
empreiteiro da obras de desmatamento da Cia de Luz, acabou acarretando um fluxo direto e
constante entre o Brejo dos Padres e So Paulo nas dcadas de 1950 e 1960. Em pouco
tempo So Paulo tornou-se uma referncia para todo o grupo, que tem l filhos e irmos.
Inicialmente era um fluxo apenas de homens, que saam da rea indgena para
trabalhar curtos perodos em So Paulo, como forma de reequilibrarem o oramento
domstico em ano de seca ou em situaes emergncias. Sem se integrarem cidade,
voltavam sempre que as necessidades imediatas j tivessem sido cobertas ou quando se
anunciasse um bom inverno. A partir da segunda gerao de Pankararu trabalhadores em So
Paulo, no entanto, que coincidiu aproximadamente com a idade adulta das primeiras geraes
de crianas alfabetizadas pelo posto indgena, as mulheres intensificam sua viagens e
aparentemente passaram a servir de base para permanncias mais estveis. A cada ncleo
familiar instalado l, tornava-se mais fcil e provvel que novos jovens percorressem o
mesmo caminho, fazendo com que essas viagens assumiram um carter sistemtico e
familiar.xix O fato de construrem uma base espacial relativamente homognea, logrando
reproduzir uma organizao poltica e ritual, , diminuiu os custos materiais e afetivos dessas
migraes, permitindo uma efetiva reterritorializao. xx
Depois que as notcias sobre assassinatos de jovens Pankararuxxi, Real Parque ganha
grande visibilidade, que lhe permite emancipar-se do discurso das lideranas do Brejo e
reivindicar a criao de sua prpria aldeia. A idia, entretanto, no foi bem recebida nem
pelas lideranas do grupo em Pernambuco, nem pela FUNAI.xxii Estava em jogo, entre outras
coisas, o estatuto das viagens a So Paulo. As reivindicaes fundirias e os projetos de
desenvolvimento do Brejo dos Padres freqentemente contabilizaram a populao de So
Paulo como parte dos beneficiados, caracterizando sua sada como uma dispora. Aquela
nova postura, no entanto, convertia a dispora em mais um enxame, o exlio econmico em
reterritorializao tnica, dando continuidade ao movimento de fragmentao e expanso da
identidade Pankararu que, nesse caso, contrariava a estratgia poltica do Brejo dos Padres.
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ARRUTI, 1999
Encantados
so
ndios
vivos
que
se
encantaram,
voluntria
ou
involuntariamente e, por isso, o culto a eles, como insistem os Pankararu, no pode ser
confundido com o culto aos mortos, identificado como a religio de negros. A forma desse
encantamento s pode ser parcialmente narrada, seja porque constitui um mistrio para os
prprios Pankararu, ou um segredo que no pode ser revelado a estranhos. Segundo os
Pankararu, o segredo do encantamento o ncleo da prpria identidade da aldeia. Cada povo
indgena tem seu panteo de Encantados, mas como cada tronco marcado por uma
determinada forma de encantamento, esses Encantados podem ser partilhados durante um
determinado tempo por grupos ligados entre si como pontas de rama de um mesmo tronco
velho. Atualmente os Encantados Pankararu habitam apenas as serras e os serrotes que
demarcam o entorno do Brejo dos Padres. Praticamente para cada uma dessas formaes ou
macios rochosos, esteticamente muito impressionantes, corresponde um Encantado. O
contato entre os Pankararu e eles restringe-se, atualmente, aos sonhos, durante os quais
alguns Pankararu podem viajar at os castelos existentes dentro daquelas serras e serrotes.
Os encantamentos de ndios vivos que geraram os atuais Encantados, no entanto,
envolviam as extintas cachoeiras de Paulo Afonso e de Itaparica. Algumas narrativas contam
que o surgimento dos Encantados e dos prprios Pankararu deve-se ao encantamento de toda
uma populao de ndios, uma tropa, que teriam se jogado na cachoeira de Paulo Afonso.
Eram esses Encantados, que passaram a habitar a cachoeira e que tinham origem em todas as
naes antigas, que se comunicavam por meio do estrondo das guas, prevendo desgraas,
mortes ou mesmo novos encantamentos. Depois desse encantamento coletivo, que d origem
prpria aldeia, pensada enquanto unidade espiritual, outros ndios, depois de serem
anunciado e de passarem pela devida preparao, podiam continuar se encantando.
Quando era assim um jovem ,como o senhor, e chegava o cacique ou o paj e falava; "O senhor vai
morr, pode no ser hoje ou amanh, mas o senhor vai morr", a ns preparava ele e ia pra nossa
cachoeira [...] que at que os gringo no vieram e no quebraram, tinha o rastro dos ndios na pedra. O
senhor viajava hoje e, quando era amanh, que passava oito dia, ns tinha que acend o fogo num
reservado e esper a sua chegada [...] esper naquele ponto, acend o cachimbo. [...] ns no estamo
ARRUTI, 1999
31
brincando com esprito morto como os outros al, ns tamos trabalhando com os ndio. Quando com
oito dia, agente esperava aquele camaradinha que se encant, que vivo, vivo graas a Deus.
Quando era com oito dia ele trazia a vida dele numa semente e ns tamos nessa iluso. A semente que
pra ns fic adorando. Ns adora a semente mais ou menos como adora um santo, ou mais do que
isso. [Ento todo encantado foi um ndio?] Todo Encantado um ndio. [Um ndio que se jogou da
cachoeira?] Todo Encantado dessa aldeia aqui foi-se jogado da cachoeira (Man Bizoro).
32
festa realizada. Alm disso, cada Prai deve ser vestido por um homem, em geral afiliado ao
ARRUTI, 1999
Encantado correspondente farda, que deve exercer esse papel em segredo. Nesse caso
tambm no qualquer pessoa que pode vestir o Prai e o zelador deve escolher essa pessoa,
dentro ou fora de sua famlia, de acordo tambm com sua reputao moral. Isso estende a
autoridade do zelador, como algum que tambm um avaliador do comportamento moral
de outros homens.
[O que precisa pra ter um Prai?] Precisa ele se agrad e se cheg no senhor e, ento, antes dele
cheg, ele trs um coraozinho, aquele que tem o corao, que tem a semente, j tem aquele
mistriozinho e, ento, ele pede. [...] Ento chega o dia que ele avisa "Quero s levantado". Ainda tem
deles que vem de juazeiro, de Serra Negra, que foi acabada em Serra Negra, ainda to chegando por
aqui. A tem que faz um Prai pra levant ele. Tem que prepar ele porque se fosse pra todos... O
senhor v, que um ponto fino, que no pra ns todos no, no pra todos da aldeia no. pra uns e
outros no. Porque pra uns que tem aquele mistrio, e tem aquele ponto daquela honestidade, eles no
vo procur no senhor, nem o do lugar. Aqui foi cinqenta..., cinqenta...., no sei quantos que foi
encantado (Man Bizoro).
* * *
33
Transmitir a semente para um grupo novo, ensinar o Tor, levantar uma aldeia, no
ARRUTI, 1999
so, assim, metforas vazias. O regime dos Encantados fornece os referentes culturais dos
quais brotam as metforas da emergncia tnica. A capacidade de guardar em seus
sobrenomes, mantidos com zelo e discrio sob a sua designao oficial, uma
multiplicidade tnica original, homloga natureza mltipla das sementes, das quais, a
partir de cada uma, podem ser levantados mais de duas dezenas de Encantados. Levantar
aldeias surge como o correlato direto da prtica religiosa e mstica de levantar o Prai,
quando, em ambos os casos, os ndios precisam estabelecer contato com o sobrenatural para
descobrir o segredo do nome, dos toantes e do regime particular que individualiza, seja o
Prai, seja a nova aldeia. O segredo , tambm, mais um conector entre esses dois campos
da prtica poltico-religiosa, j que a descoberta de um determinado mistrio do
encantamento que marca a origem de um panteo de Encantados, assim como a identidade
do povo ao qual esse panteo corresponde. Por outro lado, ainda, a permanente emergncia
de Encantados considerada fundamental na manuteno da fora vital de uma aldeia, na
medida que o seu nmero deve acompanhar, de certa forma, o crescimento demogrfico
desses grupos. J que so eles que presidem tanto os particulares, de natureza domstica,
quanto os Tors, de natureza pblica - mas que tambm circunscreve determinado campo de
alianas em torno de um terreiro antigo - a expanso desse panteo de Encantados
contrapartida e condio da expanso dos grupos familiares e da fisso dos grupos mais
amplos de alianas locais.
Por isso, transmitir a semente e ensinar o Tor no implicam o simples ensino de
uma coreografia, nem o resgate de uma tradio, por motivos de preservao cultural.
Trata-se da transmisso de um conhecimento de natureza mgica. A semente o primeiro
caminho at os Encantados, que o tronco velho d ao grupo emergente. Caminho que a
ponta de rama perdeu ao longo das sucessivas misturas a que foi submetida. Depois de
recebida a semente, cabe ao grupo emergente descobrir o seu prprio caminho e seu prprio
segredo, isto , a forma de acesso e de produo de seus prprios Encantados, fulcro da
identidade do grupo. Ensinar o Tor, portanto, no implica a simples disseminao de uma
semelhana, mas tambm a possibilidade de produzir diferenas.
... O ritual daqui, ele no pode ser igual aos dos Fulni-, aonde pode ser igual com Jeripanc, o
Ouricur, porque os ndios de l so daqui, toda famlia daqui. Agora, os Pankarar, os Tux, os
Atikum, na serra do Um, os Kambiw, Truc, ilha da Assuno, nessas as festas tem que ser
diferentes. T certo, tem pessoas de Kambiw que mora aqui na aldeia, casado l mesmo e mora aqui.
Um primo meu, o pais dele era Tux e a me dele era irm do meu pai. Mas ele como neto da parte de
l, ele no pode usar a festa de l aqui. Temos que acompanhar o nosso ritual daqui. E j andou um
antroplogo fazendo esse apanhado das festas, em 83, 84. Sobre a parte das festas pra v se eram todas
iguais, porque no pode ser tudo igual, tem que ter uma diferena. (Antnio Moreno, capito
Pankararu)
34
Dessa forma, se os grupos de tronco velho se distinguem das pontas de rama, em um
ARRUTI, 1999
primeiro momento, justamente por sua relao com o sobrenatural, fonte de sua fora
enquanto aldeia, eles tambm so os agentes que disseminam essa fora, ainda que no de
uma forma direta. Tal transmisso mediada pela semente, que deve ser cuidadosamente
cultuada e cultivada, isto , pelo exerccio ritual continuado do novo grupo, para que dela
possa brotar a ponta que havia sido cortada de sua base. A autenticidade, assim como a
memria desses grupos, no vista por eles como algo que simplesmente existe,
independentemente de suas aes, mas como resultado de um trabalho, que se expressa na
tecedura dos seus prprios Prai , nos seus prprios toantes e suas prprias formas de
devoo, isto , no seu segredo. A sua singularidade com relao aos brancos ou com
relao aos outros grupos resultado desse trabalho mstico e social, que os leva do terreno
do caboclo ou do ndio indistinto (de natureza jurdica) para o territrio especificamente
Atikum, Massacar, Xukuru etc.
Deve estar claro que, ao descrever essa correspondncia entre o regime dos
Encantados e as metforas da emergncia, no se supe a revelao de um cdigo recndito
ou subjacente realidade manifesta, que expressaria uma mentalidade nativa ou algo do
gnero. Essa correspondncia produzida historicamente, pela confluncia e adaptao
recproca entre o registro mstico-mtico e a experincia poltica e cognitiva da violncia
colonial. Um campo de significados servindo como forma de traduzir e reconverter as
experincias vividas, ao mesmo tempo que sendo adaptado por elas, na busca de uma autointeligibilidade. Ensinar o Tor e levantar aldeia so assim, simultaneamente, atos
polticos, coletivos, de inveno cultural e projeo do futuro, tanto quanto atos msticos,
particularizantes, de retomada do passado. Como Mauss apontou com relao prece, o Tor
no uma unidade indivisvel, distinta dos fatos que o manifestam, apenas o sistema deles.
Ponto de convergncia de inmeros fenmenos religiosos e polticos, o Tor assume a forma
de uma representao, no sentido teatral e poltico do termo, mas tambm de rito, como
atitude tomada e ato realizado diante de coisas sagradas e de credo, como expresso de idias
e sentimentos religiosos.
Como a prece, o Tor se dirige divindade e pretende influenci-la, consiste em
movimentos materiais dos quais se esperam resultados [...] sempre no fundo um
instrumento de ao. Mas age exprimindo idias, sentimentos que as palavras [ou em nosso
caso, as performances] traduzem para o exterior e substantificam (Mauss, 1979). comum
que o Tor seja apresentado s autoridades com a inteno de as sensibilizar. Isso porque,
na retrica Pankararu, o governo sempre representado como uma instncia distante,
35
incorprea, que se manifesta atravs de enviados, eterna protetora, a quem se dirigem todos
ARRUTI, 1999
Co n s i de ra e s f i n a i s
Tendo percorrido os caminhos abertos por esses grupos, podemos voltar pauta
proposta no incio desse texto. As questes da memria e da busca dos direitos parecem ser
componentes fundamentais da caracterizao sociolgica desses grupos de remanescentes
emergentes. A busca dos direitos surge traduzida nos fluxos de homens, informaes e
cultura que parecem marcar os grupos indgenas da regio desde registros histricos bastante
antigos at o momento presente. Esses fluxos, a ambigidade das fugas, os territrios
politnicos, as lideranas peregrinas e as viagens em geral, so expresso dessa cultura em
movimento que caracteriza as emergncias indgenas. Movimento que sempre escapou
lgica de enquadramento estatal, mesmo nos momentos em que parecia adequar-se a ele.
Como vimos, a territorializao dos grupos tem sido subvertida, seja pela circulao entre os
territrios administrados, seja pela multiplicao tnica de um mesmo grupo, que assim
escapa s fronteiras estabelecidas e fora o Estado a realizar novas territorializaes,
contradizendo a sua lgica inicial.
Para isso, como vimos, as pessoas , enquanto atores e redes de atores, tm de
inventar cultura, refletir sobre ela, fazer experincias com ela, record-la (ou armazen-la de
alguma outra maneira), discuti-la, transmiti-la (Ulf Hannerz, 1997: 12). A ento voltamos
ao outro ponto da pauta, a memria como fulcro da identidade. A anlise das metforas
associadas rvore Pankararu chama ateno para um modo especfico de produo e
reproduo da memria social. Os sobrenomes, a relao contextual entre troncos velhos e
pontas de rama, os enxames e a transmisso da semente, constituem um sistema mnemnico
dinmico, que lana mo do passado no como lembrana de coisas que no existem mais,
mas como relao ativa com o presente. Eles formam os quadros sociais de uma memria
que resiste em ser enquadrada. O Tor , talvez, a sntese dessa forma de funcionamento de
uma memria tnica. Depois de ter sido apresentado sucessivamente como marca de uma
suposta rea cultural, expresso obrigatria da indianidade e mquina de guerra, pudemos,
finalmente, reconhecer o Tor em sua dimenso religiosa e memorial, quando, ento, seu
36
significado no deriva apenas de seus efeitos prticos ou das estratgias s quais sua
ARRUTI, 1999
realizao responde, mas tambm de uma relao profunda com sua prpria historicidade.
Essa centralidade da memria social nos leva necessidade de uma formulao mais
clara da lacuna que separa uma leitura pragmtica de uma leitura utilitarista das identidades
tnicas. Ainda que mantendo o suposto de que as categorias so criadas para regular a ao e
so significativamente afetadas pela interao e no pela contemplao (Barth, 1976:37),
necessrio explicar no s como e em que circunstncias as orientaes de valor so
confirmadas ou negadas pela experincia, mas tambm como essa experincia, mesmo
quando nega as orientaes de valor, sempre encontra uma redefinio e uma reelaborao
que a torna culturalmente aceitvel. Se o Tor encarado pelos prprios indgenas, a partir
de seu aprendizado recproco com a burocracia indigenista, como a melhor forma de se
levantar uma aldeia, constituindo-se, assim, como parte de uma estratgia poltica, a
ligao entre ensinar o Tor e levantar aldeia tambm, como vimos, mais complexa.
A identidade Pankararu, que a princpio se estende a todas as suas pontas de rama,
pode ser vista como uma produo, sem que para isso seja necessrio negar seu registro
religioso e memorial. A idia de uma autoconstruo, nesses casos, no separa o tradicional
do moderno, o laico do religioso, o primordial do pragmtico ou mesmo, de certa forma, a
identidade da sua manipulao. A emergncia e a renovao permanente so movimentos
enraizados na prpria religiosidade Pankararu e, ainda que pragmticos, no podem ser vistos
como simplesmente utilitrios. Ainda que enraizados, no podem ser vistos como
simplesmente primordiais. A confluncia entre o regime dos Encantados e as metforas da
emergncia tnica fruto de uma convencionalizao das estratgias e dos agentes, que
fortalece e expande um cdigo de comunicao.
B i bl i o g ra f i a
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ARRUTI, 1999
37
ARRUTI, 1999
38
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ARRUTI, 1999
39
Para um exerccio em que trabalho com o mesmo perodo, mas no qual busco uma reconstruo mais
equilibrada entre as perspectivas emica e etica, situando a questo das emergncias indgenas em um contexto
histrico e regional mais amplo, cf. Arruti, 1995.
ii
Depois desse perodo h um relativo silcio, em que as emergncias pareciam ter se esgotado mas, a
partir da metade dos anos 70, levanta-se uma nova onda que, em pouco mais de vinte anos, acrescentaria
queles primeiros, outros 24 novos grupos, sem contar com as informaes sobre a demanda de um nmero
ainda indeterminado de grupos no estado do Cear. Para um exerccio em que busco uma primeira aproximao
desse outro momento das emergncias indgenas no Nordeste, atualizando o contexto mais amplo apresentado
no texto citado anteriormente, cf. Arruti, 1999.
iii
Cardoso de Oliveira reconhecia ainda que a presena desses remanescentes tribais no se restringia
a regies de colonizao antiga (seu exemplo so os Terna), mas poderia ser observada em regies mais
preservadas, como a xinguana, onde tambm existiriam grupos cuja organizao social tribal j havia sido
desfeita, mas manteriam mecanismos de identificao semelhantes.
iv
Lembremos que Barth (1976 [1969]), utilizado por Cardoso de Oliveira, destaca apenas as condies
ecolgicas e demogrficas.
v
Os Carij de que fala o autor so hoje conhecidos como Fulni-, grupo de 2.790 pessoas que ocupa
uma rea de aproximadamente 11.500 ha, incluindo a cidade de guas Belas. Em documentos mais antigos o
grupo dessa regio, da Serra do Comunati, prxima ao rio Panema (depois Ipanema), designado como Carnij
e aparece ocupando o aldeamento de Ipanema, fundado sobre terras doadas pelo governo imperial em 1705,
extinto legalmente em 1861 e efetivamente repartido em lotes no ano de 1877 (PETI,1993).
vi
Aqui existe uma discordncia entre as datas apresentadas pela documentao do SPI, utilizada no
Atlas das Terras Indgenas do Nordeste (PETI,1993) e as informaes do texto do Pe. Alfredo Dmaso. No
Atlas informa-se que o primeiro contato com o SPI teria sido feito em 1925 e o posto indgena instalado em
1928.
vii
Relatrio de Jos Luiz da Silva (engenheiro responsvel pela Comisso de medio das terras da
provcia de Pernambuco) apresentado ao Exmo. Sr. Conselheiro Sinimb (Min. e Secr. dos Negcios da
Agricultura, Comrcio e Obras Pblicas) sobre o aldeamento do Brejo dos Padres. Junho de 1878. Arquivo
Pblico de Pernambuco, coleo RTP (Repartio de Terras Pblicas) vol.17, pag.391.
viii
Em 1949, Max Boudin relacionava as diferenas que os separavam dos sertanejos locais, com quem
partilhavam a maior parte das caractersticas culturais e econmicas: A) falarem sempre, salvo raras excees, o
ia-t nas suas relaes privadas; B) partilharem de caractersticas antropofsicas como o cabelo grosso, preto e
liso, parca pilosidade corporal, olhos oblquos, mas bastante acentuadas, estatura pequena, ctis bronzeada
ou cr gro de trigo e C) praticarem uma religio secreta, diferena que acusa a singularidade da tribo, como
pertencendo a um mundo cultural completamente estranho ao nosso (BOUDIN,1949). Notemos que ainda hoje
os Fulni- so considerados os que guardam os sinais diacrticos mais evidentes com relao aos regionais,
como registra o privilgio que recebem no Atlas Etnogrfico On-Line Indios da America do Sul - Areas
Etnograficas, do professor Jlio Csar Melatti.
ix
No texto (1931) diz que, apesar de sempre ter tido interesse no grupo, s os teria visitado
recentemente e em companhia do Deputado Mrio Mello e do inspetor do SPI, Antnio Estigarriba, em
consequncia do reconhecimento oficial. No fornece nem a data da visita aos Fulni-, nem ao Brejo dos
Padres e outras duas localidades. Da mesma forma, na palestra de 1937 (OLIVEIRA,1943), deixa sugerido que
j teria visitado o Brejo anteriormente, mas mantm o silncio para no desfazer justamente o efeito de
descoberta com o qual o seu texto contava.
x
Pe. Dmaso passaria a apoi-los em reivindicaes fundirias desde os primeiros contatos,
recomendando-os a autoridades militares de Paulo Afonso (BA) que, nessa poca, era a principal cidade das
redondezas, onde os Pankararu freqentavam a feira semanal. No seria uma apenas uma coincidncia que o
pernambucano Estevo de Oliveira tivesse chegado at eles passando por Paulo Afonso.
xi
Essa mudana atinge diretamente a estrutura e o padro de ao do SPI, que passa a enfatizar sua
funo de agncia colonizadora e faz com que a prpria imagem do que devia ser o "ndio" sofra uma mutao,
que o leva de "guarda de fronteira" para "agricultor", na tentativa de torna-lo semanticamente adequado ao
contexto retrico da "marcha para o oeste", restituindo, de certa forma, sua parte "LTN". Para uma leitura mais
atenta s condicionantes histricas e contextuais da ao do SPI no Nordeste, sugiro um texto anterior de mais
fcil acesso (Arruti, 1995).
xii
Constitudos como unidade territorial e sujeito poltico entre os anos 30 e 50, s no impulso da
conjuntura do final dos anos 70, que os Xukuru-Kariri intensificam sua mobilizao e conseguem ampliar suas
terras (PETI,1993).
xiii
segundo o que se l em carta do funcionrio do SPI, chefe do Posto Indgena (PI) Pankararu, datada
de 17 de outubro de 1942 e endereada ao cap. Joo Gomes Apaco, lder indgena dos ndios rodelas, dando
ARRUTI, 1999
40
conhecimento sobre as providncias solicitadas por esse lder (Museu do ndio. Seo de microfilmes, rolo173,
fotograma14)
xiv
Foi no contexto da Comisso de Demarcao das Terras Pblicas da Capitania de Pernambuco que
se realizou o nico levantamento sistemtico sobre a situao das aldeias indgenas existentes no Pernambuco
do sculo XIX, por meio do qual podemos reduzir a um certo nmero de tipos os mecanismos de expropriao
daqueles aldeamento: 1. As terras arrendadas no interior dos aldeamentos cujos foros deixam de ser pagos ao
mesmo tempo em que suas extenses se expandem; 2. A reivindicao, por procos, das terras doadas Santa
como pertencentes Igreja e por isso devendo estar sob sua administrao; 3. As transferncias para outros
locais com suas reas reduzidas; 4. O simples massacre e expulso. Cf. "Demonstrao dos nmeros das Aldeias
existentes nesta provncia de Pernambuco, seu pessoal, sua populao e extenso que cada uma tem". 13 de
dezembro de 1857. Arquivo Pblico de Pernambuco, coleo Diretoria de ndios, livro D-11).
xv
Em primeiro lugar, a estratgia da guerra concentrou energias em abrir terras e criar mo-de-obra
compulsria, na forma do escravo indgena, mas com altos custos militares e uma grande disperso da
populao que conseguia resistir. Depois a estratgia da converso tambm veio a exercer a funo de liberar
terras por meio da reunio da populao indgena em geral j fragmentada pelas investidas militares, em
aldeamentos missionrios organizados e produtivos, alm de ocuparem largos trechos at incultos, mas com a
desvantagem de manter tal populao fora do alcance imediato dos grandes proprietrios e do governo.
Finalmente, a estratgia da mistura foi a forma que veio combinar uma grande economia de recursos com
apaziguamento de diferentes interesses, aparentemente encerrando o processo de conquista.
xvi
Trabalho com informaes dos anos de 1994 e 1995 e, em funo dos faccionalisnmos por que
passam os Pankararu, essas caracterizaes podem e provavelmente esto desatualizadas. J no incio de 1998
tomei conhecimento que a repartio entre as sees norte e centro da rea Pankararu, com que trabalho no
captulo 3 de minha dissertao (Arruti, 1996: 126-178) haviam levado repartio formal da rea indgena,
dando origem rea Entre-Serras Canabrava Pankararu. A Entre-Serras Canabrava declarou-se independente
sob a liderana de Joo Toms (que morreu alguns meses depois de ter sido declarado cacique) e hoje
reivindica a demarcao independente de suas terras, alm do seu prprio posto indgena.
xvii
Em um relatrio de 1989, para usarmos um exemplo suficientemente prximo, um funcionrio da
FUNAI se dispe a ir at um grupo emergente para comprovar sua autenticidade atravs de uma verificao
sobre a existncia ou no de artesanato e a qualidade do desempenho do Tor, como se estivesse verificando a
existncia de furos nas meias: ...No momento que foram interrogados sobre a dana do tor, se havia dentro do
grupo, alguma forma especial no momento da dana, surgiu um pouco de dvida e o cacique acaba dizendo que
homens e mulheres danam juntos. Quando o grupo de doze pessoas foi danar o Tor, perceb que no havia
harmonia no som, nem no rtmo da dana e que todas as vestimentas estavo novas. (SANTANA,1989)
xviii
Para este final de dcada acumlam-se referncias sobre a atuao de um delegado, ou militar do
exrcito situado em Paulo Afonso, que teria prestado apoio sistemtico aos Pankararu. A grafia de seu nome no
entanto, variou bastante de acordo com os informantes, sendo mesmo difcil avaliar se todos os relatos diziam
sobre o mesmo personagem. Assim, talvez este Major do exrcito, Reni, seja o mesmo delegado de polcia de
Paulo Afonso Ivi, ou Ivo Texeira Xavier. No foi possvel, infelizmente, apurar a identidade e filiao
institucional precisa desta (s) personagem (ns).
xix
Era uma sada para as famlias numerosas com dificuldade de repartir suas terras entre os herdeiros,
levando a que essas viagens se tornassem quase uma fase no ciclo de vida dos jovens indgenas que l iam
buscar recursos para casar, para comprar novos pedaos de posse dentro da rea indgena ou recursos para
institurem negcio dentro ou fora da rea. possvel que um homem engajado nessas viagens, aos 50 anos,
quando j comea a abandona-las, tenha acumulado um total de at 10 anos fora da aldeia, distribudos em
perodos que vo de seis meses a dois anos.
xx
O primeiro pedido de providncias FUNAI, proveniente de Real Parque, foi apresentado por um
personagem cujo percurso vai de simples trabalhador temporrio a pedreiro profissional e a dono de uma microempresa de reparos e pinturas. Sua posio atual lhe permitiu, alm de pleitear "carteirinhas de ndio" para os
moradores da favela, doar 24 alqueires de sua propriedade para que o grupo tenha sua prpria aldeia e criar a
associao SOS Comunidade Pankararu de So Paulo, cuja funo seria captar recursos para o grupo.
xxi
Em vinte e seis de julho de 1994, o jornal Notcias Populares de So Paulo abria a primeira pgina
do caderno "Planto NP" com a manchete ndio eliminado na favela- Fugiu da tribo para morrer em So
Paulo. Ao lado da manchete, era estampada a foto do corpo ensanguentado de um ndio de 20 anos. O texto
explicava que, apesar de estarem al porque os grandes fazendeiros haviam invadido suas terras em
Pernambuco, os ndios continuavam realizando seus rituais e conversando em sua lngua nativa, o Iat. Duas
semanas depois, o jornal Folha de So Paulo dedicava uma pgina inteira para comentar a inusitada existncia
de uma tribo indgena em pleno Morumbi, que tinha criado uma "rede de solidariedade" nas sua favelas e que se
reunia todas as semanas, sob o comando do paj da favela, para rituais de Tor, que era comparado ao
candombl. Uma semana depois, o assunto teria uma pgina inteira do jornal Dirio de Pernambuco, sob o
41
ARRUTI, 1999
ttulo Pankararus que trabalham em So Paulo esto sendo dizimados pela violncia urbana , onde tambm se
registrava que o assassinato teria sido matria do telejornal "Aqui Agora", do SBT.
xxii
Depois de uma reunio em 1995, decidiu-se no aceitar a proposta de uma nova rea e restringir o
reconhecimento apenas declarao oficial de que, quando fosse o caso, determinados indivduos estariam
registrados no posto indgena da rea de origem. Mais tarde acertou-se que uma liderana do Brejo iria at
Braslia para identificar quem e quem no ndio e providenciar os registros de nascimentos.
xxiii
Sobre representaes prximas a estas, num contexto inteirmamente distinto, ver Oliveira (1988).