Dissolução Casamento Do Ausente
Dissolução Casamento Do Ausente
Dissolução Casamento Do Ausente
INTRODUO
A ausncia um estado de fato, declarado em juzo e consubstanciado no
desaparecimento de uma pessoa do seu domiclio, sem dar notcias do lugar onde se encontra,
nem deixar procurador para administrar seus bens, acarretando, por essa razo, dvida a respeito
da sua sobrevivncia.1
Note-se que, o ausente civil no se confunde com a figura popular daquele que apenas
no est presente, vocbulo recorrente na legislao ptria, notadamente, nos arts. 215 e 1.042, do
Cdigo de Processo Civil, e arts. 428 e 1.878, do Cdigo Civil. A previso legal do instituto
mais tcnica, exigindo a composio de requisitos especficos para sua ocorrncia, muito bem
sintetizados na lio de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, atravs da seguinte
frmula: no-presena + falta de notcias + deciso judicial = ausncia 2.
Em primeira anlise, da simples leitura do conceito acima, poderia-se minimizar a
importncia de to bela e relevante instituio do Direito Civil, sob o pretexto de ser cada vez
mais rara a ocorrncia prtica do instituto da ausncia nos dias de hoje, diante do fantstico
avano tecnolgico dos meios de comunicao.3
No entanto, trate-se de verdadeiro equvoco, pois no se sabe os caminhos seguidos pela
vida e o desaparecimento de um ente querido do seio familiar pode ocorrer com qualquer um,
1
cabendo ao Direito, por sua prpria razo de ser, diante das possibilidades, ainda que a carncia
humana que lhe tenha provocado seja minoritria, fazer justia no caso concreto, tal como h de
ser na ausncia.
Dessa forma, cuida da ausncia o Cdigo Civil, disciplinando um procedimento judicial
constitudo em trs etapas dispostas conforme a menor possibilidade de reaparecimento do
ausente, iniciando com a curadoria dos bens do ausente, no qual h apenas a administrao dos
bens do ausente na esperana do seu retorno; a sucesso provisria, na qual se defere a posse
dos bens aos sucessores, mas impondo uma srie de restries com intuito ainda de proteger o
interesse do ausente no caso de eventual reaparecimento; e a chamada sucesso definitiva, em
que a propriedade dos bens passa para os sucessores, adstritos apenas a restitu-la ao ausente caso
este aparea no prazo de dez anos4.
Historicamente, o instituto da ausncia era regulado pelo ordenamento jurdico sob o fito
maior da proteo ao patrimnio abandonado com o desaparecimento, o que era flagrante na
disciplina legal do Cdigo Civil de 1916, no art. 463 e seguintes.
Tal perodo era marcado pela supervalorizao da propriedade, em detrimento da figura
humana, e do individualismo burgus, encontrando seu fim em 5 de outubro de 1988, com o
advento da Constituio Federal brasileira, na medida que cuida ela mesma de institutos basilares
do Direito Civil como, o contrato, a propriedade e a famlia, impondo aos civilistas a
reconstruo dos paradigmas exclusivamente patrimonialistas, ento, vigentes, sendo devido
consonncia aos vetores constitucionais maiores da dignidade da pessoa humana (1, III), da
igualdade substancial (art. 3, IV e art. 5, caput e I), da solidariedade social (art.3, I) e da
erradicao da pobreza (art. 3, III).5
Houve, assim, verdadeira migrao dos valores essenciais do Direito privado para a
Carta
Fundamental
de
1988,
deflagrando-se,
por
conseguinte,
fenmeno
da
impondo-se uma releitura dos clssicos institutos civilistas, a partir das novas bases
constitucionais.6
O cenrio alinhavado ganhou traos mais claros e robustos em 2002, com o advento de
um novo Cdigo Civil, que revogou a quase centenria Codificao de 1916, mudando-se o foco
do patrimnio para a pessoa, qualificada nas mais variadas dimenses da dignidade humana,
inclusive, com a positivao civilista dos novos paradigmas da socialidade, operalidade e
eticidade.
Destarte, buscando-se dar nfase a proteo da dignidade humana de todos que nela
esto abrangidos, a ausncia foi regulamentada de modo indito, com a insero do dispositivo
legal da eficcia extrapatrimonial do instituto, qual seja, a dissoluo do casamento do ausente,
contida no art. 1.571, 17, da Codificao Civil.
No obstante, em que pese o carter inovador da referida disposio legal, tal comando
normativo ainda necessita de melhor anlise, de modo a ser dada ao instituto da ausncia a devida
perspectiva alinhada ao prisma da nova tbua axiolgica informada pela Constituio Federal de
1988, o que ser feito a seguir.
1. A DISSOLUO DO MATRIMNIO COMO EFEITO DA AUSNCIA
Em um perodo patrimonialista, marcado pelo individualismo burgus, pela ideologia da
sociedade agrria e conservadora; at, ento, vigente no Brasil, a ausncia era despicienda em
relao aos efeitos pessoal e familiar, o que ocorria na Codificao revogada. O cnjuge do
ausente, inclusive, ficava impossibilitado de casar-se novamente por todo resto da sua vida, uma
vez que no se vislumbrava o divrcio na poca, muito menos a dissoluo do vnculo
matrimonial como efeito da ausncia, gerando muitas crticas na doutrina, como fez o saudoso
mestre SILVIO RODRIGUES refutando, nesse ponto, o Cdigo de 1916, por trazer irreparvel
dano ao cnjuge do ausente8.
6
Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald. Direito civil: teoria geral, p. 27.
Art. 1.571, 1, do Cdigo Civil: o casamento vlido s se dissolve pela morte de um dos cnjuges ou pelo divrcio, aplicandose a presuno estabelecida neste Cdigo quanto ao ausente.
8
Direito civil: parte geral, p.82.
7
Flvio Tartuce, Jos Fernando Simo. Direito civil: direito de famlia, p.169.
Oportuno trazer baila a crtica doutrinria acerca desse sistema dualista, nas lies de Maria Berenice Dias, do seu livro
Direito de famlia e o novo cdigo civil, p. 72, aqui transcritas: como a separao pe termo aos deveres de coabitao, de
fidelidade recproca e ao regime matrimonial dos bens (art. 1.576), resulta que o estado de separado s dispe de um efeito:
impede um novo casamento. A nica vantagem que a condio de separado permite, a todo tempo, que as partes restabeleam a
sociedade conjugal, por ato regular do juiz (art. 1577). No entanto, o casal que se divorcia tambm pode se reconciliar e voltar a
casar. Esse nico benefcio se mostra deveras insignificante, at porque raros so os pedidos de reverso da separao de que se
tem notcia, alm de ser mais prtico e mais barato alm de mais romntico celebrar um novo casamento. Assim, imperioso
que se reconhea ser de todo intil, desgastante e oneroso, no s para o casal, mas tambm para o Poder Judicirio, impor uma
duplicidade de procedimentos para simplesmente manter, durante o breve perodo de um ano, uma unio que no mais existe, uma
sociedade conjugal finda, mas no extinta. Vivendo a sociedade um novo momento histrico, to bem apreendido pela
Constituio Federal, que trouxe um sem-nmero de garantias ao cidado e assegurou-lhe a liberdade e o respeito dignidade,
de questionar se o Estado dispe de legitimidade para impor aos cnjuges restries manifestao de vontade de romper o
casamento.
11
Art. 1.723, 1, do Cdigo Civil: a unio estvel no se constituir se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; no se
aplicando a incidncia do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
10
Desse modo, tem-se defendido pela doutrina dominante que o momento da dissoluo
do casamento do desaparecido o do incio da terceira e ltima etapa da ausncia, disposta no
12
Art. 6, do Cdigo Civil: a existncia da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos
em que a lei autoriza a abertura da sucesso definitiva.
13
Art. 28, do Cdigo Civil: a sentena que determina a abertura da sucesso provisria s produzir efeito 180 (cento e oitenta)
dias depois de publicada pela imprensa; mas, logo que passe em julgado, proceder-se- abertura do testamento, se houver, e ao
inventrio e partilhar dos bens, como se o ausente fosse falecido. (sem grifos no original)
14
De toda bibliografia aqui consultada, a nica posio doutrinria destoante encontrada foi a de Cristiano Chaves de Farias e
Nelson Rosenvald, na obra Direito civil: teoria geral, p.213, apontando, entretanto, para a declarao de ausncia como sendo o
momento caracterizador da dissoluo do casamento do ausente.
15
Nesse sentido, verbi gratia, Antonio Carlos Marcato, Caio Mario da Silva Pereira, Carlos Roberto Gonalves, Fbio Ulhoa
Coelho, Flavio Tartuce, Francisco Jos Cahali, Giselda Maria Fernandes Hironaka, Guilherme Calmon Nogueira da Gama,
Gustavo Tepedino, Helosa Helena Barboza, Incio de Carvalho Neto, Jos Fernando Simo, Maria Helena Diniz, Nelson Nery Jr,
Orlando Gomes, Roberto Senise Lisboa, Rosa Maria da Andrade Nery, Sebastio Luiz Amorim, Silvio de Salvo Venosa, Slvio
Rodrigues, Washington de Barros Monteiro e Zeno Veloso.
16
Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral, p. 147.
A vinculao dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no Brasil. In: Fredie Didier Jr. (coord.).
Leituras complementares de processo civil, p. 178.
descoberto. O estado de dvida sobre a vida e morte do ausente subsiste para sempre ou, ao
menos, at o acesso a informaes concretas e reais.
Com efeito, a famlia do ausente resta por fortemente abalada com o desaparecimento de
um membro seu. Cabe, portanto, ao ordenamento jurdico, impulsionado pelo texto
constitucional, cuidar da reconstruo familiar no plano material, afetivo, amoroso, enfim, devese, acima de tudo, proteger a dignidade humana de todos envolvidos na ausncia.
Abre-se, ento, o procedimento previsto no instituto jurdico da ausncia, iniciando-se
com sua primeira etapa, da curadoria dos bens do ausente, prevista nos art. 22 a 25, do Cdigo
Civil, pelo qual o juiz declara a ausncia, nomeia curador ao patrimnio deixado pelo
desaparecido e determina a arrecadao. Em seguida, procede-se, durante um ano, com
publicaes de editais de convocao do sumido.
Por outra via, o cnjuge que ficou do desaparecimento, bem como sua famlia, aps um
largo perodo que os levaram a requerer a declarao judicial de ausncia e mais um ano, no
mnimo, de tentativas de encontrar o ausente, acabam se abrindo afetivamente para outra pessoa,
decidindo, em conjunto, refazer o que se rompeu com a falta de quem se foi, reconstruindo a
felicidade amorosa de antes, a afetividade no seio familiar, confortando o eterno estado de
indefinio da ausncia.
Nesse passo, o cnjuge do ausente decide, inclusive, realizar uma nova experincia
matrimonial, tudo a ser concretizado, agora, seu direito natural e constitucional de ser feliz 18. Eis,
ento, que encontrado o obstculo trazido pela dita interpretao da doutrina dominante do art.
1.571, 1, da Codificao Civil, no sentido do casamento ainda no ter sido dissolvido, pelo que
18
Nesse sentido, Cristiano Chaves de Farias, na sua obra A separao judicial luz do garantismo constitucional: a afirmao da
dignidade humana como um rquem para a culpa na dissoluo do casamento, p.98, ensina que possvel enxergar a famlia
sempre sob uma perspectiva constitucional, abandonando o seu carter de instituio jurdica e passando a merecer tutela como
verdadeiro instrumento de afirmao da realizao pessoal do ser humano, valorizando os seus aspectos espirituais e o
desenvolvimento de sua personalidade, em detrimento da feio patrimonial, at ento predominante.
Com uma nova roupagem, a famlia abandona sua feio de ncleo de procriao e meio de perpetuao de patrimnio para ser
um ncleo onde as pessoas buscam sua felicidade e realizao. Com a Constituio de 1988, houve a consagrao jurdica do
afeto na composio da entidade familiar, regendo-a em todos os seus aspectos, e tornando possvel, assim, a realizao da
dignidade humana. Portanto, quando se fala em reger a famlia com fulcro no afeto e visando a proteo do ser humano, faz-se
necessrio falar da flexibilizao do divrcio, tendo em vista no ser possvel efetivar o princpio da dignidade humana obrigando
duas pessoas que no mais se amam, a ficarem ligadas por um lao jurdico, restringindo sua plena liberdade de ser feliz.
deveria esperar mais uma dcada19, quando ocorreria a declarao da morte presumida do
ausente, ao tempo da sucesso definitiva, na terceira e ltima etapa da ausncia.
Indaga-se, portanto: no est se violando a dignidade da pessoa humana do cnjuge do
ausente, preso as amarras de um matrimnio falido? A resposta positiva se impe. Porm, a
referida doutrina aponta como soluo o caminho previsto no art. 226, 6, da Constituio
Federal de 1988, do divrcio direto, haja vista a separao de fato h mais de dois anos.
Tudo estaria solucionado caso no fosse outra norma constitucional esquecida pela
mesma doutrina, qual seja, o direito fundamental assegurado a toda pessoa humana, no art. 5,
XXX, da Constituio Federal de 1988: o direito de herana.
Acontece que, para o cnjuge exercitar tal direito fundamental, tem-se de estar ntegra a
sociedade conjugal, observados, assim, os requisitos negativos previstos nos arts. 1.830 e 1.571,
1, primeira parte, do Cdigo Civil, a saber, no estar separado judicialmente h mais de um ano
ou de fato, por mais de dois anos, tudo sem existncia de culpa sua 20, nem divorciado e muito
menos morto.
Em decorrncia, por evidente, j se conclui que interpretar o art. 1.571, 1, da Lei Civil,
no sentido de ser s na etapa da sucesso definitiva o momento da dissoluo do casamento do
ausente, por suposta fora do art. 6, da mesma Codificao, obrigar indiretamente o cnjuge
do desaparecido a se manter preso a um matrimnio falido pela ausncia, para, s ento, fazer jus
ao referido direito constitucional da herana do ausente; que, em regra, ajudou a construir.
3. A DEFINIO CIVIL-CONSTITUCIONAL DO MOMENTO DA DISSOLUO DO
CASAMENTO DO AUSENTE
19
Art. 37, do Cdigo Civil: dez anos depois de passada em julgado a sentena que concede a abertura da sucesso provisria,
podero os interessados requerer a sucesso definitiva e o levantamento das caues prestadas.
20
Diante da emergncia da valorizao da dignidade da pessoa humana, amparada na Magna Carta, a tendncia dos Tribunais
ptrios, conforme os entendimentos dos juristas que compe o Instituto Brasileiro de Direito de Famlia (IBDFAM), mitigar a
culpa quanto a separao, como constam dos enunciados 100 e 254, do Conselho da Justia Federal, disponvel em
<http://www.cjf.com.br>. Acesso em 29.12.2006.
10
22
Luiz Edson Fachin. Estatuto jurdico do patrimnio mnimo. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001, p. 247, apud Roberto
Senise Lisboa. Manual de direito civil: direito de famlia e sucesses, p.429.
11
Grife-se, mais uma vez, que, nesse momento, o efeito reputado a regra do droit de
saisine, da transferncia do domnio do patrimnio deixado para os herdeiros, ainda no se opera,
vez que o ausente continua legalmente sendo reputado vivo e, portanto, proprietrio dos seus
bens.
Como visto, o que ocorre apenas uma fico legal pela qual se abre a sucesso do
ausente, chamando-se os herdeiros, legtimos e testamentrios, no a ingressarem definitivamente
na titularidade do patrimnio do ausente, que continua sendo o dono, mas to somente na posse
dos bens hereditrios, usando e fruindo dos mesmos. O sucessor, aqui, tratado como herdeiro,
ainda que em situao precria e transitria 23.
Tudo isso tem finalidade precpua: a proteo da personalidade do ausente, para que esta
no venha a ser extinta, antes de ser formado, ao menos, melhor juzo de probabilidade acerca da
sua eventual morte, alm de garantir um patrimnio mnimo aos seus herdeiros e a continuidade
das relaes jurdicas.
De mais a mais, aps um decurso maior de tempo, ainda no se tendo notcias do
desaparecido, declara-se, pela previso do art. 6, da atual Codificao, o ausente morto
presumidamente, agora sim, extinguindo-se sua personalidade e iniciando-se a terceira etapa final
da ausncia, a sucesso definitiva, quando os herdeiros deixam a qualidade de presumidos,
ingressando finalmente no domnio dos bens deixados.
O que ocorre, por assim dizer, so duas presunes acerca da morte do ausente no
Cdigo Civil, quais sejam, do art. 28, capaz de abrir a sucesso por ausncia, sob a ressalva da
provisoriedade, definir a legislao a ela aplicvel, verificar a capacidade sucessria dos
herdeiros igualmente presuntivos, proceder ao inventrio, a partilha dos bens deixados e imitir
esses sucessores na posse direta do patrimnio arrecadado, alm daquela outra do art. 6, que, por
sua vez, extingue a personalidade do desaparecido e transfere o domnio dos seus bens para os
sucessores, ento definitivos, j imitidos na posse direta dos mesmos.
23
12
Nessa linha de inteleco, nada obsta incluir-se, dentre os efeitos produzidos pela
sobredita presuno do art. 28, do Cdigo Civil, a dissoluo do casamento do ausente, atravs de
uma perspectiva civil-constitucional do instituto jurdico da ausncia, desonerando o cnjuge, que
ficou das amarras do tempo, at se chegar sucesso definitiva, interpretando-se o art. 1.571,
1, codificado, conforme a Constituio.
A outro giro, com tal providncia, corrige-se a contradio lgica dentro do sistema
jurdico vigente, gerada pela supra reportada posio dominante na doutrina, visto que o cnjuge
do ausente poderia proceder com cinco divrcios diretos nos onze ou treze anos aps a declarao
judicial da ausncia, quando, finalmente, chega-se na extino da personalidade do sumido, com
a abertura da sucesso definitiva, do art. 6, da Lei Civil.
Com efeito, a exegese ora propugnada permite que o cnjuge do ausente, depois de
transcorridos at trs anos de declarao judicial da ausncia e aberta a sucesso provisria, esteja
livre para reconstruir sua vida afetiva e exercer seu direito constitucional de ser feliz, alm do
direito fundamental sucesso do acervo hereditrio do ausente; que, certamente, contribuiu para
a sua construo.
No se diga, aqui, que tal interpretao civil-constitucional acaba por extinguir a
personalidade do ausente de forma abrupta, j na fase da sucesso provisria da ausncia, o que
seria pior, como dito anteriormente, do que a morte civil. Definitivamente, no isso que se est
propondo.
Conforme j demonstrado, a presuno do sobredito art. 28, do Cdigo Civil, no tem o
condo de extinguir a personalidade do sumido, mas de considerar o desaparecido falecido e, em
conseqncia, produzir uma srie de efeitos, alinhavados alhures, na segunda etapa da ausncia,
ao lado de outros que desaguaro ao tempo da terceira e ltima etapa do instituto, quando, a sim,
reputar-se- extinta a personalidade do ausente.
Desse modo, a mencionada extino da personalidade do desaparecido, nos termos do
art. 6, combinado com o art. 37, da Codificao Civil, s ocorrer anos depois, quando a
13
probabilidade do ausente ainda estar vivo mnima, pelo que ser aberta a sucesso definitiva, e,
s agora, haver transferncia da propriedade dos seus bens aos herdeiros, ainda sob a condio
do retorno do ausente pelos dez anos posteriores a referida abertura.
Por oportuno, questiona-se: qual seria o estado familiar do cnjuge que ficou na
ausncia com a abertura da sucesso provisria e a respectiva dissoluo do seu casamento, haja
vista que o ausente ainda reputado vivo?
Como cedio, o estado da pessoa natural nada mais seno a posio jurdica da
pessoa no meio social24. Assim, o estado familiar a posio no seio familiar (solteiro, casado,
vivo, divorciado25). Dessa forma, a resposta que se impe vivo, pois essa a situao
jurdica do cnjuge que teve seu casamento dissolvido pelo tratamento do ausente como falecido
no art. 28, do Cdigo Civil. Em suma, vivo a sua posio jurdica no meio social e familiar,
ainda que no corresponda s circunstncias fticas, diante da possibilidade do sumido ainda
estar vivo.
Pode-se, inclusive, acrescentar a qualidade de presumido ao estado de vivo do cnjuge,
restante na ausncia, por fora da supra mencionada presuno legal jure et de jure do art. 1.571,
1, codificado, e, portanto, inderrogvel, vez que um eventual retorno do ausente depois de
dissolvido o seu casamento, ainda que afaste a presuno de morte do desaparecido, no reatar o
matrimnio, permanecendo este extinto.26
Conseqentemente, aquele que era casado com o ausente, quando na qualidade de vivo
presumido (de modo absoluto), pode habilitar-se perante o Registro Civil para um novo
matrimnio (arts. 1.525 e 1.526, da Lei Civil), sendo suficiente a apresentao da sentena que
considerou o sumido como falecido e abriu a sucesso provisria, em substituio a prova da
morte natural.
24
14
CONCLUSO
Diante de todo o exposto, conclui-se que a viso tradicional da doutrina, reputando a
abertura da sucesso definitiva como momento da dissoluo do casamento do ausente, viola a
Constituio Federal de 1988, ao afrontar a dignidade da pessoa humana do cnjuge que ficou do
ausente (art. 1, III), que resta indiretamente preso a um casamento falido se quiser exercer seu
direito fundamental de herana (art. 5, XXX), bem assim a regra da dissolubilidade do
matrimnio (art. 226, 6).
De tal sorte, aqui se defende uma releitura civil-constitucional do art. 1.571, 1, do
Cdigo Civil, de modo que sejam causas de dissoluo do casamento vlido: a) a morte real; b) o
divrcio; c) a presuno do art. 28, codificado, quanto ao ausente, que ali tratado como falecido,
pelo qual se abre a sua sucesso provisria.
Com efeito, o cnjuge que ficou na ausncia ter o seu direito constitucional de herana
efetivamente garantido, sua dignidade preservada, tendo liberdade para reconstruir sua vida e seu
seio familiar ao lado de outrem, inclusive, com um novo matrimnio, alm de poder reatar com o
ausente, caso queira, em um eventual retorno, seja casando-se novamente, seja constituindo uma
unio estvel.
De tudo mais, na busca da segurana jurdica ao caso, prope-se uma mudana
legislativa no 1, do art. 1.571, do Cdigo Civil, que passaria a ter a seguinte redao:
Art. 1.571. omissis.
I - omissis
II omissis
III omissis
IV omissis
1. O casamento vlido s se dissolve pela morte de um dos
cnjuges ou pelo divrcio, aplicando-se a presuno estabelecida
no art. 28 deste Cdigo quanto ao ausente.
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