Audiodescrição de Filmes
Audiodescrição de Filmes
Audiodescrição de Filmes
Nos ltimos anos, tem-se observado uma preocupao crescente nos diversos setores da sociedade com a incluso cultural dos deficientes visuais. So
muitos os esforos voltados para o desenvolvimento de estratgias inclusivas que
lhes permitam uma apropriao efetiva do espao cultural. Entre tais iniciativas
de acessibilidade, encontra-se a audiodescrio, uma tecnologia social cujo objetivo viabilizar a acessibilidade dos deficientes visuais a filmes, peas de teatro,
espetculos de dana, programas de TV etc. No Brasil, a primeira definio legal foi estabelecida na Portaria N 310, de junho de 2006, segundo a qual a audiodescrio corresponde a uma locuo, em lngua portuguesa, sobreposta ao
som original do programa, destinada a descrever imagens, sons, textos e demais
informaes que no poderiam ser percebidos ou compreendidos por pessoas
com deficincia visual (BRASIL, 2006), inspirada em publicaes anteriores de
pesquisadores brasileiros tais como Eliana Franco, Vera Santiago Arajo e Francisco Lima. Quando aplicada a filmes, a audiodescrio consiste basicamente
na descrio verbal das imagens visuais e ocorre nos intervalos entre as falas do
narrador ou dos personagens em cena. desse tipo de audiodescrio que este artigo se ocupa. As recomendaes da Portaria N 310 constituram um primeiro e
importante passo para a causa da acessibilidade. Todavia, elas so de carter muito geral e inicial. O debate no mbito da psicologia tem como finalidade levantar
questes cognitivas e polticas implicadas no uso da audiodescrio e fortalecer
seu desenvolvimento no pas.
Com o intuito de realizar uma pesquisa sobre o tema, reunimos um grupo
de deficientes visuais do Instituto Benjamin Constant (IBC),1 no Rio de Janeiro.
J no primeiro encontro, um dos participantes relatou que nunca havia ido ao
cinema. Ele possui baixa viso adquirida. Antes do agravamento de sua condio
visual, trabalhava como cozinheiro num restaurante e, em virtude de sua rotina
diria, nunca pde ir ao cinema. Seu relato contrasta com o que nos disseram
outros dois participantes, que no s frequentam salas de exibio com regularidade, como esto sempre assistindo a filmes2 em casa. Eles so casados, possuem
cegueira precoce e cultivaram a prtica de ir ao cinema desde a infncia. Ele
reabilitando do IBC e ela, professora de Braille na mesma instituio. Para outros
deficientes visuais, a relao com o cinema se desenrolou de forma diferente.
este o caso de um segundo casal com quem trabalhamos, ela cega congnita, ele
completamente cego aos 20 anos. Nenhum dos dois tinha o costume de ir ao cinema ou mesmo de assistir a filmes em casa. At que passaram a integrar o corpo de
alunos e usurios do IBC. O setor de reabilitao volta e meia promove passeios
e idas ao cinema, reunindo professores, reabilitandos e acompanhantes. Desde
que comearam a assistir a filmes, eles no pararam mais. Atualmente, no abrem
mo disso. Por esses relatos, j se verifica que o grupo de deficientes visuais com
quem trabalhamos nessa pesquisa apresenta uma grande diversidade no que se
refere sua familiaridade com o cinema.
O leitor poderia perguntar qual haveria de ser o interesse em desenvolver
estratgias inclusivas para produtos culturais que parecem fortemente ancorados
na viso, como o caso do cinema. A resposta surge quando ouvimos os principais interessados na causa da audiodescrio: a saber, os prprios deficientes
126 Fractal: Revista de Psicologia, v. 24 n. 1, p. 125-142, Jan./Abr. 2012
tambm alterou o cronograma para o cumprimento da determinao oficial, estabelecendo um prazo de dez anos para que 24 horas semanais da programao e
no mais a programao completa sejam audiodescritas. Naturalmente, a nova
proposta enfrenta muitas crticas por parte dos deficientes visuais e outros interessados, pois ela reduz em muito o alcance poltico da proposta original. Consideramos que a difuso da audiodescrio no Brasil necessita da implementao
de polticas pblicas especficas, de investimento financeiro na rea e tambm
do desenvolvimento de tecnologias sociais construdas de modo coletivo, com a
participao ativa dos deficientes visuais (KASTRUP, 2010).
Do ponto de vista cognitivo, assistir a um filme uma experincia que
requer uma suspenso da ateno aos estmulos externos e internos referentes
vida prtica, como demandas diversas e preocupaes cotidianas. Ela envolve um
mergulho da ateno nas imagens visuais e auditivas que o filme oferece, e um
deixar-se conduzir pela histria, pelos personagens e pelas emoes. Tomando
como ponto de partida esta ideia, a audiodescrio no deve aparecer como um
estmulo externo, que desvia a ateno do filme. Ela deve estar bem integrada
s demais imagens auditivas que constituiro a experincia da pessoa que no
dispe da viso. O objetivo do artigo propor algumas diretrizes para a audiodescrio, levando em conta peculiaridades cognitivas, bem como fatores sociais
e polticos que cercam a vida de pessoas com deficincia visual. O artigo discute
a experincia de assistir a um filme e analisa o problema da familiaridade com o
cinema, com a narrativa de cada filme e com a prpria tcnica da audiodescrio.
O desafio criar condies favorveis para a atualizao de experincias cognitivas, afetivas e emocionais que o filme traz consigo. Visa ainda a examinar o
problema da objetividade e de outros parmetros da audiodescrio, sugerindo
algumas diretrizes para seu desenvolvimento no Brasil.
Para a realizao da pesquisa, montamos um grupo de trabalho formado
por pesquisadores em psicologia cognitiva, alunos de iniciao cientfica, profissionais de cinema e seis deficientes visuais. Essa estratgia metodolgica de trabalho coletivo, denominada PesquisarCOM (MORAES; KASTRUP, 2010), est
em consonncia com as polticas de pesquisa presentes no campo dos disability
studies (OLIVER, 1996; MARTINS, 2006). De acordo com essa perspectiva,
o conhecimento entendido como um processo de construo coletiva. Assim,
no se trata de uma pesquisa feita sobre ou para cegos, mas com cegos, de
modo a transform-los em coautores do conhecimento e das tecnologias desenvolvidas. Foram promovidas sesses semanais, com a exibio de filmes, sempre
acompanhadas de discusso e anlise. Os filmes assistidos incluram Irmos de
F (2004), de Moacyr Ges, e Ensaio Sobre a Cegueira (2008), de Fernando
Meirelles, as nicas duas produes audiodescritas disponveis em locadoras
poca.4 Assistimos tambm a filmes no audiodescritos, com o objetivo de experimentar formas variadas de audiodescrever.5 A pesquisa bibliogrfica envolveu textos sobre psicologia (JAMES, 1978[1890]; DREYFUS, 1992; VARELA;
THOMPSON; ROSCH, 2003; VYGOTSKI, 1997; HATWELL, 2003; REGOMONTEIRO; MANHES; KASTRUP, 2007), cinema (AUMONT, 1995; CARRIRE, 1995; CHION, 1990; COSTA, 2005; METZ, 1972; MERLEAU-PONTY,
128 Fractal: Revista de Psicologia, v. 24 n. 1, p. 125-142, Jan./Abr. 2012
O conceito de familiaridade
J no primeiro encontro, assistimos em grupo a um trecho do filme Ensaio
Sobre a Cegueira e algumas questes comearam a se colocar. Questes sobre a
linguagem cinematogrfica, o grau de detalhamento da descrio e as preferncias individuais. Nesse aspecto, podemos mencionar a vez em que um dos participantes comentou que gostava de filmes de luta oriental: Eu queria saber onde a
espada atravessa o inimigo, que parte do corpo ela perfura. Sua fala evidenciava
uma expectativa muito singular, que dificilmente poderia ser prevista na elaborao da descrio; ela acenava, assim, para o fato de que nenhuma audiodescrio
capaz de contemplar as preferncias de todos os espectadores. Depois de contar
que nunca tinha ido ao cinema, outro participante afirmou: Talvez, nas prximas
vezes, eu possa ajudar mais, depois de assistir aos filmes algumas vezes. Quando
eu estiver mais acostumado com a audiodescrio, a vai ser mais fcil falar sobre o filme e dar uma opinio. Esse estar acostumado, a que o participante se
referiu, nos conduziu ao exame do conceito de familiaridade.
Foi William James (1978[1890]) o primeiro a formular a ideia de um conhecimento por familiaridade (knowledge by acquaintance), em oposio a um
conhecimento sobre (knowledge about).6 A definio do conceito se encontra
no captulo VIII da obra The Principles of Psychology. O objetivo distinguir
dois tipos de conhecimento que ficam embaralhados no uso cotidiano, embora
existam palavras diferentes para design-los em vrias lnguas: noscere e scire,
no latim; kennen e wissen, no alemo; connatre e savoir, no francs. Em portugus, essa diferena semntica parcialmente expressa pelos verbos conhecer
e saber.7 Enquanto o conhecimento sobre, atrelado ao verbo conhecer, possui um carter mais conceitual e mediado pela reflexo e pela elaborao discursiva, o conhecimento por familiaridade, ligado ao verbo saber, caracteriza-se
por uma provenincia mais direta da dimenso sensvel da experincia. Na primeira modalidade, o conhecimento visa a um objeto exterior constitudo pela percepo; na segunda, sabe-se simplesmente, por uma apreenso intuitiva. James
afirma que o conhecimento por familiaridade aquele de cujo contedo, a rigor,
nada podemos dizer. Quando dele falamos, uma distncia j se intrometeu entre
a conscincia e a matria subjetiva em que ela opera, e saltamos forosamente
para o conhecimento sobre. Trata-se, portanto, de um saber que no partilha da
distino fornecida pela linguagem, mantendo com a conscincia uma relao de
imanncia. A familiaridade nos oferece um acontecimento simples e indiviso. Estou familiarizado com o sabor do tomate, com a cor vermelha e com o cheirinho
de comida caseira. Sou capaz de reconhec-los de imediato, por uma sensao de
intimidade que experimento, embora eu mal as tenha discernido. Na medida em
que tentar transmitir essas experincias para outras pessoas, j terei me destacado
da experincia mesma e cedido lugar ao exerccio do pensamento lgico. James
acrescenta que, na condio de seres falantes, os humanos j revestem o mundo
Fractal: Revista de Psicologia, v. 24 n. 1, p. 125-142, Jan./Abr. 2012 129
A orientao que a audiodescrio siga aquilo que alguns autores sugerem e que
o American Council of the Blinds Audio Description Project (ACB, 2009) formula como
os 4W: when, where, who e what. O primeiro e o segundo Ws referem-se a quando
(when), indicando a hora do dia, se claro ou escuro, nublado ou ensolarado, e a onde
(where), indicando a localizao da cena. Juntos, eles situam o espectador no tempo e no
espao. Em seguida, passa-se ao who, indicando quem est na imagem ou com o que ela
se parece, fazendo referncias s caractersticas fsicas e relacionais do(s) personagem(s):
cabelos, aspecto, caractersticas fsicas marcantes, vesturio, se pai, me, namorado ou
mantm outro tipo de relacionamento significativo. O texto deve-se manter estritamente
descritivo. Por exemplo, quando for necessrio descrever a idade de dado personagem,
deve-se optar por signos aproximativos, que permitam ao espectador imaginar por si prprio a idade do personagem. O ltimo W de what. Cabe audiodescrio descrever
o que est acontecendo e quais as aes mais importantes para uma compreenso clara
da situao. Isso significa, por exemplo, descrever movimentos e gestos expressivos. A
orientao mais importante evitar inferncias e interpretaes subjetivas.
No Brasil, ainda no existe um conjunto de diretrizes formuladas exclusivamente para orientar o processo de audiodescrio, mas nos ltimos anos
comeam a surgir pesquisas sobre o tema (LEO; ARAJO, 2009; LIMA;
134 Fractal: Revista de Psicologia, v. 24 n. 1, p. 125-142, Jan./Abr. 2012
Enfim, preciso que cada vez mais a audiodescrio seja estimulada e seu
direito garantido. H uma grande batalha junto a exibidores, produtores e emissoras
de TV que deve ser enfrentada para a incluso cultural de pessoas com deficincia
visual. Esboamos algumas diretrizes que esto longe de constituir um conjunto
de regras fixas a serem aplicadas. A audiodescrio deve sempre comportar uma
certa dose de experimentao e inveno, para tentar dar conta da singularidade de
cada filme. Deve, ao mesmo tempo, envolver as pessoas deficientes visuais nesse
processo. A audiodescrio de filmes urgente e deve ser implantada imediatamente. Existem normas internacionais que j so consolidadas e que podem servir
de base para a implementao no Brasil. Mas, por certo, tambm h adequaes
e experimentaes a serem feitas, o que far com que, a mdio e longo prazo, a
qualidade da audiodescrio seja cada vez melhor. Com este artigo, esperamos ter
oferecido uma pequena contribuio para acelerar este processo.
Notas
O Instituto Benjamin Constant um centro de referncia nacional para as questes relativas
deficincia visual, vinculado ao Ministrio da Educao. Ele capacita profissionais na rea,
presta assessoria a escolas e instituies diversas, oferece consultas gratuitas populao, possui
uma escola e oficinas de reabilitao, produz material especializado, impressos em Braille e
publicaes cientficas. Integraram o grupo de discusso funcionrios, reabilitandos e usurios
em geral do IBC. Os encontros aconteceram de maro a junho de 2009.
2
Neste trabalho, optamos por utilizar o verbo assistir, em vez de ver, de maneira a ressaltar que
outros sentidos, alm da viso, compem a experincia com os filmes.
3
Closed caption, ou legenda oculta, um recurso que permite a exibio de legendas na TV aberta,
de modo a possibilitar que deficientes auditivos acompanhem os programas transmitidos. A
funo precisa ser acionada por uma tecla no controle remoto ou por um menu na tela do televisor.
As legendas fornecem, alm das falas, a indicao de sons presentes na cena.
4
Em agosto de 2010, o filme Chico Xavier, de Daniel Filho, foi lanado em DVD com verso
audiodescrita disponvel em todas as suas cpias. Existem outros filmes audiodescritos que, no
entanto, no so encontrados nas locadoras.
5
Os encontros foram feitos no contexto do projeto de pesquisa Prticas Artsticas e Construo
da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais, realizado pelo Ncleo de Pesquisa Cognio e
Coletivos (NUCC), do Programa de Ps-Graduao em Psicologia da UFRJ, e pelo Programa de
Ps-Graduao em Psicologia da UFF, em parceria com o Instituto Benjamin Constant. Apoio
FAPERJ.
6
A distino ser, mais tarde, retomada pelo filsofo ingls Bertrand Russell e desenvolvida por
outros rumos, segundo a inspirao analtica desse autor. (Cf. RUSSELL, 1963).
7
Vale assinalar que, na lngua portuguesa, essa correspondncia no exata, pois o verbo saber
parece portar sentidos muito variados conforme o empreguemos no modo transitivo direto ou
indireto. Saber de e saber sobre, por exemplo, podem equivaler a conhecer, j que abarcam
formas de saber indiretas e discursivas.
8
Esse arranjo por certo bastante simplificado, pois tais categorias no so exaustivas e se
misturam em diferentes combinaes.
9
Nem todos os cineastas se enquadram nesse modelo hegemnico, principalmente aqueles que
imprimem um trao mais experimental aos seus trabalhos.
10
Para um aprofundamento dessa questo, conferir os trabalhos de Vygotski (1997), Hattwell (2003)
e Rego-Monteiro, Manhes e Kastrup (2007).
1
Referncias
ASSOCIAO BRASILEIRA DE NORMAS TCNICAS. NBR 15290:
acessibilidade em comunicao na televiso. Rio de Janeiro, 2005. Disponvel
em:
<http://www.mpdft.gov.br/sicorde/normas/NBR15290.pdf> Acesso em: 10 jan.
2009.
AMERICAN COUNCIL OF THE BLIND. Audio Description Standards. 2009.
Disponvel em: <http://www.acb.org/adp/docs/ADP_Standards.doc> Acesso em:
15 jun. 2009.
AUDIO DESCRIPTION INTERNATIONAL. Guidelines for Audio Description.
2003. Disponvel em: <http://www.acb.org/adp/guidelines.html> Acesso em: 15
ago. 2009.
AUDIOVISION. Disponvel em: <http://www.arte.tv/fr/Audiovision/403390.
html> Acesso em: 10 jun. 2009.
AUMONT, J. A imagem. 2. ed. Campinas: Papirus, 1995.
BRASIL. Ministrio das Comunicaes. Portaria 310, de 27 de junho de 2006.
Aprova a Norma n 001/2006 - Recursos de acessibilidade, para pessoas com
deficincia, na programao veiculada nos servios de radiodifuso de sons e
imagens e de retransmisso de televiso. Dirio Oficial [da Repblica Federativa
do Brasil], Braslia, n.122, 28 jun. 2006. Seo 1, p. 34.
CARRIRE, J. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1995.
CHION, M. Laudio-vision. Paris: Nathan, 1990.
CHICO Xavier. Direo: Daniel Filho. Rio de Janeiro: Globo Filmes, 2010. 1
DVD.
COSTA, F. O Primeiro Cinema: espetculo, narrao, domesticao. Rio de
Janeiro: Arzogue, 2005.
DREYFUS, H. La porte philosophique du connexionnisme. In: ANDLER D.
(Org.). Introduction aux sciences cognitives. Paris: Gallimard, 1992. p. 352-373.
ENSAIO sobre a cegueira. Direo: Fernando Meirelles. Toronto: Rhombus
Media, 2008. 1 DVD.
GERBER, E. Seeing isnt believing: blindness, race, and cultural literacy. The
Fractal: Revista de Psicologia, v. 24 n. 1, p. 125-142, Jan./Abr. 2012 139