Seminario 5
Seminario 5
Seminario 5
PUC-SP
DOUTORADO EM HISTRIA
SO PAULO
2009
DOUTORADO EM HISTRIA
Tese
apresentada
Banca
Examinadora
da
Pontifcia
Universidade Catlica de So
Paulo, como exigncia parcial para
obteno do ttulo de Doutor em
Histria Social, sob a orientao da
Prof Dr Estefnia Knotz Canguu
Fraga.
SO PAULO
2009
Banca examinadora.
_______________________.
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_______________________.
AGRADECIMENTOS
Agradeo a Deus, que iluminou e que ilumina meus passos, pela sabedoria
conquistada durante o longo percurso.
Acredito que toda pesquisa possui uma histria que normalmente no figura
em suas linhas. Os bastidores de uma pesquisa so por vezes to ou mais importantes que a
pesquisa em si, pois as pessoas que atuaram nesses bastidores so, em conjunto com o autor,
uma parte importante do resultado final. Com esse estudo no foi diferente. Ao longo de todo
esse tempo contei com a ajuda de muitas pessoas, s quais no poderia deixar de agradecer
nesse momento.
Agradeo minha famlia, especialmente Camila, minha amada esposa, uma
pessoa fundamental nesse processo, que me auxiliou nas interminveis transcries de
entrevistas e que soube entender meus momentos de ansiedade, a cada perodo de entrega de
relatrio, no deixando que meu gnio explosivo abalasse nossa doce relao. Uma pessoa
que assumiu o compromisso de caminhar ao meu lado e de cujo amor tenho tido a
oportunidade de desfrutar a cada dia. Aos meus irmos, e principalmente aos meus pais, pelo
amor com que me criaram, pela educao que me proporcionaram e pelo apoio sem medida
que me deram em cada momento de dificuldade.
Agradeo Prof. Estefnia, por ter aceitado o desafio de orientar este trabalho
cujo tema to inusitado, se comparado aos demais temas que encontrados na rea da
Histria. Sem o seu auxlio, seguramente no conseguiria concretiz-lo. Sua sensibilidade foi
capaz de reconhecer em um professor de Educao Fsica um historiador em potencial.
Lembro at hoje de suas palavras, ao aceitar meu projeto de mestrado, em 2004: seja o que
Deus quiser. Parece que ele quis, professora. Muito obrigado.
Agradeo aos meus colegas de turma, por contriburem com minha formao,
em especial ao colega Ipojucam Dias Campos, o historiador em quem tentei me espelhar.
Agradeo especialmente aos meus grandes amigos Chiquinho e Josi, pela
calorosa acolhida em seu lar em todos os momentos de que necessitei.
Agradeo a todos os docentes e funcionrios do Departamento de PsGraduao em Histria da Puc-SP, pela slida formao que me proporcionaram.
The memory of the struggles or the place of "DO": The Martial Arts and the
construction of an oriental way for the corporal culture in the city of So Paulo
Felipe Eduardo Ferreira Marta
Abstract
Currently, the eastern martial arts are a part of the corporal culture of the city of So Paulo. His
practice is available as an opportunity to experience. In other words, anyone that desire easily can have
access to those corporal practices originated at countries of the far east. But how that was possible?
How an element of so different culture is able to be established in So Paulo? To try to answer those
questions that, I wrote this work. Accordingly, this research was based on oral sources, bibliographic
and documentary to investigate the process of introduction and spread of some of the most popular
eastern martial arts practiced today in the city of So Paulo. Specifically on oral sources, I chose a
strategy that focused masters immigrants from three countries: Japan, China (Hong Kong) and South
Korea. The justification for such strategy resides in the fact of that are those the countries where
originated some of the most popular eastern martial arts, currently practiced in the city of So Paulo.
For analysis of the statements, were observed the annotations of Alessandro Portelli (1997), for whom
the oral reports It is a document of present, in its shared responsibility by both the deponent as the
researcher. As a result, it was observed that the introduction of oriental martial arts in most due to the
migration of peoples of oriental origin, started in the early years of the twentieth century, and that the
success in the work of dissemination of such practices should be the process of modernization, the
perspective advocated by Norbert Elias (1994), to which they were submitted. This modernization is
expressed in the adoption in their home countries and also in the receiving country, in Brazil, the labor
standards of some body of European origin, with emphasis, accordingly, for the sport and gymnastics
and also the methods by "control the potential violence" inherent in such practices. It was also noted
that the period after World War II, more specifically in the 1960s and 1970s, represented a new
moment in the dissemination of such practices in the city. Process that until then had been promoted
by the exclusive work of the masters immigrants and that from that moment on, begin to benefit from
the emergence of a breeding ground for these practices arise from increased visibility in the city, a
phenomenon generated by the diffusion mass products of the entertainment industry relating to eastern
martial arts. Finally, there was the role of a phenomenon that began for some of these practices even
in the final years of the nineteenth century, in their home countries, but currently still in progress,
making it a sport. Accordingly, with the help of the studies conducted by Pierre Bourdieu (1990, 1983)
and Norbert Elias (1994, 1992), it was found that the unfolding of this process have been the
responsible for a clash between the traditions of martial arts and oriental desires of those who are
supporters of the process of modernization, Westernization and spotivization of these practices. Such
situation has acted in the sense of become possible the association of the martial arts in a variety of
ways. Senses that in some way seek satiate the desires of the actors involved in the life of martial arts,
are the work of dissemination of the practice and are in its consumption.
Keywords:
So Paulo, oral history, corporal culture, eastern martial arts, modernization,
westernization and sportivization.
SUMRIO
INTRODUO .........................................................................................................................1
FONTES ..................................................................................................................................186
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................189
ANEXOS ..................................................................................................................................197
INTRODUO
Bairro situado na zona leste da cidade So Jos dos Campos SP composto, no perodo em questo,
predominantemente por industririos da cidade e suas famlias.
A primeira questo que orientou esta pesquisa foi saber como o Brasil,
um pas to distante, geogrfica e talvez mais ainda culturalmente, dos pases do
chamado extremo oriente, acolheu as prticas corporais oriundas daquela regio.
Nesse sentido, a pesquisa teve como referncia contextual o estado de
So Paulo, especialmente a capital, que, a partir das dcadas finais do sculo XIX e
durante todo o sculo XX, foi o grande plo de atrao de imigrantes. Esse processo
migratrio abriga uma srie de transformaes no cotidiano da cidade, durante esse
perodo, diversos foram os motivos e incentivos que trouxeram para c famlias inteiras
de imigrantes de diferentes partes do mundo. Mas esse no foi o objetivo deste estudo.
Esse processo justifica minha opo, na medida em que So Paulo, na
atualidade, apresenta-se como um lugar onde possvel detectar a presena de mltiplas
etnias, merecendo destaque as de origem oriental, no s por sua aura imersa em certo
exotismo, mas tambm pela posio econmica e social que muitas dessas pessoas
alcanaram na cidade. Esse aspecto pode ser percebido de muitas maneiras, mas, para
utilizar um dado concreto, aponto o fato de que esse grupo de pessoas no apenas se
integrou sociedade brasileira como tambm, no caso da cidade de So Paulo, foi capaz
de demarcar seu prprio territrio. Nesse sentido, andar pelas ruas do Bairro da
Liberdade ou fazer compras nas lojas do Bom Retiro , sem dvida alguma, estar em
contato com uma parcela da cultura oriental que se incrustou em meio ao ambiente
cosmopolita de uma das maiores cidades do mundo. De qualquer maneira, mesmo que
no se queira visitar esses bairros, qualquer observador mais atento ir notar, em um
breve passeio pela cidade, a presena de alguns traos da cultura oriental, seja nos
letreiros de restaurantes especializados em servir comidas tpicas dos pases do Oriente,
seja nos letreiros de alguma das muitas academias de artes marciais orientais existentes
na cidade, apenas para citar alguns exemplos.
Essas constataes a respeito da questo que buscou entender como foi
possvel, a um pas como o Brasil, acolher as artes marciais orientais remetem segunda
questo geradora desse estudo, que, por sua vez, buscou entender como um determinado
tipo de cultura corporal originria dos pases do Oriente as artes marciais orientais
pde, em um perodo de tempo relativamente curto, atingir o atual estgio de
popularizao em uma cidade como So Paulo. Que transformaes essas prticas
sofreram na adaptao ao novo ambiente? E ainda, quais as transformaes que a
Com relao utilizao do termo mestre na classificao dos depoentes, importante destacar que,
ao faz-lo, no estou preocupado com fato de os mesmos serem reconhecidos dessa maneira perante os
rituais ou a hierarquia prprios de suas artes marciais; estou, antes, considerando-os dessa forma por
entend-los representantes e disseminadores de um saber especfico, o que, portanto, salvo melhor juzo,
os habilita a serem chamados de mestres.
3
Cf.: EPPLE, Angelika. Gnero e espcie da Histria. In. MALERBA, Jurandir (org.). A histria
escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006.)
4
Como exemplo, podemos citar o Jud, o Karat, o Aikido, o Sum e o Kendo como artes marciais
originadas no Japo, o Kung-Fu e seus vrios estilos, como arte marcial originada na China e amplamente
difundida em Hong Kong, o Taekwondo e o Hapkido, como artes marciais originadas na Coria do Sul.
Cf.: BERCITO, Sonia de Deus Rodrigues. Ser forte para fazer a nao forte: a Educao Fsica
no Brasil (1932-1945). So Paulo, 1991, p.7. (Dissertao de mestrado apresentada ao departamento de
histria da faculdade de filosofia, letras e cincias humanas, USP).
entrevistados mestres das seguintes artes marciais orientais: Jud6, Karat7, Aikido8,
Sum9, Kendo10, Kung Fu11, Taekwondo12 e Hapkido13.
Com respeito aos mestres imigrantes, vale destacar que, em alguns casos,
esse procedimento tornou possvel o registro da memria de alguns dos precursores
dessas prticas em nosso pas. Desde j, agradeo aos mestres por colaborarem com
esse estudo permitindo o registro de seus depoimentos e, por consequncia, de sua
experincia, resultado de anos de trabalho junto a essas prticas corporais orientais.
Este estudo questionou tambm se todo esse processo de disseminao e
aceitao das artes marciais na cidade de So Paulo, como alternativa de prtica
corporal, no estaria inserido em um processo mais amplo de mudana de subjetividade,
no que se refere s relaes que o brasileiro, sobretudo a partir da segunda metade do
sculo XX, comea a estabelecer com seu corpo.
Essa mudana seria expressa principalmente na emergncia do dilema
que colocaria em cheque o Homem da modernidade que tem o seu corpo e que
expressa sua individualidade atravs do intelecto, em funo da emergncia de um novo
Homem que tem e o seu corpo, mas, que tendo e sendo usa-o como ltima
fronteira de expresso de uma individualidade que o coloca em relao com seus
contemporneos14, pois no se deve esquecer tambm da relao que essas prticas
corporais do oriente estabelecem com as ditas filosofias orientais, fortemente
fundamentadas na indissociabilidade corpo e mente. Ou seria esse aspecto na atualidade
apenas mais um apelo estratgico, um mero recurso de marketing? Afinal, o que de
oriental essas prticas ainda carregam? Se que em algum momento desse processo, na
cidade de So Paulo, elas carregaram algum trao dessa cultura.
6
15
Contudo destacamos que a primeira experincia de imigrao desse grupo foi realizada em 1810,
quando algumas centenas de chineses aportaram no Brasil para se dedicarem ao plantio de ch no Jardim
Botnico do Rio de Janeiro. Essa primeira experincia com o tempo converteu-se em um grande fracasso,
primeiro porque o cultivo de ch no atingiu os resultados esperados e, segundo, em virtude do difcil
relacionamento entre os imigrantes chineses e os dirigentes do Jardim Botnico. O fracasso dessa
primeira experincia fomentou opinies preconceituosas em relao imigrao de pessoas oriundas dos
pases do Oriente, que iam buscar fundamentao nas mais diversas teorias de superioridade tnica em
voga na poca, o que dificultou por algum tempo a vinda em massa para o Brasil desses imigrantes. (Cf.:
LESSER, J. A negociao da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no
Brasil. So Paulo: Editora Unesp, 2000)
16
O ano de 1908 marca o incio da imigrao oficial de japoneses para o Brasil,com o aportar, em 18
de julho, do navio Kasato-Maru em terras brasileiras trazendo a bordo 781 imigrantes formando a
maior colnia japonesa fora do Japo. (Cf.: LESSER, J. Em busca de um hfen. In:___. Op. cit. p. 159.)
[...] conceito que engloba um amplo conjunto de tcnicas de defesa pessoal. Cada
modalidade possui uma histria e uma filosofia particulares. Algumas so muito
antigas, tendo surgido dentro de uma perspectiva militar; surgiram da necessidade
de preservao da integridade fsica de grupos oprimidos. De um modo geral elas
estabelecem uma rgida disciplina corporal e exigem respeito a cdigos ticos e a
rituais de passagem20.
19
YANG, D. J. A new perspective of martial arts education for the 21st century. ICHPER journal, The
official magazine of the international council for health, physical education, recreation, sport and
dance, Virginia, USA, v.36, p. 23-28, 2000.
20
PRONI, M. W. ___. Observaes sobre a histria das artes marciais. ENCONTRO DE HISTRIA DA
EDUCAO FSICA E DO ESPORTE, 2, 1994, DEF/UEPG. Coletnea. Campinas: Unicamp, 1994.
p.401.
21
Para se ter um panorama detalhado desse processo, ver: SANTANNA, D. B. de. O prazer justificado,
histria e lazer (So Paulo, 1969-1979). So Paulo: Marco Zero, 1992.
10
As razes desse processo podem ser observadas em: SOARES, Carmem Lcia. Educao Fsica:
razes europias e Brasil. Campinas, SP, 1994.
23
O termo corresponde ao processo de transio de parte dos antigos jogos comunitrios europeus para os
esportes de performance, que, no caso especfico desse estudo, ao utilizar o termo estou me referindo ao
processo de introduo do esporte nas artes marciais (Cf.: PRONI, M. W. Referncias para o estudo das
artes marciais. ENCONTRO DE HISTRIA DA EDUCAO FSICA E DO ESPORTE,1, 1993,
FEF/Unicamp. Coletnea. Campinas: Unicamp, 1994).
24
PRONI, M. W. Op. Cit., 1993. p.22-23.
11
Para que uma sociologia do esporte possa se constituir, preciso primeiro perceber
que no se pode analisar um esporte particular, independente do conjunto de
prticas esportivas; preciso pensar o espao das prticas esportivas como um
sistema no qual cada elemento recebe seu valor distintivo. Em outros termos, para
compreender um esporte, qualquer que seja ele, preciso reconhecer a posio que
ele ocupa no espao dos esportes. Este s pode ser construdo a partir de conjuntos
indicadores, como, de um lado, a distribuio dos praticantes segundo sua posio
no espao social, a distribuio das diferentes federaes, segundo o nmero de
adeptos, sua riqueza, as caractersticas sociais dos dirigentes, etc., ou, de outro
lado, o tipo de relao com o corpo que ele favorece ou exige, conforme implique
um contato direto, um corpo-a-corpo, como a luta ou o rgbi, ou, ao contrrio,
exclua qualquer contato, como o golfe, ou s autorize por bola interposta, como o
tnis, ou por intermdio de instrumentos, como a esgrima. Em seguida, preciso
relacionar esse espao dos esportes como um espao social que se manifesta nele.
Isso a fim de evitar os erros ligados ao estabelecimento de uma relao direta entre
um esporte e um grupo o que a intuio comum sugere26.
BRACHT, Valter. Esporte, histria e cultura. In. PRONI, Marcelo Weishaupt; LUCENA, Ricardo de
Figueredo (orgs.). Esporte: histria e sociedade. Campinas, SP: Autores Associados, 2002.
26
BOURDIEU, P., Programa para uma sociologia do esporte. In:___. Coisas ditas. So Paulo:
Brasiliense, 1990, p.208.
27
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma histria dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1994, v1.
28
A questo do controle da violncia potencial seu papel no desenvolvimento das artes marciais orientais
sero abordados com mais detalhes no captulo 2 da segunda parte do presente estudo.
29
As competies de vale-tudo possuem esse nome por apresentarem poucas restries de ao entre os
competidores, tais como, categorizao por peso, idade, estilo de luta, etc. Alguns autores consideram a
12
possvel ver exemplos de artes marciais orientais que abraaram livremente essa
possibilidade o controle da violncia potencial pela via da esportivizao , algo que,
no por acaso, resultou em um grande ganho de popularidade e de nmero de
praticantes culminado com a incluso das mesmas entre as modalidades olmpicas30.
O entendimento do processo esportivizao que muitas das artes marciais
orientais, em maior ou menor grau, sofreram constitui um ponto fundamental no que se
refere massificao dessas prticas na cidade de So Paulo, porm no o nico.
Assim sendo, entendo que essas prticas ainda possuem algumas caractersticas prprias
s quais o entendimento desse processo de esportivizao por si s no responde.
Estou me referindo a um elemento que supostamente permeia tanto as artes
marciais orientais quanto as demais prticas corporais originadas no Oriente e que as
difere do esporte ou dos vrios tipos de ginstica, quais sejam os princpios filosficos
norteadores dessas prticas.
Nesse sentido, Yang (2000), versando exclusivamente sobre as artes
marciais orientais, aponta a existncia de uma forte relao entre os nomes das artes
marciais e as filosofias orientais, como por exemplo, o Taosmo, que se identifica no
sufixo Do. O sufixo "Do" significa caminho, um cdigo de conduta que o praticante
de artes marciais deve seguir durante sua vida31. A esse respeito, Hyams (1979) afirma
que:
[...] as artes marciais, em sua modalidade mais delicada, so muito mais do que
uma disputa fsica entre dois oponentes, um meio de impor a prpria vontade ou de
infligir dano ao outro. Mais que isso, para os verdadeiros mestres, o Karat, o
kung-fu, o aikid, o wing-chun e todas as demais artes marciais so basicamente
caminhos amplos atravs dos quais eles podem alcanar a serenidade espiritual, a
tranquilidade mental e a mais profunda autoconfiana32.
Com efeito, Yang (2000) defende que todas as artes marciais do Oriente
foram criadas e desenvolvidas sob uma forte influncia das tradies e valores
ascenso das artes marciais em que se observam as competies de vale tudo como fenmeno de desesportivizao partindo da teoria a Elisiana para quem o processo de esportivizao teria um papel como
parte do processo civilizador ocidental em especial no que se refere ao controle das emoes e por
consequncia da violncia. (Cf.: BOTTENBURG, Maarten van; HEILBRON, Johan. De-sportization of
fighting contests: the origins and dynamics of no holds barred events and the theory of sportization.
INTERNATIONAL REVIEW FOR THE SOCIOLOGY OF SPORT. v.34, Londres, n.41, p. 259
282, 2006.)
30
Nesse aspecto Jud e Taekwondo so os maiores exemplos.
31
YANG, D.J. Op. cit.
32
HYAMS, J. O zen nas artes marciais. So Paulo: Pensamento, 1979, p.11. (Grifo nosso).
13
Filosofia baseada nos ensinamentos de Kung Fu Tzu (cerca de 550 a.C.), conhecido no ocidente como
Confcio. Enfatiza a harmonia social promovida pelo respeito aos superiores e benevolncia para com os
subordinados. Tornou-se a filosofia oficial da China imperial de aproximadamente 200 d.C. at a queda
da Dinastia Ching e fundao da Repblica Chinesa, em 1911. Os ensinamentos confucionistas formaram
a base do sistema de exames imperiais usado para selecionar funcionrios pblicos e proporcionaram
grande parte da lgica da administrao do Imprio Chins. (Cf.: STEVENSON, J. O mais completo
guia sobre filosofia oriental. So Paulo: Arx, 2002. p.217)
34
Ensinamento filosfico-religioso desenvolvido, sobretudo por Lao-tse (sc. VI a.C.) e Tchuang-tseu
(sc. IV a.C.), filsofos chineses, cuja noo fundamental o Tao - Caminho - que nomeia o grande
princpio da ordem universal, sintetizador e harmonizador do Yin e do Yang, e ao qual se tem acesso por
meio da meditao e da prtica de exerccios fsicos e respiratrios. (Cf.: FERREIRA, A. B. H. Novo
dicionrio da lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p.1647).
35
Sistema tico, religioso e filosfico fundado por Siddharta Gautama, o Buda (sia Central, 563 - 483
a.C.), difundido por todo o L. asitico, e que consiste fundamentalmente no ensinamento de como pela
conquista do mais alto conhecimento se escapa da roda dos nascimentos e chega ao nirvana. Por volta do
sc. III separam-se dois ramos do budismo: O budismo hinaiana e o budismo maaiana. Budismo
hinaiana: Ramo ortodoxo do budismo, tambm chamado de pequeno veculo, e que se espalhou pelo S. da
sia. Budismo maaiana: Ramo do Budismo, tambm chamado de grande veculo, difundido
principalmente por todo o N. da sia, e que se ope ao budismo primitivo por considerar que, muito
embora aspirao final deva ser o nirvana, deva este, por compaixo, ser adiado, a fim de que o sbio
possa dedicar-se a ensinar aos outros o caminho da salvao. (Ibid., p.291).
36
Forma de budismo que se definiu, sobretudo no Japo, a partir sc. VI, e se vem difundindo no
Ocidente, caracterizada por valorizar a contemplao intuitiva (em oposio meditao racional
abstrata) suscitada pelo amor natureza e vida, a qual se exercita pela prtica de toda espcie de
trabalhos manuais e leva ao desenvolvimento da personalidade mediante o conhecimento prprio. (Ibid.,
p.1804).
37
Doutrina filosfica segundo a qual o conjunto das coisas pode ser reduzido unidade, quer do ponto de
vista de sua substncia (e o monismo poder ser um materialismo ou espiritualismo), quer do ponto de
vista das leis (lgicas ou fsicas) pelas qual o universo se ordena (e o monismo ser lgico ou fsico).
(Ibid., p.1153).
14
movimento humano38.
40
em torno das mesmas tambm, mas no como j foi dito anteriormente para aquele
do mundo esportivo.
Nas academias de ginstica as artes marciais converteram-se em apenas
mais um produto a ser oferecido na busca pela qualidade de vida, chegando ao
extremo de estar totalmente desvinculada de tudo aquilo que a caracteriza como arte
marcial, com exceo dos movimentos, um exemplo o body combat41. Nesse tipo
38
No original: Martial arts is reflected as a microcosm of the macrocosm as the Whole in which Eastern
religio-philosophical values and indigenous cultural uniqueness are congruently integrated. Through the
course of study in martial arts, one confronts the core essence of the great wisdom of the East while
discovering one's self in the mode of becoming a harmonious human being of mind and body as one.
Martial arts can be the resource for all people that enhances emotional, social, mental, and phisical wellbeing, but not spiritual well being, because the martial arts are not a religion. To become a true
practitioner or champion in the martial arts is not to master others or to defeat them in competition. Its
purpose, rather, is solely for self-mastery and self-actualization through the practice of virtue, one's
devotion to the chosen discipline, and a sustained victory in competition with one self. The martial arts
are indeed a superior form of education connected with human movement. (Grifo nosso) Para mais
informaes confira: YANG, D. J. Op. cit.
39
Sobre a filosofia das artes marciais, Hyams, defende que: A filosofia das artes
marciais no projetada para ser pensada ou intelectualizada, feita para ser experimentada. Assim, as
palavras, inevitavelmente, transmitem apenas parte do significado. (Cf.: HYAMS, J. Op. cit., p.15.)
40
PRONI, M. W. Op. Cit. 1993.
41
Tipo de ginstica onde pelo emprego de movimentos coreografados, apropriados das artes marciais
15
16
alm, claro, de uma srie de outros produtos com aplicao especfica em cada uma
dessas prticas. O nascimento de um mercado como esse traz consigo a necessidade de
um corpo de profissionais que, de maneira direta ou indireta, mantm um elo com essas
prticas corporais do Oriente.
Assim, o presente estudo encontra-se fundamentado em depoimentos43 de
mestres de artes marciais orientais, imigrantes ou no, no sentido de se compreender
melhor como se deu esse processo, as adaptaes que se fizeram necessrias e as
dificuldades enfrentadas no encontro desse elemento constitutivo da cultura oriental
com a cultura e a realidade da cidade de So Paulo, seguindo os apontamentos de
Alessandro Portelli44, para quem o depoimento , antes de tudo, um documento do
presente compartilhado em sua responsabilidade tanto pelo depoente quanto pelo
entrevistador no momento de sua produo.
Cabe ressaltar que, ao optar por esse procedimento, tenho conscincia de
que estou lidando com a memria a respeito do processo de desenvolvimento das artes
marciais orientais como experincia corporal, na cidade de So Paulo.
Ao trabalhar com a memria, estou reconhecendo suas limitaes como
verses do passado socialmente situadas em relao aos depoentes. Assim, ao
trabalhar com essa memria especificamente, optei por uma estratgia de ao que, pela
relativizao das posies socialmente ocupadas pelos depoentes em seu passado e no
momento em que foram produzidos os depoimentos, teve o objetivo de conceder maior
historicidade a esses fragmentos do passado, atento ao estudo de Pierre Nora (1993),
onde esse autor reconhece que:
Memria e histria: longe de serem sinnimos, tomamos conscincia de que tudo
ope uma outra. A memria vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse
sentido, ela est em permanente evoluo, aberta dialtica da lembrana e do
esquecimento, inconsciente de suas deformaes sucessivas, vulnervel a todos os
usos e manipulaes, suceptvel a longas latncias e repentinas revitalizaes. A
histria a reconstruo sempre problemtica e incompleta do que no existe mais.
A memria um fenmeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a
histria, uma representao do passado. Porque afetiva e mgica, a memria no
43
Exclusivamente para esse estudo foi coletado um total de 14 depoimentos, sendo: 8 de mestres
imigrantes; 6 de mestres brasileiros e; 1 depoimento concedido por um empresrio proprietrio de uma
confeco de kimonos. Alm disso, destacamos uso da gravao de evento comemorativo aos 40 anos da
imigrao coreana no Brasil ocorrido na Universidade de So Paulo, em 2004, e de outros depoimentos
(em um total de 16) coletados componentes de nosso arquivo pessoal sobre a arte marcial Taekwondo,
sendo: 2 de um mesmo depoente mestre imigrante; 1 de um imigrante membro da colnia coreana de So
Paulo e; 13 de mestres brasileiros.
44
PORTELLI, A. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexes sobre a tica na histria oral.
In: Projeto Histria, N 15. So Paulo: Educ., 1997.
17
NORA, Pierre. Entre memria e histria: a problemtica dos lugares. In: Projeto Histria, N 10. So
Paulo: Educ., 1993.
46
MARTA, Felipe Eduardo Ferreira. O caminho dos ps e das mos: taekwondo. Arte marcial,
esporte e colnia coreana em So Paulo (1970 2000). So Paulo, 2004 (Dissertao de mestrado
apresentada ao Programa de Estudos Ps-graduados em Histria da Puc/SP).
47
Ibid.
18
principais fatores desse processo. Alm disso, a constatao de que a grande maioria
dos mestres brasileiros entrevistados iniciou a prtica do Taekwondo no perodo em
questo reforou ainda mais essa hiptese.
Assim, para esta pesquisa, fiz uma amostragem dos anncios
publicitrios dos filmes exibidos nos cinemas da capital paulista publicados no jornal
Notcias Populares.
Nessa primeira etapa, foram analisados junto ao acervo do Arquivo do
Estado de So Paulo os anncios de filmes publicados no jornal Notcias Populares
entre os meses de maio e junho, no perodo entre 1970 e 1978. Para minha surpresa,
foram encontrados, nesse perodo, anncios de mais de 90 ttulos de filmes, cujo tema
principal eram as artes marciais orientais, todos eles exibidos nos cinemas localizados
na regio central da cidade de So Paulo. Muito mais, portanto, do que apenas os filmes
de Bruce Lee, algo que denota que existiu no perodo um grande interesse por esse
gnero de filme48.
Em uma segunda etapa da pesquisa, retornei ao Arquivo do Estado de
So Paulo e novamente analisei o acervo do jornal Notcias Populares; dessa vez,
entretanto, percorri todas as segundas-feiras49 dos meses de maio, junho e julho de toda
a dcada de 1970 e digitalizei alguns dos anncios, para que pudesse proceder anlise
de seus contedos, textos e imagens. Alm disso, foi possvel tambm digitalizar uma
entrevista que tratava de um dos filmes de Bruce Lee exibidos no perodo.
Em outra frente, realizei tambm uma pesquisa no Jornal Folha de So
Paulo, seguindo os mesmos procedimentos de pesquisa adotados em relao ao Jornal
Notcias Populares. Dessa forma, foi possvel verificar a maneira como os mesmos
anncios eram veiculados em jornais diferentes50.
Com o intuito de encontrar outros tipos de fonte que, de alguma maneira,
fizessem referncia s artes marciais orientais, decidi fazer uma pesquisa na Gibiteca
Henfil, localizada no Centro Cultural So Paulo. A princpio, estava procura de
revistas de histrias em quadrinhos originrias dos pases do Oriente com traduo para
o portugus, mais especificamente as japonesas, popularmente conhecidas como
48
No captulo 1 da segunda parte do presente estudo abordarei com mais detalhes os resultados obtidos na
pesquisa sobre os filmes de artes marciais orientais exibidos na cidade So Paulo durante a dcada de
1970.
49
Essa estratgia foi adotada por ser a segunda-feira o dia em que antigamente ocorriam as estrias de
filmes nos cinemas da cidade de So Paulo.
50
Essas diferenas sero explicitadas no captulo 2 da segunda parte do presente estudo.
19
Sua publicao original no Japo ocorreu em 1970. A revista trata das aventuras de um ronin
(samurai sem mestre) no Japo da Era Tokugawa (1600-1867), cujo principal objetivo era vingar a morte
de sua esposa.
52
A Ebal foi a maior e mais importante editora de quadrinhos do Brasil, tendo sido criada em 1945 por
Adolfo Aizen. A criao da editora foi quase uma decorrncia do grande sucesso do "Suplemento
Juvenil". A Ebal publicou no Brasil inmeros autores estrangeiros como: Walt Disney (Selees
Coloridas), Alex Raymond (Flash Gordon), Hal Foster (Prncipe Valente), Lee Falk e Phil Davis
(Mandrake), Lee Falk (O Fantasma), Chester Gould (Dick Tracy) e Charles M. Schulz (Peanuts), alm
das revistas da DC Comics e mais tarde Marvel Comics. [...] Alm do material importado a Ebal,
valorizando os artistas brasileiros, publicou dezenas de talentos em revistas como lbum Gigante, Srie
Sagrada que publicava biografias de santos catlicos, a Edio Maravilhosa (mais tarde reeditada como
Clssicos Ilustrados), que publicava verses quadrinizadas de obras de escritores nacionais, como Jos de
Alencar, Euclides da Cunha e Dinah Silveira de Queiroz, ou a publicao de adaptaes de fatos
histricos como as sries Grandes Figuras do Brasil, Episdios e Histria do Brasil, esta ltima com
textos do acadmico Gustavo Barroso e extensa pesquisa iconogrfica (que consumiu oito anos de
trabalho) de Ivan Wash Rodrigues. (Disponvel em: <http://www.gibindex.com/enciclopedia/br/e/46>,
acesso em 04/10/04)
53
No Brasil as histrias foram escritas por Pedro Ansio e desenhadas por Mrio Jos de Lima e Eduardo
Baron.
20
Os resultados da pesquisa com essa revista em quadrinhos sero apresentados com mais detalhes no
captulo 1 da segunda parte do presente estudo.
21
oriental que praticam ou em relao ao seu pas de origem, mas em funo de suas
experincias de vida.
Os depoimentos revelaram aspectos fundamentais para o entendimento
do processo que tornou possvel o oferecimento dessas prticas corporais na cidade de
So Paulo. Como consequncia, foi possvel agrupar os depoentes nas seguintes
categorias: aprendizagem, profissionalizao e perodo de emigrao.
A categoria aprendizagem se subdividiu em: a) Imigrantes que
aprenderam a arte marcial no seu pas de origem; e b) Imigrantes que aprenderam a arte
marcial no Brasil.
A categoria profissionalizao se subdividiu em: a) Imigrantes que tm
na arte marcial oriental seu nico meio de subsistncia; b) Imigrantes que tm na arte
marcial oriental uma atividade complementar atividade de subsistncia; e c)
Imigrantes que tm a arte marcial oriental como uma atividade voluntria.
Por fim, a categoria perodo de emigrao se subdividiu em: a)
Imigrantes Pr II Guerra Mundial; b) Imigrantes Ps-II Guerra Mundial at o fim da
dcada de 1960; e c) Imigrantes da dcada de 1970.
Mais do que estabelecer categorias interpretativas, essa diviso teve a
inteno de orientar a anlise dos depoimentos, em funo das outras fontes
pesquisadas, tornando possvel a apreenso de detalhes que possivelmente passariam
despercebidos, caso nossa opo tivesse sido pelo agrupamento automtico, de acordo a
arte marcial oriental praticada por cada depoente. Alm disso, saliento que essa diviso
est longe de ser um procedimento estanque, uma vez que um mesmo depoente pode
ocupar diferentes categorias ao mesmo tempo.
Nesse sentido, destaco, em especial, a categoria profissionalizao, que
foi de fundamental importncia tambm na interpretao dos depoimentos concedidos
pelos mestres brasileiros.
22
23
E nesse sentido:
A demanda de um indivduo ao contar sua estria, pode, muitas vezes, trazer tanto
conformidade quanto mudana, tanto congruncia quanto amadurecimento. Os
narradores estabelecem assim, serem tanto a mesma pessoa que sempre foram
55
24
quanto uma outra pessoa. Assim as estrias mudam tanto com quantidade de tempo
(a experincia acumulada pelo narrador) quanto com a qualidade do tempo (os
aspectos que ele quer enfatizar durante a narrativa). Nenhuma estria ser repetida
duas vezes de forma idntica. Cada estria que ouvimos nica56.
PORTELLI, Alessandro. The death of Luigi Trastuli, o momento da minha vida: funes do tempo na
Histria oral. Mimeo traduzido. Publicado pela primeira vez em Internacional Oral History Journal, II,
3 (Outono, 1981) 162-180.
57
Nesse ponto, apoio-me fundamentalmente nos estudos realizados por Norbert Elias em relao ao papel
dos esportes modernos no processo civilizador europeu, que, salvo melhor juzo, foi de grande
importncia tambm no processo de desenvolvimento das demais sociedades ocidentais bem como nos
estudos de Pierre Bourdieu em relao ao esporte moderno em que diferentes agentes sociais atuam no
sentido de promover a construo de estruturas estruturantes para a organizao das prticas material e
simbolicamente que seguindo uma cronologia especfica, ou seja, uma cronologia que mesmo relacionada
s demais dimenses da sociedade possui seu prprio tempo e suas prprias regras, gerando o surgimento
de mercado relacionado tanto do ponto de vista do consumo quanto do ponto de vista do surgimento de
25
um corpo profissionais. (Cf.: BOURDIEU, Pierre. Op. Cit., 1990, p.208; BOURDIEU, Pierre. Como
possvel ser esportivo. In: Questes de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero. So Paulo: Brasiliense,
1983; ELIAS, Norbert. Op. Cit. 1994, v1. e ELIAS, N. & DUNNING, E. A Busca da Excitao. Lisboa:
DIFEL, 1992.)
26
27
28
29
BOURDIEU, Pierre. Como possvel ser esportivo? In. Coisas ditas. So Paulo: Brasiliense, 1990.
LESSER, Jeffrey. Op. Cit.
13
O fracasso dessa primeira experincia fomentou opinies preconceituosas em relao imigrao de
pessoas oriundas dos pases do Oriente, que, buscando fundamentao nas diversas teorias de
superioridade tnica em voga na poca, dificultou, por algum tempo, a vinda em massa para o Brasil
desses imigrantes. (Cf.: LESSER, Jeffrey. A negociao da identidade nacional: imigrantes, minorias
e a luta pela etnicidade no Brasil. So Paulo: Editora Unesp, 2000.)
12
30
14
A esse respeito o exemplo dos ndios Kaigang emblemtico. (Cf.: FASSHERBER, Jos Ronaldo,
Mendona. Kanjire X Estado: um etno-desporto Kaigang e a colonizao brasileira no sculo XIX.
In. Simpsio Nacional de Histria, 24., 2007, So Leopoldo, RS. Anais eletrnicos... So Leopoldo:
Unisinos, 2007. 1 CD-ROM.)
15
Na histria da Capoeira dois momentos merecem destaque, sua proibio no sculo XIX sendo
criminalizada no cdigo penal de 1890, e sua liberao durante o perodo do Estado Novo, momento em
que foi marcante ao de mestre Bimba que criou o estilo regional agregando capoeira elementos do
esporte, da ginstica e das artes marciais orientais, algo teria facilitado o processo aceitao dessa prtica
perante a sociedade brasileira. (Cf.: SANTOS, Isabele Pires. Oficina de capoeira: escola em
movimento. Salvador: Fundao Cultural Palmares, 2002.)
16
Para mais informaes sobre o debate em torno da vinda dos povos de origem oriental para o Brasil, em
especial chineses e japoneses, confira: LESSER, Jeffrey, Op. Cit. 2000, sobretudo os captulos 2 e 6.
31
17
32
33
34
core of a new "military calisthenics" (heishiki taiso). The reforms were designed not only to "build
stronger bodies but also to "instill the nation's childrens with the virtues of unquestioning obedience to
the state. In Japan, students served as an important test population for the development of the categories
and techniques of population management. Like military conscripts, they offered the advantages of a
captive population. (Cf. Ibid.)
26
MEHL, Margaret. Chinese learning (kangaku) in Meiji Japan (1868-1912). History. Oxford, UK, n.
277, p. 48-66, 2000.
27
Tambm conhecido como arquiplago de Okinawa.
28
Cidade porturia localizada na regio nordeste da China e que foi colnia japonesa de 1905 a 1945.
(Cf.: ZHENG, Tiantian, 2007. Op. Cit.)
35
acordo com Zeng (2007), teria ocorrido graas situao de subnutrio a que eram
submetidas s crianas chinesas29.
Mais interessante ainda a afirmao de que contra a dominao
japonesa os nativos de Dalian lanaram mo de outro elemento da cultura corporal
europia o esporte, mais especificamente o futebol, pois foi com ele que os jovens
chineses, a despeito de toda humilhao a que foram submetidos nas escolas,
conseguiram reafirmar sua masculinidade. Isso tudo graas liberdade de execuo de
movimentos que o esporte, diferentemente da ginstica, oferece aos seus praticantes30.
Na Coria, a presena japonesa no foi diferente: prticas corporais
tradicionais foram proibidas, pessoas foram levadas para o Japo para trabalharem em
regime de semiescravido, coreanos tiveram seus nomes substitudos por nomes
japoneses, um momento histrico que ainda est vivo na memria dos descendentes
dessa gerao, como se observa nesses fragmentos retirados do depoimento de trs
coreanos:
Nessa poca muitos coreanos se exilaram voluntariamente para a China ou Rssia
que so os pases vizinhos ou muitos coreanos foram levados fora para
trabalharem no Japo31.
[...] a mesma coisa o brasileiro ir prs Estados Unidos e ser chamado de
argentino. Pior! No a mesma coisa pior! Porque meu pai foi obrigado a
aprender japons porque era proibido falar coreano no tempo da colonizao
japonesa, domnio japons. Meu pai estudou no Japo e ainda hoje ele conta isso,
ele bem velhinho, agora que ele t velho conta mais vezes, de como ele fez
engenharia. Se um coreano tirar 8 e o Japons 6, entra o japons e o coreano fica,
ele disse que tirou 8,75 no exame de ingresso. Ento quando ns somos chamados
de japoneses o pior32.
[...] quando me chamava de japons ficava um pouco feio por que realmente ficava
na minha memria e nunca fui japons e ficava feio, mas fora disso, isso tambm
tem um resqucio da cultura dos meus pais que odiavam japons em funo da
dominao japonesa sobre a Coria, n? Japons ocuparam desde 1903 at 1945 e
tiraram nome, trocaram nome, puseram nome de japo...coreano e fizeram o diabo
com coreano e s com perda da II Guerra Mundial a coreano se libertou [...]33.
29
36
34
CALLEJA, Carlos Catalano. Contribuio para o estudo e interpretao das regras internacionais
de Jud. 1981. Dissertao (Mestrado em Educao Fsica) Escola de Educao Fsica da Universidade
de So Paulo, So Paulo, 1981. (Grifo nosso)
37
Um aspecto marcante desse momento histrico no Japo foi o decreto de proibio do uso do birote,
que foi muito bem retratado na autobiografia de Ginchin Funakoshi, especialmente na passagem em que
relatada a reao de seu pai e de sua me ao notar que seu filho havia aderido determinao do decreto
imperial para poder ocupar suas funes como professor em uma escola primria de Okinawa: Meu pai
mal podia acreditar em seus olhos. O que voc fez a voc mesmo?, gritou com raiva. Voc, o filho de
um Samurai! Minha me, ainda mais raivosa do que ele, recusou-se a falar comigo. Virou-me as costas,
saiu de casa pela porta dos fundos e fugiu para a casa de seus pais. (Cf.: FUNAKOSHI, Ginchin.
Karat-d: meu modo de vida. So Paulo: Cultrix, 1975.p.21.)
36
Traduo livre do autor. No original: In 1895, the leading lan of martial elites backed by Governor
Watanabe of Kyoto Prefecture established The Dai Nippon Butoku Kai (Greater Japan Martial Virtue
Society) in Kyoto Japan under the authority of the Ministry of Education and the endorsement of Meiji
Emperor to solidify, promote, and standardize all martial disciplines and systems. It intended to restore
the classical martial traditions and virtues of Samurai way and it mobilized the nation of Japan with
powerful legacy of martial culture. Many outstanding and renowned practitioners in traditional Heiho
systems, Kenjutsu, Jiujutsu, Battojutsu, Iaijutsu, Kenpo, Naginatajutsu, Aikijiujutsu, Bojutsu, Sojutsu,
Kendo, Karatedo, Iaido, Aikido, Judo, Kobudo and from other Jutsu forms and Do systems joined in the
DNBK society of national prominence. It was the first official martial arts institution of Japan sanctioned
by the authority of the national government. The Prince Komatsu no Miya Akihito had served as the
first Sosai, supreme commander of the Dai Nippon Butoku Kai while Governor Watanabe served as Fuku
Sosai, vice-commander. Consequently, DNBK became the prestigious headquarters empowered by the
38
nation's leading experts, and established as the center for training, research, licensing, and publication of
all martial arts disciplines. Disponvel em: <http://www.dnbk.org/history.cfm >. Acesso em 15/09/2008.
37
CALLEJA. Op. Cit.
38
Ibid.
39
Ibid.
40
Okinawa a provncia mais ao sul do Japo e consiste de 169 ilhas que formam o arquiplago Ryukyu.
Sua histria marcada pela influncia cultural chinesa e japonesa o que contribuiu para emergncia de
39
uma cultura prpria. (Cf.: FREITAS, Snia Maria de. Falam os imigrantes: armnios, chineses,
espanhis, hngaros, italianos de Monte San Giacomo e Sanza, lituanos, okinawanos, poloneses,
russos, ucranianos, memria e diversidade cultural em So Paulo. So Paulo, 2001. (Tese de
doutorado apresentada ao Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade de So Paulo).
41
TAN. Kevin S. Y. Op. Cit.
42
FUNAKOSHI, Ginchin. Op. Cit. p.45.
40
Ibid.
Para uma explicao pormenorizada a respeito da ao poltica de Ginchin Funakoshi no processo de
insero do Karat no Japo confira: TAN. Kevin S. Y. Op. Cit.
45
Ibid.
46
Shurite e Nahate significam respectivamente: mos de Shuri e mos de Naha. Ambas so vilarejos de
da ilha de Okinawa onde era praticado o Karat de forma particular, alm desses dois estilos existe um
terceiro, o Tomarite que relativo ao Karat praticado no vilarejo de Tomari tambm na ilha de Okinawa.
(Cf.: TAN. Kevin S. Y. Op. Cit.)
44
41
alguns anos depois que vim para Tquio, tive oportunidade de manifestar minha
discordncia como essa maneira de escrever tradicional. Essa oportunidade surgiu
quando a Universidade de Keio constituiu um grupo de pesquisa do karat, e eu
ento pude sugerir que a arte recebesse o nome Dai Nippon Kempo Karat-d
(Grande Caminho Japons do Mtodo do Punho das Mos Vazias), utilizando o
caractere para vazio em vez do caractere para chins. Minha sugesto
provocou inicialmente exploses violentas tanto em Tquio como em Okinawa,
mas eu acreditava na mudana e me dediquei a ela no decorrer dos anos. Desde
ento essa mudana foi to amplamente aceita que a palavra karate pareceria
estranha a todos ns hoje se fosse escrita com o caractere kara chins. O kara
que significa vazio definitivamente o mais apropriado. Em primerio lugar, ele
simboliza o fato evidente de que essa arte de autodefesa no usa armas, somente
ps desguarnecidos e mos vazias. Alm disso, os estudantes de karat-d tm
como meta esvaziar o corao e a mente de todo o desejo e vaidade terrenos47.
47
42
simples para ser praticado sem maiores dificuldades por todos, jovens e velhos,
meninos e meninas, homens e mulheres49.
49
43
o ideal esportivo, uma vez que o Taekwondo, em conjunto com Jud, goza do status de
ser uma modalidade olmpica.
Assim, em seu desenvolvimento, os cinco elementos destacados no
processo de modernizao das artes marciais orientais anteriormente citadas tambm
so observados. Mas, para entendermos esse processo em relao ao Taekwondo,
preciso retornar ao perodo imediatamente posterior ao fim da II Guerra Mundial
quando, aps a derrota para os Estados Unidos da Amrica (EUA) e para a Unio
Sovitica (URSS), as tropas japonesas deixam a pennsula coreana, que, mais uma vez,
pde voltar a praticar suas manifestaes culturais, dentre as quais suas antigas artes
marciais52.
Todavia, essa retomada dos valores tradicionais da cultura coreana veio
como um amargo remdio, pois foi acompanhada pela diviso do pas em norte e sul
pelo paralelo 38, ficando a tutela do sul sob responsabilidade dos EUA e a do norte
sob responsabilidade da URSS, uma situao que acabou lanando a Coria no meio da
Guerra Fria53.
Essa situao de tenso atingiu seu pice em 1950, quando tem incio a
guerra civil na Coria, em que se envolveram a China, a URSS, os EUA e mais 16
pases filiados a ONU, inclusive o Brasil. Com o fim da Guerra em 1953, a Coria do
Sul tornou-se extremamente dependente dos EUA, que subsidiavam sua economia54.
Nas palavras de Choi (1991):
Com a guerra, a economia da Coria foi totalmente demolida. O subsdio dos
Estados Unidos proporcionou, em grande parte, a reconstruo do pas e de sua
economia. A partir de ento, a economia coreana ficou dependente do referido
subsdio, a ponto de ser qualificada de economia de subsdio55.
44
57
Traduo livre do autor. No original: Despus de la independencia nacional en 1945, empez una vez
ms la revitalizacin del taekkieon, ayudada por la restauracin de las libertades personales. Fue en este
perodo cuando apareci la nueva palabra taekwon y ampliamente en su uso. En este momento, las
caractersticas de relacin maestro alumno han sido cambiadas y se convierte ms en un deporte que las
artes marciales. Con la fundacin de la Asociacin de Taekwondo de Corea en septiembre de 1961, el
Taekwondo lleg a ser un deporte. (Cf.: CORIA, Guia de la herencia cultural de Corea. Servicio de
Informacion de Corea, 2002).
45
de forma to rpida e harmoniosa, como se pretende fazer acreditar, sendo ainda hoje
motivo de discusso entre aqueles que desenvolvem essa prtica em nosso pas58.
De acordo com Mergulho e Lee, o primeiro campeonato de Taekwondo
do mundo se realizou na Coria, em 1964. Ainda de acordo com esses autores, em 1961
foi criada a KOREAN TAEKWONDO ASSOCIATION cujo primeiro presidente foi
o General Choi Hong Hi, que, anos mais tarde, em 1967, fundaria tambm na Coria a
INTERNATIONAL TEAKWONDO FEDERATION (ITF)59.
A questo do processo de internacionalizao da prtica se evidencia na
ao de Choi Hong Hi em preparar e enviar mestres instrutores para diferentes partes do
globo. A esse respeito, temos o depoimento de Kun Mo Bang um dos mestres
preparados por Choi Hong Hi.
Taekwondo mesmo eu nunca pensei pra trabalhar como mestre, como eu era um
menino muito fraco, eu era muito estudioso, eu gostava de livro, a meu pai me
obrigou a treinar alguma coisa, a comecei, ento eu cheguei a mestre, depois a
mestre internacional, fiz o curso, eu gostava, mas nunca pensei, mas fui escolhido,
eu obedecendo vim pra c60.
Nesse trecho, Bang nos conta como chegou ao Brasil. Mas, para alm da
questo de Bang ser um dos enviados de Choi Hong Hi para a difuso do Taekwondo
pelo mundo, chama ateno a obedincia ao mestre, um aspecto comparvel apenas
disciplina da caserna. Contudo, no podemos deixar de frisar que a disciplina e o
respeito hierarquia, prprios da instituio militar, coadunam perfeitamente com a
filosofia milenar criada por Confcio e amplamente difundida e respeitada, mesmo na
atualidade, nos pases do oriente extremo.
Em 1971, o Taekwondo proclamado esporte nacional coreano pelo
ento presidente Park Chunghee61. E o que interessante nesse aspecto que, tal como
ocorreu no Japo com o Jud e o Karat, o Taekwondo passa ser fortemente incentivado
pelo governo local, tendo a dupla funo de dar ao pas uma identidade esportiva, ao
mesmo tempo em que passa a ser divulgado mundo afora.
O ano de 1973 marca a criao da WORLD TAEKWONDO
FEDERATION (WTF). Com forte subsdio governamental, a WTF nasce para
rivalizar com a ITF passando a constituir as duas maiores federaes de Taekwondo do
58
46
mundo62. Alm disso, para se diferenciar da ITF, a WTF cria e adota um novo estilo de
Taekwondo: o Kukkiwon.
Em 1980, o Taekwondo passa a ser reconhecido pelo Comit Olmpico
Internacional (COI) como modalidade oficial de competio, tendo sua estria nas
olimpadas de Sydney em 200063.
De tudo o que foi exposto acerca do processo de desenvolvimento do
Taekwondo, o que me chama a ateno a inteno de conferir-lhe uma origem coreana
autctone, ligando-o, desde a antiguidade, ou pelo menos aquelas prticas ditas
precursoras do mesmo como, por exemplo, o Subak e o Taekkion64, ao esporte, um
fenmeno de origem reconhecidamente ocidental, ao menos em sua forma moderna,
tendo surgido e se estruturado na Europa, no decorrer dos sculos XVIII e XIX, em
conjunto com a nova sociedade urbana e industrial65. Dito de outra maneira, buscando
naturalizar o processo que, na atualidade, tem marcado o desenvolvimento do
Taekwondo, como se esse fosse desde o incio o seu destino histrico66.
Evidentemente, os trs exemplos citados no correspondem ao nmero
total de artes marciais orientais que atualmente so praticadas na cidade de So Paulo.
Alm disso, estamos conscientes de que, principalmente no que se refere adoo do
modelo esportivo moderno, no foram todas as prticas corporais orientais que estamos
estudando que optaram por esse caminho ainda em seus pases de origem, antes de
serem introduzidas no Brasil. E mesmo quando esse foi o caminho escolhido, o da
esportivizao, no se pode dizer que essas prticas tenham experimentado esse da
mesma forma que as trs artes marciais orientais citadas. Ou seja, poderia estar
incorrendo em um grande erro, se afirmasse que o destino das trs artes marciais
apontadas pode servir de explicao para as demais prticas corporais dessa natureza
que aqui chegaram.
Esse um ponto crucial para esse estudo, algumas adaptaes foram
necessrias para que essas prticas corporais fossem traduzidas e encontrassem seu
62
47
espao na cidade de So Paulo e nesse percurso no foi rara a adoo total ou em parte
de elementos do modelo esportivo, conforme veremos ao longo do presente estudo67.
Assim, o prximo segmento fruto da anlise da memria dos mestres de
artes marciais orientais, no que se refere sua atuao na difuso de algumas das artes
marciais orientais praticadas atualmente na cidade de So Paulo e de como cada uma
delas deixou de ser um elemento cultural considerado extico, para se tornar parte
efetiva do universo de experincias corporais na cidade.
67
A questo das adaptaes a que as artes marciais orientais foram submetidas na cidade de So Paulo
ser abordada em maiores detalhes tendo como fonte a memria de mestres imigrantes no captulo 2 da
segunda parte do presente estudo.
48
68
49
alguns mestres de artes marciais orientais que, direta ou indiretamente, fizeram parte
desse processo.
Nesse sentido, torna-se necessrio reconhecer os limites dessas verses
do passado, bem como da interferncia do momento vivido pelo depoente no presente,
ao rememorar fatos referentes a um momento de sua vida por vezes muito distante. Os
relatos orais so um documento do presente e por conta disso so aceitveis, mas com
uma credibilidade diferente70.
Dessa maneira, menos do que trazer uma realidade factual, a memria
contida nesses relatos trazem como valor a subjetividade prpria de uma construo de
significados em torno dos fatos a que se referem. Afinal:
No temos, pois, a certeza do fato, mas apenas a certeza do texto: o que nossas
fontes dizem pode no haver sucedido verdadeiramente, mas est contado de modo
verdadeiro. No dispomos de fatos, mas dispomos de textos; e estes, ao seu modo,
so tambm fatos, ou o que o mesmo: dados de algum modo objetivos, que podem
ser analisados e estudados por tcnicas e procedimentos em alguma medida
controlveis, elaborados por disciplinas precisas como a lingustica, a narrativa ou
a teoria da literatura71.
70
PORTELLI, Alessandro. O que faz a histria oral diferente. Projeto Histria, So Paulo, n.14, p.31
fev. 1997.
71
PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos: narrao interpretao e significado nas memrias e nas
fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, v.1, n.2, pp.59-72, p.64, 1996.
72
Destaco que o perodo da dcada de 1970 ser objeto do captulo 1 da segunda parte do presente estudo
no que se refere visibilidade das artes marciais orientais na cidade de So Paulo.
50
73
51
52
Fig.179.
78
SAITO, Hiroshi. O japons no Brasil: estudo sobre mobilidade e fixao. So Paulo: Ed. Sociologia
e Poltica, 1961.
79
Mapa da regio por onde passava a estrada de ferro Mogiana. Disponvel
em:<http://www.cmef.com.br/Fotos/mapa22gr.jpg> Acesso em 14/10/08.
53
Fig. 280.
Fig. 381.
80
Disponvel
em:
Disponvel
em:
54
Especialmente com relao a Matsumoto, agradeo a ajuda de Zen Tachibana, que, durante a
construo desse depoimento, foi fundamental na traduo de minhas perguntas ao depoente, bem como
de suas respostas para as perguntas realizadas. Vale destacar que o prprio Zen Tachibana, jovem
praticante de Kendo, tambm me concedeu o seu depoimento.
83
Sobre a entrevista concedida por esse mestre, algumas peculiaridades precisam ser destacadas, pois o
simples fato de ir ao seu encontro, por si s, j se configurou em uma grande experincia, sobretudo no
que se refere aos meus prprios preconceitos, na medida em que me permitiu estar em contato com alguns
medos atuais, aos quais os moradores de uma grande cidade como So Paulo, esto sujeitos. E eu
explicarei o porqu. O Sr. Masatoshi reside em um ponto relativamente afastado da cidade de So Paulo,
um lugar conhecido como Ermelino Matarazzo, que no raro figura nos jornais como um lugar pobre e
violento. O trajeto at o local pode ser feito de carro, de nibus, ou de trem, contudo, tanto mais quando
feito de trem, esse caminho refora a imagem retratada nos jornais, pois os trens da linha F da CPTM83, e
suas estaes esto em pssimas condies de conservao. Ir de trem at Ermelino Matarazzo me
permitiu lanar sobre a cidade um olhar privilegiado, me permitiu enxergar a metrpole por um ngulo
pelo qual ela no est acostumada e se mostrar, o dos fundos. Ao cumprir esse trajeto me foi possvel
ver nascer uma cidade bem diferente daquela da modernidade e da prosperidade econmica emanada
pelos edifcios das Avenidas Paulista e Faria Lima, pobre e, em certa medida, ameaadora em funo dos
olhares que acreditava estarem sendo lanados sobre ns no interior dos vages, medida que me
distanciava dos pilares da modernidade paulistana. Porm, logo que deixei a estao deixei tambm
meus medos e preconceitos, pois o encontro com a realidade me permitiu ver algo bem diferente daquilo
que via nos jornais, um bairro tranquilo cujo centro, a Avenida Paranagu, lembra o centro de uma
pequena cidade do interior paulista, com estabelecimentos comerciais, bancos, escolas, farmcias, enfim
uma paisagem para ns em nada ameaadora. E quo poderoso pode ser o desconhecido... Contudo, no
foi nessa ocasio que consegui me encontrar com Masatoshi Akagi, pois, quando cheguei na sua casa, ele
havia sado para uma sesso de fisioterapia, necessria em funo de um acidente sofrido e cujo resultado,
uma fratura no fmur, na ocasio deste encontro, ainda requeria alguns cuidados. Assim, agendei um
novo encontro no dia 13 de maio de 2005, ocasio em que preferi cumprir o trajeto de carro, quando,
finalmente, consegui colher seu depoimento.
55
84
56
Lavora mesmo. [...] Ento o que acontece... Fui mandado pra Barretos. Em
Barretos numa fazenda [...]. E ns fomos lanado em uma, como voc j viu aqui...
tipo cabanas, n. E todo mundo foi enfiado l dentro pra mor, n? Sabe. Existia
sim diviso de quartos cada... Mas praticamente ramos, ... ... Como escravos.
Quando quatro, quatro e meia da manh j vinha a corneta toc l. No pode fic
ningum dentro de casa. Tem que sa todo mundo, em fila indiana e vinha o
representante de cada grupo e assim: Vocs vo pra cidade, vocs vo pra qui.
Cada um com sua... com seu lugar de trabalho, n? Entende? E ns vamos criando
assim90.
Ibid.
Tomeji Ito, em depoimento ao autor concedido, em 19 de maio de 2005, na cidade de So Paulo.
90
Ibid.
89
57
aquela em que eles viviam antes de vir para c, ou mesmo pelo desejo de emigrar
para outro pas, notadamente os Estados Unidos da Amrica.
Contudo, como na grande maioria dos casos, esse desejo no se
concretizou, o que se observou foi o emprego do capital, conquistado por esses
imigrantes, ao longo do tempo, na aquisio de terras, fazendo com que se tornassem
pequenos produtores de gneros agrcolas, como o algodo, o arroz, o feijo entre
outros. O caminho para isso obviamente no foi fcil e tambm deixou suas marcas,
sobretudo no que refere aos valores tradicionais dessas famlias, pois:
[...] o japons colono concentrou todo o seu esforo na capitalizao necessria
para superar esta condio de trabalho, restringindo seus contatos quase que
exclusivamente famlia cujos laos so reforados por que tem uma funo
cooperativa imediata. Vemos, portanto que no primeiro perodo de vida no Brasil,
que os imigrantes se despojaram de muitos aspectos de sua vida tradicional que no
podiam ser mantidos nas condies de isolamento e pobreza que caracterizaram o
perodo do colonato. um perodo que se caracterizou pelo trabalho, e s ele
lembrado. Nossos entrevistados unanimemente confirmaram que todos os membros
vlidos da famlia trabalhavam duramente91.
CARDOSO, Ruth Corra Leite. Estrutura familiar e mobilidade social: estudo dos japoneses no Estado
de So Paulo. 1972. Tese (Doutorado em Cincias Sociais) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade de So Paulo. p.120.
92
Ver nota 83.
58
93
59
60
61
imigrantes era alfabetizada na lngua de seu pas de origem em muito contrastava com a
realidade dos trabalhadores brasileiros da poca102.
Nesse particular, cabe destacar que, durante infncia desses garotos, o
Japo estava passando por profundas transformaes, resultado dos anos da Restaurao
Meiji, e que, nesse contexto, as artes marciais tiveram um importante papel como parte
integrante do sistema educacional japons103. Sobre esse assunto, o depoimento de
Tomeji Ito esclarecedor: Jud eu comecei no Japo, n? Com trs anos eu j fazia.
N? E, Kend, Sum tudo essas coisas a gente fazia quando era pequeno104.
importante no perder de vista o local onde se deu o primeiro contato
dos mestres com a arte marcial, uma vez que, na difuso da prtica no Brasil, no teria
sido pequena a sua influncia. Nesse sentido, essa influncia se expressaria basicamente
de trs maneiras: a) em relao restrio da difuso da prtica limitando-a ao interior
da colnia; b) em relao ao carter voluntrio de difuso da prtica; e c) em relao
dinmica da prtica propriamente dita, que em funo do isolamento forado nos
primeiros anos da imigrao, dificultou o contato desses mestres com as mudanas
advindas do processo de modernizao dessas artes marciais orientais, apontado no
primeiro captulo.
Assim, a prtica das artes marciais japonesas, no obstante a rgida rotina
de trabalho na lavoura, configurou-se em um momento de sociabilidade, ao mesmo
tempo em que permitiu a manuteno dos laos identitrios desses imigrantes com seu
pas de origem ou no caso dos descendentes com um aspecto da cultura do pas de
seus pais.
Nas palavras de Matsumoto: na lavora, quando eu tava trabalhando
lavora, prantar algodon, a prantar arroz. A tambm eu treinava kendo e jud, n? Foi
os dois. [...] Jud tambm, kendo tambm. Domingo assim...105.
A esse respeito o depoimento Masatoshi ainda mais detalhista,
enfatizando o fato de que os brasileiros no participavam desses momentos:
Num tinha tempo de pratic. Quando eu tinha 17, 18 anos rapaziada sabe como
que naquele tempo no tinha esporte muito. [...] fazia o coisa aqui, n? (gesticula)
O mawashi106 e s. Pelado, n? [...] Ento ajuntava a rapaziada no domingo
102
62
praticava sum. [...] tinha gente que sabia n, ento ensinava. [...] dentro da prpria
colnia. [...] Naquele tempo, brasileiro nato, ningum treinava porque ficava
pelado, n, praticamente, ficava s com essa faixa107.
107
63
Ibid., p. 163.
Traduo da palavra Bushido.
113
Vitoristas, aqueles que acreditavam que o Japo havia vencido a Guerra.
114
Derrotistas ou esclarecidos, os acreditavam que o Japo havia perdido a Guerra.
115
Cf.: LESSER, Jeffrey. Op. Cit.; CYTRYNOWICZ, Roney. Op. Cit.; DEZEM, Rogrio. Inventrio
Deops: mdulo III, japoneses: Shind Renmei: terrorismo e represso. So Paulo: Arquivo do
Estado, Imprensa Oficial, 2000; e NAKAGATE, Jouji. O Japo venceu os aliados na Segunda Guerra
Mundial? O Movimento social Shind-Renmei em So Paulo (1945 1949). So Paulo, 1988.
(Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Estudos Ps-graduados em Histria da Puc/SP).
112
64
Entre outros assuntos o prximo seguimento ir tratar brevemente de algumas questes em torno do
movimento Shind Renmei, em sua relao com o processo de desenvolvimento das artes marciais
japonesas em So Paulo, e da memria de nossos depoentes a respeito do perodo.
117
CYTRYNOWICZ, Roney. Op. Cit.
118
Reorganizada em 1938, a Delegacia de Ordem Poltica e Social tinha a funo de garantir um
ambiente de paz e trabalho rumo ao progresso. (Cf.: DEZEM, Rogrio. Op. Cit.)
119
Ibid. p.39.
120
Tomeji Ito, em depoimento ao autor, concedido em 19 de maio de 2005, na cidade de So Paulo.
65
visto que muitos desses imigrantes no mais retornaram ao bairro. Embora no tenha
solicitado aos nossos depoentes que falassem a respeito, essa hiptese no parece
totalmente infundada, pois, dos mestres de artes marciais japonesas dos quais registrei o
depoimento, a grande maioria desenvolve suas atividades em locais relativamente
distantes daquele que atualmente apontado com o bairro oriental da cidade, a
Liberdade.
Embora grande parte de nossos entrevistados realize suas atividades ou
resida em bairros considerados, na poca, distantes do centro121 da cidade, essa
caracterstica est longe de ser uma regra rgida. O mais adequado talvez seja pensar
que essa situao teve sim uma pequena influncia no episdio ocorrido durante a II
Guerra na cidade de So Paulo, mas no se pode ignorar o fato de que os imveis
situados em regies menos centralizadas possuam um valor de mercado menor. Somese a esse fato a possibilidade de que o poder aquisitivo desses imigrantes japoneses
que, da noite para o dia, foram obrigados a se retirar da Liberdade era relativamente
baixo na ocasio. Nesse panorama, a opo por um terreno mais barato, mesmo que
distante do centro, ganha uma nova dimenso. Tanto assim, que outros imigrantes
orientais que chegaram em um perodo posterior utilizaram-se da mesma estratgia, qual
seja a opo por um bairro relativamente afastado para morar ou para desenvolver seu
trabalho como mestre de uma determinada arte marcial oriental122.
Em um pas com costumes e lngua muito diferentes dos seus, e mais do
que isso, em um ambiente de discriminao promovido pelo poder pblico, como era a
cidade de So Paulo no perodo do Estado Novo (e que foi potencializado), em funo
da II Guerra Mundial, no de se estranhar que as artes marciais japonesas no tenham
rompido os limites da colnia.
121
Antes de mais nada, vale destacar que a noo de bairro distante atualmente est radicalmente
transformada em So Paulo, sobretudo a partir do advento do metr, morar longe parece estar
diretamente relacionado ao fato de ter ou no ter uma linha de metr cruzando aquele determinado bairro.
Assim, aqueles que durante a II Guerra Mundial eram considerados bairros distantes, hoje seriam
considerados, no mximo, apenas um pouco fora ou nos limites do hoje chamado centro expandido.
Com efeito, o mapeamento de nossos depoentes de origem japonesa (residentes em bairros distantes de
So Paulo) apresenta-se da seguinte maneira: Tomeji Ito (Karat Vila Mariana), Ciutoco Kogima
(Kendo Moema), Makoto Nishida (Aikido Jabaquara), Masatoshi Akagi (Sum Ermelino
Matarazzo), Kazuro Nakashima Diana (Karat Vila Prudente), Seiji Isobe (Karat Liberdade), e Koji
Takamatsu (Karat Lapa).
122
Chamo a ateno para os dois mestres oriundos de Hong Kong, que tive a oportunidade de entrevistar,
os quais se fixaram, respectivamente, nos bairros de Moema e Pinheiros, bem como para os coreanos do
sul que so uma exceo a essa tendncia, na medida em que os mesmos optaram por se fixar
predominantemente nos bairros da Liberdade e do Bom Retiro, locais notadamente mais centralizados, e
onde a colnia daquele pas se estabeleceu.
66
123
Termo utilizado para designar o imigrante japons do Ps-Guerra. (Cf.: SAITO, Hiroshi. Op. Cit.)
67
2.2 Tcnicos para Brasil. Sim, mas com alguma coisa a mais... A
memria das lutas e o perodo Ps-II Guerra Mundial.
68
outro tipo de imigrante, o imigrante Japo novo126, comea a chegar e com ele alguns
mestres que, sua maneira, comeam a delinear uma nova forma de pensar artes
marciais japonesas e sua disseminao na cidade, conforme veremos127.
Hiroshi Saito fornece importantes informaes a respeito das mudanas
em relao aos objetivos dos imigrantes japoneses quando chegaram ao Brasil, no
perodo anterior II Guerra Mundial, e que se radicaram no pas:
A dcada de 1942 a 1951 marcou, como dissemos, um branco na histria
migratria. Entretanto os dez anos que separaram as fases anterior e posterior da II
Guerra Mundial foram decisivos, por assim dizer, para a reorganizao de
comunidades de japoneses e de seus descendentes, numa base mais ou menos
autnoma. Cortados, ainda que de maneira transitria, os laos que ligavam ao seu
pas de natal e na impossibilidade de dependerem da proteo do mesmo, os
japoneses mostraram-se decididos a radicar-se no Brasil. Nesse sentido, o perodo
de guerra, longe de constituir um branco na histria da imigrao japonesa, deu
ensejo, ao contrrio, a que a colnia japonesa no Brasil tivesse desenvolvimento
assaz decisivo. A mudana verificada na atitude os imigrados, j radicados no pas,
refletiu necessariamente nos rumos de sua vida econmica sob mltiplos aspectos,
fazendo com que eles, finalmente, desistissem do intento inicial de migrao
temporria de curto prazo e planejassem suas atividades econmicas numa base de
longo prazo e de maior firmeza. Essa mudana radical que se operou na atitude dos
imigrados no surgiu de um dia para o outro, seno depois de uma sria reflexo
sobre os planos iniciais e sobre a experincia dos anos passados, bem como depois
do reexame da situao em que eles e seus filhos estavam colocados. Era inevitvel
que to radical mudana provocasse certa confuso e distrbios no seio do prprio
grupo128
69
[...] ltimo foi pra Pompia. Municpio de Pompia, encostado... Naquele tempo
chamava Vila Queiroz, hoje Queiroz. S que ns num tava na... Nesse
patrimnio. Eu tava, ns tava na beira do Rio Tiet. bem mata virgem. Morei 13
anos a de lavoura. Terra ajudou mais ou menos, n? Ento cinco anos num lugar,
arrendado, depois comprou stio de 30 alqueires. A ficou mais 5 ano. Depois
vendeu a, mudou pra esse patrimnio chama Vila Queiroz, compramo Hotel. Meu
pai comprou Hotel e tocava lavoura tambm, plantava algodo, ficou 3 anos. Eu
tava com 13 anos a no municpio de Pompia depois em 55 veio aqui. T aqui
desde 55129.
70
secos e molhados, que servia regio e hoje, no lugar desse armazm, possui um
prdio que alm de estabelecimentos comerciais abriga em seus fundos a morada no
apenas de Masatoshi, mas tambm de outros membros de sua famlia.
Um exemplo da situao encontrada pela famlia de Masatoshi na
regio de Ermelino Matarazzo pode ser observado no trecho em que o depoente nos
fala sobre a chegada da energia eltrica em sua casa.
Tinha, tinha n? S que eu paguei bastante dinheiro naquele tempo pra puxar. At
a na esquina, do outro lado da esquina tinha morador a dentro. Esquina daqui,
esquina de c tinha gente, mas nesse quarteiro no tinha gente (gesticular), nada.
Ento puxei luz de l, paguei, paguei bem, bem caro. [...]. Naquele tempo Light.
[...]. Light que cobr132.
71
forma evasiva com que o assunto foi tratado. Ao tratar dessas questes, todos se
apressaram em negar o envolvimento direto ou mesmo o envolvimento de qualquer
outro membro de sua famlia com o movimento. A idia comum foi eu nem era
contra, nem a favor, algo muito interessante, em especial quando se leva em conta a
proximidade no perodo em questo, de alguns de nossos depoentes, s regies onde
ocorreram grande parte das aes do movimento, como se observa, por exemplo, na fala
de Ciutoco Kogima, em relao atividade exercida por seu pai no municpio de
Marlia, a criao do bicho da seda:
Sempre trabalhando na agricultura. [...] Teve alguns anos num, Marlia poca da
guerra l, bicho de seda, [...] Na poca da, de guerra, o..., ento o bicho de seda era
muito usado pra fio de pra-quedas, essas coisas, n? [...] Ento ele fazia todo
aquele tratamento, fiao, tudo n. Isso que vendia... Imagino que vendia pra
algum de alguma grande fbrica que fornecia para essa grande empresa de
confeco de pra-quedas134.
72
falei isso pra amigo, os amigos meu era tudo que, pensa que t ganhando, que
ganhou, n. Ento non sei... que perdeu, ento j fica..., amigo fica assim[...] Perde
a amizade, mas non, non falou nada135.
N. de Associados
Porcentagem
Alta Paulista
43.500
37.72%
Noroeste
39.500
34,25%
Norte do Paran
10.850
9,40%
Alta Sorocabana
Total
7.500
101.350
6,50%
87,8%
73
139
140
74
Bom, a tinha o pessoal do, do, do, do, Shind Renmei ou do Haissen tinha vrias
pessoas tanto de Kendo, n, do Jud [...] tinha pessoal envolvido tanto de um lado
quanto do outro. [...] Inclusive tem uma pessoa que lutador de Kendo que tinha
amizade [...] tinha uma ligao direta com Shind Renmei, n? [...] Tinha gente
assim tambm, n? Assim como tinha do Kendo do outro lado, falando que perdeu.
Isso eu tenho conhecimento mais tarde, n. Na poca no, eu era menino, mais
tarde dcada de 80, mais tarde, 70, 80, 90... Em 66 eu j sabia que as pessoas
falavam aquele l Haissen, aquele l Shind Renmei141.
141
75
Mais do que uma metfora, a frase lave seu pescoo e nos espere
uma clara aluso a um dos pontos fundamentais do cdigo de conduta dos samurais
(Bushido), assumido na atualidade porm em uma perspectiva moderna pelos
praticantes de artes marciais japonesas, o Seppuku ou Harakiri.
No Japo feudal, o Seppuku era uma cerimnia na qual o Samurai, aps
ter purificado seu corpo, cometia o suicdio ao desferir contra seu prprio abdmen um
golpe de punhal ou espada curta. Tal procedimento resultava em uma morte longa, cuja
agonia vinha a cabo com um golpe de espada, que deveria ser desferido de forma
certeira junto base do pescoo da a necessidade de se purificar essa parte do corpo
por outro samurai e com tal refinamento tcnico que, mesmo decepada, a cabea deveria
permanecer junto ao restante do corpo da vtima. Considerada uma medida extrema, o
Seppuku s era utilizado em ocasies especficas em que a honra do Samurai houvesse
sido irremediavelmente atingida146.
Assim, na medida em que, para os integrantes da Shind Renmei, o ato
de propagar a notcia de que o Japo havia sido derrotado na guerra configurava a
desonra extrema frente aos preceitos do Bushido, no de se estranhar que a pena
145
76
capital fosse nesses casos considerada no menos que um ato de justia em nome do
imprio.
Voltando nosso olhar para o processo de disseminao das artes marciais
orientais em So Paulo, a questo que vem mente justamente a que tenta entender
como essas prticas teriam se desvencilhado desses aspectos em nada positivos, em
relao histria dos imigrantes japoneses no Brasil para efetivamente se configurarem
em uma possibilidade de experincia corporal.
Mais uma questo difcil de ser respondida. Todavia, as concluses de
Cytrynowicz (2000) a respeito de um episdio envolvendo a colnia japonesa e os
preos praticados em relao aos produtos hortifrutigranjeiros, na dcada de 1930, nos
do um forte indcio de como e sobre que valores a imagem do imigrante japons
perante a populao de So Paulo, ao longo dos anos, foi construda, sugerindo que, no
obstante as aes do movimento Shind Renmei, seus efeitos negativos foram apenas
pontuais e de curto alcance nesse processo. Uma imagem bem diferente daquela que se
observa em relao a outros grupos de imigrantes.
Mas era esta uma guerra do governo e de especuladores ou tinha ela apelo e apoio
popular? A questo no pode ser formulada independente de uma discusso sobre
como aferir os nimos populares. Vrios relatos do conta de que houve em So
Paulo e principalmente em cidades do interior do Estado ataques contra entidades
japonesas, mas que s ocorreram quando houve aberta manifestao por parte dos
imigrantes a favor do Japo ou quando da ecloso das aes terroristas e violentas
da Shind Renmei, a partir de 1945. Ou seja, quando grupos de imigrantes
japoneses assumiram publicamente posies violentas ou abertamente pr-eixo.
Fora isso, no h registros de mobilizao popular anti-japonesa. Ao contrrio,
pode-se sugerir que a organizao de trabalho dos imigrantes, o sistema de
cooperativas e o investimento familiar no trabalho eram valores positivos para a
populao paulistana e do interior do Estado e vistas como um modelo em uma
dcada, os anos 30, de forte apelo do cooperativismo. Poder-se-ia inferir tambm
que a populao apreciava e reconhecia o trabalho dos pequenos agricultores e os
preos por eles praticados. A figura do japons da feira, na dcada de 90,
dificilmente ter qualquer associao com especulao ou prtica de preos altos, o
que sugere que a etnicidade, nesse caso, uma referncia marcada por uma certa
tradio e imagem de trabalho e produo, de conhecimento e confiabilidade.
Esteretipo tambm, verdade, mas isento de conotao especulativa, como outros
grupos associados ao comrcio e a negcios especficos (judeus, srio-libaneses,
portugueses, espanhis, gregos)147.
147
77
148
78
79
155
Para responder a essa questo, minha estratgia inicial foi a utilizao dos arquivos da Junta
Comercial do Estado de So Paulo (Jucesp), situada na cidade de So Paulo, na Rua Barra Funda, n
930. A Junta Comercial do Estado de So Paulo o rgo responsvel pelo registro de abertura de
empresas do Estado de So Paulo; nela estavam cadastradas no ano de 2005, 4.356.257 empresas das
quais 3.724.197 encontravam-se ativas. Dentro da Jucesp, fui encaminhado Ouvidoria, onde fui
atendido por uma funcionria que me informou da impossibilidade de realizarmos nossa pesquisa em
funo da informatizao do sistema que impunha uma srie de restries com relao ao tipo de dados
que buscava. Assim, restou-me como opo, literalmente ,ir caa de cada um desses estabelecimentos,
um trabalho verdadeiramente hercleo e que, na ocasio, por motivos operacionais, optei por no
realizar.
156
O prprio modo como se deu o incio do trabalho de Koji Takamatsu com o Karat estilo Wad Ryu
na cidade de So Paulo demonstrado acima j constitui um bom exemplo do que estou propondo.
80
No trecho acima chama a ateno a afirmao feita por Ito de que 1950,
ano em que esse mestre inicia a prtica do Karat na cidade de So Paulo, ele j possua
uma academia de Jud na cidade. exceo de alguns anos em que Tomeji Ito
trabalhou em uma tinturaria de propriedade de sua famlia, ao rememorar fatos de sua
histria de vida, em nenhum momento foi feito outro tipo de referncia ao trabalho que
no fosse relacionado s artes marciais orientais.
Assim, quando esse mestre diz que, em 1950, ele possua uma academia
de Jud, possvel que naquele momento fosse essa a fonte de renda com a qual ele
garantia sua sobrevivncia na cidade de So Paulo. Nesse sentido, mesmo que entre
seus alunos s houvesse imigrantes ou descendentes de japoneses pensar que nesse
momento a cidade de So Paulo j oferecia a prtica das artes marciais orientais como
uma alternativa a outras formas de trabalho corporal, no parece uma hiptese
descabida.
Especificamente em relao ao Jud, existem relatos que do conta de
que a sua prtica, para alm dos limites da colnia japonesa, teria se iniciado ainda nas
primeiras dcadas do sculo XX, tendo como um dos precursores no Brasil um
imigrante japons de nome Mitsuyo Maeda, tambm conhecido como Conde Koma
um lutador que divulgava sua arte ao aceitar e vencer desafios158. Sobre Maeda e sua
reputao frente colnia japonesa do Estado do Par, local onde esse imigrante, aps
vencer seus duelos no Rio de Janeiro e em So Paulo, instala-se e comea dar aulas de
Jud, escreveu Lesser (2001):
Muitos imigrantes rapidamente exauriram seu capital e viram-se forados a vender
sua fora de trabalho como diaristas. Outros foram ludibriados por compatriotas
sem escrpulos, como o infame conde Koma. Koma, cujo nome verdadeiro era
Mitsuyo Maeda, foi para o Par em 1915 ou 1920, como integrante de uma trupe
de acrobatas, mas deixou a companhia para dar aulas de jiu-jitsu. Ele s vezes
afirmava ser empregado governo japons, ou seu cnsul no-oficial, chegando
mesmo a convencer um diplomata norte-americano e adido militar a deix-lo
liderar uma visita colnia Fukuhara. O diplomata Gerald Drew acreditava que
Koma fosse um agente secreto, trabalhando num plano japons para ocupar a
Amaznia, mas outros diplomatas americanos j no tinham tanta certeza. A
embaixada Americana em Tquio descartou o relatrio de Drew, dizendo que ele
tem tendncia de conferir s atividades dos japoneses um desnecessrio ar de
157
158
81
mistrio, uma vez que era pouco provvel que Koma tivesse qualquer relao com
o governo japons, provavelmente no passando de um China ronin, um farsante
japons que enganava imigrantes afirmando ter influncia nos meios oficiais159.
Mesmo que esse grupo tenha iniciado uma disseminao mais organizada
da prtica do Jud na cidade de So Paulo, no podemos nos esquecer das duras
restries impostas aos imigrantes japoneses durante o perodo do Estado Novo e
durante a II Guerra Mundial, episdios muito bem relatados por Cytrynowicz (2000),
Dezem (2000) e Lesser (2001). Assim, a hiptese de que esse tipo de atividade, a
abertura de academias de Jud, tenha encontrado espao para se desenvolver na cidade
de So Paulo, apenas nas dcadas de 1950 e 1960 ganha fora. Some-se a isso a prpria
organizao do Jud no Japo, no mais como arte marcial pura e simples, mas como
uma arte marcial esportivizada, que passaria a exigir sua disseminao de forma
sistemtica no maior nmero de pases em que isso fosse possvel, a propsito de sua
estreia como modalidade olmpica nos Jogos Olmpicos de Tquio em 1964161. Vale
lembrar que, para que uma determinada modalidade possa ser considerada olmpica,
necessrio que a mesma cumpra as exigncias do Comit Olmpico Internacional, entre
elas a de que essa modalidade tenha um carter mundial.
Vejamos outro exemplo presente em um trecho do depoimento concedido
por Mateus Sugizaki, no momento em que esse mestre rememora o papel de seu pai no
processo de disseminao do Jud no interior do Estado de So Paulo, mais
especificamente na cidade de Avar.
159
82
Meu pai chegou em 1932, com 14 anos de idade, n? E, ento, em 1957, eles
fundaram essa academia de jud, na cidade de Avar.[...] Isso foi logo depois que
funda..., fundaram a academia de jud em Avar. E meu pai foi pra So Paulo
praticar jud na chamada Academia Dom Pedro II, com o professor Yushu Kihara,
que na poca era 7 Dan. J faixa coral, n, faixa e 7 Dan de jud. E ele ficou
mais de um ano. Quase dois anos morando em So Paulo, abriu l um comrcio pra
ele sobreviver e praticando jud, assim com o professo Kihara. Da, claro, a
situao, a situao econmica sempre difcil, ele acabou voltando pra cidade de
Avar, mas quando ele voltou pra cidade de Avar, ele j voltou com uma bagagem
de conhecimento e de, de relacionamento com o meio do jud. Tanto que quando
ele veio em 1959, mais ou menos isso, 59, na cidade de Avar, ele j logo em
seguida props a realizao de um campeonato da Regio Sorocabana162.
83
84
Vale lembrar que nesse momento comeam a chegar mestres oriundos de outros pases do oriente alm
do Japo.
85
na primeira metade do sculo XX. Nesse sentido, essa origem no parece estar
circunscrita a uma data exata, a um momento especfico, e talvez o mais adequado seja
dizer que essa origem se distribui ao longo de todo um perodo, um espao cronolgico
localizado no fim da dcada de 1960, mas tambm, e mais vigorosamente, ao longo de
toda a dcada de 1970.
Para entender melhor esse fenmeno, preciso voltar o olhar para um
momento anterior, quando o desenvolvimento dessas prticas, no Brasil e no mundo
ganha um novo impulso, capaz de produzir um movimento de intercambio cultural entre
oriente e ocidente: o perodo Ps-II Guerra, quando o mundo assiste a um
redescobrimento do oriente, de ordem cultural, mais especificamente de sua cultura
corporal, embora no se possa dizer que essa foi a primeira vez que esse encontro
ocorreu2.
Foi aps a II Guerra e a partir desse movimento de redescoberta da
cultura corporal do oriente, que a disseminao das artes marciais orientais no ocidente
ganhou um novo e vigoroso impulso rumo sua internacionalizao sistemtica
representadas naquele momento, sobretudo pelas artes marciais de origem japonesa.
Mais do que isso, esse um encontro que se deu no sentido contrrio ao ocorrido
naquele primeiro momento, quando o esporte e os mtodos ginsticos influenciaram as
artes marciais orientais em seu local de origem, pois, nesse momento, quem vai ao
encontro do ocidente so as artes marciais orientais.
Com isso, as artes marciais orientais acabam completando um ciclo
muito parecido com o movimento de circularidade cultural proposto por Bakhtin (1987)
e citado por Ginzburg (2006)3 no prefcio de O queijo e os vermes, porm, nesse
caso, no uma circularidade entre uma cultura considerada popular e outra erudita,
mas uma circularidade entre culturas corporais com origens distintas. Afinal, tanto
quanto no caso estudado por Ginzburg, ou seja, o embate entre a cosmogonia religiosa
do moleiro Menocchio e o Tribunal do Santo Ofcio, temos a presena de uma
dicotomia cultural que no entre erudita e popular, mas entre ocidente e oriente e
tambm um movimento de circularidade entre as duas a propsito da ginstica e do
2
A ttulo de exemplo, destaco os fatos ocorridos com o Jud apresentados no captulo 1 da primeira parte
do presente estudo.
3
Para esse comentrio, parti dos apontamentos sobre a obra de Bakhtin Cultura popular na Idade
Mdia e no Renascimento, realizados por Carlo Ginzburg no prefcio edio italiana de O queijo e
os vermes. Para mais confira: GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idias de um
moleiro perseguido pela inquisio. So Paulo: Companhia das letras, 2006.
86
TAN, Kevin S.Y. Constructing a martial tradition: rethinking a popular history of karate-dou. Journal
of Sport and Social Issues, Thousand Oaks, CA, n. 28, p. 169 192, 2004.
5
Mais adiante retomarei essa tese apresentando alguns dados empricos; por hora, convm adiantar que
para fundament-la baseio-me em pesquisas realizadas no Arquivo do Estado de So Paulo a respeito dos
filmes de artes marciais orientais exibidos nos cinemas do centro da cidade de So Paulo, em pesquisas
realizadas na Gibiteca Henfil, onde localizei uma revista de estrias em quadrinhos com a mesma
temtica, em pesquisas realizadas no arquivo digital do peridico de grande circulao Veja e em sites
da internet onde foram pesquisados alguns seriados de televiso. Em comum todos esses produtos da
indstria de entretenimento possuem o mesmo espao cronolgico, as dcadas de 1960 e 1970.
87
corporais como algo estritamente oriental, uma vez que um primeiro contato dessas com
as formas ocidentais de trabalho corporal j havia se efetivado.
Em outras palavras, nesse momento o Ps-II Guerra as artes marciais,
mais notadamente as de origem japonesa, j so pensadas e desenvolvidas sobretudo
em seus pases de origem sob uma perspectiva moderna6. Afinal, o objetivo agora no
seria mais o de garantir uma preparao para a guerra e isso claro. Porm, o que ainda
no estava claro era o entendimento quanto funo dessas prticas. A que elas
serviriam, afinal?
Apesar de nesse momento e ainda hoje a resposta para esse
questionamento ainda no estar muito clara tanto mais quando se tem em mente a
multiplicidade de interesses e possibilidades de experincias a que foram vinculadas
essas prticas, ao longo do tempo e que ainda hoje podem ser observados , algo que
ganha corpo nesse momento a associao entre as artes marciais orientais e outros trs
ideais.
Os dois primeiros so mais antigos, ou seja, j estavam presentes mesmo
antes da II Guerra, mas, nesse momento, recebem um novo impulso, quais sejam: o
ideal de sade e o ideal esportivo. Porm o terceiro e mais interessante totalmente
novo ou pelo menos o seu enfoque. como uma resposta pretensamente efetiva a uma
suposta nova necessidade (ou iluso) que comeava a fazer sentido no cotidiano das
grandes cidades do ocidente: o discurso em torno dessas prticas, como forma defesa
pessoal.
Esse um discurso que coloca essas prticas como uma forma do
cidado comum defender-se do aumento da violncia urbana frente inoperncia do
aparato pblico de segurana ou da desconfiana em relao capacidade desse aparato
de conter essa crescente demanda. E assim esse discurso rapidamente passou a ser
utilizado com uma forma de propaganda para essas prticas.
Empiricamente os efeitos desse discurso ainda hoje podem ser facilmente
percebidos, na medida em que comum observar, em meio ao rol de benefcios
supostamente oferecidos pela prtica de uma determinada arte marcial oriental, a
chamada defesa pessoal. Mais do que isso, muito comum encontrar, entre os
motivos que levam as pessoas a buscar esse tipo de prtica na cidade de So Paulo, a
6
Para um melhor entendimento do sentido moderno das artes marciais orientais sugiro a leitura do
captulo 1 da primeira parte do estudo, intitulado: As filhas de Marte adotadas por Salus e Victria: da
necessidade ao sentido moderno.
88
justificativa de que com ela essas pessoas esto buscando meios para melhor se
defender da violncia urbana.
Outro aspecto importante a ser destacado, no que tange ao modo como
esse novo impulso das artes marciais orientais no perodo Ps-II Guerra se fez sentir na
cidade de So Paulo, refere-se origem de grande parte dos filmes de longa metragem e
seriados de televiso exibidos no Brasil e relacionados a essas prticas.
A partir do perodo Ps-II Guerra assiste-se a um aumento na oferta
dessas produes, com destaque para as produes total ou parcialmente financiadas
pelo capital norte-americano7. Tal constatao traz consigo o seguinte questionamento:
as representaes construdas em torno das artes marciais orientais no Brasil teriam
como base as imagens veiculadas por essas produes? Se sim, at que ponto essas
representaes teriam relao com a realidade cotidiana dessas prticas corporais? Essas
representaes teriam agido no sentido de despertar o desejo das pessoas em relao
busca pela prtica das artes marciais orientais na cidade? E quais seriam as
caractersticas desse pblico?
De qualquer maneira, esse impulso Ps-II Guerra parece ter agido no
sentido de transformar as artes marciais em um produto ao mesmo tempo local e
global, dada sua capacidade de ser consumido, independentemente da regio do mundo
em que se quisesse difundi-lo. E isso tudo graas, principalmente, associao das
tradies orientais com os elementos prprios do mundo ocidental, mais
especificamente da cultura corporal do ocidente e tambm com o auxlio da indstria de
entretenimento.
Cada questionamento levantado guarda em si ricas possibilidades de
aprofundamento. Todavia, para a presente pesquisa buscou-se na memria (passada e
presente) dos mestres de artes marciais orientais detalhes a respeito desse processo na
cidade de So Paulo. Uma vez confrontados, esses depoimentos pareceram expressar
uma disputa. A disputa por uma memria legtima em torno do processo de
disseminao das artes marciais orientais na cidade de So Paulo, com destaque para o
embate entre a tradio e o esporte.
7
So considerados clssicos do perodo: os filmes estrelados pelo ator sino-americano Bruce Lee
produzidos pela Shaw Brothers; o seriado Besouro Verde produzido pela 20th Century Fox Television
e Greenway Producion, que tinha esse mesmo ator como coadjuvante no papel de Kato; e tambm o
seriado Kung Fu produzido pela Warner Brothers e estrelado pelo ator norte-americano David
Carradine. Disponvel em: <http://www.infantv.com.br>. Acesso em 07 de fevereiro de 2009.
89
90
Apesar da generalizao contida no pargrafo acima, destaco mais uma vez que o presente estudo tratou
apenas de algumas das artes marciais mais populares em nosso pas originadas na China, Japo e Coria
do Sul.
91
nosso pas pessoas que, em sua bagagem, levavam, alm de seus bens materiais, o
conhecimento sobre uma determinada arte marcial oriental e que aqui, mais tarde,
passaram a ser chamados de mestres.
Foi possvel observar trs vertentes distintas entre os depoentes. A
primeira delas j foi apresentada na primeira parte do presente estudo e refere-se ao
caminho da colnia, a segunda seria a vertente militar, e a terceira seria aquela
cuja motivao estava na necessidade de aventurar-se. Vale lembrar que essas so
categorias que no podem ser generalizadas; entretanto, so elas as que melhor
expressam o que emergiu dos depoimentos colhidos, no que se refere s motivaes
para a vinda dos mestres para o Brasil e de sua opo pela difuso de uma determinada
arte marcial oriental.
O caminho da colnia
92
subsistncia. Em comum, todos eles possuem o lao com a colnia japonesa, seno at
os dias de hoje, ao menos at o momento em que iniciaram a prtica.
importante destacar tambm, no que se refere s artes marciais
japonesas, em So Paulo, que o tipo de recompensa recebida por cada mestre parece ter
uma forte relao com pelo menos trs aspectos fundamentais: a) a assimilao por
parte dos mestres do modus vivendi brasileiro, ou seja, a adaptao do mestre
realidade local; b) o nvel de popularidade conquistado ao longo do tempo pela prtica
propriamente dita; e c) o grau de esportivizao da prtica.
Quanto ao nvel de assimilao de aspectos referentes ao modus
vivendi pelos mestres imigrantes, ao longo dos anos de permanncia no Brasil,
sobretudo a lngua e os costumes e o tipo de recompensa adquirida atravs do trabalho
com as artes marciais japonesas, parece existir uma relao de proporcionalidade entre
os dois fatores, pois, no obstante o fato de ao buscar uma determinada arte marcial
oriental, muitas pessoas preferirem uma prtica original ou pura, necessrio que
aquele com quem se queira aprender tenha condies de transmitir seus conhecimentos
de uma forma que seja culturalmente aceitvel e inteligvel para o praticante.
Um exemplo dramtico a respeito da questo encontra-se no depoimento
de Tomeji Ito, no momento em que ele conta como se tornou mestre de Karat, em So
Paulo. Apesar de extenso, esse trecho merece ser transcrito na ntegra, pois ilustra, com
riqueza de detalhes, o que estamos afirmando:
Primeira aula que ns tivemos foi assim... Juntou mais ou menos oito alunos, tudo
faixinha branca, sem saber de nada. A chegou um rapaz magro, alto, com faixa na
cabea... Quero tudo ver com o estmago duro a, e todo mundo tinha almoado...
(risos) Ele chegou assim... Ih rapaz! Essa sua barriga t muito mole A tun! A
botou tudo pra fora... Qu isso! Voc vem no Karat de barriga cheia? Esse foi o
primeiro dia. Da segunda vez era s trs, eu e mais dois s (risos). [...] A um ms
depois tava s eu, d minha turma tava s eu. Voc tinha que ver como era difcil.
[...] Ento a razo disso que fala que era uma prtica irracional... Ele foi
aguentando, aguentando, aguentando... Ele chegou e falou: Pinatti, Karat... Ns
Brasil, pra vocs ter sucesso voc no pode fazer Karat japons assim... Karat
japons, a filosofia boa, mas a prtica de fsico no boa. A de vez em quando
ele trazia o Sensei... [...] E ele trazia os alunos dele mais adiantados pra bater no
faixa branca. A eu comecei a estudar e falei: no, no assim no. No pra
apanhar no, vamos bater tambm. Que negcio esse?. E foi a que ns
comeamos a fazer frente a frente com os alunos do Sensei Harada, certo? A gente
falou: no afasta no vai em frente e entra junto. A era dente quebrado, (risos)
sangue pro nariz (risos), era estupidez, totalmente estpido. A eu comecei a
estudar sobre filosofia... O Sensei Funakoshi fundou Karat, mas no era pra isso,
no era pra acontecer isso. O qu que ? Pra ter boa sade, para ter boa formao,
n? Ento por que eu vou atingir meu oponente? A o negcio mudou, eu comecei
93
a estudar, estudar, estudar... O Sensei Harada foi embora, o Sensei Pinatti, mudou
pra capoeira... A eu comecei a pegar todos aqueles alunos meus e comecei a
estudar com eles. No meio tinha, mdicos, dentistas, engenheiros, e falam: isso
que ns queremos. A eu criou essa Budokai9 e at hoje no parou mais10.
10
94
BOURDIEU, Pierre. Como possvel ser esportivo? In. Coisas ditas. So Paulo: Brasiliense, 1990.
Disponvel em: < http://www.cbj.com.br/novo/institucional.asp>. Acesso em 06 de fevereiro de 2009.
95
96
191814, durante o perodo em que a Coria era uma colnia japonesa, e 52 exprisioneiros da Guerra da Coria, que foram enviados pela ONU para o Brasil em 1956.
Tal como a grande maioria dos imigrantes que vieram em perodos
anteriores, esse primeiro grupo de imigrantes oficiais foi acomodado na Hospedaria dos
Imigrantes. Interessante notar que os coreanos foram o ltimo grupo de estrangeiros a
utilizar o local.
Figura 415
A naturalizao desses coreanos em japoneses deve-se ao fato de que na poca: os coreanos eram
obrigados a adotar um nome japons, o que vigorou durante todo o tempo em que a Coria foi colnia do
Japo. Tal prtica era conveniente para disfarar a origem tnica, em virtude dos preconceitos da
sociedade japonesa para com os coreanos. Essa prtica, entretanto, no foi generalizada. (Cf.: CHOI,
Keun Joa. Op. cit. p.29)
15
Fachada central da Hospedaria dos Imigrantes, atual Memorial do Imigrante localizado Rua Visconde
de Parnaba, no. 1316, no bairro da Mooca, na cidade de So Paulo, primeiro destino de grande parte dos
imigrantes que vieram para o Estado de So Paulo durante o sculo XX. (Foto retirada do arquivo pessoal
do autor)
16
CHOI, Keun Joa. Op. cit. p.53.
97
diferena cambial existente entre a moeda coreana e o Cruzeiro, que na poca era
desfavorvel a eles. Sobre essa questo comentou Augusto Myung Ho Kwon:
[...] ento j chegava ficava..., j chegava ficava pobre dez vezes menos, ento
pessoa vinha com mil dlar, 500 dlares, 150 dlares depois que vendeu casa no
tinha nada por que transformando em dlar, depois em cruzeiro no valia nada17.
Alm disso, para o grupo que optou por se fixar no campo outros
problemas surgiram, tais como a inexperincia, a diferena cultural e o
desconhecimento da lngua portuguesa; tudo isso somado, redundou na incapacidade de
adaptao realidade agrcola brasileira daquele perodo, fazendo que, com o tempo,
muitos deixassem o campo para se fixar nas cidades. Mais uma vez o depoimento de
Augusto Myung Ho Kwon nos traz indcios importantes do que foi o perodo:
[...] porque l no campo no havia nada, ofereceu terra, mas terra foi tomada por
posseiro e so como vocs bem sabem com jeitinho brasileiro coreano no pde
tomar posse, o documento que comprou era fraudulento, ento novamente essa
trilha era dificuldade dos coreanos que enfrentam no Brasil foram obrigado a morar
na cidade e na casa dos amigos, ora quem chegou aqui no Brasil
antecipadamente18.
17
Extrado da fala de Augusto Myung Ho Kwon, ento presidente da Associao Brasileira dos Coreanos,
(ABC) em 07 de junho de 2003, durante mesa redonda comemorativa aos 40 anos de imigrao coreana
no Brasil, promovida pelo Instituto de Psicologia da USP (IP-USP).
18
Ibid.
98
Cf.: HABERT, Nadine. Os anos de chumbo. In:___. A dcada de 70: apogeu e crise da ditadura
militar brasileira. So Paulo: tica, 1996 e GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. So Paulo:
Compahia das letras, 2002.
20
CHOI, Keun Joa. Op. cit. p.80.
99
21
Depoimento concedido ao autor por Augusto Myung Ho Kwon, em 12 de setembro de 2003, na cidade
de So Paulo. (Grifo nosso)
22
CHOI, Keun Joa. Op. cit., p.99.
100
Extrado da fala de Augusto Myung Ho Kwon, ento presidente da Associao Brasileira dos Coreanos
(ABC), em 07 de junho de 2003, durante mesa redonda comemorativa aos 40 anos de imigrao coreana
no Brasil, promovida pelo Instituto de Psicologia da USP (IP-USP).
24
CHOI, Keun Joa. Op. cit. p.117.
101
com a presena de qualquer pessoa que trajasse um uniforme, mesmo que fosse apenas
um motorista de nibus.
De acordo com Choi (1991), oficialmente, na ocasio em que concluiu
sua pesquisa, no havia mais imigrantes coreanos em situao ilegal no Brasil, o que
no significa que a imigrao tenha cessado.
Diante do exposto acerca da imigrao coreana, veremos agora como se
inseriram nesse processo os mestres da arte marcial Taekwondo e a justificativa para a
vertente militar do processo de disseminao das artes marciais orientais na cidade de
So Paulo.
So escassos os documentos escritos a respeito da introduo da arte
marcial Taekwondo em So Paulo; assim, a memria de um dos mestres precursores
dessa prtica no Brasil configurou-se na principal fonte a respeito do episdio25.
Afirma-se que a introduo do Taekwondo em So Paulo, bem como no
Brasil, teria ocorrido em resposta a um pedido supostamente feito ao General Choi
Hong Hi pelo governo brasileiro. No se sabe ao certo a data exata em que esse pedido
foi feito, a hiptese mais provvel que ele tenha ocorrido em 196826, por ocasio da
visita diplomtica do general Choi Hong Hi, ento embaixador da Coria do Sul ao
Brasil.
Conforme nos apontou Kun Mo Bang, teria sido em virtude das notcias
sobre o desempenho dos coreanos na Guerra do Vietn, que matavam seus adversrios
sem armas utilizando-se do Taekwondo, que o governo brasileiro solicitou a Choi
Hong Hi o envio de mestres de Taekwondo na inteno de treinar a polcia no combate
aos grupos de esquerda, na poca, envolvidos na luta armada contra o regime militar e
que, por conta disso, eram classificados como terroristas27. Conforme trechos
extrados do depoimento de Kun Mo Bang em dois momentos, 1998 e 2003:
Ento, ns viemos aqui no Brasil pra ensinar policial militar que nosso convite foi
25
Falarei dos depoimentos concedidos por Kun Mo Bang em duas ocasies, 14 de novembro de 1998 e
11 de outubro de 2003, ambos na cidade de Marlia-SP.
26
A eleio do ano de 1968 como o momento em que Choi Hong Hi vem ao Brasil est fundamentada no
depoimento do mestre Kun Mo Bang, que, no obstante afirmar que Mdici teria sido o interlocutor de
seu mestre, afirma tambm que sua emigrao, bem como a do mestre Sang In Kim, seu companheiro na
viagem, teria acontecido trs anos aps esse primeiro contato, em 1971. Entretanto, vale lembrar que
Mdici assumiria apenas em 69 a presidncia da Repblica. (Cf.: GASPARI, Elio. A ditadura
escancarada. So Paulo: Compahia das letras, 2002)
27
Os assim batizados pelo governo militar eram os grupos e organizaes de esquerda que, no perodo
entre 1969 e 1974, empreenderam a resistncia armada contra a ditadura. (Cf.: HABERT, Nadine. Op.
Cit. e GASPARI, Elio. Op. Cit.)
102
68, n. Sessenta e oito eu... Aquele poca no tinha Federao Mundial, tinha
Federao Internacional, n? Federao Internacional presidente era General Choi
Hong Hi, ele 68 ele foi nomeado do embaixador da Malsia a ele tava trabalhando
com embaixador Malsia, a deu oportunidade que ele recebeu do presidente pra
viajar mundo, parece que tinha algum negcio, no sei. Ele chegou Brasil... [...]
ento chegou aqui no Brasil presidente Mdici, ento conversando, acho era
sobre guerra da Vietn, Guerra da Vietn: Ah coreano soldado que matou 28
vietcongue sem armas, o que isso? Choi Hong Hi que do exrcito, que ns
mandamos, Choi Hong Hi mandou um tropa de instrutores do Taekwondo para o
Vietn, ento explicando. Ah ento por que no manda aqui Brasil? Brasil ns
estamos sofrendo terrorismo que terrorismo que usava arma metralhadora mata...
Pegar um e pegava metralhadora e civil que no tem nada a ver t morrendo, ento
se voc mandar esses tcnicos em Taekwondo poderia sem matar civil pegar o
terrorista28.
28
103
Mas como Brasil no tava bem divulgado na Coria, ento a maioria no quis, no
conheciam o Brasil direito. O Brasil s Amaznia, mato. Conheciam muito
pouco... s Pel, Copacabana, no sabiam direitinho como era o Brasil. Tambm
salrio Brasil aquela poca era muito barato. Treinaram vrios homens
transformando-os em instrutores internacionais, mas ningum quis vir para o
Brasil. E a ficou vai, no vai, vai, no vai, e a decidimos31.
104
34
Depoimento concedido ao autor por Kun Mo Bang, em 14 de novembro de 1998, na cidade de Marlia.
Esse episdio apontado como a maior mobilizao do II Exrcito. Foram feitas buscas por toda a
regio com homens e helicpteros, entretanto o objetivo de capturar Carlos Lamarca no foi alcanado.
(Cf.: GASPARI, E. Op. Cit.)
36
Nessa chcara quatro membros da Vanguarda Popular Revolucionria (VPR) foram surpreendidos e
presos quando terminavam de pintar um caminho, seguindo os padres utilizados pelo Exrcito
Brasileiro, que seria utilizado para roubar armamentos do 4o Regimento de Infantaria. (Cf.: Ibid.)
37
Ibid.
38
Kun Mo Bang, em depoimento concedido ao autor, em 11 de outubro de 2003, na cidade de MarliaSP. (Grifo nosso)
35
105
Ibid.
106
107
de suas demonstraes tal como no caso das artes marciais japonesas que nesse
primeiro momento a arte marcial comearia a se tornar conhecida.
[...] a gente sabe hoje, entre outros grandes mestres vieram, mestre Sang In Kim,
alm do..., depois do mestre Sang Min Cho, mestre Kum Joon Kwon, mestre Kim,
Kun Hwan Kim, Kun Mo Bang, todos na minha opinio eram grandes artistas
marciais cada um com a sua caracterstica tcnica, mas foram pessoas que
realmente nesse primeiro momento fizeram um trabalho fabuloso, porque faziam
demonstraes espetaculares e que impressionavam, eu posso estar esquecendo
alguns nomes, mas basicamente so esses, alm de outros que depois foram pro
Rio de Janeiro que passaram por aqui, o Woo Jae Lee, o Gro mestre Woo Jae Lee,
quase todos os mestres passaram por aqui na primeira academia de Taekwondo do
Brasil que hoje no existe mais que era a academia do mestre Sang Min Cho [...]42.
Outra questo relevante que refora a tese de uma vertente militar para
as artes marciais orientais em So Paulo ocorreu em 1972, quando o General Choi Hong
Hi foi exilado da Coria do Sul em virtude de uma suposta relao com o comunismo,
fixando-se no Canad, fato que desencadeou o processo de criao, em 1973, com
auxlio financeiro do governo da Coria do Sul, da WORLD TAEKWONDO
FEDERATION (WTF), tendo na figura de Un Yong Kim seu primeiro presidente.
Esse foi um dos momentos decisivos no processo de disseminao do
Taekwondo em So Paulo, pois, uma vez concretizada a sada de Choi Hong Hi da
Coria do Sul, os mestres coreanos, discpulos diretos de Choi, que aqui estavam,
passariam por um momento de grande incerteza com relao aos rumos do Taekwondo.
Tornaram-se rfos da noite para o dia, perderam seu referencial, e ficaram lanados
prpria sorte em uma terra estrangeira.
Nesse panorama, sua deciso pendeu em favor dos laos com sua terra
natal. Assim, com a criao da WTF em 1973, os mestres coreanos, em consenso,
decidem se afastar da ITF, filiando-se primeira.
A esse respeito, pudemos perceber na fala de Bang que, a favor de sua
deciso que, inegavelmente, representou uma quebra de hierarquia um princpio
fundamental nas artes marciais orientais , pesaram fundamentalmente os fatores de
ordem cultural, a ao do Consulado da Coria do Sul e a preocupao quanto ao
desenvolvimento do Taekwondo no Brasil, no que se referia participao em
campeonatos internacionais.
42
108
109
efetivado, de acordo com a fala de Bang, atravs de cartas nas quais Un Yong Kim
propagandeava a evoluo da entidade da qual era presidente.
interessante notar tambm que foi s a partir de uma tradio cultural
coreana que se conseguiu passar por cima de outra tradio cultural coreana, o
respeito hierarquia e a devoo ao mestre. Uma rocha quebrando outra.
Uma luta em certa medida desleal, pois, contra a tradio cultural de
respeito hierarquia e de devoo ao mestre, ainda se somariam o sentimento
anticomunista de Bang, por conta da ligao construda entre Choi Hong Hi e o
comunismo, na qual a ao do consulado teria sido fundamental, e a preocupao de
Bang com o desenvolvimento do Taekwondo no Brasil, isso sem falar de seu
sentimento em relao Coria do Sul.
O ponto culminante de todo esse processo, que afastou os mestres
coreanos da ITF a favor da WTF, teria se dado, supostamente, em 1973, quando, por
ocasio da vinda do prprio General Choi ao Brasil, esses mestres tiveram a
oportunidade de comunicar sua deciso.
Durante a entrevista, Bang demonstrou grande dificuldade em rememorar
os detalhes desse encontro, no esclarecendo, por exemplo, quantos teriam sido os
mestres que, ao lado dele, participaram dessa conversa com Choi Hong Hi, e ainda
elegendo o ano de 1973 em tom de dvida. Entretanto, Bang fez referncia a pelo
menos mais dois mestres, Sang Min Cho e Sang In Kim.
Eu conversei: o senhor meu mestre, mas eu t aqui, j saiu do brao do pais,
ento eu responsvel pra Brasil, futuro Brasil, ento eu concordo tudo, origem o
senhor tudo, meu mestre o senhor tudo, mas parte do burocracia para Brasil acho
que bom ligar pra Federao Mundial. Por qu? Federao Internacional
diminuindo, ligando comunista, eu tambm no gosto de comunista, certo?46
Outro detalhe com relao a esse encontro foi o fato de Choi Hong Hi ter
conversado separadamente com cada um desses mestres. Entretanto, a deciso j havia
sido tomada anteriormente, quando a convite do Consulado da Coria do Sul, esses
tiveram a oportunidade de assistir exibio de uma gravao na qual Choi Hong Hi
teria consolidado sua traio Coria do Sul e afeio ao comunismo.
Mais do que uma simples mudana de nome, a opo WTF desencadeou
uma srie de mudanas no que se refere administrao, bem como dinmica dessa
46
110
Yun Sik Kim, em depoimento concedido ao autor, em 25 de maio de 2007, na cidade de So Paulo.
111
112
no desejo/necessidade de aventurar-se. Alm disso, esse fato fez com que esses
depoentes construssem uma histria bem diferente daquela construda pelos imigrantes
chineses do continente, sobretudo, no que se refere aos motivos de sua vinda.
O primeiro imigrante de Hong Kong com quem estabeleci contato
chama-se Yip Fu Kwan. Mestre Yip, como conhecido, concedeu seu depoimento no
Instituto Yau-Man de cultura chinesa no Brasil localizado na capital paulista. Um
local onde, alm do ensino da arte marcial Kung Fu, estilo Yau-Man, esse imigrante
exerce tambm a medicina tradicional chinesa como atividade profissional52.
Nascido em Hong Kong, em 1946, Mestre Yip, j na infncia, iniciou a
prtica do Kung Fu; na verdade, seu depoimento revela que a vida desse imigrante
durante seu processo de formao foi marcada pelas duas atividades, que mais tarde no
Brasil, durante a vida adulta, se configurariam em suas atividades profissionais.
[...] desde criana j comea a praticar arte marcial, mas poca pratica arte marcial
nunca pensar que vai ensina com que t, por que eu gosto esporte e mais ainda arte
marcial gosto muito. Ento poca arte marcial j comeava aprender alguma coisa
de... tipo de... medicina tradicional chinesa, n? E depois eu reunindo todo mundo
na famlia so mdico alopata, eu tambm faz curso. Mas a depois eu acha eu deve
pra aperfeioar mais ainda, eu faz mais curso, especial curso da medicina
tradicional chinesa53.
52
No de no ser esse o seu plano inicial, tal como a grande maioria dos depoentes que emigraram aps a
II Guerra, mestre Yip ir se enquadrar, mesmo que parcialmente, no perfil j destacado de mestre
profissional, pois sua atividade profissional na cidade, apesar de no estar exclusivamente calcada no
ensino do Kung Fu, tem nessa arte marcial um de seus principais elementos.
53
Yip Fu Kwan, em depoimento concedido ao autor, em 15 de setembro de 2004, na cidade de So Paulo.
54
Sobre o perfil dos imigrantes chineses do Ps-II Guerra confira: APOLLONI, Rodrigo Wolff, Op. Cit.
2004.
113
desejava depender de seus familiares para sobreviver, algo que revela um trao
importante de sua personalidade.
O segundo aspecto est relacionado sua vida amorosa, pois na poca
Yip queria se livrar do peso de estar namorando a filha de uma pessoa influente da
cidade de Hong Kong, situao que reduzia sua identidade, pois fazia com que ele fosse
conhecido como o genro dessa pessoa e no Yip Fu Kwan, o mdico e mestre de Kung
Fu.
Na verdade esses dois motivos demonstram o anseio de Yip Fu Kwan em
construir sua prpria histria, sua prpria identidade nem que para isso fosse necessrio
viajar milhares de quilmetros e se instalar em um outro pas e, vale dizer, em uma
outra cultura, completamente diversa daquela na qual cresceu e se formou.
[...] famlia at de econmico timo, tudo bom e nico coisa porque eu no gosto
de depender do famlia [...] E segundo tem mais uma coisa tambm porque eu tinha
uma namorada [...] Era uma moa muito rica e era muito bom, s que eu no sei se
um dia... Porque todo mundo sempre pensa: ah voc vai casar com uma mulher
rica tal, tal, tal... E todo mundo pensa: a casar moa Ken E todo mundo fala
famlia nome. A pensei: um dia se eu casa com ela ningum vai conhecer meu
nome Yip Fu Kwan, todo mundo s sabe eu sou marido do Ken, ou genro do Ken
Ah! Isso tambm no legal pra mim55.
Mas por que o Brasil? O que esse imigrante encontrou aqui, que no
encontrou em outros lugares? Sobre esse aspecto, importante esclarecer que, antes de
chegar ao Brasil, Yip passou tambm por, pelo menos, mais sete pases, tendo iniciado
sua jornada em 1970.
Sobre a grande mobilidade de Yip Fu Kwan, trs detalhes merecem ser
destacados: a) o fato de seu passaporte ser de Hong Kong, ou seja, Britnico o que lhe
garantia mobilidade em meio a um mundo marcado, na poca, 1970, pela chamada
55
56
114
Guerra Fria; b) o fato de ele, tal como os demais habitantes de Hong Kong, ter sido
alfabetizado tambm em ingls; e c) o fato de esse mestre, tal como a sua famlia, gozar
de certa estabilidade econmica.
A Austrlia foi seu primeiro destino, foi tambm o local onde esse mestre
estrategicamente chegou a cogitar a hiptese de se casar para adquirir o visto
permanente, mas desistiu, pois, apesar de ter encontrado mulheres dispostas a ajud-lo
nisso, casar-se no estava nos seus planos naquele momento.
O segundo pas foi os Estados Unidos da Amrica, local onde Yip
permaneceu durante apenas trs meses, pois no gostou do que viu, especialmente com
relao ao tratamento dispensado aos que, por um motivo ou por outro, no se
enquadravam no padro desejado.
[...] Estados Unidos, vamos l pra Amrica do Norte, vamos l pra Amrica, n? A
chegou Amrica do Norte eu no gosto muito porque l pessoa muito tambm meio
frio, n? Tipo de pessoas totalmente diferente e tambm meio racista aquele tambm
no fcil [...]57.
Ibid.
115
mim compra isso, pede isso. A eu meio assim... O qu isso pxa vida. Essa
pessoa muito assim... Tipo de malandragem58.
Ibid.
Ibid.
60
Ibid.
59
116
Ibid.
Ibid.
117
63
118
Os pais, por exemplo, so responsveis por cuidar dos filhos at atingirem uma
idade em que possam cuidar de si prprios. Os filhos, em troca, tm uma dvida de
gratido com os pais por toda a vida e depois. Devem obedecer-lhes na juventude,
cuidar deles na velhice e observar os rituais de sepultamento, luto e sacrifcio
quando morrem. (...) a relao pai-filho estabelece os valores e atitudes apropriados
que devem ser seguidos na relao governante-sdito. Confcio acreditava que um
bom filho dificilmente seria um sdito rebelde, enquanto um bom pai dificilmente
seria um governante tirano. Assim, a capacidade de cumprir as responsabilidades
das relaes ntimas tambm refora a capacidade de cumprir outras
responsabilidades sociais, contribuindo para a harmonia e a estabilidade da
sociedade como um todo64.
STEVENSON, J. As palavras de Confcio. In. ___. O mais completo guia sobre filosofia oriental.
So Paulo: Arx, 2002, p. 269-270.
65
Thomas Lo Siu Chung, em depoimento concedido ao autor, em 25 de maio de 2007, na cidade de So
Paulo.
66
Ibid.
119
Ibid.
Ibid.
69
Ibid.
68
120
sabendo que ele pratica Wing Chun n. [...] A eu comecei a aprender com ele.
Todo dia. [...] e eu tenho mais de trs colega de outro departamento. A pedi a ele
pra d aula pra gente, n. A ele aquele poca ele, ele num dava aula publicamente,
contrato. Ento ele deu aula pra ns trs. A quatro pessoa e eu sou um que fica
tempo todo70.
70
Ibid.
Ibid.
72
Ibid. (grifo nosso).
71
121
122
Fig. 573.
123
difcil imaginar que o empenho de alguns poucos mestres imigrantes orientais, muitos
dos quais com pouca ou nenhuma fluncia no idioma portugus e, mais ainda, sem
nenhum conhecimento prvio a respeito dos costumes do povo brasileiro, pudesse por si
s e em um perodo de tempo relativamente curto74 estabelecer um caminho oriental
para a cultura corporal em uma cidade como So Paulo.
Assim, para que esse trabalho pudesse lograr sucesso era necessrio que
a cidade lhes oferecesse um clima favorvel. A esse respeito, durante a dcada de 1970,
possvel verificar a veiculao de um grande nmero de anncios de filmes de longa
metragem, tendo como tema as artes marciais orientais. Alm disso, temos as histrias
em quadrinhos produzidas no perodo sob o mesmo argumento, isso sem mencionar os
seriados, como por exemplo, o O Besouro Verde e Kung Fu, que j na dcada de 60
podiam ser assistidos nas televises brasileiras, todos esses elementos ajudando a
compor um ambiente favorvel para a difuso das artes marciais orientais na cidade.
Nesse sentido, no demais destacar que nossa pesquisa esteve centrada
em dois dos elementos acima indicados, os anncios de jornal e as revistas de histrias
em quadrinhos. Quando colocados em contraste com os depoimentos, esses produtos da
indstria do entretenimento fazem surgir um aspecto importante do processo de
disseminao das artes marciais orientais em So Paulo, comprovando a tese de que nas
dcadas de 60 e 70 a cidade mostrava-se como terreno frtil para a edificao do
caminho oriental em meio s possibilidades de experincias corporais instaladas
anteriormente.
Entretanto, importante destacar duas questes, a primeira refere-se ao
fato de que esses produtos da indstria do entretenimento foram importados em sua
grande maioria dos Estados Unidos da Amrica. Em outras palavras no se pode perder
de vista que esses filmes de longa metragem, seriados de televiso e revistas em
quadrinhos fatalmente expressavam uma viso norte-americana das artes marciais
orientais. Com efeito, a segunda questo refere-se justamente relao entre a forma
como as artes marciais orientais eram veiculadas nesses filmes, seriados e revistas em
quadrinhos e a realidade cotidiana das academias, mantidas por mestres dessas artes na
cidade de So Paulo.
De qualquer maneira, a julgar pelo grande nmero filmes que estiveram
74
Para esse comentrio, estou levando em considerao a comparao entre o que hoje se observa em
relao a popularidade das artes marciais orientais na cidade de So Paulo e perodo relativamente curto,
menos de 50 anos, para isso ocorresse.
124
em cartaz nos cinemas do centro da capital paulista na dcada 1970, de se supor que
havia um grande interesse por parte do pblico paulistano por essas produes75. Em
minha pesquisa junto ao acervo do jornal Notcias Populares do Arquivo do Estado de
So Paulo foram analisadas todas as edies publicadas nas segundas-feiras76 dos meses
de maio, junho e julho em toda a dcada 1970 e digitalizados alguns dos mais de 90
anncios de filmes encontrados, para que pudesse proceder anlise de seus contedos
(textos e imagens). Alm disso, nos foi possvel digitalizar uma entrevista que tratava de
um dos filmes de Bruce Lee exibidos no perodo.
Alm dessa pesquisa realizada no acervo do jornal Notcias Populares,
foi realizada outra, seguindo os mesmos critrios da primeira no acervo do jornal Folha
de So Paulo. Chamou a ateno o fato de que esse peridico limitava-se a apresentar
uma pequena tabela dos filmes que estavam em cartaz, sendo raros os anncios com o
padro veiculado pelo jornal Notcias Populares. Assim, questiono se o tipo de
propaganda veiculada nesses peridicos no teria relao com o tipo de pblico alvo
desse gnero de filme.
Fig. 677.
75
125
78
Julgamento baseado nos depoimentos de mestres de Karat que chegaram a So Paulo ainda durante a
dcada de 1950.
79
LESSER, Jeffrey. Uma dispora descontente: os nipo-brasileiros e os significados da militncia
tnica 1960-1980. So Paulo: Paz e Terra, 2008, p.63.
126
Fig. 780.
80
81
127
Fig. 882.
O
Nacional
Kid.
Disponvel
<http://www.minhainfancia.com.br/imagens/seriados/national_kid.jpg>, acesso em 20/02/2009.
83
APOLLONI, Rodrigo Wolff. Op. Cit. p. 78.
84
Cujo maior destaque em nossa avaliao seria atribudo aos japoneses.
em:
128
Fig. 986.
129
88
130
Fig. 1090.
90
131
92
Apesar de ter encontrado apenas esse peridico, destaco que O Judoka no o nico quadrinho do
gnero veiculado no Brasil durante esse perodo. Em sua pesquisa sobre o Kung Fu praticado no Brasil e
os elementos da cultura oriental, Apolloni menciona a existncia da revista em quadrinhos Kung Fu,
tambm publicada pela Editora Brasil-Amrica, nos anos de 1974 e 1975. Cf.: APOLLONI, Op. Cit.
93
A Ebal foi a maior e mais importante editora de quadrinhos do Brasil, tendo sido criada em 1945 por
Adolfo Aizen. A criao da editora foi quase uma decorrncia do grande sucesso do Suplemento Juvenil.
A Ebal publicou no Brasil inmeros autores estrangeiros como: Walt Disney (Selees Coloridas), Alex
Raymond (Flash Gordon), Hal Foster (Prncipe Valente), Lee Falk e Phil Davis (Mandrake), Lee Falk (O
Fantasma), Chester Gould (Dick Tracy) e Charles M. Schulz (Peanuts), alm das revistas da DC Comics
e, mais tarde, Marvel Comics. [...] Alm do material importado, a Ebal, valorizando os artistas brasileiros,
publicou dezenas de talentos em revistas como lbum Gigante, Srie Sagrada, que publicava biografias
de santos catlicos, a Edio Maravilhosa (mais tarde reeditada como Clssicos Ilustrados), que publicava
verses quadrinizadas de obras de escritores nacionais, como Jos de Alencar, Euclides da Cunha e Dinah
Silveira de Queiroz, ou a publicao de adaptaes de fatos histricos como as sries Grandes Figuras do
Brasil, Episdios e Histria do Brasil, esta ltima com textos do acadmico Gustavo Barroso e extensa
pesquisa iconogrfica (que consumiu oito anos de trabalho) de Ivan Wash Rodrigues. (Disponvel em:
<http://www.gibindex.com/enciclopedia/br/e/46>. Acesso em: 04/10/2004).
94
Para obter acesso ao material na forma que desejava, foi necessria a produo de um documento em
papel timbrado da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), com as assinaturas da
coordenadora do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria, de minha orientadora, alm de minha
prpria assinatura. Contudo, esse documento, por si s, no garantiu acesso ao peridico, pois ainda foi
necessrio submet-lo comisso administrativa do Centro Cultural So Paulo, processo que demandou,
aproximadamente, um ms.
132
Fig. 1195.
Logo na sua estria, a revista traz, em seu editorial, um texto que ilustra a
necessidade de alavancar a nova publicao, fazendo uso de vrios elementos. A
cultura corporal oriental, como no poderia deixar de ser, est presente na meno das
artes marciais jud, karat e jiu-jitsu, prticas que j gozavam de certa popularidade,
alm, claro, da prpria indumentria de nosso heri. Em outra frente, temos tambm
um paralelo feito entre O Judoka e outras publicaes de heris, sucessos de vendas nos
Estados Unidos da Amrica e bem conhecidos do pblico brasileiro, ali arrolados com a
ntida inteno de emprestar seu prestgio ao novo heri que nascia. Vejamos o texto
na ntegra:
Dono de uma tcnica de fazer inveja aos maiores mestres do jud, o heri desta
revista, sempre que necessrio, usa seus conhecimentos em defesa dos fracos e dos
oprimidos. Jud-Master, que na vida real Rip Jagger, respeitado mesmo pelos
mais geis Campees do Sol Nascente, com os quais desenvolveu suas habilidades
e conhecimentos de jiu-jitsu. Tanto o jud como o karat so empregados por ele
com grande talento e preciso. Um revlver, um punhal ou um objeto contundente
tem o mesmo valor para nosso heri, que no se detm diante de nada quando h
95
Capa da primeira edio da revista de estrias em quadrinhos O Judoka, publicada no Brasil pela
editora Brasil-Amrica (EBAL).
133
Tal como ocorreu com alguns dos filmes exibidos na cidade So Paulo, o
peridico tambm pode ser considerado um hbrido, pois os nmeros traduzidos contam
as aventuras de um sargento do exrcito norte-americano que, disfarado, utiliza seus
conhecimentos em artes marciais para derrotar seus inimigos, representados por
soldados do exrcito japons.
Fig. 1297.
134
Brasil98. Nesse momento, h uma mudana radical no argumento das estrias. O heri
deixa de ser representado por um soldado, para se tornar um jovem estudante e a sua
roupa passa a conter as cores e a forma da bandeira nacional brasileira. E se, nos
nmeros traduzidos, os inimigos eram do exrcito japons, nos escritos e desenhados no
Brasil, eles passam a ser representados por membros de gangues urbanas e ladres
comuns. Dessa forma, o hibridismo deixa ser entre a cultura norte-americana e oriental,
para ser colocado entre a ltima e a cultura brasileira.
Fig.1399.
No Brasil as histrias foram escritas por Pedro Ansio e desenhadas inicialmente por Mrio Jos de
Lima e Eduardo Baron.
99
O JUDOKA. Rio de Janeiro: Editora Brasil-Amrica, n.7, 1970.
135
100
Nos nmeros subsequentes da revista, a personagem Lcia, alm de se tornar a namorada de Carlos,
O Judoka, ir tambm tomar parte nas estrias como a Mulher Judoka, levando-me a crer que o
quadrinho tambm fazia sucesso entre o pblico jovem feminino, ou ao menos que essa era uma inteno
de seus editores.
101
O JUDOKA. Rio de Janeiro: Editora Brasil-Amrica, n.7, 1970.
136
Fig. 14102.
No trecho acima, interessante notar, alm da incontestvel posio prregime militar adotada pela EBAL, o final do texto quando diz tratar-se de [...] fatos
da Histria Ptria, narrados com serenidade, o que nos leva a questionar: que fatos
seriam subtrados dessa histria ou adicionados a ela em nome da propalada
serenidade?
Um fato possivelmente abafado em favor da serenidade, talvez tenha
sido a ao do movimento estudantil, que, conforme se pode observar no depoimento de
Mateus Sugizaki, estava em plena ebulio no perodo. Alm disso, chama a ateno o
fato de esse mestre ter utilizado o Jud como justificativa para o seu afastamento das
102
103
137
138
Fig. 15106.
105
106
139
Fig. 16107.
De tudo que foi exposto a respeito de O Judoka, cabe destacar que, alm
de oferecer uma contribuio importante ao nosso objeto de estudo, o trabalho com esse
tipo de material tornou possvel uma nova e extremamente rica forma de apreenso do
cotidiano da poca.
Essa riqueza emergiu uma vez que, por meio da anlise dos supostamente
inocentes gibis, foi possvel ter acesso aos ecos do universo infanto-juvenil de outras
pocas. Os esteretipos e costumes presentes nas estrias so representativos das
sociabilidades que faziam parte do viver urbano no perodo. Assim, a simples existncia
desse peridico demonstra que no foi curto o alcance das artes marciais orientais no
pas.
Depois de analisar esses produtos da indstria do entretenimento
(anncios de filmes e O Judoka), interessante tentar entender a forma como os mestres
de artes marciais entrevistados acreditam terem sido beneficiados por esse ambiente
favorvel.
A esse respeito o depoimento de Lucy Nakano, mestre brasileira de
Karat, nos d algumas pistas, pois os filmes de artes marciais orientais, sobretudo os
estrelados por Bruce Lee, tiveram grande influncia no fortalecimento de seu interesse
pelo Karat, em suas palavras:
Como tinha na minha poca o Bruce Lee, ... [...] A gente saa da academia,
juntava todo mundo e assistia, o que tava passando [...]. Porque quando tinha um,
ficava aquele au todo, n. Vamos que est passando o filme do Bruce Lee108.
107
Ibid.
140
108
141
parte criou-se um mito durante Guerra do Vietn que com tudo isso vieram os
mestres de Taekwondo da Coria pra Brasil, como imigrantes111.
111
142
113
143
os
desdobramentos
advindos
da
ocidentalizao.
Algumas
se
Nesse ponto tentamos evitar generalizaes por termos estudado apenas parte do total de artes marciais
orientais existentes na cidade de So Paulo.
144
115
145
uma roupagem moderna116 aos antigos mtodos de ataque e defesa originados nos
pases do oriente, em uma perspectiva belicista e que, atualmente, esse processo
coloca dvidas quanto ao qu de oriental essas prticas ainda reservariam.
Assim, o presente captulo discutir, com base na memria de mestres de
artes marciais orientais, os seguintes elementos do que batizei de processo de
ocidentalizao brasileira: a) as condies materiais necessrias prtica; b)
esporte, sade e defesa pessoal; e c) artes marciais orientais em So Paulo entre a
tradio e a esportivizao.
Mais uma vez, destaca-se que essas categorias no possuem a pretenso
de serem generalizantes e, mesmo que possam ser observadas como alternativa de
explicao para o processo de ocidentalizao dessas prticas em So Paulo,
importante frisar que, ao nosso juzo, o mais apropriado seria dizer que elas to
somente nos auxiliaram na construo de um sentido plausvel para os indcios desse
processo, presentes na memria de nossos depoentes, pois, mais do que retratar
situaes passadas, esses indcios retrataram tambm situaes atuais vividas por
esses mestres.
116
Conforme destacado na introduo, nesse ponto, nos apoiamos fundamentalmente nos estudos
realizados por Norbert Elias em relao ao papel dos esportes modernos no processo civilizador europeu,
algo que foi de grande importncia tambm no processo de desenvolvimento das demais sociedades
ocidentais bem como nos estudos de Pierre Bourdieu em relao ao esporte moderno pensado como um
campo especfico, em que diferentes agentes sociais atuam no sentido de promover a construo de
estruturas estruturantes para a organizao das prticas material e simbolicamente algo que seguindo
uma cronologia especfica, ou seja, uma cronologia que mesmo relacionada s demais dimenses da
sociedade possui seu prprio tempo e suas prprias regras, gera o surgimento de mercado relacionado
tanto do ponto de vista do consumo quanto do ponto de vista do surgimento de profissionais direta ou
indiretamente relacionados. (Cf.: BOURDIEU, P., Op. Cit., Op. Cit.; BOURDIEU, P. 1983. Como
possvel ser esportivo. In: Questes de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero. So Paulo: Brasiliense,
1990, p.208; ELIAS, Norbert. Op. Cit. 1994, v1. e ELIAS, N. & DUNNING, E. A Busca da Excitao.
Lisboa: DIFEL, 1992.)
146
117
147
Fig. 17120.
118
148
Fig. 18121.
Fig. 19122.
121
Kimono
utilizado
no
Aikido.
Disponvel
em:
<http://www.kimonosshizen.com.br/aikido/hakama/fotos/grande1_2.jpg >. Acesso em 03/03/2009.
122
O shinai utilizado no Kendo. importante salientar que o shinai apenas um dos equipamentos
utilizados na prtica do Kendo; alm dele, existe ainda uma srie de equipamentos de proteo, uma
espcie de armadura, que tem como funo garantir a integridade fsica do praticante. Disponvel em:
<http://www.evl.uic.edu/spiff/KendoBlog/images/Shinaiparts.jpg>. Acesso em 03/03/2009.
149
Fig. 20123.
123
O
mawashi
utilizado
no
Sum.
Disponvel
em:
<http://www.sumobasho.com/sumobasho/images/sumo2.jpg>. Acesso em 03/03/2009.
124
Uniforme para a prtica do Taekwondo.
125
Um tecido leve, se comparado aos kimonos utilizados no Jud, que so confeccionados com tecido de
algodo tranado e por isso mais pesado, para resistir aos golpes utilizados durante a prtica.
150
Fig. 21126.
Fig. 22127.
O
dobok
utilizado
no
Taekwondo.
Disponvel
em:
<http://images.americanas.com.br/produtos/item/573/4/573486gg.jpg>. Acesso em 03/03/2009.
127
Kimono
utilizado
no
Karat.
Disponvel
em:
<http://www.kimonosshizen.com.br/karate/lonak10/fotos/grande1_3.jpg>. Acesso em 03/03/2009.
128
Kun Mo Bang, em depoimento concedido ao autor, em 11 de outubro de 2003, na cidade de MarliaSP. (Grifo nosso.)
151
129
A pennsula coreana esteve sob domnio japons de 1910 a 1945. (Cf.: CHOI, Keum Joa. Op. Cit.)
Mais especificamente no arquiplago Ryu Kyu. Para mais, confira o captulo I da primeira parte do
presente estudo.
131
Masatoshi Akagi, em depoimento concedido ao autor, em 13 de maio de 2005, na cidade de So Paulo.
130
152
153
[...] Shinais tambm, espada de bambu n. Ento tamo importando com preo
bastante razovel que por sorte poderia assim, tem um..., no pode muito. Tem a
fiscalizao n. [...] Ento tem uma parte que faz como doao e tal, a foi
passando. Agora que t comeando, muita quantidade... [...] a fiscalizao t
comeando a pegar. Ento t pensando em abrir uma empresa pra importar
legalmente. [...] Pra popularizar. Porque vindo normalmente, porque no uma
modalidade olmpica, no tem iseno de imposto. Eles no so bobo, ento tem
imposto normal, igual aos outros133.
154
ruim. [...] O azul tambm, meu pai foi o primeiro a fazer. O azul no tinha nem
sido aprovado ainda e a gente j ficou sabendo porque a gente tinha uns contatos
dentro de Federao Internacional e tudo... [...] a a gente lanou o kimono azul em
93. Porque aqui no Brasil ningum tinha nem ouvido falar em kimono azul. Branco
era quase uma novidade135.
Ibib.
155
156
157
Mas qual seria esse perigo na segunda metade do sculo XX? Para
alguns, esse perigo seria representado pelo aumento na violncia urbana, e assim, esse
passaria a ser o novo sentido dado capacidade de promover defesa pessoal inerente s
artes marciais orientais, em uma perspectiva moderna.
Esses trs elementos (esporte, sade e defesa pessoal) foram
referenciados por nossos depoentes. Isso ocorreu de tal forma que nos pareceu ser
possvel afirmar que essas so, na atualidade, dimenses importantes que envolvem a
prtica das artes marciais orientais em So Paulo.
O trecho extrado do depoimento de Kun Mo Bang, no momento em que
esse mestre destacou os objetivos de sua vinda para o Brasil, nos traz um primeiro
indcio:
[...] Por exemplo, minha parte, outros no sei, ns viemos aqui objetivo parte
defesa pessoal mesmo, como que domina adversrio no precisava nada de faixa
certo? Dominar. Cada situao como que domina? Pra dominar voc precisa
preparar eu fsico, ento objetivo esse. Eu ensino Taekwondo pra voc, vai
demorar pra chegar faixa preta, mas eu posso ensinar pra voc dentro em trs
meses dominar uma pessoa, s ensina aquele tcnico, ento eu acho que voc...
Voc no taekwondista137, n? Voc t preparando um atividade pra dominar
durante ataque e pronto, ento programa mudou n? Que no precisava, ento
nosso programa mudou e passando taekwondo138.
Nesse trecho, Bang explica que, com o tempo, seu objetivo inicial de
treinar a polcia militar mudou e passou a ser a difuso do Taekwondo. O ponto que se
deve frisar que essa fala mostra que a arte marcial ultrapassa os aspectos relativos
defesa pessoal, porm mostra tambm que esse aspecto est incluso na prtica, ou seja,
uma dimenso importante do processo de aprendizagem, mas no a nica.
Em seu depoimento, Thomas Lo fez a mesma referncia, mostrando
ainda que, apesar de importante e presente, esse aspecto tem perdido sua relevncia
frente ao uso das artes marciais orientais na promoo da sade:
Antigamente no. Eu aprendi isso para auto defesa, ou at vingana. Agora no,
pode voc pra c falar sade, ..., equilibra fisicamente e mentalmente e tal, assim,
n. Antigamente j contrrio. Antigamente, efeito colateral pra sade. Agora
contrrio, efeito colateral para auto defesa. Porque arma de fogo to comum e
to mais fcil...139.
137
Praticante de Taekwondo.
Kun Mo Bang, em depoimento ao autor, em 11 de outubro de 2003, na cidade de Marlia-SP.
139
Thomas Lo Siu Chung, em depoimento concedido ao autor, em 25 de maio de 2007, na cidade de So
Paulo.
138
158
Estilo de Karat.
Outro estilo de Karat considerado mais intenso pelo fato de suas lutas serem decididas apenas por
nocaute e permitirem o contato total sem o uso de protetores.
142
Kazuro Nakashima Diana, em depoimento concedido ao autor, em 11 de maio de 2005, na cidade de
So Paulo. (Grifo nosso)
141
159
de seu estilo de Karat como uma prtica mais acessvel e, nesse aspecto, melhor do que
o estilo Kyokushin, que, em seu julgamento, seria mais intenso.
Seu posicionamento em relao intensidade dos treinos de Karat
Kyokushin foi reafirmado por Seiji Isobe, mestre dessa arte marcial oriental, no
seguinte trecho de seu depoimento:
Enton, nosso treino academia pode bater. [...] A, lgico aluno ia machuc. Bate,
bate, porque num tem preparaon fsico. A, passando tempo, alguns anos, pessoa
inteligente: como que vai ensin menos machuc, menos problema fsico? Vai
calejar! Abdominais mil vezes, duas mil vezes. Flexo: 200, 500 vezes. O negcio
ganh fora bom. Fora nos dedos, nos dedos. Antigamente non tinha fora ou
sem tempo. Kyokushim, , precisa fora no..., precisa fora no dedo. A, inventou
bastante treinamentos, bastante coisas, bastantes golpes, equivar. [...] Enton todo
ano tem que prepar. A, 63, 69 comeou, mestre a exigir: Vamos realizar
campeonato. Com contato143.
160
144
161
146
162
163
164
148
165
fazer exatamente que o que eu pedir. Ento aqui. Agora l, tem esses dois
formas149.
166
derrota das caractersticas negativas que habitam as mentes das pessoas, inibindo
seu funcionamento. Ao mesmo tempo, seu potencial para a auto-defesa no pode
ser ignorado. Uma das razes para a proibio de competies de Aikido que
muitas de suas tcnicas teriam que ser excludas, dado o elevado risco de causarem
ferimentos graves. No treino cooperativo, mesmo as tcnicas potencialmente letais
podem ser praticadas sem riscos substanciais. importante enfatizar que no Aikido
no h atalhos para a proficincia. Consequentemente, no h outro caminho seno
o treinamento dedicado e persistente. Ningum se torna perito em poucos meses152.
167
outro esporte que voc est sentado aqui na quadra de tnis, uma hora que sacar
servio, um direto melhor. Ento uma poca que famoso jogador, joga sacando
direto a todo mundo tenta sacar direto, exige velocidade. Em outra poca baixinho
que famoso, ele coloca bastante efeito e os atletas todos mudam pra fazer efeito,
ento cada poca diferente. Ento WTF, colocou bastante movimentos pra
facilitar competir, mas eu j falei aquele no 100% do Taekwondo, aquele s o
que parece. Voc veja o iceberg aquele que parece mnimo aquele escondido que
to grande. Ento todo mundo pensa que t conhecendo Taekwondo 100%
falando isso, falando aquilo, no pode falar assim. Eu acho155.
De
qualquer
maneira,
conflito
expresso
pela
dicotomia
168
158
Alguns estilos de Kung Fu possuem um sistema de graduao no qual a distino entre os diferentes
nveis de aprendizagem so feitos por cores de camisa e no por faixas, como ocorre com outras artes
marciais orientais. Um exemplo disso o Kung Fu estilo Yau Man, que no Brasil tem como um de seus
representantes o mestre Yip Fu Kwan.
169
amarela pode ajudar branca, mas azul pode ensinar todo mundo. isso que faz. Eu
tambm faz isso agora159.
159
160
170
171
forma de alcanar felicidade; por esse motivo percebe o lazer e o tempo de notrabalho tambm com tempo de conflitos. Os sistemas de valores do tempo
cronometrado e dos costumes tradicionais pr-industriais esto, hoje, emaranhados
e imbricados, a ponto de antigas atividades ldicas terem se tornado objeto de
clculo de tempo e produtividade. No corao de cada indivduo bate um relgio
moral capitalista e um outro relgio natural avesso a esse tempo calculado e
produtivo, e, segundo o autor, nem sempre um joga em favor do outro. Ainda que
esse relgio moral do capitalismo precise bater muitas vezes contrariando a sua
prpria vocao produtiva, ele no uma figura abstrata. O relgio moral do
capitalismo, segundo o autor, bate em favor de determinados sujeitos sociais e em
detrimento de muitos outros162.
DE DECCA. Edgar Salvadori. E. P. Thompson: tempo e lazer nas sociedades modernas. In BRUHNS.
Heloisa Turini (org.). Lazer e cincias sociais: dilogos pertinentes. So Paulo: Cronos, 2002. p. 64-65.
163
Nidan e Sandan so graduaes subsequentes faixa preta no Jud.
164
Mateus Sugizaki, em depoimento concedido ao autor, em 26 de fevereiro de 2008, na cidade de
Botucatu-SP.
172
esporte, as pessoas gostam de competir. Voc vai em campeonatos que tem muita
gente, principalmente crianas e adolescentes. Ento quer dizer, os professores
esto privilegiando tcnicas, que so usadas em competies, mas no por uma
opo, visando esta questo financeira. E por a tambm, se voc na sua
academia exigir que o aluno tenha uma postura tica, por exemplo, que cheguem,
cumprimentem o mestre, cumprimentem os mais velhos, ttata... possvel que
voc perca alunos. Ento eu sinto que os professores esto cedendo cada vez mais.
Entendeu? Cada vez existe menos respeito165.
173
prtica. Mas, alm disso, significou uma mudana filosfica, uma mudana de fundo
subjetivo para certos aspectos presentes nas artes marciais orientais em sua totalidade
(no apenas os movimentos), favorecendo, nesse sentido, a adoo da racionalidade
ocidental e capitalista.
Isso no significa que o capitalismo no adentrou o oriente, ao contrrio,
existem inmeros exemplos empricos disso, porm h que se destacar que, do ponto de
vista da forma como as artes marciais orientais devem ser praticadas, os depoimentos
apontam para o comprometimento com uma tradio, na qual a percepo do tempo
assume uma dimenso bem diferente daquela capitalista, em que a produtividade deve
ser o objetivo primordial.
Em conjunto com as transformaes providas pelas demandas externas
prtica, a necessidade de expanso das artes marciais orientais em So Paulo, com a
consequente formao de mestres brasileiros, culminou no aparecimento de demandas
internas, algo que transformou o interior de algumas dessas prticas, sobretudo as mais
esportivizadas, em uma arena de conflitos. Nos depoimentos, esses conflitos tomaram a
forma de uma disputa por legitimidade no campo da memria.
Assim, no que se refere primeira demanda interna, o posicionamento
dos mestres brasileiros em relao hierarquia interna das artes marciais orientais, o
depoimento de Kazuro Nakashima mostra que a mobilidade social oferecida pelo
esporte seria o elemento que tornaria possvel aos brasileiros o enfretamento da ordem
hierrquica defendida pelos mestres orientais. Em suas palavras:
[...] A outra parte que voc falou o que vem da tradio. [...] O que se passa
dentro da acade..., dentro da cabea dos atletas, do pessoal brasileiro, que no
imigrante, atleta, praticante, ele pensa o seguinte: Eu j estou cheio desses
japoneses ficarem achando que eles sabem tudo. S eles? Por que s eles so os
mestres? Por que s eles querem mandar? Ento, brasileiro, ele tem uma gana de
querer superar essas pessoas. E o nico jeito de superar um mestre, um mestre que
veio de imigrante, que imigrante que veio aqui e fez carreira aqui, voc superar
na rea esportiva. Porque na rea terica, tradicional, voc no vai superar, porque
ele maior na graduao. Ele 9 Grau, 8, 10 grau. Voc 5 grau, 6 grau, voc
no consegue superar. Ento a populao olha muito a graduao. Com a faixa,
como o poder do cara. Na verdade as faixas s segura as calas, n? Ento isso,
isso no quer dizer nada. [...] Ento, o qu que acontece? No existe jeito de passar
esse pessoal. nico jeito de passar sendo campeo. Hoje eu vejo que, por
exemplo, eu sento com um mestre que 8 grau, 6 grau, 7 grau, at 10 grau, eu
mantenho respeito por ele. Mas se ele opinar errado sobre a minha pessoa eu
respondo de igual pra igual com ele. Porque a minha medalha, a minha experincia
em competio supera tanto quanto graduao dele167.
167
174
175
lugar onde se ensina o Taekwondo e isso o que gera a descaracterizao. Por que
se tem uma tcnica que fundamental no Taekwondo, mas que no agrada muito
os alunos o professor j deixa aquela tcnica de lado169.
Ibid.
176
177
CONSIDERAES FINAIS
170
178
179
180
181
orientais ao regime militar. Em So Paulo, essa situao foi experimentada, pelas artes
marciais coreanas, Taekwondo mais notadamente, e, em menor grau, pelo Hapkido.
Nesse sentido, uma vez analisadas as diferenas entre imigrao de
cidados coreanos comuns e de mestres coreanos, observou-se que, em relao aos
motivos e objetivos, a primeira ocorreu em resposta crise econmica vivenciada na
Coria do Sul, nos primeiros anos da dcada de 1960, e que seu objetivo foi nitidamente
a busca por melhores condies de vida. Em contraste, a imigrao de mestres coreanos
se diferenciou primeiramente por se tratar de um grupo sui generis, alm disso, por
serem mestres profissionais, ou seja, um tipo de mestre diferente dos mestres imigrantes
japoneses e que vieram com um objetivo bem definido, o de treinar a polcia no
combate ao terrorismo.
necessrio, que eles passaram a se dedicar disseminao do Taekwondo para alm dos
limites da caserna.
Assim, o caminho desses mestres, ao contrrio do caminho dos demais
imigrantes coreanos e dos mestres imigrantes japoneses, no teria sido, em um primeiro
momento, o do arco-ris ou o da colnia, e sim o dos ps e das mos, em outras
palavras, o Taekwondo; expressou, uma vertente militar, com contornos que, em certa
medida, podem ser considerados pioneiros para o processo de disseminao das artes
marciais orientais em So Paulo.
Alm dessas duas vertentes, a da colnia, experimentada pelos japoneses,
e a militar, experimentada pelos coreanos, existiria uma terceira, a dos mestres chineses
de Hong Kong, que tive a oportunidade de entrevistar e cuja principal caracterstica
residiu na necessidade de aventurar-se. Eles no teriam vindo atrs de melhores
condies de vida, como se observou entre os mestres japoneses do perodo anterior ao
da II Guerra, ou em reposta ao pedido de seus mestres, como observado entre os mestres
coreanos. Vieram em funo do reconhecimento de que a cidade de Hong Kong lhes
impunha severas limitaes. E vieram tambm buscando novos horizontes, impelidos
pelo desejo de aventurar-se.
Quanto ao sucesso das artes marciais no perodo Ps-II Guerra Mundial,
verificou-se a constituio de um terreno frtil, um espao que, a cada dia, teria se
tornado mais favorvel disseminao das artes marciais orientais, em funo do
aumento de sua visibilidade na cidade.
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183
pequena escala dos produtos necessrios prtica. Sobre esse aspecto, constatou-se que
as concesses, em sentido contrrio ao da tradio e em favor da disseminao, foram
maiores nos casos em que o pblico-alvo no era de origem oriental.
Uma vez estabelecidas na cidade, verificou-se que foi em funo do grau
de popularidade que algumas artes marciais orientais foram capazes de manter uma
demanda por produtos direcionados prtica.
Assim, a segunda vertente, a importao de produtos destinados prtica,
evidenciou-se naquelas artes que, por um motivo ou por outro, no conseguiram atingir
um determinado grau de popularidade. Nesse sentido, ficou mantida a improvisao,
mas incorporou-se tambm a importao de produtos de pases onde a prtica j estava
consolidada.
Por fim, a terceira vertente caracterizou-se pelas artes marciais orientais
que foram capazes de manter, de forma mais consistente, uma demanda por produtos
direcionados prtica. Nesses casos, observou-se o surgimento de uma pequena
indstria com marcas prprias, em resposta crescente demanda por produtos
destinados prtica. Isso teria ocorrido com o Jud, Taekwondo e com o Karat. No
por acaso as artes marciais orientais mais populares na cidade, e, no por acaso tambm,
as artes que mais se esportivizaram.
O surgimento de um terreno frtil, em que as artes marciais orientais
puderam se estabelecer, a modernizao e a esportivizao comporiam um processo
maior de ocidentalizao para essas prticas.
Com isso, mltiplos sentidos passaram a ser associados prtica das
artes marciais orientais em terras brasileiras, agindo como facilitadores e estimuladores
do consumo dessas prticas, por uma populao cada vez maior e ecltica. Isso,
porm, teria agido tambm no sentido de colocar em cheque antigas prticas/rituais que,
aos olhos dos brasileiros, foram taxadas como inadequadas ou fora de lugar.
As questes surgidas desse embate foram endereadas, sobretudo aos
mestres imigrantes, e tiveram como origem, em um primeiro momento, a prpria
demanda externa, gerada pela disseminao das prticas (praticantes brasileiros) na
cidade. Contudo, medida que esse processo (a disseminao) avanou, a necessidade
de formao de mestres brasileiros teria sido a responsvel pelo germinar de novos
pontos de tenso do lado de dentro dessas prticas, uma demanda interna. As
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185
deles buscando ver saciado seus prprios anseios, baseados nas suas prprias crenas a
respeito de como so ou devem ser praticadas as artes marciais orientais na cidade.
Longe de ter esgotado essa discusso, entendo ter conseguido avanar
alguns passos no que se referiu construo de um caminho oriental para cultura
corporal na cidade de So Paulo. As consideraes aqui apresentadas no possuem a
pretenso de ser generalizantes. Ao contrrio, a pretenso seria muito mais a de instigar
novos estudos e investigaes a respeito do rico universo da cultura corporal brasileira,
um universo mltiplo, em que at mesmo elementos originados em uma cultura
completamente diversa, artes marciais orientais, conseguiram conquistar o seu espao.
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FONTES
Orais:
1. Kun Mo Bang, entrevistado em 14 de novembro de 1998, na cidade de MarliaSP.
2. Carlos Negro, entrevistado em 5 de fevereiro de 1999, na cidade de So Paulo.
3. Jos Carlos da Silva, entrevistado em 2 de fevereiro de 1999, na cidade de So
Jos dos Campos-SP.
4. Fbio Goulart 4 Dan, entrevistado em 22 de abril de 1999, na cidade de SantosSP.
5. Mauro Hideki, entrevistado em 1 de julho de 1999, na cidade de Bauru-SP.
6. Yeo Jin Kim, entrevistado em 28 de julho de 1999, na cidade de So Paulo.
7. Cludio Sidinei Lopes, entrevistado em 28 de julho de 1999, na cidade de So
Paulo.
8. Jlio Gavio, entrevistado em 18 de fevereiro de 1999, na cidade de CampinasSP.
9. Kiyoshi Ike, entrevistado em 15 de janeiro de 2000, na cidade de So Paulo.
10. Jos Roberto Lira, entrevistado em 15 de janeiro de 2000, na cidade de DiademaSP.
11. Silvio Cruz, entrevistado em 17 de janeiro de 2000, na cidade de So Paulo.
12. Gilberto Monteiro, entrevistado em 17 de janeiro de 2000, na cidade de
Guarulhos-SP.
13. Manoel Ferreira (Maninho) entrevistado em 18 de janeiro de 2000, na cidade de
Mogi das Cruzes-SP.
14. Jos Palermo Junior (Tilico), entrevistado em 19 de janeiro de 2000, na cidade
Campinas-SP.
15. Augusto Myung Ho Kwon, entrevistado em 12 de setembro de 2003 na cidade de
So Paulo.
16. Kun Mo Bang, entrevistado 11 de outubro de 2003, na cidade de Marlia-SP.
17. Yip Fu Kwan, entrevistado em 15 de setembro de 2004, na cidade de So Paulo.
187
Peridicos:
Revistas:
1. O Cruzeiro: perodo de 1970 a 1980.
2. Veja: perodo de 1970 a 1980.
Revistas em Quadrinhos:
188
Jornais:
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So Paulo: Brasiliense, 1990.
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LUCENA, Ricardo de Figueredo (orgs.). Esporte: histria e sociedade. Campinas, SP:
Autores Associados, 2002.
CALLEJA, C. C. Contribuio para o estudo e interpretao das regras
internacionais de Jud. So Paulo, 1981 (Dissertao de mestrado apresentada
escola de educao fsica, USP).
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Internet
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<http://www.pell.portland.or.us/~efbrazil/efs_map_1961.html> Acesso em 14/10/08.
Documento sonoro
Mesa Redonda em comemorao aos 40 anos da imigrao coreana, em 07 de junho de
2003, na cidade de So Paulo, 2 fitas cassete.
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ANEXOS
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fabricados em outro qualquer paiz. Outrossim, nenhuma prohibio ser imposta exportao de artigos
dos Territrios ou Possesses de uma das duas Altas Partes contractantes com destino aos Territrios ou
Possesses da outra, sem que essa prohibio se estenda igualmente s exportaes de artigos similares
com destino a outro qualquer paiz.
Artigo 6 - Quanto ao que diz respeito ao direito de trnsito, armazenagem, premios, facilidades e
drawbacks, os cidados ou subditos de cada uma das duas Altas Partes contractantes sero nos Territrios
e Possesses da outra, sob todos os pontos de vista collocados no p da Nao mais favorecida.
Artigo 7 - No sero impostos nos portos do Japo sobre os navios dos Estados Unidos do Brasil, e nos
portos dos Estados Unidos do Brasil sobre os navios do Japo, direitos ou tributos de tonelagem, phares,
portos pilotagem, quarentena, salvamentos ou outros direitos ou contribuies similares ou anlogas, de
qualquer denominao que sejam, lanados ou no em proveito do Governo, dos funccionrios pblicos,
dos particulares, das corporaes ou de qualquer estabelecimento, differentes ou mais elevados do que
aqueles que so actualmente ou forem para o futuro applicados em iguaes circumstancias nos mesmos
portos sobre os navios da Nao mais favorecida.
Artigo 8 - A cabotagem das duas Altas Partes Contractantes fica exceptuada das disposies do presente
tratado e ser respectivamente regularisada pelas leis, decretos e regulamentos dos dous paizes.
Artigo 9 - No prsente Tratado todos os navios que, pelas leis brasileiras, poderem ser considerados como
navios brasileiros e todos aquelles que, segundo as leis japonezas, puderem ser considerados como navios
japonezes, sero respectivamente considerados como navios japonezes e brasileiros.
Artigo 10 - Os subditos e os navios do Imprio do Japo que forem ao Brasil ou s suas guas territoriaes
se submettero, durante todo o tempo de sua estada, s leis e jurisdico do Brasil, bem como se
sujeitaro s leis e jurisdico do Japo todos os cidados ou navios brasileiros que forem ao Japo ou
as suas guas territoriaes.
Artigo 11 - Os cidados e subditos de cada uma das duas Altas Partes contractantes gozaro
respectivamente nos Territrios e Possesses da outra Parte de inteira proteco para as suas pessoas e
propriedades; tero livre e fcil accesso junto aos tribunaes para a defesa de seus direitos; e, da mesma
frma que os cidados ou subditos do paiz, tero o direito de empregar advogados, solicitadores, ou
mandatrios para se fazerem representar junto aos ditos tribunaes.
Gozaro igualmente de uma inteira liberdade de conscincia, e, conformando-se com as leis e
regulamentos em vigor, tero o direito de exercer pblica ou privadamente o seu culto; tero igualmente o
direito de enterrar seus nacionaes respectivos, segundo os seus ritos, nos lugares convenientes e
apropriados que, para esse fim, foram estabelecidos e mantidos.
Artigo 12 - Quanto que diz respeito obrigao de hospedar militares, ao servio obrigatrio nos
exercitos de terra e mar, s requisies militares ou aos emprestimos forados, os cidados ou subditos de
cada uma das duas Altas Partes contractantes gozaro nos Territrios e Possesses da outra dos mesmos
privilgios, imunidades e isenes que os cidados ou subditos da Nao mais favorecida.
Artigo 13 - O presente Tratado entrar em vigor immediatamente depois da troca das retificaes e se
tornar obrigatrio por um perodo de 12 annos a partir do dia em que for posto em execuo.
Cada uma das Altas Partes contractantes, decorridos onze anos depois de entrar em vigor o presente
Tratado, ter o direito, em um momento dado, de o denuciar outra, expirando elle no fim do dcimo
segundo mez a contar desta notificao.
Artigo 14 - O presente Tratado ser feito em duplicata nas lnguas portugueza, japoneza e franceza, e no
caso de divergncia nos textos japonez e portuguez, se recorrer ao texto francez, o qual ser obrigatrio
para os dous Governos.
Artigo 15 - O presente Tratado ser ratificado pelas Altas Partes contractantes e a troca das ratificaes
ter logar em Paris, logo que for possvel.
Em testemunho do que os Plenipotencirios respectivos o assignaram e lhe fizeram por o sello de suas
armas.
Feito em seis exemplares em Paris, aos cinco dias do mez de novembro do anno de 1895, correspondente
ao 28 de Meiji.
(L.S.) Gabriel de Toledo Piza e Almeida.
(L.S.) Son Arasuk.
Conforme. - O director geral, J.T. do Amaral.
(1) Por Decreto n 2495 de 14 de abril de 1897 foi criada uma Ligao no Imperio do Japo e um
Consulado Geral de 1 classe com sede em Yokoama, e por Decreto n 2786 de 5 de Janeiro de 1898 foi
designada a sede dos Consulados em Yokoama e Kob.
Fonte: <http://www2.mre.gov.br/dai/b_japa_01_2881.htm> Acesso em 06/09/2008.
200
s
Fonte: <http://wwwcrl-jukebox.uchicago.edu/bsd/bsd/u1597/000006.html> Acesso em
17/02/2009.
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E havendo o govrno do Brasil aprovado o mesmo Tratado nos trmos acima transcritos, pela presente o
dou por firme e valioso para produzir os seus devidos efeitos, prometendo que ser cumprido
inviolvelmente.
Em firmeza do que mandei passar esta Carta, que assino e selada com o slo das armas da Repblica e
subscrita pelo Ministro de Estado interino das Relaes Exteriores.
Dada no Palcio da Presidncia, no Rio de Janeiro, aos vinte sete dias do ms de maro de mil novecentos
e quarenta e cinco, 124 da Independncia e 57 da Repblica.
Getulio Vargas
P. Leo Velloso
Publicao:
Dirio Oficial da Unio - Seo 1 - 19/04/1945 , Pgina 7076 (Publicao) v
Fonte:
<http://www2.camara.gov.br/internet/legislacao/legin.html/textos/visualizarTexto.ht
ml?ideNorma=327305&seqTexto=1&PalavrasDestaque=> Acesso em 17/02/2009.