Mitos Sobre Arquimedes e Outros
Mitos Sobre Arquimedes e Outros
Mitos Sobre Arquimedes e Outros
Rodrigo Moura
(rodrigobarba@zipmail.com.br)
I Introduc~ao
A historia da ci^encia esta repleta de maravilhosos
apologos1. Tais apologos, quando devidamente relatados, constituem o melhor modo de divulgar a ci^encia
de uma forma interessante e divertida. Varias pessoas
conhecem as historias que cercam os mais celebres cientistas de todos os tempos e perguntam-se o qu~ao de
verdade ha nelas. Eis algumas, como exemplo: Arquimedes [287 - 212 a. C.] encontrou, enquanto tomava
banho, o meio de determinar o peso especco dos corpos e consagrou tal descoberta com o seu famoso \Heureca!"; Benjamin Franklin [1706 - 1790] descobriu que
o rel^ampago e uma forma de eletricidade ao empinar
1 Ap
ologo:
Historieta mais ou menos longa, que ilustra uma lica~o de sabedoria e cuja moralidade e expressa como conclus~ao (fabula)
II
239
ter vivido num passado t~ao remoto e por ter se destacado de uma maneira t~ao fantastica e indelevel.
Grandes homens escreveram sobre ele (Diodoro Sculo,
Eratostenes, Plutarco, Ccero, Vitruvio...) mas poucos
relatos sobreviveram ao tempo. Sua vida, portanto,
pertence a Historia e a Lenda.
Ate a descoberta de seu famoso princpio, o
princpio de Arquimedes, esta envolta num apologo:
Hier~ao, rei de Siracusa, desejava oferecer aos deuses
uma coroa de ouro e, para isso, contratou um ourives, a quem forneceu uma porc~ao em prata e outra
de ouro em po. Quando a coroa foi entregue ao rei,
este desconou que n~ao havia sido empregado na sua
confecc~ao todo o ouro em po que ele entregara ao ourives. Na impossibilidade de provar o roubo, Hier~ao
consultou Arquimedes. Sempre preocupado com o problema que lhe fora apresentado, Arquimedes observou
um dia, quando tomava banho, que a medida que seu
corpo mergulhava na banheira, a agua subia pelos bordos. Imediatamente percebeu como poderia solucionar
o problema, e conta-se que ele teria sado pelas ruas,
completamente nu, gritando \Heureca! Heureca!", isto
e, \Achei! Achei!" . Depois preparou dois blocos, um
de ouro e outro de prata, ambos com o mesmo peso da
coroa. Mergulhou cada um deles, separadamente, em
dois recipientes cheios de agua, e mediu a quantidade
de agua que transbordou de cada recipiente. Se os volumes fossem iguais, a coroa era de ouro puro. Se tivesse
uma mistura de prata (que e menos densa que o ouro),
a coroa teria um volume maior (a saber, a densidade da
prata e de 10,5 g/cm3 enquanto que a do ouro e de 19,5
g/cm3 . Vericou, por esse processo, que os volumes de
agua deslocados pelos dois blocos eram diferentes, concluindo por estabelecer, com certa precis~ao, as massas
de ouro e de prata empregadas na confecca~o da coroa de
Hier~ao. Determinou portanto, os pesos especcos do
ouro e da prata, e provou que o ourives estava roubando
o rei. Por seu crime, o ourives foi morto. Alguns autores, porem, dizem que Arquimedes interferiu na decis~ao
do rei. Adonias Filho[1] em \A vida de Arquimedes: o
maior dos sabios da Antiguidade", escreve que Arquimedes \como recompensa, queria que o perd~ao fosse
concedido. E isso porque, anal, n~ao fosse o joalheiro,
a Fsica n~ao teria t~ao cedo uma das suas leis mais importantes".
Agradecemos ao an^onimo arbitro desta revista pela
refer^encia que f^ez a uma outra vers~ao existente deste
episodio, publicada em 1891 na obra \Sur l'histoire de
la balance hydrostatique et de quelques autres appreils
et procedes", de M. Berthelot. Nas suas exatas palavras:
2 Em livros de divulga
ca~o cientca, e comum verem-se atribudas a Arquimedes tais invenc~oes. Muitos historiadores da ci^encia,
porem, contestam essas armaco~es.
240
241
tos apropriadamente, obtem-se um calor \quase intoleravel" a mais de cem pes (33 metros) de dist^ancia.
Com mais espelhos, os efeitos tornam-se impressionantes. Kircher, alem disso, foi a propria cidade de Siracusa e deduziu que Arquimedes n~ao tinha necessidade
de um espelho de longo alcance. Ele sabia que um espelho parabolico so seria ecaz se o navio visado estivesse situado exatamente no foco e casse imovel. Essas
condic~oes eram difceis de preencher. Por isso, ele concluiu que Arquimedes teria atingido mais facilmente seu
objetivo com uma bateria de espelhos planos4 .
Em 1747, Georges Louis Leclerc, conde de Buon5 .
[1707 - 1788] realizou varias experi^encias em Paris para
tentar concluir alguma coisa sobre os espelhos ardentes
de Arquimedes. Numa delas, utilizando apenas 98 espelhos incendiou \uma prancha forrada com betume e
enxofre, colocada a 150 pes de dist^ancia" (cerca de 50
m). E ainda \o Sol estando muito fraco e encoberto,
foi possvel chamuscar com 154 espelhos uma prancha
forrada com betume a 150 pes de dist^ancia." Noutra
experi^encia utilizou um espelho composto por 168 vidros planos medindo 6 polegadas por 8 (cerca de 15 cm
por 20 cm). Ele conta que \no dia 10 de abril, depois de
meio-dia, com um sol claro, conseguimos incendiar uma
tabua de pinho forrada de betume, a 150 pes (cerca de
50 m) com apenas 128 espelhos. Ela se in
amou instantaneamente em toda a extens~ao do foco, que media
aproximadamente 16 polegadas (cerca de 40 cm) naquela dist^ancia." Ja com 148 espelhos, \o fogo foi t~ao
violento que foi preciso mergulhar a prancha na agua
para apaga-lo". Em mais uma experi^encia, o foco estando a 20 pes de dist^ancia, \conseguimos derreter com
45 espelhos um grande vaso de estanho que pesava cerca
de seis libras; e com 117 espelhos derretemos l^aminas
nas de prata e tornamos rubra uma placa de zinco".
Apos todas essas experi^encias, sobre o feito de Arquimedes, Buon concluiu: \Devo conceder a Arquimedes
e aos antigos a gloria que lhes e devida; e certo que
Arquimedes p^ode fazer com espelhos de metal o que z
com espelhos de vidro."
As experi^encias de Buon tiveram vasta repercuss~ao
na epoca, como registra o Grande dicionario universal,
de Pierre Larousse, da segunda metade do seculo 19:
gracas a Buon, a reac~ao foi completada, desmentindo
a tese de Descartes, que declarara serem impossveis os
espelhos de Arquimedes".
242
243
unico foco - que, em sua projec~ao de luz e calor, abria queimaduras nos soldados. E, para aumentar
os seus efeitos, dotou-os de movimento ao redor de um
eixo e com alca na parte posterior, atraves da qual se
tornava facil gira-los. Concentravam-se facilmente os
raios solares, apesar da mobilidade dos atacantes, sobre
qualquer um deles. E, considerando as defesas ja erguidas nas imediaco~es da muralha, Arquimedes calculou o
foco dos espelhos de projec~ao para que alcancassem uma
dist^ancia de sessenta e oito c^ovados9 .
- Ha apenas um inconveniente - ele disse, explicando
- e e que so podemos coloca-los na muralha que da para
o Sul. As partes Oeste e Norte, porque n~ao recebem os
raios solares, n~ao ser~ao beneciadas.
Os famosos e lendarios espelhos de Arquimedes. E
certo, porem, que n~ao os empregou contra a armada romana porque, para ter algum resultado, necessitaria de
tempo razoavel com as naus, imoveis, na espera. Mas,
ao contrario, armas terrveis eram os espelhos contra
os soldados da infantaria e cavalaria que avancassem
contra a muralha. E, quando n~ao matavam homens e
animais, queimava-os ou cegava-os, gerando o p^anico e
o medo."
III
Galileu,
troversias
mitos e con-
Ha tr^es historias famosas que cercam Galileu. A primeira diz que ele teria descoberto a lei do isocronismo
das oscilac~oes pendulares ao observar um lustre balancando; a segunda, que ele, para provar a lei da queda
simult^anea dos corpos, teria soltado ao mesmo tempo
varios objetos do alto da Torre de Pisa (ate mesmo
uma bala de canh~ao e uma pena, e vericado que haviam chegado juntas ao solo!); a terceira, que ele teria
murmurado \Eppur, si muove", depois de ter sido obrigado a negar o sistema helioc^entrico diante do Tribunal
da Inquisic~ao.
A primeira lenda, a do lustre, e bem possvel que
seja verdadeira. Sabe-se que Galileu, como crist~ao,
costumava ir a Igrejas rezar. Aos 19 anos, ele teria
recebido na Universidade de Pisa a visita do pai, Vicenzo, que tendo sido noticiado de seu pessimo desempenho na medicina (materia que a princpio Galileu deveria estudar com prioridade), fora pedir explicac~oes.
Galileu revelou-lhe, ent~ao, que n~ao estava interessado
na medicina e que preferia muito mais matematica e
fsica. Vicenzo voltou para Florenca, onde morava, naquela mesmo dia, decepcionado pelo lho ter trocado a
medicina, que ele julgava uma ci^encia nobre, pela matematica, para ele uma ci^encia de sonhadores, deixando
Galileu triste e sem dinheiro.
Pouco apos a ida do pai, Galileu resolveu entrar
na catedral de Pisa para rezar. Nela, alguns operarios
estavam trabalhando num canto afastado do templo,
erguendo um monumento ao tumulo de um cardeal falecido recentemente. Galileu notou que um lustre suspenso, no qual algum dos operarios segurando uma viga
devia ter esbarrado enquanto passava, oscilava lentamente, e que as oscilac~oes, embora fossem diminuindo
pouco a pouco de amplitude, duravam sempre o mesmo
tempo, fato que p^ode comprovar contando suas proprias
pulsac~oes. Fez, assim, a primeira de uma serie de descobertas que se seguiriam: o isocronismo das oscilac~oes
pendulares, que logo proporia para ser utilizada na regularizac~ao dos relogios.
Ha, porem, varias vers~oes da cena do lustre. Eis
como a descreve James Reston Junior[4], na pagina 33
de seu livro \Galileu, uma vida":
244
Quanto a segunda lenda, a maioria dos historiadores tende a considera-la fantasiosa. Teria Galileu realmente lancado pesos da Torre de Pisa? Fez algumas experi^encias nesse sentido, decerto: deixou bolas de peso
diferente rolarem numa inclinac~ao suave. Eis a descric~ao de uma experi^encia feita por ele, no livro \Discursos e demonstrac~oes matematicas sobre duas novas
ci^encias", de 1638:
\Ele (Galileu) subiu na Torre de Pisa. A ousadia dessa ideia estava em seu carater obvio - porem
ninguem antes dele havia pensado nela ou ousara tentala. O problema residia em medir o grau de queda livre.
Haveria melhor lugar para conduzir a experi^encia do
que esse monumento proximo as imperfeico~es humanas? Se Aristoteles argumentava que uma bola de cem
libras caindo de uma altura de cem cubitos atinge o solo
antes que outra bola de uma libra tenha descido uma
dist^ancia de um cubito, qu~ao facil seria conrmar ou
abalar essa assertiva. (Cem cubitos equivalem a 58,4
metros; a Torre de Pisa mede 54 metros.)
Subindo a escada de caracol, ele carregou bolas de
diferentes pesos e medidas - de chumbo e ebano, talvez
ate de ouro e porro e cobre. Mais tarde, ele imaginaria
a diferenca entre as trajetorias de um ovo de galinha e
de um ovo de marmore. Diz a lenda que ele apregoou
sua demonstrac~ao amplamente, atraindo uma multid~ao
entusiasmada de estudantes e professores. Emergindo
expansivamente no topo, entre pilastras e precarias arcadas abertas, ele representou para sua multid~ao. Ele
foi aclamado clamorosamente. Estranhas vaias despontaram entre as aclamac~oes, pois a maioria da turba sem
duvida esperava testemunhar um asco. Havia algo na
torre que parecia atrair os exc^entricos e os exibicionistas. Quem era aquele jovem g^enio, aquele radical, para
desaar n~ao apenas as autoridades no campo, mas o
proprio Aristoteles? Talvez se assemelhasse ao corcunda que supostamente construra a torre inclinadamente para alardear sua propria deformidade!"
em 1639.
entre tr^es personagens: Simplcio (que encarna a losoa tradicional,
herdada em especial de Aristoteles); Sagredo (um homem de mente aberta) e Salviati (que encarna o proprio Galileu). A primeira vez
que Galileu havia feito isso foi no livro \Dialogo concernente aos dois principais sistemas do mundo", de 1632.
245
gadas de torres. Assim, parece que Galileu teria realizado uma experi^encia envolvendo pesos jogados de
torres. O historiador franc^es de origem russa Alexandre Koyre [1822 - 1964], contudo, em sua obra \Estudos
Galileanos" [1940], arma que tais descric~oes n~ao passam de um exerccio mental de Galileu, uma experi^encia
imaginaria: se a resist^encia do ar fosse removida, ou se
as bolas cassem no vacuo - postulou Galileu - cairiam
exatamente na mesma velocidade!
necessario repetir:
Essa e a opini~ao de Koyre. E
opini~ao. Ate hoje nenhum historiador provou a fantasia
dessa lenda. O assunto ainda e suscetvel de discuss~oes.
Pode-se dizer com certeza, porem, que e falsa a historia
em que Galileu teria lancado uma pena e uma bala de
canh~ao do alto da Torre de Pisa para provar a queda
simult^anea dos corpos. Tal experi^encia so poderia dar
certo no vacuo!
Para completar a analise desse mito, e posto aqui
um texto de Richard Brennan[5], encontrado a partir
da pagina 20 de seu livro \Gigantes da Fsica", que
bem mostra a import^ancia das experi^encias do sabio
italiano (Brennan descr^e da lenda da torre):
\Segundo uma historia interessante, que infelizmente n~ao passa de um mito, Galileu deixou cair objetos de diferentes pesos da inclinada Torre de Pisa para
demonstrar que cairiam sobre a terra na mesma velocidade. Essa historia n~ao e mencionada por Galileu em
nenhuma de suas anotaco~es; na verdade, foi atribuda
a ele anos mais tarde. Seja como for, o experimento,
tivesse ele sido efetuado, n~ao teria tido os resultados
presumidos, porque objetos de diferentes pesos so cairiam na mesma marcha no vacuo.
O que Galileu de fato fez foi estudar como os objetos se movem, n~ao deixando que cassem livremente
da torre ou de qualquer outro lugar, mas usando um
plano inclinado. Fazendo bolas de diferentes pesos rolarem por um plano inclinado abaixo, tornou o movimento mais lento ate o ponto em que podia medi-lo.
N~ao era um experimento perfeito porque havia atrito
envolvido e objetos mais pesados seriam mais afetados
que outros mais leves. Galileu fez o possvel para eliminar esse fator, polindo a tabua inclinada ate deixa-la
lustrosa. Comecou com uma inclinac~ao suave e em seguida repetiu o experimento com inclinac~oes crescentes,
ate que a velocidade se tornou grande demais para ser
medida com alguma precis~ao. Galileu foi capaz de extrapolar os resultados desses experimentos com declives,
concebendo um experimento hipotetico mental para conjeturar o que ocorreria a objetos numa queda livre. Descobriu que um objeto em queda n~ao cai simplesmente ele cai cada vez mais depressa ao longo do tempo. Em
outras palavras, ele se acelera, e a acelerac~ao (aumento
de velocidade) e constante. Alem disso, Galileu observou que a taxa de aumento da velocidade e a mesma
para todas as esferas, seja qual for seu peso ou tamanho. Sendo um matematico, expressou todas as suas
conclus~oes numa formula que e conhecida como a Lei
da queda dos corpos. N~ao precisamos detalhar a matematica ou a formula, mas cabe simplesmente assinalar que hoje se considera que as observaco~es e deduc~oes
de Galileu deram incio a ci^encia da mec^anica e que
tiveram enorme in
u^encia sobre Isaac Newton".
Outro mito arma que Galileu, apos abjurar ajoelhado as suas ideias perante a Inquisic~ao, teria se levantado e dito: \Eppur, si muove", isto e, \No entanto
(a Terra) se move". Isso e invenc~ao de um biografo
rom^antico. A primeira menc~ao a essa citac~ao esta num
falsa, portanto,
livro editado na Franca em 1789. E
essa historia. Constitui um fato, porem, que intimamente Galileu nunca renegou suas ideias.
Tambem e cc~ao que Galileu tenha passado pela tortura. Sempre foi tratado como um grande senhor. Os
instrumentos de tortura nem chegaram a lhe ser mostrados, como era de praxe na epoca. Em 1755, o franc^es
Pierre Esteve, no seu livro Historia da Astronomia, escreveu que a Inquisic~ao furou-lhe os olhos. Esta certo
que Galileu cou cego, mas n~ao por esse motivo, e sim
porque adquiriu catarata.
Por m, inumeros livros de divulgac~ao cientca dizem que, apesar de Galileu n~ao ter sido o inventor da
luneta, tem o merito de ter sido o primeiro a aponta-la
para o ceu. Isso, porem, e uma informac~ao equivocada.
O primeiro homem a apontar uma luneta para os ceus
foi um ingl^es chamado Thomas Harriot [1560 - 1621], o
primeiro cartografo da Lua, contempor^aneo de Galileu,
que n~ao publicou suas observac~oes [11].
IV
A mac~a de Newton
Talvez a mais famosa de todas as lendas que envolvem os grandes cientistas seja esta: a mac~a de Newton.
Como toda historia consagrada pelo tempo, existem algumas variantes que cercam essa lenda (alguns dizem
que a mac~a caiu na cabeca do cientista, outros, aos pes
dele, por exemplo) mas a vers~ao mais comumente contada e a seguinte: conta-se que Newton estava sentado
certo dia sob uma macieira e um fruto dessa arvore
caiu em sua cabeca. O episodio teria dado a Newton
imediata compreens~ao da forca universal da gravidade.
Essa, sem duvida, e a mais fantasiosa de todas as
vers~oes, e, ao inves de enaltec^e-lo, faz de Newton um
completo estupido, pois era necessario uma maca~ cair
na cabeca dele para ele descobrir que existe uma forca
dominante no Universo? Ele por acaso n~ao via as coisas carem? N~ao poderia ter deduzido isso de outras
maneiras n~ao t~ao esdruxulas?
Este artigo n~ao visa questionar o intelecto de Newton e sim analisar ate onde pode haver verdade nesse
episodio, bem como mostrar as controversias do mesmo.
Esse episodio tornou-se famoso por dois motivos:
primeiro, porque aconteceu com um g^enio (Newton),
que morreu rico e consagrado mundialmente; segundo,
porque foi contado por um homem famoso, o losofo
246
\N~ao surpreende que essa historieta, que faz lembrar a associac~ao judaico-crist~a da mac~a com o conhecimento, continue a ser repetida. Juntamente com o
mito do annus mirabilis e com a anotac~ao de Newton que dizia haver ele constatado que o calculo tinha uma correspond^encia muito proxima, ela tem contribudo para a ideia de que a gravitac~ao universal surgiu diante de Newton num lampejo de discernimento,
em 1666, e de que ele carregou os Principia para la
e para ca durante 20 anos, essencialmente concludos,
ate Halley conseguir solta-los e entrega-los ao mundo.
Formulado dessa maneira, esse relato n~ao resiste a uma
comparac~ao com o historico dos primeiros trabalhos de
Newton na mec^anica. Ele banaliza a gravitac~ao universal, tratando-a como uma ideia brilhante. Uma ideia
brilhante n~ao consegue moldar uma tradic~ao cientca."
\No ano de 1666, ele tornou a se afastar de Cambridge (...) indo ter com a m~ae em Linconshire, e
quando meditava num jardim, ocorreu-lhe que o poder
da gravidade (que derrubara uma mac~a da arvore no
ch~ao) n~ao estava limitado a uma certa dist^ancia da
Terra, mas deveria estender-se muito alem do que se
costumava pensar. `Por que n~ao ate a Lua?'- disse ele
a si mesmo, e, se assim fosse, isso deveria in
uenciar
seu movimento e talvez mant^e-la em sua orbita."
12 John Conduitt casou-se com a sobrinha de Newton, Catherine Barton [1679 - 1739], em 26 de agosto de 1717. Sentia profunda
admirac~ao por Newton. Escreveu resumos de suas conversas com ele e reuniu varias historias sobre ele.
mantinha esse astro orbitando a Terra? Essa mesma indagac~ao se formou na sua mente com respeito aos planetas, que se movem em volta do Sol. De raciocnio em
raciocnio, chegou assim Newton a concepc~ao da grande
teoria, que seus calculos n~ao tardaram em conrmar.
O livro \Princpios Matematicos da Filosoa Natural"
aborda muitos outros temas alem da gravitac~ao; esse
foi um dos motivos da demora em sua publicac~ao. A
mac~a de Newton e citada como exemplo dos resultados
de grande import^ancia, que muitas vezes derivam de
causas insignicantes.
Em plena concord^ancia do que acabou de ser exposto, cita-se por m um trecho da obra \Gigantes
da Fsica", de Richard Brennan[5], referente a lendaria
mac~a de Newton, situado na pagina 36:
247
se aplicavam a todos os corpos - planeta, lua ou asteroide - no universo. De fato, Newton tomara o quadro geral do Universo de Descartes e o tornara rigorosamente matematico e preciso. Havia feito nada menos que construir a primeira sntese moderna sobre o
universo fsico, uma vis~ao fundada na mec^anica, em
que tanto as menores partculas quanto os maiores corpos celestes movem-se todos de acordo com os mesmos
princpios matematicos."
\No ver~ao de 1665, uma calamidade abateu-se sobre muitas partes da Inglaterra, inclusive Cambridge.
`Aprouve a Deus Todo-poderoso, em sua justa severidade', como disse Emmanuel College, `castigar esta cidade de Cambridge com a praga da pestil^encia'. Embora Cambridge n~ao tivesse como saber disso e pouco
tenha feito, nos anos seguintes, para aplacar a severidade divina, a provac~ao de dois anos foi a ultima vez em
que Deus optou por castiga-la dessa maneira. Em 1o.
de setembro, o governo municipal cancelou a Feira de
Sturbridge e proibiu todas as reuni~oes publicas. Na verdade, os colegios tinham feito as malas e se dispersado
muito antes disso. O Trinity registrara, em 7 de agosto,
a decis~ao de que `todos os professores e alunos que forem agora para o interior em virtude da pestil^encia dever~ao receber as verbas usuais para seu sustento pelo
prazo do m^es subsequente'. Os registros do ec^onomo
deixam claro que o colegio, embora antecipando-se a
universidade, cou atras de muitos de seus residentes,
que ja haviam fugido e, por conseguinte, n~ao receberam
a verba relativa ao ultimo m^es do trimestre de ver~ao.
Durante oito meses, a universidade cou quase deserta.
Em meados de marco, n~ao tendo havido nenhum regis-
13 O m
edico Stukeley conheceu Newton no incio de 1718, com o qual fez amizade. Ao se mudar para Grantham posteriormente,
Stukeley fez quest~ao, a semelhanca de Conduitt, de colher informaco~es sobre Newton.
14 Anos admir
aveis: Denominac~ao dada ao perodo de dois anos (de 1664 a 1666) de recolhimento forcado passado por Newton em
Woolsthorpe, perodo que este aproveitou para desenvolver as suas mais importantes ideias.
248
Nem todos os historiadores cr^eem que Newton tenha feito tudo isso em sua curta estada de 17 meses no
campo. Isso porque esse relato foi escrito a proposito
da controversia do calculo, cuja prioridade Newton disputou ferrenhamente com Leibniz. Assim essa crenca
cou situada na categoria de mito, ao lado da historia
da queda da mac~a. Esse e o caso, por exemplo, do
proprio Richard Westfall. Escreve ele na pagina 59 de
seu livro \A vida de Isaac Newton":
De fato, de documentos, pouca coisa ha que comprove (ou descarte) as palavras de Newton. Porem,
como bem argumentou Richard Brennan[5] na pagina
39 de sua ja citada obra, \na aus^encia de prova em
contrario, e opini~ao deste autor que se deveria aceitar
a palavra de Newton como express~ao do que aconteceu
e do momento em que aconteceu".
249
VI
O zero de Einstein
A crenca popular diz que o grande fsico alem~ao Albert Einstein [1879 - 1955], naturalizado americano, ja
tirou zero em matematica. A origem deste mito provavelmente e esta: as notas escolares alem~aes v~ao de 6 a
1 (1 e a nota maxima): 1 = sehr gut (muito bom);
2 = gut (bom); 3 = befriedigend (satisfatorio); 4 =
ausreichend (suciente); 5 = mangelhaft (fraco), 6 =
ungenugend (insuciente). Assim, e possvel que os primeiros biografos de Einstein tenham interpretado erroneamente seu boletim. Na verdade, Einstein era excelente em aritmetica. Para seu infortunio, entretanto, a
mesma excel^encia n~ao se vericava nas outras disciplinas escolares.
Outra crenca, que dessa vez nada tem de popular
e costuma ser espalhado por pessoas pedantes (e ignorantes) e que Einstein teria dito a seguinte frase: \Tudo
e relativo". Einstein nunca disse isso. Pelo contrario,
segundo Einstein existe pelo menos uma coisa absoluta
nesse mundo: a velocidade da luz (no vacuo), pois e
constante e independe da velocidade relativa da sua
origem e do observador: 300.000.000 de metros por segundo!
O mais recente mito que ha em torno de Einstein diz
respeito a uma lha que ele teria tido em 1902, chamada
Lieserl. A historia so emergiu em 1986, dando lugar a
varias historietas que procuram desvendar o que teria
15 A
acontecido a lha do eminente cientista. Toda e qualquer novidade e noticiada pelos meios de comunicac~ao,
especialmente pelos jornais. No domingo de 5 de marco
de 2000, o jornal \O Globo" publicou na pagina 10 da
sec~ao \O Pas" uma pequena reportagem relatando as
ultimas descobertas dos biografos einsteinianos sobre a
desaparecida Lieserl:
NOVIDADES NO MISTERIO
DA FILHA DE
EINSTEIN
\E possvel que se tenha achado o caminho que desvendara um dos maiores misterios do seculo passado, o
destino da lha de Albert Einstein.
Em 1902, aos 22 anos, Einstein teve uma lha com
Mileva Maric, sua namorada e colega no Instituto Politecnico de Zurique. Eles viriam a se casar, mas da
menina, chamada Lieserl, nada se soube. So em 1986
e que se descobriu sua exist^encia. Einstein so a mencionou numa carta, em 1903, e nunca mais falou do
assunto. Em 1935, ao saber que havia uma mulher
dizendo-se sua lha, contratou um detetive, sem qualquer sucesso. Soube-se apenas que a crianca cou na
Servia, com a famlia da m~ae.
Einstein n~ao foi o unico responsavel pelo sumico da
crianca, visto que ele e Mileva viveram juntos por mais
17 anos e tiveram outros dois lhos (um dos quais esquizofr^enico). Ele a abandonou, para casar-se com uma
prima.
A escritora Michele Zackheim correu atras do
misterio durante cinco anos. Revirou lembrancas e livros de paroquias. Perseguiu pistas que levavam a quatro mulheres que poderiam ter sido Lieserl (mas n~ao
eram). N~ao chegou a uma conclus~ao denitiva, mas
convenceu-se de que a menina nasceu com deci^encias
mentais e morreu aos dois anos, de escarlatina.
A pesquisa de Zackheim esta no seu livro, `Einstein daughter: A dark chapter in the early life of Albert
Einstein' (`A lha de Einstein: um captulo negro na
juventude de Albert Einstein, inedito em portugu^es).
Pelo noticiario que o livro provocou, percebe-se que,
mesmo sendo cautelosamente inconclusiva, a descoberta
esbarra na historia do detetive. Se Lieserl tivesse morrido durante o matrim^onio do fsico com Mileva, Einstein n~ao tinha porqu^e procura-la.
Zackheim trabalhou com a ajuda de uma jovem
servia que estudava fsica nos Estados Unidos. Chamase Marija Dokmanovic. Ela ajudou-a traduzindo documentos servios e depois foi a luta por conta propria.
Chegou a uma conclus~ao diferente. Lieserl teria chegado a idade adulta. Por enquanto, Dokmanovic
recusa-se a revelar o nome dessa mulher, pois admite
que lhe faltam provas.
Essa hipotese confere com as suspeitas do professor
Robert Schulmann, da Boston University e guardi~ao do
250
\Descobri que a vida de Einstein e repleta de triunfos e de tragicas ironias. O cientista cuja mente o
levou aos pontos mais distantes do espaco tinha um lho esquizofr^enico que n~ao conseguia atravessar a rua
sozinho. O pacista, que literalmente n~ao mataria
uma mosca, foi obrigado a exigir a fabricaca~o de uma
bomba devastadora. O humanista que demonstrava carinho e interesse pelos lhos dos outros negligenciava os
proprios e mantinha em segredo a exist^encia de sua primeira lha, ilegtima. O amante da solid~ao vivia invariavelmente rodeado de mulheres, cacado pela imprensa
e assediado pelas multid~oes. E o democrata dedicado
era constantemente acusado de comunista ou inocente
util a eles."
VII
Considerac~oes nais
Certamente seria proveitoso aos estudantes de nvel fundamental e medio que os livros didaticos n~ao apenas
No ensino medio e lecionado Optica,
e o caso de
Arquimedes poderia ser explorado em pequenos problemas que abordassem, por exemplo, as propriedades
dos espelhos esfericos de Gauss (lembrando-se que Arquimedes n~ao utilizou espelhos, e sim escudos de bronze
polidos). Por exemplo, um professor poderia oferecer o
seguinte problema aos seus alunos:
\Para Arquimedes queimar as velas de um navio romano que estivesse situado a 50 metros dele, valendo-se
para isso de um unico espelho c^oncavo que obedecesse
as leis de Gauss, qual deveria ser o raio de curvatura
desse espelho?"
No espelho c^oncavo, o foco e real (intersecc~ao efetiva dos raios luminosos). Para queimar as velas da
embarcac~ao, esta devera estar situada no foco do espelho. Sabe-se que o foco de um espelho esferico de Gauss
situa-se aproximadamente na metade da dist^ancia entre o centro de curvatura do espelho e o seu vertice.
Logo, Arquimedes teria que usar um espelho de raio de
curvatura de 100 metros.
A obra \Os Fundamentos da Fsica", Volume 1,
Mec^anica, de Ramalho[10], Nicolau e Toledo, da Editora Moderna, 1999, na pagina 86 relata tr^es mitos galileanos:
Refer^encias
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[2] MARTINS, Roberto de Andrade. Arquimedes e a
coroa do rei: problemas historicos, Caderno Catarinense de Ensino de Fsica, vol. 17, no. 2, agosto de
2000.
[3] THUILLIER, Pierre. De Arquimedes a Einstein A face oculta da invenc~ao cientca, Colec~ao Ci^encia e
Cultura, Jorge Zahar Editor, 1998.
[4] JUNIOR,
James Reston, Galileu, uma vida, Editora
Jose Olympio, 1994.
[5] BRENNAN, Richard. Gigantes da Fsica - Uma