As Nove Vidas de Dewey - Vicki Myron PDF

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por
dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

As nove vidas de Dewey

Folha de Rosto

Vicki Myron
com Bret Witter

As nove vidas de Dewey


Mais histrias do gato
que viveu entre livros
e emocionou o mundo

traduo:
Beatriz Bastos

Disponibilizao: Baixelivros.org
Copyright 2011 by Editora Globo S.A. para a presente edio
Copyright 2008 by Vicki Myron

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edio pode ser utilizada
ou reproduzida em qualquer meio ou forma, seja mecnico ou eletrnico,
por fotocpia, gravao etc. nem apropriada ou estocada em sistemas de bancos
de dados sem a expressa autorizao da editora.
Texto fixado conforme as regras do Novo Acordo Ortogrfico da
Lngua Portuguesa (Decreto Legislativo n 54, de 1995)
eISBN: 978-85-250-5104-2

Ttulo original: Deweys nine lives


Preparao de texto: Marleine Cohen
Reviso: Adriana Bernardino e Carmen T. S. Costa
Paginao: Ana Dobn
Projeto de capa: epizzo
Foto de capa: Rick Krebsbach
Foto de orelha: Tim Hynds
Demais fotos cedidas por: Vicki Myron
Diagramao para ebook: Janana Salgueiro

Direitos da edio em lngua portuguesa


adquiridos por Editora Globo S.A.
Av. Jaguar, 1485 05346-902 So Paulo SP
www.globolivros.com.br

Capa
Folha de Rosto
Crditos
Dedicatria
Prlogo
1 Dewey e Tobi
2 Sr. Sir Bob Kittens
3 Arrepio
4 Tabita, Boogie, Gail, BJ, Chimilee, Kit, Srta. Cinza, Maira, Meia-noite, Preta, LolaBunny, Chazzy, Docinho, Nikki, Facinha, Buffy, Dengo, Caramelo... e outros
5 Gato de Natal
6 Biscoito
7 Marshmallow
8 Gata da Igreja
9 Dewey e Ferrugem
Agradecimentos
Animais carentes

Dedicatria

Para Glenn,
por seu apoio e amor incrveis

Prlogo
Obrigada, Vicki, e obrigada, Dewey
Eu no acredito em anjos, mas Dewey chega perto.
Christine B., Tampa, Flrida

Eu discordo da pessoa que escreveu essa carta, porque acredito que existem anjos andando
entre ns, que nos ajudam a crescer. Acredito em momentos de aprendizagem, quando podemos
aprender algo valioso sobre a vida se nossos olhos estiverem abertos ao mundo que nos cerca. Esses
anjos da oportunidade, como eu gosto de cham-los, possuem diversas formas. Eles aparecem graas
s pessoas importantes em nossas vidas, mas tambm por meio de encontros casuais ou de pessoas
estranhas. Acredito que Dewey Readmore Books,[1] o famoso gato da biblioteca de Spencer, em
Iowa, era um desses anjos. Ele me ensinou tantas lies e afetou tantas vidas, que no acredito que
tenha sido uma mera questo de sorte. E no acredito em coincidncias.
Mas sei o que essa jovem quer dizer. Ela est dizendo que Dewey, atravs de suas aes e de
seu exemplo, transformou sua vida. Ela no tem palavras para descrever esse poder, mas sabe que
algo especial.
Bom, eu tenho uma expresso para isso: a Magia de Dewey. a expresso que usava toda vez
que via a habilidade de Dewey para mudar o modo como as pessoas pensavam a si mesmas.
Ningum viu essas mgicas mais do que eu, porque, de todas as pessoas do mundo, eu era a que
melhor conhecia Dewey, e a mais afetada por ele. Sou apenas uma garota comum do estado de Iowa,
e h muito tempo trabalho como diretora da biblioteca de uma cidade pequena, a menos de vinte
quilmetros da fazenda onde nasci e fui criada. Porm, por dezenove anos, tive o privilgio de
dividir minha vida com Dewey. E o Dewey... bem, ele era especial. Transformou muitas vidas.
Inspirou uma cidade. Ficou famoso no mundo inteiro, foi manchete de revistas e jornais, e foi tema do
livro de memria que ficou em primeiro lugar na lista de mais vendidos do The New York Times, que
eu, sendo a me de Dewey, tive o privilgio de escrever. Foi a Magia de Dewey. Ele era apenas
um gato, mas tinha um modo especial de aflorar o que h de melhor em ns. Ele fazia todo mundo se
apaixonar por ele. Comoveu o mundo. Quem um dia conheceu Dewey Readmore Books nunca mais o

esqueceu.
Sua histria comeou sem estardalhao, durante um final de semana estupidamente frio, em
janeiro de 1988. A temperatura era de menos quinze graus, o tipo de frio que queima o pulmo e
descasca a pele do rosto (ao menos esta a sensao). Esse tipo de frio, frequentemente
acompanhado por ventos ferozes, a pior coisa de morar nas grandes plancies do Norte. A gente
aprende a tolerar o frio, mas no se acostuma com ele. Algumas vezes, no norte de Iowa, no
aconselhvel sair de casa.
Apesar do frio gelado, algum passou pelo centro de Spencer, porque, em algum momento
daquele domingo, um gatinho pequenininho e sem casa foi colocado no buraco de devoluo de
livros nos fundos da Biblioteca Pblica de Spencer. Eu espero que tenha sido um ato de bondade.
Algum viu um gatinho de oito semanas, pesando menos de um quilo, tremendo na neve, e quis
proteg-lo. Se foi isso, a pessoa se enganou. O lugar por onde se fazia a devoluo de livros da
biblioteca era um tubo de metal que descia pouco mais de um metro e levava a uma caixa de metal
fechada. Na verdade, era como uma geladeira. No havia cobertores, almofadas nada macio ,
apenas um metal frio. E livros. Por pelo menos dez horas (talvez 24 horas), o pequeno Dewey ficou
sentado num ambiente terrivelmente frio e escuro, com nada mais para confort-lo alm de livros.
Eu entro na histria na segunda-feira bem cedo pela manh, quando abri a caixa de devoluo
de livros e encontrei um gato minsculo l dentro. Quando ele olhou ansiosamente para mim, meu
corao parou. Ele era to fofo... e to carente. Eu o envolvi com as mos at que parasse de tremer,
depois lhe dei um banho quente na pia da livraria, e o sequei com o secador usado normalmente para
o artesanato das crianas. Depois Dewey assumiu o controle, cambaleando, com seus ps
congelados, em direo a todos que trabalhavam na biblioteca, fazendo carinhos com o nariz.
Eu decidi, naquele momento, que a biblioteca deveria adot-lo. No s porque me apaixonei
quando ele me olhou com aqueles radiantes olhos dourados. Eu sabia, por causa daqueles olhos, e
por causa de sua determinao em agradecer a cada membro da equipe por t-lo salvado, que ele se
encaixaria perfeitamente no meu plano de aquecer o ambiente institucional e frio da Biblioteca
Pblica de Spencer. Ele tinha uma personalidade amvel e extrovertida, uma presena acalentadora,
e fazia todo mundo se sentir bem.
Naquele momento, era exatamente isso que Spencer, Iowa, precisava. A cidade agonizava por
conta de uma crise agrcola, com 70% das lojas do centro vazias e as fazendas do campo indo
falncia. Precisvamos de alguma histria acalentadora. Alguma coisa boa sobre a qual conversar,
uma lio de persistncia, esperana e amor. Se era possvel que um pequeno gatinho tivesse sido
posto numa caixa de metal fria e escura, e que tivesse sado de l com sua confiana e compaixo
inabaladas, ento ns tambm podamos aguentar nossos sofrimentos.
Mas Dewey no era um mascote. Era um companheiro de carne e osso, um animal sempre
receptivo e amvel com todos que adentravam a biblioteca. Ele aquecia os coraes indo de um colo
para o outro. E o que talvez seja ainda mais importante, ele sempre sabia quem precisava mais dele.
Lembro dos aposentados que nos visitavam todas as manhs. Depois que Dewey apareceu,

muitos passaram a ficar mais tempo na biblioteca, conversando mais com o pessoal que trabalhava
l.
Lembro de Crystal, uma aluna do ensino secundrio com graves incapacidades fsicas, que no
fazia nada, s olhava para o cho, at que Dewey a encontrou e comeou a pular na cadeira de rodas
assim que ela entrava pela porta. Ento, Crystal passou a olhar o mundo sua volta. Toda semana,
quando entrava na biblioteca, fazia barulhos, e quando Dewey vinha correndo e saltava sobre ela, um
sorriso explodia de seu corao.
Lembro da nova assistente da seo de livros infantis, que havia se mudado recentemente para
Spencer para cuidar da me doente. Ela e Dewey sentavam juntos toda tarde. Um dia eu a descobri
com uma lgrima no rosto. Percebi o quanto ela andara sofrendo, e que apenas Dewey estivera ali
para ela.
Lembro da mulher tmida que tinha dificuldade para fazer amigos. Lembro do jovem frustrado,
incapaz de encontrar trabalho. Lembro do sem-teto que nunca falava com ningum, mas sempre que
encontrava Dewey o colocava no ombro (o ombro esquerdo, claro; Dewey s ficava no ombro
esquerdo) e andava com ele por quinze minutos. O homem cochichava, Dewey ouvia. Sei que ouvia.
E por escutar, por estar presente, Dewey ajudava a todos.
Mas, acima de tudo, lembro das crianas. Dewey tinha uma relao especial com as crianas de
Spencer. Ele amava os bebs. Deslizava para dentro dos seus carrinhos e se aninhava ao lado deles
com uma expresso de completo contentamento no rosto, mesmo que lhe puxassem as orelhas. As
crianas um pouco maiores faziam carinho, cutucavam e soltavam gritos de alegria diante de Dewey.
Ele ficou amigo de um menino muito alrgico e inconsolvel por no poder ter seu prprio bichinho
de estimao. Dewey passava a tarde com os alunos do ensino secundrio que ficavam na biblioteca
enquanto os pais trabalhavam, brincando com seus lpis e se escondendo nas mangas dos casacos. E
na Hora da histria, a cada semana, ele se roava lentamente em todas as crianas antes de
escolher o colo no qual iria sentar alis, um colo diferente a cada semana. Sim, Dewey tinha
hbitos tpicos de gatos. Dormia muito. Era fresco com essa coisa de carinho na barriga. Comia
elsticos. Atacava as teclas da mquina de escrever (naquela poca, ainda havia mquinas de
escrever) e teclados de computador. Descansava em cima da mquina de xerox, que soprava um ar
quente. Subia nas luminrias. Era impossvel abrir uma caixa em qualquer lugar da biblioteca sem
que Dewey pulasse dentro dela. Mas o que ele realmente fez foi algo no menos felino, mas muito
mais profundo: um por um, ele abriu o corao dos habitantes de Spencer uns para os outros e para a
beleza e o amor em nossa pequena cidade situada no meio das grandes plancies do Iowa.
Era esta a verdadeira Magia de Dewey, sua capacidade de contagiar todas as pessoas que
conhecia com seu jeito alegre, amigvel e relaxado de encarar a vida.
Por que ele ficou famoso? Foi por puro carisma. Eu queria, claro, que ele fosse bem
conhecido em Spencer. Dei duro para que ele ajudasse a mudar a imagem da biblioteca, para torn-la
um ponto de encontro e no apenas um lugar no qual livros eram armazenados. Surpreendeu-me que
algum fora do noroeste de Iowa se importasse com isso. Comeou lentamente, mas depois uma

enxurrada de pessoas passou a aparecer, atradas pela histria do gato especial que inspirava uma
cidade. Primeiro vieram os jornalistas de Des Moines, da Inglaterra, de Boston e do Japo.
Depois, os visitantes. Um casal de idosos de Nova York que atravessava o pas de carro, depois de
conhecer Dewey, todos os anos mandava dinheiro no seu aniversrio e no Natal. Veio uma famlia de
Rhode Island, que estava em Minneapolis para um casamento, a cinco horas de distncia de Spencer.
Veio uma pequena menina doente do Texas que, certamente, havia pedido essa visita como um
presente aos pais. Era incrvel observar esse florescer acidental da fama. As pessoas conheciam
Dewey, passavam um tempo com ele e se apaixonavam. Ento, iam para casa e falavam dele para
outras pessoas, a vinham essas outras pessoas, que saam daqui impressionadas, e, logo depois,
quando nos demos conta, estvamos recebendo telefonemas de um jornal de Los Angeles ou de um
reprter da Austrlia.
Portanto, quando, aos dezenove anos, Dewey morreu depois de servir comunidade de
Spencer e biblioteca pblica, todos os dias, com sua graa e entusiasmo , no me surpreendeu que
seu obiturio, publicado inicialmente em Sioux City, aparecesse em mais de 275 jornais. Tambm
no foi uma surpresa a biblioteca receber milhares de cartas de todo o mundo. Tampouco o fato de
centenas de fs assinarem seu livro de condolncias e comparecerem a uma homenagem improvisada.
Durante dois meses, fomos cercados por reprteres e admiradores que pediam para que falssemos
sobre Dewey. Depois, lentamente, o alvoroo diminuiu. As cmeras foram desligadas e Spencer
voltou a ser a cidade pacata que sempre foi. Aqueles que amavam Dewey, finalmente, ficaram
sozinhos com seus lutos particulares. A celebridade de Dewey acabara, mas as lembranas do nosso
amigo ficaram guardadas em nossos coraes. Quando finalmente enterrei as cinzas de Dewey do
lado de fora da janela da seo infantil da biblioteca, que ele tanto amava, foi na aurora de um dia
gelado de dezembro, e apenas a diretora-assistente da biblioteca estava ao meu lado. E era assim que
ele teria gostado.
Eu sabia que ele deixara um legado, pois Dewey havia me transformado. Ele havia mudado a
todos que trabalhavam na biblioteca. Ele havia mudado Crystal, a garota com deficincia, e o homem
sem-teto, e as crianas que vinham toda semana para a Hora da histria, muitas das quais, depois,
trouxeram seus prprios filhos para conhecer o Dewey mais velho. Eu sabia o quanto ele era
importante, porque as pessoas continuavam me contando suas histrias com Dewey, confiando em
mim, de certa forma. No final, ele tocou mais do que a cidade de Spencer. Mas quem tinha conhecido
Dewey, quem amava Dewey e conhecia sua histria, foi transformado por ele. O seu legado
sobreviveria dentro de ns.
Eu achei que seria assim. Eu realmente achei.
Ento, algo incrvel aconteceu. Escrevi um livro sobre Dewey, e recebi mensagens de pessoas
do mundo todo. O livro deveria ser um tributo ao meu amigo, um obrigado por seus servios a
Spencer e pelo impacto que teve sobre a minha vida. Eu sabia que ele tinha fs, e achei que eles iam
gostar de saber a histria toda. Mas eu no esperava uma resposta to intensa. Muitas pessoas que
iam aos eventos que eu promovia com o livro no gostavam apenas de Dewey ou de ler o livro, elas

amavam os dois. Sentiam-se tocadas pela histria. E sentiam que haviam mudado. Lembro de uma
mulher de Sioux City que desabou em lgrimas quando me contou que a me dela, uma professora de
piano de Spencer que tocava o rgo da igreja, a levava todos os sbados para comer pezinhos
doces de canela e para um passeio at a biblioteca para ver Dewey. Depois, a me teve Alzheimer e,
aos poucos, esqueceu o marido, os filhos e a prpria identidade. Ento, ela dirigia duas horas de
Sioux City, todas as semanas, para visit-la e sempre trazia seu gato. O gato era preto e branco, nada
parecido com a cor de cobre de Dewey, mas sua me sempre sorria e dizia: Oh, o Dewey.
Obrigada por trazer o Dewey. A filha mal conseguiu falar essas ltimas palavras, de tanto que
chorava.
Depois que te conheci, fui para o estacionamento, ela me contou algum tempo depois, sentei
no meu carro e chorei durante uns quinze minutos. As lgrimas no paravam. Minha me est morta
h doze anos, mas foi a primeira vez que eu realmente chorei por ela. Quando pensei em Dewey,
lembrando o quanto minha me o amava, foi o final do meu processo de luto.
O que foi mais estranho? Eu no conhecia essa mulher, Margo Chesebro, ou a me dela, Grace
Barlow-Chesebro (mas, pela descrio que a filha fazia dela, de uma mulher esperta, forte,
independente, que acreditava na magia dos animais, eu sei que teria gostado dela). Ainda assim, elas
haviam conhecido e amado Dewey. Ele foi uma parte constante e importante de suas vidas,
suficientemente importante para que Grace no se esquecesse dele, mesmo estando com a cabea
ruim, mesmo depois de se esquecer para sempre do nome dos seus prprios filhos e de estar
convencida de que o marido era o seu irmo que morrera havia muito tempo. Foi ento que percebi
que eu no poderia nunca, realmente, saber quantas vidas foram tocadas por Dewey.
E havia tambm as pessoas que nunca chegaram a conhecer Dewey, os estranhos que ficavam
to comovidos com sua histria que se sentiam compelidos a me escrever. Isso comeou quase
imediatamente depois da publicao do livro. Eu nunca escrevi para um autor antes, mas fiquei
muito comovido com a histria de Dewey.... Ou: Dewey era um anjo, obrigado por dividi-lo com o
mundo.
Conforme os meses passavam, e o livro alcanava o topo das listas de mais vendidos do pas,
as cartas se tornaram mais frequentes, at que comecei a receber dzias de cartas todos os dias.
Depois de um ano, eu j tinha recebido mais de 3 mil cartas, e-mails e pacotes, quase sempre de
pessoas que nem sequer haviam ouvido falar de Dewey antes de ler o livro. Recebi um travesseiro
com um bordado do rosto de Dewey, como aparece na capa do livro. Recebi diversas pinturas dele.
Uma pessoa que morou em Spencer se mudou, mas nunca se esqueceu de Dewey, encomendou uma
escultura dele para a biblioteca. (Eu sabia que a Magia de Dewey estava funcionando quando vi onde
era o ateli do artista que trabalhava na escultura: Dewey, Arizona.) No d nem para contar quantos
desenhos, enfeites e esculturas de gatos eu recebi de fs. Tenho uma estante em casa s para essas
coisas e ela est transbordando.
Uma pessoa me mandou vinte dlares para comprar rosas para Dewey. Outra mandou cinco
dlares para comprar erva-gato e colocar no seu tmulo. Uma mulher de um centro de telefonia de

Idaho me disse que toda vez que algum liga de Iowa, ela pergunta por Dewey, esperando encontrar
algum que o conhea. Um outro homem me mandou a foto de uma jarra onde guarda moedas, e na
jarra tem uma foto de Dewey. Desde ento, o homem passou a doar esse dinheiro para o socorro de
animais.
Eu leio todos os cartes, cartas e e-mails. Queria responder a todos, mas era impossvel,
tamanha a demanda. Ainda mais porque com frequncia eu estava viajando, encontrando fs de
Dewey. (Mas podem ficar seguros, escritores de cartas, que eu levei as tais rosas e a erva-gato para
o tmulo de Dewey.) Os sentimentos expressos nas cartas, e o modo como Dewey continuava a
transformar a vida das pessoas, me tocaram mais do que os fs podem imaginar.
Um jovem que passara por um divrcio devastador e por problemas em sua profisso coisas
que o deixaram amargo e raivoso escreveu para dizer que a vida de Dewey abriu meu corao.
Uma mulher com esclerose mltipla grave me contou que, depois de ler Dewey, curvou-se at o
cho para beijar a cabea do cachorro da casa de sade onde morava. Precisou de ajuda para se
levantar, mas no se arrependeu do que fez, visto que o co faleceu uma semana depois.
Um homem da Inglaterra escreveu para dizer que havia perdido sua esposa muitos anos antes.
Foi apenas depois de ler Dewey que percebeu que os dois gatos que ela deixara dois animais que o
incomodavam tinham, na verdade, o amparado. Se no precisasse cuidar daqueles gatos, escreveu,
estaria numa depresso negra que poderia ser insuportvel.
A carta de uma mulher jovem da Flrida era tpica. Logo antes de ler Dewey, escreveu, ela
terminara uma relao conturbada de dois anos com um perigoso alcolatra, que destrura sua
autoestima e a levara a criar dvidas e a ter seus bens hipotecados. Eu me senti boba, ela disse, e
mais que tudo, me senti um fracasso. Mas a li seu livro.
Agora, fico feliz de dizer que, ela continuava depois, na segunda-feira volto a estudar. Estou
me esforando para reconstruir a minha vida. Isso no aconteceu por causa do seu livro, mas o seu
livro me deu fora, me fez ter determinao. Acima de tudo, a leitura me fez ver que eu no tinha
chegado ao fim.
Por isso, obrigada, Vicki, e obrigada, Dewey... Eu no acredito em anjos, mas Dewey chega
perto. Mesmo morto, ele tocou vidas, como a minha, atravs de voc. Voc foi realmente abenoada
por ter convivido com algum to especial, mas nem preciso te dizer isso. Eu sei que fui abenoada
por ter Dewey na minha vida, mesmo sem nunca t-lo conhecido.
Se eu fiquei emocionada quando li essa carta? Claro que sim. Comover algum to
profundamente, e ajudar esse algum a ver perspectivas em sua vida, um presente que vou cultivar
para sempre. Fico orgulhosa. E esse presente me foi dado por Dewey.
Desde a publicao do livro, no recebi notcias apenas de estranhos. Velhos amigos e pessoas
da famlia, que estavam distantes da minha vida, me procuraram tambm. Conheci pessoas, como o
meu coautor, os meus editores e o meu agente, que se tornaram verdadeiros amigos. (O ilustrador dos
livros infantis de Dewey chama-se Steven James, o mesmo nome do meu irmo que morreu de cncer
aos 23 anos de novo, a Magia de Dewey!) At meu ex-marido me procurou. Ele era um homem

doce, inteligente, mas tambm sofria de um alcoolismo grave, e prejudicou a minha vida e a sua
prpria mais do que qualquer outra pessoa. Ns tivemos uma filha, mas eu no tinha notcias dele
havia onze anos. At que, depois de ler o livro, ele me escreveu uma carta. Fazia uma dcada que
estava sbrio. Casou-se com sua primeira namoradinha e eles viviam felizes no Arizona. Ele mandou
fotos e parecia bem. Sempre foi um homem bonito. Parecia feliz, e sua mulher tambm. Ele me
enviou uma camiseta que dizia Cuidado, seno coloco voc no meu livro outra de suas piadas.
Ele no ficou chateado com nada do livro, pois era tudo verdade. Me desculpe, ele disse
simplesmente. E terminava a carta: Estou orgulhoso de voc. Eu tambm fiquei muito orgulhosa
dele.
Tambm me procuraram colegas bibliotecrios, pessoas que cresceram no campo, mes
solteiras, nativos de Iowa, pessoas que haviam perdido entes queridos que se suicidaram (no meu
caso, um irmo) e mulheres que sobreviveram ao cncer de mama. Soube de outras mulheres que,
assim como eu, passaram pela experincia terrvel de uma histerectomia desnecessria nos anos
1970. Incluindo uma mulher de Fort Lodge, em Iowa, cuja cirurgia foi feita pelo mesmo mdico e na
mesma poca que eu. A cirurgia quase me matou, ela me disse em uma noite de autgrafos. Fiquei
em coma por uma semana. Minha sade, como a sua, nunca foi a mesma. Nos abraamos. Ela
chorou. s vezes, eu acho, bom saber que no estamos ss.
Comunidade, esse o nome. Comunidade. Eu acredito, fortemente, no poder da comunidade,
seja ela uma cidade real, uma religio ou o amor pelos gatos. Acredito que Dewey seja um livro
sobre pessoas comuns que mostra o que bom e possvel na vida normal, e por esse motivo ele
comoveu tantos coraes. As pessoas gostam de Spencer, Iowa. Gostam dos nossos milharais e da
nossa arquitetura, e tambm gostam do que representamos: simplicidade, muito trabalho (como
antigamente), mas tambm criatividade, comprometimento e amor. (O mdico que me ajudou com
minha mastectomia dupla, dr. Kohlgraf, me disse que, depois de vinte anos, ele afinal havia
conseguido convencer uma das melhores cirurgis da Califrnia a vir trabalhar na sua clnica. Ela leu
o livro, amou e quis morar em um lugar como Spencer.) A honestidade e os valores expressos no
livro Encontre o seu lugar. Seja feliz com o que tem. Trate bem a todos. Viva uma vida boa. No
o material que importa, o amor. E impossvel prever o amor transcendem fronteiras. A histria
de Dewey foi um best-seller na Inglaterra, no Brasil, em Portugal, na China e na Coreia. Eu j fui
convidada para ir Turquia. Um homem de Milo, na Itlia, veio a Spencer s para ver a cidade
onde Dewey vivia. Pessoas do mundo inteiro me disseram que vm visitar a famosa cidade de
Spencer, Iowa. E, mais importante: as pessoas guardam o livro e passam para as geraes seguintes
como um tesouro de famlia. Vocs acham que porque elas se importam tanto assim com a histria?
No, claro que no. Elas querem dividir o poder do amor que est tecido naquelas pginas.
Em outras palavras, o que essas pessoas buscam a Magia de um animal especial chamado
Dewey Readmore Books, um gato que conseguiu, dentro das paredes de uma pequena biblioteca do
estado de Iowa, comover o mundo. Como eu disse no comeo, tudo isso para e por causa de
Dewey. No haveria um livro sem ele. Como escreveu a jovem mulher da Flrida, todos os leitores

experimentaram a Magia de Dewey nas suas vidas, mesmo sem nunca o terem conhecido
pessoalmente.
Dewey est vivo! Mesmo no estando mais aqui, ele vive na memria, como uma lembrana,
um exemplo do que correto no mundo. Mais importante, eu percebi, conforme lia cartas e mais
cartas, Dewey vivia em todos os outros animais que compartilhavam sua ternura, sua vontade de
brincar, sua ateno e devoo. O que eu mais gostava nas cartas era que 30% eram escritas por
homens (incluindo dois xerifes amantes de gatos), mas todos comeavam dizendo: Eu sei que voc
nunca recebeu cartas de homens.... No se preocupem, homens de verdade amam gatos tambm! Mas
o mais importante, que eu li repetidas vezes, era isto: Dewey me emocionou, porque ele me
lembrava do meu prprio bicho de estimao.
Aos poucos, percebi que Dewey havia tocado no amor profundo que pessoas ao redor do
mundo sentem por animais. E aquele Dewey, o livro, deu a essas pessoas algo igualmente importante:
um modo de compartilhar seu amor. Acredito que de algum modo o livro fez com que fosse aceitvel
dizer a um estranho, mesmo que esse estranho fosse eu: Eu amo meus gatos. Eles so importantes.
So meus amigos. Eles mudaram a minha vida. Quando morrerem, vou sentir muitas saudades.
Como um homem me escreveu, aps relatar o quo mal se sentiu ao passar por um divrcio difcil, e
como os seus gatos foram a sua nica luz durante esse triste perodo:
Primeiro pensei, meu Deus, como posso amar tanto dois animais? Deve haver algo errado comigo. Minha vida deve estar
muito vazia. Eu tinha vergonha de admitir para mim mesmo o quo importante eram os gatos na minha vida. Ento li seu
livro e entendi que no havia nada de errado em amar um animal to profundamente. De algum modo, seu livro me mostrou
ser normal amar os meus gatos dessa maneira, e mostrou ser normal eu querer explorar ainda mais este amor,
aprofundando a nossa amizade e entrelaando as nossas vidas ainda mais.
Obrigado.

Por muito tempo, a palavra que vinha mente das pessoas quando ouviam falar de uma relao
profunda entre um gato e uma pessoa era: triste. Mas eu era apaixonada pelo meu gato. E no era a
nica, de modo algum. Eu acho que Dewey, atravs de sua generosidade de esprito e de sua
personalidade cativante atravs da Magia de sua vida na biblioteca de uma pequena cidade ,
tornou-se smbolo da conexo vital que tantos seres humanos tm com os animais da sua vida.
Em As nove vidas de Dewey, voc vai ler nove histrias sobre gatos extraordinrios e sobre as
pessoas que os amavam. Trs dos captulos se passam em Spencer, Iowa, ou por perto, e contam
histrias de Dewey que no entraram no primeiro livro porque eu desconhecia essas histrias na
poca. As outras seis histrias so sobre pessoas que me escreveram depois de ler Dewey. So os
colaboradores mais puros: fs que escreveram apenas para expressar admirao e amor por Dewey e
por seus prprios animais, sem esperar nada em troca.
Sero estas as melhores histrias que poderiam sair daquelas 3 mil cartas? No sei. Afinal, em
boa parte dos casos, uma ou duas frases bastavam para me impressionar.
Fizemos de nossa casa um abrigo para gatos abandonados ou maltratados...
Ele sobreviveu ao ataque de um coiote e a uma patada de urso, e andou quase cinquenta
quilmetros para voltar para mim, depois que uma mulher vingativa o levou para longe apenas para

me fazer sofrer.
Eu nunca fui amada por ningum, nem mesmo pela minha filha nem pelos meus pais, tanto
quanto fui amada pela minha Biscoito.
Quando eu e meu coautor, por meio de telefonemas, investigvamos as cartas, ouvamos
histrias completamente inesperadas sobre pessoas e gatos. Algumas melhores, outras piores. Todas
genunas, histrias comoventes sobre pessoas de verdade e seus animais. Depois de Dewey, as
pessoas me aconselharam a escrever sobre o gato achado no sof doado a Goodwill, sobre o gato
queimado que viram no noticirio local, sobre o gato de um olho s, ou sobre o gato sem orelha que
passou a vida num bar de Chicago. Mas pensei: por qu? Qual a conexo com Dewey? So
histrias fofas, mas onde est o amor? Se eu for contar essas histrias, quero que tenham o mesmo
fundamento de Dewey: a ligao especial entre um gato e uma pessoa. Eu queria escrever histrias
sobre pessoas cujas vidas tivessem sido transformadas por causa de seu amor por um gato.
As pessoas neste livro no se veem como heris. Como costumo dizer, elas no fizeram nada
que pudesse aparecer no programa Today ou no telejornal da manh. So pessoas comuns, que levam
uma vida normal e tm animais normais. No sei dizer se so as melhores histrias entre todas as
cartas, mas posso assegurar uma coisa: eu gosto de todas as pessoas deste livro. So como as
pessoas com as quais cresci em Spencer, o tipo de gente que quero como amiga. Com os seus gatos,
elas encarnam tudo que Dewey significava: bondade, perseverana, moralidade, trabalho duro e
fora inesgotvel, no importam quais as circunstncias, so fiis aos seus valores e a si prprias. Se
a ressonncia das histrias de Dewey ocorre, em parte, pelos valores que representa, ento eu queria
que essas pessoas tambm refletissem esses valores. E acho que elas conseguem. Fico orgulhosa de
ter conhecido cada uma delas.
Eu no sei se voc vai gostar de todas as atitudes tomadas pelos personagens deste livro. Voc
no vai, porque eu mesma no concordo com algumas. Por mais que tente, por exemplo, no consigo
aceitar o fato de Mary Nan Evans no ter castrado suas gatas antes. Simplesmente no aceito. Outros
deixam seus animais passear fora de casa, mesmo que todo mundo saiba que isso diminui a
expectativa de vida deles. Alguns gatos parecem muito mimados, ou sufocados, ou
antropomorfizados. Sei que vo discordar. Afinal, eu mesma recebi e-mails raivosos porque deixei
Dewey comer sanduches de rosbife do Arby durante seu ltimo ano de vida. Eu amava aquele gato
com todo o meu corao; eu dava a ele tudo que podia; ele viveu dezenove anos maravilhosos
dezenove! e, mesmo assim, pessoas me maltrataram ou me chamaram de assassina porque, no final
da vida dele, por um ato de misericrdia que rasgou o meu corao, eu o botei para dormir.
Se voc se sentir tentado a criticar, pare e pense no seguinte: todas as pessoas neste livro
amavam seus animais, intensa e profundamente. Todas elas fizeram o melhor que podiam, do modo
como sabiam, pelos seus animais. Se tomaram decises com as quais voc discorda, isso no
motivo para julgar seu carter. Elas simplesmente so diferentes de voc. Ou viveram em um tempo
diferente, com um entendimento diferente de como animais e pessoas se desenvolvem juntos. Ou, em
muitos casos, as duas coisas. No mudamos nada nas histrias deste livro. Nada foi enfeitado. Este

no o Feiticeiro de Gatos ou um guia sobre como cuidar de gatinhos. Esta uma coleo de
histrias sobre como vivem gatos reais e pessoas reais.
Este livro no um Dewey: a sequncia, nem deseja ser isso. H apenas um Dewey (o livro),
assim como h apenas um Dewey (meu incrvel gato). Mas h milhares de histrias. H milhes de
gatos que poderiam, se tivessem uma chance, mudar uma vida. Eles esto por a, morando com as
pessoas que aparecem neste livro e com milhes de outras como elas. Eles tambm esto por a
vivendo em condies bem piores: em abrigos, com grupos de gatos selvagens, ou lutando para
sobreviver sozinhos em ruas frias, esperando uma chance.
De todas as lies que aprendi nos ltimos vinte anos, talvez a mais importante seja esta: anjos
existem em todas as formas. O amor pode chegar de qualquer lugar. Pode mudar uma cidade. De um
modo pequeno, pode mudar o mundo.
Assim como voc.

1
Dewey e Tobi

Ela era uma gata calma, gentil e nunca se metia em encrenca com ningum. S queria viver e
deixar viver, entende o que eu quero dizer?
Para quase todo o mundo, a minha amada Spencer, em Iowa, com uma populao de mais ou
menos 10 mil pessoas, uma cidade pequena. As ruas, em sua maioria numeradas numa malha
quadrangular que se estende 29 quadras de norte a sul (com um rio no meio) e 25 quadras de leste a
oeste, so fceis de entender. As lojas, que basicamente ficam ao longo da Grand Avenue, nossa rua
principal, so suficientes sem serem opressivas. A biblioteca de um nico pavimento, prxima
esquina da Grand Avenue com a Third Street, no corao do centro da cidade, familiar e
acolhedora.
Mas tamanho relativo, sobretudo num lugar como Iowa, um estado com um sexto da populao
da Flrida, mas quase o dobro de cidades incorporadas.[2] Muitos de ns somos de cidades ainda
menores do que Spencer, como Moneta, o lugar que considero minha cidade natal, ainda que eu tenha
crescido numa fazenda a trs quilmetros de distncia. Moneta tinha seis quarteires e cinco
edifcios comerciais, se voc incluir o bar e o salo de baile. No seu auge, a populao era de pouco
mais de duzentas pessoas. Isto menos gente do que as que atravessam a porta da Biblioteca Pblica
de Spencer todo dia.
Assim, por aqui, na rea rural de Iowa, Spencer grande. o tipo de cidade para a qual as
pessoas se dirigem, e no simplesmente passam por ela. o tipo de cidade onde voc reconhece a
maioria das pessoas, mas no necessariamente sabe seus nomes. Uma cidade onde todos ficam
sabendo do fechamento de um negcio, e tm uma opinio sobre isso, embora nem todos sejam
diretamente afetados pelo fato. Quando uma fazenda vai mal em Clay County, onde Spencer se
localiza, talvez a gente no se lembre do fazendeiro, mas lembramos de algum como ele, e nos
interessamos e entendemos do assunto. No importa se somos de uma velha linhagem de agricultores,
ou um dos recentes imigrantes hispnicos que ocupam vrias funes na enorme economia agrcola
industrial, pois compartilhamos mais do que um pedao de terra de linhas retas e cuidadosamente

demarcado chamado Spencer, Iowa. Compartilhamos uma atitude, uma tica de trabalho, uma viso
de mundo, e um futuro.
Mas nem todo mundo se conhece. Como diretora da Biblioteca Pblica de Spencer, isso sempre
foi claro para mim. Eu podia andar pela biblioteca a qualquer momento, em qualquer dia, e
reconhecer os visitantes costumeiros. Eu sabia o nome de muitos deles. Cresci com muitos deles, e
geralmente conhecia suas famlias tambm. Lembro-me de um frequentador costumeiro, mais de uma
dcada atrs, que durante alguns meses ficou cado em completo esquecimento. Eu o conhecia desde
a escola, e conhecia seu passado. Ele se envolvera pesadamente com drogas, largou o vcio, mas
ficou claro que enfrentava problemas de novo. Ento, liguei para seu irmo, um velho amigo que veio
dirigindo de fora do estado para providenciar ajuda. Esta a bno de uma cidade como Spencer:
as ligaes so profundas. Socorro e amizade esto frequentemente a um telefonema de distncia.
Mas a biblioteca atraa visitantes de nove municpios quando eu me aposentei, ns tnhamos
18 mil membros associados, quase o dobro da populao de Spencer , ento no havia jeito de
conhecer todo mundo. Um dos muitos visitantes costumeiros que eu reconhecia (mas no conhecia)
era uma mulher chamada Yvonne Barry. Era quinze anos mais jovem do que eu, ou seja, eu no a
conhecia da escola. Ela no era originalmente de Clay County, ento eu no conhecia a famlia dela.
O pessoal ficava de olho no homem desabrigado que vinha toda manh ver Dewey, pois queramos
ter certeza de que ele se portava bem, mas Yvonne estava sempre bem-vestida e arrumada, ento
nunca pareceu haver motivo para nos preocuparmos. E ela era muito quieta. Nunca puxava conversa.
Se voc dissesse, Bom dia, Yvonne, o mximo que recebia era um sussurrado Oi. Ela gostava de
revistas, e sempre levava livros. Alm disso, eu s sabia uma coisa sobre ela: ela amava Dewey. Eu
podia ver pelo sorriso em seu rosto sempre que ele se aproximava.
Todo mundo achava que ela tinha uma relao nica com Dewey. Eu no sei quantas vezes
algum cochichou para mim, em estrita confidncia: No diga a ningum, pois vo ficar com
cimes, mas Dewey e eu temos algo especial. Eu sorria e concordava e esperava pelo prximo que
me diria exatamente o mesmo. Dewey era to generoso em seu afeto, veja voc, que todo mundo
sentia a ligao. Para eles, Dewey era nico. Mas, para Dewey, eles eram um entre trezentos...
quinhentos... mil amigos costumeiros. Eu pensava que ele no podia guardar todos no corao.
Ento, presumi que Yvonne fosse mais uma companhia ocasional. Ela passava seu tempo com
Dewey, mas eles no corriam um para o outro. No me lembro de Dewey esperando por ela. Mas, de
algum modo, durante as visitas de Yvonne, eles pareciam sempre terminar juntos, zanzando pela
biblioteca numa busca secreta e silenciosa, contentes e quietos como peixes no fundo do mar.
Foi apenas quando Dewey morreu que Yvonne comeou a falar. Um pouco. Durante dezenove
anos eu acompanhei o invarivel fluxo das conversas de Dewey com muitos dos frequentadores da
biblioteca. Depois de sua morte, parecia que s podamos conversar sobre isso. No entanto, foi
somente quando o nervosismo inicial passou, quando a marcha pesada e fria do inverno assentou, e
quando a percepo de que Dewey morrera j havia penetrado fundo nos nossos ossos, que Yvonne
me abordou, quieta e nervosamente, e falou sobre Dewey. Disse-me o quanto ela esperava para v-

lo. O quanto ele a havia entendido. O quo gentil e bravo ele era. Contou-me, mais de uma vez, do
dia em que Dewey dormiu em seu colo por uma hora, e como isto a fez se sentir especial.
lindo isso, eu lhe disse. Obrigado.
Eu apreciei sua considerao, tanto mais por saber o quo difcil era para ela iniciar uma
conversa. Mas eu estava ocupada, e nunca perguntei mais nada a ela. Por que deveria? Dewey
sentava no colo de todo mundo. Claro que era especial.
Aps algumas poucas conversas, Yvonne parou de falar. Ela voltou para os bastidores e seu
momento especial com Dewey tornou-se apenas outra pincelada no gigantesco retrato da vida dele.
Foi somente dois anos depois, aps saber como ela havia ficado alegre por seu nome ter aparecido
em Dewey, que voltei a conversar com ela. At ento eu tinha colecionado tantas histrias doces,
porm ingnuas, de frequentadores da biblioteca a respeito de Dewey histrias que diziam pouco
mais do que Eu no sei explicar, ele apenas me fazia feliz que duvidei de que nesta histria
haveria algo especial.
Mas a histria de Yvonne era diferente. Havia algo na ligao dela com Dewey que me fez
lembrar por que eu sempre amei bibliotecas. E cidades pequenas. E gatos. Yvonne era to fechada,
tenho de admitir, que no descobri muito a seu respeito. Na poca eu achava que sabia, mas quando li
essa histria, percebi que ela permanecia, e sempre permanecer, um tanto misteriosa.
Em lugar disso, aprendi como vidas podem ser diferentes, mesmo quando vividas lado a lado. E
como fcil se perder, mesmo numa cidade pequena e simples como Spencer, Iowa. Aprendi como
difcil conhecer algum, e como isso pouco importa, se o seu corao estiver aberto s necessidades
dessa pessoa. No temos que entender, temos apenas que nos importar.
Mais uma vez, isto algo que eu aprendi com Dewey. Esta era a sua Magia. Afinal, suponho,
esta mais uma histria sobre ele.
***
Yvonne cresceu em Sutherland, Iowa, uma cidade de mais ou menos oitocentas pessoas, a
cinquenta quilmetros a sudoeste de Spencer. Seu pai era o que poderamos chamar de um faz-tudo.
Ele trabalhou numa pequena fazenda alugada, prximo estrada municipal M12, serviu numa srie de
cargos administrativos de baixo escalo do municpio e tinha um velho caminho de gua que ele
enchia no poo da sua propriedade e distribua entre os currais da regio. Eu conheci muitos homens
como ele: calado e de andar meio arrastado, quase sempre despercebido, mas sempre l; um bom
rapaz esperando um empurro que nunca chega. Finalmente, depois de terem decidido afast-lo do
escritrio, a famlia deixou a fazenda alugada e se mudou para uma casa na cidade. O pai dela
comeou a trabalhar na fbrica. Yvonne, com cinco anos e a mais nova entre cinco crianas, passou a
cuidar dos gatos que perambulavam pela nova propriedade.
Eu mesma me lembro destes dias de infncia no campo: as longas e lentas estaes, as horas
gastas brincando com meus irmos no quintal, enquanto meus pais trabalhavam para fazer a fazenda
produzir. Eu ainda lembro, como se fosse ontem, da tarde em que meu pai apareceu em casa com

Bola de Neve, o primeiro animal que amei na vida. Era um dia quente de comeo de vero, e eu
estava no quintal vendo-o se aproximar cada vez mais, saindo do milharal que batia na altura dos
seus joelhos. Papai transpirava horrores sob o chapu, o que quase pareciam lgrimas, e, como eu
segui o seu rastro para dentro de casa, pude ver que ele tinha alguma coisa nas mos, ainda que no
soubesse o qu.
Deve ter nascido no campo, ele disse minha me, porque havia um bando deles escondidos
por l. A me e os outros bebs foram mortos pelo arado. Esta aqui, ele disse, levantando a gatinha
coberta de sangue, teve as patas de trs cortadas.
A maioria dos fazendeiros teria deixado o animal gravemente ferido morrer, deixando a
natureza tomar seu prprio curso, mas, quando meu pai viu que a gatinha ainda estava viva, ele a
apanhou e correu para casa. Minha me, que amava animais tanto quanto meu pai, assumiu o comando
a partir dali e cuidou da gatinha, dando-lhe leite de garrafa durante um ms. noite, dava-lhe
cobertores quentes e, durante o dia, deixava-a ficar em sua cozinha abafada. Eu monitorava minha
me cuidando dela, maravilhada com a recuperao da gatinha. Pelo meio do vero, os cotos de Bola
de Neve tinham cicatrizado. Muitas pessoas acham que os gatos so preguiosos, mas o esforo que
Bola de Neve fez! A determinao! Num piscar de olhos, desenvolveu a habilidade de se equilibrar
sobre as duas patas dianteiras, com as costas suspensas na vertical. Ento ela aprendeu a pular com
as duas patas, com o traseiro balanando no ar como uma dama pomposa e com o rabo apontando
para o cu. Eu adorava isso. Naquele vero, eu e Bola de Neve brincvamos juntas todos os dias. Eu
corria ao redor do terreno, sorrindo e gritando, e ela saltitava atrs de mim, com as costas
tremulando. No outono, ao fim de cada dia de aula, eu saltava do nibus, jogava a mochila no cho e
corria para o quintal gritando por ela. Ela no viveu muito, e quando morreu fiquei inconsolvel por
um tempo, mas jamais vou esquecer o modo como Bola de Neve danava pelo quintal, em cmera
lenta, como se estivesse fazendo um passo de dana acrobtico de suingue. A determinao dela, e a
lio dos meus pais de respeitar e amar cada ser vivo, foram os duradouros legados do meu vero
com Bola de Neve.
O quo diferente foi a experincia de Yvonne aos cinco anos? No sei. No sei se ela brincava
com seus irmos mais velhos, ou se ficava sozinha no quintal. No sei se ela escolheu a companhia
dos gatos devido solido ou a um amor natural. Eu sei que seus pais, assim como muita gente da
fazenda, no pensavam muito em gatos e tampouco a ajudavam a cuidar daqueles que apareciam no
seu quintal. Os gatos sempre morriam ou sumiam, Yvonne me contou. Isso partia meu corao.
Mas os meus pais nunca compravam comida para eles, no importava o quanto eu pedisse. Diziam
que no podiam bancar.
Minha lembrana de infncia mais clara a de meu pai, com aquele gato machucado nas mos,
falando com minha me. A lembrana mais clara de Yvonne a de uma fotografia. Ela tinha seis
anos. Sua me queria uma foto dos filhos com os seus gatos favoritos. Yvonne no conseguiu
encontrar o seu, um gatinho preto e branco conhecido como Preto e Branco. Sua me lhe disse para
parar de procur-lo e que ficasse com seu irmo e sua irm, que mostravam gatos agitados para a

cmera.
Vamos, agora, sorriam, sua me ordenou.
Eu no achei meu gatinho.
No importa. Sorria.
Depois, Yvonne ficou olhando para os campos vizinhos, mordendo os lbios. Existem espaos
vazios e planos em Iowa, mesmo nas cidades, onde voc pode ver o mundo expandindo-se a partir de
voc. D para olhar sempre l fora se voc continuar procurando, mas, afinal, Yvonne se virou,
caminhou at a me e perguntou se ela tiraria uma foto dela com algum dos outros gatos.
No, disse a me. No tenho mais filme.
Eu queria chorar, me disse Yvonne, mas no chorei. Eu sabia que eles iam rir de mim.
Dez anos depois, quando Yvonne tinha dezesseis anos, seu pai arrumou um trabalho na fbrica
Witco e a famlia mudou para Spencer. Lembro de me aventurar em Spencer quando ainda era uma
adolescente vivendo na cidade prxima de Hartley. Foi assustador. As meninas da Escola Secundria
de Spencer pareciam to mundanas, to preocupadas em estar na moda e a falar com garotos, e se
agrupavam nas esquinas como se fossem as Garotas Rosas do filme Grease Nos tempos da
brilhantina. Lembro-me de achar que elas eram fisicamente maiores do que ns, crianas do campo,
e que, se quisessem, poderiam nos esmagar. Isto era Spencer para mim, mas eu tinha contrapartidas.
Minha av morava na cidade, ento eu conhecia as ruas e lojas; eu fui para a Escola Secundria de
Hartley, uma das maiores escolas da regio; eu era uma garota extrovertida e popular que quase
nunca se sentiu fora do lugar ou subjugada. Ento, posso imaginar como deve ter sido para Yvonne,
uma garota tmida que nunca estivera em Spencer, que nunca fora bem na escola e que nunca se
sentira confortvel em situaes sociais, mesmo em Sutherland. Eu entendi o que ela queria dizer
quando me disse que o seu ano e meio no ensino mdio de Spencer fora uma tortura.
Seus pais lhe deram algo para atenuar a solido: um gato. Pouco antes de se mudar para
Spencer, o gato de sua tia May dera luz uma ninhada de gatinhos meio siameses. Quando chegou
para a adoo, a ruidosa ninhada correu em disparada pelo quintal, deitando e rolando e lanando
sujeira na cara uns dos outros. Yvonne ficou pasma. Olhou para eles e pensou: Como vou conseguir
escolher meu gato?
Ento uma gatinha, que devia estar se escondendo, engatinhou e encarou seus grandes olhos
tmidos, como se estivesse sussurrando na voz mais doce e calma imaginvel: Oi.
Est certo, fico com voc, Yvonne sussurrou de volta.
Chamou a gatinha de Tobi. Ela era mais marrom e redonda do que uma tpica siamesa, mas tinha
a suave exuberncia e os vistosos olhos azuis to tpicos da raa. E doce no era apenas uma
descrio do seu pelo. Tobi era uma gata doce. De fala macia. Suave nas maneiras. Tambm no era
valente. Corria quando qualquer um entrava em um aposento; corria ao ouvir alguma porta abrir em
qualquer lugar na casa; disparava at a segura cama de Yvonne s de ouvir pegadas nas escadas. Ela
saiu de casa apenas uma vez, passando por Yvonne que estava na soleira da porta. Yvonne foi at a
varanda de concreto e viu Tobi desaparecer ao redor da casa de seus pais em Spencer. Ela percorreu

o caminho inverso e encontrou-a nos fundos da casa. Tobi veio lacrimejante em direo a ela e saltou
direto em seus braos, com um olhar de terror no rosto pequeno e doce.
Oh, no faa mais isso, gatinha, Yvonne suplicou. Por favor, no faa mais isso. Era
impossvel dizer quem estava mais assustado.
Tobi adorava um colo. Foi como Yvonne a descreveu. Ela sempre queria ficar em cima de
mim. Dormia na minha cama todas as noites.
Eu aposto que isso fazia voc se sentir bem, eu respondi.
Sim, fazia, ela disse. Ento, sentava olhando para mim, esperando pela minha prxima
pergunta.
Concluda a escola, Yvonne juntou-se ao seu pai na Witco. A fbrica produzia ferramentas
hidrulicas, conhecidas como pistolas de lubrificao, que esguichavam graxa dentro de pequenos
espaos em motores de carros e outras mquinas. Depois de suas dificuldades na escola de Spencer,
a linha de produo era um alvio. O trabalho era acelerado, alm de exigir grande esforo fsico,
mas Yvonne era jovem e forte. Ela podia apertar parafusos to velozmente quanto qualquer um na
linha, e isso no lhe exigia conversar com seus colegas.
No era o melhor emprego do mundo, me disse, como se se sentisse desconfortvel pelo seu
orgulho bvio por uma tarefa bem-feita. Mas era trabalho. E no h nada melhor, como eu bem sei,
que um trabalho em que voc se saia bem.
Yvonne no tinha muita vida social fora da fbrica, mas sempre que finalizava um turno, ela
podia contar com uma coisa: Tobi estaria esperando. A gatinha gostava de lugares altos, longe de ps
que pudessem chut-la e de braos balanantes, e frequentemente olhava Yvonne de cima da estante
de livros. Outras vezes, Tobi ficava observando do alto das escadas quando Yvonne abria a porta de
entrada. Se no havia mais ningum, Tobi a seguia de perto: at a cozinha ou o gabinete. Mas quando
algum mais aparecia, ambas iam para o quarto de Yvonne e fechavam a porta. Tobi, Yvonne logo
percebeu, passava a maior parte do dia em sua cama, sob suas cobertas, esperando que a nica
pessoa com quem ela se sentia confortvel retornasse. E mesmo que a ideia nunca tenha atravessado
sua mente conscientemente, isto era exatamente o que Yvonne queria: um amigo que sempre estivesse
l para ela.
Depois dos vinte anos, Yvonne se mudou da casa dos pais para um prdio de quatro andares
com sua irm mais velha. Tobi adorou a quietude. Yvonne adorava ficar sozinha. Ela progrediu na
linha de montagem, fixando pequenos pinos em pistolas de lubrificao. Durante anos, a teia de ruas
numeradas de Spencer a intimidou, e todo mundo que cruzava o seu caminho lhe parecia um estranho.
Mas lentamente ela desenvolveu um apreo pelos padres e comeou a reconhecer os rostos ao seu
redor. Ela fazia compras nas lojas ao longo da Grand Avenue ou no novo centro comercial no lado
sul da cidade. Comprava roupas na Fashion Bug e a comida favorita de Tobi num pequeno pet shop
local. Para um Halloween, ela comprou uma mscara assustadora. Vestiu-a e subiu a escada fazendo
barulho. Cruzou a porta do quarto com um gemido baixo Ahhhhhhh e os belos olhos siameses
de Tobi espocaram para fora da cabea. Ela comeou a andar para trs, seu pelo arrepiou-se de

medo e Yvonne se sentiu to mal que logo arrancou a mscara.


Ah, Tobi, disse. Sou eu.
Tobi encarou-a por alguns segundos mais, ento se virou e olhou para longe, como se dissesse,
eu j sabia.
No dia seguinte, Yvonne decidiu assustar Tobi novamente. Colocou a mscara e caminhou
pesadamente at o quarto. Tobi deu uma olhada e se afastou, enfadada, como se dissesse, Por favor.
Eu sei que voc.
Yvonne riu Voc uma espertinha, no , Tobi? e lhe deu um abrao. A vida era simples,
mas era boa. Yvonne Barry tinha achado sua zona de conforto; ela encontrou uma companhia e estava
feliz. Sua vida era vivida atravs de detalhes repetidos, pequenos momentos no tempo. No Natal,
Yvonne construiu um pequeno tnel com os presentes e Tobi sentou naquele tnel durante dias. Eu
achava que ela era nica. Tobi adorava a rvore de Natal. Mas ento eu descobri que muitos gatos
faziam o mesmo.
noite, em seu quarto, Yvonne fazia Tobi girar numa cadeira giratria; e a pequena gata dava o
bote em suas mos a cada giro. Mesmo dcadas depois, Yvonne sorria com a lembrana. Tobi
adorava aquela cadeira giratria. E se Tobi amava isso, ento Yvonne amava tambm.
Quando, em meados dos anos 1980, a economia local piorou e Yvonne perdeu muitos turnos
semanais, ela voltou para a casa dos pais. Eu no sei como Yvonne realmente se sentiu em relao a
isso porque ela no falava nada, mas acho que a mudana no foi grande. Meu aluguel era alto, foi
tudo o que me disse. Perguntei aos meus pais se poderia voltar, e eles disseram que tudo bem.
s vezes, meu pai balanava o dedo embaixo do jornal, ela continuou. Tobi pulava em cima
e papai ria. Mas, de modo geral, com os meus pais, Tobi ficava no fundo da cadeira, olhando pela
janela, enquanto meu pai lia o jornal.
Eu no sei o que pensar de uma histria assim. Ser que havia mais diverso e risos na casa do
que eu imaginava? Ser que Tobi conseguiu quebrar o gelo com aquele homem calado? Ou ser que o
jogo com o jornal era apenas um breve momento de leveza em um universo quase sempre montono e
empoeirado? Eu quero ouvir a risada, mas s consigo pensar nas horas e dias e semanas e at dos
meses, se entendi bem as inflexes de Yvonne que se passavam entre uma brincadeira e outra com o
jornal. S posso imaginar um homem de idade sentado silenciosamente em sua cadeira, um jornal
cobrindo seu rosto, um pequeno gato olhando pela janela. Os irmos de Yvonne haviam se mudado, e
no acredito que nada mais do que um vazio preenchesse as longas horas na casa quieta. A me lia
romances no quarto. O pai assistia beisebol na televiso. Yvonne e Tobi ficavam l em cima, quietas
feito ratos, brincando de dar voltas na cadeira giratria.
Mas ento, a apenas poucos quarteires de distncia, estava Dewey.
***
Uma biblioteca mais do que um lugar de armazenamento de livros. Na verdade, a maioria dos
bibliotecrios inteligentes que eu conheo acredita que uma das funes principais de uma biblioteca

no envolve sequer livros. Essa funo a abertura e a disponibilidade. Em um mundo em que muitas
pessoas se sentem deslocadas pela sociedade, uma biblioteca um lugar livre. Quantas vezes voc
no ouviu um adulto hoje bem-sucedido, mas outrora uma criana pobre dizer que a biblioteca
salvou sua vida? Sim, o conhecimento armazenado nos livros, e agora nos computadores, expandiu o
universo para alm dos limites estreitos do pedao de mundo em que essa criana vivia. Mas a
biblioteca tambm oferece outra coisa: espao. Se houvesse uma briga em casa, a criana poderia
refugiar-se no silncio. Se a criana se sentisse negligenciada, poderia encontrar interao humana.
No sequer necessrio, em uma biblioteca, falar com algum. maravilhoso como as pessoas esto
ligadas. s vezes, basta estar junto a algum, mesmo que no se diga nada.
Quando me tornei diretora da Biblioteca Pblica de Spencer, minha primeira prioridade foi
torn-la mais aberta, acessvel e amigvel. Livros e materiais novos faziam parte do meu plano, mas
eu tambm queria mudar a atitude do lugar. Queria que as pessoas se sentissem confortveis naquele
ambiente, que se sentissem parte de uma comunidade, e no meros visitantes de um prdio pblico
municipal. Fiz com que as paredes fossem pintadas de cores mais fortes e troquei os imponentes
mveis pretos por mesas e cadeiras mais confortveis. Criei fundos para comprar obras de arte para
as paredes e esculturas para colocar sobre as estantes. Instru os funcionrios que sorrissem e
cumprimentassem todos que chegassem. Menos de seis meses depois, quando Dewey apareceu na
caixa de devoluo de livros, percebi imediatamente que ele caberia com perfeio dentro do meu
plano. Eu sabia que ele era um gatinho calmo e que nunca criaria problemas. Mas achei que ele seria
apenas um figurante, como uma obra de arte qualquer, fazendo com que a biblioteca parecesse uma
casa.
Mas Dewey no tinha inteno alguma de ficar nos bastidores. Assim que suas patas sararam
(ele ficou com feridas por causa do frio na caixa de devoluo de livros) e pde caminhar pela
biblioteca sem desconforto, Dewey insistiu em ser o centro das atenes. Para um bibliotecrio,
porm, um paradoxo se coloca: que, para uma biblioteca funcionar, no se pode ser
demasiadamente amigvel. Queremos que as pessoas se sintam bem-vindas, mas no invadidas. Uma
biblioteca no um ambiente social. Pode-se entrar na hora que se quer, mas no preciso se
envolver mais que o desejado. uma escolha. Quem quiser conversar, pode bater papo o dia inteiro.
Quem quiser ficar annimo, a biblioteca assegura isso tambm. Muitas pessoas, especialmente os que
so marginalizados, ou os que ficam nervosos em situaes sociais, adoram o modo como a
biblioteca mistura privacidade e espao pblico uma oportunidade de estar cercado por pessoas
sem a presso de ter que interagir com elas.
Isso pode criar questes difceis de serem resolvidas pelos bibliotecrios, como, por exemplo,
o caso de Bill Mullenberg. Durante dcadas, Bill foi o diretor da Escola de Ensino Mdio de
Spencer, um trabalho no apenas respeitado e importante, mas que tambm exigia que ele falasse com
centenas de pessoas todas as semanas. Eu sei que a aposentadoria foi difcil para Bill, porque
sempre difcil deixar para trs o trabalho de uma vida. Mas a transio de Bill tornou-se ainda
mais difcil devido morte de sua esposa amada.

Depois que ela morreu, ele comeou a vir todas as manhs biblioteca para ler os jornais e
eu sei que no era para economizar o custo com uma assinatura. Bill estava solitrio em casa e queria
um lugar para onde ir. O que o pessoal fazia? Ns dizamos ol, mas seria ir contra a praxe da
biblioteca prolongar a conversa para alm de banalidades. Alm disso, estvamos ocupados.
Spencer no nos pagava para fazer amigos ou terapia; todos os funcionrios da biblioteca tinham, no
mnimo, quarenta horas semanais de trabalho s para manter o lugar funcionando.
Foi ento que Dewey entrou em cena. Sendo um gato, ele no tinha as limitaes sociais de um
bibliotecrio. E como nosso diretor social e recepcionista oficial, no tinha nenhuma outra tarefa que
o mantivesse ocupado nos escritrios dos fundos. Dewey achava normal andar at estranhos e pular
no colo deles. Se o empurrassem, ele insistia umas duas ou trs vezes, at entender o recado de que
no era desejado. Ento, ele se afastava, sem fazer mal algum. Um gato atrevido, afinal, no nem de
perto to chato quanto o bibliotecrio que ajuda demais. Um gato no d aquela sensao de estar
julgando, pressionando ou perguntando coisas sobre as nossas vidas que preferiramos no
responder.
Porm, quando o visitante aceitava a presena de Dewey, o efeito era profundo. Depois de um
ms tendo aceitado Dewey como companheiro de colo, o comportamento de Bill mudou. Para
comear, ele estava sorridente. Acho que a primeira vez que o vi sorrindo desde que sua esposa
havia morrido foi na segunda ou terceira vez em que Dewey pulou no seu colo, empurrou o jornal e
pediu afeto. Agora, ele sorria o tempo todo, como sorria no seu antigo trabalho. Ele interagia mais
com o pessoal e todas as manhs ficava mais tempo na biblioteca papeando. Observando Bill, eu
notei pela primeira vez que Dewey era mais do que uma obra de arte peluda circulando por ali.
Depois da chegada de Dewey, as visitas biblioteca aumentaram drasticamente. No sei se ele
levava as pessoas a entrarem na biblioteca pela primeira vez, mas acho que as convencia a voltar.
Yvonne, por exemplo, s visitou a biblioteca quando Dewey tinha uns quatro ou cinco meses. Ela
lera o artigo sobre ele no Jornal Dirio de Spencer, logo depois de ele ter sido salvo, mas foi s
quando chegou o vero que ela decidiu vir biblioteca. Naquela poca, Dewey j tinha metade do
seu tamanho. Com seu rabo peludo, o pelo de cobre brilhante e sua magnfica gola natural,
paparicado e patrulhando todos, ele parecia o Rei da Biblioteca. E de fato era. Calmo e confiante,
Dewey ficava completamente vontade em seu ambiente. Da primeira vez que Yvonne o viu, ele
desfilava como se fosse o dono do lugar.
Que gato bonito, ela pensou.
No sei como se conheceram. Presumo que Dewey tenha abordado Yvonne, pois era o que ele
sempre fazia, mas talvez ela tenha ido em direo a ele. Na falta de uma expresso melhor, posso
dizer que era fcil conversar com ele, j que no h presso social quando se faz carinho num gato.
S depois de se relacionarem por algum tempo que notei, de passagem, que Dewey ficava muito ao
lado dela. Ele se esfregava em sua perna, cheirava a sua mo quando lhe fazia carinho, escutava seus
cumprimentos sussurrados. Quando ela fazia uma bola com um pedao de papel e jogava para ele,
ele pulava nela, rolava com as costas no cho e chutava a bola no ar com as patas de trs. Ento ela

jogava de novo.
Yvonne comprava bobagens para ele no shopping, os mesmos brinquedos que comprava para
Tobi. Ela gostava de segurar os brinquedos em diferentes alturas, fazendo Dewey pular para alcanlos. Certa vez, ela segurou um brinquedo na altura da cabea, mais ou menos um metro e meio acima
do cho. Vamos, Dewey, ela disse. Voc consegue.
Dewey levantou os olhos para o brinquedo, mas depois olhou para baixo. Ele no consegue,
ela pensou. Depois Dewey virou e deu um salto feito um foguete, como lembrou Yvonne,
igualzinho a um foguete e agarrou o brinquedo de sua mo. Ela ficou olhando para ele
impressionada, depois comeou a rir. Voc me enganou, Dewey, ela disse. Voc me enganou.
Em novembro, ela veio na primeira festa de aniversrio de Dewey. Ela no est no vdeo, mas
isso no me surpreende. Yvonne dessas pessoas que fica ao seu lado por horas at que voc repare
e diga: Ah, eu no tinha te visto. Ela a trabalhadora quieta e diligente que parece nunca sair do
escritrio; a vizinha que no vista nunca; a mulher no nibus que nunca tira os olhos do livro.
errado pensar nisso como algo triste ou incompleto, porque quem somos ns para julgar a vida
interior de algum? Quem somos ns para saber como so os dias de uma pessoa? Os vizinhos de
Emily Dickinson pensavam nela como uma solteirona triste vivendo tranquilamente na casa dos pais,
quando, na verdade, ela era uma das maiores poetas na histria da lngua inglesa e frequentemente
trocava cartas com os mais bem-sucedidos escritores de sua poca. Timidez no um problema,
afinal; apenas um tipo de personalidade.
Dewey, claro, era o exato oposto. V-lo naquele vdeo de aniversrio ver um verdadeiro
artista em ao. As crianas se aglomeravam ao redor dele, brigando por um lugar, mas Dewey nunca
parecia assustado. No importava o quanto fosse agarrado ou o quanto gritassem, ele gostava da
ateno. Ele aceitava tudo quase com o mesmo fervor com que lambeu o seu bolo de aniversrio, em
forma de rato e com cobertura de queijo cremoso. Para Dewey, era tranquilo morder o bolo na frente
daquela multido de fs. E eu aposto que, depois de desligarem a cmera, ele fez algo to mgico
quanto isso: foi andando at Yvonne ou ao menos olhou para ela , fazendo com que ela se sentisse
especial por ter vindo.
Eu sei disso por um fato que aconteceu um ano depois, numa festa da biblioteca em 1989. Cerca
de duzentas pessoas vieram comemorar a reabertura da biblioteca que ficara fechada para reformas
por um pequeno perodo e eu estava ocupada fazendo visitas guiadas para mostrar as melhorias.
Yvonne estava l, margem da multido, provavelmente se sentindo como na poca da escola,
porque ficar annima em uma biblioteca uma coisa, ficar annima em uma festa estranho e
desconfortvel. Porm, seu desconforto terminou quando ela viu Dewey dando voltas no meio das
pessoas. Ningum lhe dava ateno, e isso o deixava claramente muito irritado. At que ele viu
Yvonne e foi danando at ela. Ela o pegou. Segurou-o prximo ao corao. Dewey colocou sua
cabea no ombro dela e comeou a ronronar.
Algum tirou uma foto da gente, Yvonne me disse muitas vezes durante nossas conversas.
No sei quem foi, mas houve uma foto. Eram s as minhas costas. Era o rosto de Dewey. Mas teve,

sim, uma foto de ns dois juntos.


***
Eu no quero fazer muito caso da relao de Dewey com Yvonne. No quero deduzir que a vida
dela girava em torno da biblioteca. Eu sei que ela tinha uma existncia limitada e sei que no era
nenhuma Emily Dickinson, mas tambm sei que Yvonne Barry escondia dos olhos alheios uma grande
parte da sua alma. Sei que ela se correspondia com frequncia com amigos. Sei que, como a maioria
de ns, tinha uma relao de amor e dio com o trabalho. Tinha orgulho do seu trabalho, mas estava
cada vez mais frustrada por ser o tempo todo ultrapassada na corrida por posies mais bem
remuneradas. Sei que ela amava a famlia e que por trs dos seus silncios havia uma rede complexa
e multifacetada de relaes. Essas facetas eram... eram apenas dela, como ela escolheu, suas e de
mais ningum.
O que ela dividia comigo era Tobi. Eu acho que Dewey, talvez por ser to diferente dela, era
sua vlvula de escape social. Tobi era sua melhor amiga. Ela amava estar com Dewey, mas ela
amava Tobi. E Tobi a amava tambm. Mais do que qualquer outra coisa no mundo, Tobi se importava
com Yvonne Barry, e ficava feliz sempre que ela atravessava a porta. Tobi e Yvonne no eram
opostas, eram almas gmeas. Quando Yvonne me disse: Ela era uma gata calma, gentil e nunca se
metia em encrenca com ningum. S queria viver e deixar viver, entende o que eu quero dizer?, meu
primeiro pensamento foi ela deve estar falando de si mesma.
Elas tambm eram dedicadas uma outra. Eu nunca fiz passeios que demorassem mais de um
dia, Yvonne me disse, porque no conseguia deixar Tobi. Uma vez viajaram juntas, para visitar a
irm Dorothy, em Minneapolis. Durante os primeiros 25 quilmetros, Tobi esperneou e bateu o rosto
contra a grade. S quando chegou em Milford, Iowa, que a gata se deu conta de que no estava indo
para o consultrio mdico e finalmente se acalmou. Durante alguns quilmetros, ela ficou miando
para Yvonne, como se esperasse uma explicao. Mas como pode um gato entender um conceito
como Minnesota? Finalmente, ela se jogou no fundo da caixa de transporte, deitou... e assim
permaneceu por cinco horas. Em Minneapolis, Tobi foi direto para o quarto de visitas. Ela usava sua
caixinha de areia, comia sua comida Tender Vittles e se escondia debaixo das cobertas at Yvonne
voltar todas as noites. Ento Tobi subia e se aconchegava no pescoo de Yvonne, alegrssima de ter
sua amiga de volta. Eu te amo, Tobi, Yvonne dizia baixinho, abraando sua gatinha. Exceto pela
viagem de carro, foi como qualquer outro final de semana em suas vidas.
tentador dizer que essa a razo pela qual Yvonne ama tanto Tobi: a gata era a nica coisa
constante em sua vida. Mas, na verdade, acho que a vida de Yvonne era repleta de constncias. O
mesmo emprego na linha de montagem, cumprindo a mesma funo. As mesmas tarefas. As mesmas
refeies. As mesmas noites silenciosas em casa com os pais. Mesmo em sua relao com Dewey
havia uma familiaridade confortvel, ela sabia que ele sempre estaria l. Elas podiam no ter muita
animao, mas Tobi e Yvonne tinham uma rotina. Tinham uma outra. E isso era suficiente.
Mas h algo sobre os gatos que precisamos encarar: em geral, vivemos mais do que eles. Treze

anos de amor era uma pequena fatia da vida para Yvonne, mas era uma vida inteira para Tobi. Em
1990, a gata estava visivelmente definhando e sua artrite tornava difcil subir e descer as escadas.
Seu pelo ficou mais ralo, e, cada vez mais, quando Yvonne chegava a casa, encontrava Tobi to
enroladinha em sua cama que preferia no acord-la.
Nessa mesma poca, Yvonne descobriu a Bblia. Ela diz que o catalisador foi a Guerra do
Golfo. A ameaa de violncia a deixava ansiosa e incerta sobre o futuro, e ela sentia o peso da
infelicidade. No tenho motivos para duvidar disso, mas talvez houvesse dores mais complicadas
para uma pessoa to reservada quanto Yvonne discutir. Como sua frustrao com a fbrica Witco,
cuja administrao lhe recusou uma posio melhor, mesmo que ela soubesse que daria conta do
trabalho. E a dor nos seus joelhos, causadas pelas oito horas dirias em p na linha de montagem. E a
sade de sua me, que se deteriorava. E tambm por que no? o abatimento de sua amada gata,
que tanto significava para ela.
Conforme a guerra se aproximava e a sade de Tobi fraquejava, as leituras religiosas de
Yvonne aumentaram. Inicialmente ela se sentiu atrada por profecias bblicas sobre guerra e
destruio, mas foram o conforto e a esperana do Senhor que afinal a inspiraram. Seis meses depois
de pegar a Bblia pela primeira vez, enquanto avies com tropas sobrevoavam as fronteiras do
Iraque, e exploses escureciam os cus de Bagd, Yvonne se ajoelhava ao lado da cama e pedia que
Jesus entrasse no seu corao.
Eu senti como se tivesse enfiado o dedo na tomada, disse a respeito daquele momento. Eu
me sentia to diferente, e, depois, tive a noite de sono mais tranquila da minha vida. Eu sabia que
algo havia mudado.
Yvonne comeou a ler a Bblia durante uma hora todos os dias. Comeou a frequentar a
Primeira Igreja Batista duas vezes aos domingos, e toda quinta-feira ia para grupos de orao.
Frequentemente aconteciam atividades de grupo na igreja, e Yvonne se viu atrada por essa
comunho. Nas noites silenciosas em casa, ela buscava conforto no Livro. s vezes, Tobi estava l,
enrolada ao seu lado, mas a gata passava a maior parte do tempo dormindo em uma cesta coberta,
que Yvonne encheu com l de ovelha para mant-la quentinha. Yvonne ouviu dizer que a rao Fancy
Feast fazia os gatos viverem mais tempo, e ento comeou a dar Fancy Feast para Tobi, em vez de
Tender Vittle, mesmo no podendo arcar com essa despesa. Ela adorava Tobi, cuidava dela como
sempre. Mas, depois do jantar, em vez de girar Tobi na cadeira, Yvonne voltava para a Bblia,
deixando a gata cada vez mais sozinha.
E ento, um ano depois de Yvonne tornar-se crist, Tobi comeou a tropear. Certa noite de
vero, a gata caiu no quarto e urinou em si mesma. Ela levantou os olhos para Yvonne, morrendo de
medo, implorando por uma explicao. Yvonne a levou dra. Esterly, que lhe deu a triste notcia. O
fgado de Tobi falhava. A veterinria poderia mant-la viva por mais uns dias, mas a gata sentiria
muita dor.
Yvonne olhou para o cho. Eu no quero isso, sussurrou.
Ela segurou Tobi em seus braos e a acariciou enquanto a dra. Esterly preparava a injeo. A

gata apoiou a cabea no cotovelo de Yvonne, fechando os olhinhos, como se estivesse confortvel
com a amiga. Quando sentiu a agulhada, soltou um grito terrvel, mas no se mexeu. Simplesmente,
olhou aterrorizada para o rosto de Yvonne, cambaleou, desfaleceu e se foi. Yvonne, com a ajuda do
pai, enterrou Tobi em um canto distante do jardim dos fundos.
Elas tinham tantas lembranas felizes. A rvore de Natal. A cadeira giratria. As noites juntas
na cama. Mas aquele ltimo grito, um som que Tobi nunca fizera antes... foi algo que Yvonne nunca
conseguiu esquecer. Aquilo a corroeu e uma onda enorme de culpa transbordou de dentro dela. Tobi
dedicara sua vida a Yvonne, mas, nos seus ltimos anos, quando estava velha, doente e carente de
cuidados, Yvonne deu as costas para ela. Era como se sentia. Ela no brincava mais com Tobi na
cadeira; no fazia tneis com os presentes de Natal; no notou o quo doente Tobi estava.
Naquela noite, ela foi a um encontro de orao. Seus olhos estavam inchados e vermelhos e as
lgrimas corriam sobre seu rosto. Seus companheiros de orao perguntaram: Voc est bem,
Yvonne? O que houve?.
Minha gata morreu hoje, disse.
Oh, sinto muito, diziam, dando tapinhas em seu brao. Depois, sem ter mais o que dizer, iam
embora. Queriam ajudar, Yvonne sabia. Eram pessoas boas, mas no entendiam. Para eles, era
apenas um gato. Como o restante de ns, eles nem sabiam o nome de Tobi.
No dia seguinte, ao visitar a Biblioteca Pblica de Spencer, Yvonne ainda no se sentia melhor.
Na verdade, estava pior. Sentia-se mais culpada e mais sozinha. Ela percebeu que no tinha vontade
alguma de folhear os livros. Em vez disso, foi direto para a cadeira, sentou-se e pensou em Tobi.
Um minuto depois, Dewey apareceu e foi andando lentamente em sua direo. Toda vez que ele
a via, ao menos durante os ltimos cinco anos, Dewey miava e ia correndo para a porta do banheiro
feminino. Yvonne abria a porta e Dewey pulava na pia e miava para que ela ligasse a torneira.
Depois de olhar para a gua caindo durante um minuto, ele tocava a gua com a patinha, dava um
pulo para trs, chocado, e depois chegava para a frente e repetia o mesmo processo. E de novo. E de
novo. Era a brincadeira especial deles, um ritual que fora desenvolvido atravs de centenas de
manhs juntos. E Dewey fazia a mesma coisa sempre.
Mas no desta vez. Desta vez, Dewey parou, levantou a cabea e olhou para ela. Ento pulou no
seu colo, fez um carinho suave com a cabea e se aconchegou em seus braos. Ela o acariciou
suavemente, s vezes secando uma lgrima, at que a respirao dele ficou calma e relaxada. Depois
de dez minutos, ele dormia.
Ela continuou fazendo carinho nele, suave e lentamente. Depois de um tempo, o peso de sua
tristeza pareceu ficar mais leve, suspenso, at que, enfim, foi como se flutuasse para longe. No foi
apenas o fato de Dewey perceber o quanto ela estava triste. Tampouco o fato de ele a conhecer e ser
seu amigo. Enquanto ela observava Dewey dormindo, sentiu sua culpa desaparecer. Ela percebeu que
fez o melhor possvel para Tobi. Ela amara a pequena gata e no precisava passar o tempo todo
provando isso. No havia nada de errado em ter uma vida prpria. J estava na hora, para o bem de
ambas, de deixar Tobi ir embora.

***
Meu amigo Bret Witter, que me ajuda com esses livros, fica doido feito bicho (sim, uma
piada) sempre que lhe perguntam: Afinal, o que faz de Dewey um gato to especial?.
Vicki passou 266 pginas tentando explicar isso, ele diz. Se fosse possvel resumir numa
frase, ela teria escrito um carto-postal.
Ele achava essa resposta esperta. Depois, percebeu que a pergunta o levava a pensar em algo
que havia ocorrido na sua prpria vida, e s vezes pensava numa coisa que no envolvia gatos, nem
bibliotecas, ou mesmo Iowa, mas que poderia servir, afinal, como uma rpida explicao. Ento, ele
fazia a piada do carto, depois contava uma histria de sua cidade natal, Huntsville, no Alabama,
onde cresceu com um menino com srias incapacidades fsicas e mentais. Eles frequentavam a
mesma igreja e a mesma escola, e, portanto, quando o acidente ocorreu, na stima srie, Bret havia
estado com ele seis dias por semana, nove meses por ano, durante sete anos. Em todo esse perodo, o
menino, que tinha problemas demais para falar, nunca fora sentimental, nunca expressara felicidade
ou frustrao e tampouco solicitara qualquer tipo de ateno.
Ento, um dia, no meio da escola dominical, ele comeou a gritar. Empurrou uma cadeira, pegou
um porta-lpis e, depois, com uma emoo exagerada, comeou a jogar os lpis de modo selvagem
pela sala. As outras crianas ficaram sentadas, olhando. A professora, depois de alguma hesitao,
comeou a gritar para que ele se acalmasse, que tivesse cuidado, que no interrompesse a aula.
Estava prestes a expuls-lo da sala, quando, de repente, um garoto chamado Tim se levantou, andou
at o menino, colocou seu brao em volta dele como faria com um ser humano, como sempre conta
Bret, e disse: Est tudo bem, Kyle. Est tudo bem.
E Kyle se acalmou. Ele parou de espernear, largou os lpis e comeou a chorar. E Bret pensou:
Eu queria ter feito isso. Eu queria ter compreendido o que Kyle precisava.
Esse era Dewey. Ele sempre parecia entender e sempre sabia o que fazer. No estou sugerindo
que Dewey fosse igual ao menino que se levantou Dewey era um gato, afinal , mas ele tinha um
raro entendimento dos outros seres. Ele percebia o momento, e agia. isso que torna pessoas, e
animais, especiais. Olhar. Cuidar. Amar. Agir.
No fcil. Na maior parte do tempo estamos to ocupados e distrados que no percebemos
que uma oportunidade passou. Agora, olhando para trs, lembro que o primeiro ritual que Yvonne
desenvolveu com Dewey, antes da histria de brincar na pia do banheiro, foi com a erva-gato. Todo
dia, ela colhia um pouco de erva-gato fresca do jardim e colocava no tapete da biblioteca. Dewey
sempre ia correndo cheirar. Depois de algumas fungadas, ele enfiava a cabea, mastigando
ferozmente, com a boca abrindo e fechando e a lngua rpida no ar. Ele esfregava as costas no cho e
as folhinhas verdes ficavam presas nas suas costas. Ele virava de barriga para baixo e empurrava o
queixo no tapete, serpenteando feito o Grinch ao roubar presentes de Natal. Yvonne sempre se
ajoelhava ao seu lado, rindo e falando baixinho: Voc gosta mesmo de erva-gato, no , Dewey?
Voc adora, no ?, enquanto ele balanava as patas dando uns chutes loucos, at finalmente cair

exausto no cho, com as patas esticadas para todos os lados e a barriga para o cu.
At que um dia, enquanto Dewey tinha seu faniquito de erva-gato (apelidado pelo pessoal da
biblioteca de O Mambo do Dewey), Yvonne olhou para cima e notou que eu a observava. Eu no
falei nada, mas, alguns dias depois, eu a parei e disse: Yvonne, por favor, no traga tanta erva-gato
para o Dewey. Eu sei que ele gosta, mas no bom para ele.
Ela no disse nada. Olhou para o cho e foi embora. Eu s quis dizer para ela diminuir a dose
de erva-gato para, por exemplo, uma vez por semana, mas ela nunca mais trouxe erva-gato para a
biblioteca.
Na poca, pensei ter feito a coisa certa, porque aquilo estava deixando Dewey cansado. Ele
ficava completamente maluco durante vinte minutos, aps o que Yvonne ia embora e Dewey ficava
desmaiado por horas. Virava um gato catatnico. No parecia justo. Yvonne se divertia com Dewey,
mas seus outros amigos no tinham nenhuma chance.
Pensando agora, eu deveria ter sido mais delicada no modo como lidei com o evento da ervagato. Devia ter compreendido que isso no era apenas um hbito para Yvonne, mas uma parte
importante do seu dia. Em vez de tentar entender a raiz de seu comportamento, me detive apenas na
aparncia exterior de suas aes e lhe disse para parar. Em vez de abra-la, lhe dei um empurro.
Mas Dewey ele nunca fazia isso. Milhares de vezes, de milhares de modos diferentes, Dewey
estava presente quando as pessoas precisavam dele. Ele fez isso para diversas pessoas, eu sei, que
nunca haviam se aberto comigo. Ele fez com Bill Mullenberg e Yvonne exatamente o que Tim fez com
Kyle na escola dominical. Quando ningum mais entendia, Dewey fazia um gesto. Ele no
compreendia as motivaes, claro, mas percebia que algo estava errado. E, com seu instinto animal,
agia. Ao seu modo, Dewey colocava seus braos em volta de Yvonne e dizia: Est tudo bem. Voc
uma de ns. Voc vai ficar bem.
No estou dizendo que Dewey mudou a vida de Yvonne. Acho que ele aliviou sua dor, mas no
acabou com ela. Um ms depois de Tobi morrer, Yvonne teve um ataque na linha de montagem, e no
s foi despedida, como acompanharam sua sada do prdio. Ela estava frustrada com a administrao
havia muito tempo, e eu no posso deixar de pensar que a morte de Tobi foi a gota dgua.
No acabou a. Alguns anos depois, sua me morreu de cncer de clon. Dois anos depois,
Yvonne foi diagnosticada com cncer de tero. Durante seis meses ela dirigia seis horas at Iowa
City para se tratar. Quando enfim venceu o cncer, suas pernas cederam. Ela havia trabalhado em p
oito horas por dia, cinco dias por semana, durante anos, e o esforo repetido desgastou seus joelhos.
Mas ela ainda tinha sua f. Ainda tinha sua rotina. E ainda tinha Dewey. Ele viveu mais quinze
anos aps a morte de Tobi e, em todos esses anos, Yvonne Barry veio biblioteca diversas vezes por
semana para v-lo. Se voc me perguntasse na poca, eu no diria que a relao deles era
particularmente especial. Muitas pessoas vinham biblioteca toda semana, e quase todas paravam
para visitar Dewey. Como eu podia saber a diferena entre as pessoas que s achavam Dewey
fofinho e aquelas que valorizavam sua amizade e seu amor?
Depois do evento em homenagem a Dewey, Yvonne me falou do dia em que ele se sentou no seu

colo e a reconfortou. Mesmo uma dcada depois, isso ainda era significativo para ela. Eu fiquei
emocionada. At aquele momento, eu no sabia que Yvonne tivera seu prprio gato. Eu no sabia o
que Tobi havia significado para ela, mas sabia que Dewey a confortava, como sempre me confortou,
simplesmente por estar na minha vida. Pequenos momentos podem significar tudo. Podem mudar uma
vida. Dewey me ensinou isso. A histria de Yvonne (quando afinal parei para ouvi-la) confirmava
isso. Aquele momento no seu colo resumia a compreenso e a amizade de Dewey, sua afeio pelas
pessoas de Spencer de um modo que eu nunca havia considerado antes.
Eu no notei quando Yvonne parou de vir biblioteca depois da morte de Dewey. Eu sabia que
suas visitas haviam se tornado menos frequentes, mas ela sumiu do mesmo modo que surgiu: como
uma sombra, sem som. Quando fui visit-la dois anos depois da morte de Dewey, ela estava morando
em um centro de reabilitao, com um aparelho na perna direita. Ela s tinha cinquenta e poucos
anos, mas os mdicos no sabiam se ela voltaria a andar. Mesmo que melhorasse, no tinha para
onde ir. Seu pai estava num asilo ao lado, e a casa da famlia fora vendida. Yvonne disse para os
novos donos: No cavem naquele canto do jardim porque minha Tobi est enterrada ali.
Tobi ainda est l, ela me disse. Seu corpo ao menos.
Havia uma Bblia no criado-mudo e uma escritura presa na parede. Seu pai, numa cadeira de
rodas, estava no quarto de Yvonne, um velho frgil que no ouvia nem enxergava mais. Ela nos
apresentou, mas, a bem da verdade, ela mal parecia notar sua presena. Em contrapartida, me
mostrou a pequena esttua de um gato siams que deixava sobre uma bandeja ao lado da cama. Sua
tia Marge lhe dera de presente, em homenagem a Tobi. No, ela no tinha nenhuma foto de Tobi para
compartilhar. Sua irm colocara todos os seus pertences em um armazm, e ela no tinha a chave. Se
eu precisasse de fotos, disse, havia sempre aquela dela e de Dewey, tirada na festa da biblioteca
vinte anos antes. Algum, em algum lugar, provavelmente tinha uma cpia.
Quando eu lhe perguntei sobre Dewey, ela sorriu. Contou-me do banheiro feminino, da festa de
aniversrio e finalmente da tarde em que ele permaneceu no colo dela. Depois, olhou para baixo e
balanou a cabea com tristeza.
Eu fui biblioteca diversas vezes para ver seu tmulo, ela disse. Entrei, olhei em volta, mas
simplesmente no a mesma coisa. Quero dizer, Dewey no est l. Eu vi a esttua dele e pensei:
Que legal, parece mesmo com Dewey, mas no era como se Dewey estivesse l realmente.
Eu no quero mais ir l. Era o gato, sabe. Dewey, ele sempre estava l. Mesmo que estivesse
escondido, eu dizia a mim mesma: Bem, na prxima eu encontro com ele. Mas ento eu voltava e
nada de Dewey. Olhava para onde ele costumava sentar, estava vazio e eu pensava: Nada para fazer
aqui. Agora apenas um prdio com livros dentro.
Eu queria perguntar mais coisas a ela, descobrir algo profundo sobre gatos e bibliotecas e
correntes subterrneas de solido e amor que se cruzam debaixo da superfcie das cidades e das
vidas mais tranquilas. Eu queria conhec-la, porque, no fim das contas, ela mal esteve presente em
sua prpria histria.
Mas Yvonne apenas sorriu. Ser que naquele momento ela pensava que Dewey estava no seu

colo? Ou ser que pensava em outra coisa, em algo mais profundo que no me contaria e que apenas
ela poderia entender?
Era o meu Garoto Dewey. Foi tudo o que disse. Grande Dew.

2
Sr. Sir Bob Kittens
(tambm conhecido como Ninja ou Sr. Gato de Botas Abboras)

Eu queria simplesmente lhe agradecer por expressar com palavras to eloquentes o que muitos
de ns que amamos gatos ou qualquer outro animal sentimos todos os dias. Eles so como a
nossa famlia, amamos os gatos com a mesma intensidade, e sentimos o mesmo desespero quando
se vo.
Conheci muitos gatos na minha vida e, por isso, eu sei que todos so diferentes, mesmo os mais
especiais. Alguns gatos so especiais porque so doces. Alguns gatos so especiais porque so
sobreviventes. Alguns gatos so especiais por terem sido exatamente o que algum precisava, na hora
em que precisava: uma alma gmea, um companheiro, uma distrao, um amigo. Alguns gatos, porm,
so simplesmente loucos.
Assim era o Sr. Sir Bob Kittens, antes conhecido como Ninja, que morava numa casa comum do
subrbio de Michigan com sua famlia, James e Barbara Lajiness e a filha adolescente deles,
Amanda. Sr. Kittens no o gato fofinho. Ele o gato esperto, o gato que tem atitude, o que faz o que
quer, geralmente de um modo que no d para entender muito bem. Talvez por isso ele tenha sido o
ltimo de sua ninhada a ser adotado na Associao de Proteo aos Animais de Huron Valley, em
Ann Arbor, Michigan. Ou talvez por causa do bilhete afixado na sua gaiola: Ninja, estava escrito.
Depois: No se d bem com outros gatos ou cachorros. Aparentemente, ele brigava com todo mundo.
Quando Barbara Lajiness conheceu Ninja, no foi amor primeira vista. Sim, ele era lindo,
com grandes olhos acastanhados, uma pelugem bem laranja e os bigodes mais longos que ela j havia
visto num gato. Sim, ele parecia inteligente e bem-comportado. Mas no era ativo. Ele no subia nas
coisas, nem clamava por ateno, como os outros gatinhos do abrigo. Ele no... bem, na verdade, ele
no fazia nada. Ficava apenas deitado e sozinho na grande gaiola vazia, e nem se dava ao trabalho de
olhar para os estranhos que passavam por ele.
Ele timo com pessoas, disse a voluntria, quando viu que Barbara olhava para Ninja. O
problema dele com outros animais.

O marido de Barbara e sua filha queriam Ninja. Sentiram algo especial nos seus olhos travessos
e no seu jeito aparentemente tranquilo. Quando Barbara o segurou, ela sentiu a mesma coisa. Uma
energia em potencial, talvez, que mal se continha. A soltou o gato e pediu desculpas filha, dizendo
que no estava pronta. A famlia havia perdido seu gato amado havia um ms. Barbara no contou
isso para a filha, mas ela estava com muito medo de investir emocionalmente em outro ser vivo que
ela acabaria vendo morrer.
Mas Ninja era to gracioso e bonito. E sua filha e seu marido estavam to inflexveis. E toda
vez que ela voltava ao abrigo o que nunca deveria ter feito, mas no conseguia evitar , ficava cada
vez mais claro que o pobre Ninja nunca seria adotado. No naquela cela isolada que o fazia parecer
o pior prisioneiro do presdio, e no com aquele aviso na gaiola. Ele no era um gato fofo, do tipo
que ronrona feito um trenzinho, lembrava Barbara, mas ele merecia um lar. Todo animal merece um
lar. Era triste que ningum tivesse espao em suas vidas para ele. Barbara se preocupava com a
vida dos animais, e l estava um gato que precisava ser salvo. Ele precisava de uma boa casa, sem
outros bichos (obviamente), e era exatamente isso que ela podia oferecer. Ela no podia dar as
costas. Em sua vida inteira, em grande parte graas sua me, Barbara Lajiness nunca havia
recusado ajuda a uma criatura necessitada.
Por que o chamam de Ninja?, Barbara perguntou voluntria enquanto preenchia a papelada
e pagava pela adoo.
No se preocupe, a voluntria respondeu com um sorriso. Voc vai ver.
***
Os pais de Barbara se divorciaram em 1976. Ela tinha oito anos e, mesmo sendo to pequena,
sabia que isso estava para acontecer. Seus pais no se davam bem havia muitos anos, a vida em casa
era desconfortvel e tensa com duas pessoas que tomaram rumos diferentes se forando para fazer a
coisa funcionar. Sua me se dedicava famlia. Seu pai queria diverso: sair para beber, ficar na rua
at tarde sem as crianas, viajar. Quando ele vinha para casa, chegava zangado e frustrado com a
vida. Barbara tinha dois irmos adolescentes que no gostavam nem da ausncia, nem da raiva do
pai. Durante um tempo, todo mundo gritava. Depois, ningum conversava mais. A vlvula de escape
de Barbara, mesmo sendo to nova, era Samantha, a gata da famlia. Isso bom, Barbara pensou
quando seus irmos disseram que o pai havia sado de casa definitivamente. Agora, a casa vai ficar
calma de novo. Que pensamento triste para uma criana de oito anos.
Mas logo ela descobriu que a vida sem um pai era bem pior do que esperava, ao menos
financeiramente. Quase imediatamente, a famlia deixou de ter uma existncia confortvel de classe
mdia e ficou pobre. Seu pai tinha um emprego estvel trabalhando para a Michigan Bell, a
companhia telefnica local. Antes de se casarem, sua me trabalhava na Michigan Bell tambm,
como operadora. Mas ela abriu mo do trabalho para criar os filhos. Dezoito anos depois, ela
descobriu que, mesmo em tempos bons, empregos para mulheres de meia-idade com currculos
limitados eram raros. Em 1976, nas comunidades pouco favorecidas ao redor de Flint, Michigan, os

empregos eram inexistentes. No havia trabalho suficiente para os homens, que haviam perdido seus
empregos quando a General Motors transferiu suas fbricas para outros pases. A nica colocao
que Evelyn Lambert pde encontrar para sustentar seus filhos foi numa casa de sade, preparando o
caf da manh para os residentes. Seu turno comeava s trs da manh. Ela recebia um salrio
mnimo.
Essa no era uma ocupao considerada aceitvel para uma me. Em 1976, na pequena cidade
de Fenton, Michigan, no subrbio fora de Flint onde os Lambert moravam, nenhum emprego era
aceitvel para uma me. Em Fenton, mulheres no se divorciavam, no trabalhavam fora de casa, no
deixavam seus filhos sozinhos por longos perodos de tempo. Ningum queria saber o que havia
acontecido com Evelyn Lambert. De algum modo, era real demais, e quem sabe no era contagioso.
Alguns vizinhos declaradamente sentiam pena, algo que a me de Barbara nunca suportou. Outros a
ignoravam. Zombavam de Barbara na escola, onde todos pareciam saber tudo sobre sua me. Seus
amigos no podiam mais ir a sua casa brincar, pois no havia nenhum adulto tomando conta. Em
poucos meses, Barbara se deu conta que seu estatuto social despencara to rpido quanto as finanas
familiares. No ajudava o fato de o pai ter se mudado para Grand Blanc, um subrbio perto de Flint,
e gastar seu tempo e dinheiro com uma mulher mais interessada em viver do modo como ele queria.
Finalmente, uma vizinha veio ajud-los. Seu nome era sra. Merce e vivia do outro lado da rua,
algumas casas depois. A sra. Merce, com outras mulheres da vizinhana, havia comeado uma
organizao chamada Adote-um-animal. As sociedades de ajuda aos animais da poca eram
basicamente lugares para se livrar dos bichos. Eles guardavam os animais s por um ou dois dias, e
depois os faziam dormir. Matavam centenas deles e a sra. Merce e suas amigas achavam que essa no
era a atitude adequada de uma sociedade civilizada. Adote-um-animal acolhia os animais e ficava
com eles o tempo necessrio at que encontrassem um lar. Hoje em dia, abrigos que no matam
bichos so comuns no mundo inteiro. Mas h trinta anos, em Flint, Michigan, esse era um conceito
incompreensvel. Gatos e cachorros eram apenas animais, e animais no tinham muito valor. Eram
coisas descartveis que morriam ou fugiam e eram substitudos. Adote-um-animal ia contra a atitude
de uma comunidade inteira.
Quando a sra. Merce perguntou a Evelyn se ela poderia ser a me adotiva de um animal, a me
de Barbara ficou animada para se candidatar. Por qu? Barbara hesitou muito tempo antes de
responder, simplesmente: Acho que a minha me tinha uma predisposio para ajudar animais.
Provavelmente isso era um tanto verdade. Evelyn Lambert sempre demonstrou uma dose
constrangedora (na poca) de preocupao por todas as coisas vivas. Ela no acreditava em
herbicidas, ento seu gramado vivia cheio de ervas daninhas. No acreditava em lixo, ento usava
potes velhos de comida para colocar as plantas. Preferia medicamentos naturais a visitas mdicas e
desprezava inseticidas. Acreditava que a vida era sagrada. Todas as vidas, at de insetos. Ela tinha
vocao para a compaixo.
Mas, claramente, era solitria tambm. Sem rumo, com um trabalho insatisfatrio, e ferida pela
rejeio de seu marido e de sua comunidade. Estava ansiosa para impressionar, adotando uma causa

que o seu marido nunca apoiaria ou que seus vizinhos de mente estreita nunca entenderiam. O que
comeou como um favor para a Adote-um-animal tornou-se, aparentemente do dia para noite, uma
causa. Quase to rpido quanto isso, a ideia vaga de cuidar de animais sem casa concretizou-se
junto a dez gatos de todas as idades, cores e condies, vivendo em uma casa pequena no subrbio.
No era uma poca fcil. A grana era curta. A me de Barbara colocava gua no leite para que
ele durasse mais tempo e fazia uma tabela todo domingo que mostrava exatamente o que as crianas
podiam comer enquanto ela estava fora, trabalhando. Uma lata de refrigerante era um enorme luxo,
Barbara e seu irmo, Scott, tinham que dividir, o que sempre gerava discusses sobre quem tinha
bebido mais do que devia. s vezes, na sexta--feira noite, quase no havia comida na mesa, ao
passo que o pai de Barbara, na cidade vizinha, com outra mulher, comia em restaurantes caros e
viajava para outros estados nas frias.
Barbara assumiu a responsabilidade de cuidar da casa. Ela se sentia impelida a fazer isso, tanto
por amor como por medo. Alguns finais de semana depois do divrcio de seus pais, os vizinhos se
ofereceram para lev-la a um passeio, para acampar. Antes de o carro chegar ao final do quarteiro,
Barbara comeou a gritar, querendo voltar para casa. Ela morria de medo de ir embora e, ao voltar,
no encontrar a me. Ento fez com que esse terror, esse medo do abandono, virasse algo produtivo.
Ela dava comida e gua para os gatos, limpava o banheiro e arrumava a baguna deles. Preparava as
refeies no micro-ondas e lavava a loua depois que ela e Scott terminavam de comer. Toda noite,
antes de dormir, verificava se tudo estava limpo e no lugar certo, para que sua me no tivesse que se
preocupar quando chegasse em casa no meio da noite. Se estivesse nevando, Barbara, aos nove anos,
colocava o casaco e tirava a neve da entrada para desobstruir o acesso garagem. A seu modo, ela
trabalhava para que seu mundo no se despedaasse, assim como a sua me.
No ganhavam muitos presentes, mesmo no Natal. No primeiro ano sem o pai, a famlia esperou
at a noite de Natal para comprar uma rvore, porque nesse dia as rvores ficavam mais baratas. No
caminho para casa, Barbara e seu irmo de quinze anos, Scott (o irmo mais velho, Mark, de dezoito,
no passava muito tempo com a famlia), comearam a brigar no banco de trs. Quando chegaram
entrada, coberta de neve, a me fez sinal para que parassem a discusso.
Quietos, ela gritou.
Eles no pararam.
Agora! Fiquem quietos! J!
Os garotos ficaram quietos, chocados, olhando, com a me, para a casa escura no silencioso
bairro de subrbio. Por um momento, no havia nada alm de neve e de vento. Ento, ouviram um
pequeno miado.
No instante seguinte, Evelyn Lambert j estava fora do carro se debruando sobre a neve. Sua
reputao como a louca dos gatos j chegara a Fenton. Quando algum no queria mais um animal,
muitas vezes deixava no quintal dos Lambert. Nos anos seguintes, dezenas de vezes, a famlia chegou
e encontrou um animal tristonho olhando para o carro. Se fosse um cachorro, levavam a um abrigo de
adoo. Se fosse um gato, ficavam com ele, pois era isso que faziam. Eles ajudavam gatos carentes.

Desta vez, foi Scott que encontrou o gato. Quem jogou o bichinho ali certamente imaginou que
aquela era a casa da mulher dos gatos, mas estava com o endereo errado, pois o gatinho molhado
e tremendo de frio estava enterrado sob um monte de neve do outro lado da rua. Barbara lembra
vivamente de ver o irmo subindo a rua, com um sorriso louco no rosto e uma faixa na cabea; e a luz
da garagem refletindo sobre o gatinho minsculo, arrepiado, preto retinto, dentro do casaco dele.
Ela lembra de tirar o gatinho do casaco, aproxim-lo do seu rosto e dizer: Ele t com cheiro de
miojo!.
Ela sorriu. No esperava nenhum presente naquele Natal, mas, de repente, como por mgica,
mais do que por crueldade ou indiferena, um presente havia aparecido.
Chamou o gatinho de Fumacinha. Mesmo que a casa dos Lambert j fosse cheia de gatos
alguns adotados por pouco tempo enquanto outros ficavam por meses , Fumacinha era diferente.
Quando Barbara segurou Fumacinha naquela noite, ele a abraou e se esfregou na sua bochecha. Foi
ento que ela soube que ele era dela. Para sempre. A me de Barbara o chamou de Macarro Preto
porque, na presena dela, ele ficava parecendo um macarro mole. Fumacinha gostava tanto da
menina que a deixava fazer qualquer coisa com ele. Ela o vestia com roupas de boneca, empurrava-o
num carrinho de beb, carregava-o no seu colo como um nenm recm-nascido. Quando ela brincava
de se vestir, botava um xale ao redor do pescoo de Fumacinha. Ele ficava totalmente relaxado nas
mos dela. Os outros gatos dormiam no primeiro andar da casa, ou, nos meses mais quentes, no poro
inacabado. Fumacinha se enroscava com Barbara todas as noites.
Ela tambm amava os outros gatos. Eles foram seus companheiros nas tardes solitrias, quando
era ignorada pelas amigas e sua me trabalhava. Mas Fumacinha era seu amigo e confidente. Ela no
queria sobrecarregar a me, que j tinha problemas suficientes, e por isso contava seus problemas a
Fumacinha. Muitas vezes, eles ficavam juntos no quarto com a porta fechada. Estou muito triste
hoje, confidenciava a Fumacinha, ou, Estou com medo e me sentindo sozinha. No sei o que vai
acontecer. Se sua me ralhava com ela por derramar gua no cho ao lavar a loua, Fumacinha
entendia que no era sua culpa, ela era s uma criana, e estava fazendo o melhor que podia. Quando
voltava, desolada, de outra visita ao pai, que odiava cada vez mais, Fumacinha ficava encolhido ao
seu lado, ronronando. Ele a deixava fazer carinho na sua cabea e brincar com suas patinhas. No
havia nada melhor do que apertar a sola das patas do Fumacinha e ver suas unhas saindo e entrando,
saindo e entrando. Ele ficava olhando para ela, piscando lentamente, como fazem os gatos,
ronronando profundamente. Ele nunca reclamava.
Ele estava l quando Barbara tinha dez anos e seu pai veio com a notcia. Ele tinha uma
namorada nova naquela poca, e eles viviam uma vida glamorosa num subrbio de classe alta em
Detroit: frias, roupas estilosas, degustao de vinhos. Certo final de semana, ele levou Barbara e
Scott ao cinema, algo que a me deles no tinha dinheiro para fazer. Enquanto se sentavam, ele virou
para Barbara e disse: Eu me casei.
No, voc no casou.
Sim, Barbara, eu me casei. Ms passado.

Barbara ficou sentada no escuro do cinema, chorando. Ela no sabia o que esperar, ou por que
estava to chateada. Seu pai se casara com outra pessoa. Estava feito, j tinha acontecido. Ela no
sabia nem por que isso a incomodava. Ela sempre soube que ele no ia voltar.
Ela no conversou com Fumacinha sobre isso. Naquela noite, apenas segurou Fumacinha e
chorou. Ele ficou bem juntinho dela e ronronou.
Foi difcil para a sua me tambm. Era difcil ver seu marido tendo uma vida de rico; e difcil
v-lo, s vezes (bem s vezes, de acordo com Barbara), dando s crianas coisas que ela no tinha
como comprar; e difcil ver que ele tinha encontrado a felicidade com outra pessoa. A economia no
final dos anos 1970 estava ruim no pas inteiro; em Flint, Michigan, estava pssima. Os empregos
haviam desaparecido, casas abandonadas queimavam e o nvel de desemprego estava acima dos
20%. Bairros inteiros entraram em colapso quando a General Motors fechou as linhas de montagem e
frequentemente os trabalhadores entravam em greve. Um dia, quando a famlia fez um raro passeio
at Courtland Mall, o pneu sobressalente do carro foi roubado. Isso refletia a situao de desespero
em Flint. Apesar desse contexto desesperador, a me de Barbara se esforava para fazer um curso
tcnico enquanto trabalhava em tempo integral e criava trs crianas , para obter um diploma em
nutrio. Ela queria ser chefe de cozinha e no apenas uma cozinheira, mas seus sonhos de ir mais
longe foram frustrados pelos constantes cortes de pessoal, a competio crescente por empregos at
piores e porque os asilos estavam sendo fechados, um aps o outro.
A me de Barbara no simpatizava com os trabalhadores da fbrica de veculos. Ela no
gostava da direo da General Motors, que rapidamente seguia transferindo suas instalaes para o
Mxico, mas tambm no gostava dos que trabalhavam na fbrica. Na cozinha do asilo, ela recebia
3,35 dlares por hora para fazer um trabalho pesado, que comeava muito cedo, e com turnos nos
finais de semana. Os empregados da GM ganhavam cinco vezes mais, alm de terem seguro-sade e
benefcios. Numerosos rumores se espalhavam pela cidade de que os trabalhadores batiam ponto
antes de ir caar veados, depois voltavam, batiam ponto novamente, e ganhavam o pagamento do dia.
Nas fbricas de nibus e caminho, diziam que os inspetores s vezes achavam garrafas de vodka
dentro de veculos construdos pela metade. Toda vez que os funcionrios das fbricas de veculos
faziam greve, metade da cidade ficava ferozmente a favor deles. A outra metade um punhado de
executivos, em sua maioria desempregados ou pessoas com empregos piores sentia-se como
Evelyn Lambert, cujo constante refro era: Eles esto reclamando do qu?.
Eu ficaria com esse emprego imediatamente, dizia ela a respeito desses funcionrios, cada
vez mais amarga. Eu aceitaria esse salrio, eu aceitaria metade desse salrio.
Mas no dava para conseguir emprego em um Shop, como eram conhecidas as fbricas de
veculos, a no ser que voc conhecesse algum l dentro, e Evelyn Lambert no tinha tamanha sorte.
Portanto, ela continuou com longas jornadas de trabalho, recebendo 3,35 dlares por hora, em uma
cozinha industrial de Flint. A jornada de trabalho era to longa, e Evelyn frequentemente tinha tantos
empregos, que havia semanas em que Barbara sequer via a me. Quando Barbara voltava da escola,
ela estava no trabalho, e no chegava do ltimo turno antes de a escola comear no dia seguinte. Nos

seus dias de folga, Evelyn fazia longas caminhadas. Naquela poca, Barbara achava que sua me
queria fugir, ainda que brevemente, das responsabilidades e frustraes. Pensando agora, ela
percebia que a me sempre voltava dos passeios carregando uma carga de lenha e arrastando uma
sacola cheia de latas de refrigerantes. A lenha era para aquecer a casa no inverno. As latas valiam
dez centavos cada no centro de reciclagem. Entre o dinheiro das latas, uma devoo religiosa a
cupons de desconto e complicados clculos para saber se podia assinar cheques que no estivessem
sem fundos, a me de Barbara conseguia cobrir todos os custos. Muitas vezes ficava com fome, mas
todos os outros comiam.
O que inclua os gatos, que em mdia somavam uns doze. caro ter tantos gatos, especialmente
quando qualquer centavo faz diferena, mas a me de Barbara nunca cortava os custos do que eles
precisavam, e s lhes permitia ir embora quando a adoo era legtima. Seria ingnuo no ver que
Evelyn Lambert precisava daqueles gatos para dar um sentido e uma direo sua vida. At Barbara,
com doze anos, entendia isso. Mas ela percebia tambm que sua me realmente se importava com os
gatos, e esse amor era reconfortante. Uma das lembranas favoritas de Barbara era ver a me
relaxando na sua poltrona preferida, em um raro momento de paz, com o grande e adorvel Harry
esparramado no seu colo. Harry falava muito, e tinha um ronronar intenso, que no acabava nunca.
Todo mundo o chamava de Sr. Feliz porque aquele ronronar era como uma exploso de alegria
constante.
Harry era o favorito da me, um gato grando que parecia um urso e que sempre queria o colo
de Evelyn Lambert. Por causa dessa personalidade doce, todos pensavam que ele seria adotado
rapidamente. E foi. Mas, duas semanas depois, os novos donos o trouxeram de volta. Sempre havia
uma desculpa quando isso acontecia: ele arranhou o sof, ele arranhou meu filho, a caixa de areia
cheira muito mal, ou, simplesmente, o gato no como eu imaginava. Qual foi a desculpa para
Harry? Barbara lembra apenas que o grande Harry voltou.
Naquela poca, quando j cuidava de gatos havia um ou dois anos, Evelyn os deixava entrar e
sair da casa livremente. Ento, um dos gatos, Rosie, ingeriu o veneno de rato que um vizinho deixou
do lado de fora. A me de Barbara foi correndo a um hospital veterinrio, mas era tarde demais. No
tiveram outra sada seno colocar Rosie para dormir. Algumas semanas depois, Harry saiu para a
rua principal e foi atingido por uma van. Esse momento mudou, para sempre, a cabea de Evelyn.
Nunca mais ela deixou os gatos sarem de casa. Depois do acidente de Harry, ela comeou a
defender com firmeza a ideia de manter os gatos dentro de casa. Hoje em dia, todas as organizaes
que prestam socorro a animais defendem isso, mas claro que em 1978 ela estava frente de seu
tempo.
Felizmente, Harry sobreviveu ao acidente. Um vizinho o viu deitado no canto da rua e chamou a
dona dos gatos. Evelyn saiu correndo com uma manta, acolheu Harry da melhor forma que pde e
disparou para a clnica veterinria. O pobre Harry fora primeiro abandonado, depois atropelado por
uma van, mas o nico efeito disso em seu esprito gentil foi que, com o quadril quebrado, ficou
andando de lado pelo resto da vida. Quando ele deitava no colo de Evelyn com a cabea balanando,

prestes a cair no sono, tamanha a exausto, deixava a pata para fora de um jeito estranho. Mas o
machucado no fez com que parasse de ronronar daquele jeito grave e profundo.
O irmo de Barbara, Scott, tambm tinha seu gato favorito. O nome dela era Gracie, uma gatinha
cinza e magrinha, com menos da metade do tamanho de Harry Feliz. Fora abandonada pelo dono
porque era incontinente e no conseguia ir at a caixa que servia de banheiro. Ela tinha leucemia
felina, mas, naquela poca, tal diagnstico no existia; o veterinrio achava que ela tinha problemas
digestivos. Um gato incontinente pode ser algo problemtico em uma casa cheia de gatos, mas Scott e
Barbara faziam qualquer coisa pela me. Eles tambm amavam os gatos, claro, mas esse amor se
misturava ao orgulho e admirao que sentiam pela me. O amor que Evelyn sentia pelos gatos, o
modo como se sacrificava para ajud-los, foram aspectos decisivos da infncia deles. Tudo que
viveram era delimitado pelos extremos da paixo e do sacrifcio; tudo o que faziam pela me era
definido por esses limites. Havia um pouco de pena tambm? Talvez. Barbara sempre defendia a
me. Quando algum a chamava de louca, ela dizia: Bem, quem mais vai fazer isso? Quem mais, eu
lhe pergunto, vai ajudar os gatos?
Nem uma vez sequer, quando adolescente, Barbara pensou: Se no fosse por esses gatos, eu
poderia ter algo mais. Ela ajudava a juntar os cupons de desconto, no repetia o jantar, e quando
tinha treze anos comeou a trabalhar como voluntria numa clnica de animais. Os Lambert no
tinham dinheiro para pagar tratamentos mdicos para os gatos, mas, fazendo trabalho voluntrio,
Barbara ganhava em troca atendimento emergencial quando necessrio.
Como Evelyn Lambert no podia recusar Gracie nunca pde recusar um gato necessitado ,
Scott a adotou. Ele cobriu o cho e as paredes da entrada com jornal, trouxe a caixinha que era o
banheiro dos gatos, um pote de comida, alguns brinquedos e uma cadeira. Ele ficava com Gracie na
entrada durante horas; fazia at o dever de casa l. Quando Gracie fazia suas necessidades, Scott
jogava fora o jornal sujo e colocava jornal novo. No pensava nisso como um dever. Era algo que
ningum lhe pediu que fizesse. Ele simplesmente amava a pequena gatinha.
Mas Gracie estava doente, sem remdios (sem sequer um diagnstico adequado) e no viveu
muito tempo. Morreu numa noite gelada de fevereiro, e, apesar do mau tempo, Scott estava
determinado a enterr-la. Ele passou a manh seguinte no vento e no gelo, chorando e batendo na
terra com a p, mas o cho estava congelado. Ele gritou e chorou e bateu no cho at que suas mos e
seu rosto ficaram anestesiados. Por fim, frustrado, levantou a p sobre a cabea e deu com ela no
pequeno sulco que havia feito na terra gelada... e acertou em cheio o fio da antena da televiso.
Naquela hora, o telefone tocou. Era o pessoal do Adote-um-animal. Algum havia jogado uma
gatinha na lixeira atrs da pizzaria local. Ela estava sendo operada porque a ponta de suas orelhas e
metade do seu rabo haviam congelado durante a noite. Apesar das amputaes, a expectativa era de
que a gata sobrevivesse. Pagaram a operao, mas no havia dinheiro, nem espao no hospital para
deixar a gatinha depois que ela acordasse da anestesia. A me de Barbara no hesitou. Ns ficamos
com ela, ela disse. J estamos chegando.
Essa gata tambm nunca foi adotada. Seu nome era Amber, e ela viveu com a me de Barbara

por dezenove anos. Era troncuda, com um formato de salsicha, com pequenas orelhas e quase sem
rabo, mas todos que conheciam Amber a adoravam. Apesar da crueldade que a levou at a lixeira da
pizzaria, ela sempre amou gente. Sentava em qualquer colo e ronronava, ronronava, ronronava. Era
doce e afetuosa, mas tambm durona. Era como uma professora linha dura, e nada lhe passava
despercebido. nica gata fmea que ficou mais do que algumas semanas, Amber era a rainha, e todo
mundo sabia disso. Como lembra Barbara, numa casa com doze gatos, Amber comia primeiro, bebia
primeiro, fazia o que quer que fosse primeiro. Ela era a chefe, e tinha respeito demais pela me de
Barbara para deixar qualquer gato fazer baguna. A casa tinha um poro grande e inacabado para
onde os gatos eram levados periodicamente, enquanto eles faziam faxina nas outras partes da casa.
Amber era a garantia de que todos os gatos seguiriam as ordens. Ela fazia com que todos tentassem
se divertir no poro lotado. Depois, um por um, mandava os rapazes escada acima para miar na
porta. Quando Amber vinha para a porta, a hora da limpeza havia acabado. Quando a rainha falava,
at Evelyn Lambert escutava.
Assim, havia o Harry para Evelyn; a Gracie para Scott; a Amber para todos; e para Barbara,
claro, havia Fumacinha. Enquanto Evelyn trabalhava, ou catava latas, ou estava simplesmente
exausta, Fumacinha estava l. No importava o que Barbara queria, ou por que ela queria, ele estava
sempre l.
No final, eles eram uma famlia, os Lambert e seus gatos: uma me determinada, duas crianas
que trabalhavam duro, trs gatos permanentes Fumacinha, Harry e Amber e um nmero flutuante
de visitantes que davam famlia uma razo a mais para ficar junta. Talvez no fosse uma famlia
tradicional, mas era cheia de amor, o que no to comum assim. Houve tempos difceis, claro,
especialmente medida que as crianas cresciam. No ltimo ano de escola, Barbara ficou cansada
das reclamaes constantes da me quanto ao trabalho e do fato de ela precisar sempre ter razo.
(Mais tarde, sua me confessou que tinha medo de admitir estar errada sobre alguma coisa, pois no
queria que Barbara soubesse que ela era fraca. Ela pensava que tudo poderia desabar.) Ela estava
cansada da pobreza e da luta. No entendia por que sua me simplesmente no arrumava um trabalho
melhor; por que eles tinham que ser to diferentes de todo mundo; por que ela teve que passar sua
infncia como a garota dentua que usava o jeans herdado de algum ou a filha da louca dos gatos.
Quando terminou a escola e saiu de Flint para a universidade, ela no falou com a me durante
um ms. Mas no levou muito tempo at Barbara perceber como o mundo pode ser cruel e como
difcil ser uma pessoa melhor quando no se aguenta mais lutar diariamente pela sobrevivncia.
Frequentemente, ela sentia falta do conforto de casa e da sua vida antiga: a cabea de Fumacinha no
seu brao, Harry ronronando, os doces miaus da Amber. A vida normal, fora das fronteiras dos
gatos e da pobreza, era um pouco... normal demais. Sentia saudades da companhia de seus gatos. E,
mais do que isso, ela se preocupava com a me. Sentia-se em dvida com ela. No houve um dia da
vida de Barbara no qual se sentisse amada por seu pai. A me foi quem ficou. A me a amou, todos
os minutos de todos os dias.
Ela viu quando sua me perdeu Harry, depois Amber. Viu quando cuidar de gatinhos tornou-se

algo to admirvel e popular que a Adote-um-animal no precisava mais de Evelyn. Ela voltou para
o seu antigo quarto e percebeu que Fumacinha, doce como sempre, estava completamente cinza no
focinho. Ele ainda a amava fervorosamente como antes, mas ele tambm estava velho e cansado
cansado como Evelyn Lambert sempre fora. Segurando Fumacinha em seus braos, Barbara sentiu as
lgrimas carem, ao lembrar da vida deles juntos. Nessa poca ela j tinha parado de pensar na sua
infncia como uma praga e aprendera a aceitar a me excntrica, as roupas herdadas, o fato de ser
dentua (o que estava mais na cabea dela) e a condio de excluda, como lies valiosas de
perseverana e amor. E ela nunca, mesmo nas horas mais sombrias, deixara de gostar dos gatos. Ela
curtiu todos os momentos com Fumacinha at o dia em que ele morreu, como todos os outros gatinhos
que no encontraram amor fora da casa dos Lambert, debaixo das velhas macieiras no fundo do
jardim.
Mas, se a casa dos gatos afinal ganhara um verniz de charme para Barbara Lajiness, a vida
nunca ficou mais fcil para a sua me. No dia em que Barbara terminou a escola, a me perdeu outro
emprego. Onze anos depois, quando Barbara casou e se instalou em Ann Arbor, sua me ainda
trabalhava como cozinheira em Flint, Michigan, em um asilo. Seu carro escangalhou e ela no tinha
dinheiro para consert-lo, ento andava todos os dias at o trabalho. Todo final de semana, Barbara
dirigia at Flint para levar compras. Era uma luta, sempre uma luta. Todos os dias desde que se
separou.
Quando Evelyn finalmente se aposentou, aos 65 anos, Barbara a transferiu para um pequeno
apartamento a alguns quarteires de distncia da sua casa em Ann Arbor. Harry, Amber e Fumacinha
tinham morrido, e o nico gato que sobrou do grande lar de ajuda aos animais dos Lambert, em
Fenton, Michigan, era Doidinha, uma gata mais velha que fora abandonada por vizinhos alguns anos
antes. Doidinha era uma gata preta peluda com um peito branco e um jeito calmo. Ela preferia ficar
deitada, em geral sob o Sol ou no colo de algum. No fazia mal a ningum, exceto, talvez, parede,
para onde sempre corria e batia com a cabea. Por isso era chamada de Doidinha. A doce e
inofensiva Doidinha.
Infelizmente, o condomnio do edifcio no permitia animais de estimao. Ento Barbara e seu
marido, James, ficaram com Doidinha, deixando Evelyn Lambert realmente s pela primeira vez na
vida. Quase todo dia ela ia casa deles, mas no era tanto para v-la, Barbara sabia. Evelyn vinha
para ficar com Doidinha. Sentava-se na varanda ou na cadeira grande da sala de estar, fazendo
carinho na Doidinha e olhando para as suas costas como se olhasse para o passado. Ela disse sua
filha: Estou doente, querida. Voc sabe que estou doente, mas Barbara achava que era depresso.
Evelyn sentia saudades da casa que tinha lutado para manter durante os tempos difceis. Sentia falta
do jardim, do cemitrio de gatos e das memrias de uma vida inteira. O que ela via, ao contemplar
sua prpria vida, seno um caminho trilhado por tristezas e desapontamentos? O que ela poderia
vislumbrar para o futuro? Evelyn Lambert havia se mudado de uma casa cheia de amor e de luta para
um solitrio apartamento em uma nova cidade, onde no a deixavam sequer ficar com sua gata
adorada.

Eu no me sinto bem, ela disse. Voc no est entendendo.


Barbara achava que, com o tempo, sua me se habituaria. Harry. Amber. Gracie. Fumacinha. Ela
sempre encontrava um modo de sobreviver, ela sempre descobria um propsito. Mas ela ligou certa
manh e disse filha: No estou aguentando mais, meu bem. A morte est sentada comigo neste
apartamento.
Barbara foi correndo para l. Sua me sentia muita dor. Passou a noite acordada. Por que voc
no me ligou?, perguntava Barbara, enquanto entravam na emergncia. Por que voc no me ligou
durante a noite?
Eu no queria acordar voc.
Era um cncer de mama, que no foi tratado por muitos anos, e j tinha metastizado para a
coluna e as pernas. No havia nada que pudessem fazer alm de diminuir a dor, que, Barbara
percebeu, sua me sentia secretamente havia muitos anos. Os mdicos medicaram Evelyn e a
mandaram para casa, mas o sofrimento era enorme, o cncer era voraz, e o estrago to grande que,
depois de um ms, ela j estava de volta ao hospital.
Como est a Doidinha?, ela perguntou a Barbara, tentando tomar flego. Estava to fraca que
mal conseguia formar palavras.
Barbara moveu a mecha de cabelo cinza sobre a testa de sua me. Doidinha est bem, mentiu,
segurando as lgrimas. A verdade que Doidinha tinha sumido. Barbara passara a ltima noite
procurando Doidinha, mas no conseguiu encontrar a gata.
A me de Barbara balanou a cabea e sorriu um sorriso fraquinho, fechando os olhos.
Doidinha, ela murmurou bem baixinho. No dia seguinte, inconsciente e sem conseguir respirar
sozinha, ela foi colocada num ventilador artificial. Ela disse a Barbara repetidas vezes que no
queria sobreviver desse modo, com uma mquina mantendo-a viva. Mas no deixou uma declarao.
No havia dado permisso por escrito. Depois de uma veemente discusso, que machucou Barbara
mais do que qualquer outra coisa em sua vida, os mdicos concordaram em retirar o ventilador
artificial. A morfina a deixaria confortvel, mas no prolongaria sua vida. Ela s viveria mais alguns
dias. Barbara sentou na cama o resto do dia, vendo a me morrer.
Naquela noite, Barbara Lajiness teve um sonho. Sua me e Doidinha estavam juntas, acenando
para ela a distncia. Elas estavam em algum lugar vago e indefinido, mas sua me movia os lbios
dizendo as palavras Est tudo bem, no se preocupe, est tudo bem.
Na manh seguinte, Barbara foi varanda de sua casa pegar o jornal da manh e deu uma
olhada na entrada da garagem do vizinho. L, na sombra, embaixo da camioneta que nunca saa do
lugar, estava Doidinha. Barbara no precisou chegar mais perto para saber que Doidinha havia sado
de casa para morrer, e que havia morrido em paz enquanto dormia. Permaneceu na varanda, aos
prantos, sob o Sol frio da manh, olhando para Doidinha, com a xcara de caf fumegando em suas
mos.
Afinal, chamou James. Eles enterraram Doidinha no jardim, embaixo de um arbusto de lils que
a me de Barbara havia ajudado a ressuscitar com fertilizantes e cascas de ovo.

No dia seguinte, Evelyn Lambert morreu. Ela s tinha 66 anos.


***
No fcil para Barbara Lajiness falar da me. Mesmo oito anos depois, com um marido
amoroso, uma filha maravilhosa e a companhia hilria de Ninja, agora conhecido como Sr. Sir Bob
Kittens, ela tem de parar a cada uma ou duas frases para enxugar as lgrimas.
Eu a admiro, diz Barbara. Eu poderia criticar muitas coisas em sua vida, mas fazer isso,
colocar outras vidas na frente da sua prpria, vidas de gatinhos... isso realmente admirvel. No
importa o que digam sobre ela e sobre as escolhas que fez, ela se importava, demais, com todos e
com tudo.
Voc acha que ela se importava demais?
s vezes penso que sim, mas, voc sabe, eu no sei se possvel se importar demais. Ela
realmente se importava com tudo que no tinha voz, se importava mesmo. Quando eu era criana, a
cidade decidiu usar um spray contra mosquitos, e uns caminhes com luzes laranjas andavam pela
cidade e jogavam algo que deveria ser para matar mosquitos. Algumas semanas depois, minha me
me disse: Voc est ouvindo isso?. Eu disse: No, no estou ouvindo nada. Ela respondeu:
porque esto matando mais do que mosquitos. Esto matando todos os animais. Por isso a gente no
ouve mais os passarinhos.
Barbara faz uma pausa para se recompor. Minha me, ela era bem esperta, sabe?
Barbara sabe que ela muito fechada, que no encara seus sentimentos, que ainda tem um medo
esmagador de que aqueles a quem ama a abandonem. Durante dois anos, depois que sua me e
Doidinha morreram, ela no conseguia se convencer a adotar outro gato. Tinha um casamento feliz,
uma filha maravilhosa, um emprego estvel e uma boa casa. Coisas simples, como algumas pessoas
chamam, coisas que no so suficientemente valorizadas at que se tenha que viver sem elas. A
famlia tinha vrios peixes, alguns hamsters e uma tartaruga, mas no tinha um gato. Barbara estava
contente, tinha conforto, era amada, mas no queria arriscar ter um gato. No queria perder mais um.
No queria se abrir para outro gato que poderia morrer com ela. Mas Amanda, de nove anos, queria
um gato. Como uma me poderia recusar tal pedido?
Assim, eles adotaram um gatinho chamado Max. Ele era incrivelmente amoroso, e tinha o hbito
fofo de dormir em cima da geladeira, deixando o rabo cair para o lado. Mas, dois anos depois,
quando ele tinha quatro anos, teve um colapso. Estava andando pela cozinha, quando, de repente, caiu
e comeou a tremer loucamente, tomado por um grave ataque epiltico. Barbara viu tudo acontecer e
entrou em pnico. Max era to jovem, saudvel, e estava morrendo na frente dela. Para ela, foi como
um pesadelo se tornando verdade. Enquanto James dava telefonemas freneticamente, o gato se
contorcia no colo de Barbara. Seus olhos rodavam, suas plpebras tremiam e seu corao batia
intensamente. Antes de pensar no que estava fazendo, ela gritou chamando sua filha.
Amanda veio correndo. Ela viu Max tremendo e sangrando pela boca e comeou a gritar e a
chorar. Era muito para uma menina de onze anos, mas, quando James e Barbara voltaram para casa

uma hora depois com a notcia de que Max havia morrido, Amanda foi correndo para a me.
Obrigada, me, ela disse. Eu pude dizer tchau para o Max enquanto ele estava vivo. Era
uma menina forte, Barbara percebeu, vendo pela primeira vez na sua filha bem-ajustada a pequena
garota medrosa que ela mesma fora um dia, a que havia sofrido muito, e silenciosamente, num lar
despedaado.
Demorou apenas um ms e trs demoradas visitas ao centro de ajuda aos animais para que
Barbara adotasse Ninja. Ela no estava pronta, mas a sua famlia, especialmente seu marido, estava
perdida sem um companheiro peludo. Talvez, pensou ela, eu possa conviver com ele em casa. Por
causa de Amanda e James. Talvez eu possa tratar Ninja como tantas outras pessoas tratam seus
gatos: como animais com quem, por acaso, se divide o espao.
Seu marido, James, estava quase que de quatro por Ninja. De manh, carregava o gato para a
cozinha como se fosse um beb. Perguntava se Barbara queria fazer carinho nele, e ela dizia: No,
ainda no. Eu gosto dele, mas a gente ainda no criou um vnculo. Muitas e muitas vezes, ela
empurrou Ninja para longe.
Quando ele contraiu um vrus, com doze semanas de vida, Barbara o levou correndo ao
veterinrio. Ela estava no consultrio, observando o mdico examin-lo, quando, de repente, caiu
num pranto, como fizera tantos anos antes, quando o carro se afastou de sua casa e ela comeou a
cismar que sua me poderia desaparecer durante sua ausncia.
Eu acabo de perder um gato, ela disse, chorosa. No posso perder mais um. No posso.
Voc precisa ajud-lo.
A veterinria colocou os braos ao redor dos ombros de Barbara. No se preocupe, ela disse,
apenas um resfriado.
Barbara descobriu por que o gato era chamado de Ninja logo nos primeiros dias, quando abriu
a porta e o viu agachado no final do corredor. Completamente sobressaltado, de repente o gatinho se
equilibrou sobre as patas traseiras, com as patas dianteiras esticadas para cima como se fosse um
zumbi desequilibrado. Ele ficou assim por alguns segundos, olhando para ela. A comeou a pular de
lado em sua direo, movendo as patas da frente de um lado para o outro, como num movimento
retardado de carat. Ele deu um salto enorme at o final do corredor, com o pescoo virado para o
lado feito um louco, sem que suas patas da frente jamais tocassem o cho. Foi a coisa mais estranha
que ela viu na vida, e no foi um acidente. Barbara logo percebeu que Ninja fazia essa extravagante
dana de carat toda vez que estava sobressaltado... ou assustado... ou incomodado... ou excitado. O
drama adolescente de Amanda deixava o sangue ninja do gato especialmente quente. Toda vez que
ouvia sua filha gritar Meu Deus, Ninja, ela sabia exatamente o que estava acontecendo. O gato
estava executando sua dana maluca para ela.
Mas Ninja no era brigo. S era estranho. Fazia pose, mas no atacava. Em relao ao seu
nome, depois, quando Barbara finalmente reconheceu que seu vnculo com o gato era profundo, ela
pensou que no parecia certo. Talvez apropriado, mas no certo. Ninja, afinal, fora seu nome quando
estava preso na gaiola.

Ento Barbara comeou a pensar em um novo nome. Uma noite, ela e Amanda estavam vendo na
televiso um programa de natureza sobre bobcats.[3] O rosto de Ninja, elas pensaram, meio que
lembrava o rosto de um bobcat.
Mas ele no pode ser um bobcat, disse Amanda. Ele tem que ser bobkitten.[4]
Bob Kitten. Legal, mas sem pompa o suficiente. Ento Barbara o chamou de Sir Bob Kittens.
Na visita seguinte ao veterinrio, Barbara comunicou ao assistente que o nome do gato havia
sido mudado. Agora Ninja era Sir Bob Kittens. E, sim, isso era oficial. Ponha no formulrio.
Claro, nenhum nome grande o suficiente para um gato como Sr. Sir Bob Kittens, mesmo que
esse nome tenha quatro partes. Logo ele tambm virou o Sr. Gato de Botas Abboras, porque era um
gatinho com patas grandes e peludas cor de abbora. Quando o marido de Barbara comeou a chamlo de Pelustoso (uma mistura de peludo com gostoso, eu acho), Amanda pensou que seus pais eram
bem estranhos. Mas eles no se importavam. Eles amavam o Sr. Gatinho de Botas Brilhantes
Abboras.
O relacionamento no era perfeito. Como Barbara sempre disse, Sr. Kittens era um personagem,
no um fofo. Ele ficava sempre no quarto com Barbara, mas preferia descansar em um cantinho
aconchegante a dois metros de distncia, como se apenas por acidente estivessem no mesmo espao.
Ele s era fofinho quando estava afim, o que no era muito frequente e, portanto, era ainda mais
especial quando isso acontecia. Ele era um gato quieto, cheio de jeitos e trejeitos, mas que no
precisava de muita comunicao verbal. Quase nunca ronronava ou miava. Apenas se precisasse
muito, muito, de alguma coisa, ele se dava ao trabalho de se comunicar com o pai e a me. Isso
normalmente acontecia quando sentia o cheiro de sua comida predileta: bacon. Assim que sentia
cheiro de bacon, pulava dentro da cozinha sobre suas patas traseiras, balanando as patas da frente,
fazendo a dana louca do ninja. Se o bacon estivesse bem crocante, do jeito que ele gostava, ficava
louco. Um dia, James fez a besteira de lhe dar bacon na mesa de jantar. Depois disso, ele sempre
pulava em cima da mesa para jantar. No comia em nenhum outro lugar.
Mas ele era uma criana. Era mesmo. Sim, ele agarrava as pernas de Barbara e tentava faz-la
cair toda vez que ela subia as escadas do poro. Ele gostava da surpresa, o modo como ela gritava
ao quase cair e quebrar o pescoo. Sim, ele deitava no laptop de James toda vez que ele tentava
trabalhar. Mesmo que James fechasse a tampa em cima dele, o gato no se mexia. Ficava l, se
pendurando, todo esticado, com um sorriso grande e bobo no rosto. Mas o Sr. Sir Bob Kittens era
mais do que o palhao da turma. Toda manh, quando Amanda se arrumava para ir para a escola, ele
andava pelo quarto, sentindo o cheiro de tudo. Ele era como um irmo mais velho, metido e
orgulhoso, que fazia umas piadas sem graa, mas sempre cuidava da sua irmzinha.
Ou talvez Barbara gostasse de pensar assim. Talvez o fato de ficar cheirando fosse apenas mais
um hbito da rotina diria de Sr. Sir Bob Kittens, porque o Sr. Sir Bob Kittens gostava das suas
rotinas. Toda manh, ele acordava Barbara pontualmente s cinco horas para o seu caf da manh.
Isso era tranquilo durante a semana, quando Barbara tinha que acordar para ir ao trabalho, mas no

era to legal nos finais de semana. Ainda mais porque ela nem recebia um carinho como
agradecimento. Sr. Kittens gostava mais de James, que sempre chegava, quando o caf estava coando,
para a sua dose matinal de carinhos. Ele adorava receber carinho de manh... mas s de manh... e s
de James, um hbito que comeou nas primeiras semanas, quando Barbara tentava se resguardar de
gostar demais do gatinho.
Sim, ele era uma peste. Sim, ele era selvagem. Mas olhe para isso de um modo diferente. Ele
era fantico por bacon, tinha uns olhos de doido, morria de medo de barulhos fortes e de papel
alumnio, tinha umas pernocas peludas que pareciam botas cor de abbora, e, mais que tudo, aqueles
passos de carat insanos aquilo era hilrio. Quem no amaria um gato como o Sr. Kittens? Apesar
de sua averso a colo, Sr. Sir Bob Kittens era to prximo de Barbara como foram Fumacinha, Harry,
Amber e Max, ou qualquer outro gato em sua vida. Quando ela ficava doente, ele olhava para ela.
Certa vez, quando ela se sentiu fraca, ele colocou suas patinhas sobre seus joelhos e miou
preocupado. Quando foi a vez de Barbara desmoronar na cozinha, primeiro caindo na mesa, depois
segurando-se desesperadamente numa cadeira, depois caindo inevitavelmente no cho, Sr. Kittens
estava l para subir em seus joelhos, olhar nos seus olhos quando ela apagou, e miar o mais alto que
pde.
O motivo eram lceras hemorrgicas. Uma lcera havia rompido uma veia sangunea e Barbara
perdeu um litro e meio de sangue. Um perodo curto de medicao e uma nova dieta curaram o
problema, mas no exame seguinte os doutores detectaram algo no to facilmente tratvel: cncer de
mama, a doena que havia matado a sua me. Ela fez uma cirurgia, seguida de radioterapia. Quando
os mdicos disseram que era recomendvel a quimioterapia, mas que a opo era dela, ela lembrou
da me nos terrveis ltimos dias de vida. Barbara tinha 41 anos; ela no queria estar em um
ventilador artificial aos 45, com a filha ao lado da sua cama no hospital, vendo-a morrer.
Ela escolheu fazer a quimioterapia. Ainda faz. Perdeu o cabelo, mas calcula, por outro lado,
que l se vo cinco meses sem ter que raspar as pernas! Alm disso, tinha uma tima desculpa para
ficar de fora de todas aquelas festas chatas de final de ano. Sua filha, tipicamente adolescente,
costumava dizer que ela estava uma vergonha e que precisava colocar uma maquiagem, mas agora, e
da? Quem se importa? Todo dia pode ser o ltimo. Se algo o deixa feliz, no se arrependa. Ela come
bolinhos, no o tempo todo, mas s vezes, e no sente nenhuma culpa. Em vez disso, saboreia-os.
Tenta aproveitar tudo, at o Sr. Kittens tirando-a da cama s cinco da manh todos os dias. Ela o
alimenta e faz carinho nele sim, agora, s vezes, ele a deixa fazer carinho nele e se senta na
cozinha e fica maravilhada com a manh, com o caf e com o Sr. Sir Bob Kittens, que mesmo muito
bonitinho.
Ela tem seu marido, James. Seu casamento, sempre forte, ficou ainda mais forte. Ela tem uma
filha, Amanda, e o desejo arrebatador de v-la crescer. Ela tem Sr. Sir Bob Kittens, que comeou a
dormir aos seus ps enquanto ela se recupera do tratamento e, s vezes, chega at a se enroscar no
seu peito. Ele pode no ser o gatinho mais carinhoso do mundo, mas, por esses atos simples, ela sabe
que ele se importa com ela. Ela sabe que a vida boa.

E quando a vida ruim? Bem, Barbara Lajiness ainda tem a oportunidade de ver Sr. Sir Bob
Kittens ficar de p sobre as patas traseiras, balanar as patas da frente e dar um salto pelo corredor
fazendo aquela dana maravilhosa e maluca de carat.
Ser que existe algum, em algum lugar, que no acharia isso engraado?

3
Arrepio

Eu tive um gato durante 21 anos... Ele no deveria ter sobrevivido... mas sobreviveu, para me
trazer muitas horas de alegria durante muitos anos de minha vida. At hoje, s vezes, eu sinto o
seu focinho molhado tocando a minha perna, enquanto ele ainda espera o meu esprito se juntar
ao dele.

Bill Bezanson cresceu na fazenda da famlia, perto da pequena cidade de Romeo, em Michigan.
Mesmo hoje em dia, Romeo tem uma populao de apenas 3 mil habitantes, um jornal cuja assinatura
anual custa dezoito dlares e um centro que reivindica a reputao de nunca ter sido destrudo por
nenhum grande incndio, algo, parece, bem comum nas antigas comunidades madeireiras de Macomb
County. Depois de viver trinta anos em Spencer, Iowa, onde o centro da cidade foi destrudo por um
incndio em 1931, eu concordo que esse um grande feito.
Eu tambm entendo o isolamento da fazenda da famlia, ao menos durante os anos 1950 e o
comeo dos anos 1960, quando Bill e eu estvamos crescendo. Naquela poca, no havia televiso,
nem videogames, nem computadores para nos manter conectados ao mundo exterior. A gente tinha
rdio, ou radioamador, para quem se interessava por esse tipo de hobby. Alguns velhos caminhes
possuam estaes do servio de rdio cidado. E telefone. Era uma linha dividida, com uma
operadora local, e metade do tempo a conexo era to barulhenta que no dava para entender sequer
uma palavra. Em 1960, quando minha famlia finalmente comprou uma tv, meu pai ligou para os seus
primos que moravam em Dakota do Sul para contar a novidade. A linha telefnica era to ruim que
eles pensaram que a nossa famlia estava com tuberculose tb.[5] Rezaram por ns durante um ano
inteiro.
Em uma fazenda, naqueles tempos, havia tambm a famlia e o trabalho. Mesmo criana, a gente
trabalhava de manh at a noite na poca da colheita. Quando o Sol se punha, a gente ia dormir. Se
no consegussemos dormir, ficvamos olhando pela janela do quarto, vendo milhes de estrelas, e,
l longe, a luz de uma nica outra casa. Ao menos essa foi a minha experincia. Bill Bezanson no
conseguia ver a luz da fazenda seguinte mesmo em noites muito escuras, e em relao s crianas da
vizinhana... bem, no havia outras crianas por perto. Perto de Romeo, Michigan, no havia nada

para um menino de fazenda, alm dos campos e das rvores.


E dos animais.
A fazenda dos Bezanson tinha dois galpes, e o pai de Bill deu a ele um lugar no galpo menor
de reproduo , para abrigar os animais que amparava. Bill tinha dzias deles: raposas,
cangambs, cachorros, gatos, qualquer um que aparecesse em seu caminho e precisasse de ajuda.
Qualquer animal que estivesse machucado, Bill Bezanson tratava, at que recuperasse a sade. Ele
tinha at um gamb que corria sobre os seus ombros e brincava com ele de esconde-esconde nos
montes de feno. Se qualquer outra pessoa se aproximasse do galpo de reproduo, o gamb
levantava o rabo; s com Bill ele era brincalho feito um gatinho.
Mas o animal preferido de Bill era um guaxinim que ele salvou. A me do guaxinim foi
atropelada por um carro, e seus filhotes estavam encolhidos em uma rvore ao lado da estrada,
olhando para o corpo inerte da me. Eles eram pequenininhos, estavam nervosos e confusos,
certamente tambm estavam com frio e fome, e quase duros de tanto medo. Apenas um sobreviveu.
Todo mundo o chamava de Pierre Le Pop, em homenagem ao apaixonante gamb francs Pepe Le
Gamb dos antigos desenhos animados do Pernalonga que passavam sbado de manh. Foi a av de
Bill que deu o nome. O filhote de guaxinim fez coc no colo dela da primeira vez em que ela o
segurou.
Pierre era um guaxinim bonzinho, leal e amvel. Ele e Bill brincavam juntos no galpo, jogavam
pauzinhos no quintal e andavam lado a lado pelos campos. Parecia o esteretipo do menino loirinho
do Meio-Oeste americano com seu cachorro amigo. Algumas vezes, Bill levava at uma vara de
pescar no ombro. Mas guaxinins no so cachorros. So criaturas selvagens, curiosas, travessas e,
realmente, mais espertas do que a maioria dos cachorros. Pierre conseguia pegar peixes com as
mos, descascar milho, era criterioso catando coisas no lixo, e abria portas. Um dia, a famlia chegou
em casa e encontrou Pierre sentado, como quem no quer nada, na bancada da cozinha, jogando
pratos no cho. Havia pratos quebrados por todo lado. Pierre fazia um monte de coisas tpicas de
guaxinim cometia pequenos furtos, abria portas, lavava as mos o tempo todo nos barris de gua de
chuva (todo mundo sabe que guaxinins so manacos em lavar as mos) , ento, quebrar a loua de
jantar da famlia foi a gota dgua. Nenhum argumento poderia salvar Pierre dessa vez. O pai de Bill
jogou o guaxinim no fundo do caminho, dirigiu 28 quilmetros e o deixou em um celeiro
abandonado.
Trs semanas depois, quando Bill e o pai pescavam em um lago prximo de uma rvore, um
guaxinim comeou a fazer barulho na direo deles. Bill olhou para cima, nos galhos, e disse:
Pierre, voc?. Pierre desceu da rvore correndo, subiu pela perna de Bill at os seus braos e
comeou a lamber o seu rosto e a morder o seu nariz.
, acho que a gente vai ter que ficar com ele, disse o pai de Bill. Eu no tenho dinheiro para
uma passagem de avio. Na verdade, o velho fazendeiro estava comovido com o vnculo que existia
entre o seu filho e o animal selvagem. Ele no teria levado Pierre embora mesmo que tivesse o seu
prprio avio.

Talvez tenha sido por causa de Pierre que Bill decidiu se tornar um guarda florestal, o trabalho
dos seus sonhos durante quase toda a infncia. Todo mundo achava que ele deveria ser veterinrio.
Ele tinha talento com animais e um amor por bichos que ningum nunca havia visto antes. Mas as
coisas mudam. Pierre Le Pop cresceu e comeou a pensar em ter uma famlia. Guaxinins so dceis
quando jovens, mas, frequentemente, tornam-se agressivos e maldosos quando chegam fase de
acasalamento. No Pierre. Ele simplesmente deixou o galpo. Encontrou uma fmea e se mudou para
um canto distante da fazenda. Um dia, Bill e o pai estavam sentados nos degraus atrs da casa. Bill
olhou para o campo e viu Pierre vindo em sua direo, com quatro pacotinhos marrons balanando
ao seu lado. A parceira de Pierre ficou na ponta do campo, nervosa, indo de um lado para outro,
enquanto Pierre pegava os filhotes com a boca e os colocava na varanda para apresent-los ao seu
grande amigo. Ficaram apenas o suficiente para Bill e o pai segurarem cada filhote. Depois, voltaram
para o milharal, na direo de casa.
Isso foi a coisa mais incrvel que j vi na vida, disse o pai de Bill, quando os guaxinins
sumiram.
Foi a ltima vez que Bill viu Pierre Le Pop. O guaxinim entrou na floresta com a sua famlia e
desapareceu. Ele veio apenas se despedir.
Alguns anos depois, Bill terminou o segundo grau e chegou sua vez de se despedir. Ele no foi
cursar veterinria, nem foi para um treinamento de guardas florestais. No foi sequer para a
faculdade. Era junho de 1964, e Bill Bezanson foi para o Exrcito, para a infantaria, como voluntrio
integral. No dia 1o de julho, seguiu para o treinamento bsico. Trs anos depois, com vinte anos
recm-concludos, encontrava-se no Vietn.
Bill estava inscrito na Companhia B do 123o Batalho de Aviao do Exrcito dos Estados
Unidos. Eram os Warlords. Sua misso: reforar as primeiras tropas para invadir o territrio
inimigo; assaltos, reconhecimento de territrio, misses secretas. Havia 21 soldados na unidade, sete
em cada helicptero, mais dois pilotos e dois artilheiros. Se uma unidade da infantaria ou uma equipe
de bombas relatava suspeitas de posies inimigas em morros distantes, os altos oficiais
convocavam os Warlords. A tarefa deles era limpar a regio, atirando o mximo possvel, para ver
que tipo de contra-ataque recebiam. Bill era o rato do tnel. O trabalho dele era entrar sozinho em
qualquer tnel, sem cobertura e sem rdio, e colocar para fora qualquer vietcongue que estivesse
escondido l dentro.
No preciso dizer que era um trabalho perigoso, sujo e imprevisvel. Um tipo de trabalho to
perigoso e imprevisvel que, depois de alguns meses, fazia um homem se sentir invencvel s por ter
sobrevivido. Bill participou de tantas corridas sob fogo cruzado no breu escuro dos tneis
vietcongues que nem sabe quantas foram. Depois de uma misso, ele e os outros rapazes contaram
mais de mil furos de bala no casco do helicptero. Havia oito homens l dentro. Muitos traziam furos
de bala nos uniformes, mas ningum estava sangrando. Era assim com os Warlords. Feridas menores,
uma pequena Estrela Lils e coisas do gnero, como falava Bill das condecoraes militares que
recebeu, isto , nada muito importante. Nada letal. Por quase um ano.

Ento, setembro de 1968 entrou no calendrio. Comeou mal. Um dos amigos prximos de Bill
todos da unidade eram prximos, mas eles eram mais prximos levou um tiro na cabea. Bill
segurou o rapaz em seu colo ensanguentado nos fundos do helicptero, at chegar rea mdica, mas
o buraco era to grande que dava para ver o crebro do amigo pulsando a cada batida do corao.
Eu pensei que no o veria de novo, disse Bill. Mas em 1996 recebi uma carta dele. Ele
sobreviveu. Sofreu complicaes a vida inteira, mas sobreviveu.
Alguns dias depois, os Warlords voaram para a zona desmilitarizada, depois de uma regio
chamada Rock Pile, perto de Khe Sanh, onde antes, naquele mesmo ano, uma base da Marinha fora
atacada durante 122 dias por fogo inimigo. Eles desceram normalmente, mas dessa vez aterrissaram
bem na beirada de um dos principais acampamentos dos vietcongues. Toda misso dos Warlords
consistia em dois helicpteros com artilharia e um helicptero observador como suporte, mas,
quando centenas de tiros foram disparados, o cu ficou limpo rapidamente. O primeiro helicptero
caiu, o piloto do segundo levou um tiro no calcanhar. Ele conseguiu evitar que o avio casse e
voltou mancando para casa, mas os homens em terra foram deixados para trs. Foi preciso acionar a
196a Brigada da Infantaria para busc-los. Naquela altura, os Warlords estavam feridos e Bill
Bezanson perdeu seu melhor amigo, Lurch (Richard Larrick, que descanse em paz), por causa de um
tiro de um norte-vietnamita. Ele voltou para a base, procurou esquecer aquele ltimo ms e seguiu
adiante com a guerra.
Em novembro de 1968, de volta ao lar, Bill Bezanson no queria mais relao alguma com o
Exrcito americano ou com a guerra no Vietn. Tampouco queria ser veterinrio ou guarda florestal.
Uma bandeira enorme na casa de fazenda em Michigan trazia os dizeres Bem-vindo, filho, mas ele
no se sentia em casa. Ele e o pai foram pescar robalos na pequena represa que seu pai havia
construdo com as prprias mos. Eles sempre conversaram no lago. Era o santurio deles. Mas,
dessa vez, no houve muito o que falar.
Bill no sabia bem o que fazer. Ele no sabia onde se encaixar. Voltando para casa depois de
visitar um parente, para quem fora mostrar seu uniforme e suas medalhas, um policial o parou, olhou
o uniforme e resmungou: Voc um dos que matam bebezinhos. Pediram-lhe que fizesse um
discurso em sua escola, o heri est de volta, e ele fez um apaixonado discurso antiguerra. Quando
sua me soube, ficou mortificada. Ela era uma catlica severa, que lavava com as prprias mos os
panos do altar da igreja. Amava o filho, mas ele havia mudado. Estava mal-humorado, bebia, e agora
era contra a guerra. A guerra foi por Deus e pelo pas e por tudo o mais que os Estados Unidos
representavam e acreditavam, ao menos para a sua me e a minoria silenciosa do povo americano
que ficava, por princpio, ao lado do governo. Depois de meses de tenso, a me de Bill literalmente
fechou a porta em sua cara.
Ele bebeu muito por um tempo, depois caiu na estrada. Como um membro ativo do grupo
Veteranos do Vietn Contra a Guerra, deu palestras em reunies de pais e igrejas, em qualquer grupo
no qual fosse bem-vindo. As histrias de massacres de tropas americanas vinham aumentando, e uma
boa parte do pblico estava ficando contra a guerra. Ele no sabia se o seu pblico seria contra ou a

favor das tropas, mas contava toda a verdade: mesmo quando matava pelo governo, j havia perdido
a f na guerra. Ele viu muita morte e destruio, muitos vilarejos queimados e almas vazias. Contou
para eles que certa vez apontara sua M16 para um soldado companheiro que havia capturado uma
prisioneira e disse: Se voc cortar essa mulher, eu te mato. No se coloca uma arma na cabea de
um companheiro. Nunca. Especialmente em zonas de guerra, cercadas pelo inimigo. Os outros
soldados acreditavam que a mulher sabia algo importante. No tinham provas, mas achavam que se a
torturassem poderiam obter informaes que salvariam vidas. Bill acreditava que eles perdiam, dia a
dia, os valores pelos quais estavam lutando, e ele se recusava a ultrapassar a linha entre o certo e o
errado.
L era fcil ultrapassar essa linha, disse-me Bill. Pessoas boas saram do caminho. O que
Bill havia perdido? Eu acho que ele perdeu a f, e no apenas na guerra, mas na vida. Ele no sabia
mais o que significava a vida. No sabia diferenciar o bem do mal. Ele no queria que isso
acontecesse com outros homens jovens. No queria outros pais mandando os seus meninos para o
Vietn.
Mas, alm de algumas palestras, o que mais podia fazer? Ele perambulou. Bebeu. Arrumava um
emprego, ficava um tempo, e a uma manh sumia, pegava carona, sem ter certeza de onde ia ou por
qu. Muitas vezes ele nem sabia que estava indo embora at se ver na esquina com o dedo no ar. Ele
fez amigos, mas as amizades no duravam muito. Eram quase sempre pessoas que entravam e saam
da sua vida, em geral com uma garrafa nas mos. s vezes, ele se mudava porque no gostava dos
novos amigos; s vezes, ele se mudava porque gostava demais. Ele no queria se aproximar muito de
ningum. Um vero, ele se viu no Alasca, comprou uma Harley-Davidson e dirigiu de volta para os
Estados Unidos continentais. Isso foi a coisa mais estpida que j fez, contou, porque foram quase 2
mil quilmetros de buracos, lama e estradas escorregadias, e seus olhos no pararam de sacudir por
um ms.
Mas que diferena fazia? Bill Bezanson tinha 25 anos e estava absolutamente convencido de
que no viveria at os trinta. Essa sensao comeou durante a guerra. Foi algo que ele trouxe para
casa com as medalhas e cicatrizes, mas no percebeu na poca. Era normal se sentir condenado.
Muitos homens jovens voltaram para casa do mesmo jeito. Distantes do mundo normal, eles se
apoiavam uns nos outros. Naqueles tempos, s falavam sobre isso, que estavam vivendo um tempo
emprestado.
Mas Bill no morreu. Ele se arrastava pela rotina, um dia aps o outro, at se descobrir com
trinta anos, os anos 1970 esfriando, e que estava quase no mesmo lugar de doze anos atrs. A guerra
havia acabado e sua raiva esmorecido, ou, pelo menos, estava retrada, escondida em algum lugar.
Agora suas viagens se resumiam aos subrbios espalhados ao redor de Los Angeles, mas ele ainda
tinha empregos avulsos conseguindo, de tempos em tempos, deixar a antiga vida para trs , e ainda
entrava na bebida ou pegava a estrada quando o medo aumentava. Apesar disso, conseguiu obter um
diploma em engenharia florestal no Chaffey College, em Alta Loma. E, acima de tudo, estava livre:
sem amigos, sem posses, sem lugar para ficar. Em junho de 1979, morava em outro subrbio de Los

Angeles e trabalhava para uma pequena empresa que fabricava trailers de viagem e camas de
caminho. O nome da empresa ele nem tenta lembrar. Um dia, estava parado com seu carro diante do
sinal de uma rua sem nome ao redor do centro de San Bernardino, observando a luz matutina diluir a
nvoa de mais uma manh californiana, quando, de repente, caiu literalmente sobre sua cabea algo
que mudaria sua vida.
Caiu como uma granada, realmente despencando em cima dele. Ele ouviu o barulho, depois o
eco, e instintivamente se abaixou. Esperou, mas o mundo ao seu redor permanecia silencioso. Havia
prdios nos dois lados da rua, mas eram cinco e meia da manh e nada se mexia. As ruelas estavam
quietas, as janelas das lojas fechadas. No havia nenhum outro carro na rua. Ento Bill abriu sua
porta e saiu de fininho para examinar o cap. Sups que adolescentes haviam jogado algo nele. Dava
para ver, havia uma marca no cap, e uma coisa preta no meio. Havia marcas do impacto no metal e
um lquido escorria em vrias direes.
Foi quando viu que o lquido era sangue e que a coisa preta no era uma sacola, mas um
gatinho. Algum jogou um gatinho no carro dele. E pelo jeito do corpo quebrado do bicho, foi
lanado de uma boa distncia.
Bill pegou o gatinho e o acolheu com as mos. Ficou l, na palma das suas mos, com os olhos
fechados, a cabea cada para o lado, e as pernas enroladas. O nico sinal de vida era um movimento
desesperado em seu peito e o som borbulhante e rascante do bicho lutando para respirar. Bill sabia o
que isso queria dizer: as costelas haviam perfurado o pulmo. Ele viu muitas feridas abertas de trax
como essa no Vietn. Os soldados da sua unidade guardavam em seus kits as embalagens plsticas
tiradas de maos de cigarro. Eles colocavam o plstico sobre a ferida no peito, cobriam com
esparadrapo, depois com uma bandagem, e assim salvavam a vida de um amigo. Bill Bezanson no
tinha consigo nenhuma embalagem de cigarro naquela manh em San Bernardino, mas fez o melhor
que pde. Colocou o dedo sobre o buraco para fechar a ferida, colocou a outra mo sobre o rosto
do gato para desbloquear o sangue do nariz e comeou a procurar por ajuda.
Havia um consultrio veterinrio no quarteiro. As luzes no estavam acesas, mas Bill tinha
certeza que havia visto algum entrar no prdio. Deixou o carro em ponto morto no cruzamento e
comeou a correr. Quando alcanou o consultrio, comeou a chutar a porta. O gatinho gorgolejou,
coberto de sangue.
Um homem abriu a porta. Bill lhe passou o gatinho ensanguentado. Chame o veterinrio, ele
disse. Diga a ele para cuidar desse animal. Eu pago o que for, mas nesse exato momento preciso ir
trabalhar.
O homem pegou o gatinho. Bill saiu e voltou correndo para o carro e chegou bem na hora do seu
turno.
***
Um vnculo criado quando voc salva a vida de um animal. Acontece mesmo com algo to
normal como adotar um co de um abrigo de animais. Para voc, uma tarde excitante, mas o

cachorro sabe que estava preso em um lugar ruim e que voc o soltou. Ocorre o mesmo quando
livramos cachorros engasgados da coleira, ou quando os retiramos de um quintal onde foram
abandonados sem gua ou comida. Acontece com gatos quando voc os acolhe no s dando
comida at que eles se recusem a ir embora, mas trazendo-os para dentro de casa quando esto
doentes ou com fome, e se tornam parte de sua vida. Certamente, isso aconteceu com Dewey quando
eu o retirei da caixa de devoluo de livros no inverno de 1988. Como Dewey, a maior parte dos
animais socorridos nunca esquece o que voc fez por eles. Eles valorizam isso. Ao contrrio de
tantas pessoas que do um jeito de te dar as costas, no importa o quanto voc tenha feito por elas, os
animais ficam agradecidos para sempre.
E se esse animal est machucado e precisar de cuidados para ficar novamente saudvel? Bem,
isso faz com que o vnculo fique ainda mais forte. Tomar conta das patinhas de Dewey feridas pelo
frio na semana em que o salvei foi, no menos do que outras coisas, uma ao que nos aproximou
muito. Dewey aprendeu que minha bondade no era apenas momentnea. Eu estava comprometida, eu
estaria l para ele o tempo que ele quisesse ou precisasse. E eu o conheci. Isso soa banal, eu sei, mas
o que mais posso dizer? Depois de apenas alguns dias, eu conhecia Dewey. Conhecia sua
personalidade extrovertida, sua amabilidade, sua confiana. Eu conheci Dewey vulnervel, por isso
vi seu verdadeiro eu. Sabia que ele gostava de mim eu quase diria que ele me amava, mesmo que a
gente s se conhecesse havia poucos dias e que nunca sairia do meu lado. Gosto de dizer que vimos
a alma um do outro. Talvez tenha sido mesmo isso. Talvez tenha sido esse o fio condutor que nos
conectou pelos dezenove anos seguintes. Ou talvez tivssemos passado tempo suficiente juntos para
saber que estvamos os dois com o corao aberto, pronto para amar algum.
Algo parecido aconteceu com Bill Bezanson. Ele ainda no amava aquele gatinho na manh em
que foi correndo para o veterinrio com ele sangrando nas mos. Foi um ato de bondade de um
homem de corao mole que sempre ajudava criaturas necessitadas. Talvez seja ir longe demais dizer
que ele j amava o gatinho quando, depois do trabalho, passou no consultrio do veterinrio e
descobriu que, por milagre, o pequeno havia sobrevivido. Afinal, Bill Bezanson no desenvolvia
uma relao mais estreita com outro ser vivo desde setembro de 1968. Na verdade, ele passou doze
anos fugindo de qualquer relao mais significativa, e endureceu seu corao contra os
envolvimentos da vida.
Provavelmente, o mais correto dizer que Bill Bezanson admirava o gatinho. Ele era pequeno
no pesava quase nada e tinha umas seis semanas de vida , mas era um sobrevivente. A perfurao
em seu pulmo no era o que Bill pensava, no era o resultado de algum abuso ou negligncia. Fora
feita pelas garras de um pssaro caador. A sua testa estava bem ferida, porque o pssaro o atacou
com o bico. s cinco e meia da manh, o nico pssaro que poderia estar procurando por comida era
uma coruja. Uma coruja no abocanha um pequeno animal para mat-lo depois. A coruja feita para
atacar o animal com tanta fora que quebre suas costas. O gatinho sobreviveu a esse golpe. Ele lutou
com a coruja por isso as marcas de bicadas e o rosto ferido e, seja l como foi, durante a luta a
coruja afrouxou suas garras.

Esse gato de arrepiar, disse o veterinrio, justamente o homem que abriu a porta de manh,
enquanto mostrava a Bill as feridas do gatinho. Ele caiu do cu e aterrissou no seu carro... me d
arrepios s de pensar. Esse gato de arrepiar.
E assim ele foi chamado, Bill sempre conclua quando contava a histria depois (e a contou
centenas de vezes durante os anos). Daquele momento em diante, ele se tornou Arrepio.
Arrepio ficou uma semana no veterinrio. Este doou o seu tempo; o nico custo foram os
remdios, que eram muitos. Arrepio precisava de muita ateno e cuidado. Lutava contra uma
infeco, feridas penetrantes e graves traumas. Cada centmetro do seu corpo estava arranhado e
machucado, estava to revirado que no pde comer comida slida durante um ms. Bill teve que lhe
dar de colher todas as refeies. Arrepio recebeu vrios pontos no peito, onde a coruja havia
perfurado o seu pulmo, e teve que usar um protetor em formato de cone para que no arrancasse os
pontos. No h nada mais pattico, imagino, do que um pequeno gatinho com a cabea para fora de
uma gola branca enorme parecendo um megafone.
Mas, mesmo com aquela gola, Arrepio era lindo. Ele era bem pequeno, no pesava nem um
quilo, tinha menos de dois meses, mas dava para ver como se tornaria um gato majestoso: elegante e
angular, com quadris bem marcados que se destacavam do corpo rijo. Seu rosto era longo e elegante,
e tinha quase um jeito de pantera ao redor da boca. Possua um rosto de rei, calmo e sofisticado,
com olhos enormes, como os gatos nos desenhos do Egito antigo. Sob luz normal, ele era preto. Mas
luz do Sol, que ele amava, deixava entrever uma camada de pelos brilhantes como cobre. Era um
gato prtico, no era dado a chiliques, nem a miados queixosos, no ficava louco brincando com um
lpis, mas aquela penugem cor de cobre revelava seu calor interno. Arrepio no deixaria nunca mais
nada nem ningum bater nele.
Ser que Bill Bezanson j amava Arrepio depois de lhe dar comida na colher por um ms? Se
pressionado, ele diria que sim, amava Arrepio. Mas, trinta anos depois, difcil saber exatamente.
Afinal, quando a admirao vira amor?
De todo modo, essa no a pergunta certa. O importante saber que Arrepio, o gato, amava
Bill Bezanson. Imediatamente e para sempre. A primeira coisa que Bill fazia quando alugava uma
nova casa ou apartamento era cortar um buraco na tela. Assim, Arrepio podia se divertir enquanto
Bill trabalhava longas horas em linhas de montagem ou em fbricas. Arrepio passava a maior parte
do dia do lado de fora. Mas, assim que Bill voltava para casa, ele vinha correndo. Se no estivesse
na porta para saud-lo, tudo que Bill precisava fazer era botar o p para fora e gritar Arrepio, e o
pequeno gatinho vinha correndo para casa. Muitas vezes, ele estava a quatros casas de distncia, no
jardim do vizinho. Bill via quando ele vinha muito rpido, pulando as cercas. Ele vinha escorregando
bem em cima de Bill, passando no meio e ao redor de suas pernas, se esfregando nele e quase
fazendo Bill cair. Bill se sentava no sof com uma cerveja, e Arrepio subia nas suas pernas, colocava
suas patinhas no peito de Bill e lambia o nariz dele. Depois deitava no seu colo. No tinha vontade
de sair de novo ou de ter seu prprio espao, ele s queria ficar com o seu amigo. Algumas noites, os
dois ficavam sentados assim por horas a fio.

No era apenas amizade. Havia um parentesco, uma semelhana entre as suas vidas que
acalmava a tristeza de Bill. Como Bill, Arrepio havia enfrentado a escurido do mundo. Como Bill,
Arrepio no devia estar vivo. Mas estava. Arrepio estava vivo, saudvel, feliz e, de algum modo,
isso fazia Bill se sentir melhor com sua prpria sobrevivncia. De noite, Arrepio pulava em sua
cama. Bill sempre dormia de um lado, e Arrepio subia no travesseiro e deitava ao seu lado, com o
rosto apoiado na barba de Bill. Ele colocava suas patinhas ao redor dos braos de Bill e puxava at
que Bill o envolvesse com a parte interna do brao. Mesmo quando ia dormir sem Arrepio, Bill
acordava e achava o gato enrolado no travesseiro e com o brao ao redor das suas costas. E isso
fazia uma diferena. Depois de uma dcada de sonos agitados, a presena de Arrepio acalmou os
pesadelos de Bill. Ele sabia, tanto consciente como inconscientemente, que precisava ficar imvel.
Caso contrrio, poderia machucar Arrepio.
Nem toda noite, porm, era calma. Como muitos veteranos do Vietn, Bill vivia uma vida de
farras pesadas, e muitas vezes na sua casa tinha msica alta e muita gente fumando e bebendo
cerveja. Isso pode ser chamado de automedicao, coisas da juventude, ou o que acontece quando
voc se sente fadado a morrer cedo; mas, na verdade, era apenas um estilo de vida. Se a festa virasse
baguna, Arrepio ia para o quarto dos fundos e se encolhia em cima da mochila de Bill ou dentro do
saco de dormir, mas na maior parte do tempo Arrepio no se incomodava. Ele se sentava atrs do
sof enquanto a festa rolava em volta dele. Ou ele aspirava a fumaa. Ou ele ia de mansinho pelo
cho e colocava seu focinho gelado no tornozelo nu de algum. Esse era o truque de Arrepio. Ele
chegava devagarzinho nas pessoas e colocava o focinho no pedao de pele exposto entre a barra da
cala e a meia. Assim conseguia ateno. As pessoas se abaixavam e faziam carinho nele, e, se ele
sentisse que era algum amigvel, logo lhe pulava no colo. Arrepio adorava um colo.
O focinho gelado de Arrepio. Era a caracterstica dele, seu carto de visitas, sua carta de
intenes. Independentemente do que acontecesse na noite anterior, Bill Bezanson podia descansar
certo de que, na manh seguinte, sentiria o focinho gelado de Arrepio. s cinco e meia da manh,
mais precisamente. Como muitos gatos, Arrepio tinha um relgio interno. Sabia exatamente quando
sua comida devia ser servida, e no esperava nem um minuto a mais. No importa o quo mal
estivesse se sentindo, Bill andava no escuro at a cozinha s cinco e meia da manh e dava a tigela
de Arrepio. Ele era apegado a mim, Bill dizia, como que explicando. Ele era apegado a mim.
E Bill Benzason tambm era apegado a ele. No ia a lugar nenhum sem Arrepio. Quando Bill
estava em casa, Arrepio estava ao seu lado. Quando Bill saa para um passeio, Arrepio o seguia, de
perto. No aconteceu mais de Bill pegar carona sozinho. Quando Bill pegava a estrada, o que ainda
fazia quando a ansiedade batia, Arrepio ia com ele. Uma tigela, um saco de comida e estavam livres.
Enquanto Bill ficava na beira da estrada pedindo carona, Arrepio brincava na grama, caando grilos,
sombras ou os narcisos que sacudiam ao vento. Quando um carro desacelerava, Bill gritava apenas
uma vez: Arrepio!, e o gato vinha correndo, pulava no carro e eles partiam.
Sempre que Bill andava com sua Harley a que comprou no Alasca , ele amarrava a caixa de
transporte de Arrepio no rack traseiro. Um dia, ele viu um homem com um chihuahua sentado no

tanque de gasolina da moto, bem atrs do guido. Arrepio ia amar isso, pensou. Bill sabia que as
patas de Arrepio escorregariam pelo tanque de metal, ento descolou um pedao de tapete para ele
sentar. Tentou prender com uma fita dupla-face, o que no funcionou, e ento ele colou. Desde que
Bill ficasse aqum dos 40 km/h, Arrepio fechava um pouco os olhos, ficava com as orelhas para trs
e deixava o vento deslizar sobre o seu pelo. Quando Bill chegava a 40 km/h, Arrepio pulava. No
por zanga, ele s no gostava de tanta velocidade. Aguentava qualquer velocidade quando estava
atrs, no bagageiro, mas s suportava um tanto de vento quando ficava no espao aberto do tanque.
Teve um ano que Bill levou a moto para o rali de Sturgis, em Dakota do Sul mais de 1,5 mil
quilmetros , e Arrepio estava na frente enquanto Bill desacelerava para entrar na rua principal. As
pessoas ficaram gritando e uivando, bebendo e fazendo piadas sujas, mas Arrepio no se importou.
Ele ficou com as orelhas para trs e cruzou a cidade parecendo o gatinho mais maneiro do mundo.
Bill e Arrepio iam para outros lugares tambm. Eles acamparam juntos nas florestas do Oeste,
caando insetos para a coleo de Bill. Eles andaram pelas montanhas de Sierra Nevada. Foram de
carona para Quartzite, no Arizona, para a grande exibio de pedras e minerais. Quando Bill ia a
festivais de msica, Arrepio sentava ao seu lado no cobertor. Quando ele se mudou para uma casa
nova, o que fazia agora todo ms de setembro, Arrepio ia junto sem reclamar. Exceto o bar e o
trabalho, eles iam juntos a todos os lugares. Bill e Arrepio. Arrepio e Bill. Eram uma dupla.
Da, em 1981, houve uma nova adio famlia: uma mulher. A casa onde ela morava ficou
coberta de cinzas na exploso do Monte Santa Helena, o vulco grande no oeste de Washington, e ela
acabou alugando um quarto de Bill no sul da Califrnia. Bill estava tomando conta de um bar, e sua
hspede feminina trabalhava num bar no final da rua; eles conversavam muito, mas sempre atravs do
fundo de um copo de cerveja. Bill e Arrepio ainda se mudavam todo ms de setembro, vivendo uma
vida itinerante. Ento, depois de uma briga, quando a mulher voltou para Washington, eles foram
atrs dela rumo ao Norte. Antes de Bill entender o que estava acontecendo, os dois estavam casados.
Bill arrumou um emprego fabricando metal, assentou-se na vida de casado e comeou a beber.
Era tudo fachada, diria ele depois a respeito das suas relaes humanas. Nada profundo.
Nada duradouro. Tudo em que havia alguma profundidade de alma tinha a ver com um animal.
Mudaram-se novamente em setembro. E no ano seguinte tambm. E depois de novo. Ele nunca
pensava naquele setembro terrvel no Vietn, em 1968. L se iam quinze anos, ento ele nunca fez a
conexo. Sabia apenas que a cada setembro ele era tomado por uma vontade avassaladora de se
mudar. Era algo maior que sua esposa, que sua carreira, maior at mesmo que sua amizade com
Arrepio. Esse medo, mesmo tantos anos depois, era a maior coisa na vida de Bill.
O casamento, desnecessrio dizer, no durou. Estava condenado desde o princpio, quando Bill
se levantou para dizer Sim, e pensou: O que estou fazendo aqui? O casamento estava em crise,
quando, mais ou menos um ano depois, Bill acordou com sua mulher gritando. Arrepio, que andava
passando mais noites na floresta, trouxera-lhes um presente: uma cobra de jardim grande e gorda,
contorcendo-se nos lenis.
Livre-se desse maldito gato, exigiu a esposa de Bill. Livre-se dele.

Estava claro que a relao dos dois ia acabar. Em 1986, depois de um ano separados e de um
outro ano em que voltaram a ficar juntos, Bill e a esposa se separaram oficialmente. Arrepio voltou
para o colo de Bill e para o travesseiro na sua cama. Da em diante, eram s os meninos.
***
No, a cobra no era uma mensagem. No havia inveja ou solido ou qualquer coisa do gnero.
Arrepio no precisava estar sob seus ps para saber que era amado, porque uma conexo verdadeira
uma via de mo dupla. Conforto, assim que eu descrevo minha conexo com Dewey. Uma crena
no amor do outro. A cobra? Isso foi apenas Arrepio sendo ele mesmo.
Ele era um gato esperto, o Arrepio arteiro. Ele estava sempre se preparando para alguma
aventura. Durante um ano, Bill e sua esposa moraram no trreo de um apartamento na beira de um
lago. Cada apartamento tinha uma varanda a de Bill ficava a menos de um metro do cho e toda
tarde a mulher do andar de cima jogava punhados de milho da sua varanda para os patos e gansosdo-Canad que moravam no lago. Arrepio ficava perto da porta de correr de vidro miando para os
pssaros, com o rabo em p de excitao. Ele era assim. Enxergava as possibilidades. Nunca
deixava passar uma oportunidade de brincar.
Um dia, Bill abriu a porta. Arrepio no pirou. Nem foi em direo ao deck. Em lugar disso, foi
para o fundo da sala, correu o mximo que pde e se jogou por cima da cerca, bem no meio dos
cinquenta patos e gansos e todos entraram em pnico, grasnando e batendo as asas e correndo uns
por cima dos outros, tentando fugir. Arrepio ficou com o rabo em p e com a cabea para cima e
andou orgulhoso de volta para a porta. Ele estava to orgulhoso de si mesmo. Depois disso, toda vez
que a passarada estava por l, Arrepio miava e se esfregava nas pernas de Bill at que ele abrisse a
porta.
Ento, um dia, Arrepio correu e pulou... bem em cima de um ganso enorme. O ganso,
amedrontado, deu um salto de mais de um metro, soltou uma grasnada e comeou a correr feito louco,
soltando penas, pulando e fazendo barulho, desesperado, tentando voar. Arrepio, pendurando-se
desesperadamente nas costas do ganso, virou por um momento para Bill. Eles se entreolharam
fixamente, e Bill pde ver os olhos de Arrepio completamente arregalados. A o ganso levantou voo.
Ele voou uns trs metros antes de cair e rolar formando uma bola de penas, bico, ps de ganso e pelo
de gato. O ganso se levantou imediatamente e correu para o lago. Arrepio se levantou e voltou a jato
para o apartamento. Ele nunca mais pulou no meio do bando de pssaros.
Arrepio sendo Arrepio. Fazendo planos. Sempre na iminncia de algum desastre. Correndo de
volta para a segurana do lar. Esse era o seu charme: ele era um amante e um aventureiro. Um
companheiro do lar, que sentava no seu colo uma hora e no momento seguinte estava caando cobras.
Ele at deu as boas-vindas ao novo gato da famlia, um gatinho preto chamado Zippo. Isso foi
logo depois de Bill conhecer sua mulher, quando ele estava trabalhando e passando muito tempo em
bares jogando sinuca, e achava que Arrepio precisava de companhia. Em algum momento durante o
caminho, Arrepio contraiu fiv, a forma felina da aids, ento Bill colocou um anncio no jornal

procurando um gato amigvel e fiv-positivo. Um casal jovem no tinha dinheiro para os


medicamentos de seu gato doente, e ento, alguns dias depois, Zippo se juntou famlia.
Arrepio o adorou imediatamente. Desde o primeiro momento, no apenas ele adotou o gato
como o tratou como um irmo. Se que existe uma dupla natural, essa era Arrepio e Zippo. Arrepio
era o chefe, sempre aprontando alguma, enquanto Zippo... bem, Zippo era fofo, um gordinho jovial.
Arrepio caava insetos; Zippo relaxava em casa. Arrepio seguia Bill pela rua; Zippo olhava da
janela. Nas raras vezes em que passeava do lado de fora, Zippo nunca lembrava de voltar quando era
chamado. Ele ficava distrado com o capim ou com uma sombra na cerca e no entrava at que a
comida fosse servida. Um final de semana, Zippo estava em um de seus raros passeios pelo lado de
fora quando achou uma aranha-lobo enorme na grama. Ele brincou com a aranha a tarde inteira.
Quando cansou, foi balanando para dentro de casa. Arrepio estava cochilando na cama. Zippo pulou
para cima da cama e comeou a olhar para ele. A cabea de Arrepio ficou ereta. Ele ouviu a
mensagem silenciosa, ento saiu correndo da cama, foi direto em cima da aranha e comeou a brincar
com ela tambm.
Quo prximos eram os dois gatos? Bill uma vez tirou trs fotos deles em rpida sucesso. Na
primeira, Zippo estava lambendo a orelha de Arrepio. Na segunda, Zippo estava com a lngua para
fora e com uma cara horrvel, como se tivesse experimentado o pior gosto de sua vida. Arrepio
parecia estar rindo. Na terceira, Arrepio estava lambendo a orelha de Zippo. Tudo bem, irmo, ele
parecia dizer. Te peguei dessa vez, mas ainda somos amigos.
Eles tinham um ao outro, os trs meninos. Era uma vida boa. Mas isso no quer dizer que era
uma vida fcil. O divrcio deixou Bill machucado e confuso, incapaz de entender exatamente o que
havia acontecido e certo de que havia algo errado com ele. Por que algum no poderia am-lo? Por
que seu casamento no deu certo? Havia um muro entre eles. Em cinco anos de casamento, nunca
falaram uma palavra que viesse do corao. Ele no culpava a esposa. Culpava a si mesmo.
Eu comecei a beber demais depois da separao, admitiu Bill, e depois comecei a trabalhar
demais.
Quando era criana na fazenda de sua famlia em Michigan, Bill sonhava em ser guarda
florestal. Ele era graduado em engenharia florestal; apagou incndios em florestas; chegou a trabalhar
at para o Escritrio de Administrao de Terras, mas sua tentativa anual de entrar para o Servio de
Florestas dos Estados Unidos sempre recebia um No, obrigado como resposta. Ele sempre
alcanava uma pontuao alta nos testes de aptido, mas pessoas menos qualificadas ficavam com o
emprego. Desesperado, depois de onze recusas (sem falar no divrcio), e convencido de que o
mundo estava contra ele, entrou na primeira fbrica que encontrou. Enquanto preenchia o formulrio,
o chefe entrou no escritrio, jogou uma poro de papis em cima da mesa e disse para a secretria,
referindo-se a algum: Faa o ltimo cheque dele. Ele est fora daqui.
Ento virou para Bill e disse: Voc faz brasagem?.
Claro que sim, arriscou Bill.
Ento est contratado. Traga o formulrio preenchido pela manh.

Bill saiu do escritrio e foi direto biblioteca pesquisar o significado de brasagem. No


tinha ideia do que significava. Acabou que brasagem de metais queria dizer soldar cobre com cobre,
como faz um encanador quando solda um cano no outro. Havia uma metfora no meio dessa histria
sobre duas substncias (um homem e um gato) que se uniam para formar um todo slido e
inquebrvel. Mas havia tambm uma carreira. A fbrica fazia lminas para motor de jatos; a
brasagem era uma introduo indstria de aviao. Bill trabalhou nessa indstria, saindo e
voltando, por 22 anos, at se aposentar da Boeing em 2001. Durante boa parte desse tempo, ele
trabalhou tanto quanto podia aguentar fisicamente, suando suas frustraes e mantendo-se ocupado na
linha de produo.
Mas, mesmo nos dias mais longos de trabalho, e mesmo quando esses dias duravam meses,
Arrepio e Zippo ficavam com ele. Ele poderia ficar fora por dezesseis horas, at dias inteiros, mas
quando Bill Bezanson entrava pela porta, morto de cansao ou bbado, Arrepio estava sempre l
para cumpriment-lo. Antes de se sentar para relaxar vendo televiso, Bill verificava se tudo que ele
poderia precisar estava por perto: cerveja, salgadinhos, controle remoto, livros, lenos. Sabia que
Arrepio viria para o seu colo at mesmo antes de ele chegar ao sof, e no queria ter que se levantar
e incomodar o gato. Quando ia para a cama, Arrepio engatinhava para perto do seu rosto, como
sempre fez, e pedia para ser embalado. Bill dormia com o ronronar do gato, respirando no seu pelo.
Zippo se aconchegava nas costas de Bill.
Quando saiu da nuvem de trabalho e bebida, Bill estava pronto para mudar. Havia cansado do
ciclo de bebedeiras, apartamentos baratos e trabalhos que o deixavam bitolado, e de ter apenas
Arrepio e Zippo como companhia. Na Califrnia, logo antes do seu casamento, uma amiga havia
contrado o vrus do hiv. Era o comeo dos anos 1980, todo mundo estava morrendo de medo.
Ningum chegava perto dela. Apenas Bill a tocava. Ento, ele cuidou dela: preparava sua comida,
lhe dava banho, limpava sua baguna. Fazia tudo, menos dar injees. Ele estava l enquanto ela
murchava, ele estava l quando ela morreu. Era o mais prximo de ser til que havia sentido desde
1968.
Dez anos depois, ele diminuiu a bebida e procurou um segundo emprego, na rea da sade.
Depois do turno de dez horas na linha de montagem de avies, ele trabalhava outras dez horas como
guarda-noturno num centro de reabilitao para dependentes de drogas, mas no d para viver muito
tempo com trs horas de sono por noite. Quando um amigo teve cncer no crebro, ele procurou
trabalho em uma unidade de tratamento de traumatismo cranioenceflico, onde ajudava pessoas que
haviam sofrido acidentes srios. Comeou a trabalhar como terapeuta, usando hipnose. Ajudava
vtimas de crimes, de acidentes e de estupro a atravessar a luta contra o transtorno do estresse pstraumtico, sem nunca se dar conta de que ele mesmo sofria disso. Era um trabalho fsica, mental e
emocionalmente exaustivo.
Por que ele fazia isso?
Eu sentia como se estivesse pagando de volta.
Como assim?

Silncio. Porque escapei de algumas situaes vivo e sem sequelas. Outra pausa. Porque, na
ocasio, algum me ajudou.
Durante um perodo particularmente longo sem trabalho na indstria de aviao, ele foi
trabalhar para um asilo, na casa de pacientes terminais. A primeira tarefa de Bill foi com a pessoa
mais difcil da lista de pacientes. Ela era desagradvel, no ajudava, reclamava muito e ningum
aguentava mais do que poucos dias. No segundo dia, ela berrava ferozmente para Bill, o mais alto
que podia, quando ele virou para ela e disse: Voc tem medo de morrer, no tem?.
Ela ficou quieta. Olhou para ele. Parecia querer dizer algo, mas a baixou os olhos e ficou
observando as prprias mos. Bill sentou ao seu lado, e eles conversaram sobre a vida dela, sobre o
passado e sobre o fim da vida. Eles conversaram at ela no ter mais nada para dizer.
Alguns dias depois, no dia de folga de Bill, ele recebeu um telefonema dos filhos da mulher.
Mame est morrendo, eles disseram. Ela quer ver voc.
Quando chegou, ela pediu para os filhos sarem do quarto. Conte-me outra vez como , ela
disse, com a voz trmula.
Imagine o lugar mais bonito onde voc j foi, disse Bill, e voc vai se transportar para l.
Ela fechou os olhos. Quando falou novamente, pareceu gritar baixinho de algum lugar muito
longe. Voc tem razo, Bill, sussurrou, logo antes de morrer.
isso que eu devo fazer, pensou Bill.
Ele deixou a carreira de mecnico da indstria aeronutica e se dedicou em tempo integral ao
cuidado domiciliar de pacientes com doenas terminais. Encontrou uma enfermeira na qual confiava
e criou uma empresa, cada um deles trabalhando direto durante cinco dias, depois descansando cinco
dias, a fim de proverem cuidado constante. Quando ele estava trabalhando, deixava Arrepio e Zippo
sozinhos com o fundo de um balde de quase vinte litros cheio de comida. Havia um buraco na tela
para que os gatos pudessem brincar do lado de fora. Zippo descansava dentro de casa, dormindo a
maior parte do tempo, mas Arrepio adorava aquelas velhas cidades madeireiras do noroeste de
Washington cidades como Darrington e Granite Falls que constantemente estavam na rota das
cidades que Bill fazia todo ano. As florestas vinham at as casas, e Arrepio nunca vira rvores to
altas. Caando esquilos, ele subia at quinze metros dentro dos galhos sem pensar duas vezes, a
deitava e relaxava enquanto um esquilo nervoso fazia barulhos na ponta fina do galho. No havia
nada mais divertido para Arrepio do que esquilos. Era como se ele pensasse que a misso dos
esquilos na Terra fosse entreter os gatos. Os ratos-do-campo pequenas criaturas que parecem ratos
e se metem dentro das pinhas no cho da floresta serviam de comida. Arrepio cavava entre as
pinhas, danava sobre as pernas traseiras quando encontrava o que queria, e atacava as pobres
criaturas. Se fosse deixado por conta prpria, Arrepio pegaria ratos-do-campo o dia inteiro.
Mas assim que Bill chegava em casa e chamava: Arrepio! Arrepio!, o gato largava os ratos e
vinha saltitante. s vezes, ele estava no jardim dos fundos. s vezes, estava a dez casas de distncia.
Bill gritava Arrepio! e via o gato pulando l longe. Esperava alguns segundos, e l estava ele,
saltando a cerca. Bill nunca soube muito bem o que Arrepio ficava fazendo l fora sozinho, mas

adorava aquela viso do gato correndo velozmente entre as cercas. Ele vinha deslizando at os ps
de Bill, mal conseguia parar e batia com a cabea nele, e eles passavam o dia encolhidos dentro de
casa, Bill relaxando das emoes de cinco dias de devoo a uma pessoa que morria, e Arrepio se
recuperando dos seus cinco dias sozinho com Zippo.
Mas a natureza instvel, s vezes voc o gato, s vezes voc o rato. Certa noite, em
Granite Falls, Bill estava botando o lixo para fora quando ouviu coiotes gritando por perto. Ele viu
um movimento, o rabo de um coiote na sombra, a viu Arrepio. O gato estava suspenso no ar, meio
que danando em cima dos narizes de quatro coiotes que tentavam peg-lo com suas garras. Bill
pegou um machado e gritou bem alto Arrepio! e foi correndo em direo briga. Arrepio
continuou danando, empurrando os focinhos dos coiotes para longe e tentando pular fora, mas, logo
que a ajuda chegou, um coiote colocou suas garras com firmeza em volta do focinho de Arrepio e
comeou a arrast-lo. Bill levantou o machado, berrou e o coiote largou sua refeio, correndo para
dentro da floresta. Arrepio se levantou e correu na outra direo, para dentro de casa. Quando Bill
entrou, Arrepio estava encolhido em cima do seu travesseiro preferido numa poa de sangue. Bill
correu com ele at um veterinrio. Arrepio tinha uma ferida profunda e a mandbula quebrada, mas,
depois de alguns meses base de lquidos, ele se recuperou completamente. Apesar da mordida do
coiote, Arrepio ainda tinha sede de vida e aquele lindo focinho egpcio.
Em Darrington, Washington, uma cidade madeireira desorganizada no nordeste de Seattle, s
margens da Floresta Nacional do Monte Baker-Soqualmie, foi um urso que atacou Arrepio. A casa de
Bill naquele ano era bem no rio Sauk, e, todo dia, um urso vinha calmamente pelo jardim em direo
ao rio, pegava um salmo, sentava na margem do rio e o comia. E, todo dia, Arrepio se metia entre as
pernas do urso, abocanhava um pedao do salmo e corria. O urso levantava a pata, meio
preguioso, sem convico, enquanto Arrepio j ia sempre bem longe. Eis que, um dia, Bill olhava
para fora, pela janela da cozinha, e viu o urso pegando o peixe. Arrepio passou entre as pernas do
urso para roubar um pedao. O urso balanou a pata lentamente. Mas, dessa vez, o pedao que
Arrepio pegou ainda estava preso ao osso. O urso deu um solavanco no gato e o girou. A pata do urso
acertou Arrepio em cheio, lanando-o uns dez metros pelo ar, por cima de uns arbustos, no jardim do
vizinho.
Bill entrou em estado de choque. Pensou: Acabou, foi-se o Arrepio. Assim que esse urso sair,
eu vou l encontrar seu corpo.
Dois minutos depois, Arrepio entrou rapidamente pelo buraco na tela. Ele tinha trs costelas
quebradas e uma ferida enorme na lateral do corpo, mas ainda trazia o pedao de salmo pendurado
na boca.
Assim era Arrepio. Um amigo intensamente leal. Mas era tambm o tipo de gato que perseguia
esquilos em galhos de quase quinze metros e que arriscava a vida vrias vezes para roubar peixe de
um urso. E era duro. Parecia no haver feridas as que ele mesmo fazia, ou outras que o fizessem
parar. Arrepio era capaz de tudo pilotar um ganso, levar uma cobra para a cama, irritar um urso ,
mas Bill podia descansar certo de uma coisa: ele sempre voltava.

At que um dia, no voltou.


Foi nos anos 1990. A economia estava pssima. Depois de oito anos, Bill tinha deixado o
trabalho com doentes terminais. O custo emocional de ter que dizer adeus a tantas pessoas tornou-se
pesado demais. Ento, ele retomou seu antigo trabalho de mecnico, primeiro na indstria
aeronutica, e, depois de uma srie de dispensas, foi trabalhar numa fbrica de manufatura de casco
de barcos. Uma sexta-feira, o dono da fbrica veio e disse: Os negcios vo mal, muito mal. A
partir de segunda, todo mundo com barba ser demitido. Absurdo. Mas srio tambm. O dono
detestava barba e, em Washington, parece que possvel ser demitido se o chefe no gostar do modo
como voc penteia o cabelo.
Bill foi para casa e lutou o fim de semana inteiro contra sua deciso. Tinha se machucado
seriamente no Vietn. Passou trs meses no hospital com uma leso sobre a qual at hoje no fala.
Quando as bandagens finalmente foram tiradas, ele se olhou no espelho e viu uma barba cheia. No
queria ter mais relao alguma com o Exrcito, e o Exrcito no queria mais nada com ele, mas Bill
Bezanson amava aquela barba. Por mais de vinte anos ele ficou sem se barbear. Nem uma nica vez.
Ento, decidiu, no ia raspar agora. No por causa de um trabalho de brasagem de barcos. Na
segunda de manh, foi demitido. Por causa da barba! E todos que fizeram a barba foram, mesmo
assim, despedidos um ms depois.
Algumas noites depois, Bill comeou a conversar com uma garonete do Elks Club local,
explicando sua situao, e ela lhe ofereceu sua casa por alguns meses. Ela ia embora durante o vero
e precisava de algum para alimentar suas cabras. Dois dias depois, Bill, Arrepio e Zippo se
mudaram para uma casa boa e nova no noroeste de Washington. E, dois dias depois disso, a mulher
estava de volta. Ela brigou com o homem que tinha ido visitar e no ia mais passar o vero fora; Bill
e seus gatos tinham que cair fora.
Infelizmente, isso no era fcil para um fabricante de metal desempregado, no meio da recesso.
Bill no podia alugar nada sem um contracheque estvel ou dinheiro no banco, e sua crise pessoal de
moradia comeou a se arrastar. Durante duas semanas, Bill procurou trabalho, enquanto a mulher se
zangava cada vez mais. Finalmente, ele achou um servio, cuidando de doentes. Era um bom emprego
para uma economia ruim, e foi um alvio. A primeira coisa que Bill fez quando chegou em casa no
seu primeiro dia de trabalho foi gritar: Arrepio! Arrepio!. Ele queria comemorar.
Nada de Arrepio.
Nada de Arrepio no jantar.
E nada de Arrepio na hora de dormir.
Bill sabia que havia algo errado. Procurou pela vizinhana, mas nenhum sinal de Arrepio. A
mulher disse que os coiotes deviam t-lo pegado. Mas Bill achava que no. Ele sabia como era a
morte, e no tinha essa sensao. Simplesmente no acreditava que Arrepio estivesse morto.
Imaginava que ele estivesse preso acidentalmente dentro de alguma garagem ou no local de trabalho
de algum, e que, assim que fosse solto, viria para casa. Ao anoitecer, Bill ficava em p na varanda e
tentava ouvir Arrepio. Toda noite ele pensava ouvir um miado distante de Arrepio. Zippo passava o

tempo todo fora, procurando, a seu modo, por Arrepio; ento podia ser o miado de Zippo que o vento
trazia. Mas ele no pensava assim. Acordava no meio da noite e jurava ter ouvido Arrepio. Estava
convencido que ele havia cado num velho poo ou que estava preso dentro de um buraco, e procurou
o gato pelos quintais e pela floresta. Bill havia abandonado tanta coisa na vida. Mas no ia
abandonar Arrepio.
Os dias passaram e nada de Arrepio. A mulher queria Bill e Zippo fora dali. Ela estava certa de
que os coiotes tinham pegado Arrepio, e no se importava com aquele gato besta mesmo, queria
apenas sua casa de volta. Bill brigava com ela todos os dias. Ele no ia embora sem Arrepio, no ia
mesmo.
Trs semanas depois, ele e Zippo ainda estavam l. A mulher estava em p na entrada, gritando
para que fosse embora. Bill se recusava a ir embora. De novo. No sem Arrepio, disse a ela. No
iria enquanto Arrepio ainda pudesse estar vivo. A mulher, furiosa, olhou para o quintal e ficou branca
feito neve. Ela teve que segurar na maaneta da porta para no cair. Vindo pelo jardim, l estava
Arrepio. Muito magro, e muito sujo, mas vivo.
Bill o abraou. Arrepio, Arrepio, ele disse, enfiando a cara no pelo do gato. Eu sabia que
voc ia voltar.
Eles partiram naquela noite: Bill, Arrepio e o gordote do Zippo. Bill no tinha para onde ir. S
pegou os gatos, seus poucos pertences, e saiu. Os trs dormiram no carro at sair o seu primeiro
pagamento.
Um ano depois, Bill comeou um papo com um desconhecido num bar. Depois de beber um
pouco, o homem disse: Ei, espera a, voc o cara. Voc morou com a minha me. Ela levou seu
gato para o depsito de lixo, cara, e jogou ele fora com o lixo. Ela quase morreu quando aquele gato
voltou.
O depsito de lixo ficava a trinta quilmetros de distncia. Trinta quilmetros! Arrepio levou
trs semanas andando, mas voltou. Ele sobreviveu ao ataque de uma coruja, foi mais esperto do que
quatro coiotes e aguentou o safano de um urso. Ele foi jogado fora com o lixo e achou o caminho de
volta para casa. Arrepio era um sobrevivente em todos os sentidos da palavra.
***
Mas, afinal, sempre chega uma hora em que no podemos mais voltar. Zippo foi primeiro, em
junho de 2001, com dezoito anos. Ele foi hospitalizado para fazer uma cirurgia rotineira de remoo
de tumor. Bill ligou no fim da manh, todo contente, e perguntou como Zippo estava. O veterinrio,
dr. Call, foi o veterinrio de Zippo e Arrepio desde que eles se mudaram para Washington, quinze
anos antes. Certa manh, logo depois de se mudar, Bill viu um cachorro ser atropelado por um carro.
Ele correu para a rua, pegou o cachorro e dirigiu at o veterinrio mais prximo. O cachorro mordia
a si mesmo e gritava, sentindo uma dor tremenda. Quando Bill o pegou, o cachorro se levantou e o
mordeu no pescoo e no ombro. Na mesa de exame, ele se mexia e gritava, em pnico e com medo.
Dr. Call entrou, tocou o cachorro gentilmente com a mo, e na mesma hora ele se acalmou.

Bill ficou to impressionado que trouxe Arrepio para ver o dr. Call no dia seguinte. Arrepio o
amou imediatamente. E o dr. Call amou Arrepio. Mais tarde, foi ele quem cuidou de Arrepio quando
ele foi atacado pelos coiotes e pelo urso. Ele balanou a cabea impressionado quando soube da
histria da coruja. Ele sempre chamava Arrepio de seu gato milagroso.
Mas agora dr. Call fungava ao telefone, tentando evitar que sua voz falhasse. Zippo, ele disse
para Bill, reagiu anestesia. Morreu no meio da cirurgia. O grande e doce Zippo. No dia anterior,
ele parecia to cheio de vida. Agora ele tinha partido. Bill estava chocado. Arrepio ficou devastado.
A sade do prprio Arrepio piorava com o passar dos anos. Ele tinha quase 21 anos e a aids
felina afinal tomava conta dele. No conseguia reter comida no estmago e tinha febres terrveis que
faziam seu corpo tremer. Agora, sem Zippo, ele ficou letrgico e melanclico. Sentia falta de seu
parceiro, seu melhor amigo preguioso. Quando Bill voltava para casa do trabalho, todos os dias, a
primeira coisa que fazia era fechar todas as portas dos armrios. Arrepio as abria durante o dia,
procurando por Zippo.
Bill adotou outro gato, um gatinho preto igual a Zippo. Queria que Arrepio tivesse companhia,
mas este no queria saber do novo gato. Arrepio nunca odiou nada nem ningum na sua vida (at os
pobres ratos-do-campo aquilo era o seu instinto sendo mais forte que ele), mas ele no queria o
gatinho por perto.
Suas febres pioraram. Na maior parte dos dias, Arrepio no conseguia reter a comida. Seu
corpo falhava e seu corao estava doente. Em agosto, Bill levou Arrepio para o dr. Call, que disse
que ele estava morrendo e que no havia nada que pudesse ser feito. Arrepio s viveria mais alguns
dias. E seria uma morte dolorosa e difcil.
Arrepio era um sobrevivente, um lutador, um aventureiro, adorava um colo, e foi um amigo leal
e uma companhia constante durante quase 21 anos. Era ele que estava l, ao lado de Bill, quando ele
precisava. Ele era o lado constante na vida de Bill. Durante anos, foi sua nica ligao verdadeira.
Ele era sua segurana, seu salva-vidas em todas aquelas noites em que tinha sonhos ruins ou sentia
medo. Quem sempre vinha quando Bill chamava. A maioria dos gatos, quando leva a derradeira
injeo, deita e morre em paz. Arrepio deu um empurro quando a agulha tocou sua pele. Ele miou e
tentou desesperadamente se soltar. A ele virou, olhou nos olhos de Bill, e rugiu feito um leo. Como
se estivesse brigando. Como se no estivesse pronto para partir. Como se Bill tivesse cometido um
erro terrvel.
Aquele grito foi um golpe duro no corao de Bill Bezanson, que ficou assombrado. Dr. Call
jurou que Bill havia feito a coisa certa, que Arrepio viveria menos de uma semana e que sentia dores
terrveis. Mas aquele grito corroeu Bill por dentro. Arrepio queria viver! Mesmo com dor, mesmo
sabendo que ia morrer, ele queria viver.
Algumas semanas depois, no dia 11 de setembro de 2001, as torres caram. Bill Bezanson
estava trabalhando na Boeing e olhou para cima se perguntando se outros avies estariam chegando,
se os helicpteros haviam sido atingidos, se ele fora afinal deixado para trs. Sentia falta de Zippo.
Sentia falta de Arrepio. Sentia falta da ligao que tinha com eles. Perdera a segurana da presena

deles. Ele sentiu, dessa vez, que estava realmente sozinho.


Ento recebeu uma carta sem remetente. (Descobriu depois que fora enviada pelo consultrio
do dr. Call.) Quando, sete anos depois, soube da morte de Dewey, Bill me mandou uma cpia. Eu
sei que voc pode ficar de luto por causa de um gato, ele escreveu, porque eu tambm fiquei. Ele
achou que o recado podia me ajudar porque havia ajudado a ele. Era isto o que estava escrito:
ltima Vontade e Testamento
Eu, Arrepio Bezanson, estando com a sade frgil, venho por meio desta transmitir
ao meu amigo e mestre a minha ltima vontade: ser lembrado com carinho sempre que
pensar em mim.
Meu tempo na terra foi um tempo feliz, repleto de lembranas alegres e momentos
prazerosos. No levo comigo nenhuma posse mundana, porque posses e propriedades
nunca foram as minhas preocupaes principais. O importante para mim foi ganhar sua
confiana e admirao, sendo obediente e sempre fiel. A nica coisa que tive e que
valorizo, acima de tudo, foi o amor do meu mestre, pois ningum poderia ter me amado
mais.
Quando eu tiver partido e voc tiver oportunidade de pensar em mim, no fique
triste, pois estou em paz e no sinto mais nenhuma dor ou desconforto. Todos os males
que a idade e as circunstncias trouxeram ao meu ser fsico no so mais um problema.
Estou livre para fazer travessuras, enquanto o vento bate no meu rosto e a grama faz
ccegas nos meus ps. Tiro sonecas no calor do Sol e durmo sob um lenol de estrelas.
E assim, com alegria, espero por voc.
Dividimos muitos momentos felizes juntos, e por isso sei que voc sente que eu
nunca poderei ser substitudo, e que talvez voc deva viver o resto de sua vida sem
outro animal de estimao como companheiro fiel. Meu amigo, no tente me substituir,
pois o que dividimos insubstituvel. Ns crescemos juntos, atravessando perodos
bem complicados (e frios). Mas no prive a si mesmo do calor e da companhia que
outro companheiro pode lhe dar. Eu no quero que voc fique sozinho.
Acima de tudo, lembre-se, querido mestre, que eu estarei sempre com voc: no seu
corao, na sua mente e nas suas lembranas. Pois o que dividimos foi especial, hoje,
amanh e sempre. E se voc sentir um focinho frio na sua pele, e no houver nenhum
animal por perto, saiba, no fundo de seu corao, que sou eu, dizendo ol.
Bill Bezanson est melhor agora. O medo e o isolamento provocados pelos eventos do 11 de
setembro de 2001 fizeram com que ele fosse procurar terapia com o grupo local de ajuda aos
veteranos de guerra, e finalmente ele lidou com suas lembranas do Vietn, especialmente as de
setembro de 1968. Ele sofria da sndrome de lutar ou fugir, to comum em pessoas com transtorno
de estresse ps-traumtico. uma resposta biolgica acarretada pela convico subconsciente de

que o mundo perigoso, de que, para sobreviver, voc tem que fugir ou se defender. Por mais de
trinta anos, Bill Bezanson esteve fugindo.
O que voc teria me contado sobre a sua vida antes dessa ruptura?, eu perguntei a ele.
Eu no teria conversado com voc.
Era simples assim.
Alguns meses depois, no final de 2001, Bill se aposentou. Ele adotou outro gatinho para que o
gato que ele trouxe para casa quando Arrepio estava doente no se sentisse s. Depois de dcadas
vivendo em casas alugadas, Bill comprou um apartamento num condomnio no noroeste de
Washington. No sentia mais aquela necessidade de fugir, mas quando o ms de setembro chegou
novamente, ele pintou o condomnio inteiro. Pintar era um bom meio-termo.
Em 2002, Bill comprou uma casa perto de Maple Falls, em Washington, uma pequena cidade
perto de Mount Baker e da fronteira canadense. Ele ainda no sabe se j deixou algum de fato se
aproximar, mas encontrou uma casa para viver e fez bons amigos na vizinhana. Sr. Prestativo, assim
ele chamado. Construiu uma varanda para o seu vizinho, que luta contra um cncer. Leva outra
vizinha para fazer pequenas coisas, uma senhora de noventa anos que foi professora escolar e sofre
de degenerao macular. O pai de Bill morreu h dez anos, depois de lutar muito tempo contra um
cncer. Para as enfermeiras que cuidaram dele, contou apenas uma histria a do guaxinim que
amava seu filho Bill, tanto que pulou de uma rvore para saud-lo e ainda veio apresentar seus
filhotes. Mas Bill restabeleceu contato com a me. Ele liga para ela no Michigan duas ou trs vezes
por semana.
De vez em quando, amigos aparecem em sua casa: outros aposentados, vizinhos, pessoas que
ele conheceu no trabalho ou nos ltimos anos. Eles bebem um pouco, riem, conversam. Em algum
momento da noite, algum sempre vira para baixo e roa a parte de trs das pernas. Acho que senti
algo, eles dizem, quando notam que Bill os observa. Uma coisa fria. Mas no tinha nada.
Bill no diz nada, mas sabe que havia algo ali. Pode ser o Zippo, Bill me disse, mas dava
para perceber que ele no estava pensando em Zippo. Estava apenas sendo gentil com um velho
camarada. Em seu corao, ele sabe que era o focinho frio de Arrepio. O gato nunca o deixou. Ele
ainda vem, s vezes, dizer ol. Est esperando Bill vir para casa.

4
Tabita, Boogie, Gail, BJ, Chimilee, Kit, Srta. Cinza, Maira, Meia-noite,
Preta, Lola-Bunny, Chazzy, Docinho, Nikki, Facinha, Buffy, Dengo,
Caramelo... e outros

Quando li seu livro, no pude deixar de pensar no timo livro que eu teria em mos caso tivesse
mantido um dirio das nossas vidas aqui na Ilha de Sanibel, na Flrida. Meu marido gerente de
um resort na ilha, e eu trabalho com reservas. Certa noite, ns estvamos passeando pela
propriedade e uma gatinha linda nos seguiu at em casa, e a, claro, eu dei comida a ela, e
claro que ela voltou... Bom, resumindo a histria: a gente acabou com 28 gatos.
Eu amo a Ilha de Sanibel, na Flrida. Eu viajei por todo o pas para conferncias em
bibliotecas sempre amando cada minuto de danas e risadas , mas, para mim, nada se compara a
essa ilha especial. Graas ao meu irmo, Mike, que era amigo do antigo gerente, h mais de vinte
anos eu visito um resort da ilha chamado Premier Properties de Pointe Santo de Sanibel. Na verdade,
eu estava l na semana seguinte morte de Dewey. A filha de Mike ia se casar, e eu estava
arrumando as malas quando recebi o telefonema. Dewey estava estranho.
Voei imediatamente para a biblioteca a fim de buscar Dewey e lev-lo ao veterinrio. Pensei
que ele estivesse resfriado, um problema comum em nosso gato idoso. Fiquei chocada quando o
doutor usou palavras como tumor, cncer, muita dor e sem esperana. Eu me senti como se tivesse
sido achatada por uma martelada, mas, quando olhei para os olhos de Dewey, vi que era verdade. Ele
escondeu de mim que estava doente durante semanas, talvez meses, mas agora no escondia mais. Ele
sentia dor. E pedia minha ajuda.
Eu assinei a papelada. Segurei-o nos braos, perto do meu corao. Vi seus olhos se fecharem.
Organizei a cremao, anestesiada pelo choque. Depois, ainda confusa, voltei para casa rapidamente
para terminar de fazer as malas, busquei meu pai, doze horas antes do que o planejado, e fui
dirigindo at Omaha. Fui para a casa da minha filha, abracei meus netos gmeos, e empurrei todo
mundo para o aeroporto. A gente s colocou o traseiro na poltrona do avio quando ele estava
prestes a decolar. A, claro, os gmeos queriam suco, lpis de cera e mimos, at que o avio
estabilizasse e seus ouvidos parassem de doer. Quando finalmente recuperei o flego, sobrevoando
algum lugar do Missouri, peguei a revista velha e meio nojenta da companhia area. Algum j tinha

feito as palavras cruzadas caneta, eca! Na pgina seguinte, tinha a foto de um gato. Comecei a
chorar, e chorei todo o voo at chegar Ilha de Sanibel.
No h lugar melhor para se ficar de luto. Na Ilha de Sanibel e, principalmente, no Premier
Properties de Pointe Santo, o lugar mais relaxante do mundo. A praia de areia muito branca, e no
tem quase ningum. Bem, tirando os maruins, criaturas terrveis que nos mordem sem piedade quando
a gente pisa descalo na areia. Mas, srio, isso um preo irrisrio para se pagar por um paraso no
qual d para andar (de chinelos) na beira da praia, catando conchas cor de coral, e sentar na varanda,
observando as mes golfinhos com seus filhotes dando saltos ao longe. De tarde, gosto de relaxar
ouvindo as discusses dos sabis que gritam um para outro ta-t ta-t (isso o macho, eu sei que )
e tui-tui-tui-tui (isso a fmea atrevida). At o jacar do hotel, com mais de um metro, bacana.
s vezes, a gente o v se arrastando preguiosamente pela grama, ignorando completamente as
cadeiras de praia.
E ainda tem o pr do sol. Em Iowa, de vez em quando, h uma exploso de cores no final do
dia, uma mistura de rosas, laranjas e dourado. Na Ilha de Sanibel sempre assim, as cores vvidas
dominam o cu at desaparecerem dentro do maravilhoso mar do golfo, quando aparecem as estrelas.
Olhando da praia ou da varanda bebericando um vinho , a gente se sente feliz e livre, maravilhado
pela beleza natural e pronto para brindar o final perfeito de mais um dia lindo.
Bem, normalmente assim. Mas, com o casamento e diante do fato de ter de acalmar (ou s
vezes fingir ignorar) parentes que eu no via h muito, a semana depois da morte de Dewey seria uma
loucura, mesmo diante da bomba emocional que ela representou. Felizmente, minha neta Hannah, a
dama de honra, me distraiu de um jeito singular, tpico das crianas: me transmitiu uma gripe. A mim
e s outras 28 pessoas no jantar de ensaio. Eu fiquei a maior parte da semana vendo desenhos
animados no sof com Hannah, e passei mais tempo de joelhos, de cara para a privada, do que
olhando os golfinhos se divertindo nas ondas. Eu estava fraca demais para falar ao telefone, para ver
televiso ou ler e-mails (na verdade, no tive foras nem para assistir s aventuras bobas de Dora, a
Aventureira), e, portanto, eu no imaginava que em casa a popularidade de Dewey havia explodido e
que os telefones da biblioteca no paravam de tocar. Eu s olhava pela janela para o oceano e
pensava em como cada um de ns uma parte pequena do mundo, e como era bom o fato de a
televiso ficar a poucos metros do banheiro. Mesmo quando se est vomitando cinco vezes por dia,
no h nada como a paz da Ilha de Sanibel.
Portanto, eu sei o que Mary Nan Evans quis dizer quando me contou que, na primeira vez que
veio Ilha de Sanibel, pensou: Nunca teria dinheiro para viver aqui. O paraso, afinal, fora h
muito reservado para os ricos e poderosos, e, como eu, Mary Nan era apenas a garota de uma cidade
pequena do Meio-Oeste americano. Seu marido, Larry, que trabalhava fazendo manuteno de um
hospital em Waverly, no Missouri, havia sido escolhido como trabalhador do ano pelo distrito do
oeste do estado e o prmio eram quatro dias nesta pequena ilha na costa sudoeste da Flrida. Mary
Nan j tinha vindo para a Flrida muitas vezes antes ela tinha uma tia que morava em Fort Myers,
acima no litoral mas a combinao de cu azul e gua azul brilhante, cercando as faixas verdes e

estreitas da ilha, era diferente de tudo o que ela havia visto antes. Mesmo os prdios brancos,
visveis no horizonte, pareciam nuvens pontudas. Quando atravessou a estrada que ligava a ilha ao
continente, ela pensou: Lembre-se bem disso, Mary Nan, porque voc nunca mais vai voltar.
Quatro anos depois, em 1984, ela e o marido Larry estavam de volta ao menos de volta
Flrida. Dessa vez, no queriam apenas uma folga de quatro dias da vida normal, eles queriam
emprego. Com os quinze anos de experincia de Larry trabalhando com manuteno, estavam
confiantes de que encontrariam trabalho em algum dos hotis espalhados pela orla. E os hotis
ofereciam acomodao, pois o diretor de manuteno de um grande complexo de prdios, lotado de
turistas que no toleram nem vinte minutos com uma mquina de gelo quebrada, muito menos duas
horas , precisa trabalhar 24 horas, atendendo a exigncias e pedidos estranhos dos clientes. Mas
havia um problema. Quando Larry dizia que tinha um gato, os resorts no o queriam. Sinto muito, eles
diziam. Animais no so permitidos.
Mas se desfazer de Tabita, a gata siamesa que eles tanto amavam, estava fora de cogitao. Ela
havia sido adotada por Larry e Mary Nan quinze anos antes, em 1969, quando Larry fora designado
para um posto na Califrnia, findo o servio militar. Logo antes do Dia de Ao de Graas, Mary
Nan viu um anncio no jornal da base: gatinhos recm-nascidos disponveis para adoo. Eles s
tinham vinte dlares, economizados a duras penas com o salrio de recruta, mas Mary Nan
convenceu Larry a dar uma olhada. Assim que chegaram ao apartamento, um monte de gatinhos
siameses minsculos surgiu rolando do quarto dos fundos. A maioria estava mole e caindo, mas teve
um que veio direto para Mary Nan e caiu nos seus braos. Mary Nan segurou o gatinho no peito, que
se esticou e tocou seu queixo.
Eu quero muito uma menina, ela disse para a mulher com os gatos.
Bem, voc est segurando a nica fmea, a mulher respondeu.
Mary Nan deu dez dlares para a mulher pelos custos e foi embora com Tabita. Ela gastou a
maior parte da economia deles com a caixinha de areia e a comida para gatos. Naquele Dia de Ao
de Graas, Mary Nan e Larry Evans sentaram-se mesa de jantar e disseram suas graas, comendo
um jantar semipronto, desses de bandeja de alumnio. Mary Nan no lembra direito, mas
provavelmente era o peito de peru com molho da Swanson, com aquela tortinha de cereja do lado.
Depois de comprar a rao, s sobrou dinheiro para esse jantar.
Mas Tabita valia a pena, porque era a gata mais doce e leal que um casal poderia querer. Ela
nunca queria nada alm de comida. S fazia um barulho educado. Nunca queria companhia de
ningum alm de seus pais, mas no era mal-educada com as visitas. Estando em casa, Tabita no se
preocupava com nada. Ela dormia. Ela descansava. Deixava Larry passar o aspirador de p no seu
pescoo e no topo de sua cabea isso mesmo, com a mangueira do aspirador de p e fechava os
olhos enquanto o jato de ar sugava os seus pelos soltos. Ela at ficou amiga de um rato, Larry me
contou, impressionado. Mais de uma vez, ele viu Tabita na sala de estar, apenas olhando para um
ratinho ancio, de bigodes cinzas (de acordo com Larry, aparentemente um especialista em bigodes
de ratos) que saa hesitante de seu buraco. No sei como Mary Nan aguentava isso. Eu teria exigido

do meu gato ou, ao menos, do Larry que se livrasse daquele rato. Mas ela nunca solicitou esse ato
de clemncia de Tabita. Todas as noites, a gata dormia no meio da cama, bem no meio de Larry e
Mary Nan. s vezes, quando Mary Nan acordava no meio da noite, encontrava Tabita em cima do seu
peito, olhando para o seu rosto. Sem ratos.
Mary Nan no tinha vergonha de dizer a si mesma, a Larry ou a qualquer amigo, qual era a
funo de Tabita na famlia. Ela e Larry no podiam ter filhos (Tabita tambm no, mas isso foi uma
deciso de sua dona). Tabita era como uma filha, com a qual nunca teriam que discutir ou implorar
para que no sasse com o garoto mau que todas as meninas ficavam pajeando. Durante um tempo,
Mary Nan carregou Tabita com uma manta de croch de beb que sua av havia feito.
Claro, gatos no so crianas; eles tambm no eram permitidos nos apartamentos da base
militar, e por isso Mary Nan manteve Tabita em segredo dos vizinhos. Quando levava Tabi de carro
para o veterinrio, ela a colocava dentro de um saco marrom de papel, como se fosse compras, e no
na caixa. Tabita nunca reclamou. Nenhuma vez. Na verdade, ela adorava. Sacos de papel marrom se
tornaram seu brinquedo favorito e ela ficava rolando com a cabea dentro deles horas a fio. Ela
tambm amava andar de carro. Muitas vezes ficava miando na porta do apartamento pedindo para
entrar no carro. Em dias amenos, muito comuns no sul da Califrnia, Mary Nan deixava a gatinha
enrolada na parte alta do banco de trs do carro, que Tabi, com suas unhas, deixara em trapos. Com
um pouco de comida e de gua, de tanto que gostava, Tabi moraria dentro do carro.
Mas, quando Mary Nan e Larry visitaram a Ilha de Sanibel, Tabi estava mais velha. Depois de
Larry deixar o servio militar, a famlia voltou para a cidade natal, Carrollton, no Missouri, uma
pequena comunidade de cerca de 4 mil pessoas, onde Larry vira Mary Nan pela primeira vez, no
rinque de patinao, quando ela tinha quase dezesseis anos e ele no tinha sequer vinte. No Missouri,
Larry trabalhava fazendo manuteno, Mary Nan cuidava da casa. Estavam contentes. Mas os
invernos frios do Missouri eram puxados para as juntas de Tabi, e depois de longos doze anos, ela
comeou a desacelerar. Mary Nan pegou um cobertor que a av de Larry havia costurado, dobrou-o e
colocou-o no cho, na frente da sada do aquecedor. Tabi ficava em cima do cobertor at ficar bem
quentinha, mas a sauna para gatos no melhorava suas juntas doloridas. Tabi era o amor da vida
deles, e estava definhando.
Mas Larry e Mary Nan nunca a deixariam para trs. Nem por um ms, nem por uma semana,
mesmo que isso significasse o fim do sonho de Mary Nan de viver na Flrida (e esse sonho era dela,
no de Larry) e uma longa viagem de volta para Carrollton, no Missouri, derrotados.
Eu tenho mais um lugar para telefonar, disse Larry esposa depois de duas semanas de
procura. Se no der certo, a gente volta para casa.
Ele deu o telefonema. Eu quero logo esclarecer, disse, que eu tenho uma gata, e no vou me
livrar dela.
E da?, disse o homem do outro lado da linha. Eu tenho dois gatos.
***

Algumas semanas depois, Larry, Mary Nan e Tabi Evans haviam mudado todos seus pertences
para um pequeno bangal na frente do Colony Resort, na Ilha de Sanibel. Dessa vez, Mary Nan sabia
que estava no paraso para ficar. O resort era na parte leste e residencial da ilha, longe das lojas
cheias e dos prdios altos. Os bangals individuais e os prdios do Colony Resort espalhavam-se
por uma propriedade cheia de palmeiras, arbustos e trechos com grama. Ao leste, um passeio por
tbuas de madeira de cinquenta metros passava por cima das dunas, levando em direo s areias
brancas da praia e s guas belssimas do Golfo do Mxico. Um caminho curto pela beira da praia
levava ponta da ilha, com seu famoso farol. Depois de escurecer, o cu ficava negro e cheio de
estrelas. Nenhuma luz de rua jamais foi permitida na Ilha de Sanibel, para no estragar a maravilha
silenciosa de sua noite estrelada.
Mesmo Tabi, j com quinze anos, e sofrendo cada vez mais de artrite, rejuvenesceu. Mary Nan
passou a usar simples shorts cqui e um sorriso permanente. Comprou uma bicicleta com o pneu
grosso e com uma cesta na frente, e Tabita ia com ela por toda parte. Enquanto as meninas passeavam
fazendo coisas, Larry usava os finais de semana para colocar telas na varanda, nos fundos do
bangal. Depois de uma manh cansativa sentada na cesta da bicicleta (o vento pode ser fatal para
pelos de gato!), Tabita ficava l a tarde toda, esquentando no Sol e refrescando-se na brisa fresca da
ilha. Mary Nan e Tabi passavam horas juntas naquela varanda. Mary Nan com o seu ponto de cruz e
Tabi sem nada para fazer alm de usufruir de sua idade avanada.
Talvez tenha sido a viso de Tabi, feliz da vida, em sua varanda particular, que atraiu a pequena
gata malhada. Talvez fosse o bvio amor (e a comida) que Mary dava a sua doce siamesa. Ou talvez,
simplesmente, fosse inevitvel. Nos anos 1980, a Ilha de Sanibel estava repleta de gatos selvagens.
Eles estavam por toda parte: correndo pelos arbustos ao lado da rua, bisbilhotando as churrasqueiras
dos quintais, catando coisas nos terrenos vazios cobertos de grama. Terrenos que, com o passar dos
anos, se transformariam em casas beira-mar, hotis e condomnios de prdios altos. Talvez a gata
malhada estivesse apenas procurando um jeito mais fcil de sobreviver no paraso, quando seguiu
Mary Nan e Larry para casa ao voltarem de um passeio noturno. A gata no conseguia entrar na
varanda, mas estava por perto toda vez que eles abriam a porta da frente.
Eu vou dar um pouco de leite para ela, disse Mary Nan para Larry, depois de alguns dias
reparando que a gata olhava para ela. A coitadinha estava magrinha feito um maarico e quase to
leve quanto um, e assim que Mary Nan comeou a lhe dar comida, ela no mais saiu do jardim.
Eu imaginei, murmurou Larry, revirando os olhos com um sorriso atordoado.
Como devo cham-la?, Mary Nan perguntou aos dois pequenos meninos que moravam na casa
ao lado.
Chame-a de Boogie, disseram.
O que Boogie?
Os meninos se entreolharam. No sei, disse um deles.
Certo, disse Mary Nan com um sorriso. Ser Boogie.
Dois meses depois, Larry parou do lado de fora da porta quando ia trabalhar. Mary Nan,

chamou a mulher com um tom alegre, mas impaciente: Vem c ver o que voc fez.
Na varanda, estavam trs lindos gatinhos, molengas e com as orelhas molhadas. Os filhotes de
Boogie.
Parece que agora temos cinco gatos, disse Mary Nan, entrando para pegar uma jarra de leite.
Quatro no jardim e Tabita dormindo na varanda.
Um ano depois, quando o gerente do resort se aposentou, Larry assumiu o posto. Mary Nan
passou a trabalhar na recepo e a famlia inteira se mudou para o bangal do outro lado da rua, no
terreno do resort. A essa altura, Tabita havia morrido. Sua sade piorara seriamente nos ltimos
meses, mas Mary Nan e Larry no conseguiam bot-la para dormir. Na ltima semana de Tabi,
Larry precisou ir para o continente a negcios. Mary Nan e Tabita foram juntas passear de carro.
Passear naquele banco de trs estragado do carro era a atividade favorita de Tabita, mais do que
andar de bicicleta e mais do que ficar na varanda. Para poder entrar com ela no hotel, Mary Nan
tinha que enrol-la numa toalha como se fosse um beb, como fazia quando Tabi era filhotinha, mas o
esforo valia a pena. Enquanto Larry trabalhava, Mary Nan passeava com Tabita ao redor de Fort
Myers, subindo e descendo trinta quilmetros pelo litoral.
Quando voltaram para casa, levaram Tabi ao veterinrio. Est na hora, ele disse
simplesmente. Mary Nan e Larry no responderam. Sabiam que ele estava certo e foi a coisa mais
difcil pela qual passaram. Tabita fora como uma filha. Ela os confortou com sua presena, seu amor
persistente e nunca insistiu em namorar homens errados. Mesmo sabendo que ela estava sofrendo,
coloc-la para dormir era como arrancar um pedao de seus coraes. Naquela tarde, Larry e
Mary Nan sentaram-se no banco, apenas olhando para o oceano e chorando, um no colo do outro.
Mas ainda tinham quatro gatos: Boogie, a gatinha malhada original, que entrara no corao de
Mary Nan, e seus trs filhotes. Eles eram gatos que ficavam do lado de fora, mas, aparentemente, no
pensavam em ir muito longe. Como os dias de vero na Ilha de Sanibel eram muitas vezes quentes,
Larry construiu uma casa para os gatos do lado de fora da varanda do bangal. A casa tinha pouco
mais de um metro quadrado, com um telhado de madeira para fazer sombra e com laterais de rede
vazada para que a brisa entrasse. Tinha at um ventilador para manter os gatinhos frescos nos dias de
calor infernal, quando os ventos do oceano no sopravam.
Do conforto de sua varanda, Mary Nan olhava seus gatos, pensando naqueles dias calmos com
Tabita e desejando um bom ventilador para a sua prpria casa. Ela viu logo quando uma das gatas
pariu uma ninhada de gatinhos midos e sem cabelo no teto da casa dos gatos. E ela viu no dia
seguinte quando um dos gatinhos, choramingando, ainda com os olhos fechados e pequeno demais
para andar, escorregou do telhado e desapareceu. Mary Nan correu esperando encontrar o gatinho
ferido ou morto, mas o beb estava vivo e sem machucados, deitado sobre um montinho de grama e
chamando suavemente pela me.
Eu realmente deveria cuidar desses gatos, pensou.
Com tantos gatos para alimentar agora eram sete , Larry colocou uma fileira de potinhos do
lado de fora da porta da casa. Todas as manhs, antes do seu prprio caf, ele enchia todos os potes

com comida. Os gatos vinham correndo... todos para a mesma tigela. No importava o nmero de
opes, eles queriam todos comer do mesmo pote, ao mesmo tempo. Os gatinhos engatinhavam uns
por cima dos outros, tropeando, caindo, brigando, e os gatos mais velhos colocavam o focinho no
pote e engoliam a comida enquanto tentavam empurrar os outros com o topo das cabeas. Mary Nan e
Larry no podiam deixar de rir.
Aos poucos, a comida comeou a atrair mais gatos selvagens. Primeiro foram dez gatos. Depois
doze. Depois... de onde veio aquele gato? Larry se perguntava. Eu conheo esse gato? Com certeza
ele est com fome e tem direitos. Mas... Ah, quer saber?, pensou Larry, vou dar mais um punhado
de comida. Mary Nan foi quem comeou a dar nome aos gatos. Parecia a coisa certa a fazer, alm de
castrar aqueles que considerava seus, para manter a colnia organizada. Mas os gatos se recusavam a
cooperar. Ficavam indo e vindo, quase sempre vindo, cada vez mais numerosos. No demorou muito
para que a cada dez passos pelo Colony Resort um gato cruzasse o caminho. Toda vez que Mary Nan
e Larry andavam pelo passeio at a praia e eles andaram pela praia de mos dadas toda santa noite
depois do trabalho, durante vinte anos , uma procisso de gatos os seguia como um bando de
patinhos. Eles ouviam o barulho das pisadas nas tbuas, e depois esse som se misturava ao barulho
das ondas quebrando conforme o pequeno grupo passava pelas ltimas dunas. Alguns gatos subiam as
dunas vocs sabem como so gatos com areia , mas a maioria esperava no passeio, caando ou
digladiando-se com insetos invisveis aos olhos humanos, at Larry e Mary Nan voltarem do passeio
noturno. A o bando dava meia-volta no passeio e voltava para casa.
Chazzy, Caramelo, Buffy, Srta. Cinza.
Maira. Meia-noite. Preta. Docinho. Nikki. Facinha.
Voc lembra de mais algum?, Mary Nan disse por cima dos ombros, com o telefone ainda ao
ouvido.
No sei, disse Larry, ao fundo. Voc falou da Chimilee?
Claro que eu disse Chimilee, Larry. Era o meu preferido.
Ainda filhote, a pata dianteira de Chimilee ficou gravemente ferida, provavelmente por causa de
uma briga, e a conta no veterinrio foi de 160 dlares. Depois da cirurgia, Mary Nan disse para
Larry: Esse gato meu, eu investi demais nele para deix-lo ir embora. Ento Chimilee que Mary
Nan diz ser parecido com Dewey se mudou para dentro de casa. Ele era grande e amarelo, pesava
doces dez quilos e amava repousar em cima de Mary Nan e Larry, mas no se incomodava em dividilos com os outros companheiros peludos. Depois de Chimilee, raciocinou Mary Nan, no havia
motivo para a parte interna da casa ficar proibida aos outros gatos, e ela ento abria as janelas todas
as noites para deixar entrar a brisa. Imaginou que a maioria dos gatos no se daria ao trabalho de
entrar, pois parecia bem confortvel do lado de fora; mas, algumas noites depois, quando Larry
tentou se mexer na cama, viu que estava debaixo de um monte de pelos.
Que diabos est acontecendo aqui?, ele lembra de ter pensado. Devia ter uns vinte gatos
naquela cama, Larry me disse rindo.
Ora, vamos, Larry, respondeu Mary Nan, eram s 25. Mas eles eram gordos. Ns

dormamos com mais de quarenta quilos de gato todas as noites.


Depois de alguns dias, Mary Nan fechou a janela e ento realmente s ficaram cinco gatos a
no ser nos dias mais quentes, quando ela deixava a janela aberta e dez ou doze gatos adentravam a
casa. A tonelada de gatos na cama, o sof todo arranhado ou as cadeiras cobertas de pelo nunca a
incomodaram. No gostava era dos lagartos que eles traziam para a sala de estar para torturar. E
aquela cobra horrvel.
Era trabalho duro, admitiu Mary Nan, o que fez Larry rir. Afinal, era ele quem limpava a
sujeira e dava comida aos gatos. Era ele quem acordava no meio da noite quando os malditos
bichanos no paravam de bater no armrio da cozinha, onde a comida ficava guardada. Era ele quem
levava os gatos para o veterinrio quando precisavam, e foi ele quem construiu uma jaula especial
para BJ, que se cortou numa briga. O veterinrio passou um remdio e colocou um esparadrapo
chamado New-Skin[6] sobre a ferida. BJ no tinha nenhum dente na boca a boca dele parecia um
esmagador de pedras, de acordo com a descrio de Larry , mas ele sempre conseguia arrumar
briga e arrancava fora o esparadrapo. Sr. Band-Aid: assim o chamava o caseiro Carl, porque durante
seis meses o esparadrapo ficou meio pendurado na perna do BJ ou solto pela grama em algum lugar.
Ento, Larry construiu uma jaula especial e BJ ficou de quarentena at que sua perna sarasse. Depois
de resolver esse problema, Larry consertou as telas do condomnio que os gatos tinham estragado. E
consertou a casa dos gatos. E remendou as cortinas que estavam rasgadas. E enxotou os gatos da
fonte no ptio, onde eles sempre tentavam beber gua.
Um dia, Mary Nan passou por uma escada e viu dois gatos sentados nos degraus. Larry precisa
guardar essa escada, pensou. Algumas noites depois, Larry abriu a grelha da churrasqueira,
iluminou-a e descobriu um gato l dentro. Ele pegou um pedao enorme de madeira flutuante na praia
para que os gatos pudessem afiar as unhas. Isso os manter ocupados, pensou. Depois de alguns
anos, s havia sobrado um toco, e eles ainda tinham um remendo de dez centmetros cobrindo os
cantos dos sofs, onde os gatos haviam arranhado at a estrutura de madeira. Larry, todas as noites,
pegava o aspirador de p para limpar pedaos de madeira e pano.
Quando eles ultrapassaram o nmero de potes de comida do lado de fora do bangal, Larry
decidiu espalhar mais potes ao redor da propriedade. Toda manh, enquanto Mary Nan preparava o
caf, Larry dirigia seu carrinho de golfe, enchendo um por um todos os potinhos de comida. Havia
gatos relaxando no fundo do carrinho e outros que ficavam se pendurando nas laterais, tentando abrir
os sacos de comida. No comeo, ele ficou preocupado, mas, depois de um tempo, passeava pelo
terreno com gatos ocasionalmente caindo e tombando na grama. Esse passeio distribuindo comida
durava quase uma hora, e quando afinal ele chegava em casa e se sentava para o desjejum, olhava
para fora e via uns cinco ou seis gatos olhando para sua torrada e sua geleia.
Eles esto com fome de novo, ele murmurava para Mary Nan entre colheradas do mingau
saudvel que ela o obrigava a comer, apesar de ele preferir ovos e bacon.
E eles riam. Afinal, nunca havia um momento em que algum gato no estivesse com fome. Eles

seguiam Larry em seu carrinho de golfe ao redor da propriedade, implorando por comida. Seguiam
Mary Nan no carro, e ela tinha que sair bem devagar para no atropel-los. Seguiam-na at o
escritrio formando uma longa fila quando ela dava voltas nas caladas atrs de rabos de lagartixas,
porque, quando as lagartixas ficam com medo, elas perdem o rabo, e as pobres lagartixas do Colony
Resort viviam constantemente com medo de gatos.
A nica hora em que no se viam gatos no Colony Resort era depois dos sobrevoos dos
bombardeiros. Naquela poca, a Ilha de Sanibel usava velhos avies militares para jogar sprays
contra mosquitos. Eles voavam bem rente ao topo das rvores e jogavam spray venenoso sobre cada
centmetro da ilha. Uma hora, estava silencioso, o cu azul e lmpido; no momento seguinte, o velho
avio surgia com um barulho que fazia tremer o cho. Os gatos pulavam e fugiam em pnico. Dava
pena v-los to assustados, mas Mary Nan confessou que era divertido ver vinte gatos se espalhando
em todas as direes, parecendo um conjunto de pinos de boliche.
Um dia, Mary Nan encontrou Carl, o caseiro, em um dos bangals num canto distante do terreno.
Ele estava casualmente limpando a grama com um ancinho, como se no tivesse nada anormal
acontecendo, mas havia um gato pendurado em cada perna da sua cala.
Eles esto tentando pegar as minhas balas, disse Carl a Mary Nan. Ele tinha comeado a
guardar balas para gatos no bolso, e, pelo visto, no era estranho para ele ter gatos pendurados na
cintura, tentando abocanhar pedaos de bala. No tomava apenas nosso tempo, ria Larry. Tambm
era caro. Mas Larry e Mary Nan no queriam que fosse de outro modo. Com os gatos, as pessoas
que trabalhavam no hotel, e os clientes, a unio dos dois, mesmo sem filhos, explodia de
companheirismo e amor.
Um dia na vida de Larry
7h30 Acordo. Empurro vinte quilos de gatos para fora da cama. Vou me arrastando
at a cozinha para abrir o armrio de baixo, onde fica guardada a comida dos gatos.
Como sempre, um gato encurralado sai l de dentro danando, lambendo os beios.
7h40 Ligo o carrinho de golfe para fazer a ronda matinal de alimentao dos gatos.
Visito a rota de nove buracos de potes espalhados pelo resort. Tento no deixar
gatos caroneiros despencarem do carrinho de golfe nas curvas.
8h30 Caf da manh, mingau, e no ovos. Maldita mania saudvel de Mary Nan.
9h O dia de trabalho comea oficialmente. Gatos saem correndo quando abro a porta
da oficina, pois dormem l dentro quando a temperatura fica abaixo de quatro graus.
Eles acham isso muito frio. Razo no 103 pela qual a Ilha de Sanibel incrvel!
Buffy est dormindo na caixa de ferramentas novamente.

9h18 No escritrio, verifico as tarefas requisitadas durante a noite. Beijo Mary Nan
na recepo. Gatos no so permitidos, mas Gail entra sorrateiramente, como
sempre.
9h32 Inspeciono a tela rasgada que foi mencionada entre os pedidos. Noto que h
unhas felinas presas na tela.
9h45 Abro a garagem para pegar mais material para as telas. Nenhum gato. Opa!
Havia um dormindo na escada.
11h18 Acabo de instalar a tela. Reparo no menino e no gato que esto olhando. Os
dois parecem desapontados.
11h38 Verifico o nvel qumico da piscina. Vejo um gato bebendo gua na parte rasa.
Depois reparo que no um gato. um guaxinim. Ele prova a rao dos gatos, antes
de ir embora, rebolando.
12h02 Almoo com Mary Nan no escritrio. Gail fica olhando, mas no ganha nada.
12h32 Enxoto os gatos que esto debaixo do carro, dou duas voltas para ter certeza
de que todos foram embora, a saio bem devagar e vou cidade buscar a
correspondncia.
13h13 Saio com o carro de golfe pelo resort para inspecionar o terreno. H uma
pilha de gatos dormindo na grade. Quantos? Talvez quatro, mas esto muitos
apertados para se saber ao certo. Gatos pelo caminho levantam a cabea
rapidamente, mas logo voltam a dormir. Sabem que essa no a ronda da comida.
13h40 Podo rvores com o caseiro Carl. Gatos se aglomeram em volta para
observar. Um gato fica engasgado, depois vomita um rabo de lagartixa. Limpo o rabo
de lagartixa.
17h O dia de trabalho chega oficialmente ao fim, mas h galhos de rvore que ainda
precisam ser removidos.
17h35 Ronda da tarde para dar comida aos gatos. Gail est atrs, mastigando comida
do saco.
18h23 Ando at a praia com Mary Nan. Finjo que os gatos no esto nos seguindo.

19h28 Janto tarde. Os gatos ficam olhando pela janela, pedindo comida. Onde esto
as cortinas?
19h31 Penduro novamente a haste que caiu enquanto os gatos tentavam escalar a
cortina. Finjo que s tem oito arranhes na cortina, como ontem, e no treze.
19h42 Volto para o jantar e para os gatos de olho-grande. Ah, cus, fazer o qu?
jogo para eles um pouco de comida.
20h15 Inspeciono o bangal para ver quais foram os pequenos estragos feitos pelos
gatos. Nada alm de pedaos de madeira. Encontro, como de praxe, trs gatos
esmagados no pequeno espao entre a cabeceira da cama e o colcho.
21h Boto Maira e Chimi para fora da poltrona. Vejo um pouco de televiso.
21h36 Quase digo para Chimi no afiar suas unhas no sof, mas a lembro que os
cantos do sof esto com remendos de dez centmetros onde os gatos rasgaram o
estofado at a estrutura de madeira. Decido tomar uns goles de refrigerante. Quer
dizer, queria que fosse refrigerante. gua. Maldita mania de sade.
23h30 Termina o noticirio local. Hora de dormir. Deito no colcho, seguindo a
ordem habitual: gato, Mary Nan, gato, gato, Larry.
23h35 Apago as luzes, reposiciono os gatos trs vezes, encontro uma posio
confortvel, durmo.
00h34 Acordo ouvindo barulhos vindos da cozinha. Os gatos esto tentando abrir o
armrio novamente. Percebo que isso vai continuar por quinze minutos at eles
conseguirem. Penso em me levantar, mas, ao contrrio, resolvo que, pela manh,
abrirei a porta do armrio e verei um gato saindo l de dentro, lambendo os beios.
Volto a dormir sorrindo.
Certa noite, enquanto Mary Nan e Larry, em suas poltronas, eram acompanhados por vrios
olhos redondos, algum bateu na porta. Do lado de fora estava um pequeno menino, de mais ou
menos onze anos, cuja famlia frequentava o resort havia muitos anos. Em seus braos estava um
lindo gatinho marrom.
Posso ficar com esse gato?, perguntou o menino, com grandes olhos pides. Eu amo esse
gato.
Mary Nan ficou hesitante. Ela conhecia a famlia do menino e gostava deles, mas no sabia se

eles iam cuidar bem do gato. Verdade seja dita, ela no sabia ao certo de onde tinha surgido aquele
gatinho marrom. J o vira antes? Era ele realmente dela, para que ela pudesse d-lo a algum?
Aparentemente, ele andara frequentando o bangal alugado pela famlia, contra os regulamentos do
resort, e ento Mary Nan imaginou que ele fosse um residente regular do resort. E como os pais do
menino estavam to animados quanto o menino para adotar o gatinho, e como parecia que o gato
realmente gostava da famlia, ela concordou em deix-los lev-lo para o norte da Flrida.
Durante muitas semanas, ficou nervosa. O que ela tinha feito? O que poderia acontecer ao pobre
gatinho? O que ela pensava que era, uma agncia de adoo? Da que, justamente quando Mary Nan
j comeava a ficar maluca por causa disso, ela recebeu um carto de agradecimento com uma foto
do gatinho. De tempos em tempos, a famlia mandava uma foto do gato na sua casa nova, cercado de
amor, e adorando a ateno que recebia, como se tivesse achado um copo cheio de leite dando sopa
em cima da mesa da cozinha. Todo ano, quando a famlia voltava ao Colony Resort, eles traziam mais
fotos e histrias do gato que de fato se tornara um membro da famlia.
Uma hspede de Miami que vinha com frequncia foi mais direta. Connie simplesmente disse
para Mary Nan: Eu vou levar estes dois gatos. Ela j tinha outros cinco em casa, mas no podia ir
embora deixando os dois amigos que fizera em uma srie de visitas. Desde que os gatos estejam
felizes, pensou Mary Nan, enquanto dez outros gatos olhavam para ela, pendurados na escada. Ao
que parecia, Larry sempre largava a escada em qualquer lugar.
No era como se Mary Nan no conhecesse essas pessoas. O Colony era um resort familiar e a
maioria das pessoas que alugava os chals frequentava o lugar havia muitos anos. Muitos j eram a
segunda gerao, seguindo o caminho dos pais; para alguns, a visita era uma oportunidade de juntar
trs ou quatro geraes diferentes sob o Sol de Sanibel. A grande maioria j tinha reserva
permanente e vinha sempre na mesma semana. Na segunda ou terceira visita, j esperavam pelos
gatos. Perguntavam por eles quando confirmavam a reserva, e as coisas ridculas que os gatos faziam
como cair da lata de toalhas lutando, tirar cochilos nas bolsas de praia, morder rabos de lagartixas
eram o assunto das conversas ao redor da piscina. As crianas, especialmente, adoravam correr
atrs dos gatos, dar comida, abraar e fazer carinho no bando de gatos selvagens mais mimado ao
norte de Key West, onde ficavam os herdeiros de doze dedos de Ernest Hemingway.[7] (No seu
testamento, ele garantiu aos descendentes de todos os seus gatos residncia permanente em sua casa,
e eles comearam a procriar feito loucos.) Todo hspede parecia ter um ou dois gatos favoritos.
Mas, no importava quantos gatos encontrassem casas, ou quantos hspedes falassem com gosto
de diferentes gatos, a estrela do resort sempre foi Gail, a nica fmea da primeira ninhada de Boogie.
Gail era toda branca, com um pelo fofo e macio, e um adorvel focinho rosado. Na luz do Sol, ela
simplesmente brilhava. No dava para no not-la no meio de tantos peludos; todos ficavam
compelidos a comentar sua beleza nica e seu porte de rainha. Como Dewey, ela tinha uma
personalidade calorosa, calma e generosa, para combinar com seu encanto exterior.
Uma hspede regular, a dra. Nikki Kimling, uma psicloga de Stamford, Connecticut, foi
especialmente atingida. A dra. Kimling amava os gatos do resort e sempre lhes trazia brinquedos

exticos e passatempos. Teve um ano em que ela deixou 25 latas de comida (cara) para o jantar de
Natal dos gatos que eles gostavam bem mais do que a poro regular de rao seca. Mas, por mais
que a dra. Kimling desse ateno aos outros gatos, Gail era sua preferida. Todo ano ela ligava
algumas semanas antes de sua visita, e pedia pela companhia de Gail. Os gatos no deveriam ficar
dentro das casas do condomnio, mas, oito dias por ano, Gail vivia com a dra. Kimling, que
comprava comida cara, a escovava e dormia com ela basicamente, estragava a gata com tantos
mimos. Isto , se Gail pudesse ser estragada. Gail nunca deixou que sua popularidade mudasse sua
personalidade descontrada (como Dewey, alguns gatos conseguem controlar o ego felino) e nunca
insistia para virar uma gata domstica durante o resto do ano. Mas ela lembrava da dra. Kimling, a
amava e se entregava completamente aos oito dias por ano em que era a gata alugada da psicloga.
Para alugar, adotar, ou simplesmente fazer carinho, se voc fosse um amante de gatos, Colony
era o lugar certo. Desde a dcada em que Mary Nan adotou Boogie em seu corao, o resort se
tornou, quase sem querer, um pequeno pedao de cu no paraso que era Sanibel. No se davam
cinco passos sem ver gatos se escondendo nos arbustos, passando pelo caminho, ou correndo um
atrs do outro pelo gramado. Todo dia, parece, Mary Nan via gatos descansando dentro das varandas
fechadas com telas e saindo dos bangals com hspedes felizes, mesmo que no fossem permitidos
nas unidades de aluguel.
E no eram apenas gatos. Certa tarde, Mary Nan olhou pela janela e viu oito gatos e dois
guaxinins deitados no banco, pegando o Sol quente do inverno de Sanibel. Outra vez, um visitante viu
um guaxinim lavando as mos na piscina. Os animais selvagens, ela percebeu, tinham entrado no
terreno e se misturado aos gatos. Nenhum grupo parecia se incomodar. A no ser os ratos. Os
hspedes menos queridos da Ilha de Sanibel (com exceo das enormes baratas tropicais, tambm
conhecidas como baratas americanas) eram os ratos que gostavam de se esconder nas folhas das
eternas palmeiras da ilha. Pode ser que Mary Nan no conseguisse abrir os olhos sem enxergar um
gato, mas nunca, nenhuma vez, ela viu um rato no terreno do Colony Resort. No quando h 28 gatos
perambulando pelos poucos acres do terreno. Isso considerando apenas os gatos que Mary Nan
identificara e nomeara.
Obviamente, como eu sei pelas minhas aventuras com Dewey, tem sempre gente que fica
desconfortvel com o cultivo da amizade entre felinos e humanos. Eu tenho certeza de que o conselho
diretor do resort recebeu muitas reclamaes, mas sei tambm que eles no falaram nada para Mary
Nan. Eles a apoiavam talvez alm dos limites da racionalidade , mas teve uma hora que at os
diretores se cansaram. No se opunham a gatos na propriedade, mas a populao atual j estava bem
acima do que poderia ser considerado confortvel. Apesar do protesto de alguns hspedes, Mary
Nan e Larry concordaram que a colnia de gatos do Colony Resort teria que ser reduzida. No era
sem tempo. Larry passava horas todos os dias enchendo potes de comida, inspecionando os gatos
cata de feridas ou sinais de doena, e consertando coisas que haviam sido destrudas por eles.
Aqueles que ficavam do lado de fora, embora bem cuidados, eram menos saudveis do que os gatos
domsticos, e a leucemia e a fiv, a forma felina da aids, se espalharam amplamente pela populao

de felinos. A expectativa de vida mdia no Colony Resort era de oito ou nove anos, e sacrificar
tantos gatos era um fardo emocional para Larry e Mary Nan.
Era mais difcil para Larry, que sempre levava os gatos para a derradeira injeo. Sacrificar
Facinha, a gata favorita do caseiro Carl, foi especialmente difcil. Ela estava velha e fraca, seu
sistema circulatrio entrara em colapso e Larry teve de segur-la enquanto a veterinria espetou
diversas vezes suas costas. Ela chorou e olhou para Larry com um olhar de medo e de acusao, at
Larry se sentir o pior dos homens. Depois, ela fechou os olhos e morreu. Ele saiu do consultrio
chorando, com o corpo mole dela nos braos, e a trouxe para casa para ser enterrada. Ficou to
atordoado que esqueceu de pagar o veterinrio.
Lentamente, por morte natural, ou por adoes ocasionais, Mary Nan comeou a diminuir o
nmero de gatos vivendo no resort. Com a ajuda de uma doao da amiga de Gail e benfeitora dra.
Kimling, e com os comprovantes doados pelo Hospital de Animais South Trail, em Fort Myers, ela
comeou a castrar os outros gatos da colnia. Uma organizao sem fins lucrativos chamada paws
Rescue[8] fora ento criada para castrar e encontrar casas para os gatos selvagens de Sanibel, de
modo que, em toda a ilha, a populao de felinos estava sendo contida. Mary Nan disse uma vez para
um membro da organizao: Eu gostaria de poder ajudar mais.
No se preocupe, respondeu a mulher. Voc tem sua prpria organizao de ajuda aos
animais.
A maioria dos gatos do Colony Resort ia calmamente para o veterinrio, ou porque confiava em
Mary Nan e Larry, ou porque ignorava sublimemente o que esperava por eles. Alguns gatos resistiam.
Os mais selvagens eram simplesmente difceis de pegar. Levou semanas para que Mary conseguisse
capturar Dengo, um gato enorme e musculoso que recebeu um nome completamente equivocado.
Lutando, ela conseguiu coloc-lo dentro da caixa de transporte para lev-lo ao veterinrio, mas foi
um erro quando colocou a mo l dentro para ajeitar a manta que deixava a viagem dos gatos mais
confortvel. Dengo atacou Mary Nan, causando um talho que ia do cotovelo ao pulso. O corte foi to
feio, e sangrava tanto, que ela foi correndo para a emergncia. Como Mary era diabtica e arranhes
de gatos tendiam a infeccionar, os mdicos decidiram tirar o tecido machucado. A operao custou 8
mil dlares e chamou a ateno dos oficiais locais de controle de animais, mas Mary insistia em que
no havia sido culpa de Dengo. Ele nunca estivera preso antes, estava com medo e talvez,
secretamente, tivesse raiva do nome que recebeu. Algumas semanas depois, Larry pegou Dengo,
tambm levou um arranho terrvel e pensou em ir ao hospital. Mas, eles tinham certeza, como essa
j era a segunda infrao de Dengo, ele seria condenado. Ento, no dia seguinte, puseram
tranquilizantes na comida dele. Ele deve ter dormido muito bem, porque Mary Nan e Larry no o
viram durante dois dias. No total, 25 gatos do Colony Resort foram castrados. Dengo no.
Com a maioria dos gatos castrada e graas organizao paws, menos gatos selvagens
perambulando pelas belas ruas enfileiradas com palmeiras e pelas dunas cobertas de plantas
marinhas da Ilha de Sanibel, a colnia de gatos do Colony Resort comeou a diminuir. O gato
preferido de Mary Nan, Chimilee, morreu de leucemia e foi enterrado ao lado da varanda protegida

por telas, ao lado de Tabita, a amada gata siamesa que tinha comeado tudo aquilo. Um gato listrado,
com lbios to pretos que pareciam desenhados com caneta hidrocor, foi enterrado do lado de fora
da janela do banheiro, onde muitas vezes ficava sentado. Dois gatos foram enterrados perto do
chafariz no centro do ptio, que eles sempre consideraram ser um pote de gua particular. A dra.
Kimling parou de aparecer no final dos anos 1990, depois que seu marido morreu. Sua amada gata
Gail morreu logo depois, aos doze anos. Ela foi enterrada do lado de fora da porta da unidade 34,
que a dra. Kimling alugava todos os anos.
O ltimo gato que viveu no Colony Resort foi Maira, uma descendente direta de Boogie, o gato
malhado cinza para quem Mary Nan havia to inocentemente dado um prato de leite vinte anos antes.
Maira era uma solitria e mesmo quando a colnia de gatos estava no auge, ela gravitava ao redor de
Mary Nan e Larry. Depois dos outros irem embora, Maira se mudou para o bangal e entrou mais
profundamente na rotina das suas vidas. No era uma gata muito sentimental, mas estava sempre por
perto, como uma sombra que os seguia nos seus dias ocupados. Com o passar dos anos, ela ficou
mais quieta, mas tambm mais doce, como se soubesse que representava o ltimo vnculo deles com
dias preciosos e que era sua obrigao conduzir, lentamente, para o seu final, duas dcadas de
alegria, risos e confuso na comunidade de peludos. Ela morreu em 2004, depois de passar cinco
anos na casa de Mary Nan e Larry como a ltima representante da amada comunidade de gatos do
Colony Resort.
***
Mary Nan e Larry Evans ainda tomam conta do Colony Resort na ponta leste da Ilha de Sanibel.
Grande parte dos hspedes de longa data ainda volta para passar uma semana no paraso, e muitos
deles ainda falam dos gatos que um dia encheram suas frias de diverso e alegria. Eles so uma
comunidade, os hspedes e as pessoas que trabalham no Colony Resort, e, como qualquer
comunidade, eles dividem uma srie de experincias em comum. Gail, Boogie, Chimilee, Maira e os
outros ainda esto com eles, como ancestrais ou como programas de tv favoritos, e continuam vivos
nas conversas que acontecem nas noites tranquilas, debaixo do cu encantado e estrelado da Ilha de
Sanibel.
No s no Colony Resort. Em toda a Ilha de Sanibel, antes coberta por gatos selvagens, no h
mais gatos vira-latas, e tambm acabaram aqueles bombardeiros que jogavam veneno para insetos.
Vinte anos atrs, quando eu comecei a frequentar a ilha, no se podia andar um quarteiro sem ver
gatos mordiscando lagartos ou catando sobras nas caladas dos cafs. Agora, possvel dirigir por
toda a ilha sem ver nenhum. Mary Nan sabe que melhor assim. melhor para os gatos selvagens,
pois muitos estavam doentes, esqulidos e lutando para sobreviver. melhor para os gatos
domsticos, que no ficam to expostos s doenas espalhadas pela comunidade selvagem. melhor
para os outros animais da Ilha de Sanibel, especialmente para os pssaros e para os animais nativos,
vtimas frequentes do instinto natural dos gatos de caar e matar. Infelizmente, se entre os animais
protegidos esto os ratos, esse um preo pequeno a se pagar pela restaurao do equilbrio natural

da vida no paraso.
Mesmo assim, em seu corao, Mary Nan ainda sente falta deles. Ela fica com saudades dos
quase quarenta quilos de gatos dormindo em sua cama toda noite. Sente falta dos rituais de alimentar,
limpar e fazer carinho nos gatos. Sente falta de olhar pela janela e ver gatos descansando, espalhados
por todo o caminho at o topo da escada, ou deitados nos bancos, pegando Sol, com seus amigos
guaxinins. Sente falta de v-los fugindo em todas as direes quando o bombardeiro barulhento
sobrevoava a ilha. Sente falta de ver as portas se abrindo e os gatos saindo l de dentro, violando
todas as regras de higiene e da administrao da propriedade. Mais que tudo, ela sente saudades do
companheirismo, da sensao de fazer parte de algo especial, de pessoas misturadas com gatos, com
todos se divertindo profundamente.

No haver mais gatos. Ao menos no no Colony Resort. Mas Mary Nan e Larry esto pensando
em se aposentar e voltar ao continente. E eles tm certeza de que, quando isso acontecer, eles vo
adotar outro gato. Larry sempre gostou de cachorros de cocker spaniels, para ser mais precisa ,
mas, aps dividir o jantar de Ao de Graas com Tabita, em 1969, sua opinio mudou para sempre.
Ele amava Tabita, e amava todos os 28 gatos do Colony Resort, tanto quanto Mary Nan. Como ela,
ele sabe que no h nada que ele gostaria mais do que passar as ltimas dcadas de sua vida sob o
Sol da Flrida, relaxando ao lado de um amigo peludo e lembrando dos dias intensos, mas felizes,
quando o mundo parecia pouco mais do que palmeiras, amizades e gatos.

5
Gato de Natal

Enquanto eu o segurava nas mos e conversava com a dona sobre o que devamos fazer, o
gatinho tossiu. Ou melhor, regurgitou. Aquela pequena cuspida conduziu-nos a um captulo de
nossas vidas que ainda traz lgrimas a meus olhos e um sorriso a meu rosto.
Vicki Kluever nunca gostou de gatos. No cresceu perto de gatos, nunca teve amigos que tinham
gatos, mas j havia convivido com eles o bastante para saber que no eram sua praia. Gatos ficavam
sempre se esfregando. Sempre queriam sentar no colo. Sempre queriam carinho ou algum tipo de
ateno. Vicki nasceu e cresceu em Kodiak, uma grande ilha montanhosa prxima hostil costa
sudoeste do Alasca, onde s existia leite em p, e a carne mais em conta era a de peixe, que se
retirava do mar gelado com as prprias mos. Ela se considerava uma mulher forte e independente,
vinda de uma longa linhagem de mulheres independentes, e se tivesse que ter um bicho, teria de ser
forte e independente como ela. Gatos? No, eram frgeis demais.
Mas sua filha, Docinho, tinha quatro anos de idade, e queria muito um bichinho de estimao.
Vicki sugeriu um co. Afinal de contas, foi criada entre ces. Uma das fotos favoritas de sua infncia
a mostrava com dois olhos roxos, um para cada vez que o entusiasmado co da famlia a havia
derrubado do alpendre com seu rabo. Mas seu senhorio foi firme: nada de ces. Com gatos, no
entanto, no tinha problemas. Se a garotinha quisesse, ele disse, podiam at adotar dois, o que Vicki
achou bom, pois um poderia fazer companhia ao outro, e talvez nem lhe dessem tanto trabalho.
Portanto, quando a gata de uma colega de trabalho teve filhotes em novembro, Vicki Kluever pensou
ter achado o presente de Natal perfeito. Ou, pelo menos, o melhor presente que seu feioso prdio de
quatro andares em Anchorage permitia.
Duas semanas antes do Natal, enquanto desmamavam os filhotes, ela pegou o carro e foi casa
da colega conhec-los. Eram to fofos que chegava a ser ridculo, pequeninos, destrambelhados,
cheios de energia, aninhados ao lado da me. Mas havia um que se destacava; aquele que ficava
mordiscando o rabo dos irmos e pisando em suas cabeas enquanto tentavam mamar. Ele tinha muita
atitude, era eltrico. O tipo independente. Ento Vicki o escolheu. Logo em seguida, escolheu seu
exato oposto: uma fmea pequenina que parecia siamesa e aparentava ser a mais dcil da ninhada.
Planejou a adoo para a noite de Natal. Ela e a filha iam jantar com um amigo, Michael, ento
Vicki pediu que ele buscasse Docinho na creche. (Por sinal, o nome verdadeiro da garota Adrienna,

mas Vicki a chama de Docinho desde suas primeiras semanas de vida.) Vicki pegaria os gatinhos.
Sua filha dormia no mximo s sete, portanto, quando voltassem para casa de carro depois do jantar,
ela estaria dormindo to profundamente que nem notaria a caixa no banco de trs. Docinho s
conheceria os gatinhos quando acordasse na manh seguinte e os encontrasse embaixo da rvore.
Era um plano perfeito, pensou Vicki. A surpresa ideal. Mas quando foi buscar os gatinhos, no
conseguiu encontr-los. Nenhum deles. Sua colega havia entrado de frias no dia anterior e nas 24
horas que se seguiram a sua partida, todos os filhotes conseguiram escapar da caixa. A irm da moa,
que encontrou com Vicki para lhe abrir a porta, no pareceu muito contente com o desdobramento,
mas ajudou a procur-los. Passada meia hora, j tinham encontrado todos, menos um. O todo negro,
eltrico, havia desaparecido. Vicki no sabia o que fazer, mas tinha que tomar uma deciso
rapidamente, pois tinha um jantar marcado na casa de Michael. Ser que deveria adotar apenas um
gato? Ser que deveria escolher outro?
Relembrando a histria, Vicki nunca soube ao certo como ou por que aquilo aconteceu tinha
que ir ao toalete, suponho , mas, em algum momento, encontrou-se no banheiro da casa. Acendeu as
luzes, olhou para o vaso sanitrio, e seu corao foi at o cho. O gatinho negro estava no fundo do
vaso.
Ela enfiou as mos l dentro e o tirou para fora. Devia ser do tamanho de uma bola de tnis,
cabia perfeitamente em uma mo. Ele ficou na sua palma, to frio e sem vida quanto um pano de prato
molhado. No respirava nem tinha pulso, e suas plpebras estavam abertas o suficiente para ver que
ele estava perdido. Fora um filhote to cheio de energia. Vicki tinha certeza de que ele comandara a
fuga da caixa. Quando o viu pela primeira vez, ele golpeava e se jogava contra os lados da caixa;
quem mais teria sido? Ele devia estar se esticando na beirada do vaso, ou talvez quisesse um gole de
gua, quando caiu l dentro. Era to pequeno que a gua cobria sua cabea e as tentativas de subir
pelos lados midos devem t-lo exaurido. Seu esprito aventureiro e a intrepidez, que tanto a
atraram, custaram ao gatinho sua vida. Na noite de Natal.
O que voc vai fazer?
A pergunta deu-lhe um susto que a fez parar de ruminar. Devia ter gritado ao ver o gato morto,
percebeu Vicki, pois agora a irm estava ao seu lado, olhando por cima do seu ombro aquele
corpinho sem vida.
A gente devia enterr-lo, disse Vicki.
No posso. Estou atrasada para o servio.
Bom, no podemos deix-lo assim, disse Vicki. No podemos deixar um gatinho morto por
a...
O gatinho tossiu. Ou melhor, regurgitou. Olhando para baixo, Vicki se deu conta de que estivera
inconscientemente massageando o estmago e o peito do gatinho com seu dedo. Teria feito presso o
suficiente para a gua sair dos pulmes? Seria aquele cuspe um sinal de vida, ou apenas o ltimo
espasmo de um corpo beira da morte? Ele no se mexia. Parecia to frio e sem vida quanto antes.
Como poderia ser...?

Regurgitou novamente. Era uma tosse seca que lhe estrangulou a garganta assim que comeou.
Mas, desta vez, o filhote moveu-se e cuspiu um pouco de gua.
Est vivo, disse Vicki, continuando a massage-lo com o dedo. O gatinho regurgitou, cuspiu
um pouco mais de gua, mas no se moveu novamente. Seus olhos continuavam entreabertos e o olhar
inerte, as orelhas estavam retradas. Ele est vivo, disse Vicki, quando ele regurgitou pela quarta
vez, molhando um pouco sua mo.
A irm da colega no estava impressionada. Olhou para o relgio com cara feia, num sinal bem
pouco sutil de que no tinha tempo para lidar com a possvel ressurreio de um gato h pouco
falecido. Seria possvel dizer, em sua defesa, que ela achava que o gatinho estava apenas agonizando.
No havia como aquele bichinho surrado, submerso embaixo da gua sabe-se l por quanto tempo,
ainda estar vivo.
Vicki embrulhou o gatinho numa toalha de mo, sempre massageando-o com fora o bastante
para que continuasse cuspindo gua, e ligou para uma amiga de longa data que morava ali perto,
Sharon. Vicki e Sharon j se haviam apoiado em diversas ocasies, como empregos difceis, famlias
disfuncionais, casamentos insatisfatrios e filhos tpicos. Quando Vicki disse que era uma
emergncia e precisava de ajuda, Sharon sequer perguntou do que se tratava.
Ela deixou a gatinha dcil e correu para a casa de Sharon. No podia dar aquele gatinho doente
para a filha, pensou. Estava vivo, mas com um aspecto terrvel. Quase assustador. E suas chances de
sobrevivncia a longo prazo eram pequenas. Quando voc cresce numa cidade de pescadores no
Alasca, acaba se inteirando de coisas como hipotermia e gua nos pulmes, e sabe que as chances
no so boas. Mas esse gatinho era um lutador; apesar de sua averso a gatos, Vicki no podia
abandon-lo.
Mesmo que sua amiga ficasse chocada ao ver o corpo minsculo do gato. Encontrei-o na
privada, contou Vicki. Debaixo da gua. Mas ele tossiu e cuspiu gua.
Ele est gelado, disse a amiga. Precisa se aquecer.
Elas puseram uma manta de aquecimento, ligada no mnimo, ao redor da toalha e colocaram o
gatinho sobre a bancada da cozinha. Enquanto Sharon fazia carinho na cabea do gato para
reconfort-lo, Vicki o secava cuidadosamente com um secador de cabelo. No meio do processo, o
gatinho comeou a ter convulses. Sua boca se abriu, suas plpebras vacilaram, parecia estar tendo
um ataque epilptico. Ele se contorceu, depois comeou a tremer e a tentar vomitar, mas no saa
nada. Parecia doloroso, como se seu corpo estivesse sendo repuxado em todas as direes, como os
campos de gelo do Alasca durante o degelo da primavera, mas eram apenas reaes involuntrias. O
gatinho, exceto por seus espasmos, no fez um movimento sequer. Mais de uma hora j havia se
passado desde seu resgate e ele ainda no abrira os olhos.
J atrasada para o jantar, Vicki ligou para Michael. Estou chegando, disse. Diga para a
minha filha que estou chegando. S vou me atrasar um pouco. Alis, hum... Feliz Natal.
Logo em seguida, ligou para todos os veterinrios do catlogo. Ningum atendeu. E por que
atenderiam? J era o final da tarde, logo seria noite de Natal. Ela no podia deixar o gatinho na casa

de Sharon, porque sua filha mais velha era alrgica a gatos. Mesmo que no fosse, Vicki no poderia
abandonar o gatinho agora. No depois de tudo que haviam passado. Depois de uma hora, quando as
convulses diminuram, ela o colocou numa caixa de sapato, ainda embrulhado na toalha e na manta
de aquecimento, e dirigiu at a casa de Michael para a ceia.
Este o gato da Sharon, Vicki disse a Docinho quando a menina foi conferir o que a me
trazia na caixa. Ele est bastante doente. Mas Sharon teve que ir trabalhar, ento prometi que
cuidaramos dele hoje noite. Docinho encarava o pequeno gato negro, sua boca aberta e seus olhos
inchados e seu corpo sem vida como um trapo, e Vicki sabia que ela ia chorar.
provvel que ele morra, Docinho, disse ela, abrindo os braos para a filha. Lamento. Ele
est muito, muito doente, e no queramos que ele ficasse s.
Ok, disse Docinho, abraando a me.
Colocaram a caixa de sapato no banheiro, perto do aquecedor, e sentaram-se para a ceia. A
refeio transcorreu sombria, nada parecida a uma tpica noite de Natal, transbordando com a
ansiedade barulhenta de uma criana. Comeram lentamente e a conversa estava desanimada. A cada
poucos minutos, Vicki e Docinho iam na ponta dos ps at o banheiro dar uma olhada no gatinho
negro. Ele j tinha parado de se contorcer e de tentar vomitar, mas seu flego era to raso que mal
podiam saber se ele estava vivo ou no. Parecia lutar por cada flego. E quatro horas aps seu
resgate, ainda no havia aberto os olhos.
Saram da casa de Michael logo depois das nove. Vicki finalmente conseguira falar com um
servio de emergncia veterinria 24 horas e eles recomendaram que comprasse algum tipo de
protena, de preferncia lquida, e visse se o gatinho conseguia tomar algumas gotas. Ento, a
caminho de casa, pararam numa loja de convenincia que estava quase fechando. Docinho, bem
desperta ainda, esperou com o gatinho no carro. No podemos deix-lo sozinho, mame.
A loja tinha um pote de papinha para bebs base de carne. Vicki a comprou, junto com um
colrio. Tentou dar ao gatinho uma gota da papa amarronzada, mas ele engasgou. Ela diluiu a papinha
repetidamente, at quase se tornar gua, e finalmente, l pelas onze horas, ele conseguiu reter duas
gotas. Esse era o seu limite: duas gotas de gua proteica.
Hora de dormir, Docinho, disse Vicki, uma vez o gatinho acomodado em sua toalha.
Mas, me..., a menina, no querendo abandonar o gato, esboou um protesto, mas estava to
exausta que no podia mais resistir. Dormiu antes de chegar cama.
Vicki deu-lhe um beijo de boa noite Feliz Natal, pensou e fez uma xcara de ch. De hora
em hora, durante a noite toda, Vicki deu para o gatinho duas gotas de papinha diluda. A cada vez, ao
v-lo deitado de lado e imvel, seu corao apertava e ela temia por sua vida. Mas, conforme ela se
aproximava, ele movimentava a cabea. Deixava que ela abrisse sua boca (ainda no conseguira
abrir os olhos) e pingasse duas gotas em sua garganta. Depois, ela voltava para o sof, colocava
alguma msica natalina e tentava se manter acordada por mais uma hora.
Ela deve ter adormecido aps a papinha das quatro da manh, porque, de repente, era manh de
Natal. Ela saltou do sof e correu at o banheiro, onde havia deixado o gatinho num cobertor prximo

ao aquecedor. Assim que olhou para ele, perdeu o flego. Ele estava apoiado sobre as quatro pernas,
ainda trmulas, e tentava sair da caixa de sapato.
O que h de errado, me? Sua filha tremia porta.
Ah, Docinho, veja! Ele est vivo. O gatinho est vivo.
Vicki ps os braos ao redor da filha e juntas assistiram ao gatinho colocar, com muito esforo,
uma pata para fora da caixa de sapato. Conseguiu colocar outra pata para fora, descansou um instante
e olhou para as duas com olhos cansados. Depois retomou sua tarefa e, com um ltimo salto trmulo,
estava livre.
Brinquedos e presentes foram esquecidos. O ch russo (o preferido de Vicki, uma mistura de
ch em p, suco de laranja de caixinha e temperos) e o chocolate quente foram negligenciados.
Durante o resto do dia, ficaram a observar seu milagre natalino. O gatinho passou a maior parte do
tempo deitado de lado, mas sempre que Docinho e Vicki traziam o conta-gotas, ele tentava se apoiar
sobre os joelhos e esticava o pescoo. Vicki nunca tinha visto uma criana de quatro anos to gentil e
cuidadosa, ou um gatinho to determinado a superar as dificuldades. tarde, Gato de Natal (ou gn,
como o nomearam) j estava engolindo trs ou quatro gotas de gua proteica de cada vez. Elas o
estavam mantendo vivo gota a gota, e a cada hora ele ficava um pouco mais forte. Quando Docinho
adormeceu aquela noite, sua ltima pergunta foi sobre gn, o Gato de Natal.
Ele vai ficar bem?
Espero que sim, Docinho. Voc foi tima.
A menina sorriu. Vicki a cobriu, desligou todas as luzes da casa salvo as da rvore de Natal,
ligou o rdio e acomodou-se no sof, massageando o gatinho magricelo com o dedo. Ele vai
sobreviver, pensou, enquanto a msica flutuava ao redor e a rvore cintilava na escurido arroxeada
de uma noite invernal de dezoito horas no Alasca. Ele vai sobreviver. Ela balanou a cabea,
admirada, surpresa no s com a sobrevivncia do gatinho, mas tambm com sua prpria capacidade
de se importar.
No dia seguinte, um sbado, Vicki finalmente conseguiu entrar em contato com uma veterinria.
Sua agenda estava ocupada at dali a trs dias, mas assegurou Vicki de que estava fazendo tudo certo.
Continue esse regime, ela disse. Funcionou at agora.
Na segunda-feira, Vicki voltou ao trabalho. J tinha gastado todas as folgas por conta de
complicaes de sade recentes, e, como era me solteira, no podia se ausentar do servio.
Portanto, durante a pausa da manh, a hora do almoo, e a pausa da tarde, ela corria para casa para
dar a Gato de Natal algumas gotas de sua refeio aquosa. Seus colegas achavam aquilo hilariante.
Durante semanas, ela havia reclamado sem parar da adoo. No sei por que estou fazendo isso,
dizia, balanando a cabea. Espero que minha filha valorize este sacrifcio, proclamava, como se
estivesse doando menina um de seus rins, ou algo do tipo. Agora l estava ela, correndo para casa a
intervalos regulares para cuidar de um gatinho que quase morrera.
Pensei que voc no gostasse de gatos, diziam seus colegas, morrendo de rir enquanto ela
tirava o cachecol e o casaco.

No gosto, ela dizia. Realmente no gosto. Mas o que posso fazer? Ela estava falando a
verdade: ainda no gostava de gatos. Mas calhou de gostar de gn. Por qu? Porque ajud-lo tornarase um projeto para ela. Porque ele provara seu valor. Porque ele tinha personalidade, coragem e uma
incrvel gana de viver. Assim que conseguiu se equilibrar sobre as quatro patas, mesmo trmulo e
fraco, j estava tentando sair da caixa. Ele no estava partido; ele no estava jogando a toalha. Ele
no era... frgil. E Vicki Kleuver admirava isso.
Quando visitou a veterinria, quatro dias j se haviam passado desde o acidente. Em quatro
ocasies, Vicki tentara dar de comer ao gato algum alimento de mais substncia, mas todas as vezes
ele vomitou imediatamente, portanto, ela ainda estava alimentando-o com algumas gotas de papinha
diluda. Quatro gotas do lquido eram tudo que ele conseguia reter.
H algo errado, disse a veterinria. Ela apalpou os lados do gatinho e sua barriga quase
inexistente. Gato de Natal no devia pesar mais de um quilo. Ele nunca vai conseguir botar peso
numa dieta lquida. No vai conseguir nutrientes o bastante. Lamento, ela disse, balanando a
cabea, mas ele est morrendo de fome. Ela anotou algo no pronturio e olhou para Vicki, que
estava visivelmente chocada. Por que voc no deixa ele aqui comigo?
Por qu? O que voc pretende fazer?
Vamos fazer alguns exames, ela respondeu. E vamos fazer o que melhor para ele.
Imediatamente, Vicki pegou gn da mesa e o envolveu em seus braos. Ele estava tremendo e
possvel que Vicki tambm. No, ela disse, virando o ombro na direo da veterinria num gesto
de proteo. De maneira alguma. J chegamos at aqui, agora vamos at o fim. Ela sentia sua raiva
aumentando, sua indignao. Aquela mulher no lhe dava crdito. Aquela mulher queria matar o seu
gato!
No, ela disse, no vamos desistir. Depois, quase trmula de fria e incapaz de pensar em
outra coisa para dizer, deu meia-volta e saiu do consultrio.
Vicki foi a uma loja especializada e encontrou uma pasta de protena para gatos. Comparou as
etiquetas. A pasta tinha todos os nutrientes da papinha que estivera usando, portanto ela comeou a
dilu-la com gua e dar a mistura para gn com o conta-gotas. Docinho ajudava e era sempre gentil,
cuidadosa e entusiasmada, mas era Vicki quem se incumbia de pingar a soluo na boca expectante
de gn. Ele tinha apenas dez semanas de vida, um pequeno saco de pele e ossos, portanto, seis ou sete
vezes ao dia, ela o segurava na palma de uma mo, e com a outra manejava o conta-gotas. Enquanto
pingava, ele a encarava com os olhos ainda sem vida e depois fechava a boca sobre a comida com
um delicado suspiro. Ela j se sentia ligada ao gato no momento em que regurgitou em sua mo,
quando o viu tentando sair da caixa de sapato, no consultrio da veterinria , mas t-lo em sua mo
dia aps dia uniu os dois de uma maneira que Vicki Kleuver jamais pensara ser possvel. Ela salvara
a vida dele. Porm, mais do que isso, gn havia salvado sua prpria vida.
Depois de uma semana, ele j estava tentando guiar as mos de Vicki at sua boca com as
patinhas. Vicki podia ver sua garganta apertando a cada vez que engolia e jurava poder sentir cada
grama que ele ganhava. Seu pelo engrossou e ficou lustroso e a cada dia seus olhos pareciam mais

vivos. Ela estava to confiante em sua recuperao que, afinal, contou a Docinho que gn no era de
sua amiga Sharon, e, sim, seu presente de Natal. A alegria nos olhos da menina! Alguns dias depois,
Vicki o levou a outro veterinrio para ser vacinado. O doutor ficou maravilhado quando ouviu a
histria. Voc fez tudo certo, ele disse.
gn tambm, ela pensou.
Ele ainda no consegue comer alimentos slidos, contou ao doutor. Nada com textura.
Talvez ele tenha nascido desse jeito, disse o veterinrio, ou talvez seus rgos tenham sido
danificados quando seu corpo entrou em colapso. De qualquer modo, ele est com timo aspecto.
Continue fazendo o que est fazendo.
Continue fazendo o que est fazendo. Era essa a vida que esperava Vicki Kleuver e gn.
Continue mimando um gato doente. H dois meses, ela pensaria nisso como o seu pior pesadelo.
Agora, no a incomodava em absoluto. Que tipo de odiadora de gatos era ela?
Em maro, gn j estava plenamente recuperado e de volta ao seu antigo eu, o aventuroso rufio
que mordia o rabo dos irmos e sentava em suas cabeas enquanto tentavam mamar. Seu pelo tinha
um lindo tom preto-azulado e havia um brilho travesso em seus olhos. Era para ser o gato de
Docinho, mas ele e Vicki criaram um vnculo forte ao longo de tantos jantares a conta-gotas e a pobre
Docinho nunca entrou no radar afetivo de gn. Ele vigiava Vicki e s dava ouvidos a ela. Mas ele no
era desses gatos que esto sempre no seu colo ou a seus ps. Ele continuava destemido e
independente, intrpido diante da morte e aparentemente convencido de que poderia sobreviver a
tudo que o mundo lhe arremessasse. Em suma, era seu gato ideal.
Mas mesmo depois de um semestre, quando Vicki recebeu a oportunidade de trabalho de sua
vida (fundar uma filial de seu escritrio), gn ainda no conseguia comer nada alm de solues
lquidas servidas no conta-gotas. Ele melhoraria com o passar dos anos, at conseguir ingerir
pequenas quantidades de protena e gua misturadas num liquidificador, mas Gato de Natal nunca se
recuperaria totalmente de seu quase afogamento no Natal.
***
Quando Vicki Kleuver me escreveu, mencionou como tinha ficado comovida com as
similaridades entre nossas vidas. E prometeu: no era s porque tnhamos o mesmo nome, escrito da
mesma maneira esquisita. Depois de ler sobre Gato de Natal, reconheci a familiaridade entre ele e
Dewey. Ambos os gatinhos quase morreram jovens um num vaso sanitrio, outro no cano gelado de
devoluo de livros da biblioteca. Ambos foram resgatados por mes solteiras com uma lacuna em
suas vidas que podia ser preenchida por um gatinho. No estvamos procurando por gatos, ou amor,
ou companhia, mas eles nos encontraram. Eles nos dedicaram suas vidas e nunca pareciam deixar que
as tragdias do incio de suas vidas os definissem. Eles mantiveram suas personalidades. Tiraram
proveito das oportunidades que lhes foram dadas. Encontraram seu lugar. Venceram, no final, no por
causa das Vickis (muito embora tivssemos ajudado), mas por conta de sua prpria fora interior.
Quando falei com Vicki, percebi que ela e eu tnhamos em comum essa mesma fora interior.

Ns duas passamos por pssimos empregos e casamentos ainda piores, mas no perdemos nossos
valores morais e profissionais e encontramos nossas vocaes: eu na biblioteca, Vicki no ramo de
hipotecas. Ns duas vencemos porque nos recusamos a aceitar o comum; pelo contrrio, tentamos
encontrar um caminho melhor.
Embora no a conhea pessoalmente, posso v-la em seu sofisticado terno de trabalho na noite
em que recebeu o prmio de Afiliada do Ano, concedido pela comunidade imobiliria do Vale
Matanuska. Vicki ganhou o prmio por ter conseguido recuperar um escritrio de hipotecas beira da
falncia na cidade de Wasilla, no Alasca. O escritrio, que estava prestes a fechar quando ela
assumiu sua chefia, era agora um dos mais lucrativos do estado. Mas o mais importante para Vicki
era a vitria de ter transformado os valores e atitudes a prpria misso do escritrio. Num
mercado mergulhado em corrupo desde o boom imobilirio (isso foi no Alasca na dcada de 1980,
no na Amrica de 2005, mas a histria se repete), ela se mostrou irredutvel em seus princpios.
Recusou-se a autorizar emprstimos que envolvessem negociatas antiticas; avisava aos requerentes
quando um emprstimo no era aconselhvel, mesmo que isso significasse o fim da transao;
expulsava de seu escritrio corretores imobilirios dados a prticas desonestas. Ela escolheu os
doze corretores mais ticos e confiveis, aqueles que realmente se importavam com seus clientes, e
lhes disse que sempre teriam o seu apoio porque ela tambm se importava. E com esse tipo de
posicionamento, os negcios prosperaram.
Ela chegou a Wasilla com nada alm de experincia conquistada a duras penas. Ela fora
desacreditada por toda a comunidade imobiliria local, pelo simples fato de que estava l para
assumir um escritrio que eles desprezavam. Agora, era uma das lderes do Rotary Club e figura
proeminente em eventos de caridade e campanhas de doao de alimentos. Era membro da diretoria
do Jantar da Amizade Natalina, associao que servia um banquete gratuito aos necessitados na
poca das festas de Natal. Durante o momento mais negro de sua vida, perdeu a f em Deus, mas
atravs do exemplo de sua filha voltou a ser um membro ativo e entusiasmado da Igreja. Era bom ter
o prmio de Afiliada do Ano porque honrava no apenas sua perspiccia financeira a habilidade de
apresentar lucros , mas seus servios comunitrios. E poucas honras so mais importantes do que o
reconhecimento e o respeito da comunidade.
Mas Vicki jamais mencionou o prmio. Foi s depois de perturb-la bastante que descobri. Em
vez disso, ela preferia falar sobre as pessoas a quem tinha ajudado: os corretores que haviam
perdido seus valores na trilha do dinheiro e que ela foi capaz de reabilitar; os jovens de quem
tornara-se mentora; os clientes cujos sonhos auxiliara a realizar. Ela trabalhou por mais de dois anos
com uma mulher que no falava ingls, no intuito de ajud-la a quitar suas dvidas e lhe garantir um
emprstimo acessvel. Um ano depois, o filho dessa moa veio v-la.
Lembra de mim?, perguntou.
Claro.
Bom, estou na faculdade agora, disse, e queria que voc soubesse que estou estudando
economia porque vi o que voc fez por minha me, e isso mudou nossas vidas.

Esse era o tipo de reconhecimento que Vicki prezava. Era o tipo de histria que embargava sua
voz. Essa era a misso que a ajudava a se levantar pela manh e ir trabalhar todos os dias.
Acredito que a casa seja um fator estabilizador, ela me contou. Ajuda na criao de uma
vida familiar saudvel. isso que estou fazendo quando autorizo um emprstimo. Estou dando a uma
famlia uma chance maior de ser feliz.
Sinto algo similar com relao a bibliotecas. Creio que so fatores estabilizantes numa
comunidade. Creio que, no melhor dos casos, elas renem pessoas como poucas instituies
conseguem. Esse sempre foi meu objetivo: fazer com que a biblioteca funcionasse em Spencer
atuando em cada indivduo que vivia l. No queria dinheiro ou fama; que pessoa se tornaria
bibliotecria com isso em mente? Mas acreditava que, se trabalhasse de maneira correta e pelas
razes certas, poderia mudar o meu cantinho do mundo. O mesmo pensava Vicki Kleuver. No fim,
ambas cumprimos nossos objetivos.
No entanto, apesar de todos esses pontos em comum, seguia ctica quanto nossa similaridade.
Vnhamos de partes to diferentes do mundo, o que podamos ter em comum de fato? O noroeste de
Iowa, onde vivi a maior parte da vida, espetacularmente plano. O oceano mais prximo fica a mais
de 1,6 mil quilmetros. Temos invernos glidos como no Alasca, mas eles so sucedidos por veres
escaldantes. E mesmo que os vastos milharais e campos de soja sejam bonitos sua maneira,
dificilmente voc achar algo mais interessante em nosso infindvel horizonte que umas poucas
rvores.
A ilha de Kodiak, onde Vicki Kleuver passou grande parte da sua vida, um lugar de natureza
selvagem e inspita, aoitado pelo oceano Pacfico e coberto de densa e mida vegetao. Suas
montanhas despontam diretamente do oceano e frequentemente descem em ladeira ngreme at a gua
do outro lado. O litoral varia de tamanho ao longo do ano e marcado por piscinas naturais cavadas
na rocha vulcnica da ilha ao longo de sculos. A paisagem espetacularmente diversificada,
passando de plana e deserta a montanhosa e coberta de enormes abetos. Os campos relvados e
pradarias montanhosas, enterrados pela neve metade do ano, ficam verde-esmeralda na primeira
oportunidade, depois rebentam em flores silvestres no vero, e os nativos colhem framboesas
selvagens no outono. Em Iowa, a vida lenta, definida pela acumulao e pelas extraes sazonais
do solo; em Kodiak, a vida dramtica, moldada pelas ferozes tempestades ocenicas. Em Iowa, o
ciclo determinado pelo plantio, pela ceifa e pela rotao das colheitas; em Kodiak, o ciclo comea
com os salmes, que so devorados pelos ursos, que deixam restos para as guias e raposas, que
deixam escamas e ossos para enriquecer o solo. Em Iowa, a terra domada, delimitada por balizas
de quilmetro em quilmetro, e vendida a quem paga mais; em Kodiak, ela selvagem e impiedosa,
dominada pelos cervos Sitka e pelos ursos Kodiak, o maior mamfero terrestre da Amrica do Norte
e um dos maiores ursos do mundo. E, ouo dizer, o lugar todo cheira a peixe.
E, no entanto... Vicki e eu tnhamos mais ou menos a mesma idade. Fomos criadas em ambientes
operrios, onde rapazes eram todo o futuro; e meninas, muletas para amparo emocional. ramos boas
filhas de famlias grandes e unidas. Quando a vida na fazenda me entediava ou assoberbava, buscava

refgio nos milharais, onde nem mesmo o Sputnik me encontraria; Vicki encontrava abrigo nas
florestas e na praia, longe das brigas e dos cigarros dos pais. Kodiak e Spencer, separados por quase
5 mil quilmetros, eram cidadezinhas clssicas, com escolas pequeninas e linhas telefnicas
partilhadas. Se no te conheciam diretamente, pelo menos sabiam de voc; ou seja, ora fofocavam a
seu respeito ora te ajudavam; frequentemente ambas as coisas. Em Iowa, vivamos do solo. Em
Kodiak, do oceano. As idas e vindas dos barcos de pesca eram o seu trnsito; a barcaa de
mantimentos vinda do continente, constantemente detida por mares intempestivos e carregando
apenas enlatados ou itens em p, era sua mercearia; as piscinas naturais e praias eram o playground.
Seria essa vida to diferente assim da vida na fazenda, onde o rumor do trnsito se traduzia ao
barulho dos tratores, e os melhores alimentos eram retirados diretamente do campo?
ramos fortes por necessidade, eu e Vicki, orgulhosas da longa linhagem de mulheres
independentes da qual fazamos parte. Minha tia-av Luna Morgan Still fundou e lecionou na
primeira escola de Clay Country, um casebre feito de grama e terra, porque naqueles tempos nem
rvores havia por l. Minha av era a rocha da famlia, mantendo-a junta aps a morte precoce de
seu marido com uma dureza e uma generosidade que me inspiraram. Minha me gerenciava o
restaurante da famlia quando devia estar no ensino fundamental; criou seis filhos numa fazenda sem
ar-condicionado ou mquina de lavar; lutou contra um cncer durante trinta anos, sofrendo a dor e a
degradao sem reclamar. Ela se apoiou em mim, a filha mais velha. E, ao faz-lo, fez-me mais forte.
A linha ancestral de Vicki Kleuver estende-se por seis geraes na Ilha Kodiak, at chegar ao
povo alutiiq, que havia sobrevivido naquela terra inspita por 10 mil anos. Ela tem boas memrias
das caminhadas pelas florestas de Kodiak com seu co e de passeios pelos campos no fim do vero,
quando ia com a me e as tias colher frutas, mas sua grande fonte de inspirao era a av. Laura
Olsen tinha sangue alutiiq, russo e noruegus, um autntico produto do imenso caldeiro que
Kodiak. Aos 62 anos, j viva, mudou-se da cidade de Kodiak para sua terra ancestral na diminuta
Ilha Larsen. A ilha recebeu esse nome em homenagem ao seu pai, Anton Larsen, um noruegus que
imigrara para Kodiak sozinho num barco a vapor aos doze anos. Para Vicki, ir at a casa da av
significava uma longa viagem de carro por montanhas e estradas de terra que levavam at a baa
Anton Larsen, um passeio de esquife de vinte minutos e uma trilha que subia a praia at dar numa
barragem ngreme. V Laura no tinha telefone, luz eltrica, aquecimento central ou gua encanada.
Tinha um imenso jardim e um poo, lavava suas roupas numa geringona que funcionava mo,
cortava sua prpria lenha, cuidava de galinhas e de um bode. Ela montava suas prprias redes de
pesca e fazia a manuteno de todos os seus apetrechos de pescaria. A porta de sua pequena casa
estava sempre aberta, os cmodos sempre limpos, e Vicki raramente descia do esquife sem sentir
cheiro de biscoito ou po. V Laura no queria saber de cigarros, leite em p ou luz eltrica,
componentes bsicos da vida na casa dos Kleuver. Dependia da terra e do oceano para a sua
subsistncia, como o povo alutiiq e os primeiros colonos, e era a pessoa mais feliz que Vicki j tinha
conhecido.
Velhos casebres escolares. Cabanas de madeira sem aquecimento. Vicki e eu nunca vivemos de

maneira to dura, mas isso no significa que tivemos vidas fceis. A vida em lugares de pesca e
plantao sempre foi marcada pela tragdia. Mortes precoces. Acidentes. Execues hipotecrias.
Crises financeiras. A cidade de Spencer sofreu um incndio nos anos 1930, evento que ainda define
tanto a precariedade da vida rural quanto a robustez da comunidade que, com msculos e fora de
vontade, a reconstruiu de maneira ainda melhor.
Em Kodiak, os eventos mais marcantes foram a erupo do monte Novarupta em 1912, que
atapetou a ilha de cinzas, e o terremoto de 1964. Os tremores daquele abalo chacoalharam a ilha,
fazendo com que a terra subisse quase dois metros. Mas foi o grande maremoto da Sexta-Feira Santa
que, com suas trs ondas gigantescas, realmente destruiu a cidade. O pai de Vicki, que trabalhava na
hidreltrica local na poca, ficou preso com gua at o pescoo por dois dias. Um dia depois de seu
resgate, no domingo de Pscoa, o primo de Vicki foi at a casa dos Kleuver com seu caminho e os
avisou que outra onda gigantesca estava a caminho. Foi a primeira vez que Vicki viu o medo. Ela o
viu estampado no rosto da av. A cidade inteira passou o dia no topo do monte Pillar, observando o
oceano. Finalmente, ao entardecer, a me de Vicki disse: Preciso dos meus cigarros. E entrou no
caminho do sobrinho. O resto da cidade a seguiu e de noite todos j estavam em suas casas. A
ltima onda havia sido um alarme falso.
As casas foram demolidas e reconstrudas. Os barcos foram para o ferro-velho ou recuperados,
dependendo de seu ponto de ancoragem. Foi ento que a av de Vicki, cuja casa havia sido posta
abaixo pelas ondas, resolveu construir sua primitiva residncia na Ilha Anton Larsen e deixou
Kodiak. Vicki, que ento tinha apenas sete anos, sentiu sua inocncia se distanciar com a mar. Ela
tinha testemunhado o poder da natureza e a fragilidade da vida humana.
Aos dezoito anos, Vicki e eu samos de casa. A vida era curta e as oportunidades em nossas
cidades natais eram limitadas. Queramos ir alm e ver o mundo. Como diz a prpria Vicki: Eu
precisava machucar os joelhos, ralar o rosto, cometer erros e no ter a famlia de minha me
sempre por perto. Em Kodiak, no podia fazer nada sem que minha me j tivesse tomado
conhecimento antes mesmo de eu voltar para casa.
Eu queria ir para a universidade, mas meus pais no tinham dinheiro. Como oradora da turma,
Vicki recebeu uma bolsa na Universidade do Alasca, mas preferiu trabalhar e se sustentar em vez de
viver sob a viglia e as regras dos pais. Ambas encontramos cargos menores em cidades maiores
eu, numa fbrica de caixas em Mankato, Minnesota, e Vicki, num banco em Anchorage e
comeamos uma vida independente. Alguns anos mais tarde, com vinte e poucos anos, ns duas nos
casamos. Estvamos apaixonadas? difcil dizer. No nosso tempo, garotas de cidade pequena
casavam cedo. O que mais sabamos? S quando ficamos grvidas que percebemos o quanto um
casamento nos define, para o bem ou para o mal. Infelizmente, no nosso caso, foi para o mal.
Pouco depois de seu casamento, o marido de Vicki aceitou um emprego de segurana no
oleoduto do Alasca e mudou-se com a mulher para Valdez, cidade situada no leste, a 160 quilmetros
de distncia (quase quinhentos pela nica estrada que ligava as cidades), numa regio montanhosa
conhecida como os Alpes do Alasca. Sua filha, Adrienna conhecida como Docinho , nasceu l,

durante uma terrvel nevasca no Dia de Ao de Graas. Duas semanas depois, o marido de Vicki
aceitou um cargo de policial numa cidade situada em um dos extremos das Aleutians, uma longa
cadeia de ilhas que se estendia por mais de 1,5 mil quilmetros depois da extremidade sudoeste do
Alasca. Valdez era longnqua e coberta de neve, mas Unalaska, para onde estavam se mudando... era
praticamente depois do fim do mundo. Consistia num terreno rochoso ligado ao mar de Bering, uma
das mais negras, hostis e letais pores de gua do planeta. O servio de barcas do estado do Alasca
navegava at a ilha s trs vezes por ano e a viagem levava sete dias. O nico avio que viajava at
ali era proibitivamente caro e levantava voo apenas duas vezes por semana. As compras tinham de
ser enviadas por correio.
Vicki estava horrorizada com a ideia de ir para Unalaska, ainda mais com uma filha pequena.
Mas seu marido estava determinado. Quando ele saiu da cidade quase imediatamente a fim de
assumir o novo posto, deixando Vicki em Valdez para tomar conta de Docinho e arrumar a casa, ela
percebeu pela primeira vez o quanto aquele casamento havia perturbado sua percepo de si mesma.
Ela j deixara para trs sua carreira, seus amigos, sua famlia, seu lar. Agora, tambm estava
perdendo sua independncia e sua liberdade de ir e vir.
Porm, esposa prestativa que era, embarcou na jornada de duas semanas pelo mar de Bering at
a casa nova, a filha pequena a tiracolo. Achou o lugar ainda mais inspito e ameaador do que havia
imaginado: rochoso, estril e entrecruzado de velhas trilhas. Um imenso armazm do Exrcito,
abandonado aps a Segunda Guerra Mundial, deixara a ilha salpicada de pistas de decolagem em
desuso, docas em runas e peas de artilharia enferrujadas. medida que se adaptava sua nova
vida, Vicki observava as velhas cercas de arame farpado cerceando o horizonte. Havia beleza ali,
isso era inegvel. Ficar acima das ondas furiosas, em meio aos ventos uivantes, era como estar nos
confins da terra e quantas pessoas tinham tido a oportunidade de pr os ps l? Mas mesmo que a
ilha oferecesse uma solido bela, ainda assim era solido. E isolamento. Com aquelas cercas de
arame farpado, Unalaska era como uma priso no meio do mar.
Naquele inverno, Vicki sofreu um aborto natural. Foi uma poca de trevas, literalmente, com
poucas horas de luz solar por dia. Seu casamento estava em pedaos havia anos; naquele longo
crepsculo, parecia quebrar-se e vagar para longe como um galho sob a gua gelada. Quando eu era
casada com um homem alcolatra, costumava pensar em minha casa como um caixo. Dia aps dia,
era como se estivesse sendo enterrada pela negligncia de meu marido. Mas, pelo menos, tinha
amigos e familiares por perto. Para Vicki Kleuver, o mundo inteiro era um caixo. Ela no tinha a
quem recorrer. Pediu ajuda a Deus, um sinal que fosse, e quando no ouviu resposta alguma alm do
uivo do vento, perdeu sua f tambm. Quando o inverno finalmente cedeu, ela tomou uma deciso
difcil, uma deciso que j angustiou a mim e a muitas outras mulheres: disse ao marido que estava
indo embora. Quando a barca vinda do Alasca aportou um ms mais tarde, ela voltou para Anchorage
com sua filha e alguns poucos pertences.
H uma fora que vem quando somos criados numa cidade pequena. A fora a percepo, que
nos vem com muito pouca idade, de que nada na vida dado. Na maioria das vezes, as coisas so

tomadas de voc por eventos incontrolveis: uma enchente, uma seca, uma tempestade, uma onda de
poluio, ou redes que voltam vazias. No d para ficar se preocupando com as coisas ruins. Sim,
elas machucam. Mas voc segue em frente. Voc compreende, como um cdigo vital, que no temos
direito a dinheiro ou felicidade ou mesmo a estabilidade. Se voc quer essas coisas, precisa mereclas.
De volta a Anchorage, Vicki dedicou-se completamente ao merecimento de sua felicidade.
Assumiu um cargo baixo na indstria de hipotecas, onde havia trabalhado antes de seu casamento, e
comeou a construir uma carreira. Isso foi no incio dos anos 1980; as taxas de juros estavam caindo
vertiginosamente e o Alasca foi tomado por uma onda de refinanciamento de emprstimos. No raro
Vicki trabalhava setenta horas por semana e levava arquivos para casa. Seu chefe era dado a
exploses de raiva, mas ela era uma das profissionais mais inteligentes e hbeis de sua rea. Vicki
contornou a hostilidade e concentrou-se no aprendizado. Progrediu rapidamente de escriv a analista
de crdito, e depois de um ano j conhecia cada detalhe do programa de moradia do Alasca, um dos
melhores da nao. Ela no estava apenas experimentando o sonho da autossuficincia, ajudava
outras pessoas a alcanarem seus sonhos tambm.
Mas isso no era uma tarefa fcil. Suas comisses, especialmente nos primeiros anos, quase no
cobriam suas necessidades bsicas. Ela no podia comprar um carro confivel e frequentemente
pulava refeies para ter o que dar de comer filha. Ela dedicava a Docinho o mximo de tempo que
podia, mas em vrias ocasies, Vicki via a menina o tempo suficiente para cobri-la, dar um beijo na
sua bochecha e dizer Mame te ama, Docinho. Boa noite. Ela se cuidava. Era fisicamente forte.
Mas estava cada vez mais inclinada a oscilaes de humor, pensamentos mrbidos e fadiga.
Creio firmemente, de acordo com a minha prpria experincia, que o estresse um fator
decisivo para os problemas de sade, e nenhum estresse se compara ao de uma me solteira que
trabalha fora. Mas o estresse no causa problemas de sade: ele apenas piora problemas que j esto
presentes. O ltimo obstculo para a nossa gerao de mulheres talvez tenha sido convencer os
mdicos na maior parte dos casos, homens de que nossa indigesto, inchao, perda de memria e
fadiga muscular no estavam apenas em nossas cabeas. Acalme-se, diziam-nos os mdicos.
Relaxe. apenas reteno de lquido. Tome um tranquilizante.
Vicki sabia que havia algo fundamentalmente errado. Em vez de desistir, passou horas na
biblioteca (isso foi antes da internet) estudando sua prpria doena. Depois de anos de leitura,
pesquisa e a manuteno diligente de um dirio onde detalhava suas refeies e sintomas fsicos,
descobriu um mdico em Londres que estudava desequilbrios hormonais em mulheres. Uma de suas
discpulas, por acaso, trabalhava em Anchorage, portanto Vicki agendou uma visita. A doutora
estudou os dirios de Vicki e realizou uma srie de medies hormonais. O problema, assegurou
jovem, no estava em sua cabea. Aps o aborto espontneo, seu corpo no conseguira reiniciar a
produo hormonal satisfatoriamente. O tratamento envolvia uma dose muito alta de hormnios,
ministrada por um conhecido mdico. O procedimento, embora empregado na Inglaterra, ainda no
havia sido aceito pelo fda (Administrao de Drogas e Alimentos).

Vicki aceitou o tratamento. At hoje, lembra nitidamente de assinar o termo de


responsabilidade. Estava to feliz de ver seu problema levado a srio, depois de tantos anos de
sofrimento, que teria assinado qualquer coisa. Seu plano de sade no cobria esse tratamento
especfico, e ela teve que se endividar para pag-lo.
Felizmente, o tratamento funcionou. Por trs meses. Ao cabo desse perodo, Vicki comeou a
sentir dores agudas no abdmen. Logo depois, foi diagnosticada com tumores uterinos. Poucos dias
depois, com 27 anos, ela estava na mesa de operao, seu abdmen aberto, o tero removido.
Era um revs terrvel, mas significava outra coisa tambm: liberdade. Na primavera, apesar da
cirurgia, Vicki Kleuver sentiu-se mais forte e equilibrada do que se sentia h anos. Seus sintomas
pararam de todo. Mas, o que era mais importante, a sensao de ter um propsito de vislumbrar um
futuro havia retornado. Ela tomou algumas decises difceis que custaram um bocado, mas
sobrevivera. Estava confiante de que teria xito em sua carreira; sabia que poderia ser uma boa me.
Estava pronta para a sua chance.
Havia um passo ainda. Ela gostava do ramo em que se inserira, mas no queria mais trabalhar
num ambiente txico. Alm disso, percebeu tambm que no desejava criar sua filha em Anchorage.
Gostaria que Docinho tivesse a experincia de vida com a qual ela crescera; a comunidade unida, as
mulheres fortes, a beleza e o poder do oceano. Quando soube que sua companhia estava recrutando
pessoas para trabalhar nas filiais, pleiteou um cargo de gerente. Eles ofereceram Kodiak ou
Ketchikan.
Ela sabia para onde queria ir: para casa.
***
Foi pouco antes da cirurgia de Vicki, no vero de 1986, que ela e Docinho se mudaram para o
apartamento em Anchorage, onde lhe permitiram adotar um gato. Elas j tinham tido um gato
selvagem em Unalaska, mas era para caar ratos (que eram numerosos e imensos, tendo viajado at
aquela terra inspita nos cascos dos navios) e talvez tenha sido isso que fez Docinho insistir tanto.
Vicki, que nunca gostara daquele gato (tampouco dos ratos), no ficou to entusiasmada com a ideia.
Mas, naquele momento, teria feito praticamente qualquer coisa por Docinho. Ela ainda estava
convalescendo, em novembro, quando escolheu Gato de Natal. E ainda no estava inteiramente
recuperada, tanto fsica quanto emocionalmente, quando o resgatou do vaso sanitrio na noite de
Natal.
Seria difcil, ento, negar os paralelos entre a jornada pessoal de Vicki e o dramtico resgate de
gn. As pessoas vivem dizendo que o amor questo de sorte e timing. A pessoa (ou felino) certa
aparece na hora certa e bang! sua vida se transforma. Muitos creem que isso se aplica a Dewey e
a mim; que nosso amor baseou-se em fatores circunstanciais. Afinal de contas, eu era nova no cargo
de diretora de biblioteca e estava ansiosa por me firmar. Queria desesperadamente tornar a
biblioteca um lugar mais convidativo e havia trabalhado meses com esse objetivo em mente.
Ento, Dewey caiu em meus braos e, imediatamente, eu soube que poderia transformar meu

mundo. Ele era amigvel, confiante e extrovertido. Ele tentava incluir todos, mesmo aqueles que no
gostavam de sua presena. Era carinhoso. Era perspicaz. Ele se dedicava, de corpo e alma,
Biblioteca Pblica de Spencer. Ele era, por assim dizer, a melhor parte da minha alma. Ele inspirou e
serviu de exemplo. No apenas para mim para uma cidade inteira.
Talvez seja isso que tenha acontecido com Vicki e gn. Talvez ela tenha se reconhecido no gato:
aventureiro, independente, determinado. E quando ele passou por uma tragdia e sobreviveu? Talvez
ela tenha se reconhecido ali tambm. Afinal de contas, no fcil quando o seu corpo se rebela
contra voc. No fcil perder o caminho, esquecer seus objetivos, ver que seus maiores atributos (a
confiana e o desejo de explorar) acabaram sofrendo as piores perdas. Mas Gato de Natal no
desistiu. Assim que recobrou as foras, gn ps-se de p e caiu no mundo outra vez. Talvez fosse essa
atitude, essa vontade de vencer, as coisas que Vicki realmente admirava. Mais que sua personalidade
extrovertida, seu lindo pelo negro e seus travessos olhos dourados, Vicki via um esprito gmeo
naquele gatinho preto. Ela me disse isso inmeras vezes, embora no tenha usado essas mesmas
palavras.
O fato de que gn se encaixava perfeitamente naquela nova vida em Kodiak tambm ajudava. A
subsistncia, contou-me Vicki, um conceito importante no Alasca. Transmite tanto a simplicidade
da vida nas pequenas cidades que pontilham a costa quanto a fortaleza interior necessria para
sobreviver ali. A subsistncia, em sua forma mais pura, significa viver da natureza e produzir com as
prprias mos. Era esse o nico modo de vida conhecido por inmeras geraes de nativos de
Kodiak. Era o modo de vida que o bisav de Vicki, Anton Larsen, praticou quando habitou a ilha que
agora levava seu nome, e era a vida que sua filha, a v Laura, retomou aps as devastadoras ondas
de 1964.
Vicki no viveu como sua av, mas certamente abraou um estilo de vida mais simples quando
voltou a sua cidade natal. Alugou uma pequena casa na floresta e tocava o novo escritrio de
hipotecas sozinha, trabalhando duro para criar bases slidas antes de chamar mais funcionrios. Com
a ajuda da me, ela dava a sua filha uma infncia do tipo joelho ralado, livre da superproteo e
do excesso de compromissos to caros aos pais modernos. Naquele lugar, Docinho desfrutava de
longos passeios pelas florestas e caas ao tesouro pela enseada rochosa de Kodiak.
Gato de Natal, como ela, adorava explorar a vasta floresta que se estendia para alm da cerca
nos fundos da casa. Ele caava ratos e aranhas e outras coisas que podia tirar dos arbustos, e no era
raro que os trouxesse para casa como presentes ou brinquedinhos que lhe preenchiam as tardes. Ele
trepava em rvores com Docinho e costumava segui-la e me pelos primeiros metros das trilhas
que faziam, at desaparecerem na floresta. H uma solido e uma imensido muito caractersticas no
Alasca, estado que tem o dobro do tamanho do Texas e uma populao de pouco menos que 700 mil
pessoas (a mesma populao de Louisville, no Kentucky, e metade da de Columbus, Ohio). Em
Kodiak, Vicki amava a maneira como as rvores se erguiam sobre os rios e os vales e o voo das
enormes guias no cu infinito. Mas ela tambm apreciava o modo como a floresta a cerceava e a
familiaridade das lojas na cidade. Quando ela e Docinho andavam na praia, sentiam-se atradas pelo

oceano. Mas havia tambm as lesmas que se agarravam s laterais das piscinas naturais, as marcas
impressas nas rochas, a maneira como as mars, quando baixavam, punham a mesa ao descortinar
mexilhes. Quando os salmes comeavam sua corrida, Vicki e Docinho ficavam fora de casa por
dias. Apesar de gostar muito de pescar, Vicki tinha predileo pelos salmes, porque salmes so
bons de briga. Acima de tudo, ela amava o sorriso que explodia no rosto de Docinho toda vez que a
menina pescava um peixe.
Aps um ano, quando j tinha um pouco de dinheiro guardado, Vicki comprou uma casinha na
cidade. O teto gotejava e as paredes estavam visivelmente inclinadas, mas era dela, o que a fazia se
sentir enraizada e completa. No primeiro inverno, um cano estourou e o poro inundou. Alguns dias
depois, uma tempestade derrubou trs rvores sobre o telhado, e ela e Docinho tiveram que passar
um ano espalhando panelas e baldes pela casa nos dias de chuva. Quando conseguiu um pouco mais
de dinheiro, consertou a casa, pouco a pouco, e nunca se alarmou. Afinal, Gato de Natal amava beber
gua de chuva daquelas panelas, pelo menos quando no estava correndo na escada para cima e para
baixo. E, contanto que Docinho estivesse confortvel, Vicki poderia sobreviver alegremente, como
sua av, dentro dos limites de suas prprias capacidades.
Casa nova, floresta nova, donas longe por dias: no importa o que acontecesse, gn parecia
nunca se incomodar. No era um gato carente. Ele tinha sua prpria vida e hbitos e, exceto pelos
problemas digestivos ele ainda no conseguia comer nada que no fosse pastoso e, possivelmente,
insetos , podia cuidar de si mesmo. Metade do tempo, Vicki no sabia muito bem onde ele estava,
mas o que quer que fosse, Vicki sabia que ele o estava fazendo com estilo, mesmo se estivesse
cavando o vo entre a casa e o gramado atrs de grilos. Frequentemente, ao retornar da praia, ou
durante domingos preguiosos, ela via gn sentado no seu lugar favorito, no topo de uma estaca de
dois metros que delimitava o fim do quintal, atormentando os ces do vizinho. Eles latiam e pulavam,
em tentativas fteis de alcan-lo, enquanto ele observava a floresta, vez por outra lanando-lhes um
olhar de confiante desprezo. gn sabia que eles nunca conseguiriam toc-lo.
Mas era um gato leal, ainda que independente. Assim que Vicki chegava do escritrio, gn
aparecia no parapeito da janela da cozinha. No raro seus pelos negros estavam cobertos de seiva,
lama ou poeira. Vicki trazia uma toalha para a porta a fim de limp-lo, mas gn sempre corria para
dentro deixando pegadas de imundcie por toda a casa.
Mas no se esfregava nela. Vicki era muito ciosa de sua imagem profissional e permitia-se o
luxo de gastar muito com roupas. gn sabia que ela no toleraria pelos de gato em seus ternos de
trabalho, muito menos marcas de pata lamacentas. Ento ele esperava ela se trocar, e quando ela
aparecia de jeans e suter, ele se apoiava nas patas traseiras e punha as dianteiras em suas calas,
esperando que ela o apanhasse. Quando ela o fazia, ele colocava suavemente uma pata em cada
bochecha da dona, como se pedisse sua ateno, e olhava em seus olhos.
Ol, gn, ela sussurrava. Como vai?
Ele colocava seu queixo contra o queixo de Vicki, depois se inclinava para a frente e se
aconchegava em seu pescoo. Ela o colocava em seu ombro, onde ele ficava ronronando baixinho, e

era assim que passavam os cinco minutos iniciais de cada noite. Ele no era um gato de colo por
natureza, mas se Vicki quisesse companhia, bastava sentar-se em sua cadeira de balano, comprada
quando soube que estava grvida de Docinho, e gn vinha correndo para se enrodilhar no seu colo.
Passaram vrias longas noites de inverno naquela cadeira perto do fogo a lenha; Vicki lendo um
livro e gn ronronando de leve em seu sono, depois que Docinho j havia se retirado.
Era o seu amor incondicional, disse Vicki, quando perguntei o que tornava aquela relao to
especial. Ele sempre estava l. Mas ele me deixava ser a chefe.
Um belo dia, ela comeou a namorar um homem chamado Ted (no seu nome real). Ele era
charmoso e atraente e, para falar a verdade, ela gostava da sua ateno. Fazia com que se sentisse
desejada, suponho. Os amigos de Vicki no levavam muita f em Ted e o relacionamento entre ele e
Docinho era por vezes turbulento, mas Vicki no ficou preocupada. Mesmo a bvia antipatia que
Gato de Natal sentia por ele no a deteve. Mais tarde, ela aprendeu a confiar nos instintos do felino.
Se o gato no gostasse de um homem, ou vice-versa, ele estava fora. Mas naquela poca, como no
tinha muita familiaridade com gatos, ela tomou a atitude de gn por cime e s. Durante trs anos, ele
havia sido o homem de sua vida. Era ele que a fazia se sentir desejada. Agora, ele tinha que
compartilh-la.
Alguns meses mais tarde, quando Ted comeou a abrir sua correspondncia e a ler sua agenda,
Vicki inventou desculpas para ele. Quando comeou a aparecer em restaurantes onde ela tinha
reunies de negcios, rompeu com ele. Duas vezes. Mas a cada vez, ele voltava implorando perdo,
dizendo que estava apenas preocupado com sua segurana j que a amava tanto, mas havia aprendido
a lio, e no faria mais aquilo de novo. Ela no percebia que a situao estava fora de controle at
ele comear a xing-la. Mas a j era tarde demais.
Um mau relacionamento como um funil, diz Vicki. fcil cair l dentro, mas muito difcil
sair. Ele estava sempre me puxando para baixo. Quanto mais eu lutava por independncia, mais ele
tentava me controlar.
Para o mundo l fora, Vicki estava tima. Seus negcios prosperavam, sua equipe aumentou e
silenciosamente ela se tornava umas das melhores do estado. Ela havia nutrido um certo medo de
voltar para sua famlia, onde as lembranas ruins suplantavam as boas, mas Docinho se apegou tanto
av que as duas passavam todas as tardes juntas, o que dava menina um vnculo com o seu
prprio passado e desobrigava Vicki durante o expediente. Ela jogava boliche s quartas-feiras; se
juntou a um time de softball. Aps dois anos de trabalho, at mesmo sua residncia, que j tinha sido
um trambolho desconjuntado e gotejante, estava prestes a se tornar a casa de seus sonhos. Mas sua
vida amorosa desestabilizava essas razes slidas.
Posso dar conta de um negcio milionrio, sussurrava frequentemente a Gato de Natal quando
ele pulava na beirada da banheira onde ela mergulhava o cansao do dia, mas no consigo ter uma
vida amorosa saudvel. O que h de errado comigo?.
Gato de Natal se inclinava para fung-la e ela sempre notava a poeira que ainda cobria seu pelo
negro como piche.

Quer entrar?
Ele se limitava a encar-la. No, ele no entraria, mas tambm no parecia ter medo da gua.
Como quiser. Ela ria, fechando os olhos para no ter de ver os machucados nos braos e
sentir que sua ansiedade em relao a Ted se dispersava para longe, no suave ronronar de um
gatinho.
At que, em abril, seu irmo cometeu suicdio. Conheo bem essa dor, pois meu irmo tambm
cometeu suicdio. H o horror de subitamente perder algum que se ama. H o terror dos detalhes; no
meu caso, a lembrana de dirigir at a casa de meu irmo e ver todo aquele sangue. E h a incmoda
sensao de que voc poderia ter feito mais, a sensao de que voc tinha o poder de impedir aquilo.
Lembro do dia em que, dez anos antes de sua morte, meu irmo andou oito quilmetros no frio, noite
adentro, sem casaco, numa temperatura rtica, para bater minha porta e dizer: H algo de errado
comigo, Vicki. No conte para os nossos pais. Eu tinha apenas dezenove anos. No disse uma
palavra. Queria ter dito.
Para Vicki Kleuver, os meses que se seguiram ao suicdio de Johnny resumiram-se em nvoa.
Ela quase no tem lembrana daquele vero, nenhuma recordao de nada afora uma terrvel
escurido, apesar das 24 horas por dia de Sol. Ela estava no Hava com Docinho as primeiras
frias de verdade que tiravam em anos quando seu irmo morreu. E ele havia ligado para dizer que
a amava, para pedir que se cuidasse. Ela teve uma premonio sinistra, mas o que podia fazer?
Estava a mais de mil quilmetros de distncia. Algumas horas depois, ele se matou.
O peso foi devastador. Ela se afogou no luto. E no tinha como consolar nem sua filha nem sua
me. Docinho amava seu tio Johnny. Ele andava de moto, usava jaqueta de couro, era bacana. Ela no
conseguia entender sua morte. Sua me no podia lidar com a perda do filho. Apoiou-se em Vicki,
como sempre. Lembro disso tambm, a obrigao de ser uma boa filha, a necessidade de ser forte.
Quando cheguei casa do meu irmo aps o seu suicdio, a primeira coisa que ouvi de minha me
foi: Voc no pode chorar. Se comear a chorar, vou comear a chorar tambm, e no sei se algum
dia conseguirei parar.
Portanto, Vicki Kleuver tentou manter a compostura, como sempre. Por todo um terrvel vero,
enquanto outros quatro casos de suicdio abalavam a comunidade de Kodiak, ela manteve a
compostura por conta de sua filha e de sua me. Ela se apoiava onde podia: trabalho, amigos, at
mesmo em Ted. Mas, sobretudo, em seu gato.
E ento, em agosto, Gato de Natal sumiu. Ficou desaparecido por trs dias at que Vicki
encontrou seu corpo mutilado sob um arbusto a quatro metros de sua cerca. Imediatamente entendeu o
que havia se passado: gn estava sentado na estaca, atormentando os cachorros do vizinho, quando foi
atacado por uma guia. As guias carecas de Kodiak tinham asas de quatro metros ou mais; para elas,
no era nada pescar um peixe de seis quilos de dentro do oceano... ou um gato de quatro do topo de
uma estaca. Ela olhou para o cu, to vazio e sem limites, mas no sabia o que procurava. Lembrouse de gn naquela longnqua noite de Natal, sua tosse, a golfada, as tentativas de se libertar da caixa
de sapatos. Ela era Vicki Kleuver, mulher de negcios forte e independente. Ela no chorava.

Decididamente no chorava por conta de gatos. Mas estava chorando agora. Estava chorando com
tanta vontade, e com tanta fora, que no dia seguinte sentiu dores fsicas. Talvez isso parea um
exagero, tanto choro por causa de um gato, mas se voc j pertenceu a um animal algum dia,
entender o luto. Ela perdera um membro da famlia. Ela perdera o amigo que a consolava. E agora,
o que fazer?
Notando seu desespero, Ted trouxe-lhe um gato novo. Vicki, justificando, diz que ele encontrou
Sombra do lado de fora de seu escritrio; Docinho, que, como gn, nunca gostou de Ted, afirma que
ele a encontrou na sada de um bar. De qualquer modo, a verdade que, apenas um ms aps a morte
de gn, Vicki no estava com vontade nenhuma de adotar outro gato. Qualquer gato. De parte alguma.
Acredite se quiser, mas ainda havia nela alguma coisa que no gostava da ideia de um gato, e
certamente ela achava que no poderia substituir gn assim. Mas ela aceitou o presente duvidoso, o p
de cabra que Ted estava usando para entrar em sua vida novamente. Estava exausta e solitria demais
para recusar.
Portanto, Vicki surpreendeu-se ao perceber, alguns meses depois, quando sua nvoa comeou a
se dissipar, que tinha se afeioado um bocado gatinha. Sombra era bastante parecida com gn
especialmente os olhos travessos e a natureza aventureira e fazia Vicki lembrar das coisas que
amara nele. Sombra era muito independente tambm. Mas, diferentemente de gn, no gostava muito
de natureza. No tinha a dignidade superior de gn. E ela no deixava, para falar a verdade, Vicki ser
a chefe. E Vicki amava ser a chefe. Em lugar disso, Sombra tinha uma energia incontrolvel; corria,
pulava, jogava-se nas paredes, desarrumava a vida de Vicki da melhor maneira possvel. Ela estava
sempre por perto, mas nunca a seus ps. Sua brincadeira favorita no envolvia sentar no colo; era
pique. Se Vicki estivesse em seus trajes casuais a proibio quanto a pelos no terno ainda era
vigente , Sombra se acercava sorrateiramente e a cutucava no calcanhar. Depois saa correndo. No
mais das vezes, Vicki corria atrs e mexia no seu rabo ou fazia ccegas em sua barriga, depois
punha-se a correr enquanto Sombra a perseguia. Vez por outra, no entanto, Sombra subia correndo as
escadas. Na casa havia inmeros esconderijos, e Vicki nunca conseguia encontr-la. Sombra no
tinha pressa, esperava por uma hora. Depois saa toda prosa para receber parabns. Era apenas uma
brincadeira tola, mas Vicki gostava. Fazia-a rir. Primeiro Gato de Natal a comoveu... agora Sombra
tambm? Talvez, Vicki pensou, eu seja mesmo a louca dos gatos.
Olhando para trs, a parte seguinte era inevitvel. Ted foi se tornando cada vez mais abusivo e
controlador, e Vicki finalmente juntou coragem o suficiente para romper com ele definitivamente. A
princpio, ele levou a coisa bem, mas depois comeou a beber muito. Ted passou a aparecer em seu
escritrio perto do fim do expediente. Quando ela ia a almoos de negcio, frequentemente reparava
que ele a estava observando de longe. Ele sempre estava no campo de softball ou no beco perto do
boliche onde ela jogava toda semana. Quando ela se recusou a reatar, o abuso transformou-se em
ameaa. Ela pediu uma medida cautelar. Seu pedido foi negado at que ele a puxou da mesa onde
jantava com amigos e arrastou-a pelo restaurante na frente de uma dzia de testemunhas. A medida
cautelar foi concedida no dia seguinte.

Por um tempo, ele parou de aparecer. Os negcios de Vicki prosperavam; os barcos apitavam;
as montanhas se cobriram de gelo e os ursos hibernaram. Na costa, o oceano esmurrava as piscinas
naturais de Kodiak. Vicki se aconchegou com Docinho e Sombra, aliviada com a perspectiva de
longas e calmas noites de inverno. At que um dia, ao voltar do trabalho, viu que a porta de sua casa
estava aberta. Ela vasculhou a casa. Um casaco, presente de Ted, havia desaparecido. Ela trocou a
fechadura, mas as coisas que ele lhe dera continuaram sumindo da casa, uma de cada vez.
Pouco antes do Natal, ela e Docinho fizeram a viagem de carro, esquife e trilha at a cabana da
v Laura na Ilha Larsen. V Laura havia sido diagnosticada com cncer, mas o que quer que fosse
que a estava destruindo estava muito bem escondido. Naquele dia, ela parecia forte como sempre.
Assou pes, serviu drinques, colocou toras de lenha na lareira como fizera a cada inverno dos
ltimos trinta anos. Seu nico desejo, ela disse famlia, era morrer do mesmo modo como vivera,
na Ilha Larsen. Quando Vicki falou de seus problemas com Ted, sua av balanou a cabea e disse:
O amor pode no ser cego, mas que vesgo, .
Depois, voltou-se para uma prima de Vicki que tambm passava por um relacionamento difcil,
e disse a ambas: Vocs no precisam de um homem. Podem querer um homem, mas no precisam de
um homem. Lembrem-se disso.
A festa durou dois dias, e, quando Vicki voltou para casa na noite de Natal, sentia-se energizada
pela sabedoria e fora de sua av. Alegre, ela cobriu sua filha de nove anos, que j dormia
profundamente. Sorriu quando apagou as luzes, lembrando-se de como Docinho ficara acordada,
havia exatos seis anos, para cuidar de Gato de Natal. No podemos deix-lo sozinho, mame, ela
havia dito, mesmo que v morrer. Quando ela desceu as escadas, ainda aquecida pelas lembranas,
Ted estava de p na sala.
Voc arruinou minha vida, ele disse. Agora vou arruinar a sua. Vou pr fogo nessa casa e
espero que voc morra nela.
Ela chamou a polcia. O policial que a havia auxiliado a conseguir a medida cautelar atendeu.
Quando ele chegou, Ted j havia sumido.
Conheo o tipo dele, disse o policial. Conheo seu histrico. Lamento, mas a situao no
vai melhorar.
Durante dois meses, o policial checava a casa de Vicki duas vezes por dia, alternando horrios.
Em abril, quando os blocos de gelo comeavam a rachar nos crregos, ele sentou para conversar com
ela. Ted estava visitando a vizinhana regularmente, ele disse, quase todos os dias.
Esse cara sabe arrombar fechaduras, ele disse. Voc pode trocar o quanto quiser, ele ainda
vai conseguir entrar. Uma medida cautelar s serve se algum estiver aqui esperando por ele. O
policial se deteve. Em seguida, disse algo que Vicki jamais esqueceu.
Voc tem uma arma?
Sim.
Sabe us-la?
Sim.

Sabe atirar para matar?


Vicki o encarou. Seu corao batia forte. O que voc quer dizer?
Ele perigoso.
Voc est me pedindo para atirar e matar o homem com quem passei dois anos da minha vida?
S estou dizendo que, se ele estiver dentro da sua casa, e voc tiver uma arma mo, melhor
atirar para matar.
Naquela noite, Vicki dormiu com a arma debaixo do travesseiro. Sombra dormiu a seu lado,
Docinho no fim do corredor. Na noite seguinte, ela resolveu parar de se iludir. No conseguiria fazlo. Ela no conseguiria atirar para matar.
Telefonou para seu chefe em Anchorage. Detesto ter que fazer isso, disse, mas preciso ir
embora. Ela lhe explicou os motivos. Discutiram algumas opes e, algumas semanas mais tarde, o
chefe props que ela se transferisse para Wasilla, que, ao contrrio do que pensa a maioria das
pessoas, no uma cidade pequena e longnqua como Kodiak, mas uma comunidade prxima de
Anchorage. A firma tinha planos de fechar o escritrio de Wasilla, que andara causando prejuzos.
Vicki, como a nova gerente, teria um ano para reverter a situao.
Vicki alugou um apartamento em Wasilla e comeou a fazer as malas. Ela queria partir logo,
mas precisava antes falar com os clientes, tratar de negcios pendentes, vender a casa, despedir-se
da famlia e dos amigos e fazer planos para sua filha. Cinco dias antes da partida, Docinho acordou
gritando no meio da noite.
H algo errado com Sombra, disse, quando Vicki foi correndo ao seu quarto.
A gatinha estava deitada de lado no travesseiro de Docinho, ofegando com fora. Havia sangue
em seu pelo e na fronha. Por algum motivo, quando Ted lhe deu a gatinha, Vicki pensou que ela fosse
castrada. Quando Vicki levou Sombra ao veterinrio, j era tarde demais, e nos ltimos meses tudo
havia sido to catico que esse fato no lhe passou pela cabea. Agora sua gatinha estava dando luz
no travesseiro de sua filha.
Est tudo bem, disse Vicki. So apenas bebs, Docinho. Sombra est tendo filhotes.
Ela pegou uma das caixas da mudana. Forrou-a com uma colcha e ps Sombra l dentro
cuidadosamente, depois levou-a para o closet j vazio. Vicki e Docinho pegaram seus travesseiros e
deitaram-se ao lado da gata. Ajudaram Sombra a romper o saco amnitico do ltimo filhote e, apesar
do caos em que suas vidas se encontravam, sentiram-se renovadas pelas cinco vidas novas
remexendo-se a seu lado, ali no cho, quando a manh finalmente chegou.
Alguns dias depois, quando Vicki levantou voo para Anchorage, deixou Docinho em Kodiak
com a me, mas levou Sombra e seus filhotes consigo. Ela havia alugado um apartamento sem t-lo
visto. No tinha moblia. No tinha quem cuidasse da filha. No sabia nem se queria morar em
Wasilla. Sabia que, pelo menos naquele momento, Docinho estaria melhor em Kodiak. Mas, e
Sombra? Ela no confiava em mais ningum para cuidar dos filhotes.
O apartamento era horroroso. O carpete estava imundo, no havia telas nas janelas, o fogo
estava quebrado e as paredes tinham buracos. Ela levara apenas uma mala, portanto, no tinha pratos

para comer ou copos para beber gua. A barca de Kodiak estava em manuteno, o que a obrigou a
voar com Sombra e os filhotes numa caixa embaixo do assento. Agora, sem seu carro, no tinha como
se locomover em Wasilla. (Os seis acabariam visitando Kodiak quatro vezes para visitar Docinho at
que a mudana estivesse completa; Vicki sempre brincou que tudo teria sido mais fcil se gatos
pudessem entrar no programa de milhagem.) Ela foi at seu escritrio novo e percebeu que sua nica
esperana seria despedir metade da equipe e esperar que os demais conseguissem dar a volta por
cima com ela. Naquela tarde, uma terrvel tempestade de vero do Alasca jogou o mundo no
crepsculo. Ela sentou no apartamento vazio, sem ter jantado, e ficou ouvindo a chuva. Sentia
saudade da velha casa de Kodiak. A que havia comprado e reformado sozinha. Sentia falta de seu
antigo emprego e sua comunidade confortvel. Acima de tudo, sentia falta da filha.
Os troves soavam e a chuva, misturada ao granizo de vero, batia na janela. A mala estava
jogada num canto, seus dois ternos escondidos no armrio para no pegar pelo de gato. Ela estendeu
a mo e fez carinho em Sombra, que estava deitada ao seu lado. Seus filhotes tropeavam ao seu
redor sobre o carpete sujo, derrubando-se uns aos outros e tentando mamar. O menorzinho era negro
e laranja, mas os outros eram cor de piche, como Sombra e Gato de Natal. Ela mostrou um dedo para
um dos filhotes, que o cheirou, rolando no cho. Suas patas eram como lenos de papel, delicadas,
quase suaves. Ela comeou a chorar. No sabia que ia chorar, mas de repente as lgrimas j estavam
rolando sobre sua face.
Como pudera cometer o mesmo erro duas vezes? Como pudera permitir que outro homem a
controlasse daquela maneira? Vicki tinha sido criada por um pai problemtico, e nunca havia
conseguido se livrar desse padro. Seu marido. Ted. Ela era forte, independente, esperta,
trabalhadora, bem-sucedida e, no entanto, relacionamentos ruins a haviam deixado sentada no cho
de um apartamento imundo, sem mvel algum, numa cidade desconhecida. Como pde ser to tola?
Como pde ser to... fraca? A chuva continuava batendo contra a janela. Ela fungou e limpou o rosto.
Os filhotes se engalfinhavam no cho, contentes e brincalhes, completamente indiferentes ao que os
cercava. Sombra olhou para ela, seus olhos entreabertos numa expresso sonolenta, depois voltou-se
novamente para seus bebs.
Por algum motivo, isso fez Vicki sorrir. E depois, como estava sorrindo, comeou a rir. L
estava ela, a maior parte da vida uma odiadora ou ao menos esnobadora de gatos declarada,
e havia preferido levar os gatos prpria filha numa viagem de oitocentos quilmetros que mudaria
sua vida. Em vez de Docinho, ela estava na companhia de uma gata e seus filhotes no cho de um
apartamento vazio. E no era uma gata qualquer a gata que seu perseguidor havia lhe dado no
intuito de conquist-la de volta. Uma gata que, de algum modo, representava a pior traio de sua
vida. Mas uma gata que ela amava de qualquer jeito.
H quem diga que amar um gato coisa circunstancial. O gato certo, a hora certa, a histria
certa. Tem a ver com a projeo de nossos desejos; uma crise grave o suficiente para engendrar uma
necessidade. Mas isso no verdade. No verdade no que diz respeito a Gato de Natal, o primeiro
gato que Vicki amou. No verdade no que diz respeito a Dewey, que me conquistou no ao lanar

minha carreira, e sim por sua disposio alegremente obstinada e seu amor doce e duradouro.
Certamente no verdade no que diz respeito a Sombra, que apareceu na vida de Vicki no pior dos
momentos e, o mais importante, pelos motivos errados.
No amamos gatos por necessidade. No os amamos como smbolos ou projees. Amamos os
gatos individualmente, com a complexidade natural de todo amor humano, porque os gatos so seres
vivos. Tm personalidades e idiossincrasias, qualidades e defeitos. De vez em quando encaixam-se
em nossas vidas, e nos fazem rir nos nossos piores momentos. E ento os amamos. simples assim.
Durante toda sua vida adulta, Vicki nunca quis um gato. Era divorciada, me solteira, no queria
ser esse tipo de mulher. Mas deixar sua filha para trs e levar os gatos... sentar num apartamento
vazio e rir de suas travessuras... ela certamente era uma mulher desse tipo agora.
E isso no era um problema. Ela no estava derrotada. Sentada naquele apartamento escuro,
com a chuva surrando a janela e os filhotes miando no cho, ela soube que tudo daria certo. Quando
limpou as lgrimas do rosto, j no havia dvida em sua mente. Ela se mudaria daquele apartamento
horrendo. Ela iria para o escritrio e demitiria o menor nmero possvel de pessoas, depois sentaria
com o restante da equipe e lhes mostraria o caminho do sucesso. No final do vero, quando tudo
estivesse em ordem, ela traria Docinho para Wasilla e a criaria como uma me solteira e orgulhosa.
Nada era dado; Vicki Kleuver sempre soube disso. Ela aprendera, em mais de uma ocasio, que as
coisas podem ser tiradas de voc. Mas as coisas no importam. O que importante de verdade sua
f, sua dignidade, sua vontade de vencer, sua capacidade de amar todo seu at o momento em que
voc escolhe abdicar disso.
No dia seguinte, ela encontrou um apartamento melhor. Demitiu dois funcionrios, mas
conseguiu manter quatro. Em cinco meses, o escritrio de Wasilla j estava lucrando. Dezoito meses
mais tarde, ela estava de frente para uma plateia de colegas, aceitando o prmio de Afiliada do Ano.
E mesmo agora, dezoito anos depois e a mais de 3 mil quilmetros de distncia, tenho orgulho dela,
porque sei o quanto trabalhou por essa honra e o quo longe conseguiu chegar.
***
Os trs anos seguintes, do ponto de vista profissional, foram os melhores da vida de Vicki.
Docinho, a princpio refratria quanto mudana, logo fez dois grandes amigos e aprendeu a amar
Wasilla. Ted ligou algumas vezes, mas Vicki o ignorou. Ele no podia alcan-la agora, nem mesmo
emocionalmente, e aos poucos parou de tentar. Ela ficou com dois dos filhotes da ninhada de Sombra,
o menorzinho negro e laranja e um gatinho todo preto idntico me, e quando Sombra morreu de
cncer aos nove anos de idade, Rosco e Abbey fizeram companhia a Vicki. Mas quando isso
aconteceu, ela tinha tido vrios gatos, a maioria pretos, e mesmo que nenhum a tivesse comovido
tanto quanto gn, o Gato de Natal, ela amou cada um deles. Dez anos depois de deixar Kodiak, ela
rompeu seu padro emocional e casou-se com o homem certo: um que seus gatos e Docinho amavam,
e que amava a todos eles tambm.
Por favor, no me retrate como uma vtima ou uma pessoa assolada pela misria, ela me

implorou aps nossa primeira conversa. Sim, houve muitos momentos difceis, mas eles no
acontecem com todos? Comparada com a vida de algumas pessoas com quem trabalhei, a minha foi
moleza!
Moleza? No, no o caso. Uma vida bem vivida e bem-sucedida? Certamente. Em 2005,
quando ela se aposentou porque no acreditava mais na indstria em que investira durante 22 anos,
Vicki Kleuver era uma das mulheres mais realizadas do Alasca no seu ramo. Foi coautora e
implementou um programa de alcance estatal de auxlio a adultos incapacitados, para lhes assegurar
financiamento; administrou diversos escritrios que tiveram sucesso sem precedentes; foi mentora de
uma gerao de oficiais hipotecrios; passou a carreira inteira ajudando centenas de famlias a
realizarem seus sonhos.
Hoje em dia, Vicki mora com o marido em Palmer, no Alasca, outra comunidade vizinha de
Anchorage. uma mulher feliz. Tem o casamento que sempre quis: o tipo de unio que fortalece, em
vez de mutilar. Tem liberdade para passar o tempo que quiser em Kodiak, onde o ar salgado, o pulso
da vida de uma cidade de pesca e a viso dos barcos partindo pela manh para guas profundas
continuam energizando-a e servindo-lhe de inspirao. Sua filha Adrienna mora a 3 mil quilmetros,
em Minnesota, mas elas se falam o tempo inteiro. Depois de alguns anos turbulentos na adolescncia,
so agora as melhores amigas.
E por toda a jornada, os animais a acompanharam: onze gatos para essa antiga odiadora e at
mesmo alguns ces. Sempre que Vicki precisava, eles estavam l, assim como Gato de Natal sempre
estivera. Isso at 2006, quando Rosco e Abbey faleceram com alguns meses de distncia, ambos com
dezesseis anos. Nove meses depois, Choco, um co de que Vicki havia cuidado aps sofrer graves
ferimentos devido a um atropelamento e que permanecera devotado a ela por toda a sua vida, faleceu
aos doze anos. Pela primeira vez desde que resgatara gn da gua havia quase 25 anos, ela se viu sem
nenhum bichinho por perto. Dava uma sensao de vazio, especialmente com a filha em Minnesota e
as frequentes viagens a trabalho do marido, mas ela estava preparada. Talvez at gostasse. Mas
ento, numa viagem a Kodiak para cuidar da me j idosa, uma amiga a apresentou a um co velhinho
cujos donos haviam falecido recentemente. Bandido, um border collie enrgico e amvel, dorme
agora em sua cama todas as noites. No fundo, ela sabe que no poderia amar nenhum cachorro tanto
quanto o ama.
E, no entanto, naquelas escuras noites do Alasca, quando Vicki Kleuver se senta em sua cadeira
de balano com o fogo a lenha aceso para afastar o frio, uma xcara de ch russo nas mos, o marido
lendo no sof com Bandido ao seu lado, lembrana de gn, o Gato de Natal, que ela retorna. Seu
pelo negro lustroso. Seus olhos travessos. A maneira como ele costumava sumir na floresta atrs da
cerca dos fundos. O modo como corria at ela e lhe segurava as bochechas e esfregava o focinho
contra seu queixo. Voc nunca consegue esquecer o primeiro amor, suponho. Especialmente quando a
personalidade deste amor a encarnao de tudo em que voc acredita. Especialmente quando ele te
ensinou a amar; quando tanto de sua experincia amorosa anterior, afora o amor pela famlia, foi
problemtica e mal escolhida. Especialmente quando voc salvou a vida dele numa silenciosa noite

de Natal.

6
Biscoito

Eu nunca fui amada por ningum, nem pela minha filha nem pelos meus pais, tanto quanto fui
amada pela minha Biscoito.
Essa uma histria nova-iorquina, e talvez voc pense que no h nada mais distante disso do
que Spencer, Iowa. Mas no assim. De certo modo, somos vizinhos. Porque esse no o tipo de
histria de Nova York que a gente ouve normalmente. No tem gente famosa, preos disparatados,
magnatas arrogantes do mercado financeiro ou letreiros chamativos de espetculos na Broadway. Eu
admito que nada se compara a ficar no meio do Times Square, olhando para os letreiros luminosos. E
no h nada como entrar na estao Grand Central, e ficar na plataforma superior olhando o teto
pintado com as constelaes do cu noturno. Eu estava perto do MetLife Building, bem prximo
estao Grand Central, quando meu amigo virou para mim e disse: Sabe, at hoje eu no tinha visto
um prdio com mais de doze andares. Eu olhei para cima e o prdio, que parecia estar inclinado
sobre ns, era maior do que o cu. Nada como Nova York para fazer a gente se sentir pequeno ou
parte de algo enorme e maravilhoso, como preferir.
Mas isso no a cidade de Nova York. Isso Manhattan. A cidade de Nova York tem cerca de
8 milhes de pessoas e parece que s 20% vive em Manhattan. Esta histria sobre isto: sobre a
outra Nova York. A cidade que fica do outro lado das pontes, depois das zonas porturias do
Brooklyn e do Queens, depois do aeroporto de La Guardia e do estdio de beisebol, depois do lugar
onde aconteceu a Feira Mundial de 1964, depois mesmo das ltimas estaes das linhas de metr.
Essa histria sobre Bayside, uma comunidade de classe mdia perto do esturio de Long Island
Sound, onde o trfego intenso e as casas so amontoadas, umas trinta por quarteiro. Ainda assim,
as casas tm varandas e pequenos jardins na frente. o tipo de lugar em que uma bibliotecria
poderia viver em seu prprio quarto, com um gato enroscado na janela e a luz do Sol refletindo no
cho. O que faz de Bayside o cenrio perfeito para esta histria nova-iorquina.
Ou ao menos o lugar ideal para comear, j que Bayside foi onde os avs de Lynda Caira se
instalaram quando emigraram da Itlia para os Estados Unidos, nas primeiras dcadas do sculo xx.
Em 1927, eles compraram um pedao de terra no que era basicamente uma regio agrcola e
construram uma casa. Nessa poca no havia muita gente em Bayside, no Queens, mas qualquer um
que aparecesse era bem-vindo na mesa dos Caira. Quando a wpa[9] construiu a via expressa de Long

Island, no limite do terreno deles, a av de Lynda servia caf para os trabalhadores todas as manhs
e pagou o custo do terreno e da casa com as gorjetas que ganhava em troca da distribuio gratuita
de cafs da manh quentes. Quando a construo da via expressa terminou, ela preparava o desjejum
dos caminhoneiros que paravam ao ver a luz acesa s quatro da manh. Mesmo em 1950, quando
Lynda nasceu, a casa estava sempre cheia de sacos de milho e de cebola que os caminhoneiros
davam para a sua av em troca do caf. Muitas vezes, quando Lynda descia para tomar seu caf, ela
encontrava algum estranho na mesa. O corao da av no negava nada a ningum.
Quando Bayside foi dividida em lotes urbanos, sua av (que assumiu o comando da casa depois
que o marido morreu prematuramente) ficou com quatro lotes prximos a uma sada da estrada, no
corao da comunidade. Lynda chamava essa rea de Fazenda, porque havia cem tomateiros, uma
horta de legumes e um pequeno arvoredo com macieiras, pessegueiros e figueiras. A famlia de Lynda
morava no trreo com a av, que fazia vinho, molho de tomate e ainda acordava s quatro da manh
todos os dias para cozinhar. O tio e a tia de Lynda moravam no andar de cima. Outros parentes
apareciam constantemente. No caso de certos familiares que vieram da Itlia, a visita durou cinco
anos, mas a av nunca considerou outra possibilidade a no ser acordar s quatro horas para
cozinhar para todos. Os pais do pai de Lynda, tambm imigrantes italianos, moravam bem perto.
Outros parentes estavam espalhados pelos quarteires do bairro. Bayside estava ficando repleto de
casas, a maioria comprada por famlias jovens; por isso, as churrasqueiras no quintal estavam
sempre acesas e as ruas viviam cheias de crianas. Os vizinhos tomavam conta uns dos outros e os
donos das lojas sabiam os nomes das crianas. Mas as caractersticas que definiam Bayside, ao
menos para Lynda Caira, eram os eventos familiares: as grandes refeies italianas, os vestidos de
comunho e a semana de agosto dedicada a enlatar tomates.
Aos quatorze anos, Lynda foi trabalhar no final da rua, na loja de departamento Gerts. Depois
do colegial, cursou enfermagem. Ela se casou e se mudou para uma residncia pequena de quatro
cmodos na rea perto do Bell Boulevard, em Bayside, a menos de dois quilmetros da casa da av,
e trabalhava num consultrio peditrico local. Com dois anos de casamento, teve uma filha a quem
deu o nome mais popular dos Estados Unidos nos anos 1970: Jennifer.
Depois de sete anos de casamento, Lynda Caira se divorciou. O divrcio era a coisa certa a
fazer, ela nunca questionou essa deciso. No comeo, seus pais tiveram dificuldade para aceitar a
notcia, mas a av, ento com oitenta e poucos anos, disse simplesmente: Se disso que voc
precisa, eu te apoio. Com a bno da av, o pecado de Lynda foi absolvido e com o tempo seus
pais se conformaram. Ela conseguiu manter duas de suas melhores amigas: a ex-sogra e a ex-cunhada,
que ficaram ao seu lado durante o divrcio.
Mas isso no quer dizer que o divrcio tenha sido fcil para a filha de cinco anos de Lynda, que
j tinha idade suficiente para saber que a vida estava mudando, mas pequena demais para entender
por qu. Um vizinho de Lynda sugeriu que ela adotasse um gato para ajudar Jennifer na transio.
Esse vizinho trabalhava numa padaria, e a gata da padaria apesar do regulamento da sade pblica,
muitos gatos moravam em padarias dos bairros pequenos de Nova York para deixar o ambiente livre

de ratos tinha acabado de ter uma ninhada. Havia uma gata muito pequena no meio, e a me se
recusava a cuidar dela. Se ela no encontrasse um lar, morreria.
Certo, Lynda disse ao vizinho. Traga a gatinha.
No dia seguinte, o vizinho chegou com uma gatinha que mais parecia uma bolinha de poeira
cinza. Era do tamanho de uma bola de tnis e peluda, com orelhas pequenas e grandes olhos verdes.
Ela at tremia um pouco ao olhar para o ambiente estranho, com os olhos arregalados de medo.
Como algum podia no querer esse beb? Como pde sua prpria me larg-la para morrer?
Elas ficaram com a gata. Jennifer, que saltitava de alegria, a chamou de Dengosa. Como a
gatinha ainda no podia comer comida slida, Lynda e Jennifer lhe davam alimentos base de leite,
de mamadeira, vrias vezes por dia. Quando ficou um pouquinho mais velha, elas lhe davam, na
colher, lquidos e comidas bem molinhas. Jennifer sempre dava ateno gata. Talvez desse ateno
demais, e, com certeza, a apertava demais afinal ela s tinha cinco anos , mas Dengosa recebeu
amor e carinho desde o primeiro momento em que chegou casa de Jennifer.
Ela no retribua a afeio. No era uma gata m, ela s no era muito... dengosa. Algumas
pessoas tm preconceitos contra gatos. Acham que eles so esquivos, arrogantes, autocentrados e que
so seres solitrios. Infelizmente, Dengosa se encaixava no esteretipo. No que fosse m. Ela nunca
arranhava nem grunhia. Apenas no era um animal socivel. No queria brincar, no queria ser
tocada, no estava emocionalmente envolvida nem com Lynda nem com Jennifer, e, francamente, no
ligava se elas estavam em casa ou no. Dengosa preferia seu prprio espao.
Jennifer ficou desapontada. Adultos podem apreciar a dignidade refinada (e silenciosa!) de um
gato imvel olhando pela janela ensolarada, ignorando completamente o mundo ao redor, mas que
tipo de criana quer um gato assim?
Eu quero ir ao orfanato de bebs!, ela disse me.
Podemos ir, disse Lynda, mas voc no pode trazer nenhum para casa. Ns j fomos
abenoadas com a Dengosa.
Ela apertou os lbios enquanto pensava ser que vale a pena protestar? depois: Est bem,
mame. No traremos nada para casa.
O orfanato de bebs era a Liga dos Animais de North Shore, o maior abrigo de todo o pas que
era contra matar animais. Localizado em Port Washington, Nova York, na parte oeste de Long Island,
o santurio ficava a apenas quinze quilmetros da casa dos Caira em Bayside. Trs ou quatro vezes
por ano, Lynda e Jennifer iam de carro at l para ficar babando pelos gatinhos. Eles eram fofos,
brincalhes e cheios de energia, mas, depois de uma hora, Lynda sempre conseguia tirar Jennifer do
prdio sem um gato e sem papis de adoo na mo.
At 31 de agosto de 1990. Era s mais um vero no subrbio de Queens. S mais uma visita de
me e filha ao orfanato de bebs de que elas tanto gostavam. Jennifer estava com doze anos e,
portanto, j havia sete anos que as duas visitavam a Liga dos Animais sem nunca se entregar aos
olhos grandes, aos focinhos rosas e s patinhas dos bichinhos carentes. Mas, dessa vez... uma gatinha
miou.

Imediatamente. Assim que elas entraram. E ela no miava apenas. A gatinha esticava sua pata
pela grade e gritava por ateno. Ela tinha listras pretas e cinzas, como um tigre, um peito branco, um
rosto quase todo branco e enormes orelhas de morcego que faziam sua cabea parecer bem pequena.
Ela era inegavelmente fofa, to fofa que Lynda teve que se esforar para ignor-la. Mas Jennifer foi
seduzida.
Ah, mame, olha para essa, ela disse.
Lynda continuou a andar, metendo os dedos em algumas gaiolas para brincar com os gatinhos.
Ah, por favor, volte e olhe para esse beb, implorou Jennifer. Por favor, me. Olha como ela
est gritando. Ela quer muito que eu a segure.
Lynda deu meia-volta e olhou para a pequena gatinha magra que tentava, desesperadamente,
escapar da grande gaiola. Um carto na frente dizia: Biscoito. Fmea. Domstica. Pelo curto.
Est bem, Lynda disse para a voluntria. Tire ela l de dentro. Jennifer, voc pode segurar a
gata, mas s por um minuto. Depois, ela volta para a gaiola.
Biscoito tinha outra coisa em mente. Assim que saiu, pulou das mos de Jennifer para a blusa de
Lynda, e, depois de uma escalada desesperada, apertou suas patas com fora ao redor do pescoo de
Lynda. Em seguida, inclinou-se para trs e, olhando para cima com seus enormes olhos verdes, miou
com fora bem na cara de Lynda. Uma voluntria veio ajudar, mas a gatinha apertou uma pata na outra
e no soltava. Ela implorava e suplicava por ateno? Por amor? Por um lar? Fosse o que fosse, a
gata era intransigente. Sabia o que queria, e queria Lynda. Foi preciso que viessem dois voluntrios
para arrancar a gata (que no pesava nem um quilo) do peito de Lynda.
Ah, mame, implorou Jennifer. A gente tem que lev-la para casa, a gente tem.
No, Jennifer, disse Lynda. No vamos lev-la para casa. J temos a Dengosa. No podemos
ter outro gato. Ela no estava realmente preocupada com a Dengosa. Dengosa no se importava com
nada, ento por que se importaria com outro gatinho em casa? Mas a casa delas era pequena. No
parecia grande o suficiente para outro gato.
Estava prestes a dizer aos voluntrios para colocarem a gatinha de volta na gaiola quando notou
que ela tinha vrios colares coloridos, cada um com diversas etiquetas.
Por que ela est usando isso?, perguntou Lynda.
Por causa dos medicamentos, disse a voluntria, que ento contou a histria de Biscoito.
Quando tinha cinco semanas, Biscoito foi atropelada por um carro. Foi encontrada na rua
sangrando, e sentia muita dor quando foi levada liga dos animais, onde seu ombro quebrado passou
por duas cirurgias. Uma parte dos remdios servia para a dor no ombro, que ainda no tinha sarado.
Alm das feridas, havia as consequncias da vida dura nas ruas sem uma me para ensinar ou
proteger: desnutrio, gengivas inflamadas, vermes nos ouvidos, parasitas no aparelho digestivo e o
olho esquerdo to inchado por causa da conjuntivite que ela mal conseguia abrir (agora estava quase
bom). Tudo precisava ser tratado. Alm disso, havia o corte profundo no quadril. O carro abriu
Biscoito ao meio quando a atropelou, e o estrago foi to grande que o veterinrio no conseguiu
fechar totalmente a ferida. Tinham que limpar e colocar novos curativos na gata vrias vezes por dia.

Foram muitas semanas de tratamento intensivo e at agora ela estava relegada priso solitria de
sua asseada gaiola particular. A pobre gatinha estava sozinha, traumatizada e ferida. E ela s tinha
nove semanas de vida.
Lynda olhou de novo para Biscoito. Dessa vez, reparou no olho coberto de remela e no jeito
esquisito do ombro. Seu quadril no estava com curativos, mas dava para ver a crosta de pomada no
seu pelo. Lynda viu os ouvidos infeccionados e o bumbum machucado. Mas o que Lynda de fato
percebeu foi a fome no olhar de Biscoito. Biscoito no era Dengosa. Na verdade, ela era o exato
oposto da Dengosa. Essa gata queria algum que cuidasse dela. Desesperadamente. Dessa vez,
quando Biscoito esticou sua patinha atravs das grades, Lynda teve certeza de que Biscoito a havia
escolhido. Me ame, ela dizia, e eu te amarei tambm.
O voluntrio pousou suavemente a mo no ombro de Lynda e disse: Ela nunca agiu assim com
ningum antes.
Lynda acredita nisso at hoje. Biscoito a escolheu. Mas devo admitir que sou ctica. Afinal,
Biscoito provavelmente se manifestava para qualquer um que passasse por sua gaiola. Tenho
tendncia a pensar que quem agiu de modo diferente naquele dia foi Lynda, foi ela quem abriu o
corao para o animal ferido. Foi Lynda quem pensou: Eu preciso ajud-la. No sei se ela vai
sobreviver. Mas ela vai para casa comigo.
Foi realmente um compromisso, pois Biscoito estava mesmo doente. Seus papis de adoo
vinham acompanhados de uma tonelada de remdios e uma caixa de curativos maior do que ela. A
liga dos animais disse que, se Lynda no conseguisse fazer a ferida no quadril de Biscoito cicatrizar,
ou qualquer outra ferida, eles teriam que peg-la de volta e deix-la no abrigo para viver sua (curta)
vida. Mas Lynda no desanimou. Na verdade, encheu-se de energia. Todo dia, ela colocava fora
cinco ou seis comprimidos na garganta de Biscoito. Duas vezes por dia, ela passava uma pomada no
machucado. Ento, colocava um curativo e depois amarrava outro maior ainda ao redor do pequeno
bumbum da gatinha, para que ficasse bem seguro. Em seguida, ela abraava e fazia carinho em
Biscoito e dizia que a amava. Aps alguns meses, Biscoito estava boa. No tinha mais conjuntivite,
nem vermes no intestino, nem infeces nos ouvidos, nem ferida alguma. Olhando para ela, parecia
que o acidente de carro e as doenas nunca haviam ocorrido. Era simplesmente uma bela gata.
Jennifer queria muito, muito, muito que Biscoito fosse sua gata. Dengosa deveria ser sua gata,
mas Dengosa no era de ningum. Biscoito foi sua segunda chance. Toda noite, Jennifer levava
Biscoito para dormir com ela na cama e fechava a porta para ela no sair. Mas, na quarta noite,
quando Jennifer se esqueceu de fechar a porta, Biscoito fugiu do quarto, subiu na cama de Lynda e
deitou num dos travesseiros dela. Jennifer no podia faz-la prisioneira todas as noites, e, quando
deixava a porta aberta, a gatinha ia correndo para a cama da me. J disse isso antes e repito: quando
voc d seu corao a um animal ferido, ele nunca se esquece. Quando Lynda finalmente deixou
Biscoito ficar com o travesseiro extra, a gata passou a dormir na cama de Lynda todos os dias, at o
final da vida. No era a gata de Jennifer, era a gata da mame. A pobre menina frustrou-se outra vez.
Mas, em parte, por sua prpria culpa. Afinal, de vez em quando Jennifer fantasiava Biscoito

com vestidos de bonecas mais exatamente com as roupas daquelas bonecas Repolhinho, que vestem
melhor e vm com os melhores acessrios. A nica foto que sobrou desses espetculos humilhantes
mostra Biscoito no sof vestindo uma blusa azul clara com babado branco e um cmico minichapu
de cowboy. A expresso facial de Biscoito no engana: nunca fui to humilhada.
Mas no se deve culpar Jennifer. Ela s tinha doze anos. E Biscoito pode ter sido humilhada,
mas nunca lhe fizeram mal. Ela nunca reclamou. Nunca relutou. Ela vestia os vestidos, brincava de
hora do lanche e era uma boa amiga. Ela amava Jennifer apesar do chapu de cowboy. Mas tinha
adorao por Lynda. Desde que vira Lynda entrar na Clnica de Animais de North Shore, Biscoito era
a sua gata. Ou, mais correto seria dizer: Lynda era a humana de Biscoito. Como Lynda sempre disse:
Biscoito sabia que ela era uma trouxa.
Mas isso no verdade, e Lynda sabia disso. Biscoito no pensava que ela era trouxa, assim
como Dewey no me tomou por trouxa durante o tempo que passamos juntos. Sim, ns mimamos os
nossos filhos, mas nossa ligao era genuna. No era uma situao como a de Dengosa, no era do
tipo me d comida e cai fora. Gatos como Dewey e Biscoito do tanto quanto recebem. Qual a
diferena? Dewey dava para a comunidade, Biscoito dava para Lynda Caira.
Ela dava amor. Ela dava ateno. Ela queria ficar perto, ficar perto dos seus ps, queria receber
carinhos. No, ela no insistia em receber carinho. Quando Lynda saa do quarto, Biscoito ia atrs
dela e se esfregava em suas pernas. Sentava nos ps de Lynda. Pulava no colo dela. Se no recebesse
carinho suficiente, ela cutucava o brao de Lynda com a cabea e depois se mexia, mostrando
exatamente onde queria ser acariciada. Ela adorava subir no peito de Lynda e lhe dar um beijo. Isso
mesmo, um beijo. Volta e meia, Biscoito se esticava e colocava seus lbios sobre os lbios de Lynda,
como uma filha pequena dando um beijinho tmido de boa-noite na me.
At quando Lynda saa, Biscoito s vezes ia atrs dela. Lynda tentava evitar isso, claro, mas
Biscoito era esperta. Ela se escondia atrs da porta e passava correndo logo que Lynda abria a porta,
quase sempre com um saco de lixo na mo. Uma vez do lado de fora, Biscoito corria. Lynda soltava o
saco e corria atrs dela, gritando para que parasse. Quando alcanava metade do quarteiro, Biscoito
decidia que j tinha sido o bastante. Ela parava, virava e esperava Lynda vir peg-la. Ento elas
voltavam devagar para casa, Lynda dizendo para seu beb nunca, nunca mais fazer aquilo de novo, e
Biscoito se esfregando em seu queixo, como se dissesse: No se preocupe, mame, eu nunca iria
muito longe de voc.
Para algumas pessoas, isso tudo pode parecer demais. Mas a vida de Lynda era ocupada.
Depois do divrcio, ela se tornou gerente geral da empresa de bufs da famlia. A empresa tinha suas
bases na comunidade de Bayside, dando apoio e sendo apoiada pela famlia e pelos amigos que
tinham amparado Lynda atravs dos anos. Ela trabalhava cinquenta horas semanais, mesmo antes de
um administrador do Hospital de Crianas St. Mary perguntar se ela poderia doar um buf para a
festa de Natal das enfermeiras. Ela ficou to impressionada com o hospital que, no ano seguinte,
organizou e ofereceu um jantar beneficente, no qual cada convidado pagava quarenta dlares. No
primeiro ano, ela conseguiu levantar mais de 12 mil dlares. No ano seguinte, ela convenceu uma

estrela de novela a comparecer muitas novelas eram filmadas a poucos quilmetros dali, na parte
industrial de Queens , duplicando o nmero de pessoas e de doaes. Em pouco tempo, ela estava
levantando mais de 50 mil dlares por ano com os jantares beneficentes que oferecia em fevereiro e
seu evento de caridade era tido como o preferido das estrelas do dia na revista Soap Opera Digest.
Quando no estava trabalhando, Lynda estava em casa, preparando o jantar, limpando, ajudando
com o dever de casa e empurrando sua jovem adolescente para a cama. Seus pais traziam toneladas
de macarro caseiro, seus amigos a levavam ao cinema e a shows, mas a maior parte do seu tempo
era dedicada a Jennifer.
Voc sabe como , ela disse. Era tudo para a minha filha. Tudo que eu fazia era por ela.
Eu sabia. Quando Lynda Caira falava de sua vida de me solteira, eu lembrava da minha poca
trabalhando cinquenta horas por semana na biblioteca. Lembro dos finais de semana com meus
amigos e a acolhida calorosa da minha famlia, como me sentia protegida e apoiada. Eu era feliz. Eu
tinha minha prpria vida. Mas aquela vida, na verdade, era devotada minha filha, Jodi. Quando eu
trabalhava, era para dar uma vida melhor a ela. Quando voltei a estudar, a fim de me qualificar para
o cargo de diretora, meu objetivo era fazer dinheiro suficiente para poder colocar Jodi em uma
universidade. O tempo inteiro, quando eu estava sozinha na biblioteca pelejando para escrever uma
monografia de final de curso, ou quando tentava convencer Jodi a arrumar o seu quarto bagunado,
estava sempre pensando na minha filha.
E eu sei o que Lynda quer dizer quando afirma que Biscoito estava l para ela, porque Dewey
estava l para mim tambm. Quando me sentia frustrada ou cansada, Dewey pulava no meu colo.
Quando eu me perguntava se o esforo valia a pena, ou se estava fazendo as escolhas certas, Dewey
me tirava da letargia brincando de pega-pega. Toda manh, Dewey ficava na porta da frente da
biblioteca me esperando. Quando me avistava, ele acenava e qualquer coisa que estivesse me
incomodando se evaporava. Dewey estava presente. Ele acenava. O mundo era bom.
Biscoito fazia isso com Lynda. Sempre que ela chegava em casa, vindo de um longo dia de
trabalho ou de uma noite fora com os amigos, Biscoito estava no banco acolchoado perto da porta da
frente. Ela sempre seguia atrs de Lynda como um cachorro, esperando-a largar as bolsas, arrumar as
coisas e se abaixar para fazer carinho nela. Lynda no resistia. No importava quantas vezes Biscoito
fizesse isso, Lynda sempre gostava da ateno que a gata lhe dava. Ela nunca teve nada contra
Dengosa, que continuava reservada. Ela nunca teve esse tipo de expectativa em relao a outro gato.
Percebia que essa devoo era algo especial, algo particular a Biscoito.
Biscoito adorava roupa recm-lavada, quentinha, saindo do secador. Lynda deixava-a se
enroscar na cesta sempre que tinha uma chance. Ela no conseguia enxotar Biscoito, ento muitas
vezes tinha que lavar as roupas duas ou trs vezes. (Foi o que ela me contou na primeira vez; mas,
depois, confessou que nunca lavava de novo.) Biscoito no aceitava qualquer fronha de travesseiro.
Toda vez que Lynda mudava uma fronha, Biscoito pulava na cama para test-la com uma soneca. Se
no gostasse do tecido, choramingava e saa de cima, esperando Lynda trocar a fronha. O que ela
sempre fazia, claro.

Biscoito tambm adorava ficar na cozinha quando Lynda cozinhava. Ela tinha, particularmente,
o hbito de ficar aos seus ps enquanto ela usava o fogo. A gata adorava po de soda irlands e po
de abbora, e Lynda sabia que devia cortar um pedao para Biscoito quando pegava uma fatia para
si. Biscoito tambm amava brcolis raab, uma verdura italiana que fazia Lynda lembrar sua
infncia, a famlia e os veres com vinho caseiro e tomates em lata na cozinha da casa de sua av. O
brcolis raab parece um brcolis fibroso, e seu gosto amargo algo que a maioria dos americanos
come com relutncia. Mesmo muitos talo-americanos no gostam de seu amargor, embora ele seja
uma das matrias-primas da culinria italiana. Biscoito adorava. Assim que ela sentia o cheiro do
brcolis raab cozinhando, corria para a cozinha e ficava ao p de Lynda miando at receber uma
mordida. Ou duas. Ou trs. Lynda nunca se importava. Ela no era solitria. Longe disso. Mas
Jennifer comia muito fora de casa, com os amigos, ou passava os finais de semana com o pai, como
estabelecido pela Justia, e era bom ter algum com quem comer todas as noites.
Houve um dia em que Lynda notou no a presena, mas a ausncia de Biscoito. Se a gata
desaparecesse por um tempo, Lynda dava uma volta pela casa para procur-la. Biscoito quase
sempre vinha trotando assim que Lynda a chamava, mas certa noite ela sumiu por algumas horas. Isso
no era de seu feitio. Lynda deu algumas voltas pela residncia at perceber que a tela do quarto
principal havia sido empurrada para fora. Ela olhou pela janela e l estava Biscoito, suja e
desgrenhada, tentando loucamente escalar a parede. A gata devia ter aberto a tela acidentalmente,
caindo pela janela num salto-mortal. Felizmente, era o primeiro andar. Biscoito s tinha cado um
metro e meio. Ainda assim, quando Lynda a encontrou, suas garras estavam quebradas e suas patas
sangravam de tanto arranhar a spera parede de tijolo.
Alguns anos depois, Lynda decidiu terminar a construo do poro. Jennifer estava no ensino
mdio e sem o poro no havia espao suficiente no pequeno sobrado para ela ficar com os amigos.
A obra duraria alguns dias e como os homens da obra ficariam entrando e saindo de casa, antes de
sair Lynda se certificava de que Biscoito e Dengosa estavam trancadas no seu quarto. No segundo
dia, depois que os homens foram embora, ela destrancou a porta para deixar as gatas sarem.
Dengosa estava sentada no parapeito da janela, desdenhosa como sempre. Mas Biscoito no veio
correndo. E no estava no quarto. Enquanto procurava no armrio e embaixo da cama, ocorreu a
Lynda que a espertinha da Biscoito devia ter escapulido assim que ela havia fechado a porta de
manh.
Ela chamou Jennifer. Imediatamente, ambas comearam a procurar pela casa, chamando
Biscoito. Olharam nos guarda--roupas, debaixo do sof, nos armrios da cozinha. Nada de Biscoito.
Lynda olhou na estante da televiso e debaixo do material de costura. Limpou os restos de obra
empilhados no poro. Examinou as janelas, mas todas as telas estavam fechadas. No havia um canto
no qual ela no tivesse procurado, depois procurado de novo, e ainda uma terceira vez.
Nossa!, ela me disse. Eu fiquei completamente histrica.
Jennifer chorava. Lynda estava pior. Sua Biscoito tinha sumido. Os homens da obra tinham
aberto as portas externas. Tinham mexido o dia inteiro com placas de gesso, serras e caibros, fazendo

barulho e dando pancadas. Sem ter como voltar para o quarto trancado, Biscoito deve ter ficado
aterrorizada. Claro que ela correu. Por que no correria? E uma vez que estivesse l fora...
Meu Deus!, a gata sumira. Ela era um beb e Lynda tratara de todos seus terrveis males e
Biscoito amara Lynda e agora, meu Deus, como ela podia sumir? Como que o seu beb podia
desaparecer?
Procure mais uma vez, Lynda disse a Jennifer.
Vinte minutos depois, histrica, cansada e desesperada, empurrando pedaos de placas de
reboco no poro, Lynda ouviu algo. Primeiro pensou que estava imaginando coisas. Depois ouviu de
novo. Um som fraco de passos. Depois um miau, muito fraco e muito longe. Ela se embrenhou entre
os restos da obra, gritando Biscoito! Biscoito!. Ouvia um miado, ainda bem longe, como se viesse
do primeiro andar. Mas seria possvel? Ela procurou e procurou e... olhou para cima e, bem em cima
dela, havia uma camada fresca de gesso.
Meu Deus do cu, gritou para Jennifer. Ai, meu Deus, ela est no teto!
Lynda subiu numa pequena escada. Biscoito, chamou, batendo com a mo no reboco.
Biscoito! Ento ela ouviu o som de passos vindo em sua direo, e depois um miau fraquinho.
Toda vez que dizia Biscoito, recebia como resposta um miado bem sobre sua cabea.
Ela ligou para um dos homens que trabalhava na obra. O teto, ela gritou no telefone. No
teto!
O que tem o teto?
A minha Biscoito.
A sua o qu?
Minha gata. Ela est presa no teto.
Ela ficou to histrica que o homem veio imediatamente. Certamente, Biscoito tinha pulado no
teto ainda no concludo e ficara presa entre as vigas quando os homens colocaram a ltima leva de
reboco. O homem abriu um buraco em cima da janela, onde o reboco ainda no tinha sido selado e
juntos, ele e Lynda, batendo no teto e chamando Biscoito, conseguiram convencer a gata a se
aproximar do buraco. De repente, l estava ela, a pequena Biscoito de Lynda, olhando pela beirada
do reboco. Ela olhou em volta, como se visse o poro pela primeira vez, e pulou para os braos de
Lynda, completamente coberta de poeira e de restos de construo. Lynda chorava e beijava Biscoito,
tomada de medo e alvio. Biscoito no se importou. Ela pulou e saiu correndo, como se j soubesse
que Lynda iria encontr-la.
Antes de o homem ir embora, Lynda o fez fechar o buraco no teto e selar cada centmetro. No
se importava que j fosse tarde da noite. No queria correr mais nenhum risco.
***
O primeiro tropeo na vida de Biscoito foi quando Dengosa morreu. Um tumor se formou ao
redor do seu corao e do pulmo, e em 48 horas Dengosa passou de uma sade aparentemente
perfeita para o seu ltimo suspiro na mesa do veterinrio. Ela se foi antes de Lynda entender o que

estava acontecendo.
Logo depois, ela notou que uma gatinha minscula e trpega estava bisbilhotando na porta da
frente. A gata era obviamente pequena demais para no precisar de leite materno, mas nenhuma me
parecia estar por perto, e ento Lynda comeou a lhe dar comida. Deu comida para a gata na entrada
da casa durante nove meses, sem inteno alguma de deix-la entrar. Ela tinha Biscoito. No queria e
nem precisava de outro gato. Mas, depois de um tempo, ela percebeu que Chloe o nome que deu
pequena estava morrendo de medo do enorme cachorro de caa do vizinho. Diversas vezes por dia,
ele saa de casa feito um louco e perseguia a gata pela rua, latindo intensamente e assustando-a. Tanto
quanto Lynda, o vizinho tambm no gostava disso. Temia que seu precioso co fosse atropelado por
um carro. Ento apareceu com a soluo perfeita: atirar na gatinha com a sua espingarda de caa.
Nem preciso dizer que, imediatamente, Lynda trouxe Chloe para dentro de casa, fazendo dela um gato
domstico.
Biscoito no ficou nem um pouco feliz com isso. Ela tinha seis anos e estava acostumada a ter a
casa s para ela. No atacou Chloe Biscoito no era uma gata agressiva , mas torceu o nariz para
a novata e se recusou a lhe dar qualquer ateno. Chloe era uma gata tmida, do tipo que baixa a
cabea e olha para voc com grandes olhos tristes. Ela aceitou prontamente o papel de segundo gato
na casa da famlia Caira. Parecia ter entendido que podia viver na casa, desde que aceitasse as
condies que Biscoito impunha. Biscoito comia primeiro. Biscoito bebia primeiro. E Biscoito no
dividia Lynda. Esse era o limite, a regra que estava acima de todas as outras. Biscoito olhava com
desdm quando Chloe tentava se aproximar de Lynda e certa vez no hesitou em lhe dar um safano
para mostrar que tal comportamento era inaceitvel. E se Chloe tentasse pular na cama de Lynda?
Isso era imperdovel. Se ela colocasse uma pata na colcha, Biscoito fazia um arco com as costas e
grunhia. Ela no era muito de briga, mas brigaria para defender aquela cama, porque Lynda, bem,
Lynda era sua. Lynda era sagrada.
Apesar disso, aos poucos, Biscoito amoleceu. No fundo ela era uma gata amigvel; aquela
vigilncia constante no fazia parte da sua natureza. Ela era uma amante e uma companheira
despreocupada, e logo que entendeu que ainda era o amor da vida de Lynda, passou a ser mais
calorosa com a doce e subserviente Chloe. Veja bem, isso levou muitos anos. Trs anos exatamente.
Mas acabou que Biscoito e Chloe se tornaram grandes amigas.
O segundo tropeo veio alguns anos depois. Lynda j tinha estabelecido uma vida confortvel
havia muito tempo: estava h vinte anos na sua casa, completara dezessete anos como me
divorciada, dezesseis anos cuidando de uma empresa de bufs bem-sucedida e dez anos com sua
amada Biscoito. Depois de doze anos fazendo jantares beneficentes, ela doou mais de um milho de
dlares para o Hospital de St. Mary, que usou esse dinheiro para abrir uma unidade de tratamento de
traumatismo cranioenceflico em crianas, a nica com essa especialidade na costa Leste. No ano
seguinte, Lynda organizou um evento beneficente para a esclerose lateral amiotrfica (tambm
conhecida como doena de Lou Gehrig), que no s havia matado sua tia como tambm atingira uma
das estrelas de novela que havia sido providencial na ajuda aos seus eventos beneficentes: Michael

Zaslow. Depois de sua doena ser revelada, ele foi despedido da novela Guiding Light. Como sua
sade se deteriorou rapidamente, ele disse esposa que o que mais lamentava era no poder rever
seus amigos uma ltima vez. Trinta e cinco desses amigos apareceram para v-lo no evento
organizado por Lynda, que levantou mais de 26 mil dlares. Michael Zaslow morreu dez dias depois.
Ao recrutar a ajuda dos seus amigos e de sua famlia unida, como sempre fazia por uma boa
causa, Lynda sabia que sua vida estava mudando. Com o pai parcialmente aposentado, a empresa de
bufs reduziu o nmero de empregados e o espao de trabalho. Lynda teve que comear a trabalhar
mais e tambm teve que parar de fazer eventos beneficentes. Sua filha estava crescendo e em breve
viveria por conta prpria. Quando a av morreu, a famlia vendeu a casa onde Lynda passara tantas
tardes maravilhosas, entre parreiras, tomates em lata e uma matriarca que nunca dizia no a ningum,
dos trabalhadores da poca da construo da estrada a estranhos em dificuldades, precisando de uma
xcara de caf. Foi como se a morte da av colocasse um ponto-final no bairro de Lynda Caira, uma
comunidade onde h muito as hortas e as prgulas de parreiras haviam sido aterradas com cimento e
onde ningum mais falava com desconhecidos muito menos os convidava para entrar e comer uma
refeio. Os primeiros imigrantes j estavam se retirando de l havia algumas dcadas, pois se
sentiam esmagados por imigrantes recm-chegados e pelos refugiados que vinham da City (como
os locais chamavam Manhattan) procurando lugares com um custo de vida mais em conta. O sculo
chegava ao fim na velha Bayside e Lynda Caira decidiu lucrar com a venda da sua casa. Vendeu-a
por um valor dez vezes maior do que pagou em 1973 e comprou a nica casa vitoriana de Floral
Park, com trs quartos e dois andares.
Floral Park ficava s a onze quilmetros de distncia, mas para Lynda Caira era outro mundo.
Bell Boulevard, a principal via pblica de sua antiga regio em Bayside, era cheia de avisos
chamativos, fios eltricos e quatro vias de trfego barulhento. Tulip Avenue, a rua principal de Floral
Park, tinha apenas duas vias cercadas por pequenos estabelecimentos comerciais com placas
ordenadas de madeira na frente: a padaria, a loja de doces, o pequeno supermercado independente, o
escritrio de advocacia no segundo andar. Floral Park foi fundada em 1874 por um comerciante
atacadista de sementes de flores, que deu a todas as ruas nomes de flores. Em 1908, tornou-se uma
diviso administrativa autnoma, ocasio esta que foi comemorada com a inaugurao de uma
biblioteca com um campanrio branco no final da avenida e jardins centenrios no seu outro extremo.
Todo ano, o gramado na frente do Memorial Park recebia uma rvore de Natal. Uma multido sempre
aparecia para ver o acender das luzes e seguia depois para a Igreja catlica ao lado, onde era
servido chocolate quente. D para imaginar uma rvore de Natal na rua principal de Bayside,
Queens? Com chocolate quente? Nunca!
Para Lynda, Floral Park era um paraso, uma pequena cidade cheia de rvores no estilo Norman
Rockewell,[10] que ficava a apenas um passo da baguna dispersa do subrbio de Queens. Certo,
era preciso dirigir quase cinquenta quilmetros em qualquer direo para conseguir sair da teia sem
fim da cidade de Nova York. Mas, ali, dentro do labirinto de ruas e prdios altos, havia um pequeno
pedao do estilo de vida do Meio-Oeste americano. Um lugar com festas de bairro, gramados verdes,

crianas andando de bicicleta e adultos comendo cachorro-quente ao som da estao Light fm no


rdio. Um lugar onde ela podia pendurar um belo arranjo de flores na entrada de sua enfeitada casa
vitoriana, onde podia cuidar dos narcisos roxos e das suzanas-dos-olhos-negros nos bem cuidados
canteiros de flores. No final do Floral Boulevard ficava um prdio escolar grandioso, que existia
desde a primeira dcada do sculo xx. No outro extremo do bairro, atrs de uma faixa estreita de
rvores e de um santurio de pssaros um santurio de pssaros! ficava a pista de corrida onde
acontece uma das trs maiores corridas de cavalo do mundo, a Belmont Stakes. Nos finais de semana
do vero, o eco da voz do narrador das corridas fazia um murmrio agradvel por trs dos barulhos
de cortadores de grama e de bolas de basquete.
Na esquina do Chestnut Boulevard e do Floral Boulevard, a um quarteiro da casa de Lynda,
ficava a estao Bellerose da ferrovia de Long Island. Ficava a apenas quinze minutos da estao
Grand Central, mas Lynda nunca ia City. Talvez uma vez por ano, se houvesse algum espetculo na
Broadway que ela quisesse ver. Como para a maioria das pessoas de Floral Park, sua vida no se
orientava por Manhattan. A maior parte dos seus amigos at sua melhor amiga, que tinha dois anos
de idade quando empurrou a pequena Lynda num carrinho de beb em Bayside morava agora em
Floral Park. Foram criados nos subrbios de Queens e depois migraram alguns quilmetros para o
leste, em direo a ruas mais quietas e mais residenciais. Naquele bairro, recriaram entre eles o que
a famlia de Lynda fora em Bayside: uma comunidade de apoio e amor. Ela no mudou para longe.
Ao menos, no geograficamente. O crculo de quinze quilmetros de vizinhana onde Queens
encontra Long Island era, afinal, o mundo de Lynda. Ela ficou maravilhada ao encontrar seu pequeno
pedao do estilo de vida do Meio-Oeste bem no meio disso.
Jennifer... bem, nem tanto. Ela tinha 23 anos, ainda morava com a me na casa onde cresceu, e
foi intransigente quanto a sair do seu antigo bairro. Ela se recusou a empacotar suas coisas, sequer
uma escova de dentes; acabou que Lynda precisou pagar os encarregados da mudana para
arrumarem as coisas da sua filha.
Chloe e Biscoito foram ainda piores. Principalmente Biscoito, que era mestre em comunicao.
Seu sistema de sinais inclua empurrar, sentar no p, provocar tropeos e parecia ter um miado
diferente para cada ocasio. Ela tinha um miado que queria dizer que estava incomodada. Um miado
que queria dizer que estava feliz. Um miado que dizia Me deixe em paz. Um miado que significava
Vem aqui. Um miado para Me d um pouco, por favor. Um miado mais forte que significava Eu
quero, sem o por favor. E tinha um miado que era, Eu quero, eu quero, eu quero para pedir brcolis
raab. E tambm um miado agudo para quando realmente queria a ateno de Lynda, que soava
exatamente como um me. Lynda no se iludia pensando que sua gata a estava chamando de me. Ela
devia estar imaginando coisas. Mas quando seus amigos ouviam Biscoito clamando por ateno,
ficavam de queixo cado.
Ela disse me?, todos perguntavam.
, parece que sim, no ?, dizia Lynda, corada de orgulho.
Mas no dessa vez. Dessa vez, enquanto Lynda empacotava as coisas para a mudana, os

miados de Biscoito no significavam pedidos, perguntas ou beijinhos na me. Dessa vez, ela
estava berrando com Lynda.
Quando o dia da mudana chegou, Biscoito parou de miar e desapareceu. Ela no tinha nenhuma
inteno, nenhuma mesmo, de sair daquela casa. Lynda lutou durante horas para conseguir enfiar os
gatos no carregador. Biscoito, frustrada, ficou batendo com a cabea e esfregando seu rosto na grade
do carregador. Quando chegaram a Floral Park, depois de apenas vinte minutos, o nariz dela estava
ferido e coberto de sangue. Lynda mal podia olhar para ela. Sentia-se muito culpada.
Quando Lynda abriu a grade do carregador, Biscoito e Chloe nem pararam para falar com ela.
Foram correndo para o segundo andar e se esconderam embaixo da cama de hspedes. Jennifer
melhorou logo. Depois de dois dias, ela fez novos amigos e j se sentia em casa em Floral Park.
Biscoito e Chloe levaram bem mais tempo. Exceto por necessidades fisiolgicas, elas se recusavam
a sair de baixo da cama. Quando Lynda tentava convenc-las a sair, Chloe voltava para um canto e
Biscoito dava uns passos para a frente para reclamar. E assim foi, durante trs meses.
Depois, tudo foi perdoado. As reclamaes pararam alguns dias depois de Biscoito sair de
baixo da cama? Ou foram meses depois? Um ano depois? Eu sei que levou tempo para Biscoito se
acostumar, mesmo quando parou de protestar, mas ser que importa quanto tempo levou? No final,
Biscoito amava a casa nova tanto quanto Lynda. Ela gostava tanto que no conseguia definir qual era
o seu lugar preferido. Durante algumas semanas, foi o banco acolchoado. Ela ficava em cima dele
todas as noites enquanto Lynda via televiso. Depois foi a cadeira de balano, o que durou umas seis
semanas. Depois foi o topo do sof, depois uma cadeira da sala de jantar, depois um canto atrs de
um mvel, depois sua pequena cama de gato em cima da escada. Lynda costurava e Biscoito tinha
vrios lugares no novo quarto de costura. Durante um vero, ela se apaixonou pela prateleira de
baixo de uma estante. Lynda colocava um monte de colchas na estante, colchas que ela fazia para
presentear os amigos e parentes. Claro que ela tambm fez uma para Biscoito, com desenhos de
flores no meio, alternando com gatos e cachorrinhos nas bordas. Biscoito deitava em todas as
colchas, mas nunca em cima da sua colcha. Por que estragar sua colcha especial se, afinal, ela podia
encher de pelos as coisas em que todo mundo tambm sentava?
Aos poucos as estaes mudavam. As folhas na Floral Avenue explodiam em tons verdes,
depois em dourado e vermelho, at serem levadas pelo vento do inverno. Os cavalos corriam em
Belmont; o trem com passageiros ia e voltava da cidade. Jennifer passava a maior parte do tempo
com os amigos e namorados, at que se mudou para uma casa a uns cinco quilmetros dali. Quando
era mais jovem, Lynda pensava em se casar novamente. Ela teve companheiros, mas nenhum de seus
relacionamentos acabou como queria. Ela gostava do romance, claro, mas nunca encontrou algum
com quem quisesse dividir a sua vida.
Se aparecesse um homem agora, Lynda me disse, eu provavelmente diria a ele: no quero,
obrigada.
Mulheres jovens (e homens) podem ser cticos quanto a esse tipo de declarao como pode
uma mulher solteira no querer um homem? , mas eu entendo perfeitamente. Eu senti o mesmo

durante dcadas da minha vida; apenas colocava de modo diferente. S quero um homem, eu
sempre dizia, se puder pendur-lo no armrio, como uma roupa que eu s uso quando quero sair
para danar. Quero o romance. Quero a diverso e quero danar. Mas no me faa ter que limpar
todos os dias, pelo resto da minha vida, os pelos de barba de algum homem da pia do banheiro. Sou
perfeitamente feliz do jeito que sou e agradeo.
Ento, eu entendo exatamente o contentamento de Lynda, porque eu mesma experimentei isso. E
por que ela no seria feliz? Ela era confiante. Tinha uma filha tima. Era realizada. Tinha amigos,
famlia e o companheirismo de Biscoito, que, ao longo de anos de devoo, sabia tudo que havia
para saber sobre a dona e amiga. Quando Lynda se sentia sozinha, Biscoito brincava com o seu nariz,
dava beijinhos na sua boca ou sentava no seu colo. Quando Lynda estava feliz, elas danavam pela
casa. Quando ela queria ficar sozinha (raramente), Biscoito dava espao. Quando estava costurando,
Biscoito sentava quietinha ao seu lado, em vez de ficar brincando com os fios (o que era normal).
No eram apenas os seus humores, Biscoito entendia como Lynda se sentia. Quando Lynda no estava
bem, Biscoito se deitava sobre a parte do corpo de Lynda que doa. Se fosse um vrus no estmago,
ela sentava na barriga de Lynda. Se fosse uma dor no joelho, ela deitava no joelho. Quando entrou
nos quarenta, Lynda comeou a sofrer de estenose do canal espinhal na coluna lombar, devido a uma
degenerao vertebral. Quando a dor obrigava Lynda a se deitar, Biscoito engatinhava
cuidadosamente sobre suas costas e se esticava sobre o ponto que doa, fazendo como que uma
compressa quente para as fortes dores.
Mesmo quando o problema era insnia, Biscoito reagia. Ela percebia o desconforto de Lynda
com o silncio noturno de Floral Park algo com que no era fcil se acostumar aps quarenta anos
morando numa cidade barulhenta antes de a prpria Lynda perceber. Toda vez que Lynda se mexia
na cama, Biscoito pulava do seu travesseiro para ficar de guarda. Se uma bobagem como uma mosca
vinha zunir na janela, Biscoito se levantava atenta, com as orelhas em p para trs.
Volte a dormir, Biscoito, dizia Lynda com um carinho. Biscoito ficava olhando na direo do
inimigo geralmente para a janela , depois dava uma volta no travesseiro, se enroscava como uma
bola e dormia instantaneamente. Lynda ficava acordada pensando como pode essa gatinha me amar
tanto?
Infelizmente, enquanto seu desconforto com o silncio diminua, a dor nas costas piorava. Lynda
dedicou-se aos exerccios e a sua dieta. Tentou trabalhar menos, mesmo adorando seu trabalho.
Visitou mdicos, procurando tratamentos, mas suas costas continuavam a piorar. Quando ela sentia
dor, Biscoito fazia tudo o que podia para confort-la. Fazia carinho na sua mo, beijava seu nariz e
ficava em cima das costas de Lynda o tempo que fosse preciso. Aqueles quatro quilos sobre sua
coluna, to quentinhos e macios, eram como uma compressa de gua quente para seus nervos
machucados, mas isso no impedia que seus ossos fossem lentamente se deteriorando. At o mdico
lhe dizer que, se ela no fizesse uma cirurgia, poderia estar em uma cadeira de rodas em um ano.
Uma cadeira de rodas! Ela s tinha 47 anos.
Foi uma poca difcil, mesmo que Lynda tentasse no demonstrar isso. Ela manteve sua rotina

normal, divertindo os amigos, visitando a famlia e indo semanalmente ao seu clube de costura. Dava
apoio a Jennifer quando ela precisava. E trabalhou em perodo integral no buf at o dia anterior
cirurgia. Mas, de noite, ficava acordada e preocupada, mesmo com Biscoito ao seu lado atenta a
qualquer pequeno movimento e roando de leve a sua lateral, como se dissesse: Est tudo bem,
mame, est tudo bem.
Mas, um dia, sem prestar muita ateno, ela estava fazendo carinho em Biscoito e pensando na
sua cirurgia, quando um monte de pelos saiu na sua mo. Lynda olhou para baixo um pouco confusa.
Virou o corpo de Biscoito e a pele da gata estava manchada, inflamada, e ela estava praticamente
sem pelos na barriga e na regio interna das patas de trs. Ah, no, Biscoito, disse, ah, no.
Biscoito tinha quatorze anos e no tinha muito tempo, Lynda teve de admitir que a audio da gata
estava piorando. Agora, a pobre gata tinha desenvolvido uma doena de pele.
Alarmada, Lynda foi correndo com Biscoito ao veterinrio. Eles fizeram uma bateria de testes,
mas no acharam nada de errado. Finalmente, o veterinrio retirou o seu estetoscpio e olhou para
Lynda.
Voc est bem?, ele disse.
Eu estou bem, ela respondeu.
Voc est doente?
No, mas estou com um problema nas costas. Vou fazer uma cirurgia sria daqui a poucos
dias.
O mdico sacudiu a cabea. H quanto tempo voc sabe disso?
Seis meses.
O mdico guardou seu equipamento. No um problema fsico, ele disse. psicolgico.
Biscoito est to preocupada com voc que est arrancando os prprios pelos para aliviar o
estresse.
Lynda olhou para a gatinha, para a sua carinha doce, sua barriga sarnenta e suas pernas sem
pelos, e comeou a chorar. Biscoito tinha sado como uma gatinha machucada da gaiola. Ela viu
dzias de pessoas passarem por ela todos os dias. De todas essas pessoas, Biscoito escolheu Lynda.
Num instante, Biscoito decidira dedicar sua vida a ela. Lynda nunca entendeu o motivo. O que ela
havia feito para ganhar sua confiana? O que havia feito para merecer esse amor to extraordinrio e
genuno?
A cirurgia acabou em algumas horas, mas a recuperao foi longa e lenta. Biscoito se recusava
a sair da cama de Lynda. Nem por um momento. Uma noite, mais ou menos uma semana depois da
cirurgia, Lynda ficou muito doente. A casa comeou a girar vertiginosamente ao seu redor e ela sentiu
que estava morrendo. Com muito medo, gritou pela ajuda da filha. Biscoito olhava para Lynda,
depois olhava para Jennifer, depois olhava para Lynda. Ela emitiu um novo miado urgente e
inseguro. Em vez de ligar para o hospital, Jennifer ligou para os avs, que vieram correndo. Mas,
assim que a me de Lynda se aproximou da cama, Biscoito pulou e gritou para ela. A me de Lynda
se sentou na cama; Biscoito rosnou e brigou at ela sair com medo de ganhar uma mordida. Biscoito

ficou onde estava a me de Lynda e brigou e rosnou mais. Sua amada Lynda estava com problemas.
Ningum podia se aproximar dela, decidiu a gata, ningum alm de sua filha e ela prpria.
Foi apenas um caso srio de vertigem, provocado pela manipulao da coluna de Lynda durante
a cirurgia, mas que mudou a relao de Lynda e Biscoito para sempre. Suponho que mudou no
uma boa palavra, porque eu no acho que a atitude de Biscoito tenha mudado muito. Revelou-se
talvez seja uma palavra melhor, porque pela primeira vez Lynda compreendeu a profundidade do
amor de Biscoito. Sim, Biscoito sabia tudo dela e fazia tudo que podia para deix-la feliz. Sim,
Biscoito literalmente ficou doente de tanto se preocupar com a sade da amiga. Mas, naquela noite,
Lynda viu o sacrifcio. Ela viu que, para proteg-la, Biscoito no se preocupava consigo mesma. Ela
sofreria qualquer dano para defender sua amiga.
Depois daquela noite, o amor de Biscoito tornou-se insacivel. Quando Lynda estava na cama,
ela se deitava ao seu lado; quando Lynda se sentava, Biscoito permanecia ao seu lado; quando Lynda
finalmente conseguiu ficar de p, a gata passou a andar ao seu lado. Como parte da recuperao,
Lynda ficava em uma cadeira ortopdica, que era alta e estreita como uma cadeira de beb. Biscoito
aprendeu a subir atrs do sof, e dali a pular na cadeira e depois no colo de Lynda, onde ficava o dia
inteiro. Relutante, Lynda pedia me ou filha para tirarem Biscoito quando o peso ficava demais
para a sua coluna que ainda estava se recuperando.
Mesmo depois que Lynda melhorou, Biscoito no relaxou. Lynda mal podia ler um livro porque
sua gata teimava em deitar sobre ele. Ela no podia abrir uma porta sem que Biscoito corresse na sua
frente e tentasse impedi-la de sair. Biscoito nunca gostou de televiso. Quando Lynda via televiso
antes, Biscoito entrava e saa do quarto, sentava um pouco, depois se levantava, agitada. Agora ela
ficava sentada no sof com Lynda e via televiso. Se Lynda queria se deitar, ela tinha que dar espao
para Biscoito poder se esticar em cima de sua cabea. Exatamente s dez horas da noite, Biscoito
saa do sof, ficava na frente da televiso e miava.
Na primeira noite, Lynda ficou chocada. Biscoito, disse, qual o problema?
Biscoito saiu da sala. Pensando que algo estava errado, Lynda a seguiu. Biscoito foi direto para
a cama. Lynda olhou por toda parte, mas no percebeu nada de errado. At que voltou para a sala.
Biscoito voltou gritando e levou Lynda de volta para a cama. Demorou um tempo at Lynda perceber
que no havia nada de errado. Biscoito havia simplesmente decidido que estava na hora de dormir.
Daquela noite em diante, a no ser que houvesse algo especial, dez horas era a hora de dormir na
casa dos Caira. Biscoito insistia nisso.
No que dormisse muito. Biscoito era uma pilha de nervos na cama, ficava pulando em cima de
Lynda, brincando com os seus ps, andando ao redor do travesseiro. Ela esfregava o nariz nos lbios
de Lynda, nas suas bochechas, no seu nariz, em qualquer lugar do rosto que pudesse alcanar. Quando
Lynda apagava a luz e fechava os olhos, Biscoito esperava um minuto e depois colocava sua patinha
sobre o rosto de Lynda. Se Lynda no reagisse, Biscoito vinha e empurrava sua plpebra com a pata.
Querida, estou viva, Lynda dizia suavemente, fechando os olhos.
Alguns minutos depois, Biscoito esfregava a pata sobre o rosto de Lynda novamente. Isso

comeou na noite da vertigem, depois acontecia toda noite. E no parou. Muito depois de Lynda j
estar bem, Biscoito continuava acordando-a todas as noites para verificar se estava viva. Lynda no
se incomodava. Ao contrrio, ficava comovida. Mas Biscoito... a vida inteira de Biscoito definia-se
por sua devoo a Lynda. Era uma experincia de humildade e de ternura ser amada daquele modo.
Mesmo que fosse apenas o amor de um gato.
Mas enquanto Biscoito se preocupava com a iminncia de morte de Lynda, Lynda estava
absolutamente convencida de que Biscoito viveria para sempre. Biscoito perdera a audio um
teste confirmou isso , mas, por outro lado, estava saudvel e bonita como sempre quando chegou
aos dezoito anos. Estava um pouco mais lenta, mas, bem, isso era natural. Afinal, um relgio podia
bater para sempre sem nunca parar.
Ento Lynda leu Dewey. Jennifer lhe deu o livro de Natal e (surpresa!) Biscoito at deu espao
suficiente para que ela pudesse ler. Conforme ia lendo os ltimos captulos, foi ficando mais e mais
chateada, at ficar, como disse em sua carta para mim, nada menos que histrica. Todos os sinais
de idade que Dewey demonstrou no seu ltimo ano de vida estavam acontecendo com Biscoito.
Como Dewey, Biscoito ficou com hipertireoidismo. E, como Dewey, ela no era muito boa com
a coisa de tomar comprimidos. Lynda pensava que ela tinha realmente engolido os remdios, mas
depois os encontrava atrs dos mveis. Ficou com crostas no pelo que quase no saam, porque as
farpas na sua lngua estavam gastas e ela j no podia se limpar to bem. Como Dewey, de repente
Biscoito comeou a se interessar por carnes frias, provavelmente porque tinham muito sal. Lynda
comprava duzentos gramas de peito de peru por vez. Quando a gata se cansava de peito de peru,
Lynda mudava para frango, sem se importar se ainda havia peito de peru sobrando. A Biscoito parou
de comer carnes frias. No queria mais aquela ave velha. Ento Lynda tentou um frango assado de
padaria, que tinha acabado de ser feito. Biscoito gostou. Ento Lynda dividia um frango assado com
Biscoito toda semana.
Jennifer pensou que sua me estava estragando a gata, mas Lynda discordava. Dewey partiu seu
corao. Ela chorou todas as noites em que leu os ltimos captulos sobre a velhice e a morte de
Dewey, no s pensando no meu precioso gato da biblioteca, mas tambm na sua preciosa Biscoito.
Ela viu o futuro e entendeu que o fim estava prximo. Biscoito estava mais lenta. Andava com
dificuldade e no se alimentava direito. Depois de dezenove anos de amor extraordinrio de
Biscoito, no havia nada que Lynda no fizesse pela gata.
Naquele ms de fevereiro, Biscoito ficou com problemas nos rins e na bexiga. O veterinrio
tirou um raio X e fez endoscopias, sem economizar em nada porque Lynda no queria que fosse de
outro modo, mas a situao de Biscoito no melhorou. Em abril, o veterinrio interrompeu o
tratamento. Tambm retirou o medicamento para hipertireoidismo, que estava provocando irritaes
na pele das orelhas e da barriga.
Ela no precisa desse incmodo, disse o mdico.
Ele estava dizendo para Lynda se desapegar, que deixasse Biscoito em paz, mas Lynda no
conseguia aceitar totalmente o fato de Biscoito estar morrendo. A pequena gata ainda a seguia bem

pertinho a toda parte, querendo amar e ser amada. Ela ainda esperava, todas as noites, no banco
acolchoado na porta da frente, Lynda chegar do trabalho. Todas as manhs, quando saa para
trabalhar, Biscoito a fitava com olhos pides, como uma criana pequena, como se dissesse: Como
voc pode me deixar, mame?
Em julho de 2009, comemoraram os dezenove anos de vida de Biscoito. Lynda disse que
gostaria de celebrar os vinte anos da gata no ano seguinte, mas nem ela mesma acreditava mais nisso.
Biscoito nunca foi grande, pesava quatro quilos e meio quando adulta e saudvel. Agora, pesava
menos de trs quilos. Passava a maior parte do dia debaixo da mesa da cozinha. Lynda trouxe sua
comida e gua para a cozinha, e seu banheiro para o quarto ao lado. Ela no tinha mais controle da
bexiga, mas, mesmo no estado delicado em que se encontrava, Biscoito se segurava e ia at o objeto
mais prximo para se aliviar, uma sacola de supermercado, um par de sapatos, at mesmo a bolsa de
mo de Jennifer. Por mais doente que estivesse, Biscoito nunca iria fazer baguna no cho.
A me de Lynda estava convencida que Biscoito se mantinha viva s por no suportar a ideia de
deixar sua amiga sozinha. Em seu corao Lynda sabia que isso podia ser verdade, que a pequena
gata a amava tanto assim, mas ela queria acreditar que Biscoito ainda gostava de viver, que sua
existncia no era uma luta pela sobrevivncia. Ela tocava na gata, fazia carinhos. Preparava
brcolis raab, trazia frango assado da padaria e conversava com ela num tom suave, amoroso e
gentil. Quando Biscoito no conseguia mais subir as escadas, Lynda a levava para a cama e a
colocava no travesseiro que foi seu lugar especial por tanto tempo. Todas as noites durante dezenove
anos, Biscoito dormiu naquele travesseiro. Na terceira noite em que levou Biscoito para a cama,
Lynda percebeu que, assim que ela dormia, Biscoito se esforava para descer as escadas e ir para o
cho da cozinha. Na quarta noite, ela deixou Biscoito embaixo da mesa.
Descanse aqui, minha pequena amiga, Lynda disse. No precisa se preocupar comigo.
Biscoito no voltou mais para a cama. Alguns dias depois, enquanto Lynda estava trabalhando,
Jennifer ligou aos prantos. Ela encontrara Biscoito no cho da cozinha, numa pequena poa com seus
prprios dejetos. Quando Lynda chegou em casa, Biscoito estava limpa, mas seu corpo estava sem
energia, com um olhar vazio e sem profundidade alguma. Ela levantou a cabea para olhar para
Lynda, sua companheira de vida. Talvez tenha at sorrido um pouco, fraquinha, antes de deixar a
cabea cair no cho.
Lynda a segurou nos braos e, do modo mais terno possvel, aconchegou Biscoito no carro. Vai
ficar tudo bem, falou baixinho, enquanto sua mente corria e suas mos tremiam no volante. Ns
vamos pegar algum remdio e voc vai ficar bem. Ela continuou falando, reconfortando Biscoito,
mesmo que sua voz comeasse a falhar, com lgrimas escorrendo por seu rosto. Ela sabia que era o
fim e rezava para que fosse sem dor e natural. Rezava para que, no importa o que acontecesse, ela
estivesse l para Biscoito. Sua ltima obrigao, o mnimo que ela poderia oferecer em troca por
uma vida de dedicao, era fazer com que esses ltimos momentos fossem os mais confortveis para
sua preciosa pequena garota.
E assim foi. Chegou com segurana ao veterinrio, mesmo que mal conseguisse enxergar atravs

das lgrimas, e segurou Biscoito nas mos, com leveza e amor, at seu ltimo suspiro. Ela a segurou
at a gatinha olhar para cima uma ltima vez como se dissesse Eu te amo, desculpa, antes de se
dobrar e Lynda sentir, com sua alma, tanto quanto com as pontas dos dedos, a ltima batida de seu
corao.
Eu nunca fui amada por ningum, Lynda escreveu na carta que me mandou, nem pela minha
filha nem pelos meus pais, tanto quanto fui amada pela minha Biscoito.
Apesar de a carta ser breve, dava para ver que Lynda no era solitria. Sua vida estava cheia de
amor e alegria. Eu quis incluir uma histria como essa uma histria comum , porque a maioria das
cartas que recebi era de pessoas comuns como Lynda. Por que ela?, os leitores podem se perguntar.
Por causa de uma frase linda, que celebrava o amor extraordinrio dessa gatinha sem um pingo de
desespero:
Eu nunca fui amada por ningum, nem pela minha filha nem pelos meus pais, tanto quanto fui
amada pela minha Biscoito.
Eu sei que isso parece estranho, Lynda me disse, embora depois de minha vida com Dewey
isso no me soasse nada estranho. Parece quase triste, eu sei. Mas a mais absoluta verdade. Por
mais que minha filha me ame, por mais que meus pais me amem, por mais que outras pessoas tenham
me amado, eu nunca senti... Eu nunca senti o que aquela gata sentia por mim.
E era um amor retribudo. No estou dizendo que Lynda amava sua gata mais do que as outras
pessoas neste livro, porque o amor se manifesta de inmeras maneiras, mas ela foi a nica que disse:
Obrigada, Vicki, por fazer isso pela Biscoito. Ela era uma gata to boa. Ela merece ter sua histria
contada. Ela foi a nica que, em outras palavras, explicitamente colocou sua gata na frente de si
mesma e eu a admiro por isso.
Era uma gatinha normal, admitia Lynda. Cinza e branca, listrada, uma gata como qualquer
outra. No fazia coisas extraordinrias. No era nenhuma herona. No d nem para dizer que salvou
algum de algum desastre.
Nem mesmo Lynda. Biscoito, afinal, no salvou Lynda Caira de sua doena... tampouco de sua
solido ocasional. Esta no uma histria de redeno. No uma histria de necessidade. Lynda
Caira foi e provavelmente sempre ser feliz. Esta apenas uma histria sobre ser escolhida e ser
amada to intensamente por algum que isso muda a sua vida.
Dewey. Biscoito. Todos os outros gatos que nos emocionam e mudam as nossas vidas. Como
podemos agradec-los? Como podemos explicar?
Depois da morte de Biscoito, Lynda escreveu uma homenagem a sua preciosa gatinha.
Terminava assim: No h nada mais a dizer a vida continua, mesmo que eu v sentir saudades dela
todos os dias! Jennifer vai se casar, eu terei netinhos maravilhosos e eu amarei e perderei outros
animais. Mas uma coisa certa: nunca haver outra gata que ser a minha melhor amiga, nunca
haver outro animal capaz de trazer a alegria que Biscoito trouxe para a minha vida.
Amm.

7
Marshmallow

Ele era um gato duro. Para um gato que nasceu to raqutico e fraco, acabou se tornando um
homem bem forte. Ele lembra um pouco o Grizzly Adams sua aparncia assusta, mas seu corao
enorme. Marshmallow raramente deixava transparecer quem ele realmente era.
S para voc, n?
Sim, s para mim.

Eu conheo Kristie Graham desde que ela nasceu. Estava ao seu lado quando fez sua primeira
comunho. Eu fui sua formatura no final do colgio. Eu fiz arranjos de flores para o seu casamento.
Eu at troquei suas fraldas. Quando era pequena, claro, quando era apenas uma doce bebezinha.
Quando eu tinha trinta e poucos anos e comecei a faculdade em Minnesota depois de passar por um
casamento ruim com um alcolatra que estraalhou a minha vida pessoal e financeira , a me de
Kristie, Trudy, foi uma das primeiras amigas que fiz. Enquanto eu assistia s aulas, ela tomava conta
da minha filha, Jodi. Quando eu no estava trabalhando, passvamos horas a fio juntas, bebendo caf,
enquanto nossas filhas brincavam. Ao menos disso que Kristie se lembra, de sua me e eu bebendo
litros de caf. Na poca, ela s tinha uns quatro ou cinco anos, e por isso suas lembranas so bem
aleatrias. Ela lembra que a minha mquina de lavar roupa no batia e ento eu tinha que mexer a
roupa com uma enorme colher de pau (talvez isso tenha acontecido uma vez, durante uma semana).
Ela lembra que o meu carro enferrujado nunca pegava (s s vezes); que eu ca em prantos quando
Elvis morreu (no verdade, foi a me dela que chorou); e que eu era, nas suas palavras, uma
mulher muito, muito, muito trabalhadora. (E com isso preciso concordar. Eu tinha que trabalhar!)
Eu lembro apenas de uma menina maravilhosa. Kellie, a filha mais velha de Trudy, tinha a idade
de Jodi. Era uma criana linda e extrovertida. Kristie, trs anos mais nova, era to linda e
extrovertida quanto a irm, mas nunca achou que podia se comparar a ela mesmo que depois tenha
sido coroada a rainha do baile na escola. Mas aos trs anos a histria era outra. Kristie era a garota
cheia de meleca do nosso pequeno clube do caf. Literalmente. Aquela menina sempre tinha coisas
dentro do nariz. Se a vestssemos com um vestido branco para ir tirar foto na Sears, ela saa do carro
coberta de manchas escuras. Por mais limpo que estivesse o carro, ela sempre conseguia estragar o

vestido. E isso no inveno minha. Essa foto de fato aconteceu. A prpria Kristie confessa (com
algum orgulho, creio) que naquela poca estava sempre suja de alguma meleca pegajosa. Talvez
por isso eu a tenha apelidado de Kristie Chiqueiro. Eu amava aquela menina. Chiqueiro era o meu
jeito carinhoso de cham-la.
Mas o que mais lembro da Kristie Chiqueiro no era a sua cara suja ou os seus vestidos
amassados. Era como a gente se divertia. Ela e Kellie eram as crianas mais risonhas, mais bobas e
mais brincalhonas que eu j conheci. Lembro de Kristie e outras crianas tentando convencer Susan
(ou melhor, forando), a filha de outra amiga, a escorregar pelo tubo de roupa suja. Ainda bem que
havia uma pilha de roupas embaixo, porque a queda era de uns quatro metros. Lembro de ficar
tomando conta de umas doze meninas pr-adolescentes em noites festivas, quando todas iam dormir
juntas, e que eu sempre tinha de entrar no quarto s duas da manh para mand-las calar a boca.
Lembro da vez em que caiu uma tempestade de neve muito forte, ficamos presas dentro de casa e eu
convenci Kristie, Kellie e Jodi a danar fazendo mmicas de baladas de rock dos anos 1970. Depois
Trudy e eu nos fantasiamos e cantamos hits de bandas femininas dos anos 1950. Anos depois, a
gente ainda dava risadas ao relembrar o final de semana da tempestade e de como sempre
arrumvamos um jeito de nos divertir, mesmo em circunstncias difceis.
Eu tambm lembro do gato da Kristie, Marshmallow. Ele era enorme, peludo e tinha uma cor
branca meio amarelada que parecia, mesmo, marshmallow. No que eu o visse muito. Em geral, ele
fugia e s dava para ver um pedao de seu rabo fujo. Eu gostava dele, mas no sei se Marshmallow
teria sido especial para mim se no fosse por uma coisa: ele era muito especial para Kristie. Se j
houve uma criana que amasse um gato, essa criana era Kristie Graham. Ela amava o seu
Marshmallow. Falava nele o tempo todo.
Portanto, quando pensava em histrias para este livro, lembrei de Marshmallow. Pensei como
Kristie amava esse gato, como ele era parte da sua vida, como isso era importante para ela e como
ele retribua esse amor. A relao de Kristie e Marshmallow a mais prxima que j conheci
daquela que havia entre Dewey e eu. Claro, isso parte do legado de Dewey: a oportunidade de
contar histrias sobre outros gatos e outras garotas especiais. Poder mostrar ao mundo inteiro que
esse tipo de relao maravilhosa acontece em toda parte, o tempo inteiro, e que tranquilo na
verdade, perfeitamente normal ter um gato como melhor amigo.
Eu tambm sabia que Kristie contava histrias engraadas. Esperava que suas histrias me
fizessem rir. E assim foi. O que eu no esperava era que isso me tocasse de modo to profundo. Eu
sabia que a vida de Kristie no havia sido perfeita. Ela passou por momentos bem, bem difceis. E
quem no passa? A vida assim. como Kristie me disse: Foi um percurso incrvel. Hoje no
estaria onde estou se no tivesse passado por tudo isso; por isso, claro, acredito que fui
abenoada. Eu tambm acho. Para mim uma bno ter conhecido Kristie. Amo Kristie, Kellie e a
me delas do fundo do corao. A presena delas fez a minha vida ser bem melhor, mesmo que a
minha mquina de lavar roupas no funcionasse e que o meu carro vivesse quebrado. Apesar disso, a
histria de Kristie me surpreendeu. Eu esperava que ela fosse esperta, mas no que fosse sbia. Quer

dizer, a garota s tem 35 anos. O que estar ela armando?


Por isso, Kristie, deixe-me sair de cena ao menos uma vez, e conte a sua histria com suas
prprias palavras. Quantas histrias j foram contadas neste livro? Seis? Sete? Est mesmo na hora
do intervalo do caf.
Eu fui abenoada. isso que sempre digo. Eu sou to abenoada que, na verdade, todos os
anos, fao uma lista de todas as minhas graas no carto de Natal. assim:
Sou abenoada porque todos os meus filhos gostam de McDonalds, queijo, cachorro-quente e
pizza congelada.
Sou abenoada porque os dois meninos pensam, falam e agem feito valentes, mas ainda
dormem com o bicho de pelcia preferido.
Sou abenoada porque todos os dias recebo quatro ofertas de cartes de crdito pelo correio.
Algumas pessoas chamam isso de lixo, eu prefiro chamar de envelopes gratuitos.
Sou abenoada porque meus filhos vivem perigosamente e topam qualquer desafio, desde que
no seja para fazer algo errado. Como beber o molho especial da mame por cinco dlares. Calda
de chocolate, ketchup, mostarda e suco de picles.
Sou abenoada porque quando a Reagan acorda, ela grita Lucas, D.J., acordei, venham me
pegar, e eu posso dormir mais cinco minutos.
Sou abenoada porque meus filhos adoram minhocas e insetos, como eu. Sou abenoada porque
eles comem tomates e feijo colhidos diretos do jardim, tiram da terra brotos de cenoura e mordem
pimentas, como eu tambm fazia. Sou abenoada por Sioux City ser suficientemente fria no inverno
para se fazer barreiras de neve, e suficientemente quente no vero para se colocar uma piscina
temporria no quintal. Sou abenoada porque meus filhos esto sempre sujos de grama e detestam
usar sapatos, apesar de a minha filha ter ps de Fred Flintstone como o meu marido. (Me pergunto
como ela vai ficar de salto alto.)
Sou abenoada porque Lucas a criana mais gentil e compreensiva que j conheci. Sou
abenoada porque o meu menino do meio, D.J., to determinado que no apenas se recusou a usar o
seu nome verdadeiro (Dawson) como fez todo mundo concordar com isso. Ele se queixava: Por que
voc no me chamou de Bruce Wayne ou D.J. Cowboy?. Ele estava numa fase Batman/cowboy e
durante trs anos se vestiu de Batman ou de cowboy todos os dias. Eu no tinha problemas para
andar com Batman no carrinho do supermercado, mas tive que pedir sua professora do jardim de
infncia que lhe explicasse que cowboys no eram permitidos na escola. Minha filha de trs anos,
Reagan, , por sua vez, uma sereia. Ela usa cabelo laranja da loja de um dlar e sapatos de sapateado
trs nmeros maior que seu p comprados na Goodwill e chama o meu marido de Eric (seu nome
verdadeiro Steven), porque esse o nome do prncipe em A Pequena Sereia. Meu prncipe
chegou!, ela grita, sempre que ele chega em casa. Ento eles danam. Reagan nunca dana comigo.
Desculpe, mame, ela diz, voc a rsula. (rsula a bruxa do mar.) Ainda assim, sou
abenoada, porque ela oito anos mais nova do que D.J., e eu pensava que da prxima vez que

ouvisse passinhos de beb seria quando fosse av.


Sou abenoada por Steven, o homem dos meus sonhos. Estamos casados h treze anos, e ainda
sinto um friozinho na barriga quando estou me arrumando para um encontro. Sozinha. Com um rapaz.
Ui, ui, ui. E quando ele me leva para sair, me deixa pedir o de sempre: sanduche de queijo
grelhado e batatas fritas. Ele nunca tenta mudar nada em mim. Apenas ri e diz: Sair com voc sai
bem barato, meu bem. E eu digo: Sorte sua.
Sou abenoada porque tenho uma boa casa. Porque tenho um trabalho importante como
supervisora de 52 crianas de 16 a 24 anos de idade com dificuldades de aprendizagem. um
trabalho que me permite usar minha experincia para ajudar pessoas com quem me importo, cuja
coragem e calor me ajudam tambm. Sou abenoada porque quando minha cachorra Molly morreu,
aos dezessete anos, eu chorei tanto que pensei que nunca ia querer outro animal. Mas sou mentora de
alguns jovens que trabalham como voluntrios na Sociedade Protetora dos Animais Siouxland e eles
me apresentaram a outra cachorra, Princesa, que agora corre comigo todas as manhs.
Sou abenoada porque no ltimo outono corri na maratona de Sioux City e fiz do jeito certo.
Cheguei a ganhar peso de propsito para competir na categoria acima de 68 quilos, na qual tirei
terceiro lugar. O que foi incrvel! Mas no por isso que sou abenoada. Sou abenoada porque, a
cada trs quilmetros, o meu marido, a minha irm e o meu pai estavam l torcendo por mim e me
dando gua e estavam chorando, pois sentiam orgulho de mim, porque sabiam o quanto eu tinha
batalhado e o quanto eu havia conquistado.
De onde venho? Como cheguei aqui? No so perguntas que fao com frequncia. Sou
abenoada por Deus. Toda vez que vejo minha pequena de trs anos rezando, me lembro disso. Mas
foi um caminho rduo. Eu sempre soube disso, porque sempre batalhei por tudo. Foi s quando
comecei a pensar neste livro que me dei conta de que talvez Robert Frost tivesse razo. Talvez
existam mesmo dois caminhos que se bifurcam no bosque do outono das nossas vidas, e eu...
Eu casei com o meu gato.
E foi isso que fez toda a diferena.
Se voc espera uma explicao, e espero que sim, ento provavelmente precisaremos voltar ao
comeo, que neste caso o ano de 1984, quando eu era uma criana de nove anos muito moleca (com
orgulho!) vivendo em Worthington, Minnesota, uma bonita cidade pequena na beira de um lago. Eu
era meio menininho, acho que se pode dizer isso, porque eu adorava cuidar do jardim com o meu pai
e cavar a terra procura de minhocas e fazer corrida de besouros na palma da mo. Quando minha
me me disse que rabo de cavalo era bonito, eu cortei meu cabelo no meio da noite e o escondi na
caixa de joias. Eu amava acar e me infiltrava na dispensa e bebia toda a calda de chocolate
Hershey direto da lata. Depois eu andava por a com a cara toda suja de calda de chocolate, negando
o crime. Sabe, eu era uma criana. No me preocupava muito.
Mas, no vero de 1984, meu av adoeceu com cncer de clon. Ele era um homem grande de
uma cidade muito pequena, Whittemore, em Iowa, onde era dono de um frigorfico, e para mim ele
tinha uns trinta metros de altura. Era um homem sem rodeios que tinha mos enormes e marcadas de

cortar carne a vida inteira. Quando minha me, minha irm mais velha e eu nos mudamos para
Whittemore para cuidar dele, eu fiquei animada porque era como se fossem frias. E meu av era um
heri para mim. Ainda me lembro de ir de patins todos os dias at a lanchonete, cair na cadeira e
dizer O de sempre, por favor queijo grelhado com batatas fritas, claro e me sentir uma adulta.
Mas o cncer acabou com o vov to rapidamente que ele comeou a definhar diante dos meus olhos.
Mesmo criana, eu podia ver suas mos trmulas. Elas no podiam mais me segurar. Minha me era
determinada. Ela sempre dizia: Eu tenho ombros largos. Aguento qualquer coisa. Quando meu av
parou de lutar, eu vi o medo em minha me pela primeira vez.
Quando voltei para casa em Minnesota, duas semanas depois, descobri que meu gato morrera.
Eu havia deixado Puff com meu pai, mas, quando voltamos para casa depois do enterro, ele me
contou que Puff havia morrido. Olhei para ele e balancei a cabea. Depois fui para o meu quarto e
chorei. Eu tinha nove anos. O que mais podia fazer?
Alguns dias depois, outro gato apareceu na porta lateral da nossa casa. Ela era malhada e tinha
a mistura de cores mais louca que eu j vi. No era listrada nem tinha nenhum desenho, seu pelo era
uma combinao de retalhos inusitados que faziam com que ela parecesse vrias partes de gatos
diferentes costuradas juntas. No tinha orelhas, talvez tivessem congelado. Tinha um rabo minsculo.
Era feia, maltratada e, de todos os modos, indesejvel... ento bvio que eu comecei a dar comida
a ela. Dei leite, dei um nome e at restos de jantar que conseguia esconder nos bolsos. claro que
ela sempre voltava.
Kristie, meu pai afinal disse, depois de notar Bowser passeando perto da porta lateral, por
que voc est dando comida para essa gata?
Vov mandou esse gato pla mim, eu disse. Eu tinha um pequeno problema de fala quando era
criana, eu era toda losas velmelhas so folmosas naquela poca. Mas estufei o peito e expliquei:
Vov qu que eu fique com essa gatinha, papai.
Tpico de uma menina de nove anos, certo? Um pouco de manipulao paterna? Talvez, mas eu
acreditava que era verdade. E ainda acredito. Se h um vazio que algum deve preencher, mas no
preenche, Deus manda um animal. Bowser foi mandada para mim. E o vov tinha algo a ver com
isso.
Meu pai era muito parecido comigo. Ou talvez eu fosse muito parecida com ele, ao menos
quanto nossa natureza. Ele cresceu numa fazenda. Adorava ficar do lado de fora, adorava o jardim,
adorava os animais. Eu era a criana que segurava besouros com a mo e enfiava minhocas no nariz
para assustar a irm que adorava os Ursinhos Carinhosos. Minha me ficava do lado da minha irm;
ela no amava os bichos. Meu pai compreendia. Alm disso, ele devia se sentir um pouco culpado
por causa do Puff. Acho que ele no esperava que eu fosse aceitar to mal a morte do gato.
Seja l qual foi o motivo, foi bem fcil convencer meu pai a me deixar ficar com Bowser. Ele
colocou uma lmpada de calor na garagem para ela, porque o inverno em Minnesota era um frio
brutal (a lmpada de calor era o nico modo de evitar que ela congelasse, mesmo dentro da garagem)
e Bowser no podia, de modo algum, segundo as ordens de mame, entrar na casa. Depois de colocar

a lmpada de calor, papai colocou embaixo dela a velha cmoda em que ficavam suas ferramentas e
em cima da cmoda uma caixa de papelo e uma coberta. Algumas semanas depois, Bowser teve
filhotes, o que nos surpreendeu. Ela pariu do lado de fora, bem embaixo da janela do quarto. A
princpio, no se deve mexer em gatinhos recm-nascidos, mas meu pai decidiu tir-los do fosso da
janela e coloc-los dentro da caixa de papelo na garagem. Afinal, ns tnhamos um apartamento
para gatos, uma cobertura. Por que eles iam querer ficar na lama?
Marshmallow, confesso, no era o melhor gatinho da ninhada. Na verdade, ele era o pior. Era
raqutico e tmido. Seu cabelo era crespo como se tivesse feito uma daquelas permanentes feias que
se via na escola primria de cidade pequena onde eu estudei no outono de 1984. Ele era quase
branco. Quase, eu digo, porque infelizmente seu pelo tinha uma camada interna amarela que fazia
com que ele parecesse manchado. Pense numa cabra. Agora pense numa cabra flutuando sobre uma
bolha enorme de eletricidade esttica. Ou pense em um dente-de-leo com suas sementes brancas
esticando-se para fora, prontas para voar. Assim era Marshmallow.
Como parte do projeto residencial para gatos, meu pai colocou uma rampa que ia do mvel at
o cho. Bowser ficava no cho convencendo seus gatinhos a descerem, um de cada vez, como uma
mame pssaro ensina os filhotes a voar. Marshmallow era sempre o ltimo. Ele ficava l em cima,
com os olhos arregalados e tremendo de medo. A me miava. Seus irmos e irms se entediavam e
comeavam a brigar. Marshmallow ficava l em p, tremendo.
Vamos, Maushmallow, eu o incentivava. Cole pla baixo, s coler pla baixo, fcil.
Finalmente, ele dava um pequeno passo, da meio que caa e vinha escorregando em cmera
lenta pela tbua at o cho. T tudo bem, Maushmallow, eu dizia. Amanh voc cole.
Mas quando chegou a hora de doar os gatinhos, Marshmallow ainda no tinha desmamado e
ainda no tinha criado coragem para andar (ou coler). Ele ainda ia escorregando, em cmera lenta,
da gaveta ao cho. Por isso meus pais me deixaram ficar com ele. Acho que meus pais imaginavam
que, daquele jeito, ele no duraria muito.
No d leite para esse gato, meu pai disse, quando me viu sorrateiramente tirando o pacote de
leite da geladeira. Ele vai se acostumar e leite caro.
Ento, como uma me apaixonada pela cria, fiz uma mistura para substituir o leite: gua e
farinha. Parecia leite, mas Marshmallow cheirou uma vez e me olhou torto.
Qual o ploblema, Maushmallow? No gostou? Voc plecisa, pla fic folte, Maushmallow. Eu
pleciso de voc.
Ele nunca bebeu aquela farinha aguada, mas Marshmallow era forte. Quando a neve derreteu na
primavera, ele comeou a seguir a me pelo jardim. E eu os seguia. Em breve, estvamos
atravessando a rua para o acostamento perto do campo de golfe (na minha viso de criana, era uma
floresta), onde revirvamos folhas e pedras para ver o que havia embaixo. Olha essa minhoca,
Maushmallow, eu dizia, deixando a minhoca subir pelo meu brao. Olha essa pedla, e essa
bolboleta.
Naquele ano, eu finalmente tinha idade suficiente para andar at a escola sozinha. Marshmallow

me seguia at a esquina e depois me via desaparecer no final do quarteiro. Quando eu voltava, ele
estava sempre me esperando na esquina. Maushmallow!, eu gritava, correndo para alcan-lo. Eu
no me importava com quem me visse com o Marshmallow. Eu tinha orgulho dele. Quando minha
av, que vinha para longas visitas, me disse que o via andar at a esquina todos os dias exatamente
s duas e meia, eu fiquei ainda mais orgulhosa. Maushmallow me espela depois da escola, eu
contava aos meus amigos. Aposto que eles achavam isso bacana, mas no lembro direito.
No outono, eu juntei vrias folhas, formando uma pilha enorme, e enterrei Marshmallow dentro
delas. Ele vinha bisbilhotando atravs de um buraco, balanava o bumbum e ento pulava com os
braos abertos, como se fosse uma grande surpresa. Ou como se estivesse me caando. Marshmallow
era um timo caador. Eu vinha destrambelhada pela calada na bicicleta e quando eu passava pelo
pinheiro ele saltava das sombras sobre as rodas. Talvez o certo fosse eu desacelerar, pois ele podia
se machucar feio debaixo das rodas, mas eu s gritava: Cuidado, Maushmallow, a vou eu!, e
pedalava ainda mais rpido. A eu jogava minha bicicleta no cho, enterrava minhas pernas nas
folhas, balanava os meus dedos do p e esperava Marshmallow atacar. Quando estvamos muito
cansados, deitvamos no cho, um ao lado do outro. Eu ficava l um minuto inteiro, olhando para o
cu. Para o cu pacfico e calmo. Ento, de repente, Marshmallow pulava no meu rosto.
Por que voc tem esses arranhes perto dos olhos?, minhas professoras perguntavam.
o meu gato, Maushmallow, eu dizia. Ele acha que minhas soblancelhas so alanhas.
Tenha cuidado, Kristie, elas diziam. Ele pode te machucar.
Marshmallow, me machucar? De jeito nenhum.
No ano seguinte, quando Marshmallow estava com dois anos, sua me, Bowser, foi atropelada
por um carro. Aconteceu do mesmo modo que aconteceu com Puff, quando eu no estava na cidade.
Eu fiquei perturbada. Bowser era minha gata. Era a me de Marshmallow. Meu av a mandou para
mim porque eu estava sozinha. Eu a amava. Insisti que ela fosse enterrada debaixo da minha janela,
onde tinha parido Marshmallow e os outros gatos que eu nem lembrava mais.
Depois da morte da me, Marshmallow mudou. No sei se ficou deprimido ou se se sentia
solitrio, mas foi nessa poca que ele comeou a falar comigo. Voc pode achar isso estranho, mas eu
sempre conversei com o meu gato. Eu contava para ele como era o meu dia, a escola, falava dos
meus brinquedos e das brigas dos meus pais, enfim, coisas de criana. Marshmallow ouvia, mas
nunca respondia. No at sua me morrer. Ele comeou a pular no parapeito da minha janela e a
conversar comigo.
Miau, miau. Marshmallow dizia para chamar minha ateno.
Oi, Maushmallow, tudo bem?, eu dizia, deixando de lado o dever de casa.
Miau.
Sim, comigo est tudo bem tambm.
Miau, miau.
Eu estava na escola. E voc?
Miau. Miau, miau.

Sim, j fiz o dever de casa de matemtica.


Miau.
Sim, achei minha meia.
Miau, miau, miau.
No, estou com os meus sapatos. Ainda no cabem.
s vezes eu trazia Marshmallow para o meu quarto escondido, porque minha me nunca o
deixava entrar em casa. Minha tendncia sujismunda se espalhava pelo meu espao pessoal tambm,
alm dos vestidos da Sears, e o meu quarto... bem, o meu quarto era um chiqueiro. Quer dizer, no
dava para ver o cho. Marshmallow odiava andar sobre aquela camada de sujeira, mas adorava subir
em cima de mim. O problema era que ele precisava atravessar o cobertor. O cobertor deixava
Marshmallow louco, porque suas garras ficavam presas a cada passo. Ver Marshmallow atravessar a
coberta era como ver algum atravessar uma piscina com chiclete recm-mascado. A cada passo, a
coberta prendia nas suas unhas e ele tinha que empurrar fazendo um ploc exagerado. Mesmo
quando me alcanava, nunca ficava muito tempo. Depois de dez minutos, ele sempre voltava pelo
campo minado do cobertor e miava pedindo para ser solto. A gente ficava mais confortvel na
floresta, com as minhocas e os besouros, do que no meu quarto bagunado.
No terceiro vero, Marshmallow estava no seu auge. Lembra daquele gato frgil, tmido, nanico
e com pelo crespo que escorregava em cmera lenta de propsito! por aquela rampa assustadora
de um metro de altura? Bom, pode esquecer, porque ele no era mais assim. Marshmallow era um
gato macho e grande. A gente ainda fazia passeios pela floresta e eu mostrava para ele os besouros e
as borboletas que encontrava no jardim, mas ele tinha seu esporte pessoal. De vez em quando,
Marshmallow vinha at o degrau do lado de fora da porta da frente e miava at eu sair. Ali, aos seus
ps, estava um esquilo desfigurado. Ou um passarinho. Ou um filhote de coelho. Mas eu sabia que
Marshmallow no fazia isso por maldade. Ele era apenas um gato colocando em prtica tcnicas de
sobrevivncia. Ento eu no me incomodava, era a natureza dele, sabe?
Nosso vizinho, um caador de patos, no era to tolerante. Certo dia, ele se aproximou de mim
e de Marshmallow com todo o seu aparato de caa, com a espingarda no brao, e apontou para um
ninho no jardim. Se o seu gato algum dia matar esses cardeais, disse, eu atiro, porque so
pssaros muito bonitos.
Esse era o mesmo homem que pendurou um comedouro de passarinhos na beira do nosso
jardim, no galho mais baixo de uma rvore, bem ao lado de um lugar onde Marshmallow podia se
esconder. Quer dizer, era praticamente uma armadilha com isca. Era um matadouro.
Ento eu coloquei as mos na cintura, fiz um bico com a minha boca suja de catarro e disse: Se
voc mat os patos, eu atilo em voc, polque so pssalos bonitos. O que o pobre homem podia
fazer contra a indignao de uma garota da quinta srie, toda coberta de terra, e que ainda falava
igual ao Hortelino Troca--Letras? Ele ficou olhando para a gente, para a garota maltrapilha com seu
gato maltrapilho, e foi embora balanando a cabea.
Mais ou menos uma semana depois, Marshmallow matou um pato. Ele pegou o pato no campo

de golfe, abocanhou seu pescoo e o colocou no degrau da porta da frente como se fosse um chef
apresentando um sufl premiado. Eu no me importei. Eu fazia vista grossa para Marshmallow, eu
deixaria ele se safar com... bem, com o assassinato. De um pato.
Minha irm mais velha, que amava Barbie, no foi to compreensiva. Meu Deus!, ela gritou
ao ver a carcaa. Tem um pato morto na porta! Meu Deus, tem sangue na cerca! Pai, pai, pai! Pai!
Tem... um... pato... morto... na... porta!
Desnecessrio dizer que minha linda, feminina e bem-vestida irmzinha no entendia o charme
singular do maltrapilho e assassino Marshmallow. Como a minha me, ela no amava animais, e
preferia se arrumar do que caar minhocas ou brincar com folhas. Mas preciso lhe dar crdito: ela
no era f do meu gato, mas o tolerava. s vezes ela at gostava dele. Ela via que a gente era ligado,
e mesmo que no gostasse ou no precisasse disso, ficava contente por mim. Ela sabia que
Marshmallow era o meu melhor amigo.
Ei, Kristie, ela dizia. o seu gato na janela de novo. Ele est miando, tem certeza que ele
no est com fome?
Foi s na stima srie que as brigas comearam. E falo de brigas srias. Todos os dias. Kellie e
eu gritvamos uma com a outra o mais alto possvel com todas as janelas abertas para que os
vizinhos pudessem ouvir. Ns literalmente nos batamos com modeladores de cachos e secadores de
cabelo. Ficvamos com queimaduras leves na testa e machucados nos braos. Depois, quando a gente
ficava lado a lado em frente ao espelho tentando se ajeitar, ela dizia com o canto da boca: Voc
to feia.
No, voc que feia, eu dizia. Nessa poca eu j tinha me curado do meu problema de fala,
ento podia cuspir cada letra em cima dela. Voc que horrorosa. No eu.
No, eu no sou. E voc sabe disso.
Miau, Marshmallow dizia, arranhando a tela para que eu o deixasse entrar no meu quarto. L se
vo 25 anos, mas ainda fico sentimental ao ver aquela antiga tela no meu quarto de criana. Essa tela,
com as marcas das unhas de Marshmallow ainda visveis, um monumento da minha juventude.
Miau. Mi-auuuu.
Eu sei, ela uma idiota.
Miau miau.
Voc tem razo. Eu sou bonita.
Miiii-au, Marshmallow dizia, subindo no meu colo. Eu no sei se o seu gato faz isso, mas toda
vez que Marshmallow ronronava, ele fazia presso com as unhas, como se estivesse cuidando de
mim. Doa, mas tambm era bom.
Eu sei, voc tem razo, no se deve falar com ningum daquele jeito.
Miau. Miau. Miau.
Eu sei, Marshmallow. Tambm estou ouvindo. Eles deviam se divorciar e acabar logo com
isso.
Pode parecer estranho que eu conversasse desse jeito com o meu gato. Quero dizer, que eu

fizesse confisses assim ao meu gato. Que eu precisasse do meu gato desse jeito. Que eu achasse os
seus miados acalentadores. Mas, sabe, Marshmallow era o meu principal defensor. Ele me dizia que
eu era bonita. Ele concordava comigo quando eu dizia que estava tudo bem.
Mesmo que eu fosse a garota mais alta da sexta srie.
Mesmo que, na stima srie, um grupo de garotas mais velhas tivessem roubado do meu armrio
o jeans novo do qual eu tinha tanto orgulho. E tambm levaram minha roupa ntima. E meus sapatos.
Mesmo que, toda vez que passavam por mim no corredor, as mesmas garotas me empurrassem
contra a parede e me dissessem que eu no podia nem olhar para qualquer garoto de quem elas
gostavam. At que minha irm mais velha as cercou no shopping e lhes garantiu que, se me fizessem
mal, receberiam o troco em dobro quando entrassem no ensino mdio.
Ela pode ter me batido com um modelador de cachos. Ela pode ter gritado comigo e me
xingado. Mas minha irm mais velha me amava. At eu sabia disso, mesmo naquela poca. Nossas
brigas eram o nosso modo de lidar com os nossos medos e frustraes. Eram o nosso modo de
conversar sobre o fato de que tudo que nossa me fazia era berrar, e tudo que o nosso pai fazia era
beber. Comeou quando eu tinha uns dez ou onze anos, eu ficava acordada at depois da meia-noite
fazendo o dever de casa na sala e esperando meu pai chegar em casa bbado. Minha me lidava mal
com isso, com raiva. Eu era quem cuidava. Kellie... ela descontava na sua irm mais nova. Mas ela
tambm ficava ao meu lado. No tanto quanto Marshmallow, claro. Mas ela estava presente.
Voc realmente pensa que esse gato conversa com voc, no ?, meu pai me perguntou uma
vez.
Conversa, sim, pai, eu disse. Eu entendo o modo como ele mia. Ele fala comigo.
E ele o nico.
Mesmo quando no conversvamos, Marshmallow me consolava. Nas noites em que eu ficava
esperando pelo meu pai, ficava olhando pela janela e via Marshmallow passeando pelo jardim e
desaparecendo por entre as rvores do outro lado da rua. Uma hora depois, eu ouvia um barulho no
vidro e l estava ele, sentado no parapeito. Quando eu ficava de salva-vidas na piscina no final da
rua, eu o via, horas a fio, caando ratos no mato ao redor da incubadora de peixes. (Sim, ns
morvamos em um bairro que tinha campo de golfe, piscina e uma incubadora de peixes mas era um
lugar totalmente normal de classe mdia, eu juro.) Quando eu quebrei a perna jogando basquete, ele
afiava as unhas no meu gesso. Quando Marshmallow ia embora, ficavam pedacinhos de gesso cados
por todo lado. Diante disso, como eu poderia ter pena de mim mesma?
Ele no era carente. No me seguia mais indo para a escola, nem corria atrs de mim pela rua
quando eu saa de carro. Ns j no rolvamos na grama nem cavamos minhocas, mas sempre que
eu me cobria com leo bronzeador e pegava Sol no jardim, Marshmallow ficava ao meu lado. E
sempre que eu tentava fazer pedicure enquanto tomava Sol, ele ficava cheirando os meus dedos
pintados de rosa, deixando cair pelo no esmalte molhado, o que tornava impossvel a tarefa de fazer
as unhas dos ps. Porm, cada vez mais, ele ficava satisfeito como espectador da minha vida. Ns
ainda conversvamos, em geral sobre esportes (atividade na qual eu me destacava) e sobre rapazes

(atividade na qual eu tambm me destacava, embora sem conscincia disso na poca), mas ele
sempre me deixava conduzir a conversa. Ele tinha sua prpria vida, l no meio do mato, e eu tinha a
minha. Mas quando eu precisava dele, Marshmallow estava l. Meu pai saiu de casa; depois voltou;
depois saiu de novo. Frustrada, eu comecei a punir a mim mesma correndo um bocado todos os dias.
Quando voltava para casa, Marshmallow estava sempre me esperando no degrau na frente de casa.
Ele nunca me desapontava.
Ele tambm inspecionava todos os meninos com quem eu saa. Todos eles. Hoje em dia eu rio,
porque, para mim, Marshmallow foi e sempre ser o gato mais lindo do mundo. Porm, para um olhar
de fora ele parecia acima do peso e inchado. Tinha um cisto no rosto parecia um pus gigante que
lhe dava uma aura de decadncia e doena. Seu pelo crespo branco-amarelado, que nunca foi
especialmente atraente, era desigual e emaranhado. Muito emaranhado. Seu corpo inteiro era
grumoso e sujo. Imagine grudar vinte pedaos de chiclete em um gato superpeludo. Depois imagine
torcer o pelo nos pedaos de chiclete e ainda esperar duas semanas para que o chiclete fique sujo.
Assim era Marshmallow na poca em que eu estava no ensino mdio. Ns o tosvamos toda
primavera, um trauma que o deixava parecendo um rato machucado e o fazia sair correndo para se
esconder no telhado da garagem, onde ficava durante dias. Mas Minnesota no inverno era fria demais
para um gato raspado, e por isso ele estava sempre gordo, peludo e pesado quando as folhas caam e
chegava a poca do baile para visitantes da escola. At confesso que ele talvez fosse o gato mais feio
de Worthington, Minnesota.
E sempre que um menino vinha para um encontro, a primeira coisa que eu fazia era pegar o
Marshmallow, beij-lo no nariz (bem perto do cisto), esfreg-lo na cara do meu pretendente e dizer:
Este o meu gato Marshmallow. Ele no lindo?.
Miiiiii-auuuuu, Marshmallow murmurava, com o hlito fedorento repleto de desprezo e comida
de gato.
O menino via um gato acima do peso, cor de mancha de nicotina, com o pelo to embaralhado
que nem dava para lamber, letrgico, com um cisto na cara e ficava... olhando. Cada um deles devia
pensar: O que isso? Algum tipo de teste?
E era. Mais ou menos. Se o menino no gostasse do meu gato, eu no queria sair com ele.
Ao menos era isso que eu dizia a mim mesma. Na verdade, acabei saindo com um menino que
no gostava do meu gato durante dois anos e meio. O pai dele era um lder comunitrio. O meu pai
bebia. Ele era um rapaz charmoso e atraente. Eu era a irm anorxica mais nova da garota mais
bonita da escola. Eu era mesmo um varapau, do tipo que precisava de uma interveno sria;
anorxica de Unidade de Terapia Intensiva, a menina que extravasava todas suas frustraes e
inseguranas em corridas longas e se recusava a comer mais do que uma ou duas colheradas.
Externamente, eu era feliz. Eu adorava rir (ainda gosto). Era gregria e atltica. Eu me movimentava
com facilidade entre diferentes grupos sociais e podia considerar quase todos na escola como
amigos. Cheguei a ser rainha do baile, olha s! Quem mais feliz na escola do que a rainha do baile?
Mas, internamente, eu estava me despedaando. A anorexia me fazia sentir como se todos os

dias fossem o primeiro dia de aula. Sabe aquela sensao de quando voc no consegue dormir
porque est com a mente cheia, analisando tudo que pode acontecer no dia seguinte? Quando voc
fica obcecada pela necessidade de estar bem e com a sensao de que todos podem ler os seus
pensamentos e esto observando todos os seus movimentos? As palmas das mos suadas. O corao
palpitante. O momento terrvel quando voc se sente escorregando no gelo ou prestes a bater o carro.
Esse momento era a minha vida 24 horas por dia, sete dias por semana. No havia calma nem
resoluo, s medo. Sempre. Medo que algum percebesse que eu no era perfeita, que eu cometia
erros.
Todo mundo achava que o meu namorado era perfeito. Diziam que ele era bom para algum
como eu quero dizer, algum com problemas com... comida. Minha me o adorava. Meu pai o
adorava. Meus pais pensavam que eu poderia morrer por causa do meu distrbio. Acreditavam que
aquele namorado poderia salvar a minha vida. Na primeira vez em que tentei terminar com ele, at o
meu professor de educao fsica me puxou de lado e disse que eu deveria ficar com ele. Para o meu
prprio bem.
Meu namorado tambm sabia que eu tinha que ficar com ele. Voc nunca vai achar algum to
bom quanto eu. Era o que ele mais gostava de me dizer.
Ele no era mal-intencionado. Era s uma criana, lidando com seus prprios problemas. Mas
naquela altura do campeonato, eu j tinha juntado fora suficiente para comear uma terapia. Minha
me me desdenhava. Pensava que eu era fraca, ou ao menos era isso que eu achava na poca, quando
a minha doena me fazia acreditar que todo mundo pensava que eu era um fracasso. Descobri depois
que ela nunca me desdenhou, que ela tinha orgulho de mim. Meu pai? Ele perdeu o emprego e teve
que cancelar meu seguro de sade, porque, disse ele, os tratamentos eram caros demais. Felizmente,
minha madrinha do Texas vendeu as aes que tinha na American Airlines; foi esse dinheiro da
aposentadoria dela que pagou o meu tratamento. E o tratamento me ensinou que eu no precisava de
um namorado que me dizia que uma garota como eu deveria agradecer por ter um namorado como
ele.
Mas como uma garota insegura e anorxica termina com um cara daqueles? Com a ajuda do seu
gato, claro. Porque, durante dois anos e meio, eu ficava dizendo a mim mesma: Ele no gosta do
Marshmallow. Ele no o cara certo. Ele no gosta do Marshmallow. Toda vez que ele falava
coisas como No faa carinho nesse gato estpido. A gente vai sair para comer, e voc vai ficar
com pelo de gato no suter, isso fortalecia a minha deciso um pouco mais. Quero dizer, eu fazia
carinho em Marshmallow desde a segunda srie. Nunca notei, mas devia ter pelo de gato na roupa
todos os dias havia dez anos. Eu havia sido, desde a segunda srie, uma bola de Marshmallow
ambulante. Eu estava coberta dele. Ele fazia parte de mim. Se um menino no gostasse do pelo de
Marshmallow no meu suter, eu dizia a mim mesma, ento ele no gostava de mim. Terminar o
namoro com aquele namorado da escola por causa de pelo de gato foi o derradeiro e mais
importante fato da minha infncia.

***
Frequentemente eu me pergunto por que me casei com o meu marido. Quer dizer, eu o amo,
disso eu sei. Mas por que ele? Steven um dos caras mais quietos que conheo. Ele s fala quando
falam com ele e, mesmo assim, s para responder estritamente o perguntado. A no ser que esteja
conversando comigo. Ns dois falamos o tempo todo. No temos segredos; eu sei tudo sobre o meu
marido, e ele sabe tudo sobre mim. Mas muito poucos o conhecem. No como eu conheo. As
pessoas o veem. Ele do tipo grando, que gosta de atividades ao ar livre, um timo caador e
excelente atleta. As pessoas podem ver esse lado dele, mas no conhecem o homem. No sabem que
ele adora um carinho tambm. No sabem que ele me abraa quando estou chateada. No sabem que
ele vai comigo a todos os lugares. Ele no me compra flores, mas tudo bem, porque no ligo para
isso. No me compre presentes, digo a ele, apenas fique ao meu lado. Eu no quero papo-furado.
Eu no quero uma casa grande. Eu no quero anis enormes. Eu s quero um parceiro com quem
possa caminhar pela vida.
Dizem que uma menina sempre quer casar com o pai. Mas ser que assim mesmo? Meu pai
bebia. Era muito social. Traa a minha me. Repetidas vezes. Quando eu era criana, de vez em
quando, ela ia passar com Vicki e outras amigas um final de semana s de mulheres. Kellie e eu
brincvamos, dizendo que eram os finais de semanas de raiva dos homens, porque sempre que ela
voltava, brigava com o meu pai.
Eu estava com gente que me ama esse final de semana, ela gritava. Eu estava com gente que
se importa comigo. Eu fazia piada, brigava com a minha irm, mas s porque eu tinha medo. Eu
nunca quis ser despedaada daquele jeito.
Steven nunca bebe. Ele nunca sai com amigos, muito menos com amigas. Seus pais, at onde eu
sei, nunca tocaram em uma gota de lcool. Eles no gritam. Quando ele estava crescendo, eles no
viam televiso. Steven e eu vemos televiso (quem no v?), mas nunca brigamos. J tivemos nossas
desavenas, mas, em quinze anos de vida conjugal, nunca tivemos uma discusso em que
levantssemos o tom da voz.
Nossa senhora, Kristie, eu dizia a mim mesma quando pensava na minha vida, voc se casou
com o seu gato.
E isso to verdadeiro. Eu no tinha me dado conta disso at comear a pensar neste livro, mas
verdade. A minha vida toda eu fiquei procurando um homem como Marshmallow. Os outros homens
na minha vida me desapontaram. Me machucaram e me abandonaram. Ento eu me prendi a
Marshmallow. No de modo consciente, claro, no de propsito, mas aquele feioso bagunado era
o meu namorado ideal. Algum que me ouvia. Algum que conversava comigo. Algum forte e que
gostava da vida ao ar livre, no algum muito mole. Nem pegajoso, nem carente. Nem domesticado.
Eu queria um homem que se sentisse bem sendo ele mesmo, mesmo que no fosse um menino de ouro.
Um homem que me fortalecesse e no me despedaasse. Algum que fosse seguro o suficiente para
me deixar ter meu prprio espao, mas que me amasse o bastante para estar sempre ao meu lado

quando eu precisasse. E algum que eu amasse exatamente do mesmo modo.


No estranho que algum assim existisse? No estranho que eu tenha encontrado um homem
to perfeito quanto o meu gato?
E no estranho que Steven tenha sido a nica pessoa na minha vida de quem Marshmallow
nunca gostou? Para comear, ele no era uma pessoa que gostasse de gatos e os gatos percebem isso.
Steven tinha um amor masculino por cachorros, particularmente por seu labrador amarelo, a Molly,
que tinha dois anos quando a gente se casou e se mudou para Sioux City, em Iowa. Mas no isso.
Todos os meus namorados odiavam meu gato. Demorou anos at que eu percebesse isso, pois aquele
gato torto e emaranhado era o meu ponto fraco, mas verdade. Talvez tivessem cime dele. Talvez
pensassem que eu era estranha por conversar tanto com um gato. Talvez pensassem apenas que ele
era feio, ou que havia pelo demais no meu vestido de formatura. Acho que eu pensava que
relacionamentos funcionavam assim. Passei a minha juventude dizendo que queria um homem que
amasse Marshmallow, mas saindo com rapazes que eram o oposto disso.
Mas Steven... ele no detestava Marshmallow. No mesmo. No estou dizendo que o adorava,
mas ele era meio como a minha irm. Ele no tinha uma ligao com Marshmallow, mas ficava
contente que eu fosse to ligada a ele. Ele no deu exatamente pulos de alegria, mas no brigou
quando eu insisti que Marshmallow mudasse para Sioux City e dividisse conosco a vida nova. Ele
sabia o quanto Marshmallow era importante para mim.
Alm disso, assim como os meus pais em 1984, Steven pensava que Marshmallow no viveria
muito tempo. Ele tinha onze anos, o que no particularmente muito para um gato, mas seu pelo
estava to manchado e embaralhado que ele parecia ter 53. Ele tinha artrite e andava de um jeito
cambaleante e desajeitado. Tinha pouca energia, seu apetite era lamentvel, sua preocupao com
higiene pessoal inexistente. Pior que tudo, o cisto em seu rosto se convertera em um abscesso, de
modo que o lado esquerdo do nariz parecia arruinado. O veterinrio disse que ele estava fraco
demais para passar por uma cirurgia; o buraco no rosto no chegava a representar um risco de vida,
mas o procedimento para remov-lo poderia mat-lo. Eu mesma no sabia se Marshmallow viveria
muito. Mas sabia que, independentemente de quantos dias lhe restassem, eu os faria os mais
prazerosos e confortveis possveis.
Steven tentou. Preciso reconhecer isso. Ele realmente tentou. De vez em quando ele se agachava
e dizia: Vem aqui, Marshmallow, vem aqui, amiguinho. Deixa eu fazer carinho em voc.
Marshmallow o olhava com um olhar de desprezo Ah, no enche, amigo e ia embora.
Mas ser ignorado no era ruim, comparado ao que aconteceu na nossa primeira e nica tentativa
de tos-lo. Agora que Marshmallow estava mais lento, eu (tolamente) pensei que poderia cortar
alguns dos ns desagradveis de seu pelo. Eu convenci Steven a segur-lo, enquanto eu cortava.
Bom, Marshmallow podia estar velho, mas suas garras ainda eram afiadas. Com as garras dianteiras
ele prendeu as mos de Steven, puxou as patas de trs para cima e comeou a arranhar o antebrao de
Steven, chutando vrias vezes. Ele no estava tentando fugir. Quero deixar isso bem claro.
Marshmallow estava esperando pela chance de dar o troco em Steven por t-lo trazido a Sioux

City, por me tirar dele e possivelmente por uma srie de negligncias que eu desconhecia e apenas o
gato entendia e no queria largar. Ele retalhou o antebrao de Steven com suas garras, como fizera
com o gesso da minha perna quebrada tantos anos antes.
At que Steven jogou Marshmallow para longe e desceu para o poro, zangado e sangrando. Ele
voltou alguns minutos depois vestindo uma jaqueta Carhatt, uma mscara de hquei e luvas de caa.
Estou pronto, disse, dando tapinhas na perneira protetora, como se fosse um goleiro de hquei.
Steven no ia deixar Marshmallow ganhar.
Mas ganhou. Marshmallow ganhou, claro. Ele ficou se contorcendo e dando arranhes de um
modo to feroz, e por tanto tempo, que a gente acabou desistindo, deixando o gato em paz com seu
pelo emaranhado. Marshmallow podia ser lento e ter artrite, mas ainda estava no comando. Isso era
bvio. Quando Marshmallow chegava, o labrador enorme de Steven, Molly (uma cachorra bem
masculina a maior parte do tempo!), praticamente lhe prestava reverncia. Molly no tinha medo,
era mais um respeito tcito por um gato velho e sbio. Depois de muitos anos vivendo do lado de
fora, Marshmallow tinha uma certa aura. Era um sobrevivente. Um menino mau. Um gato bacana.
Poderia estar aposentado, mas ainda era o Chefo. Ficava satisfeito de passar o dia inteiro sentado
debaixo de uma planta na porta de entrada, quase sem se mexer, mas ningum se enganava.
Marshmallow sabia e aprovava tudo que se passava na nossa casa.
Como, por exemplo, as minhas corridas. Com muito esforo e com a ajuda do meu amoroso
marido (e do meu inacreditvel gato, claro!), eu dominei meu distrbio alimentar. Consegui at usar
essa experincia a meu favor, para me aproximar e ensinar meus alunos adolescentes e adultos com
dificuldades de aprendizagem. (D para entender agora por que eu me senti abenoada por ter
ganhado peso, de propsito, para competir na categoria mais nobre da maratona? E por que meu
marido e at o meu pai ficou com os olhos cheios de lgrimas torcendo por mim? Quer dizer, eu
posso ter ficado em terceiro lugar, mas... ganhei! Para sempre.) No estou mais doente, mas isso no
quer dizer que no cuide do meu corpo. Como bem e corro todos os dias. Molly aprendeu essa
segunda parte rapidinho. Toda manh ela praticamente me perseguia at a porta com a coleira
balanando na boca. Enquanto eu amarrava os sapatos e Molly comeava a babar e a ficar frentica,
Marshmallow, debaixo da planta, nos olhava. Como o Poderoso Chefo, ele no precisava falar;
todos sabiam o que ele estava pensando. O nico motivo pelo qual eu deixo voc sair com ela, a
cachorra, porque estou muito velho. Algum dia, cachorra, poderei exigir que me pague pelo
favor que agora concedo.
Quando Molly e eu saamos, Marshmallow se enroscava em cima do sof, de onde podia nos
ver pela janela da frente. Quando voltvamos, arrastava-se at o cho e me olhava enquanto eu
alongava. E nessa hora ele falava, falava, falava. Isso era uma coisa muito legal do Marshmallow.
Mesmo velho e cansado, ele nunca parou de falar comigo.
Depois de dois anos, ele at ensinou Molly a encontrar sua prpria voz. Ela comeou
choramingando, como uma porta velha com dobradias barulhentas. Depois comeou a fazer um
rudo surdo e prolongado, rerrr, rerr, rerr, como um cortador de grama passando por cima de arbustos

grossos. Todo dia eu ia para casa almoar e ns trs ficvamos na cozinha batendo papo.
Como foi a manh, amigos?
Miau.
Rerr.
O meu dia tambm est indo bem.
Mi-auuu.
O de sempre, pasta de amendoim e geleia.
Re-rr-rr.
No, no vou dar nada para voc.
Miau, miau. Mi-auuu.
Re-rerrrrr.
Ah, no, disse meu marido, quando ele percebeu o que estava acontecendo. Com a cachorra
tambm?
Alguns anos depois, eu engravidei. Eu compro comida para esse gato, meu marido
resmungou, ao saber que mulheres grvidas no deviam limpar a areia dos gatos. Eu limpo o
vmito. Eu limpo o coc. E ele s me ignora. Por que ele no mais parecido com Molly?
Ah, me deixa em paz, suspirava Marshmallow, levantando a cabea por um momento e depois
voltando a dormir embaixo de sua amada planta.
Vou sempre lembrar com carinho, at a hora da minha morte, da noite em que comecei a entrar
em trabalho de parto, quando estava grvida do Luke. Antes de nos tornarmos me, h um perodo
interminvel de tempo, muito cedo para irmos para o hospital, mas desconfortvel e agitado demais
para podermos relaxar. Ento eu ficava andando pra l e pra c na sala, lutando contra o aperto na
minha barriga e tentando me concentrar na respirao. Nessa poca, Marshmallow tinha dezesseis
anos. Ele morava comigo e Steven havia quatro anos. Ele estava rgido, com artrite e quase surdo.
Havia mais de um ano que s saa de debaixo da planta para comer e ir ao banheiro. Mas naquela
noite ele se levantou e ficou andando comigo. Ele sempre ficava ao meu lado quando eu ficava
doente, mas dessa vez foi diferente. Marshmallow acompanhou cada passo que fiz durante duas
horas, miando o tempo inteiro. Molly, agachada perto do sof, l pelas tantas acrescentou sua voz, rerr, re-rrr, miau, miau, respirar, respirar, miau, at que a sala inteira ecoava os sons. O amor. O amor
desinibido dos animais. Eu conversava com meus dois bichos enquanto comeava a entrar em
trabalho de parto, andando com ps inchados e cheios de calos, e no podia estar mais feliz. Eu no
poderia ter tido ajuda melhor.
Quando trouxe Luke para casa, Marshmallow me surpreendeu novamente. Ele saiu de debaixo
da planta e comeou a dormir sob a cama do meu filho. Quando Luke estava na sala, Marshmallow
vinha meio troncho e ficava ao lado do carrinho de beb. As pessoas me diziam: Voc tem que
tomar cuidado com os gatos. Eles podem pular em cima do peito da criana.
Eu pensei, Marshmallow? Voc t brincando? Ele nunca machucaria Luke. E mesmo que
quisesse... voc j olhou direito para esse gato? Ele tem dezessete anos. Ele mal consegue andar.

Ele no pula desde que eu terminei a escola.


Depois do nascimento de Luke, a sade do Marshmallow continuou a piorar. Cinco anos depois
de nossa mudana para Sioux City, ele j no conseguia andar at o banheiro. Ele no conseguia subir
nem descer escadas. Alguns dias, ele mal alcanava o prato de comida e parecia estar esquecendo as
coisas. Houve vezes que, eu poderia apostar, o Poderoso Chefo sequer sabia onde estava. A artrose
havia atingido todas as juntas do seu corpo. Ele no escutava mais nada. Seu rosto estava uma
baguna. Eu sei que ele sentia dor. E no precisei de um veterinrio para saber que era a hora. No
foi uma deciso difcil. No mesmo. Aos dez anos, eu havia visto o meu av definhar, com muita dor,
um dia aps o outro. Marshmallow era um amigo to bom. Eu no deixaria um amigo sofrer.
Tirei um dia de folga do trabalho. Desliguei a televiso. Peguei meu filho pequeno pela cintura,
para que pudesse levantar Marshmallow e coloc-lo no meio do meu colo. Enquanto fazia carinho, vi
seu pelo solto flutuar atravs do raio de Sol, pousando em cima de tudo, at no meu suter.
Maushmallow, eu disse para o meu filho com uma voz de beb, imitando aquela criana de tanto
tempo atrs. Esse o Maushmallow, lemble semple dele.
Eu olhei para o meu filho, depois para o meu gato, depois para o raio de Sol brilhando atravs
da janela, os pelos do gato ainda flutuando. Minha janela. Minha casa. Meu mundo de adulta. O
quarto estava silencioso, exceto por um ronronar suave. Mesmo aos dezessete anos, Marshmallow
pressionava as unhas nas minhas pernas. Eu senti uma ligeira dor e sorri. Foi um dia triste, mas um
momento doce, sentada no sof com aqueles que eu amava.
Eu abri meu lbum de fotografias. L estava eu, com uma capa corta-vento roxa de zper, com o
cabelo bagunado, a pequena menina que eu era. Marshmallow era s um gatinho e eu o mostrava
para a cmera. Estava to orgulhosa dele. Dava para ver pelo meu rosto. To orgulhosa. Era apenas
uma Polaroid, comeando a apagar, mas dava para ver a alegria no meu rosto. A gente no tinha uma
cmera Polaroid; a foto deve ter sido tirada por Katherine, nossa vizinha. Era uma senhora mais
velha. Ela amava Marshmallow. Ela nos observava da sua janela, ou quando fazia coisas no jardim, e
tenho certeza que ouvia as nossas conversas tambm. Eu sei que ela ouvia os meus pais brigando e
minha irm e eu jogando nossos medos uma na outra. Ela tirou a foto e me deu, tenho certeza, s
porque eu era uma menina pequena e tinha tanto orgulho do meu gato.
Eu folheei as pginas. Havia fotos minhas e de Marshmallow afundados nas folhas. Eu e
Marshmallow no quintal. Tinha uma sesso s com fotos minhas com vestidos formais, segurando
Marshmallow. Lembrei: eu tirava uma foto com Marshmallow antes de todo baile da escola. Eu e
Marshmallow deitados sobre a manta no Sol. Eu e Marshmallow quando me formei na escola. Eu
com o meu vestido de casamento, sorrindo, segurando o meu gato. Me, eu lembro de dizer muitas
e muitas vezes ao longo dos anos. Pegue a cmera, me. Eu quero uma foto com o Marshmallow.
difcil para mim lembrar desse dia. Desculpe, voc provavelmente vai achar que eu sou
estranha, mas difcil. No vou falar da morte dele. Simplesmente no consigo. Mesmo quinze anos
depois, eu sinto saudades do meu Marshmallow. Mas houve tanta alegria na vida dele. Tanta alegria.
Ele esteve comigo dos meus dez aos meus 27 anos, e foi uma jornada incrvel. Eu no estaria onde

estou hoje sem isso, e por isso acho que foi uma bno. Isso bvio. Mesmo as partes ruins foram
uma bno. Quero dizer, quantas pessoas vivem dezessete anos com um animal, no ? Quantas
pessoas experimentam esse tipo de amor?

8
Gata da Igreja

Palavras no podem expressar o quanto o livro Dewey significou para mim... Anos atrs, ns
adotamos uma gata abandonada na nossa igreja: a Gata da Igreja! Ela estava grvida e, quando
os gatinhos nasceram, membros da igreja adotaram seus filhotes. Depois, algumas doaes
permitiram que ela fosse castrada. Ela morou na igreja at as reformas comearem, quando eu a
levei para casa.
Carol Ann Riggs me surpreendeu. Sua pequena nota sobre Gata da Igreja, a gata abandonada
que foi adotada pela Igreja Unida Metodista de Camden, no Alabama, chamou a minha ateno, mas,
logo depois, nos primeiros dez minutos da nossa conversa por telefone, confesso que fiquei
completamente confusa. No pelas coisas que ela disse, mas pelo modo como as disse. A sra. Carol
Ann Riggs (como conhecida por seus amigos) tem um sotaque sulista maravilhoso, um sotaque
arrastado, meloso, ac-ahr misturado com mani-ah e o coro das igrej-ahs.
Devo admitir, adorei o sotaque dela. E adorei Carol Ann Riggs tambm. Ela nasceu na pequena
cidade de Bragg, no Alabama, onde a escola mais perto ficava h cinquenta quilmetros de nibus.
(Mesmo hoje em dia, Lowndes County tem apenas duas escolas pblicas de ensino mdio.) Carol
Ann casou-se com Harris Riggs quando tinha dezenove anos, mudando-se para a cidade dele,
Camden, o que fez com que se sentisse numa cidade grande. Camden, afinal, tem dois sinais de
trnsito, dois restaurantes, dois bancos e quase 15 mil pessoas. E, mesmo sendo uma cidade
grande, ainda era um lugar incrivelmente amigvel. No havia muito dinheiro em Camden, mas,
quando algum morria, no apenas todos os vizinhos levavam comida, como todos os moradores da
cidade compareciam ao funeral. Quase todos eram familiares, Carol Ann me disse, e isso inclua o
pessoal do seu marido, Harris, que por vrias geraes gerenciou a loja de ferragens da cidade.
Carol Ann no era bibliotecria ela trabalhava para um escritrio de advocaci-ah , mas foi
durante muito tempo membro da diretoria da biblioteca local. Apesar de minhas desconfianas em
relao a diretores de biblioteca, eu gostava disso. Na verdade, eu gostava de tudo nela.
Especialmente daquele sotaque.
Eu sei, eu sei, disse sua amiga, Kim Knox. aquele tipo de sotaque do Sul que voc escuta
na televiso e pensa: Isso no pode ser real. Kim nasceu e foi criada do outro lado da fronteira, em
Laurel, Mississippi, ento ela conhece bem os sotaques sulistas. Mas este um sotaque de Camden.

Vrias pessoas de l falam assim. As pessoas pensam que isso um sotaque antigo da aristocracia do
Sul, mas as pessoas de Camden no so assim. Elas tm os ps no cho. No nenhum tipo de
esnobismo ou algo parecido.
O isolamento, supe Kim, o que faz os habitantes de Camden to charmosos. A cidade a
sede do Wilcox County, uma regio pouco povoada nas montanhas de terra dura do sudoeste do
Alabama. Este municpio tem apenas 13 mil moradores, sendo ainda menor que Clay County, em
Iowa, onde a renda mdia anual de apenas 16 mil dlares; a terceira mdia nacional e 6 mil dlares
abaixo da linha de pobreza. As pessoas imaginam a regio sul do Alabama como um lugar de
plantaes, com grandes manses e extensos campos de algodo. Mas voc no encontra grandes
fazendas em Wilcox. O que voc v so pequenas fazendas familiares, essencialmente de meeiros,
entre os milhares de acres cobertos pelos pinheiros altos do Sul.
uma cidade no meio do nada, Kim Knox disse. Uma ilha pitoresca. Quando escutei isso,
pensei em Spencer, nas suas largas caladas e em suas redes de lojas locais, agradavelmente antigas.
Eu imaginava uma cidade onde vrias geraes tivessem suas prprias mesas nos restaurantes locais
e onde tomar uma xcara de caf pudesse levar pelo menos duas horas.
Mas Camden no era assim, como demonstravam as fotos do velho centro da cidade. Em
Camden, a vida social no estava nos centros comerciais. No havia cinema, restaurantes chiques ou
cadeias de grandes lojas. O centro da vida social de Camden, no Alabama, eram as igrejas. As
quatro maiores estavam localizadas, uma ao lado da outra, em um trecho da Broad Street que era to
impecavelmente cuidado quanto o centro comercial prximo era decadente. A maior era a Igreja
Batista. Do outro lado da rua, uma ao lado da outra, estavam as igrejas presbiterianas. Descendo o
quarteiro em direo ao cruzamento principal da cidade e prximo ao posto de gasolina Exxon (que
marcava a entrada no oficial do centro), estava a Igreja Unida Metodista de Camden. Nenhuma
dessas igrejas era grande juntas elas tinham provavelmente setecentos membros, ou,
aproximadamente, metade da cidade , mas elas ofereciam almoos, encontros para orao,
atividades para jovens e coros para crianas e adultos. Quando algo importante acontecia, como a
apresentao anual de Natal, todos trabalhavam juntos para o espetculo.
Foi Kim Knox, a nova integrante e secretria de meio expediente da Igreja Unida Metodista de
Camden, quem primeiro percebeu a gata no antigo presbitrio que servia de sede administrativa da
igreja. Era uma gatinha cinza listrada e quando Kim saiu para um pequeno intervalo, a gatinha estava
agachada sombra de uns arbustos prximos. Ela tinha um rosto redondo adorvel e um olhar suave,
e quando Kim a viu, a gata no foi embora, mas continuou olhando fixamente para ela. Ento a gata
comeou a falar. Kim respondeu Bem, ol, gatinha , e a gata subiu na varanda de entrada,
fazendo com que Kim, naturalmente, se inclinasse para acarici-la. A gata se virou para receber
carinhos na barriga. Quando Kim abriu a porta para voltar para o escritrio, a gata deu um pulinho e
correu para dentro tambm.
Hummm.
Bem, a Igreja Unida Metodista de Camden no era uma igreja formal. Ela podia ser formal com

algumas coisas, como com sua doxologia e com seu santurio, mas, no geral, era uma congregao de
trabalhadores, de pessoas simples e honestas. Os escritrios administrativos eram, para dizer o
mnimo, bagunados. O antigo presbitrio tinha apenas um andar, estilo casa de campo do incio dos
anos 1920, com pisos que rangiam e janelas ruidosas, repleto de caixas e arquivos por todos os
lados. O pastor era de uma escola de liturgia no muito rigorosa, usava roupas casuais, tinha sempre
um sorriso tranquilo no rosto e fazia piadas para seus paroquianos. Mesmo Kim no era a tpica
secretria cri-cri de igreja. Depois de uma breve reflexo, pareceu-lhe que um gatinho vira-lata
poderia caber perfeitamente bem ali.
Mas ela no tinha certeza. O escritrio de um pastor, em uma cidade pequena, era um local onde
a comunidade se encontrava. As pessoas estavam sempre passando, no s para falar sobre
problemas, mas tambm para contar fofocas e bater papo. E o que aconteceria caso no se sentissem
vontade com aquela gata cinza, mansinha, com o rosto redondo como uma Lua, esparramada na
cadeira da secretria? Ser que era apropriado uma secretria que estava na cidade havia somente
alguns meses deixar uma gata morar na igreja?
Miau, fez a gata, na mesma hora.
Felizmente, a primeira pessoa que chegou ao presbitrio foi a sra. Carol Ann Riggs. Carol Ann
tinha se tornado membro da Igreja Unida Metodista de Camden desde que se mudou para a cidade,
em 1961. Ela era do coro e de diversos comits, conhecia todo mundo e frequentemente aparecia l
para dar um al e ver se precisavam de alguma coisa. Suas filhas foram para a universidade e depois
mudaram de cidade, e Carol Ann tinha, de certa forma, adotado a congregao Metodista de Camden.
Ela era tambm, como Kim descobriu mais tarde, algum que a vida inteira tinha adorado gatos.
Ah, voc tem que ficar com ela, disse Carol Ann, quando a gata listradinha se aproximou para
cheirar sua mo e miou. Ela lin-dah. Mas ela no contou que tinha certeza que Kim acabara de
adotar uma gata da cadeia. Havia um bando de gatos que viviam no beco, atrs da priso, e ficavam
l esperando o momento em que o cozinheiro jogava fora os restos de comida. No era difcil para a
gata descer o quarteiro da Broad Street e atravessar a rua em direo porta do presbitrio.
Em lugar disso, Carol Ann simplesmente disse: Kim, voc tem que ficar com essa dour-ah!.
E como Carol Ann fora membro da igreja por dcadas, assim como a famlia de seu marido, Kim
obteve o aval necessrio para ficar com ela.
Na vez seguinte em que Carol Ann passou pelo presbitrio e, de repente, ela passou a arrumar
cada vez mais motivos para fazer isso , ela viu a gatinha cinza sentadinha no meio da cadeira,
enquanto Kim se equilibrava perigosamente na ponta da frente.
Ela tentou sentar no meu colo, Kim contou, um pouco constrangida, mas detestou o fato de eu
ficar me levantando o tempo todo. Ento, tomou a parte mais confortvel da cadeira.
Miau, fez a gata, como se tivesse concordado, antes de pular na direo de Carol Ann para que
essa lhe fizesse um carinho. Ela dormia a maior parte do dia enrolada atrs de Kim na cadeira, mas
toda vez que algum entrava na sala, ela miava e corria para cumprimentar.
Ol, gatinha, dizia a maior parte das pessoas, fazendo um pequeno carinho nela. Ela no

uma gracinha?
E ela era. Essa pequena gata era irresistvel. Mesmo Carol Ann, que tivera seus prprios
animais amados a vida inteira, tinha de admitir que essa gatinha era muito especial. Talvez fosse seu
rosto redondo, to macio e infantil. Ou seu jeitinho doce. Seu miado era to pacfico e ela se
aproximava to gentilmente que ningum resistia em se afeioar a ela. Ela era vivaz. Era amigvel. E
mais que isso, era cativante. Essa a palavra: cativante. No tinha como olhar para ela vindo com
aqueles olhinhos doces, sem pensar: nhonnnnnnn.
Ainda assim, a gatinha despertava sorrisos maldosos entre os membros mais dures da
congregao. Eles nunca disseram nada, pelo menos no para Kim, mas nada do que acontecia por l,
fosse um olhar grosseiro, fosse uma observao maliciosa, escapava a Carol Ann.
Eles simplesmente no gostavam de animais, explicou. Eu poderia apontar, agora mesmo,
para cada um deles e afirmar que nenhum deles teve animais em casa. Eles no foram criados com
animais, entende? Por isso no os entendem. Eles no acham que apropriado uma igreja ter um
animal.
Qualquer tenso, porm, era logo resolvida pelo pastor da igreja. Ele era jovem e liderava sua
primeira congregao, mas era bom com as pessoas e era impossvel no gostar dele. Ele tinha
chegado Igreja Unida Metodista de Camden apenas algumas semanas antes de Kim Knox, mas, se
que se sentia de algum modo inseguro em relao a sua recente promoo a chefe do clero, lidava
com isso de uma forma sempre brincalhona e positiva. Ele podia no ser especialmente f de gatos, e
era provvel que quisesse agradar aos seus novos paroquianos, mas no era algum que expulsaria
os menos afortunados, no importa quantas vezes rasgassem o papel higinico no banheiro do
escritrio ou quanto pelo largassem no sof.
Poxa vida, sua risada parecia dizer sempre que Gata da Igreja aparecia, ela no faz mal a
ningum.
E mesmo o membro mais relutante da congregao tinha que admitir que pelo menos as crianas
adoravam ter Gata da Igreja por perto. O presbitrio ficava separado do edifcio principal da igreja
por um amplo gramado, e esse gramado funcionava como um espao social informal, onde os adultos
se encontravam depois da missa e as crianas corriam, brincavam e sujavam suas roupas. Todos os
domingos, a pequena gata cinza sentava-se no cantinho do gramado olhando para eles. Ela no
brincava. E tambm no gostava que corressem atrs dela. Mas adorava quando as crianas vinham
lhe fazer carinhos.
Agora afastem-se, crianas, Carol Ann dizia, assumindo o papel de me protetora. Deixemna um pouquinho, ela est ficando nervosa. As crianas davam um passo para trs, dando
cotoveladas e empurres para conseguir uma boa posio, at que uma pequena menina, que devia ter
mais ou menos dois anos, pois ainda engatinhava, no conseguia controlar suas emoes e pulava em
cima da gata dando um gritinho. Isso acontecia todos os domingos e Kim e Carol Ann no
conseguiam deixar de rir. A pequena menina queria ser amvel, mas havia algo nela que aterrorizava
a pobre gatinha cinza. Assim que a menina comeava a gritar, a gata corria para o escritrio, onde

tinha um monte de buracos para se esconder.


Cad a Gata da Igreja?, as crianas gritavam, procurando por ela. Cad a Gata da Igreja?
E foi assim que ela ganhou o seu nome. De alguma forma, certo domingo, ela deixou de ser
aquela Gata da Igreja e passou a ser a Gata da Igreja. Eu vou dar s um pouquinho para a Gata da
Igreja, as senhoras comearam a dizer nos almoos do quinto domingo do ms, quando cada uma
levava um prato de comida para compartilhar com o grupo, separando um pedacinho de carne no
canto dos seus pratos.
Um dia, o marido de Kim estava dirigindo na Broad Street quando viu uma velha senhora
esparramada no cho do lado de fora do escritrio da igreja. Ele imediatamente parou o carro e
correu em sua direo. No meio do caminho, ele a reconheceu como sendo a sogra de Carol Ann, que
devia ter em torno de oitenta anos. Sra. Hattie!, ele gritou. A senhora est bem?
Um segundo depois, ele percebeu que Gata da Igreja estava ao lado da senhora, recebendo uma
massagem na barriga. Eu s estava fazendo carinho nela, disse a sra. Hattie, levantando-se e dando
um sorriso. E foi assim que a gatinha cinza listrada que veio do beco atrs da cadeia foi adotada, no
s por Kim Knox e Carol Ann Riggs, como por toda a Igreja Unida Metodista de Camden.
***
Perto do Natal, quando o inverno chegou ao sul do Alabama soprando uma grossa camada de
gelo, Carol Ann e Kim decidiram que a gata poderia passar as noites dentro da igreja. Elas
compraram areia e comida e Gata da Igreja acostumou-se imediatamente com o conforto de um lugar
quente e seguro para dormir. Mas ela era uma gata to animada que ficava entediada durante a noite.
O jovem pastor ficava confuso ao ver, todas as manhs, a papelada de Kim espalhada pelo cho. Kim
ouvia-o falando no escritrio e pensava, No me lembro de ningum ter entrado l... Em seguida,
ela escutava um miado, entrava no escritrio e encontrava Gata da Igreja sentada na mesa do pastor.
Ela se desculpava, o pastor ria e Gata da Igreja ronronava em seus braos. Esse o tipo de afeto e
companheirismo que um gato pode oferecer. Pela manh, Kim sempre sorria ao ver Gata da Igreja
espreita por trs das persianas, pronta para saudar os membros da congregao... j que dormia 90%
do tempo na cadeira de Kim.
Manter a gata dentro da igreja noite significava considerar outros cuidados. Carol Ann e Kim
eram as principais pessoas a cuidar da gata, mas caso elas estivessem longe, algum deveria dar
comida e trocar a areia. Quando o escritrio ficava fechado por alguns dias, algum tinha que deixla sair, seno ela ficaria louca presa ali dentro. E, claro, algum sempre tinha que ficar de olho para
no deixar a gata entrar no santurio, que nunca fora oficialmente designado como uma rea proibida
para gatos, mas poderia fornecer a desculpa perfeita para os que no gostavam de gatos e sempre
havia alguns, como Carol Ann sabia comearem a falar de desrespeito ao solo sagrado. Ter que
pedir, mesmo que uma pequena ajuda, para cuidar da gata deixava Carol Ann muito nervosa; ela
sentia como se estivesse pedindo demais. Mas, na verdade, ela no tinha muito com o que se
preocupar, pois Gata da Igreja tinha muitos fs, e havia muitos voluntrios bastante entusiasmados.

Depois de garantir os cuidados bsicos, Carol Ann e Kim passaram para o segundo passo:
vacinas e castrao, o que acarretou a primeira grande surpresa da Igreja Metodista de Camden. A
gata estava grvida.
Em maro, todos na igreja j sabiam: havia uma me solteira entre eles. E Gata da Igreja, por
sua vez, no escondia. Enquanto caminhava, sua barriga balanava feito o sino da igreja. Sem
dvida, isso despertou perguntas entre as crianas mais novas durante as refeies familiares naquela
primavera, mas, no geral, todos da congregao estavam animados. Se possvel, as crianas
seguiriam Gata da Igreja ainda mais do que o normal. E Gata da Igreja, apesar de sua situao,
ajudava. Um dia antes do Domingo de Ramos, Carol Ann estava passando de carro e a viu dando uma
corridinha animada em volta do gramado da igreja.
Mas no Domingo de Ramos ela sumiu. As crianas saram para o gramado depois da missa,
vestidas com suas roupas do coro e sacudindo seus raminhos de palmeira, mas no encontraram a
gata. Pararam, olharam em volta assustadas e comearam a procurar nos arbustos, nas salas das aulas
de domingo, nos escritrios administrativos e at no santurio. Mas nada de encontrar a gata.
Ser que ela j teve os bebs?, a pequena garotinha gritava, quase desmaiando de tanta
animao.
Provavelmente, disse Carol Ann, mas no temos certeza.
No dia seguinte, Kim tambm saiu em busca da gata. Naquele ano, alm de adotar uma gata, a
Igreja Unida Metodista de Camden tambm deu incio a um grande projeto de construo. A igreja
principal seria aumentada, o antigo presbitrio retirado, e o hotel abandonado ao lado, que havia
sido adquirido recentemente, transformado em um estacionamento. Kim imaginou que os velhos
quartos do hotel, muitos com as portas j retiradas pela demolio, seriam o local ideal para uma
gata fazer um cantinho para ter seus filhotes. Depois de algumas horas chamando e procurando pela
gata naquele lugar dilapidado, em runas, Gata da Igreja finalmente respondeu. Um dos quartos estava
cheio de mveis velhos e colches, e Gata da Igreja estava usando o lugar como uma creche
silenciosa para os seus quatro gatinhos de Domingo de Ramos.
Durante uma semana, Kim e Carol Ann levaram comida at o quarto, e Kim ia na ponta dos ps,
uma vez por dia, verificar se estava tudo bem, mas, de modo geral, Gata da Igreja passou a maior
parte do tempo sozinha com seus bebs. As crianas encontraram-na uma semana depois, no domingo
seguinte, depois da missa. Estavam no gramado, conversando sobre Gata da Igreja e seus filhotinhos,
quando um deles flagrou a gata passando na rea em volta do hotel. Cerca de seis crianas com
menos de seis anos seguiram-na at o quarto onde seus gatinhos miavam e se esbarravam uns nos
outros. Carol Ann conseguiu chegar a tempo de garantir que as crianas no tivessem feito nada alm
de ficar admirando e babando pelos gatinhos, mas, mesmo assim, no dia seguinte, Gata da Igreja saiu
do hotel.
H ocasies, como eu bem sei, em que importante ter um bom grupo de amigos. Quando voc
injustamente acusado de algo. Quando voc encara um desafio pessoal. Quando a diretoria tenta
expulsar da biblioteca o gato querido por toda a comunidade. Felizmente, Carol Ann pertencia a uma

forte rede social em Camden e uma de suas conhecidas morava do outro lado da rua, bem prximo da
igreja. Essa jovem mulher tinha visto, da porta de sua casa, quando Gata da Igreja atravessou a
Broad Street com seus filhotes, levando um por um, pelo pescoo, at a janela do segundo andar de
uma casa abandonada.
Foi ela quem ligou para Carol Ann. Carol Ann ligou para Kim Knox. Juntas, decidiram que era
melhor fazer a mudana desses gatinhos antes que o dono da casa voltasse. Ningum morara naquela
casa havia anos, mas Carol Ann sabia que o dono guardava coisas ali dentro. Ele era um homem
legal, mas ela no sabia como reagiria se descobrisse os gatinhos. Como toda a congregao infantil
da Igreja Unida Metodista de Camden esperava ansiosamente pelo retorno de Gata da Igreja, ela no
quis arriscar.
Eu no tenho o hbito de quebrar leis, disse-me Kim, mas, s vezes, no tem outro jeito. E
foi assim que, alguns dias depois, Kim Knox se viu rastejando pela janela do primeiro andar de uma
casa abandonada, na rua principal, a apenas um quarteiro do centro da cidade, enquanto Carol Ann
esperava do lado fora, impressionada que uma mulher fina e ntegra como ela estivesse ali de vigia,
enquanto a outra entrava onde no devia.
Teve um momento, quando Kim estava na metade da janela se esticando para encontrar o cho
escondido na escurido, que ela se perguntou por que estava fazendo aquilo. Ela era uma cidad que
respeitava as leis. Era a secretria da igreja. Estava bem-vestida, pelo amor de Deus! E agora se via
invadindo uma casa em runas, possivelmente um lugar perigoso. Sem dvida, pensou consigo
mesma, estava fazendo isso pelas crianas, j que essas precisavam saber se Gata da Igreja e seus
filhotes estavam bem. Talvez ela tenha pensado que fazia isso por Gata da Igreja, mas no fundo sabia
que uma gata de cadeia sagaz como aquela no precisaria de ajuda para cuidar de sua famlia. Na
verdade, ela fazia isso para si mesma, como deve ter percebido assim que entrou na escurido
empoeirada.
Kim foi at a porta dos fundos para que a amiga de Carol Ann, a jovem vizinha, entrasse na
casa, pois Carol Ann estava convencida que tinha uma idade muito avanada para uma misso to
perigosa. Gatinha, Kim sussurrou quando sua amiga j estava l dentro, tentando no perturbar
nada alm de teias e poeira. Onde voc est, gatinha? Mveis antigos estavam espalhados pelos
quartos do andar de baixo, entre pilhas de caixas cheias de entulho. Mesmo em plena luz do dia, a
arrumao parecia perigosa. o pesadelo do ttano, Kim pensou, enquanto seus ps trituravam
cacos de vidro. As escadas eram ainda menos atraentes, mas mesmo assim elas foram at o segundo
andar e, do quarto dos fundos, ouviram Gata da Igreja miar. Quando Kim chegou no corredor, a
gatinha cinza veio correndo em direo amiga, doce e amvel como sempre.
Como uma boa me, Gata da Igreja encontrou o lugar mais confortvel no centro de Camden
para sua ninhada de gatinhos: colches e camas-box empilhadas num canto. Normalmente, camas-box
so ocas, mas uma dessas era antiga e estava cheia de algodo. Gata da Igreja retirou esse
preenchimento para fazer um ninho. Dentro, havia um punhado de gatinhos: um todo branco, outro
todo preto, um malhadinho marrom e outro listrado cinza exatamente igual me.

Kim e sua vizinha escolheram um lugar seguro no cho no meio da sala e se sentaram. Enquanto
esperavam, sussurravam de vez em quando, encorajando os gatinhos para que viessem at elas. O
colcho era um lugar perfeito para se criar uma famlia, mas elas queriam conquistar a confiana
deles, caso fosse necessrio remov-los rapidamente. No primeiro dia, Gata da Igreja foi a nica que
se aventurou a ir ao centro da sala. Como sempre, ela estava falante, doce e ansiosa por ateno. Kim
a acariciou, sentindo aquele calor gostoso dos gatos. Depois de meia hora, Kim desceu as escadas,
trancou a porta dos fundos, deixando sua amiga para trs, e saiu pela janela.
No dia seguinte, ela voltou pela janela novamente, e todos os dias foram assim nas duas
semanas seguintes. Havia algo de compulsivo em seu desejo de cuidar dos gatos, algo que tinha mais
a ver com as necessidades dela do que com as deles. Mas qual a importncia disso? Depois de
alguns dias, os gatinhos tambm amavam a sua companhia. Assim como a me, eles chegavam,
cheiravam sua mo e queriam ser acariciados, aceitando-a como parte de seu mundo. Todos menos o
listradinho cinza, que grunhia e rosnava e se enfiava de volta na cama cheia de algodo sempre que
Kim fazia um movimento em sua direo. Ele era o nico macho no ninho, por isso talvez fosse mais
cauteloso que os outros. Ou, talvez, apesar de ter a aparncia igual me, tenha sido o nico que no
herdou sua personalidade cativante.
Na segunda semana, chegou at Carol Ann um boato de que o dono da casa estava voltando. Ele
ia reformar a propriedade e vend-la. Assim, pela ltima vez, Kim Knox entrou pela janela da casa
velha para ver os gatinhos. Carol Ann entregou-lhe vrias caixas de transporte para gatos e voltou
para o quintal para esperar. Kim levou as caixas dos gatos para o quarto no segundo andar e, como
de hbito, sentou-se no cho para persuadir os filhotes a sarem do ninho. O primeiro foi fcil: ela
veio direto. Os dois seguintes foram mais sbios, correram ao redor da sala um pouco, mas, com a
ajuda da vizinha, Kim conseguiu coloc-los nas caixas.
S ficou faltando o listradinho cinza. Em vez de correr, ele se enfiou debaixo da cama, brigando
e rosnando toda vez que Kim tentava peg-lo. A cada tentativa frustrada, ele se embrenhava mais
ainda no meio do algodo. A certa altura se enfiou to fundo que ela teve que tirar a pilha inteira de
colches para encontr-lo. Ento, ela empilhou os colches de volta exatamente como estavam antes.
Por fim, depois de aproximadamente uma hora, Kim conseguiu levar as caixas com os gatos at a
porta dos fundos para Carol Ann, depois trancou a porta e arrumou tudo o que poderia ter tirado do
lugar e em seguida, pela ltima vez, saiu pela janela do primeiro andar da casa abandonada. Ela
pulou no cho, limpou a sujeira de sua bonita blusa e de sua saia, olhou para os dois lados para ter
certeza de que ningum estava olhando e atravessou tranquilamente para o outro lado da rua para
ajudar Carol Ann a colocar os gatinhos na mala do carro.
Como os gatinhos eram muito pequeninos para desmamar, Carol Ann decidiu no lev-los de
volta igreja. Carol Ann tinha um gato em casa e, por isso, elas levaram os gatinhos para a casa de
Kim, onde Gata da Igreja alimentou e cuidou dos filhotes no quarto de hspedes. Algumas semanas
depois, quando os filhotes desmamaram, o pastor, divertindo-se com aquilo tudo, permitiu que Kim e
Carol Ann colocassem um aviso na igreja dizendo que os gatinhos estavam disponveis para adoo.

Elas pediram tambm contribuies para que a gata fosse castrada, o que deu incio a uma enxurrada
de doaes, no apenas para a cirurgia, como tambm para a comida e a areia. Depois deste aviso,
Kim e Carol Ann nunca mais tiveram que pagar pelas despesas da gata.
As trs filhotes fmeas, todas fofinhas e simpticas como a me, foram adotadas rapidamente.
Mas o quarto filhote, o listradinho cinza, nunca aparecia quando havia visitas de donos em potencial.
Em vez de se mostrar, ele se escondia embaixo da cama rosnando para eles. Caso Kim o
surpreendesse, ele se apoiava nas patas traseiras e com o pelo ouriado grunhia repetidas vezes para
ela, depois saa correndo.
Depois que o terceiro filhote foi adotado, Carol Ann levou Gata da Igreja de volta para a Igreja
Unida Metodista de Camden. Kim e seu marido sentaram-se na varanda de casa, cansados mas
felizes, imaginando o que fazer com o macho rebelde. Depois de meia hora, Kim decidiu que era
melhor ver como ele estava, j que agora estava sozinho no quarto. Dessa vez, quando ela abriu a
porta, o gatinho veio correndo em sua direo, miando e miando, como se tivesse acabado de
perceber que fora deixado para trs.
Bem, ela disse, voc realmente mudou de atitude.
Ela olhou para o seu marido. Ele arregalou os olhos, depois sorriu e balanou a cabea. O
filhote cinza de Gata da Igreja ficou. Eles lhe deram o nome de Chi-Chi, que no tinha o semblante de
beb cativante da me, era maior e mais elegante, ainda assim, sempre fazia Kim lembrar da sua
amiga de escritrio. Ele no era caloroso; na verdade, era bem desapegado. Mas essa era a sua
personalidade, disse Kim. Ele era um gato bom, bonzinho. Igualzinho me.
***
Uma cidade uma sequncia de mudanas, e viver numa cidade por muito tempo significa
incorporar essas mudanas na sua vida. Quando Carol Ann se mudou para Camden, a loja de
ferragens dirigida pelo seu sogro era o centro da vida comercial da cidade. Eles vendiam de tudo, de
ps cermica, pregos e aparelhos de jantar, mas tambm faziam emprstimos e trocas por algodo.
Por um tempo, eles foram os responsveis pelo nico servio de ambulncia da rea e tambm eram
a nica casa funerria da cidade, tinham at um coveiro. Quando Harris foi para a faculdade, ele
passou a loja adiante e comeou a trabalhar no banco, mas largou esse emprego dois anos depois,
quando Broedel-MacMillan, um conglomerado do Canad, abriu uma fbrica de papel perto da
cidade. Quando seu pai se aposentou, Harris j tinha terminado um mba e era um executivo da fbrica
de papel. A loja de ferragens foi vendida, tornando-se uma franquia True Value, vendendo pregos e
ferramentas padro, mas lentamente entrou em decadncia, como o resto do centro da cidade. Mas
quem morasse em Camden havia bastante tempo saberia para onde olhar e poderia ver que Ferragens
Matthews ainda estava escrito na antiga parede de tijolos.
Quando Gata da Igreja chegou, no se pensava muito na renovao da cidade. A loja Walmart
mais prxima ficava a oitenta quilmetros de distncia; ainda assim, os moradores de Camden
arrumavam motivos para ir at l ao menos uma vez por ms. Minha me no conseguia

simplesmente passar por um Walmart, contou-me Harris, rindo. No importa em que parte do
estado estivssemos, ou o que estivssemos fazendo, ns tnhamos que parar. A religio sempre fora
uma parte importante da vida de Camden, e embora o centro da cidade passasse por dias difceis,
cada vez mais empenho e despesas eram investidos nas quatro grandes igrejas da Broad Street. Nos
anos 1990, as igrejas realmente se modernizaram e deram incio a uma srie de grandes reformas,
uma depois da outra.
A primeira perda da Igreja Unida Metodista de Camden foi o velho e confortvel presbitrio,
com seus oitenta anos de histria e pisos rangentes, que foi vendido para um jovem casal. Quando o
caminho veio remover a construo de suas fundaes e transport-la, uma pequena multido se
juntou no gramado para assistir, e muitos, especialmente os mais velhos, tinham os olhos cheios de
lgrimas. Era apenas um bangal de madeira, simples e singelo, mas foi construdo imaculadamente e
feito para durar. Agora, encontra-se numa vizinhana a menos de dois quilmetros da igreja, mais
uma vez repleto das alegrias e lgrimas de uma jovem famlia crescendo unida.
O antigo hotel, um edifcio abandonado havia muito tempo, sem nada que o redimisse, foi
demolido e transformado em um estacionamento. Da igreja restou apenas o antigo restaurante que foi
convertido em um centro para jovens e em escritrios temporrios para a administrao da igreja.
Durante quase um ano, Gata da Igreja e as crianas compartilharam aquele local, algo que as deixava
felizes. A gata preferia a companhia de Kim, especialmente sua cadeira superconfortvel, mas ela
tambm gostava de ir ao espao das crianas e miar para chamar a ateno. Quando as exclamaes
e os carinhos eram demais a menininha ainda gritava toda vez que via Gata da Igreja, s que agora
o ex-restaurante cavernoso ampliava o som , Gata da Igreja simplesmente corria e se escondia na
cozinha.
No ano aps dar luz os gatinhos, na verdade, Gata da Igreja s criou problemas uma vez, na
reunio administrativa da igreja. Kim estava fora da cidade e Carol Ann no sabia ao certo o que
fazer com a gata enquanto trabalhava na reunio. Foi logo depois da Pscoa, uma poca do ano
perfeita no sul do Alabama, quando as noites so ainda midas e frias o suficiente para aliviar o
calor do dia, e por isso ela decidiu deixar Gata da Igreja solta noite. Em seguida apressou-se em
cumprimentar os participantes da reunio, um evento importante do qual participavam o
superintendente do distrito e representantes de outras igrejas metodistas locais. Carol Ann, do seu
lugar na porta, tomava conta para que Gata da Igreja no entrasse no santurio enquanto as pessoas
chegavam, mas a pequena gatinha deve ter se infiltrado com algum que chegou atrasado, pois,
durante a assembleia, apareceu andando bem no meio do corredor central, miando para chamar a
ateno.
Carol Ann ficou morrendo de vergonha. Eu adoraria poder escrever como ela disse vergonhah porque ningum pode expressar constrangimento social to bem como uma verdadeira mulher
do Sul. Mas basta dizer que Carol Ann estava muito preocupada com o fato de Gata da Igreja ter
invadido o santurio durante a maior reunio do ano.
Pronto, acabou, pensou, enquanto retirava rapidamente Gata da Igreja pelos fundos. Isso vai

ser o fim de Gata da Igreja.


Mas, em lugar de insultos, ela escutou, atrs dela no tablado, o som de risadas. Depois ouviu o
pastor dizendo alguma coisa, depois outras pessoas rindo, at que a falha terrvel de Gata da Igreja
se tornou no um erro trgico, mas uma histria engraada para ser contada repetidas vezes em volta
do grande gramado da Igreja Unida Metodista de Camden.
Logo depois, o jovem pastor deixou a igreja. Carol Ann, Kim e muitos outros paroquianos
ficaram muito tristes de v-lo partir, mas a Igreja Metodista faz uma troca regular de pastores e
estava na hora (de acordo com o escritrio nacional) de mudar. O projeto de construo estava quase
completo e, sem a presena do jovem pastor, alguns sussurros e rumores comearam a chegar at
Carol Ann. Uma pessoa deixou claro para todos que no queria Gata da Igreja dentro dos edifcios
novos.
Assim, Kim e Carol Ann decidiram colocar uma notcia no boletim da igreja: Gata da Igreja
estava disponvel para adoo. Elas esperavam uma enxurrada de respostas, porm, depois de uma
semana, ningum tinha se pronunciado. Parte das pessoas da congregao, claro, nunca tinha
gostado da gata nos arredores da igreja, muito menos em suas casas. As pessoas que gostavam dela
e eram muitas no se sentiam no direito de ficar com a gata. Todos sabiam que Carol Ann tinha
perdido recentemente o seu amado gato Hogan, e que ela esperava, com sua tpica polidez sulista,
que ningum se oferecesse para ficar com Gata da Igreja. E assim foi.
Ento, em 2001, menos de quatro anos depois de seguir Kim Knox pela varanda do presbitrio
e entrar no escritrio da igreja, o tempo de Gata da Igreja na Igreja Unida Metodista de Camden
chegou ao fim. Ela foi para a casa de Carol Ann, onde adotou, por vingana, uma vida preguiosa e
mimada, tornando-se uma amada gata domstica. Kim Knox aparecia sempre e, a cada vez, ficava de
queixo cado.
Eu sei, eu sei, Carol Ann disse. Eu no dou tanta comida para ela. Realmente, no dou. No
sei como ela ficou to pesada.
Logo depois, a igreja batizou os prdios novos. At onde sei, eles nunca foram violados por
outro gato novamente.
Carol Ann afirma sem titubear que o projeto da construo foi uma boa ideia, mesmo que Gata
da Igreja tenha perdido seu lar. A igreja merecia um santurio melhor, uma cozinha mais ampla para
os jantares de prece s quartas-feiras e para os almoos de domingo, e mais salas de aula para as
crianas da Escola Dominical. Os novos prdios eram para toda Camden, disse Carol Ann, no
apenas para os membros da igreja. Assim, poderiam, por exemplo, estender o jantar quaresmal a toda
a cidade. Tambm precisvamos de banheiros, acrescentou Harris. Precisvamos
desesperadamente de banheiros.
Kim Knox concorda que as melhorias foram uma boa ideia. E, ela queria que todos soubessem,
os novos prdios so bonitos. De tijolos vermelhos com arremates brancos, so impecavelmente
preservados e grandes o suficiente para acomodar crescimentos futuros se a congregao da Igreja
Unida Metodista de Camden e a cidade de Camden, como um todo, vierem a crescer. As novas

construes so definitivamente muito melhores do que o hotel velho que foi posto abaixo. E sem
dvida so mais prticas e agradveis para os olhos do que os prdios antigos que estavam l. So
tudo o que uma igreja moderna, voltada para o futuro, pode ser.
Mas Kim Knox no deixa de pensar que algo se perdeu. um ambiente mais bem estruturado,
disse a respeito da igreja nova. menos descontrado e relaxado. No antigo presbitrio, onde ela
trabalhava com Gata da Igreja, ventava muito. O nico modo de aquec-lo era com aquecedores
portteis, e por isso durante todo o inverso cheirava a querosene. As janelas faziam barulho. As
portas rangiam. Mas, mesmo nos dias mais frios, Kim sentia que havia ali um calor que vinha de sua
longa histria, da madeira gasta, do som da risada do jovem pastor ecoando de seu escritrio, da
sensao de ter uma gatinha dormindo nas suas costas enquanto ela tentava se equilibrar na ponta da
cadeira. E havia tambm o som da porta se abrindo, Gata da Igreja se mexendo, um caloroso Bom
dia, Kim, seguido por um ainda mais caloroso miado.
Sim, a nova igreja linda. muito bem cuidada. algo do qual os moradores de Camden
podem certamente se orgulhar. Mas apenas um prdio. No tem calor nem histria. E nem poderia.
Ao menos, no ainda. A nova Igreja Unida Metodista de Camden no um lugar que, digamos assim,
adotaria um gato.
***
Em certo sentido, falta pouco para o final desta histria. A nica coisa a dizer que Gata da
Igreja amava sua vida com Carol Ann que a mimava, como boa av coruja que , mas a sua vida
no novo lar foi tragicamente curta. Quando Gata da Igreja contraiu uma infeco e morreu no vero
de 2005, aos oito anos de idade, Carol Ann ficou to abalada que demorou seis semanas para contar
para o resto da congregao. Ela era a gata mais gorda que j se vira, contaram-me tanto Kim como
Carol Ann em conversas separadas, mas tambm a mais feliz, e Carol Ann e seu marido, Harris,
sentiam terrivelmente sua falta. Enterraram a gata no tmulo da famlia, ao lado de geraes de
ancestrais que haviam vivido e morrido em Wilcox County, no Alabama.
No ano seguinte, Carol Ann e Harris Riggs se mudaram. A sra. Hattie, a mulher que se deitou no
cho para fazer carinho em Gata da Igreja, e a nica viva entre seus pais, morrera, e havia muito eles
tinham prometido que, quando no tivessem mais responsabilidades familiares em Camden, se
mudariam para um lugar novo. Quando suas filhas eram pequenas, viajaram bastante: para o oeste
dos Estados Unidos, para o Canad, para a Austrlia. Para se aposentar, eles se mudaram para um
lugar a duas horas e meia de distncia, Tuscaloosa, a cidade da Universidade do Alabama, onde
podem assistir a peas de teatro e ir a eventos esportivos sem ter que dirigir cinquenta quilmetros
at em casa depois de escurecer.
Eles dizem que por isso que deixaram Camden, para aproveitarem mais a vida, mas claro
que existiam outros fatores. Nenhuma de suas filhas queria morar naquela regio. Eram casadas, com
um advogado e com um diretor de atendimento emergencial federal, respectivamente, e ambas
estudavam para fazer carreira na rea mdica. No havia emprego para elas em Wilcox County.

Enquanto isso, a fbrica de papel MacMillan-Bloedel, onde Harris trabalhara a maior parte de
sua vida, foi vendida para a Weyerhaeuser, e depois para a International Paper. No seu auge, a
fbrica havia empregado quase 2 mil pessoas da regio. Agora Harris estima que ela empregue
quatrocentas pessoas, mas no sabe ao certo. Voc sabe como so essas empresas internacionais,
ele disse. Quando voc se aposenta, tiram o seu nome do computador e voc some. Some. Parecia
um final pequeno demais para os mais de cem anos de histria da famlia de Riggs em Camden.
E assim termina uma histria, mas claro que no a nica que pode ser contada sobre
Camden. A cidade fica no corao do palco turbulento da luta pelos direitos civis a sessenta
quilmetros de Selma, o lugar da famosa marcha, e a cinquenta quilmetros de Lowdes County,
conhecido como Lowdes Sangrento, por ser o lugar onde o direito ao voto dos negros foi
firmemente recusado. Portanto, existem ao menos duas conjunturas em Camden, duas histrias, duas
vises de mundo. Se voc perguntasse a outra pessoa em Camden, especialmente a um negro que
morasse l havia muito tempo, provavelmente ouviria uma histria diferente da que leu hoje.
Mas sempre h mais histrias para contar. Eu no pretendia contar a histria de uma cidade,
mas simplesmente a histria de Gata da Igreja, que viveu doces quatro anos na Igreja Unida
Metodista de Camden e morreu como viveu, com Carol Ann ao seu lado. Parece bem simples, e dei o
meu melhor para reportar a histria do modo como a sra. Carol Ann me contou. Mas mesmo algo
claro e direto como a vida de Gata da Igreja, sei bem, repleta de interpretaes e significados
particulares.
Nada deixou isso mais claro do que as minhas trs conversas, espaadas pelo intervalo de
alguns meses, com a boa amiga de Carol Ann, Kim Knox. Kim tinha uma viso diferente de Gata da
Igreja. Uma viso que no se baseava nas atitudes da gata, mas no fato de que ela estava
extremamente infeliz quando se mudou para Camden, um lugar sobre o qual ela nunca ouvira falar at
seu marido arrumar um emprego como professor da escola local. Ela amava a cidade e as pessoas,
mas, como diz a Bblia, era tempo de provao. Sua me morreu assim que ela se mudou, e ela no
tinha ningum com quem se abrir. Pior ainda, depois de anos tentando, descobriu que nunca poderia
ter filhos.
Isso era bem diferente do caso de Mary Nan Evans com seus 28 gatos na Ilha de Sanibel. Mary
Nan me disse, sem hesitar, que ela nunca lamentou no poder ter filhos. Ela mais velha que Kim e,
portanto, j mais distanciada da decepo, mas eu no acho que seja por isso que ela no se
arrependeu. Ter filhos, parecia, nunca foi algo essencial na sua vida. No era algo de que ela
precisasse para se sentir feliz.
Kim Knox era diferente. Percebia-se isso com clareza em sua voz. Kim Knox queria filhos
desesperadamente. Ela precisava deles, e foi um terrvel golpe quando descobriu que no poderia tlos. Ela e o marido tentaram todas as formas de tratamento de fertilizao in vitro, que eram muito
caras para eles. Fizeram pesquisas sobre adoo, mas, depois de mais de um ano de telefonemas e
reunies, viram que mesmo as alternativas mais baratas estavam alm de seus modestos recursos.
No houve um momento determinado em que ela tenha se dado conta da realidade dos fatos. No

houve crises no escritrio, nem soluos durante a noite, nem manhs sombrias em que a presena de
Gata da Igreja acalentava sua alma enquanto ela se sentia abalada. Chorou, chorou muito com o seu
marido, um mar de lgrimas, mas o processo emocional de gradualmente se desfazer de suas
esperanas no foi uma sbita redeno, foi um lento e gradual colapso de todos os seus sonhos, e a
contribuio de Gata da Igreja era seu afeto constante, um calor dirio, mais do que um nico gesto
inesquecvel.
Mas esse afeto era importante, mais do que Carol Ann ou eu podemos compreender. Para Kim,
Gata da Igreja no era apenas uma gata fofa. Era uma fonte de conforto e fora. Ela era a amiga para
quem Kim podia voltar sua compaixo e energia materna quando no havia mais para onde dirigi-la.
Esteja presente. esse o conselho para ajudar pessoas que esto sofrendo. Esteja presente por
eles, para qualquer coisa que precisarem. Isso, em poucas palavras, representa Gata da Igreja.
E isso foi to importante que, atravs da pequena gata, Kim construiu uma rede local de apoio.
Atravs dela, Kim tornou-se amiga de Carol Ann e afinal confiava nela. Com a ajuda dos papis
espalhados e do papel higinico rasgado, ela desenvolveu uma relao leve e calorosa com o jovem
pastor, que lhe permitiu, finalmente, no silncio do presbitrio, e apenas com Gata da Igreja de
testemunha, aliviar seu corao.
Isso muda a histria de Gata da Igreja? Explica por que uma mulher no exerccio da profisso
passa sua hora do almoo subindo a janela de uma casa abandonada? Eu no sei. O marido de Kim,
que era mais velho, estava em seu segundo casamento e em sua segunda profisso, como professor.
Ele tinha um filho do casamento anterior, mas o menino fora seriamente doente durante toda a vida.
Em 1999, enquanto Gata da Igreja paria os seus filhos no velho hotel, os mdicos do menino
recomendaram um transplante. O marido de Kim doou um rim. Ele e Kim perceberam que o tempo
gasto, a recuperao fsica e os custos significavam o fim de suas parcas esperanas de algum dia
adotar uma criana. Mas foi algo que eles nunca hesitaram em fazer. Eu no posso deixar de acreditar
que, quando Kim Knox se sentou naquele quarto abandonado, suavemente encorajando os filhotes da
gata a confiarem nela, estava exercendo seu papel de me. Estava sendo reconfortada por aquelas
vidas, pequenas e macias. Ela estava, a seu modo, fazendo luto pelo que ela nunca poderia ter.
Ento, em agosto de 2002, Kim recebeu um telefonema do antigo jovem pastor da Igreja Unida
Metodista de Camden. Uma mulher fora v-lo, o pastor lhe disse. Sua sobrinha conhecia uma jovem
mulher que no tinha recursos para ficar com seu beb. Ela estava com sete meses de gravidez, e
procurava algum que quisesse adot-lo.
Oito semanas depois, em outubro de 2002, Kim Knox dirigiu cinco horas para encontrar a me.
No levou nada alm de uma muda de roupa e um banco de criana para o carro. Recusou-se a
comprar qualquer outra coisa. Estava com muito medo, depois de tantos anos de sofrimento, de que
algo desse errado.
Dois dias depois, ela estava na sala de parto quando seu filho adotivo, Noah, chegou ao mundo.
A me no falava ingls, mas ela implorou a Kim, com palavras tortas e gestos, que ficasse com ela
no quarto de recuperao, para deix-la segurar, por um momento, o recm-nascido. Eles viram a

me novamente quando o menino tinha onze meses. Foram at Birmingham, a algumas horas de
Camden, para encontr-la. A mulher chorou, sorriu e, com seu ingls ruim, agradeceu, abraou seu
filho e depois sumiu. Kim sentiu seu corao se partir, quase to forte como sentira o seu prprio.
Mas para onde ela foi, ou por que, Kim no sabe.
Ns ficamos to felizes quando conhecemos Noah, a sra. Carol Ann disse. E ele era uma
gracinha. Todos da congregao o amavam.
Em 2005, Kim e seu marido voltaram para Laurel, no Mississippi, a cidade natal de Kim. Eles
amavam Camden, mas no tinham familiares na regio, e queriam que o menino deles crescesse
cercado pela famlia. A mudana foi apenas dois meses antes do furaco Katrina. Apesar de estarem
a muitos quilmetros da costa, foi com horror que viram da casa da tia Lee as rvores despencando e
caindo. Eles agarraram o filho e esperaram que o filho de Gata da Igreja, Chi-Chi, que haviam
deixado num abrigo de animais prximo, sobrevivesse tempestade.
Ele sobreviveu, mas isso outra histria. Nesta, basta dizer que Gata da Igreja no era apenas
um rostinho bonito, que o seu amor proporcionou a Kim Knox, e talvez a outros em Camden, uma
presena tranquilizante em tempos difceis. E que Kim Knox, com a ajuda da gata gentil e do pastor
bondoso, sobreviveu ao seu tempo de provao e viu seu sonho de ser me se tornar realidade. E o
filho de Gata da Igreja, Chi-Chi, embora nunca tenha sido amigvel como a me, amava seu
irmozinho Noah com uma intensidade que surpreendeu at Kim, que ir para sempre apreciar a
ternura e inteligncia dos gatos.

9
Dewey e Ferrugem

Eu estava deitado de cabea para baixo, com a cabea sob o painel, quando senti algo sobre o
meu peito. Olhei para cima e l estava aquele pequenino gatinho laranja e branco, com idade
estimada entre seis e oito semanas. E ele estava no meu peito miando. Olhei e disse: Epa, oi,
Ferrugem, como est?. Eu fiz um carinho nele, e ele se deitou no meu peito e ficou ali. E nunca
mais saiu.

PARTE I
Para quem mora no noroeste de Iowa, Sioux City o centro das atividades. Vamos at l para
fazer compras de Natal, para ir ao teatro e para nos divertir, para encontros de negcios, para danar
e para obter cuidados mdicos especializados. A cidade grande, resmungamos em Spencer,
balanando a cabea. A Cidade Ferrovia, dizemos, porque no se pode andar nem quatro
quilmetros em Sioux City sem se deparar com trilhos. Gente demais. Trnsito demais.
Mas isso no de todo verdade. A verdade que Sioux City bem diferente do resto do
universo das plancies altas. As cidades so em sua maioria planas, ensolaradas e abertas para o cu.
Sioux City densa, industrial e alta, cheia de campanrios de igrejas e torres de fbricas. uma
dessas cidades antigas, como Pittsburgh ou Cleveland, que parece ter sido cavada do cho fora
bruta. Cleveland tem petrleo. Sioux City foi construda para o gado. Chegavam mil cabeas de gado
a cada vez, descendo o rio Missouri, ou por trilhas terrestres, para serem confinados, engordados e
abatidos nas fbricas de tijolo cru ao longo do rio, e depois levados embora em vages ferrovirios.
O rio Missouri, razo pela qual a cidade est localizada ali, tambm trouxe outras coisas:
granito, gros, ao, couro e os homens, que os retiravam, construam e transportavam. O centro de
Sioux City tinha os melhores hotis e restaurantes da regio. Os armazns da Lower Fourth Street, no
limite do centro da cidade, eram o epicentro do vcio principalmente do gnero lquido de uma
regio de 160 quilmetros. As casas dos trabalhadores se estendiam at as montanhas, esculpidas
pelo rio e seus afluentes, pontuados aqui e ali por igrejas catlicas e ortodoxas para os imigrantes,

em sua maioria do Leste europeu, que construram a cidade, pedra sobre pedra. Em uma ribanceira,
ficava o octgono, a casa de um velho capito de barco a vapor, construda de forma que ele pudesse
olhar o rio. Na montanha mais alta, Rose Hill, ficavam as manses dos donos dos abatedouros e
fbricas, construdas em grande parte com o granito bruto de Sioux Falls que era sempre enviado rio
abaixo e transportado para o resto do mundo.
Glenn Albertson cresceu em um bairro operrio vizinho de Rose Hill, na poca que as fbricas
zumbiam, que havia barcos descendo o rio e que cada dez blocos de casas e prdios de quatro
andares, construdos muito prximos uns dos outros, parecia ser o mundo inteiro. A famlia de Glenn
se mudava com frequncia, mas parecia sempre voltar para perto da Pierce Street, onde as vitrines
das lojas ficavam muito prximas da rua e os fundos davam, geralmente, para pousadas da era
vitoriana. Na dcada de 1950, quando Glenn era menino, existiam padarias, barbeiros e pequenos
mercados locais em quase todas as esquinas. As crianas jogavam bola, andavam de bicicleta e iam
a p para a escola, mesmo no frio horroroso do inverno de Sioux City. No vero, reuniam-se na
calada, admirando a grande televiso em cores na janela da loja de televises e aparelhos
domsticos Williams.
Elas eram autossuficientes, as crianas da Pierce Street. Seus pais trabalhavam nas fbricas.
Boa parte das mes trabalhava fora para ajudar a sustentar a famlia, fazendo servios de mulher,
como servir mesas em restaurantes, costurar e fazer faxina, tarefas que secretamente eram a espinha
dorsal do Meio-Oeste americano. Enquanto a famlia mudava de um apartamento para outro, a me
de Glenn trabalhou em uma empresa de buf, cozinhou em um restaurante de bairro e foi garonete no
caf Warrior, um grande hotel antigo que fazia parte do centro de Sioux City desde 1930. Finalmente,
conseguiu uma colocao permanente comandando a cozinha de uma casa de repouso para mulheres.
Fazia o caf da manh, almoo e jantar, recebendo pedidos especiais. Comeava a cozinhar no
nascer do sol e corria para casa todas as tardes, porque sabia que assim que seu marido abrisse a
porta, dispararia: Tem algum aqui que saiba cozinhar!?. Ento sorria e a envolvia em um abrao.
Ela sempre tinha uma refeio pronta para ele tambm.
O pai de Glenn trabalhava na Companhia de Ferramentas Albertson. O nome no era uma
coincidncia, Glenn Albertson pai, um soldado da regio de pedreiras do sul de Indiana, se casou
com Christel Mai, filha de fazendeiro da pequena cidade de Pierce, Nebraska, no fim da Segunda
Guerra Mundial. Eles tentaram ganhar a vida na regio rural de Nebraska, mas logo se mudaram para
Sioux City, a cerca de cem quilmetros de distncia, procurando por trabalho. Glenn-pai viu um
anncio da Companhia de Ferramentas Albertson e decidiu que, com esse nome, a companhia deveria
ser o seu destino. Trabalhou l fabricando ferramentas eltricas e pneumticas por algumas dcadas
antes de sair e se tornar um dos melhores pintores comerciais da regio.
Glenn-pai era um homem com H, austero e forte. Tinha um trabalho duro e trabalhava pesado.
Com um metro e oitenta, tinha 110 quilos de msculos torneados pelas horas de levantamento de
martelos e ao. De dia, moldava peas na companhia Albertson, de noite era barman e segurana na
Lower Fourth Street, o distrito de bebuns ao redor do centro da cidade. Era um homem gregrio, com

muitos amigos, e no era raro desaparecer com seus camaradas por dias. Quando Glenn-filho fez
nove anos, j conhecia quase todos os barmen da regio da Lower Fourt Street.
Senta a, garoto, e toma um refrigerante de morango, diziam. Vou encontrar seu pai para
voc. No demorava muito at o pai de Glenn aparecer para dar um tapinha nas costas do filho,
cheio de olheiras e um sorriso amarrotado no rosto, mas de alguma forma ainda bastante
apresentvel.
Vamos para casa, ele dizia. Estou com fome.
Aos dezoito, Glenn-filho tinha um metro e noventa e cinco e pesava bons 120 quilos. Era ainda
maior que seu pai, mas todo mundo o chamava de Pequeno. Quando o diretor da escola o apresentou
no grande jogo de futebol americano, Glenn entrou no estdio carregando o menor aluno da escola na
palma da mo. O menino saltou, cumprimentou Glenn e todos riram. Glenn era um gigante suave, o
grando do campus (se voc considerar a Pierce Street um campus) e amigo de todos.
Seis meses depois, estava casado, era um pai orgulhoso (apesar de acidental). Mal terminou o
ensino mdio, j abastecia e consertava carros. O posto em que trabalhava ficava perto do ponto
mais alto da Court Street, a alguns quarteires da vizinhana onde cresceu. Da frente do posto dava
para ver os prdios de dez andares do centro. Atrs deles, no dava para ver, mas ficavam o rio
Missouri e a Lower Fourth Street, onde seu pai passava as tardes na companhia de outros
trabalhadores. Atrs dele, a pouco mais de um quilmetro de distncia, sua me se debruava sobre
os foges de Rose Hill. Quando saa do posto de gasolina, andava pelos mesmos quarteires que
sempre tinha andado, onde as crianas ainda iam de bicicleta at os mercadinhos, atrs de
refrigerante e doce, mesmo que j no se aglomerassem mais na esquina para ver televiso na vitrine
da loja de eletrodomsticos. Estvamos na dcada de 1960. A maior parte delas agora tinha sua
prpria tev.
Glenn estava feliz. S queria ser um bom pai para o seu filho. Toda noite ia para casa para
coloc-lo na cama. Lia livros para ele, explicava como funcionam os motores, dizia que o amava e
que sempre estaria ao seu lado, para tudo o que precisasse. Quase congelou no primeiro inverno no
posto de gasolina, com a constante camada de neve e o vento frio do Norte do Meio-Oeste americano
castigando dia aps dia. Arrumou um segundo emprego, como cozinheiro, no s pela grana extra,
mas tambm para se manter aquecido. Aps alguns anos, trocou o posto de gasolina pelo ambiente
ameno da linha de montagem da Sioux Tools, o novo nome da companhia Albertson.
No seu tempo livre, estudou para se tornar um policial. No existia academia de polcia em
Sioux City na poca. Estudar para ser policial significava experimentar o trabalho, de forma
completamente voluntria, ao lado de um oficial snior. Glenn andou em um carro de polcia por um
ano. Investigou brigas domsticas. Participou de perseguies de carro. Convenceu pessoas com
raiva, pessoas bbadas e pessoas bbadas e com raiva a no fazerem besteira. Ele era bom nisso.
Mas o trabalho como policial no era pago. Ento, quando seu segundo filho nasceu, ele aceitou um
emprego no escritrio de seguros do sogro. Logo percebeu que era ainda melhor vendendo seguros
do que no trabalho como policial. Sabia deixar as pessoas vontade. Era enorme, mas no

intimidava ningum. Lembro das palavras usadas para descrever um capito da Segunda Guerra
Mundial, que por coincidncia tambm era de Iowa: [Ele] era um lder calado, altrusta, modesto,
mas muito forte... A gente acreditava no que ele dizia; queria fazer o que ele sugeria. Em outras
palavras, voc tinha vontade de comprar o que Glenn Albertson estava vendendo fosse uma aplice
de seguros ou uma aula de catecismo porque acreditava nele. E voc sabia que ele acreditava no
que estava dizendo. Glenn Albertson, as pessoas percebiam num instante, era um cara correto.
Sua honestidade e franqueza lhe renderam bons frutos e aos trinta anos Glenn estava ganhando
70 mil dlares por ano vendendo seguros. Tinha uma casa no subrbio, no lado mais afastado de
Rose Hill, com quatro quartos, uma enorme varanda e uma cerquinha branca que dava a volta no
jardim. Havia o jogo de bola com o filho mais velho, as brincadeiras de esconde-esconde com o
filho do meio, e sua filha pequena, que ele segurava nos braos no silncio da noite, pensando no
milagre da vida. Sua mulher costumava usar o alarme de incndio como cronmetro de cozinha,
portanto, muitas vezes, era o prprio Glenn quem preparava as refeies de noite. Levava seus filhos
com ele a toda parte: para pegar coisas no posto de gasolina ou no mercado, e quase todos os
sbados, para a garagem onde reconstrua os carros de corrida que gostava. Ele tinha at um
cachorro grande e feliz chamado Maggie. Os meninos corriam com Maggie pelo belo gramado dos
fundos da casa, enquanto Glenn, na varanda, ria e virava o hambrguer na grelha.
Aos domingos eles iam igreja. No uma dessas megaigrejas da moda, mas uma igreja moda
antiga, uma construo bonita em sua simplicidade e modstia. As missas eram sem exageros e a
comunidade era to pequena que Glenn se tornou professor de catecismo de todas as crianas da
congregao, dos bebs aos mais velhos. S trs meninos estavam interessados no time de basquete,
ento Glenn chamou uns meninos das redondezas apareceu uma grande mistura de meninos gregos,
afro-americanos e americanos nativos e lhes disse que podiam jogar basquete ali desde que fossem
igreja todos os domingos. Esses meninos se tornaram parte da famlia de Glenn. No havia nada,
Glenn Albertson diria, que trabalho duro, uma atitude positiva e amor verdadeiro no pudessem
resolver.
E ento sua filha Kari ficou com febre.
Ela s tinha seis meses e as meninas no catecismo adoravam peg-la no colo. Era um domingo
tpico de inverno, o frio entrava nos ossos e as quinze crianas corriam de um lado para o outro
quando uma das meninas se aproximou de Glenn e disse: A Kari est quente.
Glenn ps a mo na testa da filha. Estava queimando. Vou lev-la para casa, disse.
Enfiou os meninos no carro e comeou a subir a Rose Hill. Nevava muito, e o mundo estava
coberto de neve e branco. Na ltima curva, Glenn mal pde ver o carro que estava fechando a
entrada da sua garagem. Parou o carro na frente, embrulhou bem a filha com um cobertor e correu at
a porta de casa.
No conseguia pegar as chaves com a filha no colo, ento tocou a campainha. Sua mulher estava
doente em casa, ento poderia abrir a porta para ele, mas no respondeu.
Tocou de novo. Os meninos tremiam de frio do seu lado, metidos nos casacos pesados. Ajeitou

melhor o cobertor em volta da filha. Nenhuma resposta.


Ele tocou a campainha. E tocou. E tocou.
Finalmente, a porta se abriu. No era sua mulher. Era um de seus melhores amigos.
Onde est a minha mulher?, disse.
Ela est no banho, respondeu o amigo.
O casamento terminou ali mesmo. A confiana a pedra de sustentao da existncia de Glenn
havia acabado. Ele ficou na casa ainda alguns meses, nunca falou sobre o que havia acontecido,
mas a cerca branca, a casa de quatro quartos e a vida feliz, tudo isso tinha se dissolvido no frio
daquela manh de domingo de muita neve.
Eles se divorciaram. Ele saiu de casa e se mudou para um apartamento de solteiro, quase sem
nenhum mvel. Em seguida, chegou cedo ao escritrio de seguros, s para descobrir que sua chave
no funcionava mais. Seus ex-sogros trocaram a fechadura.
Voltou a fazer o que sabia. Seu sogro havia pedido que a licena de Glenn para vender seguros
fosse revogada, ento ele passava os dias debaixo de carros, administrando o departamento de
servios de uma revendedora. Passava as noites na Lower Fourth Street, trabalhando como segurana
e barman perto de onde seu pai dava planto, com uma garrafa na mo. O segundo emprego era para
pagar o advogado na briga pela custdia dos filhos, mas no incio da dcada de 1970, em Sioux City,
Iowa, os homens no eram considerados responsveis legais. Perdeu a guarda das crianas, ficando
apenas com a visita dos domingos. Perdeu a casa. Perdeu o cachorro. Tinha muitos amigos, mas
perdeu a maioria no processo de divrcio. Detestava ficar se explicando, dizia; preferia ficar
sozinho. Uma gata de rua, a Chloe, apareceu no seu apartamento e lhe fazia companhia. Ela era um
pouco arisca, mas, de vez em quando, se enroscava no seu colo. No o tempo todo, mas de vez em
quando.
Cerca de um ano mais tarde, o filho mais velho de Glenn ligou para ele num sbado tarde. Isso
era raro. Seus filhos no falavam muito com ele.
A mame est bebendo, o menino disse com sua vozinha de criana. Tem motos no jardim.
Glenn pulou no carro. Quando parou na frente de sua antiga casa, viu quatro motos no jardim e
mais algumas na calada. Um motoqueiro apareceu na porta e disse: Quem diabos voc?.
Sou o ex-marido, disse Glenn, parado no meio do jardim.
Ento melhor voc sair.
Estou aqui s pelos meus filhos.
Apareceram mais uns motoqueiros na varanda. Dois deles desceram para o jardim. No quero
fazer nenhum julgamento apressado, disse Glenn, mostrando suas mos vazias. Mas tem crianas
nessa casa, quero que elas fiquem seguras.
Havia um taco de beisebol de criana no meio do gramado. Glenn s o notou quando um dos
motoqueiros pegou o taco e caminhou em sua direo. Quando comeou a balanar o taco, Glenn no
fugiu. Na verdade, andou mais para a frente, arrancou o taco da mo do motoqueiro e bateu nos
joelhos dele. Seus amigos saram da varanda. Se tivesse um motoqueiro a mais, ou se eles estivessem

sbrios, talvez Glenn tivesse arrumado encrenca. Mas, como segurana de bar, Glenn sabia lidar com
bbados. Antes de ter tempo para pensar, um segundo motoqueiro estava cado no cho, com um
cotovelo deslocado, e os outros dois estavam correndo para as suas motos. Glenn soltou o taco de
beisebol, entrou na sua antiga casa, pegou seus filhos e os levou para o seu apartamento.
Trs horas depois, um policial bateu em sua porta. Glenn o conhecia da sua poca de
treinamento.
Glenn contou a histria para ele. O policial disse: Bom, Glenn, tudo bem, mas os pais dela
esto l agora e voc precisa levar essas crianas para casa, porque tem uma queixa de sequestro
contra voc.
Depois disso, a vida em Sioux City se tornou insuportvel para Glenn Albertson.
***
Uma vez, quando Glenn ainda trabalhava para a companhia de seguros de seu sogro, um senhor
o parou no meio da rua. Eu s queria te dizer, meu jovem, disse, olhando o terno de Glenn, que
voc parece muito esperto. Voc tem um tempinho?
Tenho, sim, respondeu Glenn.
Sentaram juntos. O homem estava imundo e desgrenhado, usando um terno bege amarrotado.
Seus sapatos no eram engraxados havia um bom tempo.
Eu era banqueiro, o velho disse, entregando um carto de visita para Glenn. Estava escrito no
carto Vice-presidente, Primeiro Banco Nacional de Chicago. Meu pai era banqueiro, e seu pai
antes dele. Todos com quem eu convivia eram banqueiros. Eu s conhecia isso. Mas quando a
Grande Depresso chegou, meu banco faliu. Perdi meu emprego. Glenn balanou a cabea e
esperou.
O que voc faz, meu jovem?
Vendo seguros.
Bom, vou dizer uma coisa para voc, caso as coisas no saiam da forma como voc quer:
aprenda a fazer o mximo de coisas possvel, pois assim voc nunca ter dificuldades para encontrar
um emprego.
Glenn agradeceu o homem pelo conselho e lhe devolveu o carto de visita, com alguns
trocados. Nunca mais o viu, e nunca soube se o homem havia realmente sido banqueiro ou se era s
um velho bbado com um carto de visita, mas o que ele disse nunca mais saiu da cabea de Glenn.
Quando seus filhos eram pequenos, aprendeu a cortar cabelos em uma escola de barbeiros. Conhecia
o ofcio de policial e de segurana. Podia vender seguros, servir em bares e consertar quase qualquer
modelo de carro. Sabia carpintaria, sabia mexer com encanamentos e eltrica o suficiente para
resolver problemas urgentes. Aprenda a fazer. Era seu lema. Aprenda e faa era o seu credo.
Mas ele nascera em um local onde o caminho para o fundo do poo era curto e grosso, e o caminho
para o topo era difcil e longo, e se houve algum dia a possibilidade de ele pegar o caminho para o
fundo, foi depois de seu divrcio. Estava com raiva e mgoa suficientes para querer jogar tudo fora

numa garrafa de bebida. Porque fcil aprender um ofcio novo, mas difcil aprender um novo modo
de vida. E quando a vida fica dura, os homens da Pierce Street correm para os bares. E Glenn? Ele
podia trabalhar na Lower Fourth Street, mas passava as noites em uma lanchonete perto de seu
apartamento, no em uma mesa de bar. Trs anos depois, casou com uma garonete que trabalhava l
e se mudou com ela para St. Petersburg, na Flrida.
Eram fantasmas demais, disse a respeito da sua deciso de sair de Sioux City. Pessoas
demais minha volta pensavam que sabiam alguma coisa. Eu fiquei cansado.
Na Flrida, Glenn trabalhou na construo civil, at que o dono da academia onde ele malhava,
ao ver sua popularidade, lhe ofereceu trabalho. Em um ano, ele se tornou gerente do lugar: vendia
planos da academia para as pessoas, trocava os filtros da piscina, consertava a hidromassagem. Fez
um curso de seis meses e se tornou massoterapeuta. Trabalhava sete dias por semana, no s por
causa do dinheiro, mas porque era um proletrio de Sioux City, Iowa, e gostava de trabalhar.
Quando os investidores deram para trs e a academia fechou, Glenn se mudou com a famlia
para o Texas, onde um amigo tinha fechado um contrato para repintar as escolas de Dallas. Tinha 35
anos, e nenhuma chave em seu chaveiro. No tinha casa. No tinha apartamento. No tinha conta em
banco. Nem mesmo tinha um carro. Mas tinha o que era importante: uma mulher, um filhinho e um
cachorro. Para Glenn Albertson, o importante nunca foi o trabalho. Ele podia ser feliz fazendo
qualquer coisa. A famlia era o importante. Eles eram tudo que Glenn precisava para se sentir em
casa.
Mas o Texas no era o seu lar. A Flrida tambm nunca tinha sido. No de verdade. Seu lar era
Sioux City, Iowa, onde seus pais tinham comprado uma casinha branca numa esquina movimentada, e
seus filhos do primeiro casamento estavam crescendo em sua antiga casa de quatro quartos e dois
andares, sem ele. Aps alguns anos, quando acabou o contrato de pintura das escolas, Glenn e sua
nova famlia voltaram para o noroeste de Iowa: de volta para os invernos gelados, o granito duro e
as perguntas dos velhos amigos. Ele voltou ao seu antigo trabalho, consertando carros. Com
frequncia, sua mulher pegava o carro para visitar os pais em Michigan, sempre com o filho junto. As
viagens eram um estorvo financeiro e ele sentia muita falta do filho, mas no se importava, porque
isso deixava sua mulher feliz. Faltava um ano, ele pensava, para a sua casinha branca, com a cerca
em volta, o jardim ao redor, e o lar da famlia.
A prima dela foi quem deu com a lngua nos dentes. Ela est saindo com o namoradinho da
escola, voc sabe, disse a prima. Ela nunca o esqueceu.
Glenn no sabia. Apesar do desastre do seu primeiro casamento, Glenn Albertson ainda era
muito honesto e confiante para cogitar a possibilidade de tambm estar sendo trado pela sua segunda
mulher.
Ao menos dessa vez, foi avisado. Quando sua mulher disse que ia se mudar para Michigan,
levando seu filho, Glenn no perguntou por qu. No lutou pelo filho porque sabia, por experincia
prpria, que era uma batalha perdida. Simplesmente dividiram as coisas e seguiram com suas vidas.
Ele tentou mais uma vez. Dessa vez casou com uma amiga, uma mulher que conhecia havia mais

de dez anos. Poderia am-la e ela dizia am-lo, ento casar com ela parecia ser uma boa ideia. Eles
no eram jovens, ento tentaram ter um filho na mesma hora. Aps alguns anos de dores de cabea e
estresse, ela engravidou. Mas perdeu o beb. Por um ms, eles se abraaram e choraram. Ento, o
mdico lhes disse que no teriam outra chance, que nunca teriam um filho. Foi uma notcia
devastadora.
Viraram pais adotivos, ficando com a guarda provisria[11] de bebs e crianas pequenas, mas
tambm de crianas mais velhas, que estavam havia muito tempo em orfanatos e desesperadas por
criar algum vnculo. A guarda provisria era recompensadora, mas tambm muito difcil. Glenn se
dedicava a uma criana, trabalhava para lhe dar segurana e uma noo de famlia, criava um lao
emocional forte, investia em sua vida e depois via a criana ir embora, muitas vezes por razes que
no compreendia. Tiveram a guarda provisria de onze crianas. Onze momentos de felicidade; onze
coraes partidos. A dcima segunda criana, eles decidiram adotar legalmente. Era uma ndia Sioux
de pai e me, sua me era muito jovem, no tinha condies de cri-la, e Glenn estava no hospital no
dia em que ela chegou ao mundo. Assim que a viu, sabia que era ela. Seu corao se abriu
imediatamente para a menina. Sua mulher sabia tambm. Deram-lhe o nome de Jenny e quando a
seguraram nos braos, era como se o mundo se fechasse ao redor deles e estivesse afinal completo.
Ou pelo menos foi o que Glenn pensou. No tinha completa conscincia do estado real do seu
casamento at um dia chegar em casa mais cedo e ouvir sua mulher falando com a me na cozinha.
Eu no preciso dele agora, ela disse.
Ento, livre-se dele, respondeu a me. Voc tem sua filha e pode ficar com o dinheiro. O que
mais voc quer?
Nada.
Com aquela palavra, outra porta se fechou sobre Glenn Albertson, na sua vida e em seu
corao. Ele tinha cinquenta anos, havia sido casado com trs mulheres por 24 anos, e o que tinha
sobrado disso? Toda a sua vida, no procurou nada alm de amor, nada mais que uma famlia. No
vou mais comear tudo outra vez, disse a si mesmo. Estava cansado disso tudo.
***
Existem milhes de maneiras de se nocautear um homem. No por contagem de pontos, mas com
fora suficiente para que no seja mais o mesmo homem quando se levantar depois do nocaute.
Talvez seja melhor. Talvez pior. Talvez fique pior por um tempo, depois melhore, e acabe sendo um
homem melhor do que teria sido se no tivesse sido derrubado. Ou talvez se levante mancando, sem
possibilidade de conserto. Afinal, se existem milhes de maneiras de ser nocauteado, existem pelo
menos mil maneiras de se levantar.
Pensamentos desse gnero vm mente quando se est no noroeste de Iowa, uma regio que foi
nocauteada diversas vezes ao longo dos anos. Durante a minha vida, o pior golpe foi a fazenda da
minha famlia. Meu pai era um orgulhoso descendente de uma linhagem de fazendeiros, mas, na
dcada de 1950, o advento das enormes debulhadoras e ceifadeiras mudou tanto a natureza quanto as

finanas da agricultura. Incapaz de arcar com as grandes mquinas, nossa produo se manteve igual
enquanto os preos caam, reduzindo as chances de xito de nossa famlia. Um dia, meu pai foi
forado a vender a fazenda para um vizinho, que cortou as rvores, derrubou nossa casa e arou toda
nossa terra.
Em Sioux City, as mesmas foras a consolidao e industrializao da agricultura e da
pecuria causaram mudanas quase to drsticas. Quando o rio Missouri era a principal artria do
norte do Meio-Oeste, a cidade era um importante centro de transportes, uma encruzilhada
desordenada onde os cowboys e os capites de navio se encontravam em meio ao usque e s
mulheres. Os currais eram dos mais movimentados do mundo e, mesmo sendo uma cidade de 120 mil
pessoas, era normal que o nmero de cabeas de gado ultrapassasse o de pessoas razo de dez para
um. As manses dos donos de matadouro em Rose Hill eram feitas de granito puro, e as igrejas
tambm. Mesmo a Escola Secundria Central, construda com granito de Sioux Falls em 1893, era um
castelo, com direito a torres e torres.
Mas depois da Segunda Guerra Mundial, o rio Missouri comeou a perder sua fora.
Autoestradas substituram as ferrovias e os barcos a vapor, descentralizando a produo agrcola e
fazendo com que os agricultores e pecuaristas ficassem mais prximos a suas terras natais. A cidade
sofreu diversas vezes com enchentes, at finalmente se realizar um grande projeto de infraestrutura
para modificar o curso dos afluentes que desaguavam no Missouri. O negcio dos matadouros
decaiu, com as fbricas que trabalhavam para ele, e, finalmente, a populao. Sioux City encolheu de
120 mil moradores para 100 mil e depois para 90 mil. O aeroporto fechou um dos terminais,
chegando a ter s alguns voos por dia. Com o tempo, o centro da cidade foi revitalizado e a Lower
Fourth Street foi transformada em uma regio de compras e entretenimento, e mesmo a antiga casa
noturna de motoqueiros El Forastero foi transformada em um condomnio de luxo. Mas fora do centro
da cidade, o gelo ainda rachava as ruas ngremes, inclume aos constantes asfaltamentos. E o vento
rtico penetrava as vitrines da Pierce Street. A maior parte das manses de Rose Hill foi
transformada em prdios de apartamentos. A Sioux Tools fechou. A padaria da esquina da casa dos
pais de Glenn se tornou uma loja de convenincias, com as luzes piscando sobre as pequenas bombas
de gasolina at as trs horas da manh. O pai de Glenn, um beberro, falastro e trabalhador da velha
Sioux City, desenvolveu um tumor de fgado inopervel.
Anos antes, quando Glenn ainda no tinha sua prpria famlia, seu pai havia sado de casa.
Glenn nunca soube a razo; simplesmente assumiu que devia ter relao com o lcool. Por um tempo
pensou que nunca mais veria o pai. Mas quando Glenn Albertson pai voltou trs anos depois, era um
homem novo. Ainda gostava de beber e de trabalhar, mas era mais gentil e compreensivo.
Reconhecia mais o que tinha em casa. Reconquistou sua mulher at ela se apaixonar por ele de novo,
casou novamente com ela e foram felizes pelo resto da vida. Ganhou de novo a confiana do filho
Glenn sempre amara seu pai, de qualquer jeito e agora reconhecia a relao que tinham. Mesmo
quando estava morando na Flrida e no Texas, Glenn ligava para seu pai toda semana. Aps o seu
terceiro divrcio, fundaram uma empresa de pintura juntos e muitas vezes dividiram o mesmo quarto

de hotel por semanas. Pintaram a McGuire, uma base da Fora Area americana, em Trenton, Nova
Jersey. Pintaram a escola de ensino mdio de Madison, Nebraska, onde Glenn fez o desenho de um
drago, o mascote da escola, em um belo mural pintado mo livre. Quando viu o prdio da
Donnelly Marketing no sul de Sioux City, Glenn pensou que jamais terminariam o trabalho. O prdio
ocupava um quarteiro, com trs andares de altura, sem janelas. Trabalhando lado a lado, s os dois,
acabaram o trabalho em apenas trs meses, fazendo inclusive os letreiros mo.
Mas o trabalho mais importante de pintura que Glenn fez foi pintar o querido Buick LeSabre
1984 de seu pai depois de uma tempestade de granizo. Durante uma semana, tirou todos os
amassados do carro, enquanto seu pai olhava, encostado na parede. Ele pintou o carro de vermelho
vinho, cuidadosamente, removendo at mesmo a listra dourada que seu pai detestava, substituindo-a
por uma marrom metlica. Quando terminou, seu pai saiu com o carro e o mostrou a todos os seus
amigos. Estava to impressionado com o que seu filho tinha feito to orgulhoso que queria que
todos vissem. Glenn buscou a aprovao das pessoas a vida inteira, e aos quarenta anos finalmente
conseguiu. Alguns anos depois, Glenn Albertson pai faleceu.
Pouco tempo depois, Glenn foi morar com a me. Os dois estavam em fase de transio:
Christel Albertson da vida de mulher casada, Glenn de dcadas de tentativas de ser marido e pai.
Glenn resolvia alguns problemas para a me, consertava pequenas coisas na casa e de vez em quando
cozinhava, apesar de sua me ser de longe a melhor cozinheira da vizinhana. Seu quarto, como
dizia, era monstico: uma cama, uma cmoda, sem rdio ou televiso, sem nada nas paredes. De
noite, tocava violo, passando os dedos nos filetes por alguns minutos, criando calos que o ajudavam
a segurar as cordas. Durante o dia trabalhava na New Car Row, a trs quarteires da Sixth Street,
entre os trilhos do trem, onde todas as revendedoras tinham seus showrooms. Com o passar dos anos,
trabalhou em quase todas as revendedoras da regio, se reconfortando com a rotina de inspecionar,
diagnosticar, desmontar e remontar. E se um Porsche precisasse ser dirigido em alta velocidade de
vez em quando, como teste para um cliente, Glenn no reclamava.
Ele via sua filha adotiva, Jenny, todo domingo. Iam igreja e depois faziam o que ela quisesse
tomar sorvete, passear no parque, andar de carrossel. Ele ligava para seus outros filhos, mandava
cartes em seus aniversrios, tentou manter contato, mas eles raramente retornavam seus telefonemas.
Sentiu a vergonha do amor renegado e assumiu sua parte da culpa por no poder ser o pai que sempre
quis ser. Um dia, quando seu violo no lhe deu as respostas que procurava, comeou uma terapia.
Tornou-se integrante regular de um grupo de apoio a pais divorciados, sentando no meio da fumaa
de uma dzia de cigarros e ouvindo as histrias de outros pais que haviam sido desprezados... ou que
haviam desprezado. Falava devagar, com uma voz grave, oferecendo conforto mais do que conselhos,
e raramente falava de suas prprias circunstncias. Uma noite, mencionou que tocar um instrumento
era uma das grandes felicidades de sua vida e a freira que coordenava o grupo pediu que ele
trouxesse seu violo. Tocou em pblico, para um grupo de maridos deslocados e pais esquecidos,
pela primeira vez em anos.
Logo depois, quando estava correndo com o cachorro de um vizinho por uma estrada de terra,

avistou uma picape passando ao lado de um bosque.


O que est acontecendo?, perguntou ao motorista.
O fazendeiro tem um carro velho l dentro. Vamos cortar algumas rvores, tirar o carro de l e
lev-lo para o triturador.
Glenn reconheceu a carcaa enferrujada: um Studebaker Commander 1953. Ver aquelas linhas
sinuosas, mesmo meio escondidas pelas rvores, trouxe de volta lembranas de sua infncia. No em
Sioux City, onde passava o ano na escola, mas da cidade natal de sua av, Pierce, Nebraska, onde
passava as frias de vero. Pierce era uma cidade pequena, uma encruzilhada pacata, de menos de
mil habitantes, o tipo de lugar onde os homens dirigem charangas velhas, as mulheres fazem tortas em
casa e o vizinho de frente da casa da sua av ainda aparava a grama com a ajuda de uma parelha de
cavalos. De qualquer cmodo da casa de sua av, Glenn podia ouvir o apito da maria-fumaa quando
ela se aproximava da interseo no meio da cidade, e saa correndo para v-la passar no meio da
nuvem de fumaa. Glenn Albertson era feito do granito de Sioux City e dos veres de Pierce: o longo
passeio de bicicleta at o local de pesca; o barulho dos carros passando nas ruas de paraleleppedo;
a nica rvore grande da cidade; o nico policial; a proximidade de pessoas que se conheciam (e
muitas vezes eram parentes, se no de sangue, pelo menos em sua ascendncia alem) e passavam
pela vida juntos, trabalhando nas terras do vizinho que ficou doente no vero sem pedir pagamento
algum.
Sua av passava os dias na cozinha, tagarelando uma lngua que misturava alemo e ingls do
mesmo modo que suas mos misturavam manteiga e farinha. Nunca ficou confortvel com o ingls,
ento Glenn lhe escrevia cartas, que ela lia e relia para estudar a lngua. As tardes eram passadas
esperando pelo av. J com sessenta anos, o homem trabalhava longas jornadas como carpinteiro, e
se a primeira coisa que fizesse ao chegar em casa fosse acender um cigarro da marca Salem e regar o
jardim, Glenn sabia que ele estava cansado. Se ele parasse o seu Studebaker 1941 na calada e no
na garagem, Glenn sabia que iam pescar. Ele ficava segurando as varas, que saam pela janela, e seu
cachorro, Spook, latia no banco de trs enquanto o Studebaker cinza corria pelas poeirentas estradas
de terra.
Quando Glenn no estava na cozinha da av, estava na casa ao lado, uma oficina de conserto de
carros. Vendo o mecnico desmontar motores, Glenn se apaixonou por carros. Aos dez, dirigia o
Studebaker do av. Aos doze, sabia exatamente como um carro funcionava. Em frente oficina, do
outro lado da rua, ficava um ferro-velho, de propriedade do irmo do mecnico, e Glenn participava
das excurses de reboque de tratores e caminhes de terrenos baldios e do desmonte para ficar com
as partes. Um dia, o reboque passou por um estacionamento, e l no meio, brilhando no Sol, estava
um Studebaker Commander 1953. Um dia eu vou ter um desses, Glenn prometeu a si mesmo.
No era s a vontade de ter um carro esportivo, algo que ressoava como eu sou um homem
para todo menino americano com a cabea no lugar. Era a ideia de chegar l, de ser bem-sucedido,
de viver a vida que deixaria um garoto orgulhoso. Mas era tambm, tantos anos depois, em uma
estrada de terra nos arredores de Sioux City, a ideia de um lar. Havia algo em um Studebaker

Commander 1953 que era ligado s suas lembranas de apfelstrudel, de pescarias e do cachorro
Spook em seu pequeno carrinho, sendo puxado pela bicicleta de um menino.
Eu quero esse carro, disse Glenn para o motorista da picape.
Acho que no, amigo, disse o motorista. Esse carro est muito enferrujado. Faz anos que no
sai do lugar.
Ainda assim eu quero, disse Glenn. Algumas horas depois, o Commander estava parado numa
garagem perto da casa da me dele. Naquela tarde, Glenn deve ter dado a volta no carro umas vinte
vezes, s seguindo as linhas com seus olhos. Estava to mal conservado quanto o motorista da picape
tinha dito. Talvez pior. Glenn sabia que tinha encontrado um projeto para a vida inteira.
A primeira coisa que fez foi lixar a ferrugem. Nada como uma camada externa de maus-tratos,
essa velha pele morta, para fazer um carro parecer irreparvel. Tire a ferrugem e voc sabe o que
sobrou. Buracos so mais fceis de se resolver do que se imagina. necessrio apenas ir com calma
para descobrir onde esto e quo profundos so. Glenn foi com calma. Tirou cada manchinha de
ferrugem, at estar diante do metal por baixo dela. Ento, consertou os buracos. O Studebaker
Commander 1953 um esportivo da metade do sculo, remanescente dos carros que Sean Connery
dirigia nos velhos filmes de James Bond, e Glenn lixou e consertou o carro at que estivesse com
curvas suaves, elegantes como um agente secreto.
Ele retirou o motor. Desmontou o bloco para que as peas torcidas, quebradas e enferrujadas
pudessem ser jogadas fora se necessrio. Trabalhou lentamente, indo s reunies de pais divorciados
no fim da tarde, dedilhando seu violo de noite, economizando para comprar as peas. Comprou as
vlvulas de admisso de um velho Ford; vlvulas de exausto de um Oldsmobile; pistes de um
Chevrolet antigo. Saa da garagem, acendia um cigarro e ficava olhando para o cu de noite,
pensando na cozinha de sua av e no Buick que seu pai tanto amava. Depois de um tempo, apagava
sua guimba e voltava ao trabalho, ajeitando o para-choque ou polindo os cilindros. Ele mexeu em
cada fenda, verificou cada borboleta e cada vlvula. Demorou mais de um ano, mas quando o motor
foi colocado de volta no Studebaker, estava completamente reformado e perfeito.
Sua tarefa seguinte era juntar tudo. O eixo motor, o eixo da manivela, os eixos da roda, a coluna
de direo, tudo precisava funcionar em conjunto. Glenn poliu e reconstruiu as conexes, parafuso
por parafuso, junta por junta. Depois de dois anos de trabalho, a chave virava na ignio, o motor
girava e as rodas rolavam. Levou o carro para a loja da esquina. Foi dirigindo o carro para uma
reunio de pais divorciados, com o violo enfiado no banco traseiro, e o exibiu a sua filha, Jenny,
apesar de no lev-la para passear nele. Ainda no o carro ainda era perigoso demais. Ele tinha luz
de freio, mas o sistema eltrico ainda era parcial, e o chassi lixado no havia sido pintado. Podia no
ser bonito no ainda , mas o Studebaker respirava de novo.
Algumas semanas depois, Glenn estava sob o painel do carro, cantarolando e trabalhando na
fiao, quando sentiu algo cair sobre seu peito. Olhou para cima quase batendo a cabea na parte
de baixo do painel e deu de cara com um gato laranja e branco. O gatinho era pequeno,
provavelmente tinha seis ou sete semanas, e estava olhando para Glenn com a cabea meio de lado.

Ele no tinha ideia de onde viera o gato, mas alguma coisa na cor de sua pelagem o lembrava do
Studebaker quando foi tirado do meio do mato.
Epa, oi, Ferrugem, como est?, disse, fazendo um carinho na cabea do gato.
O gato se enroscou na palma da mo de Glenn. E depois voltou a encar-lo. Finalmente, deitouse no peito de Glenn e comeou a ronronar. Aps um minuto, Glenn deu de ombros e voltou a
trabalhar. O barulho das ferramentas e o ronronar suave de Ferrugem eram os nicos sons na garagem
vazia.
Na noite seguinte, o gatinho estava esperando quando Glenn chegou. Quando deu a mo, o gato
se aproximou e se roou. Bom ver voc de novo, Ferrugem, disse Glenn. Ferrugem olhou para ele
com a cabea inclinada, depois miou. T bom, t bom, disse Glenn. Estou te ouvindo. Quando
Glenn deslizou para baixo do painel, Ferrugem pulou de novo no seu peito e se enroscou para tirar
um cochilo. Na noite seguinte, ele estava l de novo. Passada uma semana, Glenn percebeu que o
gatinho estava dormindo no Commander, esperando por ele. Comeou por lhe oferecer a carne do
sanduche ou alguns de seus salgadinhos. Ferrugem cheirava tudo com avidez; comia quase tudo
agressivamente.
Quer vir para a minha casa, Ferrugem?, Glenn perguntou uma noite. Enquanto consertava o
carro, conversava com Ferrugem como se fosse um velho amigo. Ferrugem agora no ficava mais s
olhando com a cabea inclinada, ele respondia. O gato parecia sempre ter algo a dizer.
No est interessado?, Glenn perguntou, quando Ferrugem no o seguiu pela porta no fim da
noite. Tudo bem. Te vejo amanh.
Glenn levava jeito com animais. Quando criana, tentava levar para casa todos os vira-latas que
encontrava. Jumper, um labrador agitado, s durou alguns dias antes de o pai de Glenn deix-lo na
fazenda de uns amigos. Glenn encontrou um terrier sangrando no acostamento e o levou para o poro.
Deu gua e lhe fez curativos e quando ele sobreviveu primeira noite, batizou-o de Rocky. Um ano
depois, seus antigos donos viram Rocky brincando com Glenn e pediram o cachorro de volta. Logo
depois, Spook seguiu Glenn at em casa. Nas duas vezes que seus pais se mudaram sem contar para
ele uma vez para um apartamento no mesmo prdio, outra para uma casa no mesmo quarteiro , foi
o latido de Spook que lhe indicou o caminho. Quando morou no Texas, seu amigo tinha um leo, e
Glenn fez amizade com ele tambm (o leo depois foi levado para um zoolgico, mas estvamos na
dcada de 1970; imagino que naquela poca lees morassem nos subrbios de Dallas). Os dois
andavam no Pontiac Grand Prix de Glenn, a cabea do leo para fora do carro de um lado, o rabo
dele do outro.
Ento, no foi nenhuma surpresa para Glenn quando, algumas noites depois do primeiro convite,
Ferrugem o seguiu at em casa. Infelizmente, a me de Glenn j tinha um gato. Um gato mau, genioso,
arisco. No ano anterior, Glenn o havia encontrado e resgatado depois de ele ficar cinco semanas
preso em uma cisterna abandonada o gato havia lambido a umidade das paredes e comido insetos
para sobreviver (o que pode ser uma histria tima outra hora) , mas ainda assim aquele gato no
lhe prestava nenhum favor. De jeito nenhum, por pura obstinao territorialista, ele deixaria

Ferrugem entrar na casa. Ferrugem era um gato grandinho e o nico dos dois gatos com garras, mas
no era bom de briga. No por medo ou submisso, ele s... no tinha uma personalidade agressiva.
Ele era um gato do tipo viva e deixe viver.
Glenn pediu desculpas a Ferrugem, disse que ele podia voltar para a garagem com o
Commander, mas Ferrugem escolheu ficar na varanda. Estava sempre l quando Glenn saa para o
trabalho, e sempre l quando ele chegava em casa de noite. Depois do jantar, iam juntos para a
garagem, trabalhar no Studebaker; Glenn at pensou algumas vezes em lev-lo para uma reunio de
pais divorciados. Naquele vero, a prefeitura comeou uma obra grande na Court Street, a rua larga
ao lado da casa da me de Glenn, ento Glenn e Ferrugem criaram o hbito de andar por nove
quarteires no meio da obra at o bar do Bill. Ferrugem esperava do lado de fora enquanto Glenn
tomava um drinque. Metade das vezes, quando Glenn saa, Ferrugem havia feito amigos.
o seu gato?, a mulher perguntava e em geral era uma mulher.
sim.
Ele to fofo. E carinhoso.
Ah, dizia Glenn. o Ferrugem. um gato legal.
Um dia, o outono chegou e os dias ficaram mais curtos. A Court Street reabriu para o trfego,
ficando perigosa demais para os passeios de Ferrugem. Glenn comeou a tocar numa banda, s uns
amigos tocando blues, e comeou a passar algumas noites por semana fora. Ferrugem comeou a
pular na balaustrada da varanda e da para a janela da cozinha, para ficar olhando fixamente a casa
quentinha por dentro. Toda noite, na hora de ir para a cama, Glenn via Ferrugem olhando para ele.
Quando se olhavam nos olhos, o grande gato laranja sempre comeava a miar e arranhar a pata no
vidro.
Precisamos deixar ele entrar, me, disse Glenn. Est frio l fora.
A me de Glenn no queria nem ouvir falar nisso, s de pensar em como o gato dela estava se
comportando. Ento, quando uma casa foi posta para alugar a dois quarteires dali, Glenn se mudou.
A nova casa era outra verso do seu quarto de monge, um lugar pequeno, sem moblia, mas pelo
menos dessa vez Glenn tinha um companheiro. Ele deixou uma janela aberta para Ferrugem, que o
grande gato s usava quando Glenn no estava. Quando Glenn estava em casa, o gato sempre ficava
ao seu lado. E ele gostava especialmente de comida de gente. Tudo o que Glenn cozinhava, Ferrugem
cheirava. Se gostava do cheiro, precisava provar. Se gostava do sabor, gemia at Glenn lhe dar um
prato cheio. Depois de lavar a loua, Glenn normalmente deitava no sof para Ferrugem subir nele e
massagear sua cabea com as patas. Era a melhor massagem do mundo depois de um dia de trabalho.
Na casa de sua me, Glenn tocava violo todas as noites na cama. Metade das vezes, acordava
de manh e encontrava o violo aconchegado em seus braos. Aquele violo se tornou meu melhor
amigo, me disse Glenn uma vez.
Se voc quiser interpretar, talvez por isso Ferrugem detestasse o violo. No comeo, assim que
Glenn pegava o violo para ensaiar algumas msicas, Ferrugem saa pela janela.
s rock and roll, Glenn lhe dizia, rindo enquanto tocava o primeiro acorde.

Por fim, Ferrugem passou a ficar por ali. Sempre que Glenn tirava o violo do estojo, ele
passeava em volta e entrava nele. Depois dava tapinhas na tampa at ela fechar. Glenn no sabia o
que o gato fazia l dentro, mas enquanto ele estivesse tocando violo, Ferrugem ficava dentro do
estojo. Assim que Glenn abria o estojo para guardar o violo, Ferrugem saia correndo. Quando
Glenn se deitava, Ferrugem sempre subia na cama ao seu lado.
Mesmo quando Ferrugem ficou preguioso e parou de acompanh-lo at a garagem, Glenn
continuou com o trabalho, pintando o Studebaker de preto fosco; no era chamativo, mas
definitivamente era bacana. Ele ainda no confiava em todos os sistemas, que tinham uma tendncia a
no pegar, mas tambm no trabalhava mais to obsessivamente no seu carro. Tinha substitudo isso
por noites no jardim com Ferrugem. A casa alugada era colada na rua, mas tinha um jardim com
rvores, flores e borboletas, as prediletas de Ferrugem. Com dois anos, Ferrugem j tinha quase dez
quilos, e tambm era um gigante suave. Podia ser que fizesse mal a uma mosca, mas nunca faria mal a
borboletas. Nas raras ocasies em que pegava uma no ar, sempre a soltava depois. Quando um galho
quebrou durante uma tempestade, Glenn o prendeu em um ngulo que permitia que Ferrugem subisse
nele para ter uma viso melhor do jardim. Ele adorava sentar nos galhos e observar os pssaros,
depois ficava olhando atravs da cerca para o jardim do vizinho. Ferrugem conhecia cada folha de
grama do jardim, mas nunca saa da propriedade. No botava um p para fora.
Eu andei observando, esse gato nunca sai, disse o vizinho para Glenn, impressionado.
Glenn deu de ombros. o Ferrugem, disse.
Ele era um companheiro leal. Sempre que Glenn falava sobre seus problemas e vitrias, suas
queixas e recompensas, as piadas divertidas que tinha ouvido no dia , Ferrugem escutava. E
respondia. Ferrugem podia falar a refeio toda e enquanto Glenn lavava a loua, se estivesse a fim.
Miau-miau-miau-miau-miau. Quando Glenn estava triste, Ferrugem sabia. Pulava em seu colo e o
encarava da forma como tinha feito no primeiro dia no Studebaker Commander: com a cabea
inclinada e aqueles olhos fundos, inteligentes. Ento encostava seus bigodes olfativos na barba de
Glenn. Isso a forma de um gato fazer perguntas. Tudo bem, amigo? Glenn respondia esfregando sua
barba no rosto de Ferrugem, dizendo a ele que tudo estava bem.
Ferrugem tambm ajudou Glenn com sua filha, Jenny. Glenn nunca tinha conseguido ser prximo
de seus outros filhos; Jenny era a sua ltima chance de ser o pai que sempre quis ser. Por deciso
judicial, ela passava um fim de semana a cada quinze dias com ele, e ele lhe dava tudo o que podia.
Jenny adorava o pai, Glenn sabia disso, mas tinha medo que ela se afastasse como seus outros filhos
haviam feito. Mas no com Ferrugem ao seu lado. Jenny amava Ferrugem. Toda vez que Glenn
buscava Jenny na casa de sua me, ela perguntava por ele. Quando se viam, a menina e o gato
comeavam a correr. Jenny abria os braos e Ferrugem pulava neles como um cachorrinho.
Ferrugem sempre teve ossos largos. Aos cinco anos, estimava Glenn, o gato pesava facilmente
doze quilos, mas Ferrugem se recusava a ser pesado. Glenn achava que era tudo msculo, j que
Ferrugem gostava de comer restos de comida e amava subir em rvores, mas at ele precisou admitir
que Ferrugem parecia um buda gordo quando sentava nas suas patas de trs. Jenny, aos oito anos,

achava que Ferrugem era rechonchudo e tomou para si a tarefa de faz-lo emagrecer. Ela segurava as
patas dianteiras dele, mexendo-as para a frente e para trs, como se estivesse danando o ch-chch. Ento, o deitava de costas, pegava as patas traseiras e as pedalava em crculos como se ele
estivesse andando de bicicleta. Chamava isso de exerccios do Ferrugem Bolota.
Hora dos seus exerccios, Bolota, ela dizia para Ferrugem toda manh de sbado, depois de
comer panquecas com mel. Ele meio que suspirava, pendia a cabea e marchava resignado, porque
no importava o que Jenny pedisse, Ferrugem fazia. E mesmo depois desse exerccio todo, ele se
enroscava ao lado dela todas as noites. Ele a amava, era simples assim. Amava Jenny de um jeito que
Glenn compreendia, porque ele a amava da mesma forma. Eles ficavam desapontados toda vez que a
me de Jenny vinha busc-la no domingo noite.
Os anos se passaram, de dia trabalhava como mecnico, depois ia para a casa da me para
jantar ou ajudar em alguma coisa. Passava as noites com Ferrugem ou nas reunies de pais
divorciados, onde se sentia mais um conselheiro do que um sobrevivente. Ainda trabalhava em seu
Studebaker Commander, devagar e sempre. Consertou a direo, alinhou a caixa de marchas, pintou
chamas vermelhas na lateral. No tinha um plano ou destino final. O Commander era o projeto de
uma vida, e ele ansiava por estar sempre consertando, sempre trabalhando, aprimorando. Se uma
banda de que ele gostasse estivesse tocando, dirigia na quarta noite at a danceteria Eagles. Tinha
muitos amigos na cena musical e muitas vezes o chamavam no palco para tocar uma ou duas msicas.
Mas ele nunca danava. As mulheres sempre o chamavam, mas ele recusava. No queria ser rude, s
no tinha energia para isso. Ele estava ali pela msica.
Quando um velho amigo, Norman Schwartz, decidiu fazer uma danceteria na cidadezinha de
Waterbury, Nebraska Vamos voltar aos dias de diverso, Norman lhe disse, s rock-and-roll
clssico e bandas ao vivo , Glenn resolveu contribuir com fora fsica, ajudando Norman a limpar
o terreno e a instalar o piso de madeira que ele havia comprado do antigo ginsio da Igreja de So
Miguel, logo antes de ela ser demolida.
Achei que voc era alrgico a trabalhos manuais, disse Norman, fazendo troa.
Eu sou, Glenn lhe assegurou, mas posso sofrer para ajudar um amigo. Eles abriram algumas
cervejas e beberam em nome dos velhos tempos. Ele estava chegando aos sessenta e as nicas
mulheres da sua vida, de agora em diante, pensou, seriam sua me e sua filha. Seu melhor amigo,
alm de Norman, era um gato. Um homem podia se sair pior. Muito pior. Ento, Glenn decidiu se
aposentar. Imaginava que ia voltar para casa, para seu Studebaker Commander, seus grupos de apoio
e seu violo noturno. Pescaria quando quisesse, ajudaria Norman com a danceteria, passaria tempo
com Ferrugem e com sua me. Mas no seu ltimo dia de trabalho na oficina, uma freguesa entrou e
disse sem rodeios: Voc no vai se aposentar. Vai trabalhar para mim.
A mulher tinha um programa de empregos para adultos com necessidades especiais chamado
Novas Perspectivas. Glenn disse a ela: Obrigado pela oferta, mas sinto muito, no sei nada sobre
esse tipo de trabalho.
Voc vai gostar, ela respondeu. S passe l para dar uma olhada.

O Novas Perspectivas era uma sequncia de prdios baixos de concreto, na parte de cima de
uma rea comercial ao leste de Sioux City. No era nada demais, nem por fora nem por dentro, mas
as pessoas tornavam o local especial. Bobby, entusiasmado, colecionava garrafas para o dia da
redeno, falando com todos na sala. Uma jovem havia perdido grande parte da sua funo cerebral
aps ser atropelada, mas lembrava o aniversrio de todos e era capaz de dizer em que dia da semana
ia cair a data em qualquer ano. Precisavam de um homem forte para segurar Ross, um diabtico de
130 quilos com sndrome de down, quando ele comeava a ter convulses. medida que andava
pelas instalaes, enquanto ia conhecendo os adultos especiais do programa de trabalho, Glenn foi se
sentindo cada vez mais alegre e aliviado. Havia trabalhado todos esses anos em seu carro, tentando
entender os sistemas. Havia passado todos esses anos com Ferrugem, aprendendo a viver como um
gato, sem ressentimentos ou decepes. Ele no havia perdido tempo. Havia trabalhado em si
mesmo. Havia trabalhado para algo. E era isso aqui.
Voc me pegou, disse Glenn. Comeo amanh.
Em um ms, Glenn no precisava mais segurar Ross quando ele tinha convulses. J o conhecia
to bem que podia sentir quando elas estavam chegando e sempre tinha um doce em seu bolso para
elevar o acar do sangue dele. Ele apresentou a jovem com leso cerebral a todos, porque percebeu
que ela adorava mostrar suas habilidades com aniversrios. Chegou um dia de manh e disse a
Bobby, o coletor de garrafas: Tenho um presente para voc, camarada, mas preciso que voc me
faa um favor.
O que , Glenn?
Eu preciso do seu chapu.
Bobby recuou. Ele usava o mesmo chapu nojento todos os dias, e no ia abrir mo dele.
Eu tenho um chapu novinho para voc, Bobby, ainda com a etiqueta da loja.
Glenn lhe mostrou um chapu de caa laranja fosforescente que tinha escrito Pneus Graham na
frente. Bobby pegou o chapu e na mesma hora enfiou a aba em seu nariz, ele tinha o hbito de
cheirar tudo. Ento, virou-se, tirou lentamente o seu chapu imundo e o entregou a Glenn. Quando se
voltou, tinha o chapu laranja na cabea e um enorme sorriso no rosto.
A gente est tentando faz-lo mudar esse chapu h dois anos, disse a mulher que tinha
contratado Glenn. Bobby no o tirava para ningum.
Aps o Novas Perspectivas, Glenn reduziu suas idas s reunies de pais divorciados. Comeou
a tocar com a banda mais seriamente, passando noites no Eagles e em outros bares de msica na
cidade. Quando a danceteria Stormn Normans Rock n Roll Auditorium abriu, Glenn no s tocou
violo com a banda como carregou o barril de chopp e ajudou a esvazi-lo. No teve uma festa
inaugural oficial; nenhuma propaganda, nenhuma placa no prdio, nenhuma seta apontando o caminho
pelo meio das colinas de milho at uma cidadezinha em Nebraska. Mas, de alguma forma, mais de
150 pessoas apareceram. No tinha ar-condicionado, nem banheiros suficientes, e as nicas cadeiras
foram emprestadas pela casa funerria elas tinham casa funerria escrito nas costas , mas foi
muito divertido.

Depois de anos de trabalho e dcadas de decepo, pode-se dizer que a vida de Glenn estava
completa. Ele tinha Ferrugem, sua me, sua filha Jenny, que j estava no ensino mdio. Tinha amigos
e msica. Tinha um trabalho importante, com pessoas que amava. Na nica noite do ms em que o
Stormn Normans ficava aberto, ele ajudava: desentupia banheiros, servia no bar, cuidava do
galinheiro um eufemismo para borrifar a pista de dana com cera antiderrapante. Depois de um
tempo, percebeu que muitas mulheres conseguiam persuadir seus maridos a ir no Stormn Normans,
mas no conseguiam convenc-los a danar. Ento, ele arranjou mais um trabalho: parceiros de dana
para as esposas frustradas de Iowa e Nebraska, o cavalheiro alto e bem-apessoado que arrastava as
mulheres e fazia com que elas se soltassem, ao menos por um minuto ou dois. Verdade seja dita, ele
mal via o rosto delas. Danar era outra forma de aproveitar a msica, de ajudar um estranho a passar
o tempo. Adorava danar havia quase esquecido como era bom , mas para Glenn Albertson, a
danceteria, apesar das luzes coloridas, no era nada alm de um mar de cinza.
At que uma noite, dezesseis anos depois de seu ltimo divrcio e dez anos depois de Ferrugem
se esgueirar pelas cicatrizes do seu corao, Glenn Albertson viu um rosto. Ele estava no bar,
fazendo drinques, quando olhou para cima e percebeu a mulher do outro lado do salo. Estava em
uma mesa no canto da pista de dana, falando com alguns amigos, e era como se um holofote
estivesse apontado para ela. Foi s um momento, uma viso por acaso, mas era algo que Glenn
jamais havia vivenciado. No mar cinza de sua vida, essa mulher parecia brilhar. E ento seus olhos
se encontraram.
Toma conta aqui, Joe, disse para o seu colega de bar, vou chamar aquela mulher para
danar.
Ele foi. Ela olhou para ele, hesitou e ento disse Claro.
Eles andaram em silncio at a pista de dana. Ela era mais baixa do que ele esperava. Sua
cabea batia no meio do peito dele, s, mas ainda assim eles pareciam se encaixar muito bem quando
comearam a se mover silenciosamente pela pista. Ela estava calada, pensando em outra coisa
talvez, mas quando olhava para ele, seus olhos envolviam Glenn, depois esperavam pelo refro, e
ento, relutantemente, se afastavam. Quando ele a conduziu pela pista de dana, ela no parecia um
obstculo. No havia resistncia, nenhum peso. S a sensao calorosa de sua mo e a lembrana do
olhar dela na direo dele.
Meu nome Glenn, disse.
O meu Vicki, ela respondeu.
Quando a msica acabou, ele passou a mo por trs da cintura dela. Se ela quisesse sair, ele
deixaria, mas ela no quis. Ela se encostou em seu brao, permitindo que ele a segurasse. Em algum
lugar fora dali, em outro mundo, o baterista marcou o ritmo, e quando a msica comeou de novo,
Glenn a guiou facilmente pela pista de dana, segurando-a junto a ele enquanto a banda tocava uma
cano que ele no queria que acabasse.
Eu tive uma noite agradvel, ele disse para Ferrugem quando finalmente chegou em casa.
Uma noite realmente agradvel.

O grande gato olhou para ele, os olhos cados, ainda meio adormecido, e miou pedindo comida.

PARTE II
Sempre adorei danar. Quando era pequena, meus pais nos ensinaram a danar com as batidas
do velho rdio na sala de estar da nossa casa de fazenda, nos arredores de Moneta, Iowa. Quando eu
tinha dezenove anos e trabalhava numa fbrica de caixas em Mankato, Minnesota, danava at cair
todas as noites. Danar me apresentou ao meu primeiro marido e me ajudou durante os dias sombrios
que se seguiram ao divrcio. Aos trinta anos, me solteira e fazendo faculdade pela primeira vez, no
tinha tempo para as chamadas atividades de lazer. Mas danar nunca foi um simples lazer para
mim. Danar era essencial. Quando ouvia a msica, quando me levantava para danar, sentia que era
eu mesma o eu bom, no o eu que havia passado por seis cirurgias por causa de uma histerectomia
malfeita e que passou quase uma dcada casado com um alcolatra. Mesmo nas noites mais difceis,
depois de pr minha filha na cama, lavar as panelas e escrever o ltimo trabalho para a faculdade,
muitas vezes ia para a cozinha, punha um disco para tocar e danava sozinha.
Dancei durante todos os meus anos na Biblioteca Pblica de Spencer. Aps o fechamento,
Dewey e eu danvamos na biblioteca, s ns dois, pulando em meio aos livros. Em eventos
pblicos, eu era conhecida por ser desinibida com meus amigos homens e meus namorados. Eu ia a
bares de solteiros tambm, apesar de nunca fazer isso em Spencer. De alguma forma, no me parecia
correto a bibliotecria da cidade se engraar com um homem alea-trio em uma pista de dana. As
pessoas, como se diz, iam falar.
Ento, eu saa da cidade: ia para a famosa danceteria Roof Garden, a trinta quilmetros de
distncia, na regio dos lagos de Iowa; ia aos lugares prediletos da minha amiga Trudy em
Worthington, Minnesota; s boates mais respeitveis em Sioux City. Eu namorava, mas os
relacionamentos nunca davam certo. Um pretendente me mostrou sua certido de divrcio na
primeira noite. Isso devia ter sido uma dica. No dia seguinte, sua mulher ligou me ameaando.
Aparentemente, seu marido tinha o mesmo nome do tio dele. O homem me mostrara os papis de
divrcio do tio.
O Cowboy, um encontro s cegas que tive em Sioux City, me levou para passear no meio dos
currais, onde o gado esperava para ser levado para o abatedouro, porque ele achava que o gado
ficava bonito luz da Lua. Ento me levou para a casa dele e me ensinou a fazer munio. Um homem
de Minneapolis me convidou para um fim de semana em seu veleiro. De repente, nos vimos no meio
de uma tempestade e eu fiquei to mareada que vomitei no meu vestido. Na manh seguinte, ele disse
que seu lugar favorito no mundo era um pedao da Itlia. Perguntou qual era o meu lugar favorito. Eu
tinha uns trinta anos e nunca havia sado de Iowa e Minnesota. Sabia que aquela relao tambm no
funcionaria.
No que eu estivesse decidida a ter um homem. Me divertia ao lado deles, especialmente
danando, mas no passava as noites ansiando por um homem. Estava ocupada demais aproveitando

o que eu tinha: um trabalho interessante, uma famlia leal, bons amigos e um gato de biblioteca
maravilhoso chamado Dewey Readmore Books. Claro, eu era basicamente a pessoa que respondia s
cartas que ele recebia dos fs, mas Dewey nunca me tratou como uma servial. ramos parceiros. Eu
no estava abrindo mo de nada ao construir minha vida em cima dessa parceria, e especificamente
deste trabalho. Estava ganhando uma vida de felicidade e risos, uma vida onde no precisava dividir
minha ateno ou gastar energia com coisas que pessoas bem-intencionadas (e intrometidas) me
diziam que eu deveria querer. Em vez disso, eu podia me concentrar nas coisas importantes: apoiar
minha filha, cuidar dos meus pais, criar amizades profundas e usar meu talento para criar uma
instituio que ajudaria os cidados de Spencer. Estava extremamente feliz como me e bibliotecria
por vocao, adorava gatos e era danarina por hbito. No queria ser uma namorada tambm.
Ento Dewey morreu.
Minha relao com Dewey no pode ser resumida em poucas frases. Sei disso. Ainda assim,
quando penso nele, sempre volto para essas poucas linhas do meu primeiro livro: Dewey era o meu
gato. Eu fui a pessoa para quem ele veio em busca de amor. Eu fui a pessoa para quem ele veio em
busca de conforto. E eu fui at ele em busca de amor e conforto tambm. Ele no era um substituto
para um marido ou um filho. Eu no estava solitria, tinha muitos amigos. No estava incompleta,
gostava do meu trabalho. No estava procura de algum especial. No era nem o fato de eu v-lo
todos os dias. Vivamos separados. Podamos passar dias inteiros na biblioteca, juntos, e mal nos
vermos. No entanto, mesmo quando eu no o via, sabia que ele estava ali. Percebi que tnhamos
escolhido compartilhar nossas vidas, no apenas amanh, mas para sempre.
Mas nada dura para sempre, no importa a fora do lao que voc estreita. Dewey era o meu
melhor amigo, era o meu conforto e minha companhia. Ele mudou a biblioteca. Ele mudou a nossa
cidade. E ele foi embora.
O trabalho no era mais o mesmo depois disso. Eu j era diretora da biblioteca havia vinte
anos. Dedicara mais de duas dcadas da minha vida a construir aquela organizao. Agora, de
repente, no parecia mais a minha biblioteca. Em parte por causa de meu relacionamento com o
conselho da biblioteca, que havia se partido no momento em que tentaram remover Dewey porque ele
estava velho. Mas tambm havia uma frieza, uma solido, um vazio que no existira entre aquelas
paredes durante os dezenove anos em que Dewey vivera l.
Como sempre, entrei de cabea no trabalho. Eu tinha projetos a terminar, metas que ainda
pretendia atingir. Queria ampliar o que eu e Dewey havamos criado, continuar a transformao da
biblioteca de um depsito de livros em um ponto de encontro de almas.
Eu tambm queria escrever a histria de Dewey. Sentia que lhe devia isso, por conta do que ele
me dera, a mim e cidade de Spencer. Devia isso aos fs dele, que mereciam a histria completa.
Seu amor, seu companheirismo, sua amizade foi por causa disso que mais de 270 jornais
publicaram o seu obiturio e mais de mil fs mandaram cartas e cartes. Por causa disso a vida dele
era importante. E era isso que eu queria compartilhar. Senti que devia o livro ao mundo porque eu
acreditava, e ainda acredito, que h uma mensagem importante na vida de Dewey: nunca desista.

Encontre seu lugar. Voc pode mudar o seu mundo.


Mas eu estava doente. Aps a morte de Dewey, desenvolvi uma infeco do trato respiratrio
superior, e no importa o que eu tentasse, no conseguia me curar. Sofri por dcadas com doenas
graves, desde que a histerectomia que fiz aos vinte e poucos anos uma histerectomia que eu nem
sabia que seria feita at acordar da anestesia causou problemas ao meu sistema imunolgico. A
cada trs ou quatro anos, o que comeava como uma amidalite terminava no hospital. Era parte da
minha vida, parte do que Dewey me ajudou a suportar.
Mas dessa vez era diferente. Dessa vez, a doena era tanto na alma quanto no corpo. Em
dezembro, me arrastei para realizar cada pedido relacionado a Dewey, mas, em janeiro, depois das
festas, o tempo brutalmente frio, me percebi cansada e fraca. Em fevereiro, a fraqueza passou para os
meus msculos e pulmes. Quando chegou maro, eu mal conseguia sair da cama. Em abril, comecei
a trabalhar em casa, com remunerao parcial, para recuperar minhas foras. Meu mdico tentou
diversos tratamentos, mas a minha sade se deteriorava cada vez mais. Nuseas, dores de cabea,
febres. Na maior parte do tempo, a nica comida que eu conseguia engolir era bolacha de gua e sal.
Meu mdico fez alguns exames. Colonoscopias, endoscopia do trato digestivo superior, ressonncias
magnticas. Aparentemente no havia soluo. Voltei a trabalhar em maio, mas no era mais a
mesma. Fui a especialistas em Sioux City e Minnesota, mas dirigir at o local das consultas me
deixava exausta. Quando o vero chegou, estava to fraca que no conseguia tomar um banho sem
depois deitar um pouco para descansar.
Todo mundo pensava que eu estava deprimida. E eu estava deprimida. A morte de Dewey,
combinada com os meus problemas com o conselho da biblioteca, destrura a paz do meu mundo.
Mas eu no adoecera porque estava deprimida, eu estava deprimida porque estava doente. E ningum
sabia o que eu tinha. Ento assim. Assim que vou ficar pelo resto da minha vida. No consigo
sair da cama, no consigo ir a lugar algum, no posso ver ningum. E ento eu morrerei.
Vinte anos antes, eu era uma me solteira que ganhava 25 mil dlares por ano. Para no ser
demitida, precisei fazer um mestrado em biblioteconomia, o que exigia uma viagem de quatro horas
ida e volta at Sioux City todos os fins de semana para assistir a dez horas de aula. Na mesma poca,
minha filha meu porto seguro estava se afastando de mim. Talvez fosse parte natural do
crescimento dela. Ou talvez fosse porque, apesar de tudo que precisei fazer para sustent-la, no
tivesse muito tempo para ela. Tudo que eu lembrava com certeza, anos depois, era da solido das
minhas noites na biblioteca, exausta e lutando para terminar meus trabalhos da faculdade e manter
minhas prioridades em ordem. Lembrava dos momentos nos quais senti que o peso era grande demais
e que o teto cedia.
Nesses momentos, Dewey estava ao meu lado. Pulava no meu colo, tirava as canetas da minha
mo, caa em cima do teclado do computador. Me cutucava com a cabea at eu ceder e ento saa
correndo do meu escritrio e se enfiava em algum corredor escuro entre as prateleiras de livros.
Algumas vezes eu conseguia ver lampejos dele enquanto desaparecia; outras, mesmo depois de cinco
minutos procurando, no o achava. Ento, quando estava prestes a desistir, eu me virava e l estava

ele, parado logo atrs de mim. E posso jurar que estava rindo.
Agora, mais uma vez, Dewey veio a mim. Antes de minha sade definhar, me comprometi a
escrever um livro, e no desistiria disso. Todo fim de tarde, aps trabalhar tanto quanto podia na
biblioteca, sentava mesa da cozinha e conversava com o meu coautor, Bret Witter, sobre Dewey. E
quanto mais falava sobre ele, mais vivo ele se tornava. Podia v-lo novamente se encolhendo quando
eu balanava sua bolinha de l vermelha, e como, na hora em que eu me virava de costas, ele pulava
em cima dela com as quatro patas. Lembro da forma exata como ele franzia o focinho quando
cheirava a sua comida e ento a rejeitava. Rio quando lembro do pobre gato encharcado e irritado
depois dos seus banhos bianuais; a forma como a sua lngua se arrastava quando ele lambia as patas;
como ele enfiava suas patas molhadas nas orelhas para se limpar bem. Eu sorri quando lembrei do
modo como ele cheirava o buraco de ventilao do meu escritrio trs vezes por dia, sempre me
protegendo.
Algumas noites, as conversas eram difceis. O suicdio do meu irmo. A morte da minha me. O
que me assustava mais, penso, era falar a respeito da minha mastectomia. Eu havia mantido minha
cirurgia em segredo, e, mesmo uma dcada depois, me sentia vulnervel e cheia de cicatrizes. Tinha
medo de admitir at para mim mesma que o meu mundo caiu quando o mdico mencionou o cncer de
mama. Ningum me tocava, ningum queria dizer aquelas palavras. S Dewey ficou ao meu lado,
todas as horas de todos os dias. S Dewey pde me dar o contato fsico que eu tanto queria.
Alguns dias eram mais difceis. A primeira vez que falei sobre a sua morte como Dewey me
olhou nos olhos e implorou Me ajude, me ajude, enquanto eu o segurava na sala de exames , eu
berrei no telefone. J haviam se passado meses, mas mais uma vez me senti achatada, esticada at
quase partir, como quando o dr. Beale me disse: Eu sinto um ndulo. um tumor agressivo. Ele est
sofrendo. No h nada que possamos fazer.
Mas abrir essa porta trouxe outras lembranas tambm. Lembrei da fria mesa de exames, dos
fios pudos do cobertor predileto de Dewey, o barulhinho do seu ronronar, a forma como ele se
derretia em meus braos e encostava sua cabea na minha pele. Lembrei da confiana em seus olhos
dourados; o interior calmo por trs de seu pavor; da proximidade de nossos coraes quando
sussurrei: Est tudo certo, Dewey. Est tudo certo. Tudo vai dar certo.
Lembro de olhar em seus olhos e perceber que estava sozinha.
Pode parecer que, na minha condio fragilizada, todo esse falar, escrever e chorar fosse
demais. Na verdade, era o contrrio: o livro estava me mantendo viva. Quando voc est to doente
que se mexer na cama a faz vomitar; quando a nica coisa que voc consegue segurar no estmago
so algumas bolachas de gua e sal; quando ningum pode assegurar minimamente que sua sade
algum dia vai melhorar, fcil desistir de um dia. E se voc comea a desistir de dias inteiros, para
onde isso te leva?
Eu nunca desisti, porque todos os dias eu esperava pelas minhas tardes com Dewey. Mesmo nos
dias em que no conseguia fazer nada alm de me arrastar at o banheiro, podia deitar no sof, o
telefone encostado na minha orelha, e falar sobre Dew.

Enquanto lia as primeiras provas do livro, quase podia senti-lo lendo junto comigo, sentado no
meu ombro. No, Dewey dizia, no foi assim. Quando ouvia esse sussurro de dvida em minha
mente, me concentrava naquele pargrafo, ou naquela frase, ou mesmo naquela palavra. Eu precisava
retratar Dewey corretamente. Sabia disso. Ele no era s o corpo e a alma do livro, ele era tudo.
Quanto mais eu me concentrava nos detalhes, mais ele voltava para minha mente e alma. E quanto
mais eu sentia sua presena, mais certeza eu tinha de que tudo no livro estava certo. No era s a
imagem e o som; eu estava captando a sensao de estar ao lado dele aquela velha magia do
Dewey palavra por palavra.
Em agosto, tomei uma deciso. Estava cansada de ouvir especialistas. Estava cansada de dirigir
duas horas para explicar a histria da minha vida para um novo mdico que no conseguia descobrir
o que eu tinha. Estava cansada de cair de joelhos exausta no fim do dia, de me arrastar para fora do
sof quando era tomada por nuseas. Se eu fosse melhorar, percebi, precisava faz-lo por mim
mesma. Aps seis meses falando dele, estava imbuda do esprito de Dewey. Realmente acredito
nisso. O seu esprito de possvel, v sempre em frente, tudo vai ficar bem me inspirou.
Me aposentei da biblioteca. No sa me arrastando como uma mulher derrotada; sa nos meus
termos, tendo conseguido alcanar todas as minhas metas principais. O conselho da biblioteca,
graas a Deus, me deu isso. Com metade do estresse e um dcimo da exposio diria a germes, me
senti melhor imediatamente.
Mudei minha dieta. Reduzi meus medicamentos. Parei de me concentrar nas minhas limitaes e
comecei a pensar nas minhas capacidades. Sabia que precisava trabalhar o meu corpo, mas odiava
exerccio. Ento voltei a danar. No comeo, passava alguns minutos me mexendo pela sala de estar
ao som da msica. Ento, caa no sof. Uma hora, comeava a marcar o ritmo com meus ps e me
balanar. Aps alguns meses sim, foram meses , comecei a danar. Sozinha, na privacidade da
minha casa, mas estava danando.
Quando chegou o Natal, estava me sentindo bem o bastante para comear a pensar em me soltar
numa pista de dana. Eu queria, no entanto, que fosse uma noite perfeita. Minha banda local
predileta, The Embers, na melhor danceteria da regio: o Stormn Normans Rock n Roll
Auditorium.
O Stormn Normans era uma danceteria bem diferente, quase secreta, localizada em um antigo
ginsio de escola em uma pequena cidade a duas horas de Spencer. Era simplesmente impossvel ir
parar no Stormn Normans por acidente, porque quando digo que Waterbury, Nebraska, era uma
cidade pequena, quero dizer dois quarteires e um semforo no meio do nada. Eu achava que era uma
cidade com s um cachorro, porque sempre via o mesmo vira-lata pintadinho parado no meio do
nico cruzamento da cidade. Mas um dia andei pela rua principal e reparei que provavelmente
Waterbury tem o mesmo nmero de pessoas que de cachorros. De certa forma me lembrava da minha
cidade natal, Moneta, em Iowa, que tinha quinhentas pessoas amistosas quando morei l na dcada de
1950, mas desde ento ficou to pequena (menos de cinquenta pessoas) que no era nem mais
considerada uma cidade. Moneta morreu quando a sua alma, a Escola Moneta, toda de tijolinhos

vermelhos, foi fechada pelo estado de Iowa em 1959. Waterbury no morreu quando a sua escola foi
fechada pelo estado de Nebraska, mas estava claramente definhando. Provavelmente no tinha mais
de oitenta pessoas na cidade, e o nico comrcio (fora o Stormn Normans) era o Bar Buzzsaw.
O Stormn Normans no parecia grande coisa visto pelo lado de fora. O antigo ginsio da
escola era um prdio de concreto cinza achatado, na sada da cidade, meio escondido atrs de
algumas rvores. O estacionamento era a rua de cascalho que ficava na frente e uma faixa de grama.
Uma rampa de madeira levava at a entrada, que era uma porta simples de metal. Dentro, um
corredor estreito ia dar na antiga bilheteria do ginsio. Jeanette, a mulher de Norman, normalmente
era quem cobrava as entradas.
Depois da bilheteria, por uma porta estreita, podia-se ver a pista de dana e at ter uma
primeira ideia do palco. Era s um palco de auditrio simples, em madeira, do tipo que havia sido
construdo em quase todas as escolas nos Estados Unidos entre 1916 e 1983, exceo de que, pela
frente, tinha um Chevy 1955 saindo bem do meio dele. O Chevy era preto, com chamas nas laterais, e
quando a banda apertava um boto, o motor ligava e as rodas giravam.
O Chevy criava o ambiente, porque quando voc passa pela porta e entra no Stormn Normans
Rock n Roll Auditorium, como se um novo mundo fantstico o mundo de 1955 explodisse em
vida ao seu redor. A sala era ampla e sem janelas, o p-direito alto e iluminado por lmpadas
escondidas, alm das vinte fileiras de luzes que se uniam sobre uma bola de espelhos no meio do
teto. As luzes direcionavam o olhar para as paredes onde trs conversveis esportivos americanos
dos anos 1950, dois deles rosa-shocking, estavam em plataformas de seis metros de altura. Debaixo
deles, guitarras autografadas e fotografias em preto e branco de Marilyn, Elvis e James Dean.
Olhando ao redor da sala, voc percebia, antes de mais nada, em cima da porta de entrada, um painel
de um Chevy antigo, e ento fileiras de bancos de madeira polida originais do ginsio da escola,
perfeitos para se descansar um pouco, ao longo da parede dos fundos. Havia dois bares simples, em
cantos opostos da sala, mas as cadeiras ao redor da pista de dana estavam alinhadas com cuidado e
me lembravam carteiras escolares e mesas de lanchonete. At as cestas de basquete originais ainda
estavam penduradas nas paredes. Era como entrar nas lembranas idealizadas de nossa festa de
formatura do colegial, mas j adultos, sem precisar provar nada para ningum. Quando duzentas
pessoas se acotovelavam no Stormn Normans e uma boa banda estava cantando rock e blues
clssico, no havia lugar melhor no mundo.
Eu estava decidida a ir para l e ouvir o The Embers tocar. E tampouco planejava ficar s
olhando. Eu ia danar. No para procurar um homem, imagine s, mas para provar que eu podia sair
do meu sof, curar o meu corpo ferido e aproveitar o resto da minha vida.
E foi assim que, no dia 15 de maro de 2008, dezesseis meses aps a morte de Dewey levar a
minha sade ladeira abaixo, me encaminhei para Waterbury, Nebraska, com duas das minhas
melhores amigas, Trudy e Faith. Eu ainda no estava saudvel me sentia terrivelmente fraca e
precisei abrir a janela algumas vezes durante o trajeto para no ficar enjoada durante a viagem ,
mas mantive isso em segredo. Estava cansada de falar sobre a minha doena, cansada de as pessoas

me perguntarem como estava me sentindo, cansada de tentar explicar. Eu s queria me divertir e a


melhor maneira de faz-lo era fingir que tudo estava bem. Alm disso, eu tinha convencido Trudy e
Faith a sarem de Minnesota para ir at l e no podia deix-las na mo agora.
Chegamos cedo (um milagre, j que a eternamente atrasada Faith estava conosco), porque eu
precisava sentar e as mesas prximas da pista de dana ficavam ocupadas rpido. No sabia o que
esperar, depois de um ano de cama, mas podia sentir a energia na sala. Assim que os Embers
comearam a tocar, meus dedos do p comearam a se mexer. No segundo intervalo, eu j tinha
danado com quatro homens. Sempre fui pequena um pouco mais de um metro e meio, e magrinha ,
mas durante a minha doena eu cheguei a pesar quarenta e trs quilos. Eu estava fraca demais para
subir escadas e ficar em p me deixava tonta. Mas danar era diferente. Enquanto eu estivesse me
movendo, enquanto no complicasse as coisas falando, meu corpo se sentia forte. Era entre as
canes, quando a msica parava, que eu comeava a definhar. Quando um cara me chamou para uma
segunda dana, eu mal pude balbuciar as palavras Desculpe, cansada demais, antes de voltar para
a mesa.
Foi durante uma das minhas pausas, enquanto tentava recuperar o flego, que ele apareceu. No
me lembro dele se aproximando. Tenho certeza de nunca t-lo visto antes, nem por um instante.
Simplesmente olhei para cima, e l estava ele, parado acima de mim. Estendeu a mo e me chamou
para danar.
Claro, eu disse.
Ele era alto e tinha ombros largos, mas era surpreendentemente leve na pista de dana. Nos
movamos juntos com facilidade, levados pela msica. Eu gostei dele no tentar se aproximar
demais, no tentar me arrastar pela pista, no sentir a necessidade de dizer alguma coisa boba ou
qualquer coisa. Simplesmente flutuvamos juntos, de uma forma que parecia to natural quanto o Sol.
Deve ter se passado meia msica antes de eu olhar para o rosto dele. Ele era impressionantemente
bonito, com um sorriso fcil e uma elegncia casual por trs de sua careca e de sua barba bem
cuidada. Mas foram seus olhos que me impressionaram. Eram os olhos mais gentis e atenciosos que
eu jamais vira. E estavam concentrados em mim. No em uma parceira de dana genrica, mas em
mim realmente, por dentro. Eu sabia, s de olhar para eles, que se ele soubesse como eu estava
doente, ele me levaria de volta direto para a minha cadeira.
Mas dessa vez eu no queria me sentar. Ento, quando a msica parou e senti seu brao deslizar
pela minha cintura, me encostei e deixei que ele segurasse o meu peso. Ele percebeu que havia algo
de errado podia ver nos seus olhos a preocupao , mas no disse nada. S me ajudou. Quando a
msica recomeou, me guiou em mais uma dana.
Preciso sentar, eu disse, relutante, aps quatro msicas.
Ele me acompanhou at a mesa e sentou na minha frente. Trudy e Faith, minhas amigas
superprotetoras, o fuzilaram com perguntas. Eu estava meio longe, incapaz de recuperar o flego, e
suas respostas pareciam sumir no meio da msica, deixando para trs s o seu sorriso agradvel.
Quando o cho comeou a girar, tentei pegar meu copo dgua, no consegui e o derrubei da mesa.

Ele pegou o copo e usou uma flanela para limpar a mesa. Danamos mais algumas msicas, no sei
bem ao certo quantas, porque s lembro do som diminuindo e da multido comeando a se dispersar.
Vou embora, ele disse. Pegou na minha mo e a beijou. Foi um prazer conhecer voc.
Eu ainda lhe estava agradecendo pela noite to agradvel quando percebi que ele tinha dado a
volta na mesa e estava me beijando no rosto. Normalmente eu no gostaria disso, um estranho sendo
to atirado, mas meu nico pensamento enquanto ele sumia na multido foi Hum... isso foi bom.
Qual era o nome dele?, perguntei s minhas amigas quando estvamos do lado de fora e a
brisa fresca de maro havia desanuviado a minha cabea. Era Paul?
Pelo amor de Deus, Vicki, disse Trudy. Ele se chamava Glenn.
Posso no ter lembrado do nome dele, mas realmente tinha alguma coisa a respeito desse Glenn
que eu simplesmente no podia esquecer. Algo que me deixava de bom humor, que me fazia pensar
nele sempre que comeava a divagar. Algo que fazia a sensao das mos dele aparecer em minha
mente nos momentos mais estranhos.
Esse algo eram os seus olhos. Pode soar estranho, mas quando olhei nos olhos de Glenn
Albertson naquela noite, no Stormn Normans, pensei em Dewey. Quando tirei Dewey de dentro da
caixa de devoluo da biblioteca, o embrulhei em um cobertor e segurei junto ao peito, ele estava
gelado. Suas patas estavam literalmente congeladas e ele tinha um pulso muito fraco. Ele no me
conhecia, mas levantou a cabea e olhou nos meus olhos afetuosamente. Eu olhei nos olhos dele e vi
confiana e franqueza.
Eu sabia que Glenn era um cavalheiro, porque no me empurrou ou tentou danar perto demais.
Sabia que era atencioso, por causa da forma como me dava apoio entre as msicas. Sabia que era
gentil, pelo modo como falou com as minhas amigas. Mas havia algo mais em seus olhos. Havia a
tranquilidade de uma alma velha e uma afeio genuna. Como Dewey, ele no estava simplesmente
olhando para mim, ele estava me vendo. E ele estava me deixando v-lo. No s a gentileza, mas o
que se escondia por trs dela: o medo e a mgoa, mas tambm uma noo profunda de felicidade e
orgulho.
Dewey o enviou, pensei, quando vi aqueles olhos. S se passou um momento, um claro
repentino, at eu perceber que era simplesmente uma questo de semelhana eles se pareciam,
Dewey e Glenn. Mas aquele pensamento ficou na minha cabea. Dewey o enviou. Eu sabia que no
era possvel, mas o amor to enrolado e complicado, to emocional e ilgico, o que podemos saber
com certeza?
Eu tinha certeza de uma coisa: queria v-lo novamente. Ento, liguei para a mulher de Norman,
Jeanette. Eu conheci um cara chamado Glenn no seu bar semana passada, lhe disse. Alto, de
barba, um sorriso bonito, bom danarino.
Conheo-o, disse Jeanette.
Ele um cara legal ou no vale a pena?
Ah, ele um cara legal, disse Jeanette, empolgando-se. Um cara muito legal. Eu no sabia
que Glenn os ajudava na danceteria havia anos. Eu no sabia que ele era amigo de Norman e Jeanette

desde o colegial. Naquele momento, no sabia quase nada sobre ele, s que era o homem mais aberto
e atencioso que eu jamais conhecera.
Posso organizar um encontro, disse Jeanette, toda feliz. Fazia isso o tempo todo na escola.
Sou realmente boa nisso. Posso ligar para ele se voc quiser.
Algumas horas depois, Glenn me ligou. Falamos por meia hora e por mais tempo algumas noites
depois. Logo, logo, estvamos nos falando todas as noites, e depois duas ou trs vezes por dia.
Falvamos sobre tudo nosso trabalho, nossos gatos (apesar de eu nunca mencionar o livro), mesmo
os assuntos proibidos: poltica e religio. Quando chegou a hora da festa seguinte no Stormn
Normans, estvamos os dois ansiosos para nos rever. S para danar, eu disse a mim mesma, ele
dana to bem. Mas o meu nervosismo enquanto Trudy, Faith e eu fazamos a longa viagem at
Waterbury, Nebraska, me mostrou que isso no era verdade. Eu sentia tanto frio na barriga que era
capaz de congelar o carro inteiro.
Nos atrasamos por causa de Faith (seguimos a hora da Faith, como costumamos dizer) e tinha
fila na bilheteria. Quando os casais saram da frente, eu o vi do outro lado da porta, me esperando.
Ele estava usando um jeans preto bonito e uma camisa preta de botes para dentro da cala, e eu
sabia, s pela forma como ele estava parado, que ele havia perdido uns minutos a mais que o habitual
para se arrumar naquela noite. Ento eu vi a rosa vermelha nas mos dele e o frio na barriga passou.
Andei e sem hesitar o beijei no rosto. No consigo lembrar o que ele disse. S lembro de danar,
porque como se fizssemos isso juntos a vida toda. Em algum momento, no meio da noite, quando a
banda tocou os primeiros acordes da msica Lost in the 50s Tonight, de Ronnie Milsap, lembro de
olhar nos olhos dele e ver pela centsima vez o afeto e um convite. Estou pronto, eles diziam.
Estou aqui. E para voc. Nunca vou magoar voc.
Minha msica predileta, disse Glenn, quando a banda comeou a cantar Shoo-bop, shoo-bebop, so real, so right.
Minha tambm, disse. Ento apoiei minha cabea em seu peito, logo acima de seu corao, e
pensei: estou em casa.
***
E se eu soubesse dos seus trs casamentos e cinco filhos? Bom, preciso admitir, ainda assim
ficaria interessada em Glenn Albertson. Talvez, se eu soubesse antes da primeira dana, as coisas
fossem diferentes. Mas depois da segunda noite? Naquela altura do campeonato, no podia voltar
atrs. Mesmo quando comeamos a nos conhecer nas semanas seguintes, e mesmo quando a vida dele
comeou a se mostrar para mim, nunca duvidei de seu carter. Um divrcio um erro. Trs
divrcios? quando voc para de apontar o defeito dos outros e comea a olhar para si. Mas Glenn
j havia feito isso. Foi por isso que, quanto mais descobri a vida dele, mais extraordinrio ele se
tornou. Eu havia encontrado muitos homens que se fecharam, que fugiam de suas emoes e no
falavam de muita coisa que no fosse algum esporte. Glenn havia passado por muito mais coisas do
que a maioria deles, mas ainda estava disposto a dividir sua dor comigo. Ele podia me levantar como

se fosse uma pena; podia desmontar e consertar o meu carro; podia me fazer uma massagem
maravilhosa e at cortar o meu cabelo; podia me dar uma rosa e um beijo e fazer com que eu me
sentisse a mulher mais bonita de Iowa. Mas, mais importante, ele podia ser honesto comigo. Ele
podia me mostrar a sua alma.
Refletir sobre a vida de Glenn, no entanto, ignorar o maior obstculo para o nosso
relacionamento: eu levava a minha vida de solteira muito a srio. Eu a vivera por tanto tempo, no
tinha nenhuma inteno de abandon-la. Como eu costumo (ou costumava) dizer: S quero um
homem se puder pendur-lo no meu armrio, como uma roupa que eu possa tirar de l quando quiser
danar. E eu no estava brincando. Com quase sessenta anos, mais de trinta anos de feliz solteirice,
no queria nem pensar em deixar um homem entrar na minha vida. Tinha dado para a biblioteca e
para a minha filha tudo o que tinha, e me sentia orgulhosa e satisfeita com o que havia conquistado.
Era prxima da minha famlia, especialmente do meu pai, que precisava de mim mais do que nunca
desde a morte da minha me. Tinha grandes amigos que conhecia havia dcadas e com quem podia
contar para amor, apoio e boas risadas. Tinha minha filha. E meus netos. Eu construa molduras de
exposio e havia planejado quatorze casamentos (e ainda farei mais), desde as flores e os convites
at a primeira msica do casal. Estava aposentada, mas ainda participava do conselho de diversas
bibliotecas por todo o estado, ento viajava regularmente. Sempre lembrarei do dia em que entrei
tropeando em um txi em Nova Orleans depois de uma noite de bebida e dana com algumas amigas
de profisso. O taxista, depois de alguns minutos, virou-se para a gente e disse: No acredito que
vocs sejam bibliotecrias. Esto se divertindo tanto.
Claro que a gente se divertia! Bibliotecrias no so senhoras de coque que sempre falam shhh.
Somos homens e mulheres altamente qualificados que administram negcios. Ns lutamos contra a
censura. Fomos os primeiros a usar e-books e redes de computador. Ns promovemos, educamos e
criamos. Nosso trabalho desafiador e complexo, ainda mais com um gato no quadro de
funcionrios, e por isso que ns gostamos tanto dele.
Podia no ser mais uma bibliotecria em atividade e podia no ter mais Dewey ao meu lado,
mas enquanto estivesse saudvel, estava feliz. Sempre vivi o mximo possvel os meus dias, e tinha
um grande apreo pela minha privacidade noite. Podia comer quando tinha fome, dormir quando
estava cansada e ver o que quisesse na televiso. Por que eu iria arriscar isso tudo por um homem?
E, no entanto, eu estava me deixando levar. E adorando! Claro, tentei me afastar algumas vezes,
me convencer de que no precisava desse tipo de relacionamento, mas essa sensao nunca durou
mais de uma ou duas horas. Glenn ligava (em dado momento nos falvamos at sete vezes por dia) e
eu sempre cedia. No a uma presso da parte dele, ou mesmo ao charme dele, mas sua suavidade.
sua compreenso. Ao seu amor to bvio. Quando eu falava de Dewey, sabia que ele no s
escutava. Ele perguntava coisas. Ele compreendia. Alguns homens se afastariam por causa do meu
amor por um gato, mas eu sempre senti que Glenn via quem eu realmente era, e gostava do que via.
E, claro, ele tinha um gato importante em sua vida tambm. Eu sabia disso por causa do tanto
que ele falava de Ferrugem. Ele era um gato esperto, me disse. Sabia seu nome. Vinha quando era

chamado. Eu ia gostar dele. Sempre se enroscava em desconhecidos. E no era s um gato de casa


tmido. No, Ferrugem era excntrico. Ele dormia em um estojo de violo e comia nachos. Brigava
com pitbulls, mas pegava e soltava borboletas. Sempre que Glenn gritava hora do banho,
Ferrugem, ele corria. No da banheira, mas para a banheira. Ferrugem amava gua. Ele deitava
todo espichado em uma banheira cheia dgua e se esbaldava.
Voc precisa ver, disse Glenn. qualquer coisa.
Acho que foi assim que ele me convenceu a ir at sua casa da primeira vez, com a promessa de
ver Ferrugem. Eu ainda estava fraca por causa da doena, e assim que sentei no sof de Glenn para
descansar, Ferrugem subiu e comeou a se enroscar nas minhas pernas. Logo estava no meu colo. Era
um garoto enorme, pesava pelo menos trs vezes mais que Dewey, mas era um ursinho de pelcia
tambm, como Glenn. Conhecer Ferrugem confirmou o que meu instinto dizia sobre o homem que,
ouso dizer, eu comeava a amar.
Aps ser aprovada por Ferrugem, Glenn me levou para conhecer sua me. Ela tinha por volta de
oitenta anos, ainda morava sozinha, ainda aparava o prprio gramado. Poderia ter sido estranho,
suponho, conhecer a adorada me do meu namorado, exceto por uma coisa: ela acompanhara a vida
de Dewey nos jornais por anos. Ento, contei a ela histrias de Dewey: como ele subiu no casaco de
uma menina com deficincia e fez com que ela sorrisse; como ele divertia as crianas deixadas na
creche da biblioteca por seus pais que precisavam trabalhar; como ele ficava no ombro esquerdo
(sempre no esquerdo!) do sem-teto que vinha na biblioteca todos os dias com o nico objetivo de
falar com o nosso gato. Ela ouvia. Sorria. Ela me ofereceu caf e bolo feito em casa. Eu via que a
magia de Dewey ainda funcionava e estava funcionando para ns duas. Como eu poderia no amar
algum que amava Dewey? Como ela podia no confiar na me de Dewey?
Quando a primavera finalmente chegou, Glenn me levou a Pierce, onde ele passara os veres na
infncia. Me mostrou a antiga casa da sua av e a oficina em que ele havia se apaixonado por carros.
Paramos debaixo da nica rvore grande da cidade, prxima do cruzamento onde Glenn ia ver o trem
soltar sua enorme nuvem de fumaa enquanto cruzava a cidade, e nos beijamos. Fomos at o Stormn
Normans para danar e Glenn pediu desculpas a Norman, pois estava ocupado demais para
continuar trabalhando de barman. Certa noite, depois do jantar, ele me levou at uma casa grande e
bonita em uma vizinhana afastada.
O que isso?, perguntei.
Minha primeira mulher e eu morvamos aqui, disse. Esse foi o nico momento em que eu me
assustei. O momento em que lembrei que no queria um relacionamento srio com um homem e
lembrei o motivo: porque eram imprevisveis e complicados.
Mas s durou um segundo. Porque eu conhecia o homem ao meu lado. Talvez no cada detalhe,
talvez no cada deciso da sua vida, mas conhecia sua alma e me sentia mais confortvel com ele do
que com qualquer outro homem que tenha conhecido. Eu estava lendo as ltimas verses do Dewey
naquela primavera e podia sentir a confiana que sempre senti quando aquele gato estava ao meu
lado. Li pela vigsima vez a ltima pgina do livro, na qual eu falo sobre as lies que aprendi com

Dewey.
Encontre seu lugar. Seja feliz com o que tem. Trate bem todo mundo. Viva uma boa vida. No
estou falando de coisas materiais estou falando de amor. E no d para prever o amor.
Chamei Glenn para vir a Spencer no Memorial Day.[12] A cada encontro nosso, ele ia florista
e escolhia a rosa mais saudvel e mais brilhante da loja, da mesma forma como tinha feito no nosso
primeiro encontro no Stormn Normans. Eu fiquei com todas, as deixava secando no meu ateli e
depois as guardava em minhas caixas de raridades. Dessa vez, no entanto, ele chegou com duas rosas
vermelhas. Estvamos planejando visitar o tmulo de minha me prximo cidade de Hartley, Iowa,
ento achei que a segunda rosa era para ela. Glenn disse que queria fazer uma outra parada antes. Foi
at a biblioteca e andou at a janela grande, onde o tmulo de Dewey estava marcado com uma
simples placa de granito. Era uma fria manh de dezembro quando, na hora em que o Sol nasceu, eu e
a assistente de biblioteca havamos partido o cho congelado e deixado as cinzas de Dewey
descansarem.
Voc est sempre conosco, eu havia dito.
Glenn colocou a segunda rosa no tmulo de Dewey. Eu sei o que ele significa para voc,
disse, me abraando apertado.
Eu vou casar com esse homem, eu pensei. E no me surpreendi nem um pouco com isso.
***
Glenn e eu estamos noivos, e eu nunca estive to feliz. Temos tanta certeza de nosso amor que
at compramos uma casa juntos, um bangal simptico na zona oeste de Spencer. Resolvemos que j
que nos casaramos logo, podamos nos adiantar e morar juntos, mas j se passaram dois anos e
ainda no nos casamos. Sei que para algumas pessoas isso pode parecer imoral, ainda que sejamos
um casal monogmico por volta dos sessenta anos, mas tenho minhas razes. No meu primeiro
casamento, em 1969, s convidei a famlia mais prxima e alguns amigos. Meu vestido era um usado,
que minha me havia comprado bem barato, quando o casamento de uma menina da regio foi
cancelado no ltimo minuto. A recepo foi no restaurante predileto do meu marido e mais da metade
dos convidados era parente dele. Era o meu casamento, mas posso honestamente dizer que nada a
respeito dele era meu. Eu sempre me senti enganada.
No me interessa se esse meu segundo casamento, no farei a mesma coisa novamente. Esse
ser especial. Vou planejar pessoalmente cada detalhe, desde as flores para a cerimnia na Igreja
Catlica de Milford at a cor da fonte no convite, ao belo vestido branco que sempre quis usar.
Glenn vai precisar abrir mo do seu jeans preto e troc-lo por um smoking, e vou convencer os
Embers a tocarem na festa, que seria no Stormn Normans Rock n Roll Auditorium, claro, se no
fosse to longe para todos conseguirem chegar.
Infelizmente, tenho estado ocupada demais para planejar o dia perfeito pelo qual esperei a vida
inteira. Dewey, um gato entre livros, o livro que escrevi em homenagem ao melhor amigo e gato de
biblioteca predileto, um livro que curou meu corpo e alma, foi publicado. Foi direto para o topo das

listas dos mais vendidos e ficou l por mais de seis meses. Algumas vezes, sinto como se tivesse
passado todos os dias desde ento viajando, mas no se engane: no estou reclamando. Nos ltimos
dois anos, tenho feito a melhor coisa do mundo: falar sobre Dewey. Minha sade ainda est precria,
e sempre ser assim. Preciso tomar cuidado para no me sobrecarregar, e algumas vezes precisei
encurtar palestras, mas quero viver tanto quanto possvel. Quero ver o mundo. Quero conhecer
pessoas incrveis que amem Dewey tanto quanto eu, mesmo sem nunca t-lo conhecido. Quero falar
sobre ele e saber que est aqui comigo e por mim. Estamos entrelaados, Dewey e eu, mais do que
nunca.
Isso no quer dizer que tudo em nossa nova vida fosse fcil, especialmente para Glenn. Ele no
se importava em abrir mo de sua casa alugada, de pr o seu Studebaker Commander 1953 em um
depsito e andar por a no seu (muito mais seguro) Buick. Mas era difcil sair de perto das pessoas
que amava. Ele visitava a sua me quase todos os dias desde que seu pai falecera, quase vinte anos
atrs; agora, com duas horas de distncia entre eles, ele s a visita de vez em quando. Todos
choraram quando ele contou para Bobby, Ross e os outros adultos com deficincia que ele estava
saindo do Novas Perspectivas.
Afastar-se da sua filha, Jenny, que estava comeando a faculdade em Sioux City, foi
especialmente difcil. Glenn perdera cinco filhos durante a vida, era impossvel no ter medo de
perd-la tambm. Ele sabia que Jenny e Ferrugem se amavam, e sabia que ele sempre quisera estar
presente na vida dela. Ento fez o maior sacrifcio: ele lhe deu Ferrugem. Hoje, Glenn vai casa
dela sempre que est em Sioux City s para ver Ferrugem, ele diz. uma estratgia transparente,
claro. Ferrugem est timo. Jenny j tinha dois bichos de estimao, mas o grande gato laranja
treinou os dois. O cachorro um molenga. Mama Kitty, uma velha gata cega, segue Ferrugem pela
casa enquanto ele mia. O velho Ferrugem adora ter animais para tomar conta e mandar e como
Jenny est mais velha, ele nem precisa fazer os exerccios do Ferrugem Bolota.
Eu sabia que Glenn sentia falta de Ferrugem. Podia ver em seus olhos sempre que saamos da
casa de Jenny. E podia ouvir em sua voz quando ele dizia, dia sim, dia no: Sabe, assim que essa
coisa do Dewey acalmar, ns deveramos ser voluntrios no abrigo de animais. Sabia, de verdade,
que ele queria um gato dele.
Mas era a que comeava o problema. Veja bem, eu no queria outro gato. Eu sempre disse para
mim mesma: Um dia. Um dia, estarei pronta. Mas sempre que pensava nisso, esse dia parecia mais
longe. Eu havia passado dezenove anos com Dewey e ainda sentia muita falta dele. Tive gatos a vida
toda, e todos morreram, claro, mas Dewey era diferente. Ele era especial. Eu o havia amado tanto e
achava que era to importante que passei um ano escrevendo um livro sobre ele. Agora, estava
passando grande parte do meu tempo em palestras sobre o livro, falando sobre sua vida e seu legado.
Eu estava ligada a ele, para sempre. No seria justo adotar outro gato. O novo gato seria sempre
comparado com Dewey, e como poderia competir?
Ento, em uma manh de dezembro, quase dois anos depois da morte de Dewey, uma equipe de
filmagem japonesa chegou a Spencer. Dewey era famoso no Japo desde que, cinco anos antes, uma

equipe viera film-lo para um documentrio. Essa segunda equipe queria dar seguimento com cenas
minhas na biblioteca, mas antes que eu pudesse tirar meu casaco e me ajeitar para comear a
entrevista, os funcionrios da biblioteca me arrastaram para o meu antigo escritrio. Eu percebi que
eles estavam animados com alguma coisa, mas no fazia ideia do qu. Ento, vi uma gatinha
minscula encolhida em um canto no fundo da sala.
Ah, ela era to fofa! Tinha o pelo longo e acobreado, com um colar branco magnfico no
pescoo. Pesava um quilo, no mximo, e metade disso era pelo. Mas eu no queria outro gato. E
definitivamente eu no queria outro gato que se parecesse com Dewey. Se adotasse outro gato,
sempre havia me dito, precisaria de um recomeo livre de lembranas. Um gato malhado cinza e
branco, talvez. Mas quando eu vi a gatinha laranja encolhida perto do aquecedor no canto do fundo
do escritrio, meu corao disparou. Foi como ver Dewey na sua primeira manh: to pequeno, to
indefeso, com uma cor castanha to maravilhosa e bonita. Ela tinha olhos verdes no lugar dos
fantsticos olhos dourados de Dewey, e sua cauda era magra, no peluda, mas fora isso...
Eu peguei a gatinha e a embalei no meu colo. Ela me olhou e comeou a ronronar. Como na
primeira manh com Dewey, eu me derreti toda.
Ento ouvi sua histria, uma histria to parecida com a do Dewey, de certa forma, que me
deixou doda. Afinal, estvamos no meio de outro inverno especialmente frio em Spencer e diversos
metros de neve e gelo cobriam o cho fazia semanas. Sue Seltzer, uma tcnica em informtica que
trabalhava s vezes na biblioteca, estava andando com seu carro em uma rua lateral do centro de
Spencer quando viu um caminho desviar na frente da loja Aparelhos de Audio Nelson. Achou que
era um monte de gelo no meio da rua, ento reduziu a velocidade. Da ela viu o monte se mover. Era
um gatinho sujo, trmulo e cambaleante, com gelo e gravetos presos em seu pelo. Ela o pegou, olhou
sua cara e pensou: Dewey. Ela sempre fora uma grande f do Dew.
Sue levou a gata para o seu escritrio e lhe deu um banho. Como Dewey, a gatinha ronronava na
gua morna. Sue j tinha cinco gatos, e seu marido se recusava a ter seis, ento ela decidiu levar a
gata para a biblioteca. Se algum gato estivesse destinado a substituir Dewey, ela imaginou, era
aquela minscula gatinha. Mas desde a publicao de Dewey, um gato entre livros, a Biblioteca
Pblica de Spencer tinha sido inundada por gatos. Dois pobres gatinhos, sinto informar, tinham at
sido enfiados na caixa de devoluo de livros. A nica coisa sensata a se fazer era implementar e
divulgar uma poltica geral de proibio de gatos. E por isso que, quando eu terminei a minha
entrevista com a equipe japonesa, a gatinha ainda estava esperando no canto do escritrio. Mas agora
ela estava sentada no colo de Glenn.
Os dois me olharam. Glenn sorriu e meio que deu de ombros. Meu corao se derreteu pela
segunda vez. E a minscula gatinha, que me lembrava tanto Dewey, algo assustador e empolgante ao
mesmo tempo, foi para casa comigo.
Aquela noite, mencionei a gatinha no site de Dewey. Um menino chamado Cody me escreveu
sugerindo que eu chamasse a gatinha de Pgina. Eu estava virando uma pgina da minha vida, ele
escreveu, o que poderia ser mais apropriado?

No dia seguinte, Pgina fez algo muito parecido com Dewey: apareceu no Spencer Daily
Reporter, nosso pequeno jornal que sai cinco dias por semana. A histria se espalhou para o Sioux
City Journal. Logo, um fotgrafo associado estava indo para Spencer, vindo de Des Moines. E
assim, Pgina e eu estvamos aparecendo em centenas de jornais por todo o pas. Bibliotecria do
Iowa adota um gato! Parece uma notcia de importncia nacional, no?
E depois?, Glenn brincou. Vo comear a noticiar o que voc comeu no caf da manh?
Aquela notcia de jornal pode ter sido a ltima coisa parecida com Dewey que minha nova gata
fez. Para o meu grande alvio, Pgina tinha personalidade prpria. No era nada parecida com o seu
irmo mais velho.
Bom... em um certo aspecto, talvez, porque quando a levamos ao veterinrio o mesmo
veterinrio que havia tratado de Dewey e descoberto seu tumor , recebemos um diagnstico
chocante. Pgina era menino.
Ento, Page Turner,[13] como o rebatizamos, tinha a masculinidade em comum com Dewey.
Mas fora isso? Nada. Fora isso, nosso novo gato no tinha nada de Dewey.
Ele era desastrado, para comear. Na primeira noite em minha casa, quebrou um anjo de
cermica quando pulou na minha mesinha lateral. Na primeira noite! Dewey era gracioso. Ele passou
dezenove anos sem quebrar nada. Page Turner no era gracioso nem para deitar. Em vez de descer
suavemente como um gato normal, ele caa no cho como um espanador peludo. E tambm no
verdade que gatos sempre caem nas quatro patas. Page Turner sentava no encosto do sof e de
repente caa de costas no cho. Ele caa at da cama enquanto dormia. Ploft, direto no cho. E nem
assim acordava.
Dewey amava o calor. Ele ficava to quente descansando na frente do aquecedor da biblioteca
que era impossvel tocar o pelo dele. Page Turner detestava calor. Mesmo no inverno, eu o
encontrava enrolado no canto mais frio da casa: as escadas do poro. Ele odiava a luz do Sol. Era
arredio diante de desconhecidos. E nunca deitou no meu colo, que era o lugar predileto de Dewey.
Page Turner preferia deitar sobre meus ps.
Ele no se importava com as minhas regras. No importa quantas vezes eu o tirasse da mesa de
jantar, ele sempre pulava em cima da mesa. Corria de um lado para o outro no meio das cortinas, me
deixando completamente maluca. Sem titubear, sempre escolhia meu melhor mvel para afiar as
garras. Tentava pegar sua cauda como um cachorro. E ficava fascinado pela televiso feito um
adolescente de queixo cado. Quando eu punha gelo na sua gua para mant-la fria, ele catava as
pedras de gelo e as caava pela casa. Dewey detestava tanto gua que nem bebia. Page nunca se
importou em ficar encharcado. Nunca se importou com as pessoas rindo dele. Dewey era digno. No
aguentava ser motivo de piada. Page Turner no parecia se importar nunca com o fato de eu cair
sentada de tanto rir das suas palhaadas.
Ainda bem, disse a mim mesma, que no tentaram pr esse gato na biblioteca. uma
concepo errnea comum a de que qualquer gato velho pode morar numa biblioteca. Page Turner,
apesar de ter um nome apropriado, era agitado demais para o trabalho. Era muito desconfiado e

tmido. No tinha uma inerente e silenciosa dignidade. Ele no era o Dewey, claro, mas tambm no
era nenhum Ferrugem. Ele no tinha empatia. No se aconchegava em voc quando voc estava triste.
Se ele pudesse dar algum conselho, seria terrvel, tenho certeza. Mas nem todos somos o fil do prato
da vida, no ? Alguns de ns, como Page Turner, precisam ser o brcolis.
Encontre seu lugar. Foi uma das lies que Dewey me ensinou. Todos temos um lugar onde
podemos nos emancipar. Por volta do vero de 2009 quando finalmente a promoo do livro
diminuiu e eu comecei a pensar em escrever este livro , estava claro que Page Turner estava mais
calmo e havia encontrado o seu lugar. Ele era to inseguro e frentico durante os primeiros meses,
podia perceber agora isso, pois a vida nas ruas tinha sido dura. Ele corria de cada rangido, sem
dvida, porque tinha sido machucado l fora. Se entupia de comida porque tinha passado fome. No
dia em que o trouxemos para casa, no sei se ele estava pronto para acreditar em algum. Mas ele
confiou em Glenn. Como Ferrugem, Page Turner pde ver a gentileza e o amor da alma daquele
homem.
Claro, ele mimado hoje em dia. Ele interrompe nosso jantar at lhe darmos algo para comer.
Ele lambe o fundo do potinho de queijo que vem com os meus pretzels (meu vcio noturno!). Ele
ataca meus ps quando eu tento dormir, deita no meu teclado quando quero escrever, e no faz nada
nos domingos alm de assistir com Glenn o Nascar, um programa sobre campeonatos de
automobilismo. Voc pode achar que de alguma forma isso ruim para ele no saudvel,
produtivo, natural e todos os outros insultos que foram proferidos sobre a forma como eu tratava
Dewey desde que o livro foi publicado , mas eu sei que Page Turner feliz. Com seis semanas, ele
estava tremendo no meio de uma rua de Spencer, imundo, com pedras de gelo e gravetos grudados no
seu pelo. Agora vive em uma casa com duas pessoas que o adoram. Tem comida de gato sempre que
quer. Dorme em uma cama quentinha. Tem brinquedos para se divertir at daqueles com os sininhos
irritantes! e um micro-ondas para olhar. Detesta desconhecidos no o vi por quatro dias da
primeira vez que meu neto veio me visitar mas tem um buraquinho para se esconder atrs das malas
no meu armrio, onde pode ir sempre que sente medo. No sai, mas no vero abrimos uma janela
para que ele possa olhar e ouvir e fantasiar sobre os pssaros no jardim.
Meus amigos acham que Page Turner se parece com Dewey. Eu no acho. Os dois so gatos
laranjas e fofinhos, mas Page tem um formato diferente (quer dizer, 100% redondo). Ele maior que
Dewey. E apesar de seus olhos estarem mudando de verde para um mbar dourado igual ao de
Dewey, eles no se parecem com os olhos de Dewey. Page no uma alma velha. Ele no sbio.
Ele um trapalho cheio de energia, algumas vezes levado, muitas vezes exasperante. Ele me faz rir
e balanar a cabea e pensar: Que diabos esse gato vai aprontar agora? Ele caloroso e carinhoso
e, sendo sincera, ele significa algo em que Glenn e eu nos concentrarmos. Algo que nosso. Juntos.
No estou dizendo que Page Turner o filho que Glenn sempre quis por perto. Verdade seja
dita, ele no nem mesmo uma nova verso de Ferrugem. Ferrugem foi o companheiro de Glenn
quando ele no queria nenhuma companhia. Por um tempo, foi a cola que deixou a vida de Glenn
unida. Mas os dois mudaram. Sempre que Glenn o visita agora, Ferrugem olha para ele, como se

estivesse verificando como est seu velho amigo. Eles miam um para o outro , Glenn mia e
Ferrugem pula nos braos de Glenn e afunda seu rosto na barba dele. Ento, Ferrugem volta para a
sua nova vida. Ele um gato calmo, do tipo que pode ser feliz em quase qualquer lugar, e encontrou
seu lugar na casa de Jenny.
E Glenn? Bom, ele adora Page Turner. Sempre que dormimos fora, ele quem pergunta: Ligou
para ver como est Page? Est tudo bem?. sempre ele quem compra presentinhos e d petiscos
para o gato. E, por favor, no pea para ver fotos. Glenn tem mais de quinhentas fotos de Page Turner
na sua mquina, e vai mostrar uma a uma. Ele tem fotos de Page Turner em seu celular e juro que ele
muda o fundo da tela todos os dias.
Ferrugem era o amigo e confidente de Glenn. Page Turner... mais como o neto de Glenn. E
no, no estou dizendo que ele literalmente um neto, ou que ele um substituto para algo que
faltava a Glenn. A vida, o amor e o desejo nunca so to simples. A felicidade nunca algo que se
possa calcular. Na melhor das hipteses, algo que pega a gente desprevenido e que nunca se
compreende completamente.
Tudo o que estou dizendo, suponho, que Dewey era um gato sbio e cuidadoso, que ajudou a
cidade de Spencer a passar por uma poca realmente difcil. Ferrugem era o cara legal que apareceu
na hora certa. Page Turner uma eterna criana. Ele divertido. Ele bobo. Ele dependente. E eu
no queria que ele fosse diferente.
Portanto, no, Page Turner no me ajudou a superar a perda de Dewey. O tempo fez isso. Page
Turner s me ajudou a entrar na fase seguinte da minha vida. A fase com Glenn. E netos. E viagens. E
uma boa sade que tenho que monitorar constantemente e que por isso irei sempre valorizar.
Construmos uma nova vida juntos, Glenn e eu. Compramos uma casa. Page Turner transformou essa
casa em um lar, e nosso pequeno trio em uma famlia.
O que mais podemos pedir de nossos gatos?

Agradecimentos
Meu maior agradecimento queles que revelaram suas vidas de tal modo que suas histrias
puderam ser contadas neste livro, e a todos que ajudaram a preencher essas histrias com
informaes adicionais, como Adrienne (Docinho) Case, dr. Nicki Kimling e Harris Riggs. E,
claro, um especial obrigado a todos os gatos maravilhosos que so o corao e a alma dessas
histrias; sem eles, nada disso teria sido escrito. Este livro , verdadeiramente, para todos os gatos
ao redor do mundo que iluminam e melhoram nossas vidas.
Para Peter McGuigan, meu agente e amigo, como posso lhe agradecer o bastante? Obrigada a
todo o maravilhoso pessoal da Foundry Literary + Media, especialmente Hannah Brown-Gordon,
Stephanie Abou e Dan McGillivray.
Para Carrie Thornton, minha editora, por sempre acreditar nesta ideia, e para Brian Tart, que
parece dirigir todo o espetculo por trs de uma misteriosa cortina, por seu apoio ao entusiasmado
apoio dela. Lily Kosner voc demais. Obrigada, Christine Ball (publicidade), Carrie Swetonic
(marketing), Monica Benalcazar (arte) e Susan Schwartz e Rachael Hicks (gerncia editorial): no
haveria nenhuma Magia sem vocs.
Obrigada, como sempre, ao meu amigo e coautor, Bret Witter, a sua famlia Beth, Lydia e
Isaac e a seus gatos Blackie e Ally. Eu sei que Bret tambm quer dizer obrigado a Kayla Voskuhl,
que ele conheceu numa apresentao na Escola para Cegos de Kentucky, e cujo sorriso, otimismo e
amor pelo seu gato, Ralph, o inspiraram. Eu sinto muito por no termos tido espao para incluir sua
histria neste livro.
minha prpria famlia nova, Glenn Albertson e Page Turner eu no poderia fazer tudo isso
sem o amor e o constante apoio de vocs.
Para todos os fs de Dewey que escreveram ou mandaram e-mails, mas que no foram includos
neste livro. Suas histrias me tocaram profundamente e me provaram que a Magia de Dewey continua
a tocar vidas pelo mundo. Obrigada por todas as palavras gentis.
E, por ltimo, mas certamente no menos importante, para Dewey Readmore Books. Seu legado
de amor e aceitao ainda me ensina importantes lies de vida. Eu sinto sua falta, meu amigo.

Animais carentes
Muitas relaes neste livro, como milhares de outras ao redor do mundo, s foram possveis
graas ao rduo trabalho de organizaes dedicadas a ajudar animais maltratados e sem lar. Segue,
abaixo, uma lista das organizaes que mudaram a vida dos animais neste livro e a de seus donos
para sempre. Se voc foi tocado por alguma dessas histrias, espero que leve em considerao a
possibilidade de dedicar algum tempo e recursos a estas ou outras organizaes similares em todo o
mundo.
Siouxland Humane Society
1015 Tri-View Ave., Sioux City, Iowa 51103
www.siouxlandhumanesociety.org
North Shore Animal League
25 Davis Avenue, Port Washington, ny 11050
www.nsalamerica.org
Humane Society of Kodiak
2409 Mill Bay Road, Kodiak, ak 99615
www.kodiakanimalshelter.com
Northwest Wildlife Rehabilitation Center
P.O. Box 4273, Bellingham, wa 98227
www.northwestwildlife.org
Adopt-A-Pet
13575 N. Fenton Road, Fenton, mi 48430
www.adoptapetfenton.com
Humane Society of Huron Valley
3100 Cherry Hill Road, Ann Arbor, mi 48105
www.hshv.org
People for Pets
2312 Highway Boulevard, Spencer, ia 51301
www.peopleforpets.com

[1] Dewey Readmore Books quer dizer, literalmente, Dewey Leiamais Livros. (N. T.)
[2]. Nos Estados Unidos, cidades incorporadas so, basicamente, cidades que elegem seus prprios dirigentes, ao contrrio de outras
comunidades que no tm representantes em nvel municipal. (N. T.)
[3]. Bobcat um lince, felino tpico da Amrica do Norte. (N. T.)
[4]. Bobcat quer dizer bob-gato, bobkitten quer dizer bob-gatinho. (N. T.)
[5]. Em ingls, s vezes, as pessoas usam o diminutivo tb para se referirem tuberculose. Os primos confundiram tb com
tv. (N. T.)
[6]. New-Skin quer dizer Pele-Nova. (N.T.)
[7]. O escritor americano Ernest Hemingway ganhou um gato com doze dedos de um capito. Atualmente, no Museu Casa de
Ernest Hemingway, h diversos gatos descendentes desse gato de doze dedos. (N. T.)
[8]. Paws quer dizer patas, e rescue quer dizer salvamento ou ajuda. (N. T.)
[9].wpa (Works Progress Administration) foi uma iniciativa do governo do presidente Roosevelt, em 1933, para criar empregos nos
Estados Unidos. (N. T.)
[10]. Norman Rockwell foi um importante pintor e ilustrador americano do sculo xx. (N. T.)
[11]. Em ingls, foster parents, quando um casal concorda em criar uma criana sem ser legalmente considerado pai da criana.
Legalmente, as crianas permanecem filhas de seus pais biolgicos. (N. T.)
[12]. Memorial Day um feriado americano, que ocorre na ltima segunda-feira de maio, para celebrar a memria de soldados mortos
em servio. (N. T.)
[13].Page Turner, literalmente, quer dizer Virador de Pgina. uma expresso em ingls usada para falar de livros que prendem
fortemente a ateno do leitor. (N. T.)

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