A Ciência É Inumana
A Ciência É Inumana
A Ciência É Inumana
A CIENCIfl
EINUMANAP
Ensaio sobre a livre necessidade
A CliNCIA
EINUMANAP
Ensaio sobre a line necessidade
Henri Atlan
Colepilo
QUEST&ES DA N O SSA EPOCA
Volume 117
A tlan, Henri
A c ie n c ia e in u m a n a : e n s a io so b re a liv re
necessidade / Henri Atlan ; traduifao de Edgard de
A ssis C arv alh o. S5o P aulo : C o rtez, 2004.
(Colepao questSes da nossa epoca ; v. 117)
A CIENCIA
( INUMANA?
Ensaio sobre a livre necessidade
Tradupao de
EDGARD DE ASSIS CARVALHO
/^C O R T Z
^CD ITO RO
/S1GORT6Z
'S? D IT O R fi
Sum ario
1 . O inumano......................................
/ E i CO R TEZ
' D I T O R O
[0 inumano]
O inumano diz respeito apenas a especie hum ana. S om ente seres hum anos podem ser
inumanos ou confrontados a inumanidade. As
existencias mineral, vegetal e animal pertencem
apenas ao nao-humano. Justamente pelo fato
de a ciencia ser uma das atividades mais caracterfsticas da especie humana, a questao que hoje
se coloca diz respeito ao carater humano ou
inumano de suas p ro d u ces. Nesse caso, a cien
cia poderia ser considerada inumana?
Desde a invenao do fogo, as ciencias e as
tecnicas sempre fascinaram e amedrontaram simultaneamente, pois tudo o que fizeram foi aumentar os poderes dos homens sobre a natureza
e sobre eles mesmos inclusive em sua inu
manidade. Por meio da sua pesquisa de mecanismos, explicagoes causais e leis profeticas que
reduzem o campo do livre-arbftrio a algo que
/acoRTez
V& D IT O R O
A CIENCIA E INU M A N A ?
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lugao biologica do seculo X X 1 consistiu precisamente em explicar, pelo menos em linhas gerais, esses comportamentos, pretensamente caracterfsticos da vida, a partir das propriedades
ffsicas e quimicas das moleculas, que tinham a
estrutura conhecida e podiam ser sintetizadas
em laboratorio de modo artificial. O primeiro
abalo ocorreu no infcio do seculo XX com a
smtese da ureia, molecula de origem organica.
Desde entao, a bioqufmica nao parou de sintetizar novas moleculas organicas (ate as protefnas,
nos anos sessenta), reduzindo cada vez mais o
1.
Da sintese da ureia a descoberta do codigo genetico,
nos anos sessenta, os que chegaram a pensar que conseguiriam explicar o ser vivo pelo metodo mecanicista opuseram-se aqueles para quem esse fato constituia uma vitoria
apenas parcial.
Os grandes exitos da biologia molecular ocorreram tambem nos anos sessenta: de um lado, a descoberta do substra
ta molecular dos genes sob a forma do ADN, de outro, os
mecanismos pelos quais esses genes orientam a sintese das
protefnas. A natureza ffsico-qufmica dos genes e o mecanismo de sintese das protefnas (moleculas observaveis unicamente em seres vivos) constitufam os dois grandes problemas classicos da biologia que o metodo bioqui'mico ainda
nao havia chegado a resolver, permitindo que uma concep^ao
nao-mecanica da vida ainda tivesse algum espac^o. O ftm do
vitalismo ocorreu a partir dessas descobertas.
A CIENCIA E INU M A N A ?
17
19
proprio fim fundava a possibilidade de sua liberdade. Nao foi, portanto, um Newton, mas um
5.
do se descobre que uma decisao foi de fato determinada por um desajuste hormonal, uma predisposigao genetica, uma influencia social ou
cultural, tal ideia fica bem mais dificil de ser
defendida. O conhecimento cada vez mais amplo dos dispositivos fisico-quimicos conduz inexoravelmente a concepgao de um determinismo que concede apenas um lugar pequeno ao
livre-arbitrio, senao mesmo nenhum. Ele nos levaria a encarar nossa experiencia subjetiva e so
cial do livre-arbftrio como uma ilusao forjada
por nossa imaginagao. Nesse sentido, a biolo
gia parece acabar com a conquista do determinismo absoluto e, em conseqiiencia, eliminar
completamente a realidade de nossa experien
cia da liberdade, concebida como uma capaci
dade de livre escolha eficiente.
A crise nao encontra precedentes. Um indivfduo que nao tenha verdadeiramente experien
cia com a pesquisa cientffica sera certamente
pouco sensfvel a esse fato. Ele podera ficar fascinado ou horrorizado com os horizontes abertos por certas tecnicas, como a da clonagem por
exemplo, mas nem por isso colocara em duvida
seu livre-arbftrio. Em contrapartida, aqueles que
acumulam as duas experiencias irao vivenciar
o dilema ate as ultimas conseqiiencias. No trabalho ou em areas centrais de seu interesse, eles
tem a experiencia dos determinismos que revelam nossos conhecimentos atuais, continuando
I a viver e a fazer escolhas em seu cotidiano. Vivem o hiato em seu interior, divididos entre a
experiencia cognitiva e as experiencias afetivas.
Diante dessa situagao, duas atitudes sao possiveis. A primeira preconiza a resistencia. Sim,
existe hoje um domfnio no qual o sujeito e livre
e nao determinado, o famoso dommio suprasensfvel kantiano. O argumento defendido por
esses resistentes e consideravel: se nao continuarmos instalados nessa posigao, tudo cai por
terra. Junto com o livre-arbftrio, desmoronam a
moral e a responsabilidade. Quem ousaria admitir que nao existe mais moral e nem responsabi
lidade? Contra tudo e contra todos e preciso,
entao, continuar a afirmar nossa livre vontade.
Seria necessario opor-se a todas as descobertas
cientfficas, mas tambem psiquicas, psicanalfticas, sociologicas, que conduzem a morte do
sujeito. Segundo essas concepgoes, tudo aquilo
que eu creio decidir, querer por mim mesmo
enquanto sujeito livre, senhor de meu destino e
de meu comportamento, e determinado por todo
um conjunto de fatores que mal conhego. O sujeito livre torna-se, entao, uma ilusao e se apaga na areia como a figura do homem de Foucault.
Essas filosofias da suspeita que nao contam
com minha adesao 6 sao originarias de uma
efetiva crise social. A moral cotidiana e o proprio direito se fundamentam na existencia de
agentes responsaveis por seus atos. O hiato nao
cessa de se ampliar entre o que e socialmente
conveniente e os conhecimentos novos aos quais
chegamos.
Dai a considerar o progresso dos conhecimen
tos, e das ciencias em particular, como uma
ameaga a estabilidade moral e jurfdica da sociedade falta muito pouco. Mais ciencia parece
querer dizer menos humanidade. As respostas a
esse crescente mal-estar sao multiplas; a insti---------
\y 6. Foucault se situa como herdeiro dos filosofos da sus^ peita, Marx. Nietzsche e Freud. Os tres contribui'ram para a
morte dojoijeito, demonstrando que os comportamentos ti*
dos como livres eram, de fato, determinados por fatores so}
ciais para Marx, biologicos para Nietzsche e inconscientes
para Freud.
As filosofias estoica e spinoziana, das quais me sinto
proximo, nao sao justamente teorias da morte do sujeito,
mas ao contrario, sao pensamentos em que o sujeito se constroi pela_mediacao de seus proprios determinismos.
significaria o fim da moral, da responsabilidade e de qualquer tipo de vida social? Creio que
responsaveis pelo que somos e pelo que fazemos, independente de uma crenca metaffsica no
acreditamos escolher livremente ou nao nos sentimos obrigados. Admitir isso exige um esforgo
intelectual certamente um pouco diffcil que, no
entanto, nao e nada novo. Antes de nos, os estoicos, os epicuristas e, mais recentemente,
Spinoza engajaram-se nessa problematica .9 As
filosofias do determinismo, que consideram o
livre-arbftrio uma ilusao ligada ao desconhecimento das causas de nossas vontades, jamais renunciaram buscar conscientemente uma etica da
periencias? Poder-se-ia, entao, conceber que certas experiencias de nossa vida cotidiana sejam
ilusorias mesmo sem suprimi-las.
Em sua epoca, Spinoza afirmava algo semelhante: o livre-arbftrio e uma ilusao ligada a
nossa ignorancia das verdadeiras causas. Longe de pensar que ele pregava a morte de qual
quer tipo de moral, ele intitulou sua obra-prima de Etica. Por meio de suas ideias, podemos
reencontrar um outro modo de pensar a liberda^
de, que esteja mais de acordo com os avangos
atuais da biologia e das ciencias humanas.
9.
Certos pensadores do determinismo absoluto, pertencentes a outras tradigoes filosoficas, como o budismo e
o islamismo, ou como o pensador cabalista Hasdai Crescas
(seculo XIV) e o rabino Schtolomo Hetkhil Eliachoff (se
culo XX) na tradifao judaica, autor de O livro do conhecimento, encontram-se sintonizados com essa posigao.
/E1CORT6Z
V 6 D IT O R f l
3.
A liberdade, cuja realidade ele assevera, identifica-se no comedo de sua ontologia com a livre
necessidade que caracteriza a obra de Deus
ou seja, da Natureza e, com a liberdade humana, como aparece no final da sua Etica. A
verdadeira liberdade e, antes de tudo, a de Deus,
compreendido como essa natureza infinita que
se exprime, para nos, sob dois aspectos, o da
extensao e o do pensamento. Sua realidade corresponde a sua natureza autoprodutora. A liber
dade absoluta, a de Deus, coincide com a autoprodu 9ao daquilo que existe na natureza pela
natureza e com o conhecimento infinito de seu
determinismo absoluto. Diz-se que uma coisa
e livre quando ela existe pela simples necessi
dade de sua natureza, e quando e determinada a
agir unicamente por si mesma, mas diz-se que
uma coisa e necessaria, ou melhor, coagida,
quando ela e determinada por uma outra a existir e a agir segundo uma lei particular e deter
minada .1 Longe de ser uma capacidade de es-
1.
Spinoza, Etica, parte 1, definifao VII. [Benedictus de
Spinoza, col. Pensadores, trad. Joaquim de Carvalho. Sao
Paulo, Abril Cultural, 1. ed. 1973.] A explicaao VII constante do elenco das Defini^oes diz integralmente o seguinte:
"Diz-se livre o que existe exclusivamente pela necessidade
feigao cada vez maior, de uma historia de salvagao e liberdade, em que as exigencias maiores da etica possam reunir a experiencia e o
conhecimento das leis da Natureza.
Em contrapartida, esse postulado e necessa
rio a qualquer empreendimento de conhecimen
to. O simples fato de iniciarmos uma pesquisa
de causas, ou de razoes, ou ainda de leis naturais, significa evidentemente que admitimos a
existencia de causas, razoes e leis naturais .3
3.
Cada vez mais, a pesquisa das causas revela-se inadequada e tende a ser substitui'da por uma busca das leis. A
fi'sica matematica implodiu a no^ao de causa. Nos dias atuais,
os fenomenos ffsicos sao descritos por meio de leis matematicas, ou seja, por equafoes que, a partir de um estado
dado de um corpo, permitem prever o que serao os estados
subseqiientes. A noao classica de causa desapareceu na
maneira de descrever esses fenomenos. Para Wittgenstein, a
crena na realidade de uma relafao de causa e efeito experimentada no tempo era apenas supersti9 ao. Em fi'sica, essa
evolu 9 ao e dificilmente contestavel, porque ela e formalizada, matematizada. No que diz respeito as outras ciencias,
a biologia, as ciencias humanas, a medicina, e diffcil chegar
ate esse ponto, e ainda se buscam causas. Seria prudente
aplicar a distin 9 ao spinoziana entre causa adequada e inadequada, entre causa parcial e causa total. Em biologia e em
medicina infelizmente ainda ha muita confusao, com efeitos deleterios e, por vezes, catastroficos. O exemplo mais
car as coisas de modo arbitrario, ao nosso belprazer, por outro lado somos conscientes de
nossos atos no momento em que os efetuamos;
nos os compreendemos. A experiencia dessa li
vre necessidade supoe, ao contrario, uma intensa atividade de nosso espi'rito e de nosso corpo.
Podemos experimentar essa liberdade em cer
tos momentos privilegiados, como, por exemplo, ao compreendermos alguma coisa. E quan
do sou ativo que tenho a experiencia de ser su
jeito daquilo que sou e daquilo que fago. Sou
sujeito, nao como um imperio em um imperio,
que escapa ao determ inism o, mas enquanto
compreendo e conheo os determinismos da
natureza que agem em mim e que me fazem agir.
E nessa atividade que me constituo enquanto
sujeito.
Nao somos realmente habituados a um tipo
de pensamento que desminta tambem nossa ex
periencia afetiva. No tempo de Spinoza, os conhecimentos cientificos eram extremam ente
reduzidos, e postular a hipotese de um deter
minismo absoluto era algo ousado demais. Ele
pagou essa audacia com a acusa 9ao mais gra
ve de sua epoca, a de ateismo. Para ele, a liber
dade de Deus nao era mais compreendida como
tempo; o futuro traz consigo algo que nao existia ontem, mesmo que fossemos capazes de preve-lo. A certeza teorica nao suprime nossa expectativa curiosa pelo resultado da observagao.
Em caso de confirmagao, damo-nos evidentemente por satisfeitos, mas permanecemos um
tanto surpresos por tudo ter andado bem. Ape
nas a afirmagao geral de que tudo esta previsto e de que nao ha nada de novo sob o sol
nao suprime nossa experiencia do tempo que
passa e da novidade que o acompanha. Inteiramente intemporal, o conhecimento infinito do
determinismo nao se opoe a esta liberdade como
horizonte, mas, bem ao contrario, constitui seu
fundamento.
Ha uma maneira mais simples e comum de
vivenciar essa forma de liberdade. Compare o
comportamento de uma crianga e o de um adulto. Quando a crianga quer algo, nao e dificil para
o adulto que a observa perceber que ela nao escolhe de verdade, mas se deixa influenciar por
um desejo, uma sugestao ou um habito. A crian
ga tem a sensagao de ser livre, tem a impressao
de fazer o que quer. Seus desejos sao vistos como
caprichos, decisoes arbitrarias e nao como o
exercfcio de uma real liberdade. O adulto, ao
4.
so sentimento de liberdade se modifica. Da sensagao infantil de poder fazer escolhas arbitrarias, passamos, pouco a pouco, a aceitagao daquilo que se faz em nos. E essa anuencia que
vai propiciar a experiencia da verdadeira liber
dade. Quanto mais aumenta nosso conhecimen
to, mais a experiencia que temos de nossa livre
escolha se aproxima, assintoticamente, da ex
periencia de uma verdadeira liberdade. Aos poucos, gragas a progressao do conhecimento das
causas, vai desaparecendo o hiato entre a liber
dade vivida e a liberdade teorica. Sempre finito
e limitado, nosso conhecimento cria de algum
modo um espago, ilusorio se acreditarmos que
e real, mas real pela experiencia que temos dele.
Spinoza e Crescas, cada um a seu modo, nos
ajudam a compreender como a verdadeira liber
dade se encontra na consciencia cada vez mais
ativa desse determinismo em si e no amor intelectual dele resultante .5 Pareceria que algo
escapa ao determinismo da cadeia infinita das
causas e seria isso justamente a maneira de com5.
6.
Spinoza, Etica, volume I. A citagao se refere explici
tamente a Proposifao I da parte V da Etica intitulada: Da
potencia, da inteligencia ou da liberdade humana. Fundamenta-se em dois axiomas: I. Se, no mesmo sujeito, sao
excitadas duas afoes contrarias, devera necessariamente produzir-se, em ambas ou numa s6, uma mudanga, ate deixarem de ser contrarias. II. A potencia de um efeito e definida
pela potencia de sua causa, na medida em que a essentia dele
e explicada ou definida pela essentia da sua causa. Spinoza,
Benedictus de, Etica, op. cit., p. 287. [N. T.]
53
determinismo absoluto. Mas logo se percebe claramente que a propria permissao faz parte dele .8
O livre-arbftrio e uma ilusao do ponto de vista
do conhecimento das causas, embora, nao deixe
por isso de ser uma experiencia real para qualquer ser humano finito. Faz parte de nossa rea
lidade, mesmo que nossa liberdade consista tambem em tomar consciencia de que e ilusorio
acreditar que nos determinamos as coisas. O
determinismo absoluto em que tudo esta pre
visto se exerce por meio de nossas proprias
escolhas, que nos sao dadas como possibilida
de, sem que, por isso, possam mudar o que quer
seja na cadeia das causas. Temos a altemativa
de simular que somos livres, tendo consciencia
de que se trata de uma ilusao. E nesse espa?o
limitado que etica e polftica se desenvolvem.
Mesmo que nao passe de um mal-entendido sa-
8.
7.
O Tratado dos Pais e um tratado de moral que se encontra no Talmude. As vezes ele e intitulado Tratado dos
princi'pios, porque em hebraico, a mesma palavra significa
pai ou princfpio.
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T>* C
/21CDRT6Z
V & S D IT O R P
4.
[A responsabilidade]
Como escapar da questao da responsabilida
de, uma vez que se afirma a dupla possibilidade
de um determinismo absoluto e de uma liberda
de sem livre-arbftrio? Toda a tradigao moral da
qual somos herdeiros diz praticamente o contrario: se nao ha livre-arbftrio, entao nao ha li
berdade, nem responsabilidade, nem mesmo
moral. Assim como e possfvel conceber uma
liberdade diferente do livre-arbftrio, e possfvel
pensar uma responsabilidade e uma moral no
seio do determinismo. Quanto mais se descobre que os homens sao levados a agir por multiplas causas, que sao ou nao conhecidas por eles,
menos se resolve facilmente, de modo tradicional, a questao da responsabilidade. Todos os novos conhecimentos colocam em questao a concepgao classica da responsabilidade, na teoria,
certamente, mas tambem na pratica, como no
domfnio jurfdico, por exemplo.
afirmara que o criminoso agiu sem discemimento: sustentar-se-a mesmo o inverso disso, mas
sera enfatizado que, no momento do ato, ele foi
determinado por um conjunto de fatores, dos
quais alguns sao conhecidos e outros nao. A legislagao de 19941 deveria facilitar a tarefa dos
psiquiatras. Entre o indivfduo plenamente responsavel e aquele reconhecido como total ir
responsavel, por ter agido sem discernimento,
foi criada uma categoria intermediaria, que reagrupava indivfduos que teriam agido com discemimento alterado. Inumeros psiquiatras optam
1.
O novo codigo penal (artigo 122-1) introduz uma dis
tingao entre aboligao do discernimento e altcragao do dis
cernimento, pensada para indivfduos submetidos a uma con
denagao, mesmo atenuada. O resultado e que os psiquiatras
se dispoem cada vez menos a diagnosticar uma aboligao
do discernimento preferindo referir-se a sua alteragao. Essa
distingao propiciou uma queda drastica do numero de pessoas que se beneficiaram de um nao-lugar para a irresponsabilidade penal, que passou de 611, em 1989, para 190, em
1997. Ha uns dez anos, cada vez mais pessoas que sao consideradas borderline pelos especialistas sao reenviadas aos
tribunais, antes de serem condenadas a penas de prisao fechada. Essa modiftcagao do codigo penal apenas agravou o
problema, pois conserva o mesmo quadro procedural: pedese sempre a psiquiatria uma definigao dos estados de consciencia que justificariam uma ausencia de responsabilidade.
A CIENCIA E INU M A N A ?
de, absoluta e incondicional, e ligada a natureza humana e as suas capacidades de representagao tudo aquilo que nao depende da nature za da tomada de decisao, nem da execugao e
dos eventuais efeitos. Trata-se, enfim, de uma
reivindicagao maxima da natureza humana: continuo um ser humano quaisquer que sejam meus
atos, portanto sou responsavel. Minha dignidade nao pode ser diminuida pelo fato de eu poder ser levado a fazer coisas que nao tenha escolhido. Alguns criminosos que foram considerados irresponsaveis manifestaram um sentimento de indignidade que os invadiu e declararam que preferiam ter sido julgados. A respon
sabilidade nao se reduz a uma categoria jurfdica ou a um sentido sobre o qual se fundaria o
julgamento moral. Ela e primordialmente um
dado da condigao humana. Encarregar-se de algo
implica a eventualidade de ter de responder por
sua execugao, seu sucesso ou seu fracasso, e suas
eventuais conseqiiencias, inclusive os detalhes
que nao foram imaginados e muito menos escolhidos. Essa exigencia de resposta e o corolario de um poder de agir, permissao ou possibilidade de se constituir enquanto sujeito, dado
a qualquer ser humano.
61
deliberagoes que o precederam produzem o sentimento de uma escolha livre, e nenhuma filosofia do determinismo absoluto consegue suprimi-lo. Se o livre-arbftrio nao determina o encadeamento das causas, a consciencia das esco
lhas e um certo grau de aquiescencia o acompa
nham. O sentimento de liberdade que acompanha a agao voluntaria e bastante real enquanto
estado de consciencia, mesmo que coincida com
uma representagao errada do mecanismo da
agao. Ainda que o livre-arbftrio seja uma aparencia, a aquiescencia dos indivfduos com o que
sua vontade determinada pelas causas internas e extemas lhes impoe e bastante real .3
Essa aquiescencia tambem constitui um dado
irredutfvel da natureza humana em sua finitude
e deve ser levada em conta, mesmo num mun
do totalmente determinado. Toda a riqueza da
existencia humana tende ao infinito que con-
3.
cebemos e a finitude que vivenciamos. A nogao de pessoa, no sentido jurfdico, moral e gramatical, encontra-se estreitamente ligada a esse
estado de consciencia. A conside'ragao do sentimento de livre-arbftrio dos indivfduos e a suposigao de que uma livre escolha preside suas
agoes possibilitaram a constituigao de sociedades compostas por sujeitos morais responsaveis.
Mas, ainda nesse caso, a existencia de uma ou
tra liberdade e perceptfvel. Quando a deliberagao e rapida, temos sempre a impressao de que
nao poderfamos ter feito outra escolha. Em contrapartida, se e demorada e racional, nosso sentimento de livre escolha se toma simultaneamente enfraquecido e reforgado. Enfraquecido porque percebemos as razoes que nos levam a escolher, as vezes ate a pretender nao haver es
colha; reforgado pelo sentimento de que nao
se trata mais de um decreto arbitrario de nossa
vontade.
Quer dizer que reencontramos, por vias transversas, as nogoes habituais de responsabilidade
ou irresponsabilidade? Nao, ha uma grande diferenga nesse caso. A questao esta deslocada e
nao se resume mais aquela do tudo ou nada: res
ponsavel, portanto culpado e condenavel, ou ir-
65
responsavel, logo, inocente. Vimos que a psiquiatria pode cada vez menos encontrar respostas para essa questao e seria melhor deixa-la de
lado. Em termos absolutos, o louco criminoso
que mata em virtude de uma circunstancia delirante e tao responsavel quanto Landru 4 que planeja seus crimes e sua dissimulagao, ou o jovem delinqiiente que mata durante um assalto a
banco. Mas a pena ou o tratamento nao serao os
mesmos. O problema tera a ver com a gradagao
dos estados de consciencia e a acessibilidade a
sangao e ao tratamento. Em um piano diferente,
se o diretor de uma empresa, ou um ministro,
ou um general, tomam uma decisao complexa
eventualmente sugerida por assessores ,
que resulta em uma catastrofe por causa de fatores imprevisfveis ou falha em sua execugao, a
questao pertinente nao e: quem e o responsa
vel? Se, para identificar a falha e condenar um
culpado, for preciso procurar o responsavel no
sentido habitual, de quem causou o prejuizo, o
fracasso esta garantido, pois cada um so podera
4.
Henri Desiree Landru (1869-1922) foi acusado de assassinar dez mulheres e um adolescente. Embora durante o
julgamento tenha negado os crimes, foi condenado a morte
e executado. [N. T.]
67
5.
O famoso princfpio da precaugao, tao evocado nos dias atuais, parece entao ser o unico guia.
Vejo nele apenas um desafio. O desejo de tomar
precaugoes pode e deve acompanhar a agao e
modera-la, mas, sem duvida, nao deve servir
como o princfpio a partir do qual as boas deci
soes seriam deduzidas sistematicamente, pois
seus efeitos podem ser catastroficos em alguns
casos. Referimo-nos a ele em situagoes incertas
nas quais se percebe um risco sem poder avalialo com precisao e nem quantifica-lo. (Caso con
trario, nao se trataria mais de precaugao, propriamente dito, mas de prevengao, baseada na
gestao e avaliagao do risco.) Colocado nesse
contexto, e perturbador observar como o prin
cfpio de precaugao se destroi a si mesmo enquanto princfpio. Procura-se sempre evitar o
pior, mas, quando o pior nao pode ser previsto,
ha o risco de que a decisao prescrita por esse
princfpio tenha conseqiiencias ainda piores do
que as que teriam sido imaginadas sem ele. O
princfpio de precaugao impoe, entao, que ele
proprio nao seja aplicado! Na duvida, abstenha-se, nao evite sempre o pior. Nao seria pos
sfvel tirar partido disso para justificar uma de
cisao ou uma incriminagao. Tudo o que pode e
5.
[Tecnologia e etica]
Toda essa discussao enfatiza a importancia
de renovar e aprofundar a reflexao filosofica
como pratica de pensamento e de vida. Nao nos
podemos contentar em repetir o que vem sendo
repetido ha varios seculos nas escolas, como se
nada houvesse mudado.
De um lado, e necessario retomar as coisas
exatamente onde elas se encontravam antes das
mudangas que marcaram os grandes perfodos
da humanidade. Refiro-me primeiramente ao
fim do mundo antigo e de seu comercio com o
mundo dos deuses e, depois, a revolugao cientffica do seculo XVII. Encontramo-nos hoje em
um novo perfodo desse tipo e ninguem sabe que
humanidade emergira dele.
Por outro lado, e necessario entrar no detalhe
das situagoes, nao se contentar com conceitos
quer dizer que um germe e eticamente uma arvore, ou as sementes uma colheita antes mesmo
que ela ocorra? Muito pelo contrario, nao vejo
o que haveria de etico em colocar de lado o esforgo da natureza (e dos homens) que transfor
ma o germe e as sementes em arvore ou em
colheita. No caso que nos diz respeito, e ainda
pior: trata-se da potencialidade de um embriao,
ou seja, da potencialidade de uma potencialida
de! Se considerarmos que um embriao e uma
pessoa, ou mesmo uma potencialidade de pessoa
desde a fecundagao, seria muito mais coerente
opor-se a utilizagao de sobrenumeraveis em
brioes que sao verdadeiros embrioes gerados por fecundagao do que a utilizagao de
celulas produzidas pela transferencia de nucleos
somaticos nos ovulos .1
1.
Existem varias possibilidades para preparar celulastronco embrionarias. Nos dias atuais, um procedimento e
particularmente explorado: a utilizagao de celulas-tronco
com propriedades de celulas embrionarias, normalmente
presentes em pequenas quantidades em tecidos adultos. Se
essa tecnica se revelar aplicavel, provavelmente seria a melhor do ponto de vista das aplicagoes terapeuticas e,_sem
duvida, a mais consensual do ponto de vista etico. Observemos que as tentativas de transferencia de nucleos somaticos
humanos em ovulos de vacas ate o presente foram cercadas
de um ser humano, cai por terra diante da unidade da natureza considerada em sua evolugao.
Sem duvida, sao as tecnicas e a fabricagao de
artefatos vivos que contribuem para a implosao
de definigoes essencialistas, mas a tecnica so
pode ser bem-sucedida uma vez que ela se submeta as leis da natureza, mesmo que seja para
transforma-la. Uma ligao pode ser tirada de tudo
isso: aceitemos renunciar a definigoes essencia
listas e procuremos mais definigoes evolutivas.
Para retomar nosso problema, o que nao e um
embriao pode transformar-se em um embriao,
o que nao e uma pessoa humana pode, sob certas condigdes, transformar-se em uma pessoa
humana. O debate etico encontra-se deslocado
para as condigoes desses devires. Nesse caso,
em particular, a implantagao ou nao no utero
feminino nao e um detalhe da tecnica que nao
modificaria em nada os dados do problema.
Encontramo-nos hoje confrontados com problemas eticos, sociais e politicos que nao encontram solugao apenas nos meios fomecidos
pelas tecnicas. E indispensavel saber do que se
trata para compreender o problema e a fortiori
propor uma solugao. Uma das tarefas mais importantes consiste na maior difusao dos sabe-
2.
84
HENRI ATLAN
Carneiro
97. ORgAMENTO PARTIQPATIVO: TEORIA E
PRATICA Felix Sanchez
98. PROFESSORAS DE EDUCAgAO INFANT!:
ENTRE 0 FEMININO E 0 PRORSSIONAL Ana Beatriz
Cerisara
99. ANTROPOLOGIA CONTEMPORANEA EDGAR
A SSIS DE CARVALHO Edgar Assis de Carvalho
100. QUESTOES DO SECULO XXI
Eduardo Santos e Jose Eustaquio Romao (orgs.)
\
L
46. Ml
Alipio
47. I f
Leda V
48. Bfi
49. SO
Antonii
50. A '
QUESTOES DA NOSSA
EPOCA. NOVA FASE
Novos temas e autores
POPUL
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PARTICIPAQAO DA COMUNIDADE
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Monica Abranches
NE[fS!
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51- PH
52-.RB
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EDUCAI
57. o p
Moacir Gadotli
106. GLOBAUZAQAO E DIVERSIDADE CULTURAL
IMPOSl
58. OS
Hassan Zaoual
107. CIENQAS HUM A N A S E PESQUISA:
Ezequiel
59. A N
60. UNI
Afranio
6,INF|
Pauln G
B2MU1
Alex Fm
63. B IS
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64. REP
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66 DEM
Antonio
67. ADE
Jose Cai
DA PESSOA
Lindinalva Laurindo da Silva
68. BRir
Sanny S.
Paulo Perisse
quadrimotor ciencia-tecnica-industria-pro-
gresso converteu-se em paradigm a dominante destes tempos de modernidade Iiquida em que vivemos. Parece inevitavel que
teremos de assumir responsabilidades bioeticas
cada vez mais amplas, isso se quisermos que a
mundializagao do humanismo, a cidadania terrestre e a cultura da paz se efetivem para valer.
Seremos verdadeiramente livres para realizar
esse objetivo ou permaneceremos determinados
por causas desconhecidas e pulsoes recalcadas?
A ciencia e inumana?, ensaio sobre a livre neces
sidade, reexamina as questoes do determinismo