Retirado de: MERLEAU-PONTY, Maurice. Einstein e a crise da razão. in Signos. 1ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1991. pp. 213-219.
Um dos textos selecionados para o Concurso Vestibular UFPR 2010, com entrada na universidade em 2011.
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EINSTEIN E A CRISE DA RAZÃO – MAURICE MERLEAU-PONTY
(Retirado de: MERLEAU-PONTY, Maurice. Einstein e a mundo é evidente, o espírito clássico, em
crise da razão. in Signos. 1ª edição. São Paulo: Martins Einstein, está portanto em seu limite extremo. Fontes, 1991. pp. 213-219) Sabe-se que ele nunca pôde se resolver a considerar definitivas as formulações da mecânica A ciência, no tempo de Auguste ondulatória, que não se baseiam, como os Comte, preparava-se para dominar teórica e conceitos da física clássica, nas “propriedades”5 praticamente a existência. Quer se tratasse da das coisas, dos indivíduos físicos, mas descrevem ação técnica, quer da ação política, pensava-se o comportamento e as probabilidades de certos ter acesso às leis segundo as quais natureza e fenômenos coletivos no interior da matéria. sociedade são feitas, e governá-las de acordo Nunca pôde aderir à idéia de uma “realidade” que, com seus princípios. Foi algo totalmente por si e em última análise, fosse um tecido de diferente, quase o inverso, que ocorreu: longe probabilidades. “Todavia, acrescentava ele, não de, na ciência, luz e eficácia terem crescido posso invocar nenhum argumento lógico para juntas, aplicações que revolucionam o mundo defender minhas convicções, a não ser meu nasceram de uma ciência altamente dedinho, única e fraca testemunha de uma especulativa, sobre cujo sentido último não há opinião profundamente arraigada na minha acordo. E longe de a ciência ter-se submetido até pele.”6 O humor não era uma pirueta para à política, tivemos pelo contrário uma física Einstein, ele o convertia num componente repleta de debates filosóficos e quase políticos. indispensável de sua concepção do mundo, quase O próprio Einstein era um espírito um meio de conhecimento. O humor era para ele clássico. Por mais categoricamente que o modo das certezas arriscadas. Seu “dedinho” era reivindique o direito de construir, e sem respeito a consciência, paradoxal e irreprimível no físico algum pelas noções a priori que pretendem ser o criador, de ter acesso a uma realidade mediante arcabouço invariável do espírito1, ele nunca uma invenção contudo livre. Para esconder-se tão deixou de pensar que essa criação vai ao bem, pensa Einstein, é preciso que Deus seja encontro de uma verdade depositada no mundo. “sofisticado” ou refinado. Mas não poderia haver “Acredito num mundo em si, mundo regido por Deus maldoso. Mantinha, pois, as duas leis que tento apreender de uma maneira extremidades da corrente — o ideal de selvagemente especulativa.”2Mas, justamente, conhecimento da física clássica e sua própria ele não ousa fundamentar categoricamente esse maneira “selvagemente especulativa”, encontro da especulação e do real, de nossa revolucionária. Os físicos da geração seguinte imagem do mundo e do mundo, a que chama às soltaram, em sua maioria, a primeira extremidade. vezes “harmonia preestabelecida”3, numa infra- O encontro da especulação e do real que estrutura divina, como o grande racionalismo Einstein postula, como um mistério límpido, é cartesiano, nem, como o idealismo, no princípio visto sem hesitação pelo público como um de que para nós o real não poderia ser diferente milagre. Uma ciência que confunde as evidências daquilo que podemos pensar. Einstein refere-se do senso comum, e é capaz ao mesmo tempo de por vezes ao Deus de Spinoza, mas em geral mudar o mundo, suscita inevitavelmente uma descreve a racionalidade como um mistério e espécie de superstição, mesmo entre as como o tema de uma “religiosidade cósmica”4. testemunhas mais cultas. Einstein protesta: não é A coisa menos compreensível do mundo, dizia um deus, esses elogios desmedidos não se dirigem ele, é que o mundo seja compreensível. a ele, mas “a meu homônimo mítico que me torna Se denominamos clássico um a vida singularmente dura”7. Não acreditam nele, pensamento para o qual a racionalidade do ou melhor, sua simplicidade aumenta-lhe ainda 1 mais a lenda: já que está tão espantado com sua A ci ência “ é uma criação do espírito humano por meio de idéias e conceit os livremente inventados ”. glória, e a preza tão pouco, é porque seu gênio EINSTEIN e INFELD, L'évolution dês idées en não é inteiramente ele. Einstein é antes o lugar physique, 5 p. 286. EINSTEIN e INFELD, L'évolution des idées en physique, 2 Carta a Max Born, 7 de novembro de 1944, citada p. 289. 6 por T. Kahan, La philosophie d'Einstein. A Max Born, 3 de dezembro de 1947, citado por T. Kahan. 3 7 EINSTEIN, Comment je vois lê monde, p. 155. Resposta a Bernard Shaw, citada por Antonina 4 Ibid., p. 35. VALLENTIN, Le drame d'Albert Einstein, p. 9. 2 consagrado, o tabernáculo de alguma operação não lhe formular as perguntas que se sobrenatural. “Esse desprendimento é tão formulavam à Pítia? completo que às vezes é preciso, ao conviver Tais desvarios não são exclusivos do com ele, lembrar-se de que estamos realmente jornalismo ocidental. Na outra extremidade do com ele. Julgamos estar lidando com um sósia... mundo, as apreciações soviéticas sobre a obra de Até ocorreu-me a inverossímil suspeita de que Einstein (antes da recente reabilitação) prendem- ele se julga igual aos outros.”8 Luís XIV dizia se também ao ocultismo. Condenar como tranquilamente: “Cumpre reconhecer que “idealista” ou “burguesa” uma física na qual não Racine é bem talentoso”, e jamais Viète, se critica por outro lado nenhuma incoerência, Descartes, Leibniz foram considerados super- nenhum desacordo com os fatos, é supor um homens por seus contemporâneos. Numa época gênio maligno errante nas infra-estruturas do em que se acreditava numa origem eterna de capitalismo que sopra a Einstein pensamentos todos os nossos atos de expressão, o grande desta vez suspeitos — é, sob as aparências de uma escritor ou o grande sábio não passava do doutrina social racional, renegar a razão homem bastante engenhoso para captar algumas precisamente onde ela brilha com evidência. das palavras ou das leis inscritas nas coisas. De um canto ao outro do mundo, quer a Quando não há mais Razão universal, é preciso exaltem, quer a reprimam, a obra “selvagemente que sejam taumaturgos. especulativa” de Einstein provoca um Hoje, como outrora, só há contudo desenvolvimento da desrazão. Mais uma vez, ele uma única maravilha — considerável, é verdade nada fez para colocar seu pensamento nessa luz, —, que é o homem falar ou calcular, em outras permanecia um clássico. Mas não seria isso palavras, que ele tenha constituído para si esses apenas o fado de um homem bem-nascido, a força prodigiosos órgãos, o algoritmo, a linguagem, de uma boa tradição de cultura? E, quando estiver que não se desgastam, mas ao contrário crescem esgotada essa tradição, não poderá a nova ciência com o uso, capazes de um trabalho indefinido, ser, para aqueles que não são físicos, senão uma capazes de produzir mais do que lhes foi lição de irracionalismo? colocado, e no entanto não cessam de se reportar Em 6 de abril de 1922, Einstein às coisas. Mas não possuímos teoria rigorosa do encontrava Bergson na Sociedade de Filosofia de simbolismo. Prefere-se, pois, evocar uma Paris. Bergson fora “para ouvir”. Mas, como potência animal qualquer que, em Einstein, acontece, a discussão esmorecia. Decidiu-se então engendraria a teoria da relatividade como em a apresentar algumas das idéias que estava nós produz a respiração. Einstein protesta em defendendo em Durée et simultanéité — e propôs vão: ele precisa ser feito de um modo diferente em suma a Einstein um meio de desarmar a de nós, precisa ter outro corpo, outras aparência paradoxal de sua teoria e de reconciliá- percepções, e dentre elas, por sorte, a la com os homens simplesmente homens. Por relatividade. Médicos americanos deitam-no exemplo, o famoso paradoxo dos tempos numa cama, cobrem de detectores a fronte nobre múltiplos, cada um deles ligado ao ponto onde se e ordenam: “Pense na relatividade”, como se encontra o observador. Bergson propunha ordena “Faça a” ou “Conte vinte e um, vinte e distinguir aqui verdade física e verdade pura e dois” — como se a relatividade fosse objeto de simples. Se, nas equações do físico, uma certa um sexto sentido, de uma visão beatífica, como variável, que temos o hábito de chamar tempo se não fosse necessária tanta energia nervosa, e porque marca tempos decorridos, aparece conduzida por circuitos igualmente sutis, para solidária do sistema de referência em que nos falar quando se é bebê quanto para pensar a colocamos, ninguém recusará ao físico o direito relatividade quando se é Einstein. Isso está a um de dizer que o “tempo” se dilata ou se retrai passo das extravagâncias dos jornalistas que conforme é considerado daqui ou dali, havendo consultam o gênio sobre as questões mais portanto vários “tempos”. Mas falará ele então alheias ao seu campo: afinal de contas, uma vez daquilo a que os outros homens dão esse nome? que a ciência é taumaturgia, por que não faria Essa variável, essa entidade, essa expressão ela um milagre a mais? E uma vez que Einstein matemática designaria ainda o tempo se nós lhe mostrou justamente que, a grande distância, um atribuíssemos as propriedades de um outro tempo presente é contemporâneo de um futuro, por que — o único que é sucessão, devir, duração, em 8 A. VALLENTIN, ibid. suma, o único que é verdadeiramente tempo — do qual temos experiência ou percepção antes de 3 toda a física? direito divino de uma ciência dogmática mas so- No campo da nossa percepção, há bre a evidência pré-científica de que há um único acontecimentos simultâneos. Por outro lado, mundo, sobre a razão antes da razão que está vemos também nele outros observadores cujo contida em nossa existência, em nossa relação campo invade o nosso, imaginamos ainda outros com o mundo percebido e com os outros. Falando cujo campo invade o dos precedentes, e é assim assim, Bergson ia além do classicismo de que acabamos por estender a nossa idéia do Einstein. Poderíamos reconciliar a relatividade simultâneo a acontecimentos tão afastados com a razão de todos os homens, bastando para quanto quisermos um do outro, e que não se tanto consentir em tratar os tempos múltiplos prendem ao mesmo observador. E assim que há como expressões matemáticas, e em reconhecer, um tempo único para todos, um único tempo aquém ou além da imagem físico-matemática do universal. Esta certeza não é abalada, ela é mundo, uma visão filosófica do mundo, que é ao mesmo subentendida, pelos cálculos do físico. mesmo tempo a dos homens existentes. Bastaria Quando ele diz que o tempo de Pedro está aceitar reencontrar o mundo concreto de nossa dilatado ou retraído no ponto onde se encontra percepção com seus horizontes, e situar nele as Paulo, não expressa de modo algum o que é construções da física, para a física poder desen- vivido por Paulo, que, por sua vez, percebe volver livremente seus paradoxos sem autorizar a todas as coisas de seu ponto de vista e assim não desrazão. tem nenhuma razão para sentir o tempo que se Que iria responder Einstein? Havia escoa nele e à volta dele de forma diferente da escutado muito bem, como provam suas primeiras que Pedro sente o seu. O físico atribui palavras: “A questão coloca-se então assim: o abusivamente a Paulo a imagem que Pedro se tempo do filósofo é o mesmo que o do físico?”10 faz do tempo de Paulo. Leva ao absoluto os Porém não aprovou. Sem dúvida, admitia que o pontos de vista de Pedro, com quem faz causa tempo cuja experiência temos, o tempo percebido, comum. Supõe-se espectador do mundo inteiro. está no ponto inicial de nossas noções sobre o Pratica o que tanto se censura aos filósofos. E tempo, e que ele nos conduz à idéia de um tempo fala de um tempo que não é o de ninguém, de único de um canto ao outro do mundo. Mas a um mito. Aqui, diz Bergson, é preciso ser mais competência desse tempo vivido restringia-se ao einsteiniano do que Einstein. que cada um de nós vê, e não autorizava estender “Sou pintor, e tenho de representar ao mundo inteiro a nossa noção intuitiva do duas personagens, João e José; um deles está a simultâneo. “Logo, não há tempo dos filósofos.” meu lado, enquanto o outro está a duzentos ou É apenas à ciência que se deve perguntar a trezentos metros de mim. Desenharei o primeiro verdade sobre o tempo, assim como sobre todo o em tamanho natural e reduzirei o outro à resto. E a experiência do mundo percebido com dimensão de um anão. Um outro pintor, que suas evidências não passa de um balbucio antes da estiver perto de José e quiser igualmente pintar clara palavra da ciência. os dois, fará o inverso do que faço; mostrará Seja. Mas essa recusa volta a colocar- João muito pequeno e José em tamanho natural. nos diante da crise da razão. O cientista não Teremos ambos razão. Mas, pelo fato de nós consente em reconhecer outra razão além da razão dois termos razão, ter-se-á o direito de concluir física, e é nela que confia, como no tempo da que João e José não têm nem a estatura normal, ciência clássica. Ora, essa razão física, assim nem a de um anão, ou que têm ambas ao mesmo revestida de uma dignidade filosófica, abunda em tempo, ou que é como se quiser? Evidentemente paradoxos e destrói-se, por exemplo, quando que não... A multiplicidade dos tempos que ensina que meu presente é simultâneo do futuro obtenho assim não impede a unidade do tempo de um outro observador bastante afastado de mim, real; antes a pressupõe, assim como a arruinando assim o próprio sentido do futuro... diminuição do tamanho com a distância, numa Justamente por conservar o ideal série de telas onde eu representaria José mais científico clássico e reivindicar para a física o ou menos afastado, indicaria que José conserva valor não de uma expressão matemática e de uma o mesmo tamanho.”9 linguagem, e sim o de uma notação direta do real, Idéia profunda: a racionalidade, o Einstein como filósofo estava condenado ao universal fundados de novo, e não sobre o paradoxo que nunca procurou como físico nem 10 Bulletin de Ia Société Française de Philosophie, 1922, p. 9 BERGSON, Durée et simultanéité, pp. 100-102. 107. 4 como homem. Não é reclamando para a ciência um gênero de verdade metafísica ou absoluta que protegeremos os valores da razão que a ciência clássica nos ensinou. O mundo, além dos neuróticos, conta com bom número de “racionalistas” que são um perigo para a razão viva. E, pelo contrário, o vigor da razão está ligado ao renascimento de um sentido filosófico, que, certamente, justifica a expressão científica do mundo, porém em sua ordem, em seu lugar no todo do mundo humano.