Rumi

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Rm.

O poeta e mstico da dana do


Amor e da Unidade
Editorial
Contribuem ainda, nesta edio, o professor Carlo
A matria

Saccone, da Universidade de Pdua, Itlia; e Beatriz

de capa da

Machado e Armando Erik de Carvalho, editor

IHU On-Line

responsvel da Editora Fissus que editar, em breve, o

desta semana

livro O canto da Unidade: em torno da potica de

dedicada ao

Rm, de Faustino Teixeira e Marcco Lucchesi.

poeta e
mstico persa

No folhear das pginas destinadas reflexo sobre


Rm e sua obra, o leitor e a leitora podero fruir a

Rm (1207-1273), no ano em que se celebram os 800

poesia, distribuda em trechos, deste mstico que inspira

anos de seu nascimento. Considerado um dos maiores

o tema de capa da edio desta semana.

msticos e poetas do Isl, a Unesco dedicou a ele o ano


de 2007.
Ajudados pelo Prof. Dr. Faustino Teixeira, a quem

Armando de Melo Lisboa, economista, professor da


UFSC, proferir, nesta semana, a conferncia A
concepo scio-antropolgica de economia de Karl

agradecemos mais esta importante parceria e quem

Polanyi e sua crtica utopia do mercado. Por sua vez,

abre a edio, com a entrevista intitulada Rm o

Ldia Goldenstein analisa, brevemente, a atual poltica

poeta da dana da Unidade, entrevistamos Carlos

econmica que na semana teve um desdobramento

Frederico Barboza de Souza, da PUC-MG, que associa a

dramtico. Mais uma empresa de calados do Vale dos

obra de Rm com o ser humano contemporneo,

Sinos fechou, demitindo 4 mil trabalhadores. O fato

caracterizado pelo individualismo e pelo hedonismo. O

tambm destaque nesta edio.

casal espanhol Pablo Beneito e Pilar Garrido definem

Proibido proibir, de Jorge Duran, o filme da semana.

Rm como um mestre do encontro, reafirmando um

Como lembra Luiz Zanin Oricchio, aps a apresentao

ponto que aparece em diversas entrevistas nesta edio:

do filme no Festival de Havana onde ganhou o Prmio

o poeta e mstico sufista significa a prtica viva do

Especial do Jri, uma das juradas, a cineasta

dilogo inter-religioso. Mario Werneck o descreve como

venezuelana Fina Torres, comentou: "Que pas o Brasil,

o apstolo do ecumenismo. Marco Lucchesi, poeta e

to trgico e to cheio de energia!". E o crtico de

tambm tradutor de poesias de Rm, constata a

cinema comenta: Talvez sem o saber, ela fazia uma

utilizao do poder soberbo das metforas. Tambm

quase parfrase dos versos de Mario Faustino usados por

contribuem com o debate o professor William Chittick,

Glauber Rocha em seu Terra em transe: Tanta violncia,

que contextualiza Rm na mstica e na tradio

mas tanta ternura. Assim somos ns.

islmica.

A todas e todos uma boa leitura, uma tima semana e


um excelente feriado!

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

Leia nesta edio


PGINA 01 | Editorial

A. Tema de capa
ENTREVISTAS

PGINA 03 | Quem foi Rm?


PGINA 04 | Faustino Teixeira: Rm o poeta da dana da Unidade
PGINA 09 | Carlos Frederico Barboza de Souza: A mstica de Rm e o ser humano autnomo contemporneo
PGINA 14 | Pilar Garrido e Pablo Beneito: Rm: um mestre do encontro
PGINA 17 | Marco Lucchesi: Rm se utiliza do poder soberbo das metforas
PGINA 20 | Mario Werneck: Rm: um apstolo do ecumenismo
PGINA 24 | William Chittick: Rm no contexto da mstica e da tradio islmica
PGINA 30 | Carlo Saccone: Somente o conhecimento do corao abre as portas ao mistrio de Deus
PGINA 34 | Beatriz Machado: A obra de Rmi como guia de ensinamento espiritual
PGINA 37 | Armando Erik de Carvalho: Rm: o extraordinrio poeta e mstico do Amor

B. Destaques da semana
Brasil em Foco
PGINA 39 | Ldia Goldenstein: A questo da dvida externa deixou de ser um problema
PGINA 41 | Campo triste. Vale dos Sinos est sufocado pela crise
Teologia Pblica
PGINA 44 | Victor Codina: Temos de crer e esperar que outro mundo e que outra Igreja so possveis
Filme da Semana
PGINA 47 | Proibido proibir, de Jorge Durn
PGINA 50 | Destaques On-Line
PGINA 52 | Frases da semana

C. IHU em Revista
EVENTOS
PGINA 55| Agenda de Semana
PGINA 55| Conversas - O mundo do trabalho e a vida dos/das trabalhadores/as
PERFIL POPULAR
PGINA 57| Maria Leni de Soares
IHU REPRTER
PGINA 60| Denise Cogo

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

Quem foi Rm?


Mawln Jall ad-Dn Muhammad

espao de refgio de inmeros literatos, artistas e

Rm nasceu em 30 de setembro

msticos do mundo islmico oriental. Rm casou-se duas

de 1207 na regio de Balkh, atual

vezes e teve 4 filhos. Decisivo na sua vida foi o encontro

Afeganisto. Herdou de seu pai,

com o dervixe errante, Shams al-Dn Tabrz, no ano de

um conhecido telogo e mestre

1244. Foi o encontro de dois oceanos espirituais. Trata-se

espiritual - Bahauddin Walad -, o

de uma das mais espetaculares e ricas histrias de unio

interesse pelas questes teolgicas

mstica. Shams foi para Rm uma real manifestao

e msticas. Entre 1210 e 1212, sua famlia se estabeleceu

teofnica, inspirando profundamente toda a sua

em Samarcanda, ento sob o controle mongol. A partir

produo potica e mstica posterior. Rm faleceu no

de 1216, a famlia faria uma srie de viagens, passando

dia 17 de dezembro de 1273, em Konya, onde se

por Bagd, Meca e Damasco, at se instalar em Konya

encontra o seu mausolu, que ainda hoje lugar de

(Anatlia ) no ano de 1229. Na ocasio, esta cidade era

intensa peregrinao. Dentre suas produes, encontrase o grandioso Mathnaw, em seis volumes, mas tambm

Anatlia: ou pennsula anatoliana uma regio do sudeste da sia

que corresponde hoje poro asitica da Turquia, em oposio


poro europia, a Trcia. tambm freqentemente chamada pelo
nome latino de sia Menor, que deriva do grego Mikra Asia. O tmulo
do poeta est em Konya. (Nota da IHU On-Line)

o tratado em prosa Fihi-ma-fihi (o livro do interior), as


cartas (Makteb), alm da significativa produo potica:
as odes msticas, conhecidas como Dwn-i Shams, e as
quadras de amor, Rubiyt.

O amor partiu meu leve corao


e o sol vem clarear minhas runas.
Ouvi belas palavras do Sulto.
Ca por terra triste, acabrunhado.
Acercou-se de mim, vi o seu rosto.
Do rosto eu no sabia mais que o vu`.
Se a luz do vu abrasa esse universo,
o que dizer do fogo de teu rosto?...

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

Rm o poeta da dana da Unidade


ENTREVISTA COM FAUSTINO TEIXEIRA

Faustino Teixeira, professor e pesquisador do Programa de Ps-Graduao em


Cincia da Religio da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais
(PPCIR-UFJF), concedeu a entrevista que segue, por e-mail, sobre a poesia e a
mstica de Rm. Para ele, Rm atual porque aciona nos coraes traos que
so imprescindveis para uma realizao humana autntica. um mstico que
nos desperta para os pequenos sinais do cotidiano, que aciona o imperativo de
uma mente alerta para cada detalhe da vida. E provoca mudanas profundas.

Faustino Teixeira doutor e ps-doutor em teologia pela Pontifcia


Universidade Gregoriana, de Roma. Ele autor de vrios livros sobre a teologia
do dilogo inter-religioso. Ele um dos grandes parceiros do IHU. Entre suas
obras citamos os livros, por ele organizados, Nas teias da delicadeza (So Paulo:
Paulinas, 2006) e As religies no Brasil: continuidades e rupturas (Petrpolis:
Vozes, 2006), este em parceria com Renata Menezes. Pierre Sanchis fez uma
resenha deste livro que foi publicada na revista IHU On-Line, nmero 195, de 1109-2006. Confira, tambm, uma entrevista com Faustino na edio 209 da IHU
On-Line com o tema Por que ainda ser cristo?; uma resenha feita por ele sobre
o filme O grande silncio, publicada na edio de nmero 212 da revista IHU OnLine, de 19/03/2007; e uma entrevista sobre a Teologia da Libertao,
publicada edio nmero 214 da IHU On-Line de 2 de abril de 2007.

IHU On-Line - Como podemos situar Rm na tradio


1

do sufismo e da potica persa?


Faustino Teixeira - Jall al-Dn Rm (1207-1273), que

este ano completaria 800 anos, um dos maiores


msticos da tradio sufi e, acrescentaria, de todos os
tempos. Seus sucessores o reconhecem como um grande
mestre (Mevln ou Mawlaw2). A fora de sua presena

Sufismo: corrente mstica e contemplativa do Isl. Os praticantes

mstica e amorosa fez com que sua influncia

do sufismo, conhecidos como sufis ou sufistas, procuram uma relao

ultrapassasse as fronteiras do mundo muulmano, para

directa com Deus atravs de cnticos, msica e danas. O termo

alm do mundo iraniano e turco. Hoje, reconhecido e

sufismo utilizado para descrever um vasto grupo de correntes e


prticas. As ordens sufis (Tariqas) podem estar associadas ao isl

cantado em todos os continentes, pois sua poesia fala ao

sunita, xiita ou uma combinao de vrias correntes.O pensamento sufi

fundo do corao. Entre seus ttulos honorficos est a

nasceu no Oriente Mdico no sculo VIII, mas encontra-se hoje por todo

imagem do esplendor da f (Jall al-Dn), e tambm do

o mundo. Na Indonsia, actualmente a nao com maior nmero de


muulmanos, o Isl foi introduzido atravs das ordens sufis. (Nota da
IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

Mawln Jall ad-Dn Muhammad Rm'. (Nota da IHU On-Line)

mestre dos mestres. Os ocidentais privilegiaram

publicados dois livros contendo uma breve seleo de

design-lo com o nome de Rm, um topnimo que se

poemas de Rm, tomados do Dwn-i Shams-i Tabrz

refere Anatlia, parte do imprio bizantino, onde viveu

(Marco Lucchesi5. A sombra do amado. Rio de Janeiro:

o mstico, e que os muulmanos medievais chamavam de

Fisus, 2000 e Poemas msticos. So Paulo: Attar, 1996).

Roma. O sculo XIII representa o grande florescimento


do sufismo, com a presena de msticos de grande
1

Na edio 133, de 21 de maro de 2005, intitulada


Delicadezas do mistrio. A mstica hoje o poeta Marco

envergadura como Fard al-Dn Attr (1140-1230) e

Lucchesi concedeu a entrevista Literatura e Mstica na

IbnArabi2 (1165-1240). Uma singularidade do mundo

compreenso do belo, das minorias. A entrevista pode

persa atual Ir a rica conjugao da mstica com a

ser conferida no stio do IHU (www.unisinos.br/ihu).

poesia. E Rm um dos exemplos mais frutuosos. No h


como traduzir a fora da experincia espiritual seno
mediante a poesia, que representa uma porta de
abertura ao Real inominado. A linguagem potica

IHU On-Line - Quais so os principais traos de sua


reflexo mstica?
Faustino Teixeira - Se tomamos como referncia o

constitui um barzakh istmo ou mundo intermedirio ,

Mathnaw mstico de Rm, que comeou a ser escrito em

que liga o nosso mundo ao mundo que se encontra alm

1262, esses traos aparecem com muita nitidez. H que

das palavras. Num de seus belos poemas, Mevln fala do

se sublinhar a complexidade que acompanha a reflexo.

outro mundo impermevel s palavras que habita este

S a partir de vrias leituras, e num processo de

mundo. E faz um convite que essencial: Lava tuas

amadurecimento espiritual, que o significado comea a

mos e teu rosto nas guas deste lugar.

emergir para o leitor. A interao com o autor implica

A potica de Rm guarda uma musicalidade especial.

um processo de despojamento interior. No h como

Na viso deste mstico, os verdadeiros amorosos so

fazer uma leitura passiva de sua obra mstico-potica. A

amantes da dana e da msica: Quando as asas das

leitura exige participao, envolvimento pessoal, mas,

mariposas abrem-se ao brilho do sol, todos caem na

sobretudo, desapego: h que se deixar penetrar e

dana; todo corao que arde nesta noite amigo da

transformar pela Palavra do poeta. H que sair da casa

msica. Sua rica potica jorra em obras preciosas como

de argila para poder captar o perfume seleto do artista

o grande poema espiritual, Mathnaw (em seis volumes),

em seu fulgor: Se queres mergulhar, prende a

o Dwn-i Shams-i Tabrz e os rubi . No Brasil foram


1

Fard al-Dn Attr (1142-1220): poeta persa que inspirou Rm.

Nasceu em Neshapur, na provncia de Korass. (Nota da IHU On-Line)


2

IbnArabi (1165-1240): Nasceu em Murcia na Espanha, em 1165.

considerado um dos maiores mestres do pensamento mstico Islmico. O

respirao.
A busca da Unidade e a flama do amor
Os temas recorrentes na obra de Rm so a busca da
Unidade e a flama do amor. O segredo de sua produo

pensador espanhol defendeu, em suas obras, uma viso teolgica


pluralista, onde filosofia e espiritualidade se fundem. Seus livros foram
publicados em todo o mundo, influenciando no s o pensamento
Islmico, mas deixando tambm diversas marcas na filosofia ocidental.
(Nota da IHU On-Line)
3

Dwn-i Shams-i Tabrz: principal obra em persa de Mawln Jall

4 Rubi: composio potica persa em forma de quarteto. (Nota da


IHU On-Line)
5

Marco Lucchesi: mestre em Histria pela Universidade Federal

Fluminense e em Letras (Cincia da Literatura) pela Universidade


Federal do Rio de Janeiro. Doutor em Letras (Cincia da Literatura)

ad-Dn Muhammad Rm', uma coleo de poemas que contm mais de

pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente Professor

40 mil versos. (Nota da IHU On-Line)

Adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ver entrevista com


ele nesta edio. (Nota da IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

mais singela, o Mathnaw, encontra-se nos seus primeiros

em seus poemas, um convite implcito: o de voltar-se

dezoito versos. No prlogo desta obra, Mevln fala

para si mesmo, para o exerccio de despojamento

sobre o lamento da flauta de bambu (ney), que se queixa

radical, de purificao do corao: Se desejais chegar

de seu desterro. Desde que foi arrancada de sua raiz,

casa da alma, buscai no espelho o rosto mais singelo.

suas notas melodiosas expressam a saudade de seu lugar,

Seria um equvoco imaginar que esta busca do Um na

onde habita o Amado. Assim tambm o ser humano,

perspectiva da reflexo de Rm, levaria ao desprezo do

como a flauta, busca ardentemente unir-se ao Amado, e

mundo ou das coisas criadas. Na verdade, ao defender a

a fora dessa busca encontra-se no amor. O amor a

Unidade do Real, Rm est assinalando que o domnio

doce loucura que cura todas enfermidades. o amor

do mltiplo encontra sua razo de ser na unio com o

que purifica o corao, e nele desperta o perfume do

Todo. Em nenhum momento alude que a multiplicidade

Sedutor. O corao habitado pelo amor capaz de

do cosmos uma iluso ou embarao. Na verdade, esta

reconhecer a beleza da diversidade, j que se torna

multiplicidade encontra suas razes em Deus. Como

capaz de acolher inmeras formas. O corao purificado

outros msticos da tradio sufi, Rm defende uma

capta a dinmica da generosidade divina, o abrao

teoria do conhecimento inspirada, ou seja, um

universal do Amado. Como outros msticos muulmanos,

conhecimento humano sempre referendado ao divino

Rm abordou, de forma admirvel, a dimenso

mistrio. O que ele questiona a possibilidade de um

misericordiosa de Deus, que est sempre disposio do

conhecimento desgarrado do sentido espiritual. O amor

sedento: No busque a gua, mas mostre-se sedento,

humano tem um lugar de destaque na reflexo de Rm.

para que a gua possa jorrar de alto a baixo.

A seu ver, a nica companhia que os fiis partilham na


travessia da existncia a excelncia das aes. Nem

IHU On-Line - Em que medida o amor humano e a

os amigos nem as riquezas acompanham o ser humano

Unidade entre o ser humano e Deus aparecem na obra

para alm da tumba. O que permanece o dom das

potica de Rm?

virtudes impresso nas aes.

Faustino Teixeira - Rm o poeta da dana da


Unidade. Todos os seus poemas celebram a dinmica da

IHU On-Line - Por que Rm ainda to atual?

Unidade. um mstico que no tem domiclio definido; o

Faustino Teixeira - atual porque aciona nos coraes

seu lar o no-lugar. Como aponta num de seus

traos que so imprescindveis para uma realizao

poemas, no se reconhece como cristo, judeu ou

humana autntica. um mstico que nos desperta para

muulmano; nem do Ocidente ou Oriente; de qualquer

os pequenos sinais do cotidiano, que aciona o imperativo

lugar deste mundo ou do paraso: o seu verdadeiro lugar

de uma mente alerta para cada detalhe da vida. E

o Amado, a unio com o Amado. E revela: O mundo

provoca mudanas profundas. Suas reflexes traduzem a

apenas Um, venci o Dois. Sigo a cantar e a buscar sempre

exigncia de um trabalho interior paciente, de

o Um. Mas adverte, curiosamente, que o Amado est

construo de sentimentos com o toque da delicadeza e

bem prximo, pois habita o ntimo do corao: De casa

da cortesia universais, que propiciam o alargamento das

em casa buscastes resposta. Mas no ousaste subir ao

paisagens. Rm nos faz enxergar para alm das formas

telhado. O Amado o sempre-j-a. Ns que estamos

limitadas, nos faz reconhecer que h luminosidade mais

dele distantes Alis, estamos distantes de ns mesmos,

intensa sob o vu das nuvens, que h a fora das guas

somos estrangeiros de nossa prpria profundidade. H,

para alm da espuma que acompanha as ondas. Em seus

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

relatos e histrias, apresenta-nos personagens que

Repblica Islmica do Ir - um grande entusiasta do

apontam novos caminhos. Como o santo Daqq, que

dilogo entre as civilizaes. Reconhecedor das

vivia em contnua peregrinao e evitava manter vnculos

conquistas positivas realizadas pelo mundo ocidental,

que o aprisionassem a um nico lugar. Era um santo que

manifesta-se igualmente atento aos limites que

no podia se contentar com apegos e domiclios e evitava

acompanharam sua dinmica, entre os quais sublinha o

os enclausuramentos. E tambm o exemplo de Ayz, o

trao da secularizao. Trata-se da grande diferena que

favorito do rei Mahmud, que manteve guardados seus

marca o caminho ocidental do mundo islmico, onde o

velhos sapatos e sua roupa rasgada para manter viva a

toque do divino est presente em toda parte. E o lder

recordao de sua origem humilde: A semente de onde

iraniano assinala que, no campo espiritual, o ocidente

provns a tua sandlia, teu sangue e tua manta de

dispe de menores recursos. Ele enfatiza como uma

carneiro; todo o resto, meu mestre, seu dom. Rm

urgncia no tempo presente a retomada da via do

atual porque desperta valores milenares que esto hoje

corao, to sinalizada pelos grandes msticos. A seu

abafados na lgica da sociedade de mercado. So valores

ver, o intelecto no consegue alcanar seno as

como a hospitalidade, a generosidade, a cortesia, a

cercanias do transcendente. Ou, como diz Rm, o

delicadeza, a gratuidade. H, em nosso tempo, um

absoluto h de fugir sempre do que incerto. O modo

cansao que tende a generalizar-se, uma rotina de

de conduo da razo no ocidente gerou o secularismo e

banalidade, marcada por uma dinmica que necrfila.

suas demais vertentes, abafando dimenses que tambm

Como construir a vida e a felicidade numa sociedade

so essenciais para a afirmao do humano, como a

onde os valores so outros: a concorrncia, a

dinmica do corao. A razo sozinha no consegue

competitividade, a produtividade, o individualismo, a

desvelar a realidade, que mais sutil e complexa. Ela

busca de sucesso a todo custo etc. A mstica de Rm vai

necessita do aporte essencial da f no corao. Na

noutra direo, naquela que conta verdadeiramente.

tradio mstica islmica, o corao constitui o rgo


sutil por excelncia da percepo mstica. Segundo Rm,

IHU On-Line - Como a reflexo potica de Rm pode

aqueles que poliram o corao transcendem o mundo

contribuir em uma sociedade secularizada, to

das formas e das cores, podendo contemplar sem cessar

marcada pela descrena no mstico, no mgico e no

a Beleza a cada instante (MI, 3492). A reflexo mstico-

divino, to centrada nos objetos e na fruio pessoal,

potica de Mevln tem muito a contribuir para o

individualista?

reencantamento do mundo, para a afirmao de um

Faustino Teixeira - Um dos importantes pensadores


1

atuais, Muhammad Khatami - ex-presidente da

outro olhar e para a retomada de outras dimenses,


substantivas, para o crescimento da pessoa. algum
muito especial que nos acorda para dimenses

Muhammad Khatami (1943): intelectual, filsofo e poltico

iraniano. Foi presidente do Ir entre 02-08-1997 e 02-08-2005, quando


Mahmoud Ahmadinejad foi eleito. Khatami apresentou a teoria do
Dilogo entre civilizaes como resposta teoria do Choque das

adormecidas do ser, que nos faz despertar para a sublime


ateno aos segredos de Deus. Rm portador de uma
notcia especial que corresponde a uma sede que

civilizaes de Huntington (um cientista poltico controverso dos


Estados Unidos, conhecido por sua anlise do relacionamento entre as

moralizao da poltica, declarou que "a traduo do dilogo entre

foras armadas e o governo civil). Depois de apresentar o conceito de

civilizaes poltica consistiria em argumentar que a cultura, moral e

sua teoria a vrias organizaes internacionais (entre elas Naes

arte devem prevalecer na poltica". (Nota da IHU On-Line)

Unidas) a teoria ganhou apoio internacional. Como defensor da

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

universal, da gua da generosidade divina, da caravana

liberdade, superando os vnculos e ns que geram

de acar. Mas h que estar atento para perceber esta

todos os exclusivismos. Podemos observar na tradio

presena novidadeira: Limpa bem teus ouvidos e recebe

mstica sufi esta impressionante abertura inter-religiosa.

ntida essa voz o som do cu chega como um sussurro.

A encontramos em Hallaj, em IbnArabi e tambm em


Rm. O segredo desta abertura est na lgica do

IHU On-Line - Em que medida as grandes correntes

corao. Como bem sublinhou Simone Weil, somente

msticas do islamismo contribuem para a pesquisa na

aquele que conhece o segredo dos coraes capaz de

rea do dilogo inter-religioso e da mstica comparada?

alcanar o segredo das diferentes formas de f. Para

Rm pode ajudar a relacionar o cristianismo e o

Mevln, o segredo do Mistrio ultrapassa as formas

islamismo?

religiosas que so sempre fragmentrias. A substncia da

Faustino Teixeira - Num livro que causou muita


resistncia entre alguns telogos catlicos Carta a um
1

rvore da vida est para alm das formas superficiais:


Ela tem milhares de nomes, mas Uma, - corresponde a

religioso (1942) -, Simone Weil dizia que os msticos de

todas as suas descries, mas indescritvel (MII, 3641-

quase todas as tradies religiosas coincidem quase at

3679). A rvore da vida frustra todos aqueles que

identidade. No horizonte de toda tradio religiosa

buscam simplesmente nomes, pois ela diz respeito a

autntica h um ponto luminoso, que o centro

qualidades. Na viso de Rm, a religio mais autntica e

nevrlgico da esfera da Unidade, que simboliza a

a orao mais sublime so aquelas que brotam de um

teofania suprema. o ponto que habita na intimidade de

corao ardente, como na clssica histria de Moiss e o

cada tradio, na sua profundidade. Na medida em que

pastor, relatada no Mathnaw (MII, 1720-1785). A

nos aproximamos deste ponto (nuqta), crescemos em

presena graciosa de Deus age de forma diversificada nos


coraes, provocando expresses distintas e particulares

Simone Weil (1909-1943): filsofa crist francesa, centrou seus

pensamentos sobre um aspecto que preocupa a sociedade at os dias


de hoje: o tormento da injustia. Vtima da tuberculose, Weil recusouse a se alimentar, para compartilhar o sofrimento de seus irmos

de acolhimento, para alm das rgidas fronteiras traadas


pelas ortodoxias, muitas vezes frias e insensveis. Na
viso de Rm, o desacordo entre os homens

franceses que haviam permanecido na Frana e viviam os dissabores da

provocado pelos nomes, a paz advm quando eles

Segunda Guerra Mundial. Sobre Weil, confira as edies nmero 84, de

alcanam a realidade (MII, 3680).

17-11-2003, e nmero 168 da IHU On-Line, de 12-12-2005, sob o ttulo


Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Trs mulheres que
marcaram o sculo XX. (Nota da IHU On-Line)

Vs que sastes a peregrinar!


voltai, voltai, que o Amado no partiu
O Amado vosso vizinho de porta,
por que vagar no deserto da Arbia?
Olhai o rosto sem rosto do Amado,
peregrinos sereis, casa e Kaaba...

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

A mstica de Rm e o ser humano autnomo


contemporneo
ENTREVISTA COM CARLOS FREDERICO BARBOZA DE SOUZA

Para o professor Carlos Frederico Barboza de Souza, em entrevista concedida


por e-mail para a IHU On-Line, a mstica de Rm aponta para uma busca em
profundidade do ser humano, que gera mudanas radicais na vida da pessoa que a
vive, que lhe abre para dimenses inusitadas do seu ser, que implicam num
processo longo e doloroso de contato consigo, com as prprias limitaes, com as
pessoas e com as idias de divindade estabelecidas. E acrescenta: Implica um
sair de si e do controle da prpria vida para abrir-se a um Mistrio que no pode
ser controlado, nem comparado nem manipulado.

Doutorando em Cincias da Religio pela Universidade Federal de Juiz de Fora,


Carlos Frederico possui mestrado em Cincias da Religio pela mesma instituio.
Atualmente, professor de Cultura Religiosa na Pontifcia Universidade Catlica
de Minas Gerais (PUC-MG). Tem experincia nas reas de Teologia, Filosofia,
Antropologia, Pedagogia e Psicanlise, atuando, principalmente, com os seguintes
temas: isl, sufismo, espiritualidade, estudos sobre mstica, mstica comparada e
dilogo inter-religioso. Carlos Frederico Barboza de Souza autor de Construindo a
vida (So Paulo: FTD, 2001). Ele comentou o filme O grande silncio, de Philip
Grning, no artigo publicado nas Notcias Dirias do stio do IHU em 19 de maro de
2007.

Busca a sua Beleza na beleza


e segue intrpido, sem vacilar...

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

IHU On-Line - Como avaliar o significado e a


atualidade de Rm para a mstica contempornea?
Carlos Frederico - A mstica contempornea se

gratuidade amorosa para quem persevera amorosamente


na busca de encontr-lo descentradamente de si e aberto
a ser transformado por este encontro.

defronta com realidades que a sociedade atual lhe


prope. Neste sentido, penso que algumas situaes com

Dois outros elementos presentes em nossas sociedades

as quais esta mstica tem que se defrontar e, de certa

tambm apontam para o significado da mstica de Rm:

forma, dialogar ou responder, podem ser resumidas em

o fundamentalismo e o relativismo. Quanto ao

alguns tpicos. O primeiro diz respeito a alguns

fundamentalismo, os msticos, dentre eles Rm, nos

elementos presentes em grande parte de nossa cultura

indicam um caminho muito mais tolerante, capaz de

ocidental, ou seja, o carter individualista que marca

aprender com o outro e de lidar com a verdade de uma

nossa concepo de ser humano e nossas autopercepes

forma no dogmtica e fechada. So seres dialogais, que

e aes; o hedonismo consumista e centrado no ter; a

conseguem ver a manifestao divina em setores no-

lgica da eficcia e produtividade que nem sempre abre

religiosos e at nas religies que no a sua. Por outro

portas a espaos de gratuidade; a privatizao das coisas

lado, o relativismo tende a encarar as religies como

e pessoas, que diminuem seu investimento com a

sendo semelhantes entre si. E esta semelhana, na

solidariedade e as dimenses coletivas de uma

perspectiva relativista, abole a diversidade existente

comunidade; e, por fim, o imediatismo, superficialidade,

entre elas e pode gerar uma vinculao religiosa frgil,

valor s aparncias e rapidez que marcam nossa cultura

incapaz de propiciar o vnculo exigido para uma

influenciada por uma certa concepo de mdia e

experincia mstica profunda. A riqueza do que Rm nos

comunicao.

revela que ele consegue viver esta vinculao radical

claro que estes elementos presentes na nossa

sem ser exclusivista na sua forma religiosa de crena. Ou

sociedade se refletem profundamente na forma de viver

seja, ele capaz de encontrar os traos e as

e pensar das pessoas concretas e, conseqentemente, na

manifestaes do Mistrio em todas as religies e

forma de se expressarem religiosamente e viverem suas

experincias humanas e no cosmo.

experincias do Sagrado. Neste sentido, muitas vezes


estas experincias acabam sendo ou banalizadas ou ao

Por fim, a experincia de vida rumiana muito

menos limitadas pelos padres sociais vigentes. Neste

marcada por sofrimentos advindos da realidade

ponto, a mstica rumiana adquire seu significado

sociopoltica (passou por situaes de guerra e exlio) por

fundamental, pois aponta para uma busca em

ele vivida e tambm pelas tragdias que marcaram sua

profundidade do ser humano, que gera mudanas radicais

histria pessoal, como a morte de sua esposa, sendo ele

na vida da pessoa que a vive, que lhe abre para

ainda jovem e pai de dois filhinhos, e o assassinato de

dimenses inusitadas do seu ser, que implicam num

seu grande amigo, Shams de Tabriz11, com a possvel

processo longo e doloroso de contato consigo, com as

participao de um filho seu e de discpulos enciumados.

prprias limitaes, com as pessoas e com as idias de

Nisto tudo, como nos diz Eva de Vitray-Meyerocivtch,

divindade estabelecidas. Implica um sair de si e do


controle da prpria vida para abrir-se a um Mistrio que

11

Shams de Tabriz: poeta persa, mestre espiritual de Rm. Shams e

no pode ser nem controlado, nem comprado ou

Rumi permaneceram juntos at 1247, quando Shams desapareceu.

manipulado. E este Mistrio Absoluto s se revela na

Dizem que ele foi assassinado por discpulos de Rumi, ciumentos da


ascendncia que ele exercia sobre seu mestre. (Nota da IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

10

grande tradutora de suas obras para o francs, Rm

tempo, uma mesma experincia, devido sua riqueza,

testemunha que a vida tem um sentido, que o amor e a

tenta ser traduzida de formas diversas, atravs da

alegria transcendem o sofrimento, e que definitivamente

utilizao de vrios conceitos tentando realar

12

nada absurdo (Rum e o Sufismo, p. 7) .

dimenses diferentes presentes nesta mesma vivncia; a


utilizao de termos tcnicos, cunhados nas diversas

IHU On-Line - Qual a razo que motivou a UNESCO a


dedicar o ano de 2007 a Rm?
Carlos Frederico - Como se encontra escrito no stio da

tradies religiosas e que foram provados e vividos e


enriquecidos por uma gama de pessoas que as disseram e
transmitiram, propiciando densidade s mesmas; a

Unesco, Rm, como mstico e poeta, defendeu a

utilizao de tempos verbais variados ou de marcaes

tolerncia, racionalidade e acesso ao conhecimento

espao-temporais tambm variveis, como dentro-fora,

atravs do amor. Com isto, suas obras marcaram pessoas

subir-descer, tudo indicando a flutuao e liberdade do

e religies para alm da Turquia, terra onde se radicou,

que vivido pelo mstico; por fim, a utilizao de

e para alm do Isl, sua religio. Estas suas

expresses de grande densidade espiritual, nascente

caractersticas so fundamentais para a construo de

quase no mesmo momento da realizao da experincia e

uma sociedade mais pacfica, na qual as pessoas possam

que se traduzem em interjeies, exclamaes,

desenvolver suas relaes e potencialidades e serem

expresses de dores e alegrias.

felizes.
Por outro lado, os relatos e poesias msticos no apenas
IHU On-Line - O que provoca tanta admirao na
potica de Rm?
Carlos Frederico - Primeiro, sua potica, como toda

falam de uma experincia, mas a comunicam, de alguma


forma, aos seus interlocutores, pois so expresses
lingsticas nascidas de uma forma vivncia interior, que

potica mstica, um texto inspirado, ou seja, vem

gerou transformao pessoal e que acaba sendo

marcado por uma lgica que no a lgica da

traduzida em frases ou poemas que fazem afirmaes

racionalidade, que tudo mede, controla e delimita. Esta

diretas, existenciais, fortes, gerando grande impacto nos

lgica mstica se utiliza das palavras para tentar dizer o

seus leitores.

que em si indizvel, inenarrvel. O mstico lida com


experincias de uma ordem de riqueza ilimitada, que
difcil de ser traduzida na ordem da linguagem limitada.

Por fim, gostaria de ressaltar que, como diz Vitria


Peres13, a poesia mstica e a de Rm se insere tambm

Por isto, lana mo de inmeros recursos para que seja


capaz de dizer o que no pode ser calado. Alguns
destes recursos podem ser resumidos da seguinte forma:
a utilizao constante de paradoxos, indicando sempre a
complexidade da realidade e da experincia de vida

13

Vitria Peres: graduada em Letras pela Universidade

Catlica de Pernambuco, mestre em Antropologia Social pela


Universidade Estadual de Campinas e doutora em Cincia da
Informao pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

feita; o uso polissmico das palavras, de modo que as

Atualmente, professor titular da Universidade Federal de Juiz

mesmas significam muitas coisas, apontam para

de Fora. Na edio 133, Delicadezas do mistrio. A mstica

dimenses variadas da experincia mstica; ao mesmo

hoje, de 21 de maro de 2005, Vitria Peres concedeu a


entrevista O silncio da mstica sufi, que pode ser conferida

12

MEYEROVITCH, E. V. Rumi e o sufismo (So Paulo: ECE,

1990). (Nota da IHU On-Line)


SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

no stio da IHU On-Line (www.unisinos.br/ihu). (Nota da IHU


On-Line)

11

neste quesito desempenha o papel de umbral entre

exclui como a integra de forma muito rica. Na concepo

dois mundos: o do cotidiano aprisionante, fragmentado,

rumiana, a pluralidade csmica tem um sentido

mltiplo, corriqueiro, rotineiro, ordinrio e o mundo da

fundamental. Primeiro, ela reflexo da prpria

experincia mstica que alarga o tempo e o espao,

pluralidade da riqueza infinita que habita o Real (forma

inflaciona-os, abrindo s pessoas uma srie inusitada de

com que muitas vezes Deus nomeado no meio sfico16.

possibilidades ou, no dizer de Faustino Teixeira14,

Esta palavra uma das tradues do rabe Haqq17). Este

afirmando a cidadania de um outro mundo que habita o

nico, mas diverso em facetas, o que j indicado pela

mundo, e que impermevel s palavras.

bonita concepo islmica dos 99 nomes divinos. Alm do


mais, tudo o que existe no cosmo uma manifestao,

IHU On-Line - Como decifrar a paixo de Rm pela

uma teofania, uma expresso do Real. O cosmo, neste

Unidade? E como ele articula esta paixo com sua

aspecto, um espelho que deve ser polido para

abertura generosa pluralidade do real?

manifestar o Real em toda sua riqueza. E, mais, este

Carlos Frederico - A paixo de Rm pela Unidade se

espelho csmico s existe porque mantido na existncia

encaixa dentro da paixo muulmana pela mesma

pela presena invisvel e escondida do Real nele. E pode

Unidade. Para o Isl, a Unidade marca toda e qualquer

manifestar o Real porque de alguma forma Ele

experincia religiosa e de vida, pois Deus nico, e nada

tambm. Neste sentido, o cosmo habitado por uma

se associa Sua divindade. a afirmao do monotesmo

ambigidade rica: tudo Ele e no Ele ao mesmo tempo.

que, empregada de forma negativa (no existe divindade

Tudo abre para a experincia do Real e ao mesmo tempo

fora de Deus ou esta mesma afirmao atualizada num

esta experincia deve levar transcendncia de tudo. O

formato mais dialgico e nem sempre aceita por todos os

Real, assim, , utilizando-me de conceitos rabes,

muulmanos: no existe divindade que no seja Deus),

tashbih e tanzih, ou seja, tudo semelhante a Deus e ao

indica que Ele o Absoluto e somente Ele . Todo

mesmo tempo tudo infinitamente incomparvel a Ele.

relativo a Ele est ligado e por isto tudo deve ser visto
nEle, tudo tendo sua origem e finalidade nEle. O
seguidor do Isl, neste sentido, sente-se como um
15

convocado a fazer o Tawhid , a profisso da unicidade

IHU On-Line - Como dimensionar o lugar do amor na


obra potica de Rm?
Carlos Frederico - O amor central na obra rumiana.

divina e a viv-la em seu cotidiano, na juno entre f e

Ele a inspirao da flauta de bambu que lamenta

vida.

porque foi separada de sua raiz primordial, sentindo-se

Porm, fugindo a concepes pantestas, esta


afirmao da unicidade divina no exclui a existncia da
pluralidade e diversidade csmica. Alis, no s no a

16

Sufismo: a corrente mstica e contemplativa do Isl. O

termo sufismo utilizado para descrever um vasto grupo de


correntes e prticas. As ordens sufis (Tariqas) podem estar
associadas ao isl sunita, isl xiita ou uma combinao de vrias
correntes.O pensamento sufi nasceu no Mdio Oriente no sculo

14

Confira, nesta edio, uma entrevista exclusiva com Faustino

Teixeira. (Nota da IHU On-Line)


15

Tawhid: um conceito central no Isl que se refere

crena na unicidade de Deus. A palavra um forma verbal que


significa "proclamao do nico", isto , afirmar que Deus
nico. (Nota da IHU On-Line)
SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

VIII, mas encontra-se hoje por todo o mundo. Os praticantes do


sufismo, conhecidos como sufis ou sufistas, procuram uma
relao directa com Deus atravs de cnticos, msica e danas.
(Nota da IHU On-Line)
17

Haqq: a palavra rabe para a verdade. No contexto islmico,

interpretado tambm como a realidade. (Nota da IHU On-Line)

12

desterrada. Perdendo sua Unidade com o Real, perde a

de conceitos, da classificao dos mesmos, da sua

raiz de sua vida, de seu existir. E o que pode lev-la a

delimitao etc. O corao um rgo flutuante,

reencontrar-se com esta sua raiz justamente o amor.

dinmico, em contnuo movimento e transformao.

Por isto ele to fundamental. E no qualquer amor:

um rgo fludico (aqui, ele se associa palavra

um amor embriagado, inflamado, que queima e arde,

taqallub, da mesma raiz triltera de qalb, e que quer

impelindo o amante a entregar-se totalmente ao Amado.

dizer perptua transformao). Portanto, o corao est

Por isso, ele dotado de uma fora inexplicvel, capaz

em contnuo movimento, adequando-se sempre ao

de fazer o mar ferver como uma chaleira, estilhaar a

contnuo movimento das manifestaes infinitas e

montanha, fender o cu e fazer tremer a terra. No dizer

perptuas do Real. Mas, para adquirir esta fluidez, o

de Rm: O que quero um incndio no meu corao

mesmo deve ser purificado, polido. E isto implica em

este incndio que tudo, mais precioso que o imprio do

passar pelo processo de aniquilao (fana), atravs do

mundo, pois ele chama a Deus secretamente no meio da

qual o corao morrer a si mesmo, s suas estruturas

18

noite (Mathanaw, III, 203) . a vivncia deste amor

fixas, delimitadas e delimitantes, e assumir uma

que propicia perseverana e doura na busca do Amado,

estrutura prxima estrutura das manifestaes

mesmo secretamente no meio da noite. Da a

teofnicas. A isto se d o nome de baqa, ou seja, ele

importncia, para Rm, da prtica da religio do amor.

passa a subsistir no Real e , de certa forma,

Ao mesmo tempo, este amor se encontra presente no

transformado neste mesmo Real para ser capaz de

Real, que profundamente generoso, que a tudo cria

receber e espelhar todas as suas formas. No dizer do

misericordiosamente e se faz prximo a toda criatura.

prprio Rm, o corao como uma pena no deserto,


que nasceu prisioneira dos ventos; o vento a leva por

IHU On-Line - Como entender, na obra de Rm, o

toda parte ao acaso, ora para a direita, ora para

tema do corao e qual a centralidade desta questo

esquerda, em direes opostas (Mathnavi III, 1641-

para a reflexo mstica do sufismo?

1644). Por outro lado, a importncia do corao em Rm

Carlos Frederico - O tema do corao tambm

tambm diz respeito temtica do amor, pois possuir um

central na mstica de Rm, assim como central na

corao puro, no dizer de Faustino Teixeira, possuir

tradio islmica. Porm, esta temtica tem que ser bem

uma capacidade de acolher a diversidade, de atuar

entendida, pois o corao (qalb) na tradio muulmana

movido pelos dons do cuidado, da generosidade, da

adquire contornos no presentes em nossa tradio

delicadeza e cortesia para com os outros. Num corao

ocidental. Primeiro de tudo, o corao o rgo da

que se encontra embriagado pela presena do Bem-

experincia mstica e do conhecimento mstico, da gnose

Amado no h lugar para nada que no seja amor e

(marifa). Assim, ele um rgo da fisiologia mstica que

misericrdia.

abre portas para as sutilezas e delicadezas de mundo


espiritual, no sensvel. E ele capaz de propiciar o
acesso a esta dimenso da vida porque no como o
conhecimento racional, que conhece atravs da fixao

IHU On-Line - Qual a incidncia do Coro na obra


de Rm?
Carlos Frederico - Na vida de qualquer muulmano o
Coro possui um valor essencial, pois ele o milagre

18

RMI, Djall-od-Dn. Mathanaw: la qute de lAbsolu (Paris:

ditions du Rocher, 1990). (Nota da IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

supremo do Isl, o livro da grande teofania que a


revelao mesma de Allah, a Palavra enlivrada,

13

possuindo o mesmo significado para a tradio islmica

prpria vida. Rm no diferente. O contato freqente

que a encarnao de Jesus Cristo tem para os cristos.

e qualitativamente forte com o Coro expresso em

Ele indica, assim, a presena do Altssimo no meio da

todo seu texto e o informa completamente, aparecendo

humanidade, pois a raiz triltera da palavra revelao a

como citaes explcitas, ou atravs de termos e

mesma da palavra descer (n-z-l). Com isso, ele indica

expresses tcnicos nascidos do texto sagrado ou at nas

que o Real, atravs do Coro, desce ao corao dos

concepes presentes em seu pensamento. Entretanto,

crentes. Portanto, o Coro possui um espao muito forte

importante se observar que Rm no o trabalha de

na experincia religiosa e mstica islmica e se constitui

forma fundamentalista, pois sempre capaz de descobrir

como fonte primordial desta experincia. A recitao

sentidos novos e diversos, muitas vezes inusitados e para

continuada do Coro, a rememorao de suas frases e

alm da interpretao tradicional, no prprio texto.

palavras, a meditao nas mesmas, acabam por faz-lo


parte fundamental do cotidiano e da vida de um
muulmano a ponto de se buscar um ideal de coranizar a

Rm: um mestre do encontro


ENTREVISTA COM PILAR GARRIDO E PABLO BENEITO

Rm significa a prtica viva do dilogo inter-religioso. A sua poesia abre o corao.


um espelho onde se contempla a alma. Assim o poeta persa que inspira a matria de
capa desta semana descrito pelo casal Pilar Garrido e Pablo Beneito. Prof. Pablo
Beneito Arias, doutor em Arabstica e Islamologa pela Universidade Complutense de
Madri, e professor da rea de estudos rabes da Faculdade de Filologia da Universidade
de Sevilha, um importante estudioso do sufismo. E a Prof. Pilar Garrido, tambm
professora na Universidade de Sevilha, especialista em lngua rabe e graduada em
Filologia Arbica pela Universidade da Salamanca.
Eis a ntegra da entrevista que o casal concedeu por e-mail para a IHU On-Line:

IHU On-Line - Qual o significado e a atualidade de


Rm para a mstica contempornea?
Pilar Garrido e Pablo Beneito - Rm continua sendo

espiritual. Cremos que se pode situar o comeo de um


significativo influxo moderno de autores como Rm ou
Attar na cultura europia ocidental no Div oriental de

um mestre vivo para os sufi atuais das mais diversas vias

Goethe19, que to profundamente admirou a mstica

de iniciao em todo o mundo islmico e para o Isl em

islmica.

geral. Seu inspirado discurso, dirigido diretamente ao


corao, transcende formulaes culturais particulares e
se torna iluminador e eficaz em qualquer contexto
SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

19

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832): escritor alemo,

cientista e filsofo. Como escritor, Goethe foi uma das mais


importantes figuras da literatura alem e do Romantismo europeu, nos

14

IHU On-Line - O que provoca tanta admirao na


IHU On-Line Em que aspecto reside a atualidade da

poesia de Rm?
Pilar Garrido e Pablo Beneito - Seu impacto imediato,

obra de Rmi?
Pilar Garrido e Pablo Beneito - Na atualidade, se

profundo e indelvel no corao. Os que podem l-lo em

tende com excessiva freqncia a explicar as situaes

persa sentem, alm disso, uma fascinao musical. Sua

de violncia como resultado de diferenas religiosas e a

maestria na lngua persa, com seus incessantes jogos de

confundir a ordem sociopoltica com a ordem

palavras, uma dimenso somada, mas o assombroso da

propriamente espiritual. Os ensinamentos de Rm,

poesia de Rm que, bem traduzida, preserva sua

atravs de seus versos e seus relatos, constitui um

eficcia espiritual. A poesia de Rm abre o corao.

referencial de grande importncia na hora de afirmar a

um espelho onde se contempla a alma.

universalidade da verdade e do amor. Rm um portavoz da escuta e do reconhecimento mtuos do Isl.

Feche a porta do discurso e abra a janela do corao!


A lua beij-lo- somente atravs da janela.

IHU On-Line - Qual a importncia concedida por


Rm ao dilogo inter-religioso?
Pilar Garrido e Pablo Beneito - Rm, sendo um
muulmano comprometido com sua f, significa a prtica
viva do dilogo inter-religioso. Pessoas de diversas

IHU On-Line - Como decifrar a paixo de Rm pela


Unidade? E como ele articula esta paixo com sua
abertura generosa pluralidade do real?
Pilar Garrido e Pablo Beneito - Amar a Deus significa

confisses e tendncias acudiam a suas reunies. A

amar tanto sua Unidade como a diversidade de suas

experincia do amor est, por sua prpria essncia,

manifestaes. O conhecimento da Realidade implica

aberta a todos. Precisamente porque ensina a perceber a

estas duas dimenses do Uno-mltiplo. A paixo pela

essncia da vivncia do esprito mais alm das

Unidade, comum a todos os msticos do Isl, apresenta-se

determinaes formais de cada via, Rm um mestre do

como resultado da gnose e da experincia do xtase:

encontro.

paixo pela Realidade, que o Amado e o Amante.

Contudo eu permaneo como um convidado no


corao do crente, sem qualificao, definio, ou
descrio.
O credo do amor separado de todas as religies: O

Todas as formas das imagens so reflexos na gua do


crrego; quando voc esfrega seus olhos, certamente,
todos so ele.

credo e a denominao dos amantes Deus.


IHU On-Line - Como dimensionar o lugar do amor na
obra potica de Rm?
Pilar Garrido e Pablo Beneito - O amor a origem e o
segredo da existncia. Quem pode ver com o corao
contempla o modo em que todos os seres almejam sua
finais do sculo XVIII e incios do sculo XIX. Juntamente com Schiller
foi um dos lderes do movimento literrio romntico alemo Sutrm und

origem a unidade do amor - e so expresses do divino


amor que os gera e preserva.

Drang. De suas obras, merecem destaque Fausto e Os sofrimentos do


jovem Werther. (Nota da IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

Minha religio deve viver com o amor.

15

IHU On-Line - Como entender, na obra de Rm, o


tema do corao e qual a centralidade desta questo
para a reflexo mstica do sufismo?
Pilar Garrido e Pablo Beneito - O corao o centro.

IHU On-Line - Como situar o lugar do


despojamento na reflexo de Rm?
Pilar Garrido e Pablo Beneito - A conscincia da
Unidade acarreta em desapego que consiste em no

Se o corao est desperto, harmoniza todas as funes

identificar-se com nada que signifique um obstculo para

humanas. Se est adormecido, no h verdadeiro

o amor, um distanciamento do ilimitado. Despojar-se de

conhecimento. a chave do conhecimento que vincula

apegos e atributos permanecer aberto e livre. Os

todos os mundos e faculdades: desde o intelecto e o

ensinamentos de Rm convidam a despojar-se do vu da

esprito imaginao e alma, ou o corpo e a percepo

iluso, da identificao limitadora com o eu relativo

sensvel. Sem corao, as dimenses do real esto

acidental: s assim pode o ser humano chegar a conhecer

divididas. O corao restaura a Unidade essencial, a

o significado e a essncia de seu ser.

continuidade do diferenciado.
Eu morri sob os ps de seu amor. No, eu disse
Vindo do corao, o lugar de Deus contemplado!

errado: ele quem est vivo e atravs dele posso nunca


morrer.

Embora no seja assim agora, pode ser feito assim.


IHU On-Line - Como sinalizar a centralidade da
orao no conjunto da obra de Rm?
Pilar Garrido e Pablo Beneito - A vida de Rm uma
vida de constante orao. Alm da orao ritual, cada

IHU On-Line - Quais so as mensagens mais


importantes deixadas por Rm, e que permanecem
atuais para o nosso tempo?
Pilar Garrido e Pablo Beneito - O sentido de nossa vida

hbito, cada verso, cada ato humano, cada giro, cada

realizar a experincia do supremo amor. Qualquer

palpite de amor orientado desde o Amado, orao. A

tendncia que nos afaste da harmonia que conduz

orao salat, dua, dhikr -, como comunicao com a

realizao da Unidade disperso. Quem se concentra

Unidade a partir da diversidade, como vnculo com o

na escuta do corao e chega a amar a existncia pode

Absoluto do mundo das relaes particulares, o

contribuir para que outros participem da harmonia que

domnio por excelncia do sufismo. Rm nos convida a

essa experincia suscita. Assim, o dilogo se funda no

entender que a existncia consciente em presena da

na tolerncia com respeito molstia que o outro possa

Unidade orao. Em sua interioridade, todos os seres

significar, mas no profundo reconhecimento da

constantemente oram.

providencial necessidade do outro enquanto divina


expresso do Amor.

Apesar de tudo, voc v tambm Deus neste


momento, em seus efeitos e atos. Cada instante voc v

O gosto do leite e do mel reflete o corao; a doura

algo diferente, porque nenhum de seus atos assemelha-

de cada coisa doce deriva-se do corao. Assim, o

se a qualquer outro.

corao a substncia e o acidente do mundo. Como deve


a sombra do corao ser o seu objetivo?

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

16

Rm se utiliza do poder soberbo das metforas


ENTREVISTA COM MARCO LUCCHESI

Inspirado na poesia e na mstica sufi, o professor e poeta Marco Lucchesi


concedeu a entrevista que segue IHU On-Line por e-mail, falando sobre a
importncia e a contribuio de Rm e sua obra potica. Lucchesi
graduado em Histria pela Universidade Federal Fluminense, mestre e
doutor em Letras (Cincia da Literatura) pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro e ps-doutor pela Universidade de Colnia. Atualmente,
professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem
experincia na rea de Letras, com nfase em Teoria Literria, atuando
principalmente com temas que envolvem filosofia, literatura italiana,
neoplatonismo e teoria literria.
Marco Lucchesi autor de vrios livros, entre os quais citamos A sombra
do Amado (Rio de Janeiro: Fisus, 2000); Caminhos do Isl (Rio de Janeiro:
Record, 2002); e Esphera (Rio de Janeiro: Record, 2003). Est para ser
lanado nos prximos meses, pela Editora Fissus, o livro O canto da Unidade,
em parceria com Faustino Teixeira, com poemas de Rm traduzidos ao
portugus.

IHU On-Line - Como avaliar o significado e a


atualidade de Rm para a mstica contempornea?
Marco Lucchesi - Como a de um Oceano. A longa

IHU On-Line - Rm um mstico que retoma os valores


mais essenciais do cristianismo e do isl, sem deles

superfcie uma escolha. A outra a do abismo. E ambas

nada renegar, favorecendo a percepo de uma

guardam seus riscos. A obra de Rm sabe a vastido. E

dimenso integralmente fraterna e ecumnica. Qual

nela no so pequenos os desafios. Tanto os de

a importncia concedida por Rm ao dilogo inter-

interpretao quanto os de traduo. Eles tm a fora de

religioso?

um enigma. E de um raio. Talvez mil. A alegria de quem

Marco Lucchesi - Exatamente. Quem sabe se no o

encontra um tesouro submerso. E que no canta apenas

transformamos nesse Patrono do Dilogo. Ele com Juan

uma parte, uma lngua, um povo. Mas, acima de tudo, a

de la Cruz 21- por tardes infindveis - conversando.

humanidade. Mstico que diz ter vencido o dois e beijar

Massignon e Ibn Arabi. Permita-me esses devaneios. E o

com seus lbios o Um. Em tempos atrozes como os


nossos, vencer o Dois20 parece a tarefa mais dramtica...

21

Juan de la Cruz (1542-1591): poeta e religioso espanhol. Mais

conhecido como San Juan de la Cruz, trabalhou desde jovem num


hospital e recebeu formao intelectual no Colgio Jesuta de Medina
del Campo. Estudou artes e filosofia na Universidad de Salamca, onde
20

Vencer o Dois uma expresso misteriosa de Rm e

significa vencer a dualidade. (Nota do entrevistado)


SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

em 1567 conheceu Santa Teresa de Jesus, com quem fundou a ordem


das carmelitas. (Nota da IHU On-Line)

17

maravilhoso que Rm no se anula para dialogar. E

orao de Rm, da flauta, da poesia e da dana. Como

nem tampouco se fecha para a maravilha do Outro. Ele

uma masbaha22 profunda, cravada em seu esprito, em

vai ao seio da tradio abrmica. Mas no com

que o estado de orao no se constitui numa

argumentos espessos, do tipo matria e matria de

interrupo diante do real. Mas o real em si mesmo um

quantidade, ou do tipo causa eficiente e causa final.

canto de amor jamais interrompido.

No. Ele se utiliza do poder soberbo das metforas.


Vinho. Ebriedade. Amor. Riachos. Oceanos e Moinhos.

IHU On-Line - Como situar o lugar do


despojamento na reflexo de Rm?

IHU On-Line - Como decifrar a paixo de Rm pela

Marco Lucchesi - Como no lembrar aqui de So

Unidade? E como ele articula esta paixo com sua

Francisco23? Como no evocar a liberdade de todas as

abertura generosa pluralidade do real?

solides? O salto no abismo. A entrega total e absoluta.

Marco Lucchesi - No aumenta nem diminui. No

To necessria e to incomparvel nas solides de todos

apequena. Nem distorce. O perigo? Devastar a beleza das

os desertos. No s os de pedra e a areia. Mas o estado

diferenas. Outro, ainda? Dissolver a beleza e a saudade

de deserto, seja qual for a sua geografia. Porque o

do Todo. Ele est no centro desse desafio. Ama a parte e

deserto no uma questo de geografia.

o todo. O rosto atual e o rosto futuro. Todas as lnguas. E


aquela de Deus. Essa a parte mais bela e essencial de

IHU On-Line - Quais so algumas das mensagens mais

sua obra. O canto da Unidade. A beleza de cada prola.

importantes deixadas por Rm e que permanecem

De uma s prola. E o universal latente que se esconde

atuais para o nosso tempo?

(ou se revela) em cada concha aberta.

Marco Lucchesi - Insisto na relao entre beleza e


verdade. Sentimento de pertena a uma tradio. E, ao

IHU On-Line - Como dimensionar o lugar do amor na


obra potica de Rm?
Marco Lucchesi - Da tradio persa, Rm assume

mesmo tempo, de liberdade e criao, a partir desse


ponto de vista. Morrer. E morrer de amor. Pela
diferena, das lnguas (por ele freqentadas). E todos os

todas as metforas conhecidas, ou todas as expresses

rostos. Quaisquer. E cada um deles. Mas desde que

consagradas sobre o amor para torn-las suas. Como fez

rostos. E como disse Faustino, o canto da Unidade...

San Juan de la Cruz com o Cntico Espiritual. Nenhuma


novidade diante da tradio. Mas o selo de sua profunda

IHU On-Line - Rm destaca-se como um dos msticos

beleza nasce de uma compreenso difusa de um mundo

que mais acentuou o trao da generosidade divina.

banhado de luz, atravessado pelo amor da unidade que

Qual a importncia desta questo nestes tempos de

se articula em todos os plurais.

fundamentalismo religioso?
Marco Lucchesi - Absoluta. E mesmo que atravs de

IHU On-Line - Como sinalizar a centralidade da

Rm se propusesse uma releitura do Alcoro.

orao no conjunto da obra de Rm?


Marco Lucchesi - Faustino Teixeira, o meu querido
amigo e tremendo telogo, j respondeu a essa

22

Tero islmico. (Nota da IHU On-Line)

23

So Francisco de Assis (1181 - 1226): nasceu em Francesco

questo de modo belssimo. J no me atrevo a dizer

Bernardone, foi um Santo vindo de uma famlia de comerciantes. Em

mais. A no ser a respeito do efeito multiplicador da

Assis ficou conhecido como Francisco, ou seja, o "pequeno francs".


(Nota da IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

18

Distinguindo-se a pequena da grande Jihad. Ou, ento, a

todos os profetas so portadores da mensagem de Deus.

idia de que cada comunidade tem o seu profeta. Que

Que Jesus (Rm dizia: o Doutor Jesus, de doutor, mdico

que cura) o maior santo de todos os tempos (para o


Isl). Bastava ler o Alcoro com ateno e amor, que os
melhores muulmanos dedicam surata24 da Gruta! A
dimenso da Esperana.
IHU On-Line - O senhor traduziu cerca de 30 poemas
de Rm para o livro que est sendo lanado no Brasil.
Poderia falar sobre a questo da traduo de Rm
para o
portugus? Qual a especificidade da traduo da
poesia mstica?
Marco Lucchesi - Eu j havia traduzido um livro antes.
A sombra do amado25, para a editora Fissus. Trabalhei
agora com o texto persa original, de Furuzanfar. E, a
meu lado, uma figura indispensvel, um homem nobre e
um grande conhecedor da poesia persa, Rafi Mussavi.
Assinamos juntos a traduo. Rafi nasceu no Ir e domina
igualmente o portugus. Estudou na Sorbonne.
Respeitamos o original. Mas decidi por manter os 30
rubaiatas26 com as formas livres, mas com a mtrica bem
severa. A dificuldade a de trazer para uma
lngua aglutinante outra no-aglutinante. E depois,
a leitura de Rm se constitui num desafio. Estudei o
persa como um desesperado. Mas a dificuldade sempre
imensa. Abraar e traduzir o Pensamento. O canto de seu
pensamento.

24

Sura ou surata nome dado a cada captulo do Alcoro. (Nota da

IHU On-Line)
25

LUCCHESI, Marco. RUMI, Jalal Ud-Din. A sombra do amado (Rio de

Janeiro: Fissus, 2000). (Nota da IHU On-Line)


26

Rubaiatas: quartetos persas e rabes. (Nota da IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

19

Rm: um apstolo do ecumenismo


ENTREVISTA COM MARIO WERNECK

O amor a matriz geradora de todo o pensamento potico-mstico de Rm,


afirma Mario Werneck em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line.
Mario Guimares Werneck Filho possui graduao em Filosofia, pela Universidade
Federal de Juiz de Fora, e mestrado e doutorado em Cincias da Religio, pela
mesma instituio.

IHU On-Line - Qual a importncia concedida por


Rm ao Dilogo Inter-Religioso?
Mario Werneck - Rm por muitos considerado um

existncia de uma significao pr-formal constitutiva de


toda criatura, um transfundo que a tudo recobre e que
percebido como halo envolvente que a tudo abarca. Este

apstolo do ecumenismo. Em suas histrias, encontram-

sopro primordial ao nascer continuamente na criao

se mensagens que, de uma maneira clara, ou por vezes

opera nesta as transformaes que a fundamentam. Ao

alusiva, conduzem o leitor a descobrir o sentido mais

identificar esta fora com o Amor, Rm traz para o

pleno da alteridade, pelo reconhecimento, atravs da via

mundo fenomnico um aspecto relacional transcendente.

do Amor, da Verdade maior que abarca as tradies.

isso que ele diz no Masnavi27:

importante tambm lembrar o ambiente cultural em que


Rm viveu. Knya era uma cidade cosmopolita por

Visto que o objeto do louvor Ele-mesmo

excelncia, onde sbios, filsofos e figuras eminentes das

No mais que Um,

mais variadas tradies para l confluam, trazendo

Deste ponto de vista todas as religies no so mais

ensinamentos do Oriente e do Ocidente. Os bigrafos de

que uma s religio.

Rm sempre lembram os colquios amigveis que ele


mantinha com monges cristos. Isso transparece em
alguns de seus textos, onde ele evoca sabedorias crists
de maneira singular.

IHU On-Line - Como dimensionar o lugar do amor na


obra potica de Rm?
Mario Werneck - O Amor a matriz geradora de todo o
pensamento potico-mstico de Rm. , pois, tema-

No vinho do cristo esto escondidas cem substncias


espirituais,
do mesmo modo que a soberania espiritual est oculta
sob o fraque do derviche.

chave para se entender toda a dinmica de sua mstica.


Porm, quando ele fala do Amor, este no deve ser
entendido, apenas, como um sentimento fsico ou
categoria psicolgica. Amor, para Rm, um princpio
gerador que emana diretamente do Criador (quando da

Creio que a mensagem que Rm traz para o dilogo

palavra criadora: Kun = Seja!). Portanto, algo que

inter-religioso hoje, seja a de um respeito ingente pelo


outro, vivido numa dinmica relacional de amor. Isso

27

Masnavi: longo poema narrativo de Rm, com 25.631 versos. Os

aponta para a existncia de formas dialogais que se

versos dedicados ao amor de Rm so considerados os mais profundos

situam para alm das convencionais. Rm aponta para a

de toda a literatura islmica. (Nota da IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

20

engloba todas as coisas criadas e tm o poder de

Baslio de Cesaria30 e Joo da Cruz31, o corao um

transform-las, j que delas parte integrante. Vive

lugar central, posto que identificado com o espelho,

nelas como memria sagrada de um tempo (trans-

que, se polido, capaz de refletir toda beleza do Amado

histrico) onde s havia o Uno indiferenciado. Toda a

pelos olhos do amante. Assim, o sufismo identifica o

criao em seus mltiplos aspectos est fervilhando de

corao (qalb) como o lugar das manifestaes

Amor e isso pelo fato dEle ser o plasmador de todo

teofnicas. nele enquanto portador da centelha

cosmos. Assim, o universo todo inteiro em profuso e

divina do Amor - e atravs dele - pelo processo de

movimento impelido pelo Amor. Por isso Rm sempre

profunda purificao, onde se transcende a dualidade eu-

relembra que fomos gerados no Amor, crescemos no

tu - que o mstico ascende a um estgio que Rm chama

Amor e morremos tendendo ao Amor.

de ressurreio espiritual, ou segundo nascimento.

Mas, paradoxalmente, ainda que para Rm o Amor seja

Nasce-se uma primeira vez enquanto forma e esprito.

o centro de toda sua poesia mstica, ele afirma no

Com o progressivo exerccio dos ensinamentos

Masnavi:

espirituais, pode-se atingir a mirada de Deus, pois como


diz Rm no Fhi-m-Fih32: O ser humano o astrolbio
Se eu continuasse a descrever o amor,

divino.

uma centena de ressurreies passariam

O corao , portanto, este lugar de possibilidade de

e minha descrio restaria incompleta.

mudana. l onde esto as matrizes ancestrais que


irmanam a criao em um princpio nico. l que se

Em muitos versos do Divn28 ele termina em silncio


(khamush). Por exemplo, ele diz:

29

Marguerite Porete (1255-1310): autora francesa de The mirror of

simple souls. Aps um longo julgamento, acusada de heresia, ela foi

Silncio, dizes muito

queimada na fogueira em Paris no ano 1310, por ter se recusado a tirar

E ningum entende

seu livro de circulao. O livro citado como um dos primeiros textos


medievais da heresia do esprito livre. (Nota da IHU On-Line)

De qual morada ressoa este tambor?

30

Donde vem esta palavra?

Baslio de Cesaria: Padre da Igreja, telogo e escritor cristo do

sculo IV. Personalidade frtil, atuante na reflexo filosfica, teolgica


e mstica, na produo literria, no expor suas idias, atravs de

Eis a os mistrios do Amor, talvez seja por isso que o


Amor tenha sido colocado no corao da criao, como
uma partcula latente. Desvelo seu signo.

cartas, sermes, tratados, na organizao e na administrao das


comunidades de sua diocese, ganhou o ttulo de Magno. (Nota da IHU
On-Line)
31

So Joo da Cruz (1542-1591): foi um frade carmelita espanhol,

famoso por suas poesias msticas. Comps trabalhos onde encontramos

IHU On-Line - Como entender, na obra de Rm, o


tema do corao e qual a centralidade desta questo
para a reflexo mstica do sufismo?

profundas expresses msticas em tratados, em forma de poemas com


comentrios teolgicos. Entre estes poemas, incluem-se Cntico
espiritual, Ascenso ao Monte Carmelo, Chama de amor e
Noite sombria da alma. Atravs destes, apresenta o desenvolvimento

Mario Werneck - Para o sufismo, e tambm para a


29

mstica crist, por exemplo, em Marguerite Porete ,

da alma humana atravs da purgao, iluminao e unio com Jesus. A


editora Vozes, de Petrpolis/RJ, publicou em portugus As obras de
So Joo da Cruz, sendo que a stima edio de 2002. (Nota da IHU
On-Line)

28

Divan: livro escrito por Rm no sculo XIII, com mais de 3.239

32

Fhi-m-Fih (Rio de Janeiro, 1993): coletnea de ensinamentos

versos, dedicado ao seu mestre, Shams de Tabriz. (Nota da IHU On-

deste que um dos grandes porta-vozes da mstica islmica. (Nota da

Line)

IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

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deve postar a alma (nafs) para que reconhea sua

movimentador do cosmos, equacionando a ao feita no

qualidade anglica. Por isso, Rm sempre convida a que

plano deste mundo fenomnico com a harmonia csmica.

se observe o universo criado, pois:

Unificando as foras antagnicas que regem o movimento


dos corpos celestes: o Todo e a parte mesclados naquilo

Cada ar, cada tomo est ligado viso de Deus.

que tm de divisvel e indivisvel.

Mas at que ela seja aberta, quem dir:


L embaixo se encontra uma porta!
A menos que o Observador abra a porta,
Esta idia no nasce no corao dos homens.

IHU On-Line - Como situar o lugar do despojamento


na reflexo de Rm?
Mario Werneck - O despojamento est sempre
relacionado com o desapego de si. importante ressaltar

Mas, para abrir esta porta e iluminar esta idia

que Rm no prega uma vida monstica nem, tampouco,

seminal, preciso passar pelas etapas profundas da via

uma pobreza material. A pobreza de Rm tem um

mstica.

sentido ontolgico, semelhante quela de Eckhart34. Ele


sempre relembra que no h monges no Isl, o que no

IHU On-Line - Como sinalizar a centralidade da


orao no conjunto da obra de Rm?
Mario Werneck - Toda obra de Rm uma orao.

significa que seus mtodos sejam menos piedosos.


Casado e com filhos, passava horas em recolhimento e
orao. Estando junto ao seu mestre Shams de Tabriz,

Basta dizer que na provncia do Sind, no Paquisto,

passava dias em profundo jejum e unio mstica. O

alguns msticos se alimentavam espiritualmente com trs

despojamento em Rm, portanto, o desapego a

33

livros: O Coro, o Divan de Hafiz e o Masnavi de Rm.


A orao reveste-se para Rm no mais curto caminho

pensamentos e desejos que distanciam o buscador da


meta. Importante tambm lembrar que Rm, em seus

para Deus. Certa vez. um discpulo perguntou a ele qual


era o caminho mais curto para se aproximar de Deus, e
Rm respondeu: A Orao. A orao (dhikr) um

34

Mestre Eckhart (1260-1327): nasceu em Hochheim, na Turngia.

Em sua obra, est muito presente a unidade entre Deus e o homem,

modo de clarear a luz do esprito, pois a palavra dhikr

entre o que consideramos sobrenatural e o que achamos ser natural.

(ato interior de relembrar e pensar) rememorao

um pensamento holstico, pois. Para Eckhart, devemos reconhecer Deus

constante dos nomes de Deus.

em ns, mas este caminho no fcil. O homem deve se exercitar nas

No Coro dito: Crentes, mencionai

obras, que so seus frutos, mas, ao mesmo tempo, deve aprender a


ser livre mesmo em meio s nossas obras. Em 1329, foi dada ao

freqentemente a Deus, esta a fora da orao. por

pblico a bula In agro dominico, atravs da qual o Papa Joo XXII

meio desta salmodia encadeada que se atualiza a

condenou vinte e oito proposies do Mestre Eckhart. Das vinte e oito,

presena de Deus, e aqui que se pode sentir o ser de

dezessete foram consideradas herticas e onze, escabrosas e

Rm mais candentemente apaixonado; fervendo, como

temerrias. Entre estas, estava a de que nos transformamos em Deus.


Mas esta condenao papal justifica-se, na medida que as idias de

ele diz, de paixo (ishq) pelo Amado. Seu dhikr tornou-se

Eckhart tinham uma dimenso revolucionria. Elas foram acolhidas

sam, a dana csmica da Unidade; o bailado celestial

pelas camadas populares e burguesas, que interpretavam o apelo


eckhartiano interioridade da f e unio divina como uma rebelio
implcita exterioridade "farisica" de uma hierarquia e de um clero

33

Divan de Hafiz: obra do poeta persa Hafiz em forma de ghazal,

moralmente decadente. Sua herana influenciou, entre outros,

pela qual aperfeioou a sua forma tpica. A partir de Hafiz, costume o

significativamente, a Martinho Lutero. Sobre o tema Msticas, conferir o

poeta revelar o seu nome no final da composio. (Nota da IHU On-

tema de capa da IHU On-Line nmero 133, de 21/03/2005, intitulado

Line)

Delicadezas do Mistrio. A mstica hoje. (Nota do IHU On-Line).

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

22

belos poemas, canta as maravilhas da criao. No existe

considere seu aspecto ou sua cor, considera seu desgnio

nele nenhuma idia de sada do mundo, mas existe,

e sua inteno. Pois no mundo criado primordial

sim, uma contundente crtica aos seres humanos (criados

observar que todas as criaturas, dia e noite revelam

imagem e semelhana de Deus), que se deixam levar

Deus. Isso remete ecologia e a um tipo de

por suas prprias criaes, que mais no so que

conhecimento relacional. O ser humano guarda a

simulacros que funcionam como vus para a viso da

memria sagrada (o amor das estrelas foi implantado

Verdade. Por isso, preciso perceber em sua mensagem

na alma), e, ento, cada parte desse organismo vivo,

que necessrio estar no mundo, sem se identificar com

que o ser humano, compartilha com o cosmos. E nessa

o mundo. O verdadeiro desprendimento saber que:

perspectiva, o pensamento de Rm abre a possibilidade


para a fundao de uma nova realidade, isso sem falar

Quando o ar da pobreza est no interior de algum

tambm da noo de equilbrio entre os opostos, to

Este repousa em paz sobre as guas desse mundo.

cara ao mestre. Mas acho que, primordialmente, Rm


acena para uma revoluo criativa na relao Eu-Tu, a

Pela pobreza de cunho ontolgico a criatura percebe

partir da palavra amorosa.

sua pequenez ante o Criador.


IHU On-Line - Rm destaca-se como um dos msticos
IHU On-Line - Quais so algumas das mensagens mais

que mais acentuou o trao da generosidade divina.

importantes deixadas por Rm e que permanecem

Qual a importncia desta questo nestes tempos de

atuais para o nosso tempo?

fundamentalismo religioso?

Mario Werneck - Acho que so vrias e que se

Mario Werneck - Rm, s vezes, refere-se a Deus

resumem a uma: Amor. A histria da evoluo do esprito

como sendo mina de generosidade. Isso, para nossos

descrita por Rm uma narrativa que convida a pensar

tempos, implica em mudana radical no trato com o

no itinerrio da criao, como sendo uma composio de

outro, ou seja, em reaprender a generosidade (assim

conhecimento de leituras de linguagens, e conhecimento

como outras virtualidades), tir-la dos grilhes que

de leituras de formas, j que ambas confluem, ou se

insistem em mant-la num estado de inrcia at seu

plenificam, no pice da criao, como ele mesmo diz,

pleno esquecimento pelo gnero humano, em

que o gnero humano. A mstica de Rm atual,

comportamentos de absoluta irresponsabilidade. Se a

porque toda mstica atual. Toda mstica somente faz

generosidade trao do divino, ela , pois, fora

sentido quando presena; para o mstico no h

potencial na criao. No , ento, a mxima

passado ou futuro, posto que tudo presena. Esta

generosidade de Deus o ato da criao? Na criao, Deus

uma das mensagens de Rm: a de que tudo presena.

gera um diferente para com Ele se comunicar. A criao

por este motivo que tudo deve ser cuidado. Tudo

, em si, a mxima abertura ao Outro. Ora, um tal

uma gota de Sua beleza, que por causa de Sua plenitude

ensinamento, quando trazido do nvel ontolgico para o

no pode ser contida sob a pele. Face aos tempos de

prtico, tem profundas e ricas implicaes. Uma delas

tribulaes Rm escreve: Tudo tem diferentes partes.

(ligada diretamente ao monotesmo) que, enquanto

E essa observao remete a que se pense com ele: Se

criaturas, nos sabemos oriundos da mesma Fonte

ests em peregrinao busca um peregrino como

primeira. Um trao que nos faz fruto de um mesmo

companheiro, seja ele hindu, turco ou rabe. No

ncleo; ncleo que, ao se disseminar, soltou seus

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

23

fragmentos que se fizeram modos diferentes de existir.

Em tempos de fundamentalismo, a grande

Veja! Modos diferentes de um mesmo Ncleo e Rm

generosidade Divina ensina compartilhar; ensina que no

dir: Se o mundo te parece vasto e sem fundo, saiba

h eu em si independente, e que a relao fundamento

que para o Onipotente ele no mais que um tomo.

de existncia.

Rm no contexto da mstica e da tradio islmica


ENTREVISTA COM WILLIAM CHITTICK

Ao se referir poesia de Rm, o professor William Chittick, especialista no


pensamento sufi e em filosofia e literatura islmica, descreve: Sua linguagem
bela, sua imaginao cativante, suas similitudes e analogias inspiram amor;
quando sua poesia bem recitada ou cantada em persa, ela to bela que
embriaga os ouvintes. De vez em quando, a beleza da alma de Rm brilha atravs
de sua poesia e de seus ensinamentos, e isso que ateia fogo nos coraes do
povo. O professor fez essa e outras afirmaes na entrevista exclusiva que
concedeu por e-mail para a IHU On-Line, onde tambm relacionou a crena
muulmana em Deus com o poeta que inspira a matria de capa desta edio. No
entanto, para Chittick, um dos problemas que Rm geralmente percebido
como algum que apareceu na histria apesar do Isl, e no por causa dele.
Enquanto ele no for recolocado em seu contexto histrico e cultural, as pessoas
continuaro a l-lo como outra voz excepcional de generosidade, uma
singularidade na histria islmica.
Chittick nasceu em Connecticut, EUA, e cursou Ph.D. em literatura persa na
Universidade de Teer em 1974. Ensinou religio comparada no departamento de
Humanidades da Tehran's Aryamehr Technical University e professor na State
University of New York at Stony Brook. autor e tradutor de vinte livros e mais de
cem artigos sobre o pensamento islmico e sufismo. De suas obras citamos The Sufi
Doctrine of Rumi: An Introduction (Tehran, Iran: Aryamehr University, 1974) e The
Sufi path of love: the spiritual teaching of Rumi (New York: State University of New
York Press, 1983).

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

24

IHU On-Line - Rm tem algo de significativo a dizer

William Chittick Poderia parecer a estranhos, quando

para algum que vive no mundo moderno e deseja

ouvem algo sobre os fundamentos do Isl, que a teologia

engajar-se numa busca mstica?

islmica seca e estril e bem pouco inspiradora. Eu

William Chittick - Se Rm foi um mstico, deveramos

desejo um Deus que eu possa envolver e abraar, diz

entender que ele conquistou um nvel de conhecimento e

um telogo cristo amigo meu. Esta uma interpretao

iluminao que o pe em constante contato com a

totalmente errnea da compreenso dos muulmanos

sabedoria divina, tornando-o um condutor de graa e

sobre Deus, baseada amplamente nas teologias racionais

orientao. Poderia Rm oferecer alguma ajuda a quem

produzidas por certo tipo de influentes apologetas sobre

quisesse ser mstico hoje em dia? Ele certamente pode

a histria islmica. Contudo, no foram estas teologias

providenciar orientao, como, por exemplo, para o

que inspiraram os fiis muulmanos, mas, antes, a beleza

objetivo da busca, os riscos do passado e as linhas de

de Deus, que o Coro celebra de diversas formas e que

orientao que precisam ser seguidas para evitar danos.

cantada quase constantemente na poesia islmica e, no

Porm, para ser mais especfico do que isto, eu

por ltimo, na de Rm.

precisaria escrever um livro detalhando seus


ensinamentos, o que eu j fiz brevemente em The Sufi
35

doctrine of Rumi

e, com mais detalhes, em The Sufi

path of love36.

Quando o povo ouve que o ensinamento fundamental


do Isl tawhd37, a assero da divina Unidade, e que
tawhid expresso na sentena (No h) deus(es), mas
Deus, ele se admira o quanto esta branda assero pode

IHU On-Line - O que desperta admirao na potica


de Rm?
William Chittick Geralmente, a beleza. E o que faz

despertar paixo e amor. Eles precisam entender que


isso no propriamente um dogma, ou uma assero
sobre o modo como as coisas so, mas muito mais um

Rm to especialmente atraente sua nfase na

guia sobre como pensar a respeito de Deus e como

importncia da beleza, no s teoricamente j que ele

desenvolver a prpria relao com Deus. Tais pessoas

expe sua importncia com muitos detalhes , mas

deveriam prestar ateno para as meditaes de Rm e

tambm na prtica. Sua linguagem bela, sua

de incontveis outros muulmanos sbios e santos que

imaginao cativante, suas similitudes e analogias

explicam a natureza da Unidade.

inspiram amor; quando sua poesia bem recitada ou


cantada em persa, ela to bela que ela embriaga os

Deus assim nos fala: o Coro possui os mais belos

ouvintes. De vez em quando, a beleza da alma de Rm

nomes (al-asm al-husn), como Uno, Vivo, Conhecedor,

brilha atravs de sua poesia e de seus ensinamentos, e

Misericordioso, Compassivo, Poderoso, Desejoso,

isso que ateia fogo nos coraes do povo.

Amante, Perdoador. Todos estes nomes podem ser


adequadamente inseridos na frmula da Unidade, j que

IHU On-Line - Como descrever a paixo dos


muulmanos por Deus?

35

The Sufi Doctrine of Rumi: An Introduction (Tehran, Iran:

Aryamehr University, 1974). (Nota da IHU On-Line)


36

The Sufi path of love: the spiritual teaching of Rumi (New York:

State University of New York Press, 1983). (Nota da IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

a divina Unidade significa que no h nada realmente


uno seno Deus, nada vivo seno Deus, nada conhecedor

37

Tawhd: um conceito central no Isl que se refere crena na

unicidade de Deus. A palavra uma forma verbal que significa


"proclamao do nico", isto , afirmar que Deus nico. (Nota da IHU
On-Line)

25

seno Deus, nada amante seno Deus, e assim por

Uno, aquele que S Ele . Esta fonte da paixo de Rm

diante. Sob certo aspecto, isso significa que somente

simplesmente sua compreenso do caminho que as coisas

Deus real, e todas as qualidades reais, toda a realidade

so, e sua compreenso de que as necessidades humanas

pertence exclusivamente a Deus. Sob outro aspecto, isso

so feitas segundo a imagem de Deus, e que estas

significa que cada vestgio de realidade encontrado em

vontades e desejos nada mais so do que a manifestao

qualquer coisa s pode ser uma concesso de Deus. Na

do infinito Desejo do Uno de torn-lo conhecido.

linguagem cornica, cada coisa que existe um sinal


(ya) de Deus. Na linguagem filosfica, o cosmo e tudo o

A senda da mstica exitosa para o nvel no qual eles

que ele contm contingente em relao a Deus, e

estaro aptos a erradicar de sua viso os falsos desejos e

somente Deus Necessrio, o que significa que somente

aspiraes, substituindo-os pelo amor ao Uno. Este

Deus por Si mesmo, com nada a apoi-lo.

precisamente o tawhid na prtica, um ponto que Rm


esclarece nestas linhas, que empregam a frmula do

O Coro se refere contingncia de tudo o que existe

tawhid:

como pobreza, como a eterna necessidade de todas as


A alegria e a mgoa dos amantes Ele,

coisas por Deus que unicamente o Rico. Por isso, o


Coro diz, num versculo que explica porque os
msticos muulmanos se chamam a si mesmos de povo

Seu ordenado e salrio pelo servio Ele.


Se eles contemplarem algo diverso do Amado,

pobre (faqr, darvish): povo! Vs sois os pobres

Isso no seria amor, mas intil paixo.

diante de Deus, e Deus o Rico, o digno de louvor

O amor a chama que, quando se incendeia,


Queima tudo, exceto o Eterno Amado.

(35:15). Isto para dizer que, em nossa situao atual,


nada temos por ns mesmos. Porque carecemos de

Ele usa a espada do no deus para tudo eliminar, a


no ser Deus.

conhecimento e compreenso, ns pensamos que temos


algo e nos apegamos nossa existncia, nossas
posses, famlia, amigos, amados, carreiras etc. Porm,
nossa necessidade por essas coisas de fato nossa

Olha cuidadosamente: aps o no deus, o que resta?


Permanece o porm Deus, o resto se foi.
Bravo, grande Amor, incinerador de dolos!
(Mathnawi V 586-590)

necessidade por Deus. Alm disso, nossa pobreza diante


dos outros de fato nossa pobreza diante de Deus, pois
os assim chamados outros nada so seno sinais e
contingncias do Uno. Rm nos recorda constantemente
que todos os nossos amores e desejos so, de fato, um s
amor e um s desejo.

IHU On-Line - Qual a importncia do amor na poesia


de Rm?
William Chittick Eu j respondi a esta questo,
quando mostrei que o amor o fogo que reaviva a
frmula da Unidade, erradicando do corao e da mente

Assim, a paixo de Rm pelo Uno est enraizada em

tudo o que no Deus. Porm, deixe-me expandir isso

sua compreenso de que existe apenas Uma Realidade.

um pouco. Ns podemos entender o lugar do amor em

Ele direciona todas as suas paixes, todos os seus

termos de quatro princpios bsicos da cosmoviso de

amores, todos os seus desejos, todas as suas

Rm (que geralmente a cosmoviso de todas as formas

necessidades, toda a sua fome, sua sede e suas

da teologia islmica que tem uma apreciao da

aspiraes, e enfoca tudo isso num nico Ponto, que o

compreenso humana dos mistrios).

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

26

pudssemos entender nossa real situao, haveramos de


O amor divino

conhecer e sentir que cada amor que brota em nosso

Em primeiro lugar, o amor um atributo divino.

corao , de fato e na verdade, amor pelo Belo, uma

Somente por derivao, ou metaforicamente, ele pode

vez que no h nada belo seno Ele.

ser considerado um atributo humano. Antes que


possamos entender o que significa o amor humano e

A orientao dos profetas e santos

antes que possamos experimentar seu real poder , ns

Um terceiro ponto bsico que no podemos amar

precisamos entender o que ele significa no contexto

verdadeiramente o Belo, o nico objeto real do amor,

divino. Num versculo a que Rm se refere com

sem a orientao dos profetas e dos santos.

freqncia, o Coro diz: Ele os ama, e eles O amam

Especificamente, no contexto de Rm, isso significa a

(5:54). Amando os humanos Ele os ama Deus o

orientao do profeta Maom e dos grandes mestres Sufi.

amante. Sendo amado pelos humanos eles O amam

Aqui, o Coro plenamente explcito. O Livro se refere a

Deus o amado. Dado que no h deus[es], seno Deus,

Maom [Muhammad] com estas palavras: Dize: Se voc

tambm no h verdadeiro amante seno Deus e no h

ama Deus, siga-me, e Deus o amar (3, 31). No h

verdadeiro amado seno Deus. Este o ponto bsico de

dvida de que os seres humanos sejam sempre objeto do

Rm sobre o amor. O amor na realidade um atributo

amor de Deus, porm este amor no se torna

de Deus, e ele pertence aos humanos metaforicamente

transformador sem que o povo lhe responda. Deus nos

(Mathnawi II, introduo prosa).

ama, ou, caso contrrio, Ele no nos teria criado e Ele


no teria revelado os caminhos de orientao e guia. No

A beleza amvel

obstante, dizer que Deus ama a ns todos exatamente

Segundo: a beleza por definio amvel. O amor no

o mesmo que dizer: Ele est contigo, onde quer que

pode ser discutido parte da beleza, porque a beleza o

estejas (Coro 57: 4). De fato, Deus est conosco onde

objeto do amor, e a beleza no pode ser entendida

quer que estejamos; nosso problema que ns no

parte do amor, porque o amor a resposta humana

estamos com Ele. De fato, Deus nos ama; nosso problema

beleza. Quem quer no sentir amor ante o belo carece

que ns no O amamos em resposta. No sentido de

de compreenso humana e plenitude. Eu no estou

estarmos como Ele e no sentido de O amarmos como Ele

dizendo que a beleza possa ser definida. Ela no pode ser

deseja ser amado, ns devemos seguir a orientao

definida mais facilmente do que o amor. Mas podemos

proftica que nos permita expressar nosso amor

entender a importncia da beleza logo que lembrarmos

adequadamente e isso resulta em Seu amor por ns

que a beleza tambm essencialmente um atributo

individualmente e especificamente. Isso somente

divino e apenas derivadamente um atributo das

acontecer se ns nos engajarmos sincera e

criaturas. Assim como no h verdadeiro amante nem

vigorosamente na senda que Shams-i Tabrizi chama, com

verdadeiro amado seno Deus, assim tambm no h


verdadeira beleza seno Deus. Este o sentido do
38

famoso hadith : Deus belo, e Ele ama a beleza. Se

(Sahaba). Para a maioria dos muulmanos, a hadith contm uma


exposio com autoridade dos significados do Alcoro. A lei islmica
deduzida dos actos, afirmaes, opinies e modos de vida de
Muhammad. Muulmanos tradicionais acreditam que os acadmicos

38

Hadith: corpo de leis, lendas e histrias sobre a vida de Muhammad

islmicos dos passados 1400 anos foram bem sucedidos na maior parte

os prprios dizeres nos quais ele justificou as suas escolhas ou ofereceu

em determinar a exactido de boa parte da hadith com que lidaram.

conselhos. Muitas partes da Hadith lidam com os seus companheiros

(Nota da IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

27

freqncia, a senda do seguimento (Mutba`at), uma

famosamente, a tradio chinesa. De qualquer modo, no

palavra que derivou precisamente do seguimento

caso da China, os estudantes traduziram tipicamente a

mencionado no versculo Cornico Se amas Deus,

palavra chinesa xin por mente, embora sua primeira

segue-me. Como Shams o coloca numa passagem de seu

designao seja corao, ou seja, o rgo fsico. O

Maqlt39, Aflio para aqueles que deixam de seguir

corao , em termos islmicos, a realidade subjacente e

Maom!.

unitria que nos torna humanos e esta se bifurca em


mente e corpo. O corao no apenas a sede das

Deus vai amar-nos

emoes e dos sentimentos como no Ocidente moderno

Isso nos conduz ao quarto ponto bsico: o fruto do

, mas tambm, e primariamente, a sede da inteligncia

seguimento de Maom que Deus vai amar-nos, e o fruto

e do amor, isto , amor verdadeiro, amor real pelo Real.

do amor de Deus que ns estaremos com Deus da


mesma forma como Ele est conosco. Revendo estes

De todas as criaturas de Deus, somente os seres

quatro pontos: o amor atributo de Deus, e o amor

humanos foram feitos Sua imagem e somente eles tm

humano existe como reflexo do amor de Deus. A beleza

a capacidade de contempl-lo nele mesmo, porm

atributo de Deus, e todo amor divino e humano dirigido

unicamente na raiz de seus prprios coraes. O

a Deus como o Belo. Quando os seres humanos entendem

verdadeiro conhecimento e despertar da conscincia ,

que seu amor de fato direcionado para Deus, eles no

portanto, conhecimento do corao, no conhecimento

tm outra escolha seno seguir a orientao proftica,

da mente. A senda do Sufi freqentemente explicada

de modo a agirem como o amante agiria para com seu

como o processo de polimento do corao. A fonte

amado. Somente ento eles podero colher o fruto de

cornica da imaginao (que tambm se encontra em

serem amados por Deus. Este fruto o que Rm chama

outras tradies) uma referncia ignorncia e

freqentemente de unio, isto , quando Deus ama

negao daqueles que tm ferrugem em seus coraes

Seu servo, o servo descobre que Deus est presente com

(83: 14). O corao um espelho de ao que deveria

ele, e ele est presente com Deus. Deus o ouvido

refletir a luz de Deus, j que o homem feito sua

atravs do qual ele escuta, a viso atravs da qual ele

imagem. Mas, quando o espelho fica enferrujado, j no

v.

podemos mais perceber Deus em nossos coraes, e


assim camos no erro e na desorientao.

IHU On-Line - Como entender, na poesia de Rm, o


tema do corao? De que modo esta questo auxilia a
reflexo mstica do sufismo?
William Chittick A compreenso de Rm sobre o
corao (qalb, dil) inteiramente direcionada para a
compreenso cornica do corao, e esta viso est

IHU On-Line - Rm se distingue como um dos


msticos que mais acentuou o trao da generosidade
divina. Qual a importncia desta questo nestes
tempos de fundamentalismo religioso?
William Chittick Rm e o fundamentalismo no

apoiada em diversas tradies, incluindo a antiga

andam juntos e isso ajuda a explicar em geral a razo

tradio judaico-crist, a tradio hindu, e, talvez mais

por que os muulmanos fundamentalistas so hostis


para com o sufismo, para no mencionar a arte, a

39

Maqlt: nica obra onde foram compilados os ensinamentos de

Shams de Tabriz. No livro, Shams revela que fora discpulo do sheik Abu

msica, a filosofia e, basicamente, alguns ensinamentos


islmicos que no podem ser interpretados como apelo

Bakr, de Tabriz, na Prsia. (Nota da IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

28

ao ativismo poltico. Para aqueles que j se decidiram,

histria apesar do Isl, e no por causa dele. Enquanto

demasiado tarde para apelar a Rm. Mas, para aqueles

ele no for recolocado em seu contexto histrico e

que esto em busca de um Isl alternativo isto , um

cultural, as pessoas continuaro a l-lo como outra voz

Isl tradicional que no caia no esteretipo que nos

excepcional de generosidade, uma singularidade na

dado pela mdia , Rm pode alert-los sobre o fato de

histria islmica; de fato, no entanto, ele representa a

que o Isl produziu grandes santos, generosos coraes e

corrente islmica principal e os assim ditos

interpretaes da situao humana que reconhecem o

fundamentalistas so as singularidades histricas. Eles

amor de Deus pela diversidade e Seu apelo a todos os

acabaram totalmente imersos nos objetivos polticos e

Seus filhos, no necessariamente muulmanos, cristos,

ideolgicos visados por vrias formas de modernidade e

ou quaisquer que sejam.

eles se tornaram completamente excludos das vias da


tradio islmica.

Um dos problemas aqui , por exemplo, que Rm


geralmente percebido como algum que apareceu na

Se o desejo luminoso,
o Universo, uma fornalha.
Se o amor puro fogo,
homens no passam de lenha.
J me lancei para o fogo,
como a frgil mariposa,
igual ao Deus de Abrao.
No sei mais sair da chama

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

29

Somente o conhecimento do corao abre as portas ao


mistrio de Deus
ENTREVISTA COM CARLO SACCONE

Para Rm o intelecto, ou seja, a razo de filsofos e doutores da lei, um instrumento


imperfeito de conhecimento. Somente o conhecimento do corao abre as portas ao
mistrio de Deus. A afirmao de Carlo Saccone, da Faculdade de Letras e Filosofia da
Universidade de Padova, da Itlia. Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line,
Saccone afirma que quando Rm louva Deus, consegue faz-lo com palavras de grande
simplicidade e imediatez, que conseguem transmitir-nos grande parte de sua
extraordinria emoo mstica, o vivo sentimento de comunho com a natureza e com
todas as criaturas. A este propsito, Rm recorda um pouco da poesia de So Francisco,
sobretudo do sentimento de amor universal. Carlo Saccone autor de vrios livros, entre
os quais citamos I percorsi dell'Islam Dall'esilio di Ismaele alla rivolta dei nostri giorni
(Padova: Edizioni Messaggero Padova. 2. ed., 2003).

IHU On-Line - Qual o significado e a importncia de


Rm para a mstica?
Carlo Saccone Certamente, ainda grandssima na

Carlo Saccone - O dilogo inter-religioso uma


conquista contempornea, muito recente. Na poca de
Rm, este conceito no existia nem no modo cristo

mstica dos pases muulmanos. As obras de Rm,

nem no modo muulmano. Com uma diferena, porm. O

escritas originariamente em persa, foram traduzidas para

Coro admite que as religies fundadas por um profeta e

o turco, para o rabe e para outras lnguas da ecmena

que se baseiem numa Sagrada Escritura ou num Livro

islmica, sendo estudadas e amplamente meditadas,

Revelado sejam vlidas. Assim, cristos, judeus,

desde a Idade Mdia at hoje. No Ocidente, somente no

zoroastas41 (mais tarde at os hindus), j no Coro, so

sculo XX chegou-se a tradues integrais (inglesas,

declarados pertencentes Gente do Livro (ahl al-

francesas e recentemente tambm em italiano) do

kitab): caso creiam em Deus e no ltimo Dia e faam

Cancioneiro e do Poema Espiritual40, mas sua difuso

obras boas, podero se salvar. Os Cristos, pelo

ainda limitada ao restrito crculo dos estudiosos de

contrrio, ainda hoje afirmam o princpio nulla salus

literatura persa, ou de religies e msticas comparadas, e

extra ecclesiam [nenhuma salvao fora da igreja]:

aos apaixonados pela mstica oriental.

embora um tanto mitigado nos ltimos tempos, este


princpio que pelo menos contm um germe de

IHU On-Line - Que importncia foi atribuda por Rm

intolerncia jamais foi desmentido.

ao dilogo inter-religioso?
41

Zoroastro ou Zaratustra: profeta persa nacido em meados do

sculo VII a. C, fundador do masdesmo, religio adotada oficialmente


40

Mathnavi-ye manavi: O poema espiritual. (Nota da IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

pelos Aquemnidas (558-330 a. C.). (Nota da IHU On-Line)

30

Com freqncia, encontra-se na poesia sufi42 a idia de


que quem ama sinceramente Deus, no importa se

Este gnero de poesia de difcil degustao para o

cristo ou muulmano, ser tambm amado por Deus e


salvo. A idia foi afirmada desde os tempos de Hallaj

gratificados com louvores efusivos e ttulos hiperblicos.

43

leitor contemporneo; igualmente o a poesia narrativa


(pica e romanesca), que, no mximo, pode interessar ao

(+922), e retomada por muitos sufi at o grande Ibn

especialista de literaturas medievais comparadas. Rm,

Arabi, o mstico andaluz que viveu no sculo XIII, e

pelo contrrio, dedicou-se lrica de inspirao religiosa,

continua a ser corrente em vrias confrarias. Tambm

direcionando seu panegrico no a um soberano

Rm compartilha desta idia, e, em seu cancioneiro, so

terrestre, mas sim a Deus, ou quele que em sua viso

freqentes imagens e personagens cristos (a cruz,

e experincia espiritual lhe parece ser um luminoso

Jesus, Maria). Particularmente cara poesia sufi e,

intermedirio entre Deus e ele mesmo, ou seja, Shams-e

portanto, tambm a Rm, a figura de Jesus, que

Tabriz, ou seu venerado amigo espiritual. Quando Rm

sempre trazido como modelo de pobreza e santidade.

louva Deus (ou Shams), consegue faz-lo com palavras de

Este ltimo aspecto, a venerao de Cristo entre os sufi

grande simplicidade e imediatez, que conseguem

(e tambm no Isl em geral), bastante desconhecido no

transmitir-nos mesmo em traduo e no obstante as

Ocidente, o qual, no entanto, desde a Idade Mdia,

distncias culturais e religiosas grande parte de sua

sempre tratou com grande superficialidade a figura de

extraordinria emoo mstica, o vivo sentimento de

Maom, fundador do Isl. Enquanto os monges sufi

comunho com a natureza e com todas as criaturas. A

veneravam e imitavam a pobreza de Cristo, os nossos

este propsito, Rm recorda um pouco da poesia de So

monges, na Idade Mdia, escreviam com freqncia obras

Francisco, sobretudo do sentimento de amor universal,

polmicas, repletas de dio, insultos e ofensas gratuitas

que nos foi transmitido atravs do clebre Cntico das

a Maom, as quais, ao l-las hoje, nos fazem sentir

criaturas44.

vergonha... Para um dilogo inter-religioso mais eficaz,


dever-se-ia rever este passado. Rm pode ser uma til
leitura tambm neste sentido.

IHU On-Line - Qual o lugar do amor na execuo


potica de Rm?
Carlo Saccone Certamente, o amor um tema,

IHU On-Line - Por que a poesia de Rm to


admirada?
Carlo Saccone - Tantos poetas persas da Idade Mdia

talvez o mais importante da mstica islmica. Como


sabido, a mstica islmica, ou sufismo, procura integrar o
isl da lei e dos doutores sentido como demasiado rido

se exercitaram, sobretudo, no panegrico, ou seja, nos

ou limitante pela experincia religiosa com o sentido

louvores do prncipe ou rei, de quem dependiam

vivo do amor de Deus pelas criaturas, e destas por seu

economicamente e que, por isso, eram generosamente

Criador. Rm apenas aprofunda esta direo, chegando

42

Poesia sufi: uma das formas da filosofia sufi de contato o divino e

autoconhecimento, junto das prticas meditativas, recluso, danas,


poesia e msica. Os sufis acreditam que Deus amoroso e o contato

44

Cntico das criaturas: tambm conhecido como Cntico ao Sol,

com ele pode ser alcanado pelos homens atravs de uma unio

foi composto por So Francisco de Assis (1181-1226) pouco antes de sua

mstica, independente da religio praticada. (Nota da IHU On-Line)

morte. Sobre So Francisco, confira a obra Em nome de So Francisco.

43

Al-Hallaj: mstico islmico. Foi martirizado em Bagd no sculo X

Histria dos Frades Menores e do franciscanismo at incios do

por ter dito, em estado de xtase: "Eu sou a Verdade". (Nota da IHU

sculo XVI, publicada pela editora Vozes, escrita por Grado Giovanni

On-Line)

Merlo.(Nota da IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

31

a acentos quase paulinos45 quando diz, em substncia,

do encontro entre Deus e a criatura. Numa tradio

que a religio sem o amor no nada. Porm, h, sem

muulmana (hadith), Al em pessoa diz: No me contm

dvida, tambm um lado muito pessoal em toda a

os cus e a terra, s me contm o corao do Meu servo

questo: a misteriosa relao entre Shams, o amigo e

fiel. O corao com freqncia comparado pelos

iniciador, e o prprio Rm. Sabe-se que Shams, talvez

msticos muulmanos Kaaba46, Casa de Deus, que

um dervis errante, chegou pequena comunidade sufi

os peregrinos muulmanos visitam em Meca. Hallaj dizia

fundada em Konya por Rm como um ciclone,

provocadoramente: o que ides fazer, peregrinos, em

tumultuando tudo. Rm, que dirigia a tranqila

Meca? A verdadeira kaba est aqui no corao!.

comunidade de sufi devotos, ficou completamente

Entre os poetas msticos persas, o corao , muitas

perturbado e comeou a freqent-lo quase

vezes, representado como um espelho: se est

exclusivamente. Rapidamente, os discpulos de Rm se

enferrujado, no reflete nada; mas se o mstico se

enciumaram, conseguindo, numa primeira vez, afastar

preocupa em poli-lo com a renncia e a ascese cotidiana,

Shams de Konya, ou talvez constrang-lo fuga. Mas

ento Deus se olhar naquele espelho e poder ser visto.

Shams retornou, retomando, no interior da comunidade,

Na poesia persa, os msticos so chamados muitas vezes

e sobretudo no corao de Rm, a posio privilegiada

de gente do corao, talvez um pouco polemicamente

de que gozara antes. Uma segunda vez Shams foi

em relao aos doutores, ou seja, a gente da lei, ou

embora, desta vez para no retornar. Segundo algumas

aos filsofos, ou seja, gente da razo. Todos estes

fontes, teria sido vtima de um compl. Rm, dilacerado

lances retornam tambm na poesia de Rm e de

pela dor, dedicou a Shams o seu Cancioneiro potico,

inumerveis poetas persas. Tambm para Rm, o

chamado precisamente de Divan di Shams e Tabriz. A

intelecto, isto , a razo de filsofos e doutores da lei,

relao com Shams foi indubitavelmente uma relao

um instrumento imperfeito de conhecimento. Somente o

humana e espiritualmente fortssima, que se pode definir

conhecimento do corao abre as portas ao mistrio de

como amorosa, pelo menos no sentido de que Rm

Deus. Tambm em Rm encontramos a idia

admirou, com entusiasmo e sem remorso, em Shams um

agostiniana47 de que Deus habita in interiore homine [no

ser luminoso e, em certo sentido, quase divino: para

homem interior].

ele, amar Deus amar Shams, ou seja, aquele que lhe


havia feito experimentar uma nova dimenso da vida
religiosa e do significado da existncia terrena, que, em
suma, o havia iniciado numa nova dimenso do
esprito.

IHU On-Line - Qual a influncia do Coro sobre a


poesia de Rm?
Carlo Saccone - Como em todo poeta persa, uma
influncia enorme. Deve-se recordar que no mundo
islmico a educao de base ocorria atravs do estudo do

IHU On-Line - Como entender, na obra de Rm, o


tema do corao? Qual a importncia desta questo
para a reflexo sobre a mstica do sufismo?
Carlo Saccone - O corao, como em todas as msticas,
visto tambm na islmica como uma sede privilegiada

46

Kaaba (tambm conhecida como Ka'bah, Kabah ou Caaba):

construo reverenciada pelos muulmanos, na mesquita sagrada de Al


Masjid Al-Haram em Meca, considerada pelos devotos do Isl como o
lugar mais sagrado do mundo. (Nota da IHU On-Line)
47

Aurlio Agostinho (354-430): Conhecido como Agostinho de Hipona

ou Santo Agostinho, bispo catlico, telogo e filsofo. considerado


45

O entrevistado refere-se Primeira Carta de Paulo aos Corntios,

captulo 13. (Nota da IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

santo pelos catlicos e doutor da doutrina da Igreja. (Nota da IHU OnLine)

32

rabe lngua sagrada, e lngua de Al e atravs do

assim por diante. No se parecem com movimentos

estudo do Coro, que freqentemente era aprendido de


cor. Como os poetas da Idade mdia e outros de Dante

religiosos, no tm etiquetas religiosas, verdade. Alm


48

disso, so, na realidade, movimentos estranhos ao valor

a Milton conheciam muito bem as Sagradas Escrituras e

do amor evanglico. Porm, usam amplamente o

com freqncia as citavam ou as comentavam, assim o

cristianismo e seus smbolos (sobretudo a cruz) como

poeta persa medieval ama citar e talvez comentar

fator identitrio fundamental, para levar avante o dio

indiretamente passagens do Coro ou do hadith. Na

ou o desprezo dos outros, dos estrangeiros,

Prsia algum disse e muitos o repetiram que a outra

sobretudo dos muulmanos, que chegaram a milhes na

49

grande obra de Rm, o Mathnavi-ye manavi (O

Europa nos ltimos trinta anos. Para estes movimentos,

poema espiritual), uma vasta enciclopdia de temas

os estrangeiros muulmanos, africanos, chineses etc.

espirituais, um segundo Coro ou um Coro em

ameaam as bases da cultura crist, da prpria

versos. No se pode entender nem apreciar de modo

civilizao ocidental. Na Itlia, por exemplo, fizeram um

autntico e aprofundado a obra de Rm, nem a de

grande estardalhao em torno da questo dos

milhares de poetas persas da Idade Mdia at o sculo XX

crucifixos nos lugares pblicos.

se no se conhece a fundo o Coro e a cultura religiosa

O fundamentalismo islmico tem uma histria diversa,

fundada por Maom. Poder-se-ia, alis, entender Dante

freqentemente feita de violncias e intolerncias, que,

ou Milton sem conhecer a Bblia e a histria do

no entanto, jamais foi ligada a fatores raciais ou racistas.

cristianismo?

Todavia, sua viso da relao entre as religies tende,


por motivos bvios, a exaltar o primado do Isl sobre

IHU On-Line - Rm um daqueles msticos que

outras crenas. Tambm por isto, talvez, os

acentuam os traos da generosidade divina. Que

fundamentalistas muulmanos no gostam muito dos sufi

importncia tem esta questo nestes tempos de

ou da poesia mstica. Rm , certamente, um

fundamentalismo religioso?

muulmano e cr profundamente na palavra de Maom,

Carlo Saccone - O fundamentalismo um camaleo

mas, como dissemos mais acima, a religio do amor

capaz de qualquer disfarce. Nas sociedades

mstico supera para ele as barreiras confessionais. O

economicamente ou socialmente pouco desenvolvidas,

mstico chamado a amar todas as criaturas, todos os

tende a usar uma linguagem religiosa (extremismo

homens, assim como a providncia de Deus se dirige no

islmico, extremismo hindu...); naquelas mais ricas, usa

s aos crentes de Maom, mas a todo o gnero humano.

uma linguagem poltico-ideolgica. Os movimentos

A generosidade, em suma, deriva em Rm de um

fundamentalistas da Europa crist se chamam: Liga

sentimento csmico do amor, que faz sentir todos

50

Norte (Itlia), Front Nacional (Frana), e depois h

homens e animais, montanhas e estrelas vinculados

vrios grupos filo-nazistas na ustria, Holanda,

reciprocamente e mantidos unidos pelo amor divino.

Alemanha, os grupos nacionalistas na Rssia, Polnia... e

Quem no v esta mstica Unidade de tudo o que


criado no pode ser generoso (nem mesmo com os

48

Dante Alighieri (1265-1321): escritor italiano cuja principal obra

A divina comdia. (Nota da IHU On-Line)


49
50

Mathnavi-ye manavi: O poema espiritual. (Nota da IHU On-Line)

companheiros de f), no fundo, sequer pode ser um


autntico sufi.

Liga Norte: partido poltico de centro-direita fundado na dcada

de 1990 por Umberto Bossi, inspirado na Liga Lombarda. (Nota da IHU


On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

33

A obra de Rm como guia de ensinamento espiritual


ENTREVISTA COM BEATRIZ MACHADO

Ao ler as poesias de Rm, Beatriz Machado diz que para os msticos a leitura
provoca experincias interiores, geralmente num nvel desconhecido para o no
mstico. Para um leitor fiel, explica ela, as poesias desvendam coisas antes
nunca reveladas. A obra do poeta persa pode servir como um guia de ensinamento
espiritual, em diversos nveis. Do ponto de vista da tcnica pedaggica mstica,
trata-se de uma obra incomparvel.
Embora aborde elementos para reflexes de ordem poltica, tica e psicolgica,
a filsofa enfatiza que atualmente necessrio fazer um grande trabalho de
traduo e atualizao. Isso porque com o surgimento da modernidade, esclarece
ela, muitos dos significados originais da obra foram profundamente alterados.
Beatriz Machado mestre em Filosofia pela Universidade de So Paulo (USP).
autora da tese Sentidos do Caleidoscpio, uma leitura da Mstica a partir de Ibn
Arabi. Confira, a seguir, a entrevista concedida por e-mail IHU On-Line.

IHU On-Line - O que provoca tanta admirao na


potica de Rm?

romperia em melodias Masnavi) e riqueza dos temas


abordados. Tambm pode-se ficar perplexo com a

Beatriz Machado - Do ponto de vista literrio, a obra

naturalidade e a clareza com que ele trata de questes

de Rm magistral, embora ele mesmo a critique,

muito difceis. Podemos tomar sua obra como um guia de

afirmando que seu contedo mais importante que a

ensinamento espiritual, em diversos nveis. Do ponto de

poesia. De fato, foi o contedo de ordem mstica que

vista da tcnica pedaggica mstica, trata-se de uma

51

levou seus discpulos a chamar o Masnavi , sua obra mais

obra incomparvel.

conhecida, de o Coro persa. Ao mesmo tempo, o fato


de Rm utilizar metforas relativamente simples e uma
linguagem, de certo modo, acessvel (sobretudo se o
compararmos ao seu contemporneo Ibn 'Arab, de igual

IHU On-Line - Qual a incidncia do Coro na obra


de Rm?
Beatriz Machado - A revelao cornica a fonte de

estatura, cuja obra extremamente complexa), faz com

qualquer mstico do Isl. Para ns, esta uma

que ele possa ser lido por qualquer pessoa, em qualquer

perspectiva difcil de entender porque, geralmente,

circunstncia. Pode-se dizer que h um encantamento

quando lemos um livro, temos idias a partir dele e

devido beleza das imagens (Se meu Amado apenas me

fazemos reflexes. No caso de um mstico, a leitura

tocasse com seus lbios, tambm eu, como a flauta,

provoca experincias interiores, geralmente num nvel


desconhecido para o no-mstico. Diz-se que um verso do

51

RM, Jalal al-Din. The Masnavi, Book One e The Masnavi, Book

Coro pode abrir-se para um leitor fiel e revelar-lhe

Two.(Nota da IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

34

coisas que nunca foram reveladas a ningum antes;

Jesus, Muhammad ou qualquer outro profeta pode

trata-se de uma experincia singular. E, notem bem,

transmitir-lhes cincias por meio de um contato de

uma experincia singular e no subjetiva. Ela no se

ordem sutil) e por meio do ensinamento de um mestre

deve ao temperamento, formao egica ou a qualquer

(tambm a idia de um mestre de difcil compreenso

idiossincrasia do sujeito envolvido. Vejamos o que diz

para ns, no temos equivalente no mundo

52

sobre isso o Emir Abd al-Qadir que, como Rm, um

contemporneo, preciso muito trabalho para se saber

grande mestre do sufismo:

realmente do que se trata). O famoso Shams de Tabriz, a


quem Rm dedica muitos de seus poemas, era um

Allh, de fato, quando quer me comunicar uma

mestre.

ordem ou uma interdio, anunciar-me uma boa nova ou


me por em guarda, ensinar-me uma cincia ou responder
a uma questo que eu Lhe tenha colocado, tem por
costume arrancar-me de mim mesmo sem que minha

IHU On-Line - Como situar o lugar do


despojamento na reflexo de Rm?
Beatriz Machado - A Mstica pode ser definida de

forma exterior seja por isso afetada e depois projetar

incontveis maneiras. Uma delas que se trata de uma

sobre mim o que Ele deseja por meio de uma aluso sutil

cincia de lugares, isto , entrar em contato com um

contida num verso do Coro. Em seguida, Ele me restitui

mstico, por exemplo, por meio de sua obra ou

a mim mesmo, munido deste verso, consolado e

diretamente, experimentar lugares. Num lugar, o

satisfeito. Ele me envia a seguir uma inspirao sobre o

despojamento envolve o abandono de uma idia ou de

que Ele quis me dizer pelo verso em questo. A

um estado; em outro, o abandono de um bem material

comunicao deste verso opera-se sem som nem letra e


no pode ser atribuda a nenhuma direo do espao
(Abd al-Qadir, sc. XIX).

ou de um prazer, e ainda em outro pode ser o abandono


integral do ego. Em cada passagem do Masnavi, por
exemplo, podemos conhecer internamente modos de
despojamento. Experimentamos, inclusive, a necessidade

IHU On-Line - Quais so algumas das influncias mais

do despojamento do despojamento: lugares em que

importantes que marcaram o itinerrio mstico de

podemos observar claramente como o abandono

Rm?

naquele lugar , na verdade, uma ao puramente

Beatriz Machado - Os estudiosos contemporneos

egica, que no produz os efeitos esperados de um

tendem a valorizar bastante a idia de uma influncia

verdadeiro abandono, que so, para falar de modo

historicamente transmitida. Podemos aceitar

simples, os de abrir espao para novos aprendizados. O

perfeitamente esta perspectiva. No entanto, segundo os

despojamento no seria, portanto, uma virtude, pelo

prprios msticos, uma influncia dessa natureza deveria

menos no no sentido que estamos habituados a dar a

ser considerada irrelevante se comparada com o modo

essa palavra. Ele seria um instrumento, ou uma tcnica,

direto de transmisso do conhecimento, por meio da

para levar ao conhecimento, finalidade mstica por

Revelao, por meio da influncia espiritual dos profetas

excelncia.

(para um Rm, um Ibn 'Arab, por exemplo, Moiss,


IHU on-Line Quais so algumas das mensagens mais
52

Abd al-Qdir al-Jaz'ir (1808-1883): emir argelino, lder poltico

e militar, sufi, que lutou contra a invaso francesa no sculo XIX em

importantes deixadas por Rm, e que permanecem


atuais para o nosso tempo?

seu pas. Por essa razo tido como heri. (Nota da IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

35

Beatriz Machado - A obra de Rm contm elementos

Beatriz Machado - As vias msticas do Isl,

para reflexes de ordem poltica, tica, pedaggica e

notadamente o Sufismo, so sem dvida a maior fonte de

psicolgica. No entanto, necessrio fazer um grande

combate ao fundamentalismo religioso naquilo que ele

trabalho de traduo e de atualizao. Rm pertence a

possui de autoritrio e, muitas vezes, de insano. Isso

uma poca em que termos como interioridade,

porque so uma fonte interna, prpria do Isl e,

alma, transcendncia, entre muitos outros, tinham

portanto, no possuem os interesses polticos, muitas

um significado preciso. Com a Modernidade, os

vezes excusos, desse combate. A obra de Rm, no

significados foram profundamente alterados, e passamos

apenas sob o aspecto da generosidade divina porque a

a entender muitas vezes o oposto do que est sendo dito.

tolerncia, no Coro, no uma questo de generosidade

Portanto, no mais uma questo de traduo de uma

e sim de dever , toda ela uma viagem cornica,

lngua e sim de toda uma linguagem, de uma perspectiva

portanto, uma viagem pela Lei. O importante aqui

que se tornou estranha para ns.

compreender que esta Lei simblica tem como principal


objetivo o conhecimento e no o constrangimento. Ela

IHU On-Line - Rm destaca-se como um dos msticos

no visa nem ordem nem ao progresso, no sentido que

que mais acentuou o trao da generosidade divina.

o positivismo deu a ambos. A Lei simblica uma

Qual a importncia desta questo nestes tempos de

pedagogia e no um manual para repeties mecnicas.

fundamentalismo religioso?

Ele mar, ns somos nuvem.


Ele um imenso tesouro,
ns runas; no passamos
de tomos diante do Sol...

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

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Rm: o extraordinrio poeta e mstico do Amor


POR ARMANDO ERIK DE CARVALHO

O editor responsvel da Editora Fissus fala, no breve artigo que enviou


redao da IHU On-Line, sobre Rm e sobre o livro de Faustino Teixeira e Marcco
Lucchesi que ser em breve lanado pela referida editora: O canto da Unidade: em
torno da potica de Rm. Confira:
se faz em diferentes camadas, e o seu valor maior est
A importncia do livro O canto da Unidade: em

exatamente nessa capacidade de permitir a elevao

torno da potica de Rm apenas o retrato do

dos nveis de conscincia. Cada leitura tem a

interesse crescente no ocidente por Jall al-Din Rm.

capacidade de ilustrar novos conhecimentos e

Um reflexo do reconhecimento do que representa a

entendimentos sobre a relao humana com o Divino.

obra de Rm, o fato de a UNESCO ter consagrado a

Na medida em que contribui para uma maior

ele o ano de 2007, quando se completam 800 anos do

divulgao da vida e da obra de Rm, O canto da

seu nascimento. Foi com o intuito de comemorar essa

Unidade d a sua modesta contribuio a uma

data e homenagear esse poeta to singular que a Fissus

exposio crescente da obra desse extraordinrio poeta

lana essa publicao, com destaque particular para o

e mstico do Amor.

fato de que, pela primeira vez, apresenta-se a poesia


de Rm traduzida diretamente do persa para o
portugus.

A razo impotente na expresso do Amor.


Somente o Amor capaz de revelar a verdade do
Amor

Rm recebeu treinamento como pregador e jurista


islmico, mas transformou-se em um professor
ecumnico com inclinao potica, e agora
reconhecido como um dos mais profundos mestres
msticos e poetas da histria humana, sendo
reverenciado como um santo por pessoas das mais

E ser um Amante.
O caminho de nossos profetas o caminho da
Verdade.
Se queres viver, morra no Amor;
Morra no Amor, se queres permanecer vivo.
(Rm)

variadas confisses religiosas, de tal sorte que


muulmanos e ocidentais fazem peregrinao ao

A Fissus tem como proposta a edio de livros de

mausolu onde est enterrado, em Konia, Turquia,

diferentes tradies espirituais, que possam ter uma

onde tambm j estive.

verdadeira funo para pessoas de diversos credos que


busquem no sagrado um caminho do conhecimento de

Embora j haja timos livros publicados em tradues

si. o que poderamos chamar de religio viva ou

feitas no Brasil da obra de Rm, a verdade que

espiritualidade verdadeira. Lanamos nossos primeiros

circulam, ainda e infelizmente, dentro de crculos

livros em 1999, tendo publicado O Dalai Lama fala de

relativamente restritos. Rm foi um escritor prolfico,

Jesus e Novas sementes de contemplao, de Thomas

e sua obra imensa e extremamente rica. Sua leitura


SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

37

Merton 53. Temos, nesse caso, um livro budista com


contornos cristos, e um monge trapista a falar da
contemplao como caminho para o Divino. Os livros
que se seguiram, em sua maioria, foram em torno de
outras tradies religiosas, como o sufismo, onde o
prprio Rm se inclui, e at mesmo tradio tolteca54,
com o livro Alm do medo, de Miguel Ruiz e Mary
Carroll Nelson. Essa linha no exclui outros temas, mas
representa o nosso enfoque mais especfico. O nosso
site www.fissus.com.br - pode oferecer uma viso
detalhada do que j realizamos.

Teu sol hoje nosso guardio,


no somos mais que a sombra de teu rastro;
sem tua graa andamos solitrios...

53

Thomas Merton (1915-1968): monge catlico cisterciense trapista,

pioneiro no ecumenismo no dilogo com o budismo e tradies do


Oriente. O livro Merton na intimidade - Sua vida em seus dirios (Rio
de Janeiro: Fisus, 2001), uma seleo extrada dos vrios volumes do
dirio de Thomas Merton, autor de livros famosos como A montanha
dos sete patamares (So Paulo: Itatiaia, 1998) e Novas sementes de
contemplao (Rio de Janeiro: Fisus, 1999). O livro foi editado por
Patrick Hart, tambm monge e colaborador de Merton. Na matria de
capa da edio 133 da IHU On-Line, de 21-03-2005, publicamos um
artigo de Ernesto Cardenal, discpulo de Merton, que fala sobre sua
relao com o monge. (Nota da IHU On-Line)
54

Toltecas: povo pr-colombiano mesoamericano que dominou

grande parte do Mxico central entre o sculo X e o XII. Algumas de


suas heranas mais importantes so o calendrio, a escrita e o trabalho
em metal. (Nota da IHU On-Line)

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

38

Brasil em Foco
A questo da dvida externa deixou de ser um problema
ENTREVISTA COM LIDIA GOLDENSTEIN

O debate sobre a poltica econmica do governo Lula, sobre o dlar e o real o tema
de uma entrevista que a revista IHU On-Line realizou, por e-mail, na ltima semana,
com a economista Ldia Goldenstein. Ldia economista formada pela USP, com
mestrado e doutorado em Economia pela Universidade de Campinas. Foi
economista/pesquisadora do CEBRAP e assessora da presidncia do BNDES de 1996 a
1998. Professora de diversas instituies, tais como Fundao Armando lvares
Penteado e Unicamp, tem diversas pesquisas e artigos publicados sobre questes
poltico-econmicas. autora do livro Repensando a dependncia (So Paulo: Paz e
Terra, 1994). Atualmente, consultora da LGoldenstein Consultoria e Associada da
MBAssociados, onde parceira de Jos Roberto Mendona de Barros.

IHU On-Line - Se a economia brasileira vai to bem,

custos no Brasil vo tornando-se extremamente

como afirma o presidente Lula, por que o Pas no

elevados, e as empresas, quando decidem investir, tm

cresce? Quais os principais entraves para o

preferido investir no exterior. Os casos agora j so

crescimento econmico?

inmeros. Mais ainda: juros elevados so uma das

Ldia Goldenstein Fundamentalmente, a principal

explicaes importantes para a valorizao do Real,

limitao para o Pas voltar a ter um crescimento

outro dos entraves retomada mais forte dos

sustentvel (mais de 5% ao ano, por vrios anos) est

investimentos. Com o Real sobrevalorizado, o Pas vem

ligada ao fato de as taxas de investimento ainda serem

perdendo competitividade nas exportaes e

muito baixas.

aumentado as importaes. O aumento de renda do


bolsa famlia e do salrio mnimo tem resultado no

IHU On-Line - E por que os investimentos so


baixos?
Ldia Goldenstein - Acho que por vrios motivos que

crescimento da demanda de bens de consumo em


geral, mas no em aumento da produo interna e sim
em importao.

se entrelaam uns aos outros. Antes de mais nada,


porque, apesar da queda, os juros ainda so

IHU On-Line - Qual balano podemos fazer do Plano

extremamente elevados. Juros elevados obrigam o

Real, considerando sua atual valorizao em razo da

governo a gastar com juros e dispor de recursos

queda do dlar? Para quem o Real bom, para quem

irrisrios para investir em infra-estrutura que se torna

ele ruim? Isso foi sempre assim desde sua

outro entrave para o investimento. Sem garantia de

implantao? Como o Real tem se construdo na

energia no futuro, sem estradas, portos e ferrovias, os

economia brasileira e mundial? Podemos dizer hoje

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

39

que o Real uma moeda forte?


Ldia Goldenstein - O Plano Real foi um plano de

tudo isso, o Brasil carece de investimentos em P&D e


ainda no temos uma cultura empresarial agressiva na

estabilizao que teve imenso sucesso em impedir que

construo de marcas e design. Tudo isso junto

o Brasil entrasse em um processo de hiperinflao

enfraquece o Pas e vai minando nossa capacidade

aberta. Depois disso, tivemos inmeras crises

competitiva.

internacionais, a maxidesvalorizao do Real, a


entrada da China de forma retumbante no cenrio

IHU On-Line - O economista Mendona de Barros

internacional, a eleio de Lula etc. No d para

defende uma conduta mais ousada na economia,

simplificar a anlise e colocar tudo como se no

lembrando que no existe risco zero. Por que

existisse histria, evoluo, contradies, mudanas no

tanta dificuldade em reduzir os juros? Por que tanta

cenrio internacional. O Real de hoje fruto de um

cautela por parte da poltica econmica/monetria

cenrio internacional profundamente diferente do Real

do governo Lula?

do momento de sua implantao, no Plano Real. Mais

Ldia Goldenstein - No incio do seu governo, o

ainda: desde ento, o Pas passou por mudanas

Presidente Lula precisou ser mais realista que o rei,

estruturais com impactos na sua moeda. Um exemplo

pagando um pedgio de conservadorismo por conta do

o da gerao de supervits comerciais expressivos.

perodo em que era oposio e dizia qualquer coisa

Hoje, pode-se dizer que a questo da dvida externa

para ser oposio, sem coerncia e contra tudo. Teve

deixou de ser um problema. Conseqentemente, no

que ser muito conservador no incio para evitar um

existe mais o risco, pelo menos no mdio prazo, de

retrocesso enorme da inflao que a fuga de capitais j

termos desvalorizaes to significativas da moeda

estava provocando. Mas, aps tanto tempo, s posso

nacional como tnhamos no auge da crise da divida

explicar que continua com a mesma poltica por falta

externa, nos anos 1980.

de projeto alternativo e capacidade de sua equipe

O Real valorizado ajuda no combate inflao. Mas o

implement-lo.

atual nvel de valorizao extremamente prejudicial


para o setor produtivo e, conseqentemente, para a
gerao de investimentos e emprego.

IHU On-Line - Que cenrio podemos prever caso o


governo Lula baixe os juros e volte a inflao? Isso
possvel? Como a economia internacional influencia

IHU On-Line - Quais so os riscos da atual taxa de

nisso?

cmbio para a estrutura industrial brasileira? E quais

Ldia Goldenstein - Ningum de bom senso est

as conseqncias de uma especializao na produo

propondo uma queda abrupta e repentina. A idia

de commodities?

acelerar a queda. A inflao no s est sob controle,

Ldia Goldenstein - Os riscos so muito elevados.

como abaixo da meta. Existe espao para uma poltica

Principalmente se lembrarmos que, alm do cmbio,

de reduo dos juros sem temer o retorno do processo

temos problemas graves de custo decorrentes do que

inflacionrio.

chamamos genericamente de custo Brasil: falta de


regulao, provvel apago energtico no mdio prazo,
falta de infra-estrutura porturia, rodoviria e
ferroviria, burocracia, corrupo etc. No bastasse

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

40

Campo triste. Vale dos Sinos est sufocado pela crise


J passou o tempo em que Campo Bom se destacava pelos altos ndices de
exportaes do pas. Aos poucos o sapato vem deixando de ser a maior fonte de renda
do municpio. A cidade, reconhecida por suas festas populares e pelo povo alegre e
trabalhador, parece estar adormecida. O crescimento da crise no setor caladista tem
deixado, alm de muitas preocupaes e incertezas, mais de 1620 desempregados
apenas neste ano, segundo o diretor do sindicato local dos trabalhadores, Juarez Flor.
A reportagem da revista IHU On-Line, e foi publicada em 01-06-2007 no site
www.unisinos.br/ihu repercutindo a crise no setor caladista no Vale dos Sinos.

No incio da semana passada, uma das maiores

tambm no consegue retornar para as fbricas da

exportadoras de calados femininos do pas, Reichert

cidade. A situao t difcil pra mim. Tenho trs filhos

Calados, anunciou o fechamento da sede em Campo

para sustentar. Estou apavorado e desempregado,

Bom e de suas 20 unidades espalhadas em 11 municpios

desabafa.

gachos. Com o encerramento das atividades da

Sem dinheiro para pagar a luz e a gua, ele conta que

empresa, aproximadamente 5mil pessoas estaro

nem sempre consegue comprar comida para os filhos de

desempregadas at o final de julho. Para a prxima

quatro, seis e oito anos. Atualmente sobrevive de

segunda-feira, 4-06-2007, esto previstas 75 demisses

doaes. A Igreja est ajudando os pobres. Eles

no setor de modelagem.

arrecadam e chamam a gente para distribuir um

Na manh desta quinta-feira, 31-05-2007, a equipe da

ranchinho. Se no encontrar emprego na prxima

IHU On-Line foi ao municpio e conversou com alguns

semana, Oliveira diz que pretende voltar para a cidade

trabalhadores e desempregados. Os sentimentos de

natal. Eu vou ter que ir embora. A esperana que

tristeza e desnimo refletem pelas ruas da cidade, ao

resta que minha gente me d uma mo, porque aqui

mesmo tempo em que se contrape esperana e ao

no t dando mais para sobreviver.

desejo de mudanas. Chocados com as demisses em

As maiores dificuldades so vivenciadas por homens e

massa que vm ocorrendo na regio, os ex-caladistas

mulheres de 30 a 50 anos que dedicaram a maior parte

sonham com um futuro incerto e esperam solues.

de suas vidas profisso. Demitido da Calados Modelli

Estou com dois meses de aluguel atrasado. J pediram

h duas semanas, Gilberto Maximo Ghiggi, 46,

para desocupar a casa, mas eu no tenho como arrumar

encaminhou o seguro desemprego nesta manh. Ele

outro aluguel porque estou desempregado. Esse o

trabalhava na empresa h 18 anos, e conta que a maior

drama que Lodacir de Moura Oliveira, 46, est vivendo h

preocupao nesse momento ter que parar de pagar a

um ano, desde que foi demitido da Irmos Schmidt. Com

faculdade da filha Priscila, 18 anos. Trancar um sonho

vinte anos de experincia como passador de cola e

to desejado difcil e doloroso, lamenta.

lixador, ele perambula pela cidade em busca de

A esposa de Ghiggi tambm depende do setor para

biscates. A esposa, desempregada h oito meses,


SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

41

auxiliar nas despesas da famlia. Atualmente, ela

Crise atinge outros segmentos

trabalha na Calados Nunes, que segundo ele, no est

O comrcio do municpio tambm est passando por

prometendo muita coisa para a diante. O ex-caladista

momentos de tenso. Raul Blos, 66, dono de uma

diz que est procurando emprego em outra rea, mas

livraria e diz que desde maro as vendas decaram

lembra que no Vale dos Sinos tudo gira em torno do

assustadoramente. O mesmo est acontecendo na

sapato.

lotrica de Catia Luz, 34. Segundo ela, o

Gilberto Pochnann, 46, tambm um dos 400

estabelecimento que funciona h seis anos arrecadava

desempregados que dependia da Calados Modelli. Sem

trs mil contas por ms. Hoje arrecadamos a metade. O

obter lucro, a empresa encerrou as atividades no ms

pessoal est pagando as contas do ms passado, explica.

passado. Depois de dez anos de carreira na organizao,

Nas farmcias, o movimento tambm diminuiu. Para

ele afirma que mesmo com as dificuldades pretende

no perder os clientes, a vendedora da Farmcia

continuar atuando no ramo. Depois de 30 anos

Econmica, Thais Gonalves, diz que alm dos descontos,

exercendo uma profisso, difcil pensar em outra

a drogaria est parcelando as contas em vrias vezes.

atividade que no seja o calado, aponta. Pai de dois

Segundo ela, outro fator que tem contribudo para o

filhos, um de 12 e outro de 19, Pochnann era responsvel

declinio das vendas so os cortes de benefcios

pelas despesas da famlia. Com o seguro desemprego

concedidos pelas empresas caladistas. Nesse ms

ainda vamos conseguir nos manter, mas no por muito

muitas empresas cancelaram os convnios com a

tempo, comenta. De acordo com Roberto Nardes,

farmcia, explica. Assim, ressalta "os funcionrios

responsvel pela captao de vagas no Sistema Nacional

esto se afundando em dvidas".

de Emprego (SINE) da cidade, o nmero de pessoas


encaminhando o seguro desemprego desde abril tem
aumentado e oscila entre 50 a 60 por dia.

Crise no Vale dos Sinos. Nunca sei at quando meus pais


vo ter emprego.
A OPINIO DE ALGUNS UNIVERSITRIOS

Depois de mais uma empresa de calados encerrar suas

Para saber a opinio dos universitrios, a IHU On-Line

atividades no Rio Grande do Sul, a crise do calado

conversou com alguns alunos da Unisinos sobre o tema. A

cresce e deixa profundas marcas nos trabalhadores que

primeira entrevistada foi Tansia dos Santos, 32 anos,

agora se vem desempregados e sem perspectiva de

aluna de Letras. Ex-representante da marca Picadilli, ela

trabalho. At que ponto o povo gacho tem cincia deste

conta que h dois meses foi demitida. No sei o que

problema e est pronto para ajudar estes trabalhadores a

fazer, tenho que pagar a universidade e no tenho

cobrarem dos governantes alguma soluo?


SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

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nenhuma reserva; provavelmente vou ter que trancar no

passado, a crise estava muito forte e a firma da minha

prximo semestre. Ao mesmo tempo, Julianna Baum, 18

me comeou a dar frias para todo mundo, inclusive

anos, de Dois Irmos, diz que sabe que a crise no setor

demitiu algumas pessoas. Eu tenho uma tia que trabalhou

caladista da sua cidade grande, mas no tem lido

a vida todo com calados e agora perdeu o emprego.

muito sobre o assunto. Eu leio nos jornais, mas no


tenho muito o que falar sobre o assunto, diz a

IHU On-Line - Onde ela trabalhava?

estudante de Direito.

Daniela Machado - Ela trabalhava na Cariri Calados,

Daniela Machado, 19 anos, aluna do curso de

em Estncia Velha. Era uma empresa muito forte. O

Jornalismo, sabe bem o que a crise, afinal boa parte de

marido dela tambm perdeu o emprego, ele trabalhava

sua famlia depende do setor. Quando eu fiz vestibular,

na Menfins, no mesmo municpio. Imagina, mais de 200

meu pai disse que o que eu escolhesse ele apoiaria,

pessoas ficaram sem emprego nessas firmas.

menos algum curso ligado ao calado, conta. Ela mora

O meu pai est com pouco servio na empresa. Os

em Novo Hamburgo e tem o pai e a me atuando no setor

colegas dele que foram demitidos esto partindo para

caladista da regio. Meu pai est com pouco servio na

outras linhas, fazendo acessrios e tal. Inclusive, quando

firma, vrios empregados foram para rua, relata.

eu fiz vestibular meu pai me disse que o que eu

Confira a seguir a conversa realizada entre a IHU OnLine e Daniela Machado, na ntegra:
IHU On-Line - Daniela, como tu tens acompanhado a
crise no setor caladista na tua regio?
Daniela Machado - Eu sempre procuro me manter

escolhesse ele apoiaria, menos algum curso ligado ao


calado. Minha famlia toda trabalha com calado.
IHU On-Line E, diante dessa crise, como voc faz
para continuar estudando?
Daniela Machado - Eu me viro como posso. Estou

informada atravs do Jornal NH, que possui duas pginas

trabalhando em dois lugares, pois eu tento depender o

dedicadas ao setor. O jornal tem noticiado a crise

menos possvel dos meus pais. Eu no sei at quando eles

diariamente. De uns anos para c, tornou-se comum o NH

estaro recebendo todo ms ou at quando estaro

publicar notcias falando que o grande problema da crise

empregados. A minha insegurana s vai acabar quando

se deve ao fato do Brasil ter a China como concorrente.

eu me formar e conseguir uma estabilidade, da eu

Eu sei que a China produz o calados em grande escala,

poderei ajud-los, e at l acredito que a crise vai piorar

gastando menos em matria-prima. A mo-de-obra l

ainda mais.

muito barata, tambm.


Meu pai sempre trabalhou com exportao de calados.

IHU On-Line - E como fica o lado psicolgico deles, ou

Mas, com a forte concorrncia da China, as firmas

seja, como eles lidam com essa sensao de no

perderam mercado no exterior. A maioria das empresas

saberem se vo acordar empregados no dia seguinte?

da regio, hoje, s trabalham voltadas para o mercado


interno.

Daniela Machado - insegurana total, mas eles no


expressam isso comigo. Eles comentam essa crise com
amigos de profisso. Meu pai, quando encontra ex-

IHU On-Line - E como viver essa crise na famlia?

colegas de trabalho na rua, sempre fala da crise, que

Daniela Machado - complicado porque eu nunca sei

est complicado e muitos esto tentando ganhar a vida

at quando meus pais vo ter emprego. Em julho do ano

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

de outra forma, trabalhando por conta. Meu pai sabe que

43

se ele ficar desempregado no vai conseguir trabalhar em

fcil. Eles me incentivam a trabalhar sempre, dizem que

outro lugar; isso ele me falou. Ele no tem curso superior

eu tenho que me preocupar com o meu futuro e no

ou tcnico e j est com quase cinqenta anos.

com o deles.

Antigamente, no precisava de curso superior. Ele, por


exemplo, aprendeu fazendo.
A minha me se preocupa mais com a idade, ela

IHU On-Line - E tu pensas como eles?


Daniela Machado - No. Porque a concorrncia muito

trabalha no financeiro e no conseguir trabalho em

grande na rea da comunicao e eu tenho medo de

outras empresas. Eles acreditam que eu terei uma vida

decepcion-los, de no conseguir um bom emprego e ter

bem diferente. Com diploma, eles dizem, tudo ser mais

que acabar trabalhando com outra coisa.

Teologia Pblica
Temos de crer e esperar que outro mundo e que outra
Igreja so possveis
ENTREVISTA COM VICTOR CODINA

Ao fazer um diagnstico sobre a Igreja na Amrica Latina hoje, o telogo jesuta


espanhol Victor Codina constata: em muitos h crena sem pertena. E se
questiona: Podemos continuar falando que a Amrica Latina um continente com
substrato catlico, que o continente da esperana para a Igreja universal, a
reserva espiritual para o futuro da Igreja?. Em entrevista exclusiva concedida
por e-mail para a IHU On-Line, ainda enquanto participava da V Conferncia do
Celam, em Aparecida, encerrada no ltimo dia 31 de maio, Codina faz uma anlise
do discurso do Papa na abertura da V Conferncia: O tom do discurso esteve mais
centrado na Igreja do que no Reino, mais preocupado com a situao do Povo de
Deus (cristo e catlico) que do povo em geral (pobre). Confira, abaixo, a ntegra
da entrevista.
Codina entrou para a Companhia de Jesus em 1948, na provncia da Catalua.
Em 1971 foi enviado Amrica Latina, vivendo em pases como Venezuela,
Argentina e Bolvia, onde est radicado desde 1982. Sua atividade bastante
variada, dando aulas de Teologia na Universidade Catlica de Cochabamba e em
contato com o povo em bairros e comunidades de base. Escreveu, entre outros, La
vie religieuse. Du cerf: Paris, 1992 e O credo dos pobres. So Paulo: Paulinas, 1997.

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

44

IHU On-Line - Como o senhor v a situao da Igreja


catlica na Amrica Latina hoje?
Victor Codina - A Igreja da Amrica Latina, por um

esperana e de projetos concretos. Mas, como o Exlio


no foi um tempo perdido, mas um momento de
purificao e de reflexo, tambm a Igreja da Amrica

lado, participa da situao de inverno eclesial que se

Latina, nestes anos, tomou conscincia mais clara de sua

respira na Igreja universal desde o final do pontificado

situao, de seus problemas, de suas dificuldades, da

de Paulo VI. Isto pode ser notado concretamente na

necessidade de mudar. Neste sentido, Aparecida pode

Amrica Latina porque j passou a poca um tanto

ser um momento de reflexo e tomada de conscincia

proftica dos anos 1970-1980, quando havia bispos que

eclesial.

eram verdadeiros Santos Padres da Amrica Latina, a


opo pelos pobres marcava as vidas de setores

IHU On-Line - Qual a sua percepo das

importantes da Igreja, cresciam as comunidades de base,

repercusses da visita do Papa ao Brasil e sua presena

a teologia da libertao florescia, a vida religiosa se

na abertura da Conferncia do Celam em Aparecida?

inseria em meios populares e pobres e havia vozes

Victor Codina Mesmo que os meios de comunicao

profticas que muitas vezes acabavam com o martrio.

tenham dado mais importncia visita do Papa ao Brasil

Hoje, muitos catlicos tm passado s seitas, outros

do que abertura de Aparecida, o centro desta visita foi

(sobretudo entre os intelectuais, profissionais, polticos,

realmente Aparecida. triste que os meios de

jovens, mulheres, setores indgenas) se tornaram

comunicao, em relao ao discurso do Papa na V

indiferentes ou agnsticos; entre os que permanecem

Conferncia, tenham retido somente os temas polmicos

fiis Igreja catlica, uma grande maioria est ancorada

sobre a primeira evangelizao da Amrica Latina, sobre

na religiosidade popular, com seus grandes valores, mas

a crtica a governos autoritrios, sobre o perigo de voltar

tambm com seus limites. Em muitos, h a crena sem

a religies originrias margem da Igreja etc. O discurso

pertena. Entre os praticantes dominicais habituais,

tratou de outros muitos temas e foi muito inspirador: os

poucos se comprometem a algo mais que a assistncia

valores da religiosidade popular, a necessidade de uma

missa aos domingos. Os catlicos comprometidos

evangelizao inculturada, a renovao da f em Cristo,

constituem uma minoria, mas significativa e viva:

a centralidade da Palavra de Deus, uma f e uma

comunidades de base, grupos e movimentos eclesiais,

espiritualidade que no fujam da realidade, a opo

vida religiosa trabalhando com excludos e em lugares de

pelos pobres implcita na f cristolgica, a necessidade

conflito, pastores prximos ao povo Podemos continuar

de superar o divrcio entre a f e a vida e fortalecer a

falando que a Amrica Latina um continente com

presena pblica da Igreja na sociedade, acerca de

substrato catlico, que o continente da esperana para

assumir uma postura tica ante a globalizao, sobre a

a Igreja universal, a reserva espiritual para o futuro da

gravidade do problema social na Amrica Latina, a

Igreja? Desde os anos 1990, a situao social, cultural e

necessidade de buscar um desenvolvimento e promoo

eclesial tem mudado profundamente. De algum modo se

humana autntica e integral, a transformao de

tem passado do paradigma do xodo, que foi o

estruturas injustas, a s laicidade do Estado, a tarefa

dominante nos anos 1970-1980 ao do Exlio: uma situao

eclesial de ser conscincia crtica e defender os pobres e

de disperso, perplexidade, medo, desconcerto, falta de

a justia, a superao do machismo etc.

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

45

No entanto, o tom do discurso esteve mais centrado na

profunda do mistrio de Cristo, fomentar uma f

Igreja do que no Reino, mais preocupado com a situao

responsvel que se traduza na vida, formar

do Povo de Deus (cristo e catlico) que do povo em

especialmente os leigos, voltar a evangelizar o povo,

geral (pobre). Seguramente, inevitvel que o

revisar as estruturas eclesiais, responder aos desafios do

responsvel pela universalidade e pela catolicidade da

mundo do conhecimento, avanar no ecumenismo e no

Igreja adote esta perspectiva. Talvez a partir da Amrica

dilogo inter-religioso e favorecer o surgimento de uma

Latina a perspectiva fosse outra, mais a partir do povo

Igreja dos pobres e de uma Igreja autctone. Precisamos

pobre e excludo, cuja vida est ameaada e em perigo.

aceitar que o problema da Amrica Latina no s


social, mas que h a necessidade de respeitar as

IHU On-Line - Que significado tem a V Conferncia do


Celam para a Igreja Universal?
Victor Codina - Todas as Conferncias anteriores do

diferenas culturais, sexuais, religiosas, de idade etc. e


aceitar o pluralismo existente. A experincia do Exlio
conduz a um aprofundamento humano, cultural,

episcopado tiveram uma repercusso na Igreja universal,

religioso, cristo, a uma tomada de conscincia de que

de modo que a opo pelos pobres de Medelln e Puebla

necessrio viver a vida crist de modo diferente, mais

passou a ser a opo da Igreja universal, como Joo

autntico, profundo, radical, espiritual.

Paulo II afirmou vrias vezes. cedo para saber qual ser


o significado de Aparecida para a Igreja universal, mas,

H temas que superam a competncia de uma

sem dvida, h uma certa expectativa em toda a Igreja

Conferncia latino-americana, mas que deveriam ser

sobre o desenvolvimento da V Conferncia.

propostos a Roma: tudo o que for relacionado com a


sexualidade e a moral sexual, a ordenao de homens

IHU On-Line - O que o senhor espera da Conferncia

casados, repensar a situao da mulher na Igreja e de

de Aparecida em relao a afirmaes e compromissos

seu acesso aos ministrios, descentralizar o governo da

que a Igreja latino-americana no pode deixar de

Igreja e dar mais autonomia s Conferncias episcopais

assumir?

(na nomeao de bispos, problemas doutrinais, litrgicos

Victor Codina Espera-se que no se caminhe para

e pastorais) e um longo etctera

trs, mas que se recuperem as opes evanglicas de


Medelln e Puebla (partir da realidade, opo pelos

Em sntese, espero que, se Medelln se centrou nas

pobres, Comunidades de base, volta a Jesus de Nazar

estruturas injustas e Puebla na opo pelos pobres e

pobre e libertador, recuperar a memria dos mrtires,

Santo Domingo sobre a inculturao, Aparecida se centre

inculturao do Evangelho). Mas isso no basta. Deve-se

na defesa e promoo da vida, da vida material e

afrontar a situao social atual: denunciar

humana do povo, da vida cultural e religiosa, da vida de

profeticamente a injustia e iniqidade do sistema

f e eclesial, da Vida que nos comunica Jesus que

neoliberal, alentar novas formas de economia e

caminho, verdade e vida.

organizao social, escutar o grito dos pobres e da terra


explorada abusivamente, lutar pela vida do povo hoje

IHU On-Line - Fala-se muito hoje sobre o afastamento

ameaada, defender as culturas originrias, denunciar o

dos fiis da Igreja catlica. Que implicaes este fato

machismo etc. Do ponto de vista eclesial, haveria que

tem para a autocompreenso da Igreja e para sua

iniciar os cristos em uma experincia espiritual

metodologia de ao?

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

46

Victor Codina - Esta situao real deve nos fazer

participem das diversas comunidades, abertos ao mundo

refletir sobre nossa realidade, sem sonhar com o que

e a seus problemas, capazes de dialogar com outras

fomos no passado. J no tem mais futuro um

Igrejas e religies, que sejam fermento da sociedade

catolicismo meramente sociolgico, de grandes massas,

com sua vida, sua palavra e sua ao. um sonho? Acaso

que quase no conhecem nem a f crist, nem se sentem

o Esprito no nos conduz a viver o Evangelho de forma

membros da Igreja, nem vivem uma vida conforme os

mais radical e a fazer memria contnua de Jesus e de

valores evanglicos. Vamos fazer uma Igreja

suas opes? semelhana do povo de Israel no Exlio,

seguramente mais minoritria, menos clerical, de

temos de crer e esperar que outro mundo possvel e

cristos convencidos, com uma forte experincia

que outra Igreja possvel.

espiritual, melhor formados, mais responsveis, que

Filme da Semana
Proibido Proibir
TODOS OS FILMES COMENTADOS NESTA EDITORIA J FORAM VISTOS POR ALGUM (A) COLEGA DO IHU.

Ficha Tcnica:
Nome original: Proibido proibir
Cor filmagem: Colorida
Origem: Brasil - Chile
Ano produo: 2006
Gnero: Drama - Romance
Direo: Jorge Durn
Elenco: Caio Blat, Alexandre Rodrigues, Maria Flor
Sinopse: Numa universidade do Rio de Janeiro, Paulo (Caio Blat), estudante de medicina, Leon (Alexandre
Rodrigues), estudante de sociologia, e a futura arquiteta Letcia (Maria Flor) so os melhores amigos, dividindo
precariedade de moradia, a falta de dinheiro e a cervejinha com a mesma alegria. Pinta um risco de tringulo
amoroso que abala o grupo. Alm disso, eles tm um encontro marcado com a dura realidade social do pas.

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

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Uma sociedade entre a violncia e a ternura


Para Luiz Zanin Oricchio, sem didatismo nem pregao poltica, o filme de Durn destaca problemas atuais do
Brasil com proposta reflexo. Ele expressa essa opinio no artigo que segue, publicado no jornal O Estado de S.
Paulo, em 27-04-2007.

H uma cena (no importa se no incio, no meio ou no

Podemos resumir o tema do filme no dilema entre

fim) em Proibido proibir, em que um dos personagens

participar ou no participar da vida social do Pas; esta

diz a outro: No podemos esquecer os mortos. Essa

desdobramento da pergunta a respeito dos mortos. E o

pequena frase funciona como uma espcie de imperativo

personagem problemtico ser justamente Paulo, o que

categrico que faz do trabalho de Jorge Durn uma das

recusa qualquer compromisso. Mas que ter de reagir a

excees no cinema contemporneo. De fato, tudo, em

algumas imposies da realidade, que, como sabemos,

nossa atitude de homens do nosso tempo voltada no

no pede licena para entrar (e s vezes invadir) a vida

sentido de esquecermos os nossos mortos. O que pode

das pessoas. Trotski costumava usar uma frase famosa:

ser traduzido como um convite para esquecermos do

Voc pode no estar interessado na guerra, mas a

passado, prximo ou longnquo, e vivermos plenamente o

guerra est interessada em voc. Passa-se o mesmo em

presente. A pergunta que este filme se faz, e que

relao violenta realidade social brasileira. Podemos

tambm a pergunta da Histria, : pode-se viver de

escolher a poltica do avestruz e fazer de conta que ela

forma plena o presente sem levarmos em conta o

no existe, ou que no nos atinge e no conosco. O real

passado? Pois bem, em torno dessa meditao -

insiste. Bate porta. E costuma entrar. nesse pudim do

esquecer ou no esquecer os mortos - que Proibido

real que Paulo convocado a entrar.

proibir se constri.
Durn um veterano roteirista do cinema brasileiro.
A comear pelo ttulo, que evoca os estudantes do maio

Nascido no Chile, tem em Proibido proibir seu segundo

de 1968 francs e uma das canes polmicas de Caetano

longa - o primeiro, A cor do seu destino, de 1986. O

Veloso. Mas se o filme de Durn mantm aluses a certo

que se pode dizer que esse longo intervalo sem filmar

esprito dos anos 60, finca, e com nfase, seus ps nos

no lhe tirou a agilidade e a forma. Proibido proibir no

dias de hoje. O personagem principal Paulo (Caio Blat,

apenas situa sua trama entre jovens universitrios, mas

bem como sempre), estudante de medicina, cheio de

tem em sua linguagem uma pegada jovem, que pode lhe

gs, libertrio, com ojeriza a compromissos. ele quem

ser crucial no momento de encontrar seu pblico.

repete a frase-ttulo, e a qualquer pretexto. Seu amigo

Sabemos que os filmes brasileiros, por mais importantes

mais chegado Leon (Alexandre Rodrigues, de Cidade de

que sejam, tm muitas vezes dificuldades para dialogar

Deus), que namora Letcia (Maria Flor).

com a platia mais jovem, aquela que,


majoritariamente, procura as salas de cinema.

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

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Por sua trama de personagens jovens, mas, mais do que

Das atuaes muito boas da trinca principal fluidez

isso, pelo clima clido e envolvente como desenvolve sua

da narrativa, Proibido proibir seduz o espectador, ao

histria, Proibido proibir pode, quem sabe, quebrar

mesmo tempo em que levanta alguns pontos de reflexo.

essa barreira e esse tabu. No se est dizendo que ser

No se deixa levar pelo didatismo esquemtico nem pela

um enorme sucesso, mesmo porque essa categoria passou

pregao de qualquer posio poltica. Destaca

a ser privativa dos lanamentos bombsticos, em escala

problemas e o faz pela via da emoo, uma emoo

mundial, ou, no plano nacional, privativo de filmes

lcida, que no se torna empecilho para a reflexo.

subsidirios da TV. O que se sugere que, pela sua


linguagem e estrutura, o filme tem, em tese, uma

Proibido proibir concorreu no Festival de Havana e

oportunidade de encontrar o seu pblico. E qual seria

ganhou o Prmio Especial do Jri. Aps a sesso, uma das

esse pblico natural? Bem, justamente o pblico

juradas, a cineasta venezuelana Fina Torres, comentou:

universitrio, esse mesmo que, em seus melhores

Que pas o Brasil, to trgico e to cheio de energia!.

momentos, pode perceber que entre pensar o Pas ou em

Talvez sem o saber, ela fazia uma quase parfrase dos

sua carreira profissional, na verdade, ele precisa fazer as

versos de Mario Faustino usados por Glauber Rocha em

duas coisas.

seu Terra em transe: Tanta violncia, mas tanta


ternura. Assim somos ns.

Jovem trio enfrenta as contradies do Brasil


O colunista do jornal Folha de S. Paulo, Jos Geraldo Couto, tambm comenta o filme Proibido Proibir no artigo que
segue, publicado na Folha, em 27-04-2007.
e companheiro de apartamento Paulo (Caio Blat) faz
Tringulos amorosos em que dois grandes amigos se
apaixonam pela mesma mulher so recorrentes no

medicina.
Na hora de colocar prova os conhecimentos

cinema. O caso clssico Jules e Jim, de Franois

adquiridos no campus, cada um deles tem um rico corpo-

Truffaut. Na filmografia brasileira recente, temos Cidade

a-corpo com a cidade do Rio e, por extenso, com o

baixa, de Srgio Machado, e agora Proibido proibir.

Brasil. E os trs acabaro envolvidos numa situao

No nisso, portanto, que reside a originalidade do filme

crtica quando o filho de uma paciente pobre de Paulo

de Jorge Durn, e sim no seu enfoque de um dos grandes

jurado de morte por policiais corruptos.

temas, se no o nico, do cinema nacional: os impasses

proibido proibir, como se sabe, foi um dos slogans

da classe mdia diante das contradies sociais do pas.

da rebelio estudantil de maio de 1968 na Frana e

Os trs protagonistas so estudantes de uma universidade

tambm ttulo de uma polmica cano de Caetano

pblica do Rio de Janeiro. Leon (Alexandre Rodrigues, o

Veloso. O mote aponta para a liberdade absoluta, para a

Buscap de Cidade de Deus) estuda sociologia. Sua

subverso de todas as normas repressivas.

namorada, Letcia (Maria Flor), arquitetura. E seu amigo

Proibido proibir, o filme, articula esse desejo


transgressivo necessidade de ao social responsvel.

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

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Movidos por esse duplo influxo, os jovens do filme so um

passa ao largo da orla da zona sul e dos morros

pouco como ns, veteranos, gostaramos que todos

favelizados, espraiando-se entre o centro e os subrbios

fossem (idealizando, talvez, nossa prpria juventude

planos da zona norte e destacando (graas carreira

perdida): generosos, apaixonados, belos.

de Letcia) marcos da arquitetura urbana, como a igreja


da Penha e o edifcio Capanema.
O final em aberto, que no convm revelar aqui,
pleno de significado afetivo e poltico, sobretudo

Trio talentoso

quando, j sobre os crditos, a voz roufenha de Nelson

A trama muito bem construda, as situaes so

Cavaquinho canta o clssico samba Juzo Final.

convincentes e os atores, no apenas o trio protagonista,

Chileno radicado no Brasil desde 1973, Jorge Durn,

defendem seus personagens com garra, em especial Caio

roteirista de alguns de nossos filmes mais importantes,

Blat, que se afirma como um dos grandes talentos da

retorna direo duas dcadas depois de seu outro nico

nova gerao.

longa, A cor do seu destino (1986). Cabe esperar que

Merece destaque tambm a maneira como Durn


captou a geografia carioca. Na contramo da maioria dos

Proibido proibir, premiado nos festivais de Biarritz e


Havana, seja o incio de uma nova e vigorosa fase.

filmes rodados no Rio, Proibido Proibir praticamente

Destaques On-Line
DESTAQUES DAS NOTCIAS DIRIAS DO STIO DO IHU

Essa editoria veicula notcias e entrevistas que foram destaques nas Notcias Dirias do stio do IHU.
Apresentamos um resumo dos destaques que podem ser conferidos, na ntegra, na data correspondente.

ENTREVISTAS ESPECIAIS FEITAS PELA IHU ON-LINE DISPONVEIS NAS NOTCIAS DO DIA DO STIO DO IHU (WWW.UNISINOS.BR/IHU) DE 2808-2007 A 03-07-2007

Operao Condor. A estrutura continua existindo

O Paraguai subsidia as indstrias de So Paulo

Neusa Maria Romanzini Pires

Fernando Lugo

Confira nas Notcias do Dia 28-05-2007

Confira nas Notcias do Dia 29-05-2007

A economista Neusa Maria Romanzini Pires, aps

O Paraguai tem um novo nome no cenrio poltico.

realizar pesquisa para o doutorado Memria da dor - A

Fernando Lugo, telogo e bispo catlico, candidato s

operao Condor, reconta a histria da organizao que

eleies presidenciais de 2008. Na entrevista IHU On-

foi montada para coordenar a represso aos esquerdistas.

Line ele conta sua histria e comenta sobre a poltica na


Amrica Latina.

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

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tica e poltica segundo Henrique C. de Lima Vaz

Confira nas Notcias do Dia 31-05-2007

Marcelo Perine

A filsofa argentina Mnica Cragnolini lana o livro

Confira nas Notcias do Dia 30-05-2007

Moradas nietzscheanas. Na obra, ela lana um novo olhar

Para o filsofo Marcelo Perine, o homem moderno est

sobre a subjetividade nietzschiana.

vivendo uma crise de tica, a qual ele define como uma


crise de valores, normas e de sentido da prpria tica.
Agroecologia. Passado, presente e futuro
Nietzsche: uma nova luz sobre a problemtica da
xenofobia e da intolerncia
Mnica Cragnolini

Manoel Baltasar Baptista da Costa


Confira nas Notcias do Dia 01-06-2007
Com novos investimentos na agroecologia, o Brasil
atinge 25 mil hectares de cultivos orgnicos.

ENTREVISTAS E ARTIGOS QUE FORAM PUBLICADOS NAS NOTCIAS DO DIA DO STIO DO IHU (WWW.UNISINOS.BR/IHU)

'Denncias de corrupo servem a rearranjos de


poder e influncia'

Ao analisar o discurso do Papa Bento XVI, em visita ao


Brasil, o Pe. e telogo Vital Corbellini afirma que o teor

Manuel Baln

da fala de Ratzinger vai mais alm daquilo que foi

Confira nas Notcias do Dia 28-05-2007

noticiado pela imprensa.

Para o pesquisador da Universidade de Austin, Texas,


Manuel Baln, referindo-se Amrica Latina, todos os
escndalos de carter nacional buscam o rearranjo do

O processo de gerao dos biocombustveis est


dominado pelo cartel do petrleo

poder. Na produo de sua tese de doutorado, Baln

Sergio Federovisky

estudou 60 escndalos que ocorreram de 1990 at 2007,

Confira nas Notcias do Dia 30-05-2007

em pases como Brasil, Chile e Argentina. A entrevista

Para Sergio Federovisky, a matriz energtica dos

do jornal Valor e foi publicada em 28-05-2007.

biocombustveis a mesma do petrleo. Isso quer dizer


que a distribuio do produto continua sob o comando

As interrogaes intocadas

dos mesmos que dominam a distribuio da gasolina e do

Janio de Freitas

diesel. O artigo foi publicado no jornal Pgina/12, em

Confira nas Notcias do Dia 29-05-2007

19-05-2007.

O jornalista Janio de Freitas avalia os discursos de


Renam Calheiros. O artigo foi publicado no jornal Folha

V Conferncia. Documento final dever ser hbrido

de S. Paulo, no dia 29-05-2007.

Pedro Ribeiro
Confira nas Notcias do Dia 31-05-2007

'O jovem deve evangelizar o jovem'

O ex-assessor da CNBB Pedro Ribeiro disse, em

Vital Corbellini

entrevista agncia Adital, em 29-05-2007, que a

Confira nas Notcias do Dia 29-05-2007

participao tanto das Pastorais Sociais, das CEBs,

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

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quanto da Teologia da Libertao garantiram uma

soluo, tambm uma fonte de problemas. A

dinmica de estudos a partir da realidade, na V

entrevista foi concedida Frum, no dia 30-05-2007.

Conferncia, em Aparecida.
Gabo, o boom e o realismo mgico
A segunda modernidade e o papel ambivalente da

Jorge Lafforgue
Confira nas Notcias do Dia 01-06-2007

cincia

Para o crtico e pesquisador argentino, Jorge Lafforgue,

Ulrich Beck
Confira nas Notcias do Dia 31-05-2007

Cem anos de solido, de Garca Mrquez, se imps como

Ao analisar as contradies da sociedade

um marco e um smbolo pouco freqente no campo

contempornea, o socilogo alemo Ulrich Beck diz que

cultural do nosso continente. O artigo foi publicado no

atualmente, a cincia tem um papel ambivalente. Ao

jornal Clarn, no dia 19-05-2007.

mesmo tempo em que ela continua sendo uma fonte de

Frases da Semana
SNTESE DAS FRASES PUBLICADAS DIARIAMENTE NAS NOTCIAS DO DIA NO STIO DO IHU.

Eleies de Porto Alegre

comentando a viagem do primeiro astronauta brasileiro

Tarso Genro articula a unio do PT gacho, com a

O Estado de S. Paulo, 28-05-2007.

candidatura de Miguel Rosseto para a prefeitura de Porto


Alegre e o apoio a Olvio Dutra para presidente nacional

Renan Calheiros

do partido. Tarso ficaria livre para disputar o governo ou

Se Renan Calheiros cai, o governo perde a maioria no

a Presidncia em 2010 Renata Lo Prete, jornalista

Senado. Se Renan, fica, o governo perde a maioria do

Folha de S. Paulo, 28-05-2007.

Senado. Ningum vai convenc-lo e que no houve um


dedo do comissrio Bria (Tarso Genro) nesse caso

Tarso Genro nega ter fechado acordo para apoiar


Miguel Rosseto na disputa interna do PT pela candidatura

Cesar Maia, prefeito do Rio pelo DEM O Globo, 29-052007.

a prefeito de Porto Alegre. Defendo que o partido


discuta um nome de consenso com aliados histricos

Eu at poderia ser benvolo com ela (a jornalista

como PC do B, PDT e PSB", diz o ministro da Justia -

Mnica Veloso) porque foi minha nora, mas tambm no

Renata Lo Prete, jornalista - Folha de S. Paulo, 31-05-

podemos achar que ela a dona da verdade. Ele (Renan)

2007.

teve coragem de trazer isso tudo ao plenrio - Antonio


Carlos Magalhes, senador pelo DEM-BA, avaliando a

Marcos Pontes

situao poltica de Renan Calheiros O Estado de S.

Basicamente, Marcos Pontes esteve na estao como

Paulo, 29-05-2007.

um visitante - John Logsdon diretor do Instituto de


Polticas Espaciais da Universidade George Washington,
SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

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entre as empreiteiras - Jos Simo, humorista Folha


Ela (a jornalista Mnica Veloso) sempre recebeu em

de S. Paulo, 29-05-2007.

dinheiro vivo, entregue pelo Cludio Gontijo Pedro


Calmon, advogado da jornalista Mnica Veloso,

"Ministro japons acusado de corrupo se suicida". Se

referindo-se ao lobista da Construtora Mendes Jnior, em

a moda pegasse, o Lula ia fazer o PAC: Programa de

Braslia O Estado de S. Paulo, 29-05-2007.

Acelerao de Cemitrios! Jos Simo, humorista


Folha de S. Paulo, 29-05-2007.

Ele (Renan) ganhou este round, mas ningum sabe o


que pode vir nos prximos assaltos - um senador

Se tivesse ouvido o discurso de defesa de Renan

oposicionista avaliando a situao do presidente da Casa

Calheiros no Senado, o ministro da Agricultura do Japo

depois do pronunciamento Folha de S. Paulo, 29-05-

decerto no teria se enforcado por causa de escndalos

2007.

em sua pasta. H explicaes para tudo, caramba! Tutty Vasques, humorista NoMnimo, 29-05-207.

A primeira lmina fez tchan. A segunda fez tchun. Se


houver a terceira ser tchan, tchan, tchan, tchan! um

A Casa inteira o respeita muito. No tem nada

deputado petista usando a metfora do Prestobarba para

confirmado, ento no pode haver prejulgamento - Sib

descrever os percalos de Renan, primeiro com a

Machado, senador PT/AC - presidente do Conselho de

empreiteira Gautama e depois com a reportagem da

tica Folha S. Paulo, 31-05-2007.

revista "Veja" Folha de S. Paulo, 29-05-2007.


Renan Calheiros, como se sabe, no tem nada a ver
Eu quero ter uma filha com o Renan Calheiros. Mudo

com as traficncias da Gautama e de toda aquela turma

at de sexo! que o Renan teve uma filha com uma

que gravitava em torno da arapuca de obras pblicas.

jornalista e o lobista quem paga a penso. De R$ 16,5

Mas os grampos da PF, de uma inconvenincia sem igual,

mil! E como disse um leitor: eu queria ser a filha do

continuam gritando: Renan, Renan, Renan, Renan,

Renan e de brinde ainda levar uma me daquela,

Renan... Josias de Souza, jornalista blog - 30-05-

supergostosa! Jos Simo, humorista Folha de S.

2007.

Paulo, 29-05-2007.
Mnica a maior vtima desse episdio - Paulo
O amor lindo! I LOBBY YOU! Camiseta I Lobby You
com corao e cifro! Coracifro! - Jos Simo,

Henrique Amorim, jornalista - blog Conversa Afiada, 3005-2007.

humorista Folha de S. Paulo, 29-05-2007.


Meu problema a forma preconceituosa e vulgar com
O Renan vai lanar o PAF: Programa de Acelerao da

que um senador trata a mulher que deu luz sua filha.

Fornicao. Se engravidar, a empreiteira paga - Jos

Meu problema a forma subliminar de atribuir a Mnica

Simo, humorista Folha de S. Paulo, 29-05-2007.

o papel de vil da historia. Aquela conversa de mictrio


masculino: tambm, aquela mulher ... Aquela mulher

O Renan diz que o dinheiro provm de negcios

fatal que seduziu o pobre ingnuo nordestino que caiu

agropecurios. sim, vem de uma vaquinha. Vaquinha

nas malhas da cidade grande, cruel Paulo Henrique

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

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Amorim, jornalista, rebatendo a jornalista Miriam

Chvez, presidente da Venezuela Folha de S. Paulo,

Leito, que afirmou que o problema no o problema

01-06-2007.

pessoal, mas a relao do Senador Calheiros com as


empreiteiras blog Conversa Afiada, 30-05-2007.

Se Chvez tem que cuidar da Venezuela, o Senado


tem que cuidar do que se passa nele, o que, outra

O Renan Galheiros provoca a ira dos ex-maridos!

obviedade, no faz. E tudo indica que no vai fazer" -

Protesto de ex-maridos! O Renan inflacionou o mercado!

Janio de Freitas,jornalista - Folha de S. Paulo, 3-06-

Depois dos R$ 16.500 de penso pra ex-amante pagos

2007.

pelo lobista, mulher nenhuma mais aceita salrio


mnimo! Jos Simo, humorista Folha de S. Paulo,

Grmio

01-06-2007.

Amigo Torcedor, amigo secador, est provado: o


Grmio mesmo um time prova de agouros - Xico S,

E sabe o que terceirizao? Poltico que transa com

jornalista Folha de S. Paulo, 01-06-2007.

a amante e quem paga as contas o lobista, sem


participar da festa Jos Simo, humorista Folha de
S. Paulo, 2-06-2007.

Ser mesmo que o Grmio mesmo prova de azares


ou a Batalha dos Aflitos ao contrrio se aproxima? - Xico
S, jornalista Folha de S. Paulo, 01-06-2007.

Chvez
O Congresso brasileiro est agora subordinado ao de

O Grmio provou uma vez mais que aquela camisa

Washington. O Congresso do Brasil deveria se preocupar

desde que vestida por quem sabe lutar para defend-la ,

com os problemas do Brasil. O Congresso dominado

muito mais do que qualquer esquema ttico, intimida

pelos movimentos e partidos da direita, que esto

adversrios. A camisa e a torcida Marcos Caetano,

tentando que a Venezuela no entre no Mercosul Hugo

jornalista NoMnimo, 3-06-2007.

Chvez, presidente da Venezuela Folha de S. Paulo,


01-06-2007.

O Santos pode dar a volta por cima? Pode. Mas, muito


mais do que de tticas do competente Luxemburgo,

Este Congresso faz um mau favor causa sul-

precisar de esprito de luta e do apoio dos torcedores,

americana. A esses representantes da direita brasileira,

no melhor estilo argentino. Ou gremista, por assim dizer

eu digo que muito mais fcil que o imprio portugus a

Marcos Caetano, jornalista NoMnimo, 3-06-2007.

se instalar em Braslia do que o governo da Venezuela


devolver a concesso oligarquia venezuelana Hugo

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

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Eventos
Agenda da semana
A PROGRAMAO COMPLETA DOS EVENTOS PODE SER CONFERIDA NO STIO DO IHU WWW.UNISINOS.BR/IHU

Dia 05-06-2007
A realidade do trabalho informal no Vale do Rio dos Sinos possibilidades e desafios
Conversas - O mundo do trabalho e a vida dos/das trabalhadores/as
Sala 1G119 IHU 19h30min s 21h30min
Dia 06-06-2007
A concepo scio-antropolgica de economia de Karl Polanyi e sua crtica utopia do
mercado - Karl Paul Polanyi (1886-1964).
Prof. Dr. Armando de Melo Lisboa UFSC
Ciclo de Estudos Fundamentos Antropolgicos da Economia
Sala 1G119 IHU - 19h30min s 22h
Dia 09-06-2007
A produo fabril Filme: Tempos modernos
Prof. Dr. Achyles Barcelos da Costa e Profa. Dra. Flvia Seligman Unisinos
Ciclo de Cinema e Debate em Economia O Capitalismo Visto pelo Cinema
Sala 1G119 IHU 19h30min s 22h

Conversas sobre o mundo do trabalho


Nesta semana, no prximo dia 5 de junho, o Instituto

Leopoldo; Jorge Luiz Elias Rodrigues, diretor do

Humanitas Unisinos IHU d continuidade ao evento

Departamento de Economia Solidria da Secretaria

Conversas - O mundo do trabalho e a vida dos/das

Municipal de Desenvolvimento Econmico e Social de So

trabalhadores/as. Na ocasio, debater-se- sobre as

Leopoldo; e Lcia dos Santos Garcia, coordenadora

possibilidades e os desafios da realidade do trabalho

tcnica do Sistema Pesquisa de Emprego e Desemprego

informal no Vale do Rio dos Sinos. A atividade acontece

(PED), do DIEESE (Departamento Intersindical de

das 19h30min s 21h30min na sala 1G119 do IHU. So

Estatstica e Estudos Socioeconmicos).

convidados especiais Anelise Zart, Cristiane Alves da


Rosa, Jos Alencar P. Pereira e Marcos dos Santos

Segundo a coordenadora do evento, a professora

Rodrigues, da ATUROI (Associao de Trabalhadores

Marilene Maia, estas rodadas de conversas sobre o Mundo

Urbanos de Reciclveis Orgnicos e Inorgnicos), de So

do Trabalho e dos (as) Trabalhadores (as) foram

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inspiradas nos dizeres de Paulo Freire: Para mim, a

agenda afirmativa do trabalho para a regio. Os

realidade concreta algo a mais que fatos ou dados

participantes so trabalhadores/as da regio,

tomados mais ou menos em si mesmos. Ela todos esses

pesquisadores e estudantes, gestores governamentais,

fatos e todos esses dados e mais a percepo que deles

empresariais e da sociedade civil.

esteja tendo a populao envolvida.


No encontro do dia 3 de abril o tema gerador foi
O objetivo do evento oportunizar o dilogo sobre a

Realidade do trabalho e d@s trabalhadores/as do Vale

realidade do mundo do trabalho e da vida dos/as

dos Sinos. E em 2 de maio o tema debatido foi

trabalhadores/as do Vale dos Sinos, em vista de melhor

Trabalhadores/as e diversidade no Vale dos Sinos: Que

conhecer, analisar e intervir neste cenrio. As conversas

fazer? O prximo encontro ser no dia 3 de julho de

so mensais e desenvolvidas por temas geradores do

2007, quando ser discutido o tema Realidade dos/as

dilogo, desencadeado pela participao de

agricultores/as do Vale dos Sinos a terra e o trabalho.

convidados/as trabalhadores/as, que apontaro uma


anlise dos indicadores da realidade a partir das suas
vivncias. Ao final de cada conversa, sero apontadas

Mais informaes podem ser encontradas no site


www.unisinos.br/ihu

propostas, que no fim do ano devero compor uma


VEJA AS IMAGENS DOS PRIMEIROS ENCONTROS:

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Perfil Popular
Maria Leni de Soares
Originria de Santa Cruz do Sul, onde viveu at os sete anos,
Maria Leni de Soares, 37 anos, adotou So Leopoldo, Rio Grande do
Sul, como lar. Cresceu com os avs maternos, em uma famlia de
mais de 21 pessoas. Minha av me criou como filha, ento nunca
chamei ela de av, consequentemente, meus tios eram meus
irmos. Hoje, Leni, como conhecida pelos amigos, casada e me
de trs filhos, seu orgulho. Trabalhando desde os 13 anos, ela
sempre perseguiu uma vida melhor para a famlia. Na Cooper
Progresso, encontrou seu e lar e tambm seu trabalho, participando
da diretoria como coordenadora dos grupos de reciclagem e
costura, onde sonha construir sua carreira. Estou pensando muito
no que mais posso fazer. Meu futuro ali na cooperativa. Conhea
um pouco mais de Maria Leni na entrevista a seguir.

Infncia
Trabalho
Leni teve uma infncia cercada de familiares,
sempre muito mimada. Eu no limpava a casa, eu

A primeira experincia de Leni como empregada

no precisava fazer nada. Se eu pensava em fazer

no foi agradvel. A menina sentia saudades da

alguma coisa um tio dizia assim: No pode, onde j

famlia. Fui trabalhar em uma casa e odiei. Eu

se viu! Ela no tem pai. Estudou somente at a

tinha que dormir l e acabei ficando longe da

stima srie do Ensino Fundamental, quando largou

famlia. Eu chorava dia e noite. Fiquei um ms nesse

os estudos para trabalhar. Parei de estudar porque

emprego a trancos e barrancos. Leni tambm no

tinha que ajudar a minha av e meu av. Leni

gostava das suas tarefas: cuidar de duas crianas e

comeou em uma casa de famlia como empregada.

limpar a casa. At hoje eu no gosto de limpar a

Todos trabalhavam na minha famlia desde cedo.

casa. Gosto de trabalhar na rua. Em outra casa,

Com os avs na roa, os jovens sentiram o peso do

Leni se adaptou melhor, chegando a ficar um ano no

trabalho muito cedo na famlia. Depois que os

cargo. L era melhor, porque eu j tava um pouco

filhos cresceram todos comearam a trabalhar, e da

mais madura tambm. Era s um casal, e como o

tudo ficou mais fcil.

marido viajava muito eu ficava s na companhia


dela. A patroa de Leni compensava a saudade da
famlia, levando-a para passear. Me levava pra sair

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quase todo dia. Conheci muitas coisas atravs dela.

custava R$ 300,00. A gente estava precisando, ento

Eu no conhecia Porto Alegre e ela me levou para

compramos. Uma semana depois de at ter

conhecer. Tambm conheci Canoas. Quando ela

construdo uma casa no local, a verdade chegou

sabia que eu no conhecia uma coisa me levava l.

famlia. Descobrimos que aquele cara no era da

Leni deixou a casa em busca de um emprego com

cooperativa, era uma pessoa qualquer que se

salrio maior e carteira assinada, mas acabou

aproveitou da situao. Era uma invaso. Eu nem

ficando desempregada por meses. Da minha me

sabia o que era isso. Leni e o marido no sabiam

ficou doente e acabei deixando isso um pouco de

que atitude tomar diante da situao. Os vizinhos

lado. Mais tarde, Leni conquistou uma vaga de

juntaram-se e formaram uma cooperativa, em busca

revisora de calados na empresa Goldenflex. Eu

de uma soluo para o impasse. Aconteceram

gostava de l, mas ganhava pouco. Quando eu

muitas brigas at conseguirmos nosso terreno, mas

descobri que em outros lugares se ganhava mais, fui

conseguimos. No era uma situao completamente

para outras firmas. Na Multisolados, Leni ficou

legalizada, mas estava a caminho.

cinco anos, at o fechamento da fbrica. Depois


Casa prpria

dessa eu no consegui mais arranjar emprego em


firmas e passei a fazer faxinas.

Sem luz, gua, ou saneamento, era tudo


Famlia

improvisado no loteamento. Tinha a tal patente.


Aquela casinha com buraco e tudo. Minhas filhas

Com 19 anos, Leni se casou. Aos 20 teve sua

choravam e diziam que no queriam ir ali porque

primeira filha, Ingrid, hoje com 16 anos. Logo

tinha bichinho. Era bem ruim. A famlia pagava o

vieram Vander, de 11, Pmela, de 15 anos, e

terreno mensalmente para a cooperativa, em busca

Wellington, de 7 anos. O casal logo se separou e ela

de melhorias no local. Mas a corrupo logo tomou

se viu criando os filhos sozinha. Passei muito

conta da iniciativa. Um dia teve uma assemblia de

trabalho. Era eu e eu. Quando meu filho ficou

noite e descobrimos que o presidente da cooperativa

doente foi muito sacrificado porque estava sozinha.

tinha desviado R$ 130 mil. Houve uma mobilizao

Hoje, Leni est em seu segundo casamento,om Isaac,

grande e o tiramos do cargo. O atual presidente

que trabalha assentando asfalto em uma empresa de

assumiu e houve novas negociaes com os donos das

pavimentao. Comeamos a namorar e casamos h

terras. H trs semanas, a famlia tem sua primeira

onze anos. Nesse casamento tive meu terceiro filho,

casa prpria. linda. Quando vi que comearam a

o Wellington, de sete anos.

construir, incomodava muito os pedreiros, passava o


dia todo na obra, sempre falando o quanto a casa

Cooper Progresso

estava bonita. Esperamos muito tempo por ela. At


j a aumentei para cada um ter seu quarto. Est

Depois de um ms casada e morando de aluguel, a

prontinha.

famlia teve a notcia de terrenos que estavam sendo


vendidos perto do Rio dos Sinos. Chegando l,
encontramos um cara que disse que o terreno

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Sonho

Construo
Leni no pra de trabalhar em busca de melhorias

O sonho de Leni trazer conforto para a famlia,

para a vida no loteamento. Comeou como

adquirindo um computador. Para os meus filhos

moradora, mas logo se envolveu na diretoria da

poderem estudar, aprender mais, fazer os trabalhos

Progresso. Comecei a discutir com eles sobre tudo

de colgio.

o que via de errado no loteamento. Da decidi me


envolver no trabalho e comecei a tomar atitudes.
Brasil

Hoje, ela responsvel pela coordenao dos grupos


da reciclagem e da costura. Fao trabalhos de rua,
como ir na prefeitura, buscar pedidos de costura e

Leni categrica quando fala de poltica


brasileira. Ela reclama da corrupo e falta de

tambm catadores.

considerao dos polticos com a populao. Eu


Futuro

acho que podemos melhorar quando nossos


governantes sentarem para refletir que a frente

Leni diz estar em uma fase em que avalia o

deles existe um povo carente, que est esperando

trabalho feito at agora. Estou pensando muito no

que eles reajam, deixem de embolsar o que no

que mais posso fazer. Meu futuro ali na

devem e pensar um pouco mais em ns. Leni

cooperativa, e tenho planos para o grupo de

enfatiza a indiferena dos polticos de alto escalo

reciclagem. Ela planeja agregar ao trabalho os

com as necessidades do povo. Eles tm que parar

moradores das ruas prximas cooperativa. Quero

de brigar entre eles e pensar mais nos outros. Eles

trazer aqueles catadores pra dentro, pra

s pensam no bolso deles. Eles ganham muito mais

conseguirmos trabalhar com eles. Quero que eles

que o salrio mnimo que a maioria do povo ganha.

tenham mais dignidade. Ela participa da associao

Ela ainda destaca que a apatia dos brasileiros diante

de bairro, onde leva a experincia do trabalho da

da situao leva a mais corrupo. Vemos todo dia

Progresso. Queremos trazer casa para eles.

na televiso as denncias, mas fazer alguma coisa

Sabemos que no pra hoje, mas queremos pra eles

ningum faz. Ns no reagimos e acabamos

tambm. Eles devem ter tudo que um ser humano

colocando eles l em cima. S colocamos eles l

merece.

porque nos achamos inferiores. Temos que assumir


um pouco essa culpa.

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Sala de Leitura
Fast second: how smart companies bypass radical

consolidada; e como a empresa poderia evoluir se for

innovation to enter and dominate new markets, de

pioneira em algo. Apesar de apresentar um perfil ligado

Constantinos C. Markides e Paul A. Geroski, (San

administrao, a parte inicial tem uma estrutura

Francisco Jossey-Bass, 2005). O livro discute como

interessante que destaca o processo de inovao e o que

empresas que criam inovaes radicais podem entrar e

o autor chama de radical innovation. A obra

dminar os novos mercados. Para isso, aborda as

complementada por uma srie de exemplos reais e

caractersticas da estrutura de novos mercados e a

apresenta uma estrutura e linguagem de fcil

implicao de novos entrantes; como estabelecer

entendimento.

organizaes nesses mercados e quando o momento


certo para realizar os movimentos nele; como pequenas
empresas alcanaram escalas nos novos mercados; como

Vagner de Carvalho Silva, Prof. na Unidade


Acadmica de Cincias da Comunicao da Unisinos.

a primeira posio nestes mercados comeou a ser

IHU REPRTER
Denise Cogo
Pesquisar a paixo de Denise Cogo. Graduada em Jornalismo e Letras pela
UFRGS, ela escolheu a comunicao como carreira. Ainda jovem, ganhou um
prmio de Jornalismo e viajou sia e Europa, onde se abriram muitas portas
para sua carreira. Com mestrado e doutorado no currculo, Denise conquistou o
espao merecido na pesquisa, onde hoje desenvolve um projeto juntamente com
a Universidade Autnoma de Barcelona. Nas horas livres, Denise gosta de ler
obras de autores latino-americanos, como Isabel Allende1, e ir ao cinema,
encontrar amigos, viajar, alm de fazer hidroginstica, que pratica com
disciplina. Conhea um pouco mais de Denise Cogo na entrevista a seguir.
1

Isabel Allende (1942): jornalista, escritora chilena, radicada nos Estados Unidos. considerada uma das principais revelaes da literatura latino-

americana da dcada de 1980. Sua obra marcada pela ditadura no Chile. De suas obras, destacamos A casa dos espritos (1982), que em 1993 foi
reproduzida no cinema por Bille August. (Nota da IHU On-Line)

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Origens - Nasci em Porto Alegre em 1964, s

O trabalho na assessoria de imprensa acabou ficando

vsperas da ditadura no Brasil. Meu pai se chama Hlio

muito rotineiro e eu resolvi tentar outros rumos. Fiz

e minha me Sirley. Meu pai foi funcionrio pblico

seleo e comecei a cursar o mestrado em

estadual e minha me professora de msica. Tenho um

Comunicao na USP.

irmo mais velho, que mora em Porto Alegre.


Oportunidade - Recebi um prmio de jovens
Infncia - Minha infncia foi muito na rua, criana de

jornalistas na Tailndia com um trabalho escrito em

rua mesmo, meio indomvel. Morei em uma casa no

francs. Era um artigo sobre crtica de cinema e

centro de Porto Alegre at os seis anos e depois a

televiso. Havia, ento, um escolhido de cada

famlia se mudou para um apartamento na Avenida

continente. Fui escolhida pela Amrica Latina e fui

Ipiranga, que, na poca, j era muito movimentada.

para Bancoc, com tudo pago. Comprei um euro-pass e

Brincvamos na calada mesmo. Minha me sempre se

aproveitei para fazer um tour pela Europa. Fui Itlia,

preocupava muito. Lembro de gostar de experimentar

onde encontrei amigos e viajei de carro, e tambm

brinquedos, corrida, tudo o que aparecia. Tive muitas

Sua e Frana, de trem. Dessa viagem, conheci, na

passagens pelo pronto-socorro, por quebrar a perna,

Itlia, uma ONG chamada Centro Orientamento

destroncar o brao, pois gostei sempre de aventuras.

Educativo, onde acabei, mais tarde, fazendo, em


parceria, um projeto de vdeo comunitrio com as

Estudos - Sempre gostei de estudar muito. Primeiro,

crianas da periferia de Porto Alegre. No ano seguinte,

passei o jardim de infncia no Pica Pau Amarelo, uma

eles convidaram esses jovens jornalistas para irem a

escolinha que ainda existe. Estudei, depois, em

Roma e a Milo, a fim fazer um estgio de quinze dias

escolas pblicas. Na Ildefonso Gomes, fiz o primrio, e

para jornalistas africanos e latino-americanos. Nessa

o restante fiz na Incio Montanha, onde tambm

oportunidade, voltei para a Europa e fui para a

completei o Ensino Mdio Profissionalizante. No tinha

Espanha pela primeira vez. Foram experincias de vida

muita escolha na poca devido a uma reforma de

e profissional que me abriram muitas portas. Retornei

ensino do governo e tive que cursar o tcnico. Acabei

ao Brasil e iniciei o mestrado em Comunicao na USP.

escolhendo o Turismo. O que eu mais gostei foi de

Depois de um tempo lecionando, iniciei o doutorado,

estudar francs, pois havia bons professores no curso.

tambm na USP.

Comunicao - Quanto graduao, estava entre

Trabalho - Vim para a Unisinos em 1990, participei e

cursar Letras e Comunicao. Queria ser tradutora e

passei em uma seleo de professores. Comecei na

intrprete ou jornalista. Decidi cursar Jornalismo e,

disciplina de Introduo ao Jornalismo e gostei muito.

depois de dois anos, iniciei Letras, ambos na UFRGS.

Logo que iniciei, comeou uma greve do professores na

Fiz estgio na UFRGS, em fotografia e assessoria de

Unisinos, a nica, pelo que eu lembro, a ocorrer at

imprensa, e, mais tarde, acabei sendo contratada pela

hoje. Nessa poca, eu havia recebido o prmio e eu

universidade. Em Letras, cheguei a fazer algumas

pude viajar para receb-lo. Quando voltei, lecionei por

tradues na poca para revistas tcnicas, mas no

mais um ano e pedi licena para fazer o mestrado em

continuei. Trabalhei tambm como jornalista

So Paulo.

freelance para jornais de empresa e jornais de bairro.

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Pesquisa - Envolvi-me com a pesquisa, que ainda

Autor - Sempre gostei da Amrica Latina. Marcou-me

estava iniciando na Universidade. Em um ncleo de

muito Gabriel Garca Mrquez1, Isabel Allende e Pablo

pesquisa, coordenado pelo professor Pedro Gomes,

Neruda2. Gosto tambm dos livros sobre a ditadura.

estudamos recepo, juventude e televiso, e

Quando eu estava na universidade, estava iniciando a

publicamos duas pesquisas com esse tema. Depois de

anistia e comearam a circular livros sobre esse tema. Li

cursar o doutorado, retornei Unisinos, para lecionar

todos os livros do Fernando Gabeira e de outros autores

e fazer pesquisas. Coordeno um projeto de cooperao

que denunciaram o que aconteceu nos anos de ditadura.

acadmica internacional, h quatro anos, chamado

Hoje eu leio um pouco de tudo, mas muitos livros

BrasilEspanha, financiado pela Capes e pelo Ministrio

acadmicos, o que faz sobrar menos tempo para a fico.

da Educao da Espanha, que envolve intercmbio


entre os grupos de pesquisa Mdia e Multiculturalismo e

Unisinos - Estou h muito tempo na Unisinos: 16 anos.

Processocom da Unisinos com a Universidade Autnoma

Com a pesquisa tenho uma relao mais direta com a

de Barcelona. Os pesquisadores passam dois meses por

Universidade, pois me dedico exclusivamente a isso.

ano aqui, ns passamos dois na Espanha, e os alunos

Acompanhei muitas fases da Unisinos, como a montagem

tambm vo para fazer estgios de doutorado.

da ps-graduao, que me deram muitas experincias


institucionais. Isso bom e ruim, pois entendemos muitas

Famlia - Fui casada durante sete anos, no tenho

coisas que esto acontecendo com essa experincia do

filhos, mas j tive um cachorro. J morei em So

tempo, mas, ao mesmo tempo, acaba faltando um certo

Leopoldo, mas Porto Alegre a minha casa.

distanciamento para entender outras. Na Unisinos,


consegui abrir um espao de trabalho para uma rea que

Horas livres - Gosto de fazer muitas coisas boas em

eu gosto muito, a pesquisa. Fiz amizades importantes,

meu tempo livre. Viajar, ler, ir ao cinema. Eu adoro

reencontrei colegas, que, hoje, so companheiros

cinema e dvd. Ultimamente, tenho visto muito cinema

mesmo. Eu penso que aproveitei muito as possibilidades

europeu. Minha filmografia se ampliou muito com as

que a Universidade ofereceu. Agora, vou cursar o ps-

viagens. Gosto muito do cinema argentino tambm e

doutorado por um ano em Barcelona com o apoio da

de sries retrs, como A feiticeira, Jeannie um gnio

Universidade, com salrio e bolsa da Capes, e com tempo

e Os monstros. Saio tambm com amigos, para

tambm para dedicar pesquisa.

conversar e beber vinho.


1

Esporte - Fao hidroginstica, trs vezes por semana.


H trs anos, uma mdica me recomendou fazer o
exerccio como forma de tratar o estresse. Sou bem
regular no exerccio. Quando vou para uma viagem mais
longa, me matriculo na academia e sigo fazendo.
Caminhei muito tempo e, no tempo do colgio, joguei
vlei e ganhei medalhas em torneios.

Gabriel Garca Mrquez (1928): escritor colombiano, autor de

Crnica de uma morte anunciada. 26. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Sobre a obra do autor, confira a IHU On-Line n 221 Cem anos de
solido. Realidade, fantasia e atualidade, disponvel para donwload no
stio do IHU www.unisinos.br/ihu. (Nota da IHU On-Line)
2

Pablo Neruda (1904-1973): um dos mais importantes poetas da

lngua castelhana do sculo XX, e cnsul do Chile na Espanha (19341938) e no Mxico. Desenvolveu intensa vida pblica entre 1921 e 1940,
tendo escrito, entre outras, as seguintes obras: La cancin de la
fiesta, Crepusculario, Veinte poemas de amor y una cancin
desesperada, Tentativa del hombre infinito, Residencia en la tierra
e Oda a Stalingrado.(Nota da IHU On-Line)

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para o conhecimento no Humanitas. um lugar com


IHU - Acompanho o trabalho pelo site e vejo atividades

interesses multidisciplinares, importante na

programadas s quais gostaria de ir. uma programao

Universidade. Espero que um dia o Humanitas se abra

fantstica, que sempre me atrai, mas que raramente se

para desenvolver e financiar a pesquisa acadmica

encaixa na minha agenda. , no entanto, o meu sonho de

multidisciplinar, nesse dilogo extra-acadmico. Desejo

consumo acadmico. Eu vejo uma abertura cosmopolita

muitos anos de vida para o Humanitas.

SO LEOPOLDO, 04 DE JUNHO DE 2007 | EDIO 222

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