As Confrarias Portuguesas Na Época Moderna
As Confrarias Portuguesas Na Época Moderna
As Confrarias Portuguesas Na Época Moderna
PROBLEMAS, RESULTADOS
E TENDNCIAS DA INVESTIGAO *
P E D R O P E N T E A D O **
LUSITANIA
SACRA.
2" s r i e , 7 ( 1 9 9 5 )
15-52
avaliar a importncia destas associaes no c o n j u n t o do pas, tentaremos esboar alguns traos para uma geografia do movimento confraternal. Estes serviro de ponto de partida para suscitar um c o n j u n t o
de interrogaes que correspondem s actuais orientaes desta problemtica, como sejam os factores que estiveram na origem da criao e da adeso a estas associaes, o papel da Igreja na sua estruturao, as relaes concorrenciais entre a Igreja e o Estado no controle do movimento associativo dos leigos, o modo como este ltimo
se organizou internamente e os vnculos sociais estabelecidos entre
os seus membros. Em suma, o nosso objectivo, nas prximas pginas,
consistir em traar algumas das respostas s interrogaes que atrs
enumermos.
1. A S C O N F R A R I A S C O M O O B J E C T O D E
HISTORIOGRFICO
ESTUDO
entre estas associaes e as organizaes profissionais, atravs do estudo das confrarias dos mesteres 4 . Nos anos 40, o estatuto menor
atribudo s c o n f r a r i a s devocionais foi consagrado pelo prprio Estado Novo que procurou secundarizar as f u n e s cultuais das irmandades, em concreto as que se encontravam ligadas s Misericrdias, durante o longo processo de secularizao destas 3.
As dcadas de 1950 e 1960 marcaram o aparecimento de novas
perspectivas para o estudo do movimento confraternal, as quais suscitaram uma maior ateno da c o m u n i d a d e cientfica para o assunto. Em Frana, a Sociologia Religiosa, atravs de Gabriel le Bras, demonstrava que era f u n d a m e n t a l ultrapassar a viso estritamente institucional da Igreja e estudar as prticas de e n q u a d r a m e n t o religioso,
procurando conhecer a importncia das c o n f r a r i a s e as suas relaes
com a sociedade, a Igreja e o Estado 6. Maurice Agulhon, em 1966,
J o s Q u e l h a s B i g o t t e , A Situao
Jurdica
das Misericrdias
Portuguesas.
C o i m b r a , 1959. pp. X V I e 181-197 (Existe 2 ' edio, a u m e n t a d a , editada e m Seia n o
a n o de 1994).
6
G a b r i e l L e B r a s , Etudes de Sociologie
Religieuse.
Tome Second. De la Morfologie
la Typologie.
Paris: P U F , 1956.
2. F O N T E S E M T O D O S
A primeira ideia a reter a de que as novas perspectivas de investigao so bastante exigentes em termos d o c u m e n t a i s , implicando uma maior procura de fontes e diversificao das tipologias e
dos suportes dos documentos. Esta a f i r m a o torna-se mais evidente
no caso do estudo da sociabilidade religiosa e das formas do exerccio do poder nas irmandades, o que traz implicaes no que se refere
ao patrimnio arquivstico. Por tudo isto, urgente a aposta na identificao, no tratamento, na preservao e na d i f u s o dos f u n d o s e
coleces que interessam para este tipo de pesquisa " .
Quanto importncia da diversidade de suportes da i n f o r m a o ,
atente-se na existncia de objectos que constituem a herana museolgica das irmandades, como sejam: mobilirio, quadros, retbulos e imagens de culto, crios, medalhas, gravuras, bandeiras, insgnias, peas de vesturio e outros smbolos da sua identidade corporativa. Apesar de habitualmente serem secundarizados nas investigaes, estes objectos esclarecerem e ilustram aspectos f u n d a m e n t a i s do
associativismo leigo de cariz religioso. O mesmo se poder dizer, por
exemplo, das gravaes audio-visuais das antigas cerimnias festivas e das entrevistas desenvolvidas com os seus intervenientes l2 .
"
S o b r e este p r o b l e m a , cf. P e d r o P e n t e a d o , C o n f r a r i a s P o r t u g u e s a s da
poca Moderna: Situao Historiogrfica e D e s a f i o s Arquivsticos (no prelo,
revista dos A N / T T ) . Para a o r g a n i z a o de alguns destes f u n d o s , cf. a proposta de
M a n u e l a F e r r o M a g a l h e s , Arquivos
das Misericrdias.
Orientaes
para a
Organizao
e Descrio
dos Fundos
dos Arquivos
das Misericrdias.
Lisboa:
IPA, 1992 ( v e r s o p o l i c o p i a d a ) .
12
Existem alguns trabalhos p a r a d i g m t i c o s sobre estes assuntos. Para a icon o g r a f i a , c f . J o s L o t h e e A g n e s V i r o l e , Images de Confrries
Parisiennes.
Paris:
B H V P , 1992. S o b r e a e n t r e v i s t a c o m o m t o d o de t r a b a l h o e m C i n c i a s S o c i a i s e
s o b r e o t r a t a m e n t o a r q u i v s t i c o d e r e g i s t o s o r a i s , c f . R. G h i g l i o n e e B. M a t a l o n ,
O Inqurito.
Teoria e Prtica.
Oeiras: Celta Editora, 1992 e Chantal de Tournier- B o n a z z i ( d i r . ) , Les Tmoignage
Oral aux Archives.
De la Collecte
la
Communication.
Paris: A r c h i v e s N a t i o n a l e s , 1990. No que c o n c e r n e s r e c o l h a s e
3. P A R A
UMA
GEOGRAFIA
CONFRATERNAL
DO
MOVIMENTO
14
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Fundo Alcobaa
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Gaia
Confrarias Marianas
D Confrarias Teocentricax
H Confrarias Santos
0 Confiarias ltimos Fins
Lisboa
das novas frmulas da piedade tridentina 20. Por outro lado, as confrarias teocntricas apresentavam, na rea de Gaia, uma percentagem
muito abaixo do que seria de esperar. Dentro deste tipo de associaes, saliente-se ainda a escassez de invocaes de irmandades do Divino Esprito Santo, provavelmente relacionada com o e s f o r o desenvolvido pelas autoridades eclesisticas para efectivar a desestruturao destas organizaes. Nas proximidades do Fundo, a sua presena era mesmo nula. Contudo, a significativa quantidade de ermidas ali existentes que apresentavam d e n o m i n a e s do Esprito Santo
no deixa esconder a relevncia local deste culto por volta de 1758 2I .
40
35 -
30 -
9 Confrarias Rosrio
20 - -
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'5 -
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Fundo
30
Alcobaa
Gaia
Confrarias Almas
Lisboa
S o b r e a d e s c o n f i a n a d o s b i s p o s f r a n c e s e s d o s c u l o X V I I I no q u e s e r e f e r e a e s t a s i n v o c a e s , c f . L o u i s C h t e l l i e r , A Religio
dos Pobres.
As
Misses
Rurais na Europa
e a Formao
do Catolicismo
Moderno.
Sc. XVI-XIX.
Lisboa:
E s t a m p a . 1995, p. 256. M.-H. F r o e s c h l - C h o p a r d c o n s t a t o u idntico p r o c e d i m e n t o
na P r o v e n a ( c f . Espace e Sacr....
p. 162). P a r a o c a s o p o r t u g u s , M a r i a M a n u e l a
Rodrigues apresenta n m e r o s mais significativos das invocaes do santorai. Contudo. esta autora indica f r e q u n c i a s relativas a o s a n o s entre 1650 e 1749, s e n d o
preciso ter e m c o n t a q u e inclui p e r o d o s e m que o c u l t o a o s santos era mais signif i c a t i v o , c o m o na c e n t r i a de s e i s c e n t o s (cf. C o n f r a r i a s d a C i d a d e d o Porto...,
p. 3 8 3 ) . U m e s t u d o r e l a t i v o a o c o n c e l h o d a F e i r a c o n f i r m a - n o s e s t a i d e i a : a s a s s o ciaes religiosas de invocao de santos passam de 33 para 14,8% do sculo XVII
para o seguinte. E x i s t i a m , c o n t u d o , reas o n d e o e s f o r o da Igreja para s e c u n d a r i z a r
as antigas c o n f r a r i a s de invocao de santos n o teve, a p a r e n t e m e n t e , tanto sucesso.
4. F A C T O R E S M O T I V A C I O N A I S E N V E I S DE A D E S O
S C O N F R A R I A S
Em meados do sculo XVIII, as c o n f r a r i a s pululavam um pouco
por por todo o pas, atingindo ento alguns dos nmeros mais elevados da sua existncia e congregando sua volta milhares de indivduos 22. Esta constatao obriga-nos a colocar, desde j , duas questes: O que que teria estimulado os homens da Idade Moderna a
criarem e integrarem essa imensidade de associaes? E quais seriam
os nveis de adeso que elas tiveram?
Um dos principais factores motivacionais do ingresso dos indivduos nas irmandades foi a necessidade que estes sentiam de obter a
maior quantidade possvel de intercessores no mundo celeste para
conseguirem garantir a proteco divina na sua vida quotidiana e a
salvao das suas almas aps a morte. A entrada nestas organizaes
era tambm uma das formas dos novos irmos poderem assegurar o
auxlio dos outros membros em eventuais momentos difceis dos seus
percursos de vida, tais como os tempos de pobreza, fome, epidemia,
doena, cativeiro, etc. Tratava-se de fazer face imprevisibilidade
dos acontecimentos do dia a dia, assegurando a solidariedade duma
Foi o c a s o d e V i s e u ( c f . G u i l h e r m i n a M o t a , A I r m a n d a d e d a S e n h o r a d o C a r m o d a
M a r m e l e i r a - M o r t g u a . ( P r i m e i r a M e t a d e d o S c u l o X V I I I ) . Revista de
Histria
das Ideias,
9, 1 9 8 7 , p . 2 7 7 ) . P a r a o c a s o a o r e a n o ( R i b e i r a G r a n d e ) , c f . M a r i a
F e r n a n d a E n e s . As C o n f r a r i a s do S a n t s s i m o e d a s A l m a s no m b i t o da C u l t u r a
B a r r o c a . I n : / Congresso
Internacional
do Barroco.
P o r t o , 1 9 9 1 . v o l . I, p. 2 7 8 .
21
J. C a n d e i a s S i l v a , op. cit., p . 3 6 1 .
32
Para se obter u m a ideia da i m p o r t n c i a e d i m e n s o d a s c o n f r a r i a s j no
sculo XVI. cf. Francisco Bethencourt, Os Equilbrios Sociais do Poder. A Igrej a . I n : J o s M a t t o s o ( d i r . ) . Histria
de Portugal.
L i s b o a , 1 9 9 3 , v o l . III, p p . 151-153. Seria interessante c o n f r o n t a r os d a d o s fornecidos pelo autor c o m a problem t i c a e as p e r s p e c t i v a s de Mare V e n a r d em La Crise des C o n f r r i e s en F r a n c e au
X V I r . S i c l e . I n : Populations
et Cultures.
Mlanges
F. Lebrun.
R e n n e s : U. R e n n e s
II e I C B , 1 9 8 9 , p p . 3 9 7 - 4 0 9 .
espcie de famlia alargada, a partir duma valorizao do sentimento cristo de fraternidade e de amor ao prximo. Por outro lado,
esta ligao a uma comunidade mais abrangente era uma f o r m a de
garantir o direito a um funeral cristo com o a c o m p a n h a m e n t o da irmandade. Numa boa parte dos casos, as irmandades tinham tambm a
obrigao de rezar um determinado nmero de missas pela salvao
das almas dos irmos defuntos. Contudo, nem sempre o dever de
a c o m p a n h a m e n t o dos m e m b r o s falecidos ou de celebrao de missas
em sua inteno era cumprido pelas irmandades, dando origem a
constantes intervenes das autoridades eclesisticas no sentido de
fazerem respeitar estas o b r i g a e s 2 3 . Seria interessante apurar at que
ponto estas intervenes no sentido de disciplinar as associaes
religiosas no eram uma forma de assegurar o seu normal f u n c i o namento e de dar aos fiis as garantias necessrias ao seu ingresso nas
irmandades.
, pois, necessrio averiguar at que ponto estas organizaes representavam uma maior espiritualizao do quotidiano e um aumento
da prtica religiosa. T a l v e z primeira vista se possa afirmar que as
c o n f r a r i a s permitiam um maior acesso aos sacramentos da Igreja, uma
manuteno mais cuidada dos locais de culto, um aumento da devoo aos Santos e Virgem, ou ainda um acrscimo do nmero de peregrinaes. Mas seria importante constatar qual a percentagem de
novos irmos para quem esses aspectos eram os mais relevantes no
m o m e n t o do ingresso, contribuindo deste modo para uma hierarquizao dos referidos factores motivacionais. Por outro lado, constata-se a necessidade de identificar o grupo social em que esses membros se situavam, de f o r m a a apurar eventuais relaes entre as lites
sociais e as f r m u l a s mais interiorizadas de religiosidade.
Entre os mltiplos aspectos que impulsionaram os indivduos para
o seio destas associaes, um dos mais relevantes foi a procura duma
maior integrao e identidade social por parte dos c o n f r a d e s e a busca
21
de la Iglesia
en Brasil.
Ma-
26
P e d r o P e n t e a d o e C o n c e i o Ereio, O C o m p r o m i s s o da C o n f r a r i a d o
Santssimo Sacramento de Cs no Contexto do Culto Eucarstico Seiscentista (No
p r e l o , r e v i s t a Espaos,
d a A s s o c i a o de D e f e s a do P a t r i m n i o Cultural da R e g i o
de A l c o b a a ) ( f l . 4 d o c o m p r o m i s s o ) . C f . a i n d a A N / T T , Manuscritos
da
Livraria.
n 1 2 0 7 e A N / T T , Confrarias,
Irmandades
e Mordomias.
M . X X V , n 2 .
"
28
Laurinda de A b r e u . C o n f r a r i a s e I r m a n d a d e s de Setbal: R e d e s de
S o c i a b i l i d a d e e P o d e r . I n : I Congresso
Internacional
do Barroco.
Porto, 1991, vol.
I, p. 6 . E m S o S e b a s t i o d a P e d r e i r a , e m 1 7 5 8 , a p e r c e n t a g e m d e i r m o s d a
I r m a n d a d e d o S a n t s s i m o e r a d e 1/7 d o n m e r o d e p a r o q u i a n o s d a M a t r i z ( c f .
F e r n a n d o P o r t u g a l e o u t r o , op. cit.. p . 2 5 2 ) . S e r i a i n t e r e s s a n t e s a b e r s e a I r m a n d a d e t i n h a m u i t o s m e m b r o s de o u t r o s l o c a i s . C o n v i n h a a p u r a r q u a n t i t a t i v o s r e f e rentes a outras r e g i e s e. p r i n c i p a l m e n t e , s a b e r qual a p e r c e n t a g e m de f r e g u e s e s de
o u t r a s i g r e j a s m a t r i z e s q u e se e n c o n t r a v a m i n t e g r a d o s n a s c o n f r a r i a s p a r o q u i a i s .
Este aspecto poder fornecer ndices de solidariedade entre vizinhanas, c o m o
s u g e r e , p a r a a M o r t g u a , G u i l h e r m i n a M o t a (op. cit., p . 2 8 1 ) . M . M a n u e l a R o d r i gues fornece-nos algumas percentagens, mas para uma confraria sediada no Conv e n t o d e S o F r a n c i s c o d o P o r t o ( o p . cit., p . 4 0 8 ) .
29
N o t e - s e q u e a a d e s o d e n o t v e i s e p o d e r o s o s s c o n f r a r i a s t e n d i a p a r a s e r
directamente proporcional ao prestgio destas. Para os dados referidos, cf. Laurinda
de Abreu, C o n f r a r i a s e I r m a n d a d e s . . . , p. 7 e M. M a n u e l a R o d r i g u e s . C o n f r a r i a s
da C i d a d e d o Porto..., p. 386.
A N / T T , Confrarias,
Irmandades.
Mordomias,
M . X X V . n" 2.
A p r e d o m i n n c i a masculina e m c o n f r a r i a s s e t u b a l e n s e s foi estudada por
L a u r i n d a de A b r e u , C o n f r a r i a s e I r m a n d a d e s . . . , pp. 5 e 13. M a s e m m u i t a s c o n frarias, as mulheres poderiam adquirir d e t e r m i n a d o s direitos atravs do ingresso dos
e s p o s o s . N o u t r o s c a s o s , c o m o na I r m a n d a d e d a S e n h o r a d o C a r m o da M o r t g u a , a
e n t r a d a d e m e m b r o s d o s e x o f e m i n i n o era paga a p e s o de o u r o , de f o r m a a dific u l t - l a ( G u i l h e r m i n a M o t a , op. cit., p . 2 8 0 ) . J n a C o n f r a r i a d o R o s r i o d o C o n vento de So Francisco do Porto, entre 1718 e 1789. era f r e q u e n t e as m u l h e r e s
a c o m p a n h a r e m a inscrio dos m a r i d o s (M, M a n u e l a R o d r i g u e s , C o n f r a r i a s da
C i d a d e d o P o r t o . . . , p. 3 8 5 ) . E, n a I g r e j a d e P a l h a i s , c h e g a r a m a e x i s t i r m u l h e r e s
f r e n t e d o s d e s t i n o s d a s c o n f r a r i a s , n o s c u l o X V I ( c f . A n a d e S o u s a L e a l , A Igreja
j / / ' ;
S E M I
DB.
\ c\
c / t u w ,
(
j )
v<J/)id-CTlC?aS
de Nossa Senhora
da Graa na Histria
de Palhais.
P a l h a i s , 1992 ( p o l i c o p i a d o , a
publicar pela Junta de Freguesia local e pelo C C J B ) (Agradeo autora o facto de
ter-me p e r m i t i d o divulgar alguns d a d o s deste seu trabalho)). E s t a m o s assim perante
situaes diversas, a necessitar de maior estudo e sistematizao.
32
A N / T T , Mosteiro
de Semide,
lv. 18. A e n t r a d a d o c u l t o d o S a g r a d o C o r a o d e J e s u s n o m o s t e i r o b e n e d i t i n o de S e m i d e d a t a , p e l o m e n o s , d e 1 7 3 7 . E s t e c u l t o
foi d i v u l g a d o na E u r o p a a p s 1691, a partir das r e v e l a e s da irm salsia M a r g a rida Maria Alacoque. A devoo em causa aponta no sentido duma maior interior i z a o da v i v n c i a religiosa, b a s e a d a na o r a o m e n t a l , a s p e c t o s q u e , c o m o sal i e n t o u L. C h t e l l i e r , n o e s t a v a m , n a p o c a , a o a l c a n c e d e t o d o s o s c a t l i c o s . O
culto destaca o interior de Jesus, o seu c o r a o espiritual e o seu a m o r misericordioso, r e m e t e n d o para o Cristo que sofreu e morreu pelos pecados da H u m a n i d a d e
e q u e se o f e r e c e atravs da Eucaristia. U m a o r a o p o r t u g u e s a d o s finais d o s c u l o
XVIII expressa b e m o sentido desta venerao: L e m b r a i - v o s que vosso Corao
adoravel, l e v a n d o o pezo d o s m e u s p e c c a d o s , se a f f l i g i o c o m elles at morte; n o
permittais que vossos soffrimentos, e vosso Sangue me sejo inteis; anniquilai o
meu corao criminal, e dai-me hum segundo o vosso, hum corao contrito e hum i l h a d o , h u m c o r a o p u r o e s e m m a n c h a ... (Horas de Maria Santssima
... L i s b o a ,
1 7 9 2 , p. 6 1 3 ) .
35
ri
Ji:
22
22
vulgarizao do culto do Sagrado C o r a o de Jesus no ltimo quartel do sculo XVIII por iniciativa da rainha D. Maria I. Para Fortunato de Almeida tentou-se reavivar aquela devoo em 1830, o que
s foi conseguido aps 1865 , 4 . Poder o caso de Semide contribuir para uma releitura da histria da venerao do Sagrado Corao de Jesus?
Uma das questes que continua em aberto a de saber, para cada
caso, at que ponto a criao de confrarias e a oscilao dos seus
ritmos de adeso no estaro relacionados com o e s f o r o institucional da Igreja para f o r n e c e r estruturas de e n q u a d r a m e n t o dos fiis,
controladas por clrigos, e com a eficcia da propaganda catlica na
p r o m o o de determinados cultos -,5. No existem dvidas que muitas destas confrarias foram produto da interveno eclesistica. Em
alguns bispados, como no Porto e em Miranda, as Constituies Sinodais incluam referncias obrigatoriedade dos padres erigirem uma
Confraria do Santssimo Sacramento nas suas parquias 36. Nas visitaes, os bispos ou os seus representantes instruam os sacerdotes
no sentido de criarem determinados tipos de devoes confraternais,
como as da Senhora do Rosrio, e quase obrigavam os paroquianos a
integr-las. Em 1590, o visitador que se deslocou Parquia da
Junceira, mandava ao vigrio local que e n c o m e n d a s s e muito a seus
f r e g u e s e s , a confraria de nossa senhora do rosairo, estipulando que
As O r d e n s Religiosas f o r a m extintas em Portugal e m 1834, e s t a n d o as religiosas regulares autorizadas a p e r m a n e c e r nos c o n v e n t o s e m o s t e i r o s at ao falec i m e n t o d a l t i m a m o n j a . N o c a s o d e S e m i d e , tal f a c t o o c o r r e u e m 1 8 9 6 ( c f . M a r i a
T e r e s a O s r i o d e M e l o , O Mosteiro
Beneditino
de Santa Maria de Semide.
Coimbra:
M i n e r v a , 1992, p. 2 2 ) . S o b r e a c r o n o l o g i a t r a d i c i o n a l d o f o m e n t o d o c u l t o d o
S a g r a d o C o r a o d e J e s u s e m P o r t u g a l , c f . F o r t u n a t o d e A l m e i d a . Histria
da Igreja em Portugal.
N o v a e d . P o r t o - L i s b o a : C i v i l i z a o , 1970, v o l . III, p p . 4 4 4 - 4 4 5 .
1S E n t r e o s m e i o s d e d i f u s o e p r o p a g a n d a d a m e n s a g e m c a t l i c a f i g u r a m o
s e r m o , os ex-votos, as gravuras, e s t a m p a s , retbulos e outros, a cuja d i f u s o as
confrarias esto inevitavelmente ligados. Sobre arte, confrarias e propaganda nas
c o n f r a r i a s i t a l i a n a s , c f . C h r i s t o p h e r F. B l a c k , op. cit.. p. 2 5 1 .
w
Para as Constituies de M i r a n d a (1563) e do Porto (1585), cf. respectiv a m e n t e B e l a r m i n o A f o n s o , C o n f r a r i a s e M e n t a l i d a d e B a r r o c a . In: I
Congresso
Internacional
do Barroco.
P o r t o , 1 9 9 1 , v o l . I. p. 17 e M . M a n u e l a R o d r i g u e s ,
C o n f r a r i a s d a C i d a d e d o P o r t o . . . , p. 3 8 1 . O P a p a P a u l o V , e m 1 6 0 7 , r e f o r o u e s t a
tendncia, ao manifestar a vontade da Igreja que em cada templo paroquial exist i s s e u m a c o n f r a r i a d o S a n t s s i m o ( A n t n i o X a v i e r d e S o u s a M o n t e i r o , Cdigo
das
Confrarias.
Resumo
do Direito
Eclesistico,
Civil, Administrativo
e
Criminal
Relativo
a estas Associaes.
C o i m b r a , 1 8 7 0 , p . 10).
A N / T T , Confrarias,
Irmandades.
Mordomias,
M . X X V I I , n 4 . f l s . 9 - 9 v.
Indito.
"
U m a c o l e c t n e a destas i n d u l g n c i a s e dos m i l a g r e s da V i r g e m do Rosr i o e n c o n t r a - s e n u m a d a s o b r a s d e m a i o r d i f u s o n a p o c a : F r . N i c o l a u D i a s , Livro
de Nossa Senhora.
Lisboa: Biblioteca N a c i o n a l , 1982, pp. 2 0 5 - 3 8 3
do Rosrio
(edio fac-simile). As indulgncias eram o meio usado pela Igreja para remir
as penas temporais, aps os fiis terem r e c e b i d o no c o n f e s s i o n r i o a a b s o l v i o
dos seus p e c a d o s e das penas eternas. M u i t a s f o r a m as c o n f r a r i a s p o r t u g u e s a s que
as solicitaram ao Vaticano, d e f o r m a a c o n s e g u i r e m o p e r d o das faltas dos seus
m e m b r o s e a estimularem assim o ingresso de novos irmos (cf. o interessante c a s o
d a C o n f r a r i a d a S e n h o r a d e N a z a r e m P . P e n t e a d o , Nossa Senhora
de
Nazar.
Contribuio
. . . . v o l . I. p. 1 1 7 - 1 2 0 ) . U m a r e c o l h a d o s p e d i d o s d e i n d u l g n c i a s d a s
confrarias ao Papado est a ser feita sob a orientao de Marie-Hlne Froesc h l - C h o p a r d , no m b i t o d u m p r o j e c t o da c o l e d e s H a u t e s t u d e s en S c i e n c e s
Sociales.
"
U m e x e m p l o da i n t e r v e n o d e p a d r e s s e c u l a r e s na c r i a o de c o n f r a r i a s
p a r o q u i a i s e m F e r n a n d o P o r t u g a l e o u t r o , op. cit., p p . 176 e 2 1 3 . S o b r e o p a p e l d a s
O r d e n s R e l i g i o s a s , d e s t a c a m o s os D o m i n i c a n o s e a sua a c o na d i f u s o do c u l t o
da S e n h o r a d o R o s r i o . Desde 1569 q u e P i o V a u t o r i z a r a o Geral d a O r d e m e o s s e u s
d e l e g a d o s a c r i a r e m c o n f r a r i a s d a i n v o c a o d o R o s r i o e m t o d o o M u n d o ( c f . A.
S o u s a M o n t e i r o , op. cit., p . 9 ) .
5. A L G U N S A S P E C T O S DA D I N M I C A H I S T R I C A DAS
CONFRARIAS
C o n s t a t m o s a n t e r i o r m e n t e que uma das c a r a c t e r s t i c a s do
movimento associativo portugus, entre os sculos XVI a XVIII,
consistiu na existncia de uma grande quantidade de confrarias e
irmandades relativas s devoes do Santssimo Sacramento, das
Almas do Purgatrio e de Nossa Senhora do Rosrio. V e r i f i c m o s
ainda que o aparecimento destas associaes, muitas vezes, deveu-se
iniciativa do Clero, interessado em c o n t r a r i a r os a r g u m e n t o s
protestantes, baseados na j u s t i f i c a o pela f, na recusa da indispensabilidade dos sacramentos e da venerao da Virgem e dos Santos. As autoridades eclesisticas no s se e s f o r a v a m por instituir as
c o n f r a r i a s mais necessrias prossecuo desses fins, como ainda
quase obrigavam os paroquianos a aceit-las e a sustent-las, no sentido de facultar-lhes as condies materiais necessrias para que as
c o n f r a r i a s pudessem promover com dignidade e esplendor os fundamentos do culto catlico. Recorde-se, a este propsito, a constante
preocupao pela exaltao do sacramento eucarstico, para o qual as
confrarias do Santssimo S a c r a m e n t o contriburam de modo assinalvel 40. H a v a m o s tambm referido o facto do sucesso destas novas
f o r m a s de piedade confraternal ter sido conseguido custa de outros
cultos, a e x e m p l o dos que se relacionavam com o santoral. Mas a
renovao das invocaes afectou tambm confrarias marianas. Num
dos poucos estudos de abrangncia regional, Aires de Amorim apurou para o concelho da Feira q u e o aumento do nmero de irmandades
no sculo XVIII se fez custa das que estavam centradas no culto da
Virgem, as quais se viram preteridas a favor da i m p l e m e n t a o das
irmandades do Santssimo S a c r a m e n t o 41.
40
Laurinda de Abreu, Contrarias e Irmandades: A Santificao do Q u o t i d i a n o . I n : Actas do VIII Congresso
Internacional
da Sociedade
Portuguesa
de
Estudos do sculo XVIII. A Festa. L i s b o a , 1 9 9 , p p . 4 2 9 - 4 4 0 e M a r i a F e r n a n d a E n e s ,
op. cit., pp. 2 8 2 - 2 8 7 .
41
A i r e s d e A m o r i m , Das Confrarias
do Concelho
da Feira. A v e i r o , 1 9 7 6 ,
c i t . p o r G u i l h e r m i n a M o t a , op. cit., p . 2 7 7 . P e r m i t i r o e s t e s d a d o s r e f r e a r a i d e i a
de q u e a d e v o o m a r i a n a , n o c e s s a r a d e s e d e s e n v o l v e r a o l o n g o d o s c u l o
X V I I I ? ( c f . L o u i s C h t e l l i e r , op. cit., p. 2 5 7 ) . L e m b r a m o s q u e , n o q u e s e r e f e r e a
santurios m a r i a n o s setecentistas. Maria de Lurdes Rosa apurou que estes constituam apenas 21,7% dos centros de peregrinao portugueses (Le Plerinage
P o r t u g a i s R o m e ( S a n t o A n t o n i o d e i P o r t o g h e s i , 1 7 8 6 - 1 8 2 5 ) d a n s le C o n t e x t e
du P o r t u g a l R e l i g i e u x d e la Fin d e l ' A n c i e n R g i m e ; no p r e l o ) ( A g r a d e o a u t o r a
esta informao).
42
B e r n a r d o V a s c o n c e l o s e S o u s a , A Propriedade
das Albergarias
de
vora
nos Finais da Idade Moderna.
L i s b o a : I N I C , 1990, p . 3 5 . L a u r i n d a de A b r e u . A
Santa Casa da Misericrdia
. . . . p. 3 0 - 3 1 ( A a u t o r a s a l i e n t a a p a s s a g e m de m u i t o s
hospitais para as M i s e r i c r d i a s , na s e g u n d a m e t a d e d o s c u l o X V I , i n c l u i n d o o
caso de Aljubarrota, em 1572).
4
' P. P e n t e a d o , A V i d a R e l i g i o s a . . . , p. 187.
44
A N / T T , Confrarias.
Irmandades
e Mordomias,
M . X V , r . 3, f l . 2. I n d i t o .
"
P e d r o P e n t e a d o , A C o n f r a r i a e a F e s t a d o C o r p o d e D e u s d e C s n o S c u l o
X V I , O Alcoa, n" 1 8 6 3 , 3 d e A g o s t o d e 1 9 9 5 . p p . 16 e 12, c o m t r a n s c r i o d e A N /
/ T T , Chancelaria
de D. Joo III, l v . 2 3 , f l s . 3 4 - 3 4 v.
41
1740
A n t n i o d e S o u s a A r a j o , Visitaes
(Para
o Estudo
da Pastoral
a S. Loureno
e da Histria
Social
de Carnide
de Lisboa).
de 1600
Braga:
Ed.
4
" Sobre a interferncia de representantes rgios em casos de precedncias
d e i r m a n d a d e s , c f . P. P e n t e a d o . Nossa Senhora
de Nazar.
Contribuio...,
v o l . I,
p. 1 5 8 - 1 5 9 . N o q u e c o n c e r n e p a r t i c i p a o e m c a s o s d e a n e x a o d e a s s o c i a e s ,
c f . p o r e x e m p l o A N / T T , Desembargo
do Pao, C o r t e , E s t r e m a d u r a e I l h a s , M .
2 1 4 2 , n 11 ( p r o c e s s o d e 1 8 2 0 , n o q u a l a M i s e r i c r d i a d e T o m a r s o l i c i t a a o D e s e m b a r g o a a n e x a o da C o n f r a r i a d a S e n h o r a do R o s r i o de S a n t a M a r i a dos Olivais e d o s seus bens). Para a i n t e r v e n o da Igreja em casos de p r e c e d n c i a e crit r i o s u s a d o s , c f . A . S o u s a M o n t e i r o , op. cit., p. 7 3 .
49
L e o p o l d o d a R o c h a , As Confrarias
de Goa (Sculos
XVI-XX)
Conspecto
Histrico-Jurdico.
Lisboa: C E H U , 1973. pp. 124-142, cit. p o r F r a n c i s c o B e t h e n c o u r t , op. cit., p. 151.
localidades 50. A conflituosidade externa desencadeada pelas confrarias foi sobretudo notria quando se tratava de defender os seus direitos jurisdicionais perante as autoridades religiosas, concelhias, senhoriais ou ainda perante as confrarias concorrentes. Um dos casos
conhecidos diz respeito aos sucessivos c o n f r o n t o s da C o n f r a r i a da
Senhora de Nazar com o vigrio da matriz da Pederneira, com os
visitadores do Arcebispado de Lisboa e com o donatrio dos Coutos de
Santa Maria de Alcobaa, para o que obteve a colaborao da Coroa. Mas nem todas as associaes religiosas dispunham de igual
capacidade conflitual, sendo necessrio, muitas vezes, recorrer
solidariedade de instituies com interesses afins 5I .
6. AS C O N F R A R I A S , A IGREJA E A C O R O A
A questo dos direitos jurisdicionais das organizaes confraternais do Antigo Regime remete-nos para o reconhecimento social do
seu estatuto jurdico-institucional e para o grau de poder a u t o n m i c o
das confrarias. O problema assume contornos aliciantes para a investigao se atendermos que o espao de actuao jurisdicional destas
associaes, bem como as suas competncias especficas, foi definido
pela Igreja e pelo Estado, que c h a m a r a m a si os instrumentos legitimadores destes organismos sociais.
Com efeito, a Igreja procurou legitimar e controlar a existncia
das confrarias, principalmente atravs da confirmao dos compromissos, a que se adicionaram outros meios de controle, tais como a
aprovao de contas e a superviso nos processos eleitorais 52. Este
50
F r a n c i s c o Z a g a l l o , Histria da Misericrdia
de Alcobaa.
[Alcobaa], 1910,
p. 1 9 4 - 2 0 3 e P e d r o P e n t e a d o , A M i s e r i c r d i a d a P e d e r n e i r a e m 1 7 7 8 . Voz da Nazar', n 1 6 3 , N o v e m b r o 1 9 9 0 . p . 4 .
51
Pedro Penteado, A Casa de Nossa Senhora da Nazar Face aos C o n f l i t o s
J u r i s d i c i o n a i s d e 1 6 4 1 - 1 6 4 2 . Penlope.
Fazer e Desfazer
a Histria.
1993,(9/10),
pp. 115-126. U m e x e m p l o das relaes solidrias das c o n f r a r i a s c o m as organizaes que f a z i a m parte da sua v i z i n h a n a , a c o n t e c e u em 1628, q u a n d o h o u v e nec e s s i d a d e de e x p u l s a r d o R o c i o da R o d a o s f r a d e s b e r n a r d o s d e A l c o b a a . Para o
e f e i t o , c o l i g a r a m - s e a C m a r a a l c o b a c e n s e e a I r m a n d a d e da M i s e r i c r d i a d a vila.
52
C f - , e n t r e o u t r o s , A n t n i o d e S o u s a A r a j o , Visitaes
a S. Loureno
....
pp. 16, 2 2 e 27 ( c a s o s de f u g a a o c o n t r o l e d a s c o n t a s p e l o s v i s i t a d o r e s ) e M a r i a
F e r n a n d a E n e s , As Visitas Pastorais
da Matriz de So Sebastio
de Ponta
Delgada
(1674-1739).
P o n t a D e l g a d a , 1 9 8 6 , p p . 8 5 - 8 6 ( o r d e m p a r a a n u l a r as e l e i e s q u e se
realizassem sem a presena do vigrio).
"
J s Q u e l h a s B i g o t t e , op. cit., p . 7 6 ( O a u t o r e n u m e r a a l g u m a s s i t u a e s
que fugiam a esta regra).
54
Constituies
Sinodais
do Arcebispado
de Lisboa. L i s b o a O r i e n t a l . O f . F i l i p e V i l e l a . 1 7 3 7 , p. 10.
55
C f . o Regimento
de como os Contadores
das Comarcas
h de Prouer
sobre
as Capellas.
Ospitaes,
Albergarias,
Confrarias,
Gafarias,
Obras. Teras, e Residos. L i s b o a : J. P. B o n h o m i n i , 1514, p a r a a l m d e A n t n i o M a n u e l H e s p a n h a . As
Vsperas
do Leviatham.
L i s b o a , 1 9 8 7 , vol. I, p. 2 8 9 ( b a s e a d o n a s O r d e n a e s
F i l i p i n a s , L v . I , tit. L X I I , art. s 3 9 - 6 6 ) .
e/ou altares adstritos aco das confrarias. Na sequncia das determinaes do Conclio de Trento, as Ordenaes Filipinas estabeleciam ainda que os provedores no poderiam impedir a presena do
representante do Ordinrio nestes estabelecimentos, a no ser nos
casos em que estes estivessem sob a imediata proteco rgia, como
sucedia com as Misericrdias 56 .
Neste contexto, compreende-se que na segunda metade do sculo XVIII, no mbito duma poltica regalista, a Coroa tenha procurado demonstrar a inexistncia de intervenes dos bispos na criao da maior parte das associaes religiosas. No era uma tarefa
muito difcil de empreender, atendendo a que antes de 1604 no era
necessrio um registo escrito da parte da Diocese para erigir uma
confraria, bastando uma licena verbal do Bispo. Assim, tornava-se
muitas vezes difcil comprovar a criao cannica de muitas das associaes de leigos mais antigas. Esta situao era agravada com o facto
de muitas delas terem destrudo os seus arquivos ou, simplesmente,
no conseguirem j recuperar os documentos mais importantes e a
i n f o r m a o que neles constava 5 7 . Valendo-se desta situao, em Maio
de 1791, a Coroa ordenava que o provedor e contador da Real Fazenda com alada na comarca de Viana da Foz do Lima ... obrigasse
as confrarias a apresentar-lhe as licenas primordiais, ficando eclesisticas as que mostrassem do Ordinrio, antes de terem feito acto de
festividade e confraternidade, e seculares todas as restantes 58 . Este
princpio parece estar assegurado nos finais do sculo XVIII, como
resultado do e s f o r o do Estado para controlar o maior nmero possvel destas organizaes, principalmente ao longo da segunda metade da centria de setecentos 59.
5,1
A. S o u s a M o n l e i r o , op. cit., p . 108. S o b r e a e x i s t n c i a d e d i s p o s i e s d e s t e t e o r n a l e g i s l a o d i o c e s a n a , c f . G u i l h e r m i n a M o t a , op. cit.. p . 2 7 0 .
"
Entre outros, cf. Pedro Penteado, Os A r q u i v o s dos Santurios Marianos
P o r t u g u e s e s : N o s s a S e n h o r a d e N a z a r ( 1 6 0 8 - 1 8 7 5 ) . Cadernos
BAD, 2, 1 9 9 2 ,
p p . 1 7 3 - 1 7 4 e 179; A n t n i o d e S o u s a A r a j o , Visitaes
a S. Loureno
.... p . 3 8 : M a ria H e l e n a C o e l h o , op. cit., p . 164 e G u i l h e r m i n a M o t a , op. cit., p . 3 0 0 . P a r a u m a
listagem de obras sobre arquivos de confrarias existe o trabalho de Aires Augusto
d o N a s c i m e n t o , Bibliografia
dos Arquivos
Portugueses.
L i s b o a : 1PA, 1 9 9 1 , p p . 2 6 -27.
58
F r a n q u e l i m N e i v a S o a r e s , Monografia
de So Pedro de EsmerizFamal i c o : C m a r a M u n i c i p a l d e V i l a N o v a d e F a m a l i c o , 1 9 8 7 , p. 3 7 6 .
"
Cf. a p r o v i s o de 6 de J u n h o de 1785 e m c o m o s o de j u r i s d i o real todas as c o n f r a r i a s que no f o s s e m f u n d a d a s pelo O r d i n r i o , citada por Manuel
A partir de 1765, em Minas Gerais (Brasil), a Monarquia conseguira impr a sua alada sobre a maior parte das c o n f r a r i a s e
irmandades, atravs da obrigatoriedade destas r e f o r m a r e m os seus
c o m p r o m i s s o s , f a z e n d o - o s passar pelo conhecimento do Tribunal da
Mesa da Conscincia e Ordens 60. Em 1767, em bidos, no processo
da aprovao do c o m p r o m i s s o da Irmandade da Misericrdia, que
substitua o de 1633, sem a assinatura real, vinha claramente explicitado que sem a ditta Authoridade , nenh vigor se pode dizer que tem
[o referido c o m p r o m i s s o seiscentista], de ley particular 6! . Em 1772,
na Irmandade do Santssimo Sacramento de Cs, uma associao
aprovada pelo Bispo D. Rodrigo da Cunha em 1636, o Provedor de
Leiria no se coibia de examinar o seu c o m p r o m i s s o , em observncia das Reaes Ordens de Sua Magestade, nele no encontrando
Clausula ou Capitolo, opposto s Leys do mesmo Senhor 62. Alguns
anos mais tarde, em 1781-1782, a Irmandade do Santssimo Sacramento de Coruche, erecta cerca de 1542, depois de ter apresentado o
seu c o m p r o m i s s o autoridade episcopal, levava o d o c u m e n t o aprovao da Coroa. A posio do d e s e m b a r g a d o r que analisou o documento era inequvoca: A no ter havido ... logo na primordial fundao desta confraria a aprovao do ordinrio, mas sim tendo havido
hum so acto de c o n f r a t e r n i d a d e sem previa licena do Prelado Diocesano, ficou sendo desde logo a confraria pelo mesmo direito, e
facto, Real, sem que a posterior a p r o v a o pedida ao Ordinrio por
inadvertncia dos confrades fizesse mudar a primeira qualidade de
Real. E, mais adiante, acrescentava que o d o c u m e n t o no continha
em cousa algu contraria as leys do estado, devendo-se emendar
B o r g e s C a r n e i r o , Mappa Chronologico
das Leis. L i s b o a , 1 8 1 6 , p. 6 0 4 . A l e g i s l a o
p o s t e r i o r r e f o r a e s t a p o s i o ( c f . A. S o u s a M o n t e i r o , op. cit., p. 2 2 ) . E m E s p a n h a ,
a legislao c a m i n h a v a em sentido idntico. Em 1783, o C o n s e l h o d e C a s t e l a proibia
a f u n d a o d e c o n f r a r i a s s e m l i c e n a d o m o n a r c a , o r d e n a n d o a r e d a c o de n o v o s
e s t a t u t o s ( c f . R i c a r d o G a r c i a V i l l o s l a d a ( d i r . ) . Historia
de la Iglesia
en
Espana.
M a d r i d : E d . C a t l i c a , 1 9 7 9 , v o l . I V , p. 5 9 8 ) . R e g r e s s a n d o a o c a s o p o r t u g u s , a
tendncia para o controle rgio das irmandades na segunda metade do sculo XVIII
m a n i f e s t o u - s e a i n d a na i n v e n t a r i a o d a s s u a s p r o p r i e d a d e s f u n d i r i a s , d o s s e u s
emprazamentos, e no aparecimento de diplomas restritivos do aumento destes bens
atravs de legados pios.
1,0
C a i o C s a r B o s h i , Os Leigos
e o Poder.
Irmandades
Leigas
Colonizadora
em Minas Gerais. S o P a u l o , 1 9 8 6 , p . 116.
61
A N / T T , Casa das Rainhas,
M. 375. Indito.
bi
P. P e n t e a d o e C . E r e i o , op. cit. ( f l . 10 d o c o m p r o m i s s o ) .
Poltica
65
No que diz respeito aos pedidos de proteco rgia, esto ainda por estudar
a maior parte dos processos sobre o tema. Muitos destes privilgios foram concedidos
a irmandades do norte de Portugal, na segunda metade do sculo XIX (cf., a ttulo
d e e x e m p l o , A N / T T , Registo
Geral de Mercs,
D. P e d r o V , L v . 15, f l . 17 v. e A N /
T T , Registo
Geral de Mercs,
D. L u s I, L v . 8, f l . 3 9 ) .
nuel, a pedido do provedor e dos oficiais da irmandade e ainda atravs da inscrio do Rei como irmo, e da r e c o m e n d a o daquele tipo
de instituies para outros pontos do pas. Infelizmente, no possumos muitos estudos que permitam ver como se processou a instituio da proteco dos monarcas a todas as irmandades que vieram a
ter este privilgio. No caso da C o n f r a r i a de Nossa Senhora de Nazar,
a Realeza aproveitou a necessidade dos irmos pretenderem escapar ao controle do Abade de Alcobaa e do vigrio paroquial para
estender, pouco a pouco, o seu manto protector sobre aquela associao,
atravs de:
1) imposio das modalidades da sua organizao e do seu
funcionamento, com a realizao do regimento por oficiais rgios;
2) crescente fiscalizao das actividades da confraria atravs dos
provedores da Comarca;
3) introduo de alteraes ao regimento, no sentido de restringir a capacidade de interveno da elite local, atravs da introduo
do cargo de administrador (de nomeao rgia), da anulao do poder de deciso dos mesrios no que diz respeito alienao patrimonial dos bens da instituio, da extino rgia dos processos
eleitorais e da passagem para um sistema de nomeao rgia dos
mordomos 6fi.
Por aqui se pode constatar que, por vezes, as c o n f r a r i a s tornaram-se refns das suas prprias estratgias, permitindo a crescente interferncia da Realeza na vida das associaes de leigos. O caminho
estava aberto para a aceitao da interferncia do Estado na esfera
confraternal e a crescente secularizao das c o n f r a r i a s na poca
Contempornea. Ao mesmo tempo, definia-se o percurso para a reduo da sua autonomia e da capacidade de orientao que a Igreja
detinha sobres as associaes religiosas.
7. NO I N T E R I O R DAS C O N F R A R I A S : R E L A E S
SOCIABILIDADE E PODER
DE
P. P e n t e a d o , Nossa
pp. 192-250.
Senhora
de Nazar.
Contribuio
. . . . v o l . I, s o b r e t u d o
Os c o m p r o m i s s o s no s j u s t i f i c a v a m c o m o respeitavam as
diferenas de identidade de grupo numa sociedade baseada na desigualdade e na ideia de corpos sociais aos quais os indivduos pertenciam por nascimento ou aquisio. Foi o que aconteceu em vrias
confrarias mistas do litoral, nas quais se manteve a bipolarizao
existente na comunidade local, a qual separava os homens de terra
e os homens do mar. O regimento rgio da C o n f r a r i a de Nossa Senhora de Nazar de 1660-1661, por exemplo, indicava que os elleitos sero pessoas das principaes, e das de maior satisfao assim dos
homens da terra como do mar na forma que he costume. curioso
notar que esta obrigao surgia num perodo em que os homens de
terra conseguiam conquistar reas de interveno que anteriormente
pertenciam aos martimos. T a m b m a separao entre os irmos brancos e os escravos das irmandades de pretos em Portugal, acabava por
justificar a supremacia dos primeiros sobre os escravos pretos. N o
Porto, para entrarem na agremiao, estes necessitavam de ter a
anuncia dos seus senhores, concedida por escrito. Por outro lado,
determinadas actividades, como o domnio dos registos escritos das
irmandades, tendiam a ser um exclusivo dos brancos 67.
Mas outras distines mais importantes operavam-se no mago
das associaes confraternais. Uma delas foi a que separou os irmos
que tinham acesso a cargos da mesa dos que ficavam afastados deles,
sobretudo se tivermos em conta a tendncia para concentrar numa
oligarquia os nveis de deciso dos principais assuntos das irmandades. Esta situao era agravada com a frequente perpetuao nos
cargos, por parte dos indivduos escolhidos, a qual fazia com que um
nmero cada vez mais escassos de irmos acedesse aos rgos directivos 68. Por outro lado, tambm dentro do conjunto de eleitos era
notria uma certa distino. Existiam cargos mais relevantes do que
67
P. P e n t e a d o . Nossa Senhora
de Nazar.
Contribuio
.... v o l . I, p . 2 3 5 . S o bre as c o n f r a r i a s de e s c r a v o s pretos, cf. M. M a n u e l a Martins R o d r i g u e s , C o n f r a r i a s d a C i d a d e d o P o r t o . . . , p. 3 8 8 e I s a a s d a R o s a P e r e i r a , Dois Compromissos
de
Irmandades
de Homens Pretos. L i s b o a , 1 9 7 2 , p . 3 5 ( s e p . ) .
68
Sobre a tendncia para a oligarquia ao nvel dos concelhos, a partir do
s c u l o XVI, cf. M a r i a H e l e n a da C r u z C o e l h o e J o a q u i m R o m e r o de M a g a l h e s , O
Poder Concelhio.
Das Origens
s Cortes
Constituintes.
C o i m b r a : C E F A , 1986,
s o b r e t u d o pp. 4 1 - 4 4 . P a r a a v a l i a r a s i t u a o n a s c o n f r a r i a s , c f . P. P e n t e a d o , Nossa
Senhora
de Nazar.
Contribuio
. . . , v o l . I, p p . 2 4 0 - 2 4 3 e V i t o r F . A l v e s ,
S o c i a b i l i d a d e C a m p o n e s a e m S a z e s d e L o r v o n o s S c u l o s X V I I e X V I I I . Ler
Histria.
2 4 , 1 9 9 3 , p o n t o 5.
L a u r i n d a d e A b r e u , C o n f r a r i a s e I r m a n d a d e s d e S e t b a l . . . , p. 129.
G u i l h e r m i n a M o t a , op. cit., p. 2 8 3 .
72
P e d r o P e n t e a d o . O S a n t u r i o d a N a z a r e n t r e 1781 e 1 7 8 6 .
Histria,
n 142, J u l h o d e 1 9 9 1 , p p . 5 1 - 5 9 ( p a r a o c a s o d o b a c h a r e l A g o s t i n h o J o s S a l a z a r )
e P. P e n t e a d o , Nossa Senhora de Nazar. Contribuio...,
v o l . I, p . 2 4 0 ( p a r a o c a s o
71
G u i l h e r m i n a M o t a , op. cit., p. 2 7 9 .
G u i l h e r m i n a M o t a , op. cit.. p. 2 7 9 , F. Z a g a l l o , op. cit., p. 7 3 e P. P e n t e a d o ,
Nossa Senhora
de Nazar.
Contribuio...,
v o l . I, p . 2 3 6 e v o l . II, p . 119: e r a
frequente os c o m p r o m i s s o s das c o n f r a r i a s conterem indicaes no sentido de
exclurem todos os que no tivessem l i m p o sangue sem raa de j u d e u m o u r o mulato nem d e s c e n d e n t e s d e outra a l g u m a infecta n a o , c o m o a c o n t e c i a no c a s o da
C o n f r a r i a da S e n h o r a d a N a z a r da Prata G r a n d e .
74