Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves
Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves
Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves
de
Mais que impresses, em certos momentos escarificao de leitura, que por um lado
remete quela tatuagem sem tinta, por outro a corte na carne mesmo. Mas antes do
tema, algumas observaes pessoais. No h literatura sem leitor e leitura, nesse sentido
tem sido frgil, incompleta, nossa literatura brasileira, s de autores e editores.
Quanto a leitura, aqui significando a transformao, em milsimos de segundo, de
fieiras de palavras escritas, num misterioso e fugaz mundo que guarda sentido com o
mundo real e imaginado em que vive o leitor concreto, no o abstrato. Na minha
opinio, o principal critrio para classificar uma obra no campo da literatura o leitor.
Se identifico minha pertinncia a um certo segmento histrico e social, e se o texto em
minhas mos remete ao meu universo simblico de leitor negro, afro-descendente etc.,
ento essa literatura negra, afro-descendente. No existe o universal, espria
criao da cultura que se assume hegemnica, espria porque com o conceito protesta
para si mesma excelncia que jamais teve. Toda produo cultural tem raiz num
determinado cho do Planeta. A fruio da obra que particular. A soma dessas
fruies particulares no cria nada de universal, cria um conjunto particular mesmo.
Encontrei na obra aquilo que, penso, o autor quis passar: um presente (ou presena) do
passado ou seu futuro, de seres humanos e mundos especficos...O que encontrei,
parece, j estava em nossas clulas e sinapses, talvez por termos sido humanizados
numa imensa Ba(h)ia, de que so tributrias correntezas culturais (e histricas)
oriundas de vrios continentes e eras.
Eis o grande e mpar atributo de Um defeito de cor: nos provar que o sentimento de
brasilidade que nos especfico, brasilidade afro-descendente o seqestro, os trs
sculos de trabalho sob escravido, a obra de povoamento e humanizao das Amricas
nos prprios ombros, 500 anos de trabalho pesado em regime de pobreza, racismo e
excluso, essa saga que s nossa, devia impor a reverncia dos demais grupos
humanos, mais ainda, devia ser vista e valorizada como parmetro para um novo
mundo, ou no teremos novo mundo nenhum. No momento em que termino este
pargrafo vem-me mente, e registro, a figura de dois jovens, menino ou menina, mas
negros, quietos, humildes e humilhados no canto de uma sala de aula de escola pblica
AS IMPRESSES
Na minha apropriao dos diferentes olhares que viram, viveram e escreveram, ou seja,
na minha leitura e resenha, desconsidero qualquer voto de obedincia a princpios que
visem certificar como culto, acadmico, o meu olhar de leitor. A leitura minha, vejo o
que quero. Assim, com o que j tinha na cabea ao fazer meus, os olhos que direta ou
indiretamente viram e narraram, eis o que, puxando pela memria, sinto que vi:
Muito me marcou o ataque aldeia de Kehinde, l naquele ponto perdido aps a regio
do Sahel, l pros lado do Benim, quando ela e a irm gmea Taiwo, na faixa dos cinco,
seis anos, percebem a chegada dos soldados do rei Adandozan, destruindo as aldeias
cata de prisioneiros a serem vendidos como escravos. A cena se completa com o
assassinato do irmo Kokumo, bem mais novo que elas, e o estupro e assassinato da
me pelos mesmos soldados. Na mesma cena, a forada e incompreendida masturbao
aos dois soldados por essas meninas, o membro duro em suas pequenas mos, sem
funo ou sentido, a sobrevivncia delas e da av por obra do destino, a fuga para Uid,
onde nos dias imediatos h o seu seqestro, tomadas como mercadoria enquanto
passeavam quase frente de casa, s queriam conhecer o que lhe disseram ser a
cidade, o embarque no tumbeiro, a av implorando para acompanhar as netas no
cativeiro, a reverncia africana ao traficante portugus, considerado um deus, a
travessia da av e das netas gmeas, o cmulo da promiscuidade e podrido do poro
do tumbeiro, o imposto cobrado pelo mar, no mnimo 1 em cada 20 fica comigo, a
lgica do negcio sujo impondo aos donos da carga a concesso de um mnimo daquele
algo que possa ser entendido como arremedo de bom trato, sob risco de perda total
da carga.
Na sucesso de eventos no h decalque ou referncia a essa ou quela narrativa moral
preexistente, e j estamos no incio do sculo XIX, ou seja, para os europeus, as teses
iluministas vivem sua ps-adolescncia, 18 sculos de prdica filosfica e evanglica j
se passaram, embora nesse ento como ainda hoje, dois sculos aps, religio e
filosofia, se no promovem o modo de produo da existncia real, aqui e agora, so
descartveis.
No nvel da justificao moral a partir da viso do mais forte, seja este europeu ou as
elites africanas, seqestro e escravido so percalos do encontro de povo civilizado
com povo sub-brbaro (viso europia), ou resultante do exerccio de prerrogativa da
nobreza e do poder, caso africano. No nvel da ao, da prxis como se diz, todos so
brbaros, sub-brbaros, agem consoante a lgica de um sistema de trocas rebelde a
qualquer anlise que contemple valores transcendentais concernentes vida, ao sentido
Inimiga atroz de Kehinde, que como j se sabia desde a compra no armazm teria seu
hmen violado e tero fecundado pelo Jos Carlos, Ana Filipa, algum tempo aps a
morte deste, para no ter competidora quer como me putativa do filho de Jos Carlos
com Kehinde, o Bonjoko (que ela transfigura como seu e do marido morto) quer no
desfrute sexual de um jovem escravo, eventual namorado de Kehinde, Ana Filipa aps
anos de perseguio jovem escrava, a aluga a uma famlia inglesa; depois, querendoa mais longe, torna-a escrava de ganho e ordena que v se virar nas ruas de Salvador.
A trama que leva morte de Jos Carlos um rosrio de atos violentos. No dia do
estupro, ele manda que seu capataz avise a Kehinde que a espera num cubculo da
fazenda. Loureno, escravo na mesma idade da jovem virgem e seu admirador, movido
pelo cime tomou a defesa da vtima, empurrando ou dando um soco no garanho sinh
Z Carlos...Deu-se mal. O garanho deu-lhe castigo exemplar. Ali mesmo, os trs num
cubculo, ele possesso, no s possuiu Kehinde, como tambm sodomizou o pobre
Loureno e a seguir o castrou, decepando seu membro faca e a sangue-frio. Mas a
vingana sobre ele foi brutal. Uma serpente sob os lenis do leito conjugal pica-lhe o
pau, condenando-o a uma morte vil. Viva, Ana Filipa acrescenta ao seu script a
administrao da fazenda e o exerccio de me vicria, substituta, de Bonjoko, filho de
Kehinde, menino que por um lado escravo, coisa, propriedade sua, e por outro, o filho
do homem que, sua maneira, ela amava, logo em certo sentido seu filho tambm...Na
dinmica dos sentimentos, contradio em cima de contradio.
No caso do Brasil e Caribe, com o escravo a religiosidade africana transplanta-se, vem
agarrada sua pele. A histria do ritual das sete portas ou doze rvores, ritual a que o
escravo antes de embarcar era levado a submeter-se com o fito de esquecer sua cultura,
esse ritual se existiu no produziu efeito no Brasil. Em Salvador h vodum com
vodnsis, inkisi e encantados, h candombls, cada qual cultuando seus orixs, com
pai de santo e com me de santo, h parteiras e rezadeiras na tradio africana , h
jogadores de bzio, sacerdotes de If, h adivinhos e feiticeiros muulmanos, h uma
sofisticada culinria milenar, enfim, h a Um brasileira (termo que significa a
comunidade dos crentes muulmanos) organizada em torno dos seus Mala, Limane e
Aluf. So esses homens e essas instituies culturais que aos escravos e aos europeus
vo dar respostas definitivas ou provisrias sobre toda a gama de questes essenciais
vida na dimenso do indivduo e do coletivo: e o meu destino, meu futuro, a minha
sade, a minha potncia sexual, o meu feto, o meu filho, meu trabalho, meu
emprego, minha dor, meu sofrimento, sorte, azar, meus chifres, meus crimes, minhas
culpas, meu inimigo, meu amor?.. E Meu orix, meus santos, e o pacto que meu
filho abiku fez l no Olorum?
A cultura europia ser muda a essas questes ou, no mximo, vincular respostas ditas
cultas, condicionadas renda e erudio do demandante. Ao contrrio, para a frica,
no h outra funo que se possa dar a essa coisa que o branco chama de narrativas
estruturantes seno a de atender ao homem/mulher, independente da condio social,
relig-lo a uma outra dimenso, fazendo com que esse ser humano seja de fato cidado
de dois mundos, alis, como o tudo que h no Multiverso, antes chamado Universo.
aqui que o africano tornado coisa, como o foi Kehinde ou Lusa, se levanta como
criador de civilizao. E dado que a escravido no Mundo (no nos feudos civilizados
da Antiguidade) negra e s negra, todas as contradies do escravo manifestam-se
aberrativamente sobre o homem e mulher de cor, isto , negro ou negra: so dignos e
lindos, mas tornados ndices da feira e da indignidade; primeiros humanos, mas no
olhar do europeu so tornados coisas, mutao gentica degenerada que no obstante,
continuam a inventar e propagar cultura e civilizao; enfim, se maioria, so tornados
invisveis e passam minoria. Cmulo da ironia, deletado da Histria Universal dos
alems (coisa ridcula esse tipo de histria universal), o mundo negro africano faz do
mundo dito ocidental tremenda mentira. Sem a frica como bero da civilizao, tudo
vira mentira. ridculo o multissecular af supremacista por tornar branco os 5 mil
anos de Histria do Egito.