VALENTE Wagner Que Geometria Ensinar
VALENTE Wagner Que Geometria Ensinar
VALENTE Wagner Que Geometria Ensinar
Uma breve
histria da redefinio do conhecimento
elementar matemtico para crianas
Wagner Rodrigues Valente*
Resumo
O artigo aborda a geometria para crianas, seu ensino para
alunos das primeiras sries escolares. Leva em conta, inicialmente, a trajetria da Geometria para o nvel elementar, desde,
praticamente, a Independncia do Brasil. Nessa anlise, evidencia a permanncia de contedos da geometria euclidiana
at quase meados do sculo XX. Em seguida, analisa as propostas de alterao do ensino de Geometria elaboradas na dcada
de 1960. Com isso, procura mostrar as intenes de modificar
os contedos desse ramo matemtico, em busca da redefinio
Palavras-chave
Educao Matemtica; ensino primrio; geometria; histria da
Educao Matemtica.
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Abstract
The article discusses geometry for children and its teaching for
students from early grades. It takes into account, firstly, the geometry journey at the elementary level since practically the Independence of Brazil. This analysis highlights the presence of
Euclidean geometry contents up to the mid-twentieth century.
It then analyzes the proposed amendment to the teaching of
geometry developed in the 1960s. Thus, this article attempts
to show the intentions to modify the contents of this branch of
mathematics in search of a redefinition of the new elementary:
a new elementary knowledge of geometry, coming from the appropriation processes of the contributions made by studies of
cognitive psychology.
Key words
mathematics education; primary education; geometry; history
of mathematics education.
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Preliminares
Ao que parece, os movimentos pedaggicos tm como caracterstica marcante a
metodologia do ensino. Explicando melhor: a chegada de uma nova corrente pedaggica se d, sobretudo, por propostas diferentes de ensinar a crianas e adolescentes
as matrias escolares. Assim, o ensino tradicional embate-se com a proposta de um
ensino mais ativo. O ensino intuitivo trava batalha com o estudo de memria, dos processos que levam os alunos a decorarem as lies. O que fica conhecido na histria da
educao matemtica como Movimento da Matemtica Moderna MMM tambm
coloca em cena o debate das metodologias, dos modos de tratar os temas escolares.
E, neste ponto, sem muito discorrer sobre o MMM, cabe anotar que, sobretudo, entre
as dcadas de 1960-1980, atravs de um movimento internacional, pretende-se alterar o ensino de matemtica nos nveis elementares. Busca-se uma aproximao maior
entre o nvel superior de ensino e aquele ministrado no curso secundrio e, tambm,
no primrio1. A esse tempo, voz comum a divulgao da perfeita articulao entre os
avanos da Psicologia cognitiva (Jean Piaget) e a Matemtica organizada atravs das
estruturas algbricas (Grupo Bourbaki2). O perodo, na Educao Matemtica, tem
como cone a incluso da Teoria dos Conjuntos no currculo escolar.
Mas, para alm das discusses metodolgicas, o MMM faz surgir algo um tanto
incomum, diante daquilo que caracteriza os movimentos pedaggicos. O Movimento
trata de redefinir o que at ento se considerava elementar para o ensino de Matemtica. Isso significa uma interveno direta sobre os contedos a ensinar.
Este texto aborda a Geometria para crianas. Considera que o exemplo das propostas de alterao do ensino de Geometria revelador das intenes de modificar
os contedos desse tema matemtico, em busca da redefinio de um novo elementar. Alm disso, o estudo analisa o modo de apropriao da proposta modernista para
o ensino de Geometria nas sries iniciais.
Histria cultural da
Educao Matemtica:
rgua, compasso, esquadro...
Em A histria cultural entre prticas e representaes, uma de suas obras talvez das mais
conhecidas e utilizadas por pesquisadores da
histria da educao no Brasil , Roger Chartier,
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desde o ttulo, parece j tentar esclarecer do que trata o ofcio do historiador cultural: ser ele um trabalho que se situa entre prticas e representaes. Para chegar
a essa sntese, Chartier ir, paulatinamente, levar o leitor de consideraes amplas
sobre a histria e a sua transformao ao longo dos ltimos tempos, aos conceitos e
s ferramentas intelectuais necessrios ao entendimento da problemtica do mundo como representao. Assim que na Introduo de sua obra, Chartier (1990,
p. 16-17) menciona como pensa a histria cultural: A histria cultural, tal como a
entendemos, tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares
e momentos uma determinada realidade social construda, pensada, dada a ler.
E como a realidade social construda, pensada, dada a ler? Chartier vai desenvolver nesse texto uma categoria fundamental para essa anlise. Trata-se do conceito
de representao. A elaborao desse conceito passa inicialmente por aquilo que ele
no . Pela contraposio quilo que j estava posto numa historiografia anterior
quela da histria cultural. Assim, o conceito de representao supera os debates
historiogrficos que contrapunham a
objetividade das estruturas (que seria o terreno da histria mais segura,
aquela que, manuseando documentos seriados, quantificveis, reconstri
as sociedades tais como eram na verdade) e a subjetividade das representaes (a que estaria ligada uma outra histria, dirigida s iluses de discursos
distanciados do real). Tal clivagem atravessou profundamente a histria,
mas tambm outras cincias sociais, como a sociologia ou a etnologia, opondo abordagens estruturalistas e perspectivas fenomenolgicas, trabalhando as primeiras em grande escala sobre as posies e relaes dos diferentes
grupos, muitas vezes identificados com classes, e privilegiando as segundas o estudo dos valores e dos comportamentos de comunidades mais restritas, frequentemente consideradas homogneas. (Chartier, 1990, p. 18).
Superar a histria estruturalista parece, hoje, algo j consolidado. Todo o movimento que toma conta dos diferentes saberes durante dcadas no sculo XX, inclusive da Matemtica, entra em refluxo nas dcadas finais do sculo passado. Talvez o
que deva ficar mais ntido seja a superao da outra vertente que se confronta com
o estruturalismo a partir do que Chartier chama de subjetividade das representaes. Ultrapassar o modo de pensar nas representaes como esquemas psicolgi-
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cos, subjetivos, sejam eles coletivos ou individuais, vai levar o autor a dedicar muitas
pginas em sua obra.
Mas, ento, o que representao? Chartier, em aluso ultrapassagem do carter de subjetividade que, a princpio, poder-se-ia atribuir ao conceito, d-lhe outra
substncia, ao afirmar que,
mais do que o conceito de mentalidade, ela (a noo de representao)
permite articular trs modalidades da relao com o mundo social: em
primeiro lugar, o trabalho de classificao e de delimitao que produz
as configuraes intelectuais mltiplas, atravs das quais a realidade
contraditoriamente construda pelos diferentes grupos; seguidamente,
as prticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma
maneira prpria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto
e uma posio; por fim, as formas institucionalizadas e objetivadas graas
s quais uns representantes (instncias coletivas ou pessoas singulares)
marcam de forma visvel e perpetuada a existncia do grupo, da classe ou
da comunidade. (Chartier, 1990, p. 23, grifo nosso).
Pensar assim a relao com o mundo social, isto , atravs das representaes,
coloca em cena, de acordo com Chartier, a discusso sobre como lidamos com elas.
Se, ao nos relacionarmos com a realidade, fazemos isso atravs das representaes,
como operamos com elas? Como fazemos uso delas?
Para responder a tais questes, Chartier traz a seu trabalho o que alicerou empiricamente s suas investigaes: os estudos histricos sobre o livro e a leitura:
A problemtica do mundo como representao, moldado atravs das sries de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexo sobre o modo como uma figurao desse tipo pode ser
apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que do a ver e a
pensar o real. Da, neste livro e noutros, mais especificamente consagrados
s prticas de leitura, o interesse manifestado pelo processo por intermdio do qual historicamente produzido um sentido e diferenciadamente
construda uma significao. (Chartier, 1990, p. 24, grifo nosso).
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Souza Lobo, Ablio Borges e Olavo Freire podem ser considerados representantes de tantos outros autores que trazem para o nvel mais elementar os contedos de Geometria que devem ser ensinados na escola de primeiras letras.
Dezenas talvez mais precisamente coubesse dizer centenas de livros didticos contendo Geometria para o ensino primrio compem o repertrio de obras
destinadas escola primria, publicadas desde o sculo XIX. A geometria a ser
ensinada para as classes iniciais sempre a geometria euclidiana, a geometria
de sempre. Os rudimentos, os elementos dos Elementos de Euclides so seus objetos de ensino. As mais simples figuras geomtricas e suas propriedades constam como contedos elementares em todas as obras didticas.
A despeito dos mtodos, do modo como deve ser ensinada a Geometria para
os primeiros passos escolares, que, a partir principalmente do final do sculo
XIX, volta a ateno para as lies de coisas, para o mtodo intuitivo, seguido das
iniciativas da Escola Nova4, os contedos so
4. Tome-se, do educador Loureno Filho, um dos cones
da Escola Nova no Brasil, uma sntese do iderio escolanovista: Do comeo deste sculo para c, essa concepo
[a do ensino intuitivo] tende a ser substituda por outra, a
de uma filosofia pragmatista (a verdade utilidade), e de
uma filosofia vitalista (alm das impresses sensoriais h
um quid, em cada indivduo, que plasma as ideias a sua
feio). O prprio pensamento para essa escola ao:
ao reduzida, mas ao. Ao reduzida e sistematizada
pela linguagem, mas atividade. Da, como consequncia,
no se pretender ensinar mais to somente pela ao das
coisas, mas pela ao do indivduo, nico capaz de organizar o esprito solidamente, para o seu fim normal: dirigir
a ao (Loureno Filho apud Carvalho, 2002, p. 385-386).
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A biografia de Dienes muito extensa; no entanto, para o foco deste estudo, interessa destacar que, nos anos 1960, atravs do Office Central De Librairie OCDL,
Zoltan Dienes publica a coleo First years in mathematics / Les premiers pas en mathmatiques. Um dos volumes da coleo tem por ttulo Exploration of space and
practical measurement / Exploration de lespace et pratique de la mesure. No Brasil,
os textos de Dienes so editados no final da dcada de 1960. Em 1977, precisamente,
sai a terceira edio, do volume III da coleo de Dienes, intitulado Explorao do
espao e prtica da medio. Junto com Dienes, assina, como coautor, E. W. Golding.
Iniciando a obra, em sua Primeira Parte, o item Ideias fundamentais destaca:
A geometria a explorao do espao. Uma criana, desde seu nascimento,
explora o espao. Primeiramente o olha, depois o sonda com seus braos
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e pernas visando a descoberta, e enfim se desloca nele. preciso um tempo bastante longo para desenvolver as ideias de perspectiva, de distncia,
de profundidade; noes como as de dentro e fora, diante e atrs, antes e
depois, e assim por diante. [...] As primeiras noes de geometria no tm
nada a ver com a medida. Uma criana preocupa-se muito pouco com a distncia exata dos objetos, de seus movimentos ou do ngulo sob o qual as
coisas so vistas (Dienes; Golding, 1977, p.1, grifos nossos).
Com atividades como essa, as crianas tero interesse nas propriedades topolgicas do espao, nas fronteiras, nas portas, nos espaos e nos domnios, sem ateno
especial para a medida. Nessa etapa de aprendizagem, elas no esto ainda mentalmente preparadas para os desenhos geomtricos de formato pequeno, realizados
sobre uma folha de papel (Dienes; Golding, 1977, p.6).
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Em suma, a convergncia mencionada dir respeito ao paralelo entre a ontognese e a filognese, no que toca geometria. A marcha da aprendizagem da geometria
pelas crianas segue a evoluo histrica da prpria geometria. O processo de aprendizagem vai do intrafigural ao transfigural, passando pelo interfigural...
Um dos pontos altos do texto Prhistoire de la gomtrie: le problme des sources, de Olivier Keller, justamente mostrar essa contradio dos trabalhos de Piaget.
Keller ressalta que o livro Psicognese e histria das cincias contradiz, de maneira
evidente, duas das obras publicadas por Piaget anteriormente: La reprsentation de
lespace chez lenfant, publicada em 1947, e La gomtrie spontane de lenfant, publicada no ano seguinte. Diz Keller (2001, p. 24): Em 1947-48, Piaget pensava que a
ordem gentica e a ordem histrica eram inversas; em 1980, as mesmas experincias
o conduzem a uma concluso oposta.
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retoma a geometria euclidiana como forma elementar de ensino da Geometria. Figuras geomtricas e suas propriedades representam o saber geomtrico que as crianas devem aprender na escola hoje.
possvel dizer, com o exemplo analisado, que a redefinio do elementar, dos
rudimentos que devem ser ensinados para as crianas iniciarem sua incurso aos
saberes cientficos, no envolve to somente os aspectos epistemolgicos da pesquisa. Ressalte-se: no h uma linha de transmisso direta entre eles e as produes
pedaggicas. Est presente o fenmeno da apropriao. As novas propostas e sua
penetrao nas salas de aula dependem de uma cultura estabelecida a chamada
cultura escolar. Essa cultura, por vezes, mesmo na contramo da pesquisa, faz o que
o debate terico paradoxalmente, s vezes, tende a confirmar...
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