Kurt Lewin
Kurt Lewin
Kurt Lewin
Prefcio
Queramos analisar um filme. Queramos ver as dinmicas grupais se repetirem
sob nossos olhos quantas vezes fossem possveis. E que se repetissem tambm
sob a tica de algum de nossos gurus. Escolher Kurt Lewin foi fcil, pois ele j
tinha sido inspirador de muitas de nossas discusses. A eleio do filme veio
depois, a partir do descarte de outros de uma longa lista.
E as peas comearam a se encaixar: escolhemos um filme bom, uma histria
real, um caso de mudana comportamental. E, se o processo de marginalizao
de indivduos, a passagem do bem para o mal tambm - na linguagem de Lewin
- um processo educativo, seramos melhores observadores analisando um grupo
que foge de nossos valores.
Do o qu passamos para o como: como dividir e somar, como analisar e
sintetizar a influncia do grupo nos diversos personagens? Acabamos
reproduzindo o estilo filme: repetimos vrias cenas, cada vez sob a tica de um
personagem.
Para facilitar a leitura, antes das anlises h uma sinopse do filme, a biografia dos
principais personagens e um resumo dos pontos de Lewin que decidimos focar.
Entretanto, no nos restringimos a Lewin. Outros autores foram citados, hipteses
foram levantadas. Eventualmente, um olhar scio-econmico se fez presente. Da
mesma forma, focamos em alguns personagens do filme, mas citamos outros nos
momentos em que seus comportamentos ilustravam nossos pontos.
Cada um de ns assistiu ao filme pelo menos 3 vezes. Outros de sete a oito
vezes. Discutimos exaustivamente o destino de cada um dos personagens,
decoramos suas falas, como acontece na formao de atores.
Lemos, discutimos, contestamos e reverenciamos Lewin vrias vezes. Como
acontece na formao de coordenadores de grupos.
Introduo
Partindo de um dos objetivos principais da formao de Coordenadores de Grupos
da Sociedade Brasileira de Dinmicas de Grupos, o nosso propsito o de
exercitar o processo de sntese terica e prtica a partir da anlise da dinmica de
aceitao de novos valores e condutas apresentada no filme Cidade de Deus, de
Fernando Meirelles, baseado no livro homnimo de Paulo Lins.
A teoria que sustentar esta anlise so os preceitos tericos de Kurt Lewin,
apresentados no captulo 4 da publicao Problemas de Dinmica de Grupos1.
Visamos analisar o processo de educao de novos valores, condutas e crenas
que ocorre com os personagens da Cidade de Deus. A diferena que
ressaltaremos que, neste caso, a maioria dos valores e condutas que os
personagens so expostos, est ligada obteno do que Lewin chama de
anormal, ou seja, fora do compasso com a realidade, em divergncia com as
normas vigentes. Para Lewin, a obteno do anormal tambm um processo de
educao de valores. Apresentaremos uma anlise do como cada personagem
lida com esta aprendizagem.
realizar
pequenos assaltos, como o de caminhes de
gs que fazem entrega no local. Dadinho, outro
menino da Cidade de Deus, acompanha esse
grupo de marginais e sonha ser como eles.
Buscap, por sua vez, no gosta de ter irmo bandido: a maior furada, sempre
acaba sobrando pra gente, ele diz. Quer um futuro diferente para sua vida.
A segunda parte do filme se passa nos anos 70. Buscap continua seus estudos e
arruma um emprego num supermercado. Ainda assim, vive na tnue linha que
divide a vida de otrio da vida no crime. Enquanto isso, Dadinho torna-se um
pequeno lder de gangue com grandes ambies. Quer se tornar traficante.
Acredita que esse negcio de roubar no t com nada e em um nico dia toma
quase todas as bocas de fumo de Cidade de Deus e comea a vender cocana.
Em pouco tempo, Dadinho torna-se o bandido mais perigoso e temido do local.
Recebe um novo apelido, Z Pequeno, e expande seu negcio. Se o trfico fosse
legal, Z Pequeno seria o homem do ano, diz o personagem Buscap, que narra
o filme.
A terceira parte, situada no comeo dos anos 80, mostra como Z Pequeno se
transforma em um dos traficantes mais poderosos do Rio de Janeiro, protegido por
um exrcito armado de crianas e adolescentes entre 11 e 18 anos, e que tem
como concorrente Sandro Cenoura, que se aliou a Man Galinha, especialista no
manejo de armas.
Estoura a guerra na Cidade de Deus. Nesse meio tempo, Buscap, que sempre
sonhou ser fotgrafo, consegue sua primeira mquina profissional. Registrar essa
guerra ser a grande chance de sua vida.
um
fenmeno orientado pela
percepo social, ou seja, ... pela posio em
que nos percebemos a ns e aos outros no
mundo.2
Lewin ainda nos direciona a uma outra
importante reflexo: So fundamentalmente semelhantes
governam a obteno do normal e do anormal.3
os
processos
que
2
3
P. 77
P. 73
P. 79
Defesas
Comportamento
Provvel de
Mudana Parcial
Estrutura cognitiva
Prelees / Novos
Conceitos /
Observao de
Fatos
Negao da
Percepo / Apego
a Pr-conceitos
Defasagem entre
discurso e ao
Conduta
Presso do Lder
ou do Grupo
Hostilidade /
Revolta Interior
Valores
Influncia do Lder
ou do Grupo
Apego a valores
anteriores
Aprendizado
Cinismo /
Graduao na
rotulao dos atos
Trabalho mal feito
indivduo no
est inteiro na ao
azar
P. 81
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11
-- Buscap --
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Para Buscap, a construo do que seria realidade foi marcada por disputas
acirradas entre as foras potentes do meio, onde ele teria que optar entre ser
otrio (quem tinha medo de levar tiros) e suas prprias convices que o
impeliam a ser algo diferente das opes disponveis no grupo (bandido ou
polcia), mas que eram aliadas de seu sonho de se tornar fotgrafo. Optar por uma
terceira alternativa significava, assim, criar um caminho de algum modo inexistente
(sua realidade) e correr os riscos naturais dessa escolha.
Para Lewin, no processo de construo e definio da realidade, o indivduo se
apia firmemente na opinio do grupo a que pertence, uma vez que a confiana
na experincia deste aumentaria a probabilidade do julgamento individual estar
correto. Desta forma, o indivduo teria um reforo s suas crenas e o processo de
construo da realidade poderia ser facilitado, uma vez que seria encontrado no
grupo algo grande, substancial e supra-individual, como a cultura local,
considerada por Lewin a base onde o indivduo finca sua ncora para se ajustar
sociedade.
Por contraposio, de se supor que quando esta confiana no grupo baixa,
sobra ao indivduo uma carga maior de responsabilidade na construo da
realidade. No caso de Buscap, tal carga parece bastante intensa, uma vez que
seu conjunto de valores fundamentais diferencia-se em muito daqueles de seu
grupo imediato.
Estas diferenas entre valores individuais e do grupo levam a um questionamento
temporrio de suas crenas fundamentais. Quando demitido, Buscap se
desconsola e tenta buscar outras alternativas para sua vida. Pelas suas
experincias, ele acabara de descobrir (cognitivamente) que sua chance, talvez
nica, de conseguir algum dinheiro partindo para o crime. No entanto, como todo
aprendizado que ainda no provocou uma mudana na estrutura do sentimento,
na hora H surge sua face mais sensvel, deixando-o enternecido com as vtimas,
fazendo-o desistir dos assaltos. Verifica-se que as mudanas cognitivas no
haviam se traduzido em mudanas de valores (o que no iria acontecer mesmo
mais adiante, com o transcorrer do filme) e isso o paralisou.
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-- Trio Ternura --
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-- Z Pequeno e Bene --
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-- Dadinho/Z Pequeno
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-- Bene --
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-- Man Galinha --
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que, como logo descobriu tinha excees, at perceber que a exceo tinha
virado regra.
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Consideraes Finais
Aps analisarmos, luz dos conceitos de Kurt Lewin, os personagens do filme
Cidade de Deus, a dinmica de cada um, seus processos de educao e
reeducao de valores, de condutas, crenas, assim como, o contexto que os
permeiam, conclumos o quanto a mensagem deste filme pessimista e
desoladora.
De acordo com Lewin, o processo de reeducao tenta reconduzir o indivduo aos
valores e conduta da sociedade em que vive. Portanto, na medida em que os
habitantes da Cidade de Deus so, inicialmente, marginalizados num contexto de
pobreza, misria e estratgica e fisicamente alocados longe da cidade (local onde
poderiam ter melhores condies de vida, trabalho, educao formal e,
conseqentemente, dignidade), a tendncia ficarem cada vez mais distantes dos
valores da sociedade dita normal e, cada vez mais sintonizados com os valores
da sociedade dita marginal, onde prevalece o roubo, o crime e o trfico de
drogas como forma de sobrevivncia.
O universo scio-econmico e cultural da Cidade de Deus extremamente
limitado, tanto que existem poucas perspectivas e modelos a serem seguidos
pelos mais jovens a no ser virarem polcia, bandido ou otrio. E, neste
caso, Z Pequeno, Bene e Cenoura so figuras que ostentam coragem, fora,
poder e dinheiro e, portanto, so os modelos mais atraentes a serem seguidos.
Para ser algum na Cidade de Deus preciso se igualar a eles, ou seja, envolverse com o crime e o trfico de drogas.
Neste processo de aprendizagem de valores at mesmo Z Galinha participa
como modelo para os garotos da Cidade. Quando pressionado pelo dio e pelo
rancor, de homem trabalhador e com fortes valores ligados famlia, passa por
um processo de reeducao no muito bem sucedido, mas que o leva ao mundo
do crime. Z Galinha, o bandido, tambm se torna modelo, na medida em que se
associa ao grupo de Cenoura e passa a ser um lder da comunidade local.
A Caixa Baixa retrata bem o processo de educao dos meninos da Cidade de
Deus. A convivncia desse grupo de garotos com bandidos, marginais e drogados
ajuda-os a formar o conjunto de valores que direcionar seus comportamentos no
futuro. Os garotos aprendem que a morte menos importante do que as regras
vigentes na Cidade ou que o crime um meio para atingir os objetivos, sejam eles
quais forem.
Assim, a Caixa Baixa, ao matar Z Pequeno, passar a dominar as maiores bocas
de fumo da Cidade e, conseqentemente, tornar-se- a dona da Cidade de
Deus. Com este ato demonstra que os valores aprendidos naquela sociedade
esto totalmente introjetados e, a partir de ento, passar a ser modelo para as
prximas geraes garantindo, dessa forma, a perpetuao desse modo de vida.
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Bibliografia
Lewin, K. - Problemas de Dinmica de Grupo Cultrix, So Paulo, 1970.
Garcia-Roza, L. A Psicologia Estrutural em Kurt Lewin, Editora Vozes, Rio de
Janeiro, 1974.
Mailhiot, G. B. Dinmica e Gnese dos Grupos, Livraria Duas Cidades, So
Paulo, 1977.
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