Improvisacao No Choro PDF
Improvisacao No Choro PDF
Improvisacao No Choro PDF
Goinia
2012
Goinia
2012
M433t
_________________________________________
Prof Dr Magda de Miranda Clmaco
Presidente da Banca
__________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Jos Dourado Freire
Universidade de Braslia
___________________________________________
Prof Dr Fernanda Albernaz do Nascimento
Universidade Federal de Gois
__________________________________________
Marshal Gaioso Pinto
Suplente Instituto Federal de Gois
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais Valdete e Eliane, minha irm Valiane, minha mulher Luciana, todos os
familiares e amigos de Macabas, Goinia e outras cidades, que sempre me apoiaram nessa
caminhada rumo ao ttulo de mestre.
Aos professores da graduao e ps-graduao, especialmente minha orientadora Prof.
Dr Magda de Miranda Clmaco, que, com maestria, pacincia e muitssima dedicao soube
me direcionar nesta pesquisa.
Aos professores Drs. Johnson Machado e Fernanda Albernaz por estarem na banca de
qualificao. Ao professor Dr. Ricardo Freire por estar na banca de defesa. Ao professor Dr.
Marshal Gaioso por ser suplente.
Agradeo tambm aos msicos Joo Garoto, Oscar Wilde, Srgio Morais, Henrique Cazes e
Fernando Csar, por aceitarem participar da pesquisa.
Ao responsvel por eu fazer msica: Deus.
RESUMO
ABSTRACT
The choro, he cultivates an instrumental genre improvisational style, has been transformed in
the course of its history, both in melody and harmony. The first cries compounds possessed
simple harmonies, making the soloists of the time to interpret differently from today. The
different treatments harmonics, which have arisen over time, seem to have been one of the
leaders of these different interpretations, which have been shown in an intense and
characteristic improvisation. Apparently, there was an increase in these transformations of
choro with the rapid development of technology and media from the mid-twentieth century.
This circumstance, perhaps, brought a more intense and immediate contact of this musical
genre with global genres such as jazz, for example, as a new and intense focus on
improvisation, which has drawn attention to formal structures and performing hybrid
performances. The intensification of cultivation of Jazz in the country and later the
emergence of Bossa Nova in the mid-twentieth century, it seems, interfered markedly in the
improvisation of gender, providing new composers to invest in new procedures related to this
harmonic American genre. Given this circumstance, this study aimed to investigate the
technical and cultural implications resulting from the interference of different harmonics in
procedures related to the processes of improvisation and musical genre choro in this context
not only seek melodic and harmonic innovations, but also processes of identity implicated in
processes of cultural hybridization.
Keywords: choro harmony improvisation stylistics configurations hybridity
Recorte 18b. Transcrio da performance de Agenor Bens. Polca Cruzes, minha prima de
Joaquim Antnio Callado. Parte A2. Repetio. Compassos 10 ao 18....................................75!
Recorte 19. Naquele Tempo de Pixinguinha. Inflexes meldicas da parte A. Compassos 1 ao
17..............................................................................................................................................80
Recorte 20. Choro Naquele Tempo de Pixinguinha. Inflexes meldicas da parte B. Compasso
19 ao 22.....................................................................................................................................80
Recorte 21. Choro Naquele Tempo de Pixinguinha. Inflexes meldicas da parte C.
Compassos 38 ao 53..................................................................................................................80!
Recorte 22. Choro Naquele tempo de Pixinguinha. Anlise harmnica da parte A. Compassos
1 ao 17.......................................................................................................................................81!
Recorte 23. Choro Naquele tempo de Pixinguinha. Anlise harmnica da parte B. Compassos
19 ao 34.....................................................................................................................................82!
Recorte 24. Choro Naquele tempo de Pixinguinha. Anlise harmnica da parte C. Compassos
35 ao 53....................................................................................................................................82!
Recorte 25. Transcrio de improviso/contraponto de Pixinguinha em Naquele Tempo. Parte
A. Compassos 1 ao 16..............................................................................................................84!
Recorte 26. Transcrio de improviso/contraponto de Pixinguinha em Naquele Tempo. Parte
B. Compassos 19 ao 34.............................................................................................................84!
Recorte 27. Choro Lamentos de Pixinguinha. Anlise meldica da parte A. Compassos 1 ao
25..............................................................................................................................................86
Recorte 28. Choro Lamentos de Pixinguinha. Anlise meldica da parte B. Compassos 28 ao
44..............................................................................................................................................86
Recorte 29. Choro Lamentos de Pixinguinha. Anlise meldica do Coda ou introduo.
Compassos 63 ao 72..................................................................................................................86!
Recorte 30. Choro Lamentos de Pixinguinha. Anlise harmnica da parte A. Compassos 1 ao
25...............................................................................................................................................87
Recorte 31. Choro Lamentos de Pixinguinha. Anlise harmnica da parte B. Compassos 28 ao
44...............................................................................................................................................88
Recorte 44. Meu Cavaquinho. Garoto. Melodia principal da parte B. Compassos 19 ao 34.124
Recorte 45. Quanto di uma saudade. Garoto. Anlise meldica da parte A. Compassos 1 ao
16............................................................................................................................................125
Recorte 46. Quanto di uma saudade. Garoto. Anlise meldica da parte B. Compassos 17 ao
33............................................................................................................................................126
Recorte 47. Quanto di uma saudade. Garoto. Anlise harmnica da parte A. Compassos 1 ao
16. ...........................................................................................................................................127
Recorte 48. Quanto di uma saudade. Garoto. Anlise harmnica da parte B. Compassos 17
ao 33........................................................................................................................................127
Recorte 49. Transcrio de performance de Garoto. Choro Quanto di uma saudade. Garoto.
Compassos 1 ao 16. Transcrio do pesquisador...................................................................129!
Recorte 50. Transcrio de performance de Garoto. Choro Quanto di uma saudade. Garoto.
Compassos 18 ao 33. Transcrio do pesquisador..................................................................129
Recorte 51. Noites Cariocas. Jacob do Bandolim. Anlise meldica da coda final. Compassos
65 ao 74...................................................................................................................................134
Recorte 52. Noites Cariocas. Jacob do Bandolim. Anlise meldica da parte A. Compassos 1
ao 32........................................................................................................................................135
Recorte 53. Noites Cariocas. Jacob do Bandolim. Anlise meldica da parte B. Compassos 33
ao 64........................................................................................................................................136
Recorte 54. Noites Cariocas. Jacob do Bandolim. Anlise harmnica da parte A. Compassos
1 ao 32.....................................................................................................................................137
Recorte 55. Noites Cariocas. Jacob do Bandolim. Anlise harmnica da parte B. Compasso
33 ao 64...................................................................................................................................138
Recorte 56. Noites Cariocas. Jacob do Bandolim. Anlise harmnica da coda final.
Compassos 65 ao 74...............................................................................................................138
Recorte 57. Noites Cariocas. Jacob do Bandolim. Trecho com a melodia da parte B.
Compassos 49 ao 62..............................................................................................................139
Recorte 58. Transcrio de performance de Jacob do Bandolim. Choro Noites Cariocas. Jacob
do Bandolim. Compassos 49 ao 62. Transcrio do pesquisador...........................................139!
Recorte 59. Receita de Samba. Jacob do Bandolim. Anlise meldica da parte A. Compassos
9 ao 40. ...................................................................................................................................141
Recorte 60. Receita de Samba. Jacob do Bandolim. Anlise meldica da parte B. Compassos
41 ao 74.................................................................................................................................. 141
Recorte 61. Receita de Samba. Jacob do Bandolim. Anlise harmnica da introduo.
Compassos 1 ao 8....................................................................................................................142
Recorte 62. Receita de Samba. Jacob do Bandolim. Anlise harmnica da parte A. Compassos
9 ao 40. ...................................................................................................................................142
Recorte 63. Receita de Samba. Jacob do Bandolim. Anlise harmnica da parte B. Compassos
41 ao 74. .................................................................................................................................143
Recorte 64. Receita de Samba. Jacob do Bandolim. Trecho da melodia da parte B. Compassos
43 ao 64.................................................................................................................................144
Recorte 65. Transcrio de performance de Jacob do Bandolim. Choro Receita de Samba.
Jacob do Bandolim. Compassos 43 ao 64. Transcrio realizada pelo pesquisador.............145
Parte III
Recorte 66. Rebulio. Hermeto Pascoal. Anlise meldica da parte A. Compassos 1 ao
10.............................................................................................................................................165
Recorte 67. Rebulio. Hermeto Pascoa.l Anlise meldica da parte B. Compassos 11 ao
25.............................................................................................................................................165
Recorte 68. Rebulio. Hermeto Pascoal. Anlise harmnica da parte A. Compassos 1 ao
10.............................................................................................................................................166
Recorte 69. Rebulio. Hermeto Pascoal. Anlise harmnica da parte B. Compassos. 11 ao
25.............................................................................................................................................167
Recorte 70. Transcrio de performance de Hermeto Pascoal. Choro Rebulio. Compassos 1
ao 19. Transcrio do pesquisador..........................................................................................168
SUMRIO
INTRODUO
PARTE I
O CHORO E SUA HISTRIA: PRIMEIROS ENCONTROS, PRIMEIRAS CONFIGURAES
ESTILSTICAS / IDENTITRIAS---------------------------------------------------------------------------------------31
1.1 Os
1.2 Primeiras
O processo de improvisao-----------------------------------------------------------------------------------56
1.3.1 O contraponto brasileiro: processo improvisatrio peculiar e via de mo dupla-----------------58
1.4 A
1.5 Os
PARTE II
OUTROS ENCONTROS E SIGNIFICAES: O CHORO EM UM MOMENTO DE TRANSICO----94
2.1 O aparecimento
PARTE III
O CHORO E UMA OUTRA HISTRIA: NOVAS CONFIGURAES ESTILSTICAS NO CENRIO
PS-MODERNO------------------------------------------------------------------------------------------------------------147
3.1 O ressurgimento
3.2 A intensificao
do choro---------------------------------------------------------------------------------------152
CONSIDERAES FINAIS-----------------------------------------------------------------------194
REFERNCIAS---------------------------------------------------------------------------------------200
ANEXOS------------------------------------------------------------------------------------------------207
INTRODUO
"#!
Gnero musical que mistura o ritmo bsico e simplificado do samba com a harmonia do jazz. Sua forma
geralmente ABA e tem como principais caractersticas a dinmica suave da voz, acompanhada de letras que
geralmente se referem s belezas das paisagens visuais do Rio de Janeiro. Surgiu por volta de 1950 nos bairros
de classe mdia alta do Rio e alguns de seus principais idealizadores so: Tom Jobim e Joo Gilberto
(CAMPOS, 1991).
MALTA, Carlos. Tudo Coreto. Lamentos. CD Selo Rdio MEC Brasil. 2001.
$%!
A partir dos anos 1970, e, sobretudo, da dcada de 1990 em diante, ao que tudo
indica, novas peculiaridades na prtica da improvisao comearam a interferir na execuo
do gnero. Os diferentes tratamentos harmnicos, uma execuo meldica caracterstica, mais
ampla e virtuosstica, numa primeira instncia, parecem ter sido os principais responsveis
pelas interpretaes distintas que comearam a aparecer. Junto ao fato de haver uma liberdade
maior na forma de tocar, isso tem feito com que a interpretao no choro seja bastante
discutida entre os msicos que o executam, que buscam tambm o dilogo com novos
processos harmnicos, com diferentes gneros musicais nacionais e globais como o samba, o
baio e o jazz, por exemplo. Isso num cenrio ps-moderno, onde a possibilidade maior e
mais intensa de encontros culturais evidencia mais uma vez a acentuada diversidade que o
caracteriza na base (HARVEY, 2005). Nesse contexto, o cenrio global atual permite que as
populaes se interajam de forma muito mais intensa, nas suas respectivas cidades, seja
capital ou at mesmo interior, com a
cidade sonora e colorida do rdio, da TV, das multinacionais, dos mltiplos
anncios de neon, dos inmeros outdoors, dos telefones, dos computadores
e faxes, da comunicao televisiva e financeira que a vincula a n partes
do pas e do mundo, que propicia a interao com a cidade sujeita s
aes e efeitos diversos de fluxos comunicacionais internos e externos
(ABDALA JR. apud CLMACO, 2008, p. 226). [Grifo meu]
$"!
Ariza refora a idia de que estas influncias, cada vez mais acirradas, tiveram a
ver com todo o crescimento econmico e cultural que ocorria no pas.
Assim, como ponto de partida nessa investigao, os primeiros contatos com a
bibliografia existente sobre o assunto, as primeiras audies e observaes, junto vivncia e
prtica constante do gnero em rodas de choro, me levaram pressuposio de que diferentes
procedimentos harmnicos, resultantes de diferentes processos de hibridao cultural no
cenrio brasileiro do final do sculo XIX ao Tempo Presente, conduziram a diferentes
$$!
Remetendo-se a essa
abordagem, Cazes (1999) e Andr Diniz (2003) comentam em suas obras, que as
identificaes modo de tocar e gnero musical, por si s, celebram dois diferentes
processos identitrios relacionados ao gnero choro3. Nesse momento Silva (2008) tambm
pode ser lembrado, quando ao refletir sobre as relaes entre identidade e diferena, observa
que
fcil compreender [...] que identidade e diferena esto em uma relao de
estreita dependncia. A forma afirmativa como expressamos a identidade
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
Lembro com Cazes (1999) e Andr Diniz (2003) que o choro floresceu na segunda metade do sc. XIX, como
o resultado do encontro das recm chegadas danas de salo europias (polca, valsas mazurcas, dentre outras),
com a dana afro-brasileira denominada lundu (e suas vrias derivaes). Havia j a, um processo claro de
hibridao cultural.
$&!
Por outro lado, para se alcanar os objetivos propostos nesse trabalho, foram
selecionadas partituras, CDs e DVDs de msicos atuantes e respeitados no cenrio nacional
como compositores/performers4. Essas obras foram escolhidas com o intuito de exemplificar
trabalhos que interagiram com os trs perodos recortados, sendo que o segundo deles, pelas
suas caractersticas, foi considerado de transio. Os compositores/performers selecionados
foram Joaquim Antnio Callado e Alfredo da Rocha Vianna Filho o Pixinguinha, de um
lado e, de outro lado, Hermeto Pascoal e Hamilton de Holanda. Representando o perodo de
transio foram escolhidos Anbal Augusto Sardinha o Garoto e Jacob Pick Bittencourt - o
Jacob do Bandolim
Callado e Pixinguinha foram escolhidos porque alm de notveis performers
(flauta e saxofone), compuseram choros no primeiro recorte de tempo mencionado, que fazem
parte do repertrio de chores at mesmo nos dias de hoje. Garoto e Jacob do Bandolim, por
sua vez, por terem vivenciado uma poca em que o Brasil comeou a sofrer de forma mais
intensa influncias norte-americanas (por volta da dcada de 1940 a 1960) e por suas obras j
revelarem inovaes que tm condies de se constituir em elementos indicadores do incio
de transformaes estilsticas radicais no choro. J tendo em vista o terceiro recorte de
tempo, Hermeto Pascoal foi selecionado porque, segundo Diniz (2003, p. 62), no est
estritamente inserido no contexto do choro, mas vem acrescentando elementos estticos para
o desenvolvimento do gnero, e porque esse compositor tem efetivado novas
experimentaes sonoras que evidenciam transformaes estilsticas radicais em suas obras,
um amplo recurso harmnico que permite uma prtica improvisatria mais plausvel para os
intrpretes do gnero choro. Hamilton de Holanda participou de tradicionais rodas de choro
em Braslia, graduou-se em composio pela Universidade de Braslia (UnB) e mais
recentemente tem investido muito em um dilogo com o jazz e com o rock. Atualmente
evidencia em suas composies, interpretaes e arranjos, novas tendncias estilsticas
relacionadas msica instrumental brasileira (CLMACO, 2008).
A seleo das obras dos compositores/performers escolhidos, que j comearam a
ser analisadas e interpretadas, levou em conta sempre a possibilidade que essas obras
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
4
As expresses performance e performer esto sendo aqui utilizadas tendo em vista a interpretao do choro
por msicos de rodas de choro (ou no), acompanhada sempre da prtica da improvisao. J a expresso
compositores/performers, remete a msicos que, alm dessa performance, atuam tambm como compositores do
gnero choro.
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$(!
performers de rodas de choro. A entrevista pode propiciar uma coleta de dados mais
detalhada e profunda, que no seria possvel apenas atravs de levantamentos bibliogrficos
ou frutos da observao. Haguette (1997, p. 86) a define como um processo de interao
social entre duas pessoas na qual uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a obteno de
informaes por parte do outro, o entrevistado. Nesta definio esse autor dialoga com
Duarte (2004) quando diz:
Entrevistas so fundamentais quando se precisa/deseja mapear prticas,
crenas, valores e sistemas classificatrios de universos sociais especficos,
mais ou menos bem delimitados, em que os conflitos e contradies no
estejam claramente explicitados. Nesse caso, se forem bem realizadas, elas
permitiro ao pesquisador fazer uma espcie de mergulho em profundidade,
coletando indcios dos modos como cada um daqueles sujeitos percebe e
significa sua realidade e levantando informaes consistentes que lhe
permitam descrever e compreender a lgica que preside as relaes que se
estabelecem no interior daquele grupo, o que, em geral, mais difcil obter
com outros instrumentos de coleta de dados (Ibidem, p. 215).
$)!
pelas suas constantes participaes como professor convidado nos festivais anuais da
Associao Brasileira de Flautistas (ABRAF), onde leciona oficina de choro. J os msicos
abordados em Goinia participaram dos primeiros passos do Clube do Choro nessa cidade e
continuam atuando como performers em rodas de choro, como o caso do bandolinista Oscar
Wilde e do violonista Joo Garoto. Esses peformers foram entrevistados, porque podem
contribuir para a pesquisa com o relato de suas prprias experincias, como msicos que
atuam em conjuntos de choro improvisando e trabalhando um repertrio variado.
Enfim, o objetivo dessas entrevistas foi deixar o entrevistado falar sobre o
processo de improvisao relacionado a esse gnero musical (sobre o processo em si e sobre a
interferncia dos procedimentos harmnicos), sobre as bases em que esse processo se d,
inclusive, relacionado ao seu prprio modo de improvisar, alm de possibilitar um espao que
permita a esse msico exemplificar o trabalho improvisatrio, utilizando o seu instrumento.
Tendo em vista toda essa circunstncia terico-metodolgica, pode ser dito que
ficaram claras as implicaes dessa investigao com a base de uma pesquisa qualitativa
que, segundo Silva (2001), prev
uma relao dinmica entre o mundo real e o sujeito, isto , um vnculo
indissocivel entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que no
pode ser traduzido em nmeros. A interpretao dos fenmenos e a
atribuio de significados so bsicas no processo de pesquisa qualitativa
(Ibidem, p. 20).
Neste livro voltado para a Educao musical, Violeta Gainza traz vrias reflexes sobre o objeto de estudo
desse trabalho: a improvisao. Aborda a relao improvisao/experincia/espontaneidade, relao essa que faz
parte de alguns questionamentos que esto na sua base.
$*!
$+!
importantes nesse trabalho. Isso porque implicam tambm na possibilidade da anlise dos
elementos estruturais da obra e da prtica musical, reveladores das transformaes
harmnicas observadas, tomados tambm como significantes, capazes de evidenciar
interaes dessa obra e dessa prtica musical com diferentes cenrios scio-histrico e
culturais.
Por outro lado, este trabalho justifica-se, pela necessidade de um contexto de
maior valorizao da msica popular brasileira, necessidade essa constatada nas minhas
trajetrias acadmicas e de profissional ligado a essa msica. Prevalece um cenrio em que
no h publicaes suficientes que permitam reflexes sobre os parmetros tcnicos,
histricos, culturais e musicais que valorizem e facilitem a performance dos instrumentistas
com os quais convivo, uma vez que a maioria dos trabalhos existentes sobre msica popular
foram feitos por historiadores e no por msicos. A respeito disso Volpe (2010) observa que
os poucos trabalhos que tm trazido novas abordagens e ampliado o campo
terico-conceitual sobre a msica e o discurso historiogrfico-musical no
Brasil so muitas vezes oriundos de pesquisadores alocados em outras
disciplinas. (Ibidem, p. 110)
Acredito que essa iniciativa, que ajuda a afirmar as tendncias mais recentes da
musicologia em buscar novos objetos de estudo, possa ajudar outros msicos, alm de ampliar
o leque de pesquisas relacionado msica em questo. Essas pesquisas s agora parecem
estar comeando a se diversificar e ser realmente valorizadas na academia, conforme pode ser
observado nos anais dos congressos de msica que esto acontecendo mais recentemente,
como os ltimos encontros da ANPPOM (Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao
em msica), e do SEMPEM (Seminrio Nacional de Pesquisa em Msica), por exemplo.
Para atingir as metas rumo a confirmao da hiptese, esse trabalho foi
estruturado da seguinte maneira: uma Introduo, um desenvolvimento constitudo por trs
partes, as consideraes finais, as referncias e os anexos. A introduo apresenta o contexto
e a problemtica que deu origem pesquisa, o esboo do objeto de estudo, a definio dos
objetivos geral e especficos, a abordagem terico-metodolgica, a justificativa e a pertinncia
da investigao, alm de j evidenciar a estruturao geral do trabalho.
Na primeira parte do desenvolvimento foi feito um levantamento histrico do
choro desde seu florescimento no final do sculo XIX at sua consolidao como gnero
musical no incio do sculo XX, que evidenciou os cenrios histricos com os quais esse
gnero musical interagiu, os primeiros lugares frequentados pelos chores, bem como suas
caractersticas estilsticas, o seu forte pendor para a improvisao. Nessa mesma parte foram
$#!
&%!
PARTE I
Este primeiro ensaio de modernizao fez com que surgissem telgrafos, linhas
de estrada de ferro, tramways (bondes puxados a burros), dentre outras sries de obras e
negcios. Edinha Diniz (1999) d enfoque abertura dos portos em 1808 que, conforme a
autora, representara o primeiro passo para a modernizao do pas. Refere-se tambm ao
fim do trfico de escravos em 1850, que causou enorme repercusso na histria do pas,
significando liberao imediata de grandes capitais at ento investidos no comrcio de
escravos e, consequente intensificao da vida comercial (Ibidem, p. 15).
Tudo isso
contribuiu para que surgisse nesse contexto a figura do pequeno funcionrio pblico ou
pequeno burocrata, um cidado que no pertencia a classe mdia alta, porm no era mais
&$!
classificado como escravo. Conforme Diniz, esse novo cidado, que no era escravo nem
nobre, fazia parte de uma nova classe, que apareceu com o Rio de Janeiro moderno, a classe
livre ou intermediria. O que incitou uma nova gama de intelectuais e artistas. A autora
ressalta que
nesse perodo, o Rio de Janeiro j oferece condies objetivas para o
crescimento e consolidao de uma camada social intermediria
nitidamente urbana. Cresce a populao livre, a lavoura do caf produz
riqueza, o comrcio se diversifica e amplia. O processo de urbanizao dse aceleradamente. Surgem novos sistemas de transporte, a feio
arquitetnica sofre remodelao, rasgam-se avenidas e ruas so alargadas,
aparece o calamento de macadame, o permetro urbano aumentado,
novos bairros so habitados, surge o bonde. Impulsionado pela diviso
social do trabalho, aparecem atividades inditas at ento, e h um
crescimento considervel do trabalho intelectual e artstico (Ibidem, p. 17).
[ Grifo meu]
Segundo DINIZ (2008) o piano que Chiquinha Gonzaga ajudou a popularizar entrou no cenrio musical
brasileiro em 1808, com a chegada da corte de D. Joo VI ao Rio de Janeiro. O prncipe regente abriu os portos a
toda sorte de produtos estrangeiros e, anos depois, o piano podia ser encontrado nos rinces mais longnquos do
territrio nacional [...] O instrumento tornou-se obrigatrio nos saraus dos solares das cidades, nas casas-grandes
do campo, nas casas de venda de partitura e de instrumentos musicais, nas orquestras do teatro de revista
enfim, o Rio era mesmo, como afirmou o poeta Arajo Porto Alegre, a cidade dos pianos (Ibidem, p. 19).
Alexandre Gonalves Pinto (cujo apelido era animal), antigo choro carioca e funcionrio dos correios, na
obra O Choro reminiscncias dos chores antigos (Rio de Janeiro: Funarte, 1978. Edio fac-similar 1936),
no s reafirma o emprego do termo chores para aqueles que freqentavam as rodas de choro e praticavam o
gnero musical choro, quanto descreve em detalhes as caractersticas de cada choro do incio do sculo XX, as
peculiaridades do cenrio histrico com o qual interagiram. Essa obra, que constitui-se em um dos mais
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que faziam a msica, o choro, acontecer: dentre os cento e vinte e oito msicos cuja
profisso o velho carteiro tornara possvel determinar, cento e vinte e dois eram funcionrios
pblicos (militares componentes de bandas militares ou de corporaes locais, e civis
empregados em reparties federais e municipais) (Ibidem, p. 205).
Tinhoro e o escritor Lima Barreto (citado nos fascculos Histria do Samba8)
lembram ainda que imigrantes provenientes do estado da Bahia e da Itlia chegaram ao Rio de
Janeiro no final do sculo XIX procura de emprego (j que a cidade estava oferecendo
oportunidades), passando a habitar a Cidade Nova. A Cidade Nova era o bairro
construdo nas ltimas dcadas do sculo XIX sobre o antigo mangue situado nas
proximidades da Estao Central do Brasil, entre as casas de vila do antigo centro da cidade e
os bairros do Estcio e da Tijuca. O novo bairro surgiu com a reforma urbana realizada por
Pereira Passos9, que dividiu a cidade basicamente entre habitantes da classe alta (na regio
central do Rio) e classe intermediria (regio perifrica), que passaram a cultivar suas
prprias manifestaes musicais, conforme ressaltado por Tinhoro (1998):
assim, enquanto os melhor situados na distribuio dos empregos
procuravam equiparar-se pequena burguesia europeia frequentando os
espetculos frequentando os espetculos das lorettes francesas do Alcazar
Lirique da Rua da Vala (hoje Uruguaiana) [...] a camada mais ampla dos
pequenos burocratas passava a cultivar a diverso familiar das reunies e
bailes nas salas de visita, ao som de tocadores de valsas, polcas,
schottisches e mazurcas base de flauta, violo e cavaquinho (Ibidem, p.
205) [Grifos meus].
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
importantes registros histricos do choro, levou Cazes (1998, p.18) seguinte observao: apesar de
tremendamente mal escrito um documento nico sobre os chores da virada do sculo.
8
9
Pereira Passos foi o prefeito da cidade do Rio de Janeiro que realizou no incio do sculo XX (1902-1906) a
reforma que visava sanear e modernizar a capital do pas, segundo o modelo oferecido pela cidade de Paris,
reformada e modernizada pelo prefeito Hugo Hausmann no final do sc. XIX. Tanto o Brasil quanto a cidade do
Rio de janeiro eram considerados atrasados quando comparados a essa cidade, por isso Pereira Passos resolveu
mudar a imagem que se tinha do Rio de janeiro, investindo numa cidade ideal espelhada na capital francesa.
Sandra Pesavento comenta: se a reforma do Rio de Janeiro [...] foi feita no intuito de construir uma Paris-surmer [no mar] na sua vertente tropical, o distanciamento entre a verso e o resultado no invalida a fora da
construo imaginria. Mesmo que a aproximao com Paris se reduzisse a alguns elementos isolados, como os
boulevards [passarelas dos muros medievais] ou a fachada ecltica ou art-nouveau [nova arte] dos prdios da
majestosa Avenida Central, a vida urbana, em sua globalidade, era vivenciada como condizente a um ethos
moderno (PESAVENTO, 2002, p. 161). Assim, de acordo com a mesma autora, o Rio de Janeiro adotaria o
modelo de Paris, uma cidade que, em meados do sculo XIX, j apresentava grande avano de mbito
industrial. Pesavento refere-se aqui a um processo identitrio do urbano que remete concepo de imagemespelho. A autora observa ainda: adotando a ideia do mito de Paris como referncia emblemtica para a
compreenso da modernidade [no Brasil], temos a cidade como elemento de referncia para a compreenso do
todo. O trao paradigmtico e metonmico dessa representao do mundo leva ao centro do que definiramos
como o efeito do espelho que se realiza no Brasil, particularmente aps a reforma de Pereira Passos no Rio de
Janeiro (Ibidem, p. 159).!
&'!
O deslocamento do negro agora livre para a cidade, homens livres que passaram a
residir no Rio de Janeiro, principalmente nos morros, trouxe de forma intensa para o centro
urbano a cultura de origem africana, que se mesclaria mais ainda com a influncia europia:
as danas de salo. Essas danas, segundo Cazes (1999) e Diniz (2003), comearam a chegar
no Brasil a partir da segunda metade do sculo XIX (polcas, valsas, shottisches, etc), quando
passaram a ser praticadas ou ouvidas, sobretudo, nos sales da elite. Os negros trouxeram
diferentes manifestaes religiosas e musicais para a cidade e, dentre elas, estava uma das
manifestaes musicais que mais dialogaram com o desenvolvimento do Choro o Lundu10.
Cazes (1999, p. 17) observa que a partir de danas europias (principalmente a polca)
somadas ao sotaque do colonizador e influncia negra, foram surgindo gneros que seriam
a base de uma msica popular urbana nos moldes que hoje conhecemos. Os chores
adaptaram, portanto, muitos ritmos, melodias e improvisos, que incluem a interao com o
Lund, a uma nova forma de tocar as polcas europias que acompanhavam nos sales da
elite. Chegaram, ento, a um modo de tocar, que se tornou caracterstico da Cidade Nova
e que mais tarde atingiu tambm outros locais, como por exemplo, os cafs.
Assim, na segunda metade do sculo XIX, a polca, incrementada com a ginga
carioca, foi muito exercitada e danada nos sales (acompanhada pela msica instrumental
dos chores) e, consequentemente, nas reunies particulares da Cidade Nova. Na verdade,
passou a acontecer ali uma dana prxima dos sales, embora com um gesto danante
considerado, por parte da populao, como vulgar: a umbigada11. Essa forma hbrida de
danar a polca recebeu o nome de Maxixe, que foi mencionada por Edinha Diniz (1999,
p.70) no seguinte contexto: coreograficamente, a hbrida12 polca-lundu permite a criao
do maxixe. Tinhoro (1991) tambm comentou sobre essa dana:
o maxixe, a dana, resultou do esforo dos msicos de choro em adaptar o
ritmo das msicas tendncia aos volteios e requebros de corpo com que os
mestios, negros e brancos do povo teimavam em complicar os passos das
danas de salo. Nesse sentido o maxixe representou a verso nacional da
polca importada da Europa (Ibidem, p. 58). [Grifo meu]
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
10
O Lund, segundo Andr Diniz (2003, p. 17), se consiste em uma msica base de percusso, palmas e
refres, cultivad[a] pelos negros desde os tempos de trabalho escravo nas lavouras de acar da Colnia.
Sandroni (2001) dialoga com Diniz, quando observa que essa msica, que j traz uma interao com a cultura
europia com o fandango espanhol - de origem africana.!
11
12
Todos esse encontros resultaram novas configuraes identitrias, permitindo que processos musicais hbridos
ocorressem.
&(!
msica dos chores j estando presente nos cafs, os principais meios de divulgao do
maxixe foram o assobio e as danas do Teatro de revista13.
O povo assobiava as
melodias que apreendiam em seus palcos nas ruas, o que chamava a ateno at de
estrangeiros que passavam por ali. No dizer de Edinha Diniz, (1999) o Teatro de revista foi o
principal instrumento de intercomunicao entre a msica culta dos sales, os teatros lricos
e a msica popular (Ibidem, p. 65). Essa autora relata tambm a importncia do Teatro de
Revista como meio difusor da msica dos chores, observando que
o teatro de revista pe o palco em contato com a rua. Ali se passa em
revista os acontecimentos do ano, e os comenta humoristicamente. Os
fatos so levemente alinhavados por um enredo de comdia. A msica
elemento fundamental e grande ponto de sustentao desse tipo de
espetculo, sempre alegre, graciosa e espirituosa. Tem uma exuberncia
decorativa. Utiliza estribilhos jocosos e rias risonhas e brejeiras (Ibidem, p.
116).
1.1.1
chores, a msica dos pequenos burocratas, passou a ser executada no s nas festinhas
caseiras, mas tambm nos cafs, teatros de revista e salas de visita, ou seja, nos lugares
frequentados pela elite carioca que comeou a requisitar a sua habilidade de instrumentistas.
Evidenciava-se assim a interao entre diferentes dimenses culturais, o que possibilitaria
atualizaes do modo de tocar que em breve se tornaria um gnero musical, o que ser
abordado adiante.
bom lembrar que nesse novo contexto (final do sculo XIX) havia uma crise no
Brasil, por conta do fim da guerra do Paraguai, da abolio da escravatura e da proclamao
da Repblica. Tudo isso acarretou uma grande dvida externa do pas, principalmente com a
Inglaterra (principal fornecedora de armas para o Brasil) e uma circunstncia social ligada aos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
13
Segundo Andr Diniz (2003), o Teatro de Revista foi trazido pelas companhias francesas, chegou ao Brasil
nas ltimas dcadas do sculo XIX. Esse novo teatro tinha como objetivo passar em revista, da o nome, os
principais acontecimentos urbanos do ano anterior, tornando-se uma porta aberta para compositores, msicos e
cantores talentosos [...] teve em Artur Azevedo um de seus principais escritores e em Chiquinha Gonzaga sua
principal musicista (Ibidem, p. 23). O papel do Teatro de Revista foi fundamental na formao da musicalidade
carioca.
&)!
escravos, agora livres, que no conseguiam ser aceitos no mercado de trabalho e inchavam
a populao da cidade. Insatisfeitos com a crise, o humor e a satirizao se tornaram meios do
povo brasileiro esconder a angstia vivida frente aos problemas, o que levou a uma
intensificao da bomia. Dentre os bomios estavam intelectuais, que se reuniam em
confeitarias como a Confeitaria Paschoal, Confeitaria Colombo e a Confeitaria Castelles
para discutir a crise e ouvir a msica dos chores.
Segundo Edinha Diniz (1999), a deflagrao da vida noturna que o Rio passou a
assistir, a partir da dcada de 1870, inclui a multiplicao de casas do gnero caf-cantante
onde se apresentavam espetculos de variedades (Ibidem, p. 56). Herdados da Frana, os
cafs eram locais de entretenimento para os bomios e policiais da cidade, e, nesse contexto e
cenrio, o Alcazar Lirique era um dos mais famosos e frequentados cafs do Rio, onde se
ouvia msica francesa (tempos depois, a msica dos chores tambm). Nesse perodo a
cultura francesa estava presente com bastante firmeza tambm nos teatros, que de acordo com
Edinha Diniz, era outro local de encontro da sociedade, e quando unia companhia estrangeira
chegada na cidade o tumulto era grande (Ibidem, p. 59). Tudo isso representava os sinais de
modernizao da cidade do Rio de Janeiro.
Conforme a mesma autora, no final do sculo XIX e incio do XX a boemia
atingiu os msicos, s que desta vez com instrumentos de ritmo mais vibrantes. Foi nesse
perodo que se criou a formao inteiramente original do choro (Ibidem, p. 73) e, foi nesses
cafs, segundo tambm Andr Diniz (1999) e Tinhoro (1997), que foi criado o primeiro
grupo com o nome relacionado ao Choro, o grupo Choro do Callado. Esse grupo, formado
por flauta, cavaquinho e violo, tinha como solista o flautista Joaquim Antnio Callado Jr.,
frequentador assduo tambm das reunies festivas dos chores. Callado contribuiu, portanto,
juntamente com seu conjunto, para a divulgao do at ento modo de tocar, que comeava
a atingir lugares onde os chores s agora comeavam freqentar, o que fez com que esses
msicos interagissem mais ainda com nomes de destaque da poca, como a pianista e
compositora Chiquinha Gonzaga14.
A msica executada pelos chores, portanto, comeou a ficar muito popularizada,
o que j permitiu um esboo de mercado de trabalho. Os chores passaram a tocar nos cafscantantes, confeitarias, praas, bailes, saraus domsticos, lojas de msica (que mantinham sob
contrato um executante das peas venda) (Ibidem, p. 67). Alm disso, na segunda metade do
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
14
Segundo Clmaco (2008), Chiquinha Gonzaga foi compositora e partcipe de rodas de choro, foi uma das
principais sintetizadoras da msica popular brasileira na sua imbricada relao com a herana europia/africana
e, posteriormente, firmou-se como uma das mais promissoras compositoras das msicas para os teatros de
revista (Ibidem, p. 107).
&*!
sculo XIX alguns chores eram membros das bandas militares, que, segundo Tinhoro,
foram os principais centros de formao de msicos profissionais (Ibidem, p. 195).
Formada por instrumentos de sopros e percusso, a mais destacada dentre as bandas foi a
Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro criada no ano de 1896 e regida pelo
maestro e compositor Anacleto de Medeiros15. Num cenrio de apogeu do piano, a Banda do
Corpo de Bombeiros, de acordo com Tinhoro (1998),
permitiu aos instrumentos de sopro, darem sua maior contribuio msica
popular, atravs da criao, s vezes com carter quase orquestral, do
variado repertrio europeu de msica de dana, devidamente nacionalizado
pelos conjuntos de choro da baixa classe mdia (Ibidem, p. 196).
trajetria foi marcada desde o incio por uma srie de encontros culturais, por processos de
hibridao marcantes, o que j pode ser observado no levantamento do prprio termo choro,
que designa esse gnero musical. Mariz (1989) concorda com Cascudo [s.d.], quando diz que
a etimologia da palavra est ligada a uma origem africana. Cita o musiclogo Renato de
Almeida que comenta:
o Choro denominao de certos bailaricos populares, tambm
conhecidos como assustados ou arrasta-p. Esse parece ter sido mesmo a
origem da palavra, conforme explica Jacques Raimundo, que diz ser
originria da Contra-Costa, havendo entre os cafres uma festana, espcie
de concerto vocal com danas chamadas xolo. Os nossos negros faziam em
certos dias, como em So Joo, ou por ocasio de festas nas fazendas, os
seus bailes que chamavam xolo, expresso que por confuso com a
parnima portuguesa, passou a dizer-se xoro e que, chegando cidade, foi
grafada Choro, com ch. Como vrias expresses do nosso populrio teve
logo a forma diminutiva de chorinho. [Grifos meus]
Anacleto de Medeiros nasceu no dia 13 de julho de 1866 na ilha de Paquet. Filho de uma escrava tocou flauta
e flautim desde os nove anos de idade. Estudou no Imperial Conservatrio de Msica, onde aprendeu tocar saxsoprano e clarinete. Contribuiu para o gnero Choro com muitas polcas, schottisches. Em 1896, recebeu do
tenente-coronel Eugnio Jardim o convite para organizar a Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro.
Anacleto foi um exmio melodista, excelente harmonizador e sabia orquestrar de forma bastante evoluda para
um msico de banda da poca (CAZES, 1999, p. 29-30).
&+!
chores interagia. Para esse autor, choro no constitua um gnero caracterizado de msica
popular, mas uma maneira de tocar, estendendo-se o nome s festas em que se reuniam os
pequenos conjuntos de flautas, violo e cavaquinho (Ibidem, p. 111). Alm do termo
Choro, Pinto (1976) utiliza o termo pagode para essas festas, assim como se refere aos
msicos que a tocavam como Chores.
J Neves (1977) afirma que o musiclogo Batista Siqueira, comentando sobre a
origem do termo Choro, disse tratar-se de uma coliso cultural da palavra choro (do verbo
chorar) com a corruptela da grafia de chorus, enquanto designao de conjunto
instrumental (Ibidem, p. 18). Cita tambm Mozart de Arajo que explica o nome pelo
carter dolente e choroso das msicas tocadas por esses conjuntos (Ibidem). Kiefer (1990),
por sua vez, menciona o pesquisador Francisco Curt Lange, que ao referir-se ao dos
grupos de msicos no Brasil colonial, chamados choromelleyros, observou:
... e destes choromelleyros veio, sem dvida, a tradio das serestas ao ar
livre, percorrendo as ruas ou atuando na Casa Grande das fazendas, porque
a palavra Choro ou seresta (seresteiro) que se prolongou nos conjuntos
profissionais e de amadores at entrado nesse sculo, tem a mesma origem.
(Ibidem, p. 22)
Cazes (1998), por sua vez, observa: acredito que a palavra Choro seja uma
decorrncia da maneira chorosa de frasear, que teria gerado o termo choro, que designava o
msico que amolecia as polcas (Ibidem, p. 19) herdadas da Europa. As interaes com a
frica e com a Europa, caractersticas do final do sculo XIX, quando o choro floresceu na
cidade do Rio de janeiro, so claras na abordagem do prprio termo choro, portanto. Apesar
de entender que no fcil e nem possvel afirmar com certeza que autor teria razo no seu
enfoque, identifico-me mais com Kiefer, para quem o termo choro remete abreviao de
choromelleyros, grupos de escravos que tocavam charamelas no Brasil colonial, que utilizava
um repertrio europeu (instrudo tambm por um regente europeu), sem se despojar
totalmente de suas prticas culturais. O musiclogo Renato de Almeida, citado por Kiefer
(Ibidem), observa:
...visitando a Bahia em 1610, o francs Pyrard de Laval cita um potentado
de ento, cujo nome no menciona, mas que diz ter sido capito-general de
Angola, o qual possua uma banda de msica de trinta figuras, todas negros
escravos, cujo regente era um francs provenal. E como devesse ser
melmano, queria que a todo instante tocasse a sua orquestra, a
acompanhar, ainda, uma massa coral. (ALMEIDA apud KIEFER, p. 19)
&#!
Pinto (apud Clmaco 2008) lembra ainda que essas festas eram longas, muitas
vezes duravam at as 9, 10, 11 da manh. Finda a reunio nos quintais das casas, os chores
procuravam botequins, que eram conhecidos como pontos. Dependendo do festeiro, poderia
durar at trs dias e uma semana, sendo que eles s retornavam para suas casas em virtude do
trabalho. Apesar de serem msicos amadores, como relatou Tinhoro (1998), Pinto diz que
alguns msicos mostravam virtuosismo, tanto na execuo das danas importadas da Europa
quanto no momento dos desafios. Estes desafios, por sua vez, se consistiam em improvisar
sobre o acompanhamento proposto pelos violonistas. Solistas desafiavam acompanhadores e
vice-versa, mas tudo no clima de descontrao e amizade. Andr Diniz (2003) enfatiza o fato
dizendo: o calor das rodas de choro, as malandragens nas execues, a provocao dos
solistas tudo colaborava para imprimir ao gnero sua tnica de liberdade e improviso
(Ibidem, p. 15). Alm dos desafios, aconteciam dilogos musicais, troca de papis e os
chores mais inexperientes contavam com o auxlio dos mais vividos, o que evidencia o clima
de respeito, sobretudo com o dono da casa. Edinha Diniz observa, a partir desse contexto, que
essas festividades, com muita msica e dana, revelava a paixo do povo por essas artes,
de todas as modalidades de divertimento existentes, a msica assume sua
importncia pelo seu alcance e extenso. Estava presente no cotidiano da
populao. [...] Valsas nos sales das gentes senhoriais, polcas nas salas
'%!
Pde ser percebido que a msica constituiu, nesse cenrio amistoso em que os
msicos amadores mostravam toda sua versatilidade, em que eram recebidos com mesas
fartas, um dos elementos fundamentais de um ambiente onde os moradores da Cidade Nova
encontravam lazer, apesar das dificuldades de adaptao cidade moderna que o Rio de
Janeiro pretendia ser, imitando o modelo de Paris, segundo Pesavento (2002).
Por outro lado Cazes (1995), referindo-se histria do choro, observa que no incio do
sc. XX, nas mos, sobretudo, de Alfredo da Rocha Viana Filho o Pixinguinha - o modo
de tocar transformou-se em um gnero musical. Segundo esse autor,
partindo da msica dos chores (polcas, schottisch, valsas etc) e misturando
elementos da tradio afro-brasileira, da msica rural e de sua variada
experincia profissional como msico, Pixinguinha aglutinou ideias e deu
ao Choro uma forma musical definida (Ibidem, p. 57) [Grifo meu].
Neves (1977) dialoga com Diniz quando faz referncia ao carter improvisatrio
das competies que ocorriam nesses encontros, segundo o autor
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
16
No tpico 1.3.1 deste trabalho apresentarei detalhes sobre Joaquim Antnio Callado.
'"!
Sistema tonal sistema referente aos modos maiores e menores, que embasam diferentes tonalidades. Estas
escalas maiores e menores do suporte funcional harmonia (representada por acordes e progresses de acordes
na maioria das vezes). Uma msica pertence ao sistema tonal quando est baseada em escalas e acordes que
foram formados a partir dessas escalas. O sistema tonal surgiu no perodo Barroco. Segundo Bennet (1986),
neste perodo os compositores foram se acostumando a sustenizar e bemolizar as notas, da resultando a perda
de identidade dos modos, que, por fim, ficaram reduzidos a apenas dois: jnio e elio. Da se desenvolveu o
sistema tonal maior-menor sobre o qual a harmonia [processos harmnicos] iria se basear nos dois sculos
seguintes (Ibidem, p. 35). Aps o perodo ureo da polifonia o Renascimento - segundo ainda esse autor,
surgiram dois procedimentos que serviram de base para a msica popular de um modo geral: a Monodia e a
Homofonia. A primeira se refere melodia acompanhada de uma linha de baixo instrumental, a partir da qual os
acordes so construdos. De acordo com Albino (2009) uma das situaes onde a improvisao no Barroco fora
muito utilizada foi no baixo contnuo [...] O msico encarregado de executar o instrumento de teclado deveria
tocar esse baixo com a mo esquerda e improvisar com a mo direita a harmonia indicada pelas figuras
(nmeros) sob a linha do baixo (Ibidem, p. 70). J a segunda, que aparece no fim do Barroco e incio do perodo
Clssico, consistia em vozes que caminhavam paralelamente, isto , numa linha harmnica horizontal, assim
definida por Bennet (1986) as suas melodias faziam-se ouvir sobre um acompanhamento de acordes (Ibidem,
p. 46). [Grifos meus]
'$!
mordentes grupetos, glissandos etc. A finalidade era, enfim, executar de maneira diferente
determinado trecho. o carter improvisatrio, portanto, independente das peculiaridades
relativas a cada gnero, conforme Almada e Neves (1977), que aproxima o choro do gnero
de origem norte-americana o Jazz18. importante ressaltar que pouco antes da dcada de
1950, com o surgimento da Orquestra Tabajara, regida pelo maestro Severino Arajo, cuja
formao coincidia com as big-bands norte-americanas, o jazz comeou a influenciar
msicos como K-Ximbinho, Garoto, dentre outros. O primeiro, segundo Cazes (1999), se
destacou, realizando um casamento perfeito entre o Choro e os elementos harmnicos
oriundos do jazz (Ibidem, p. 118). J o segundo, evidenciou em composies como
Lamentos do Morro e Inspirao, possibilidades harmnicas que no tinham sido vistas at o
momento, e que seriam mais exploradas a partir da bossa nova. Garoto deixou um legado de
composies para violo que bastante explorado nos cursos superiores de msica da
atualidade (Ibidem).
Essas primeiras reflexes sobre a improvisao levaram a duas abordagens desse
processo: uma abordagem histrica e uma abordagem de suas peculiaridades. Uma histria da
improvisao na sociedade ocidental europia, sem perder de vista a prtica na antiguidade do
processo de centonizao19 (que aconteceu tambm na msica vocal que predominou na
Idade Mdia), tem no final do Renascimento e no perodo Barroco dois marcos importantes.
Esses perodos foram marcados por um intenso desenvolvimento dos instrumentos e da
msica instrumental nessa sociedade (GROUT, 1994). Albino (2009) observa que neste
perodo a improvisao era naturalmente aceita no meio musical havia a clara inteno de
improvisar em msica. [...] J. S. Bach foi mais conhecido em sua poca como exmio
improvisador (Ibidem, p. 69). No perodo clssico, a cadenza dos concertos foi o principal
meio propiciador de espao para a improvisao musical da poca. Menuhin e Davis (1979)
relatam sobre a importncia da cadenza. Segundo os autores:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
18
O jazz um dos gneros musicais em que a improvisao se faz mais presente do que no choro. As melodias
de curta durao, juntamente com a estrutura formal peculiar, constituda apenas de uma ou duas partes,
possibilita uma improvisao em que, na verdade, o solista usa uma estrutura fixa para gerar estruturas novas
(KORMAN, 2004, p. 3). Isso significa que a nova melodia criada pelo solista no momento do improviso se
difere daquela criada pelo compositor. Filho e Silva (1998) afirmam ainda que jazz quer dizer improviso; jazz
uma palavra que nada quer dizer, exceto improviso (Ibidem, p. 205).
19
Processo de Centonizao Segundo GROUT (1994) Esse processo se caracteriza pelo exerccio da
improvisao a partir de frmulas meldicas conhecidas e transmitidas pela tradio: os nomoi gregos so
exemplos dessa prtica que levava instrumentistas gregos a participarem de importantes concursos de virtuoses
no instrumento (aulos e lira). Essa prtica continuou na Idade Mdia, sobretudo, na msica vocal, atravs das
frmulas meldicas que estavam na base dos cantos salmdicos.
'&!
(ALMADA,
2006,
p.
56-57),
ou
seja,
que
est
sendo
''!
Tendo como base esses autores, pude levantar a hiptese de que a improvisao
no ocorre de maneira aleatria, ela depende de todo um preparatrio, seja com teoria musical
ou com experincias vividas pelos msicos.
Enfim, esse modo de tocar, transformado em um gnero musical no incio do
sculo XX, segundo Cazes (1999), floresceu entre os anos de 1870 e 1930 na cidade que
queria ser moderna (CLIMACO, 2008): o Rio de Janeiro. Floresceu j implicado com
processos de hibridao cultural, como pde ser observado. Mais tarde, a partir da dcada de
1930, se transformou em um gnero musical, sobretudo, nas mos de Alfredo Rocha Vianna
Filho o Pixinguinha. Nesse cenrio e contexto descritos, portanto, se destacaram vrios
nomes que so reverenciados at os dias atuais, como os j citados Antnio Callado,
Chiquinha Gonzaga, Anacleto de Medeiros e Pixinguinha.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
20
Traduo: Essa alegria de improvisar enquanto se canta e se toca um instrumento evidente em quase todas as
fases da histria da msica. Essa foi sempre uma fora poderosa na criao de novas formas, e todo o estudo
histrico que se limita prtica ou s fontes tericas que nos foram deixadas de forma escrita ou impressa, sem
levar em conta o elemento de improvisao e a vivncia da prtica musical, deve ser considerado
necessariamente como algo incompleto, certamente um retrato distorcido.
'(!
Almada (2006) utiliza as nomenclaturas macro-forma e micro-forma. A primeira referese estrutura mais ampla, forma-rond (ABACA que ser vista logo mais a frente) e s
principais modulaes que acontecem entre as suas partes, estabelecendo uma relao
caracterstica entre elas; a segunda, por sua vez, enfoca os elementos estruturais mnimos: as
clulas e motivos rtmicos e meldicos, as principais progresses harmnicas (Ibidem, p. 15)
que estruturam as frases que compem cada parte.
Uma das principais caractersticas que definem o gnero, portanto, segundo
fundamentao tambm em Cazes (1999), Diniz (2003) e Neves (1977), e tendo em vista o
conceito de macro-forma de Almada (2006), a forma rond, que traduzida a partir de uma
maneira bem abstrata, pode ser percebida assim: ABACA. Essa estrutura j evidencia que a
primeira parte do choro, a parte A, repetida mais vezes, se alternando com as outras partes,
')!
consideradas contrastantes. Almada destaca ainda que cada uma das trs partes tem grande
autonomia, quando se fala em temas e motivos, elas soam como se fossem trs choros
independentes, sem fortes ligaes de parentesco. Na verdade, os principais elementos de
coeso entre as partes (alm da estrutura formal recorrente) so as relaes mtuas entre suas
tonalidades (Ibidem, p. 9). Em termos harmnicos, assim como na polca, as modulaes
mais comuns nos primeiros choros so do primeiro para o sexto grau e do primeiro para o
quarto grau (este geralmente nas terceiras partes), ou do primeiro para o terceiro e homnimo
maior (isto acontece geralmente em tonalidades menores) 21 . Neves (1977) observa que
[choros com essa estrutura formal] so, em grandes linhas, os prottipos da construo da
msica do choro que esto presentes em toda a produo deste gnero musical (Ibidem, p.
22). No entanto, sobretudo aps o final da dcada de 1920, foram compostas peas do gnero
com duas partes contrastantes (ABA)22, ao invs de trs (ABACA), embora as modulaes
continuassem se assemelhando com a estrutura relacionada ao primeiro caso (ABACA).
Nomes como Pixinguinha, Waldir Azevedo e Jacob do Bandolim compuseram muito de
acordo com essa maneira inovadora.
Dentre os trs elementos bsicos que compem a msica (ritmo, melodia e
harmonia), j pensando na micro-forma do gnero, o choro apresentou uma riqueza e
peculiaridades muito grandes nos seus primeiros desenvolvimentos, sobretudo, em termos do
ritmo e da melodia. A harmonia continuou preservando muito a funcionalidade do sistema
tonal herdado da Europa, nesse caso especial, atravs da danas de salo que chegaram no Rio
de Janeiro em meados do sculo XIX, segundo Cazes (1999) e Diniz (2003), configurando
mais um processo identitrio no cenrio musical choro brasileiro, implicado com processos
de hibridao, conforme definidos, respectivamente, por Hall (2005) e Canclini (2003). Os
elementos tanto da melodia quanto do ritmo, da batida ou levada23 apresentam heranas
da polca tambm, mas j evidenciam um dilogo grande com a Sncope caracterstica,
muito presente no lundu (Sandroni, 2001), j mencionado. Esses elementos estruturais do
choro, nas suas peculiaridades, chamados por Almada (2006) de micro-forma, sero
abordados a seguir.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
21
Refiro a modulao para os relativos menores e maiores (no caso o sexto grau e quarto graus de determinado
campo harmnico maior).!
22
23
Forma Ternria.!
Levada o nome popular que se d maneira que o violo e a percusso acompanham ritmicamente
determinado gnero.
'*!
1.2.2
africanos e das polcas europias, conforme j mencionado e exemplificado por Cazes (1988,
p. 39) nas figuras24 1a e 1b.
No entanto, a msica executada pelos chores era mais sincopada do que o lundu
e mais ritmada ainda que a polca. Sandroni (2001) lembra que Mrio de Andrade25 j falava
em sncope caracterstica ao se referir s peculiaridades da msica brasileira, observando
que a sncope... no primeiro tempo do dois por quatro [compasso] a caracterstica mais
positiva da rtmica brasileira (Ibidem, p. 20). No entanto, Sandroni vai alm, quando conclui
que, na verdade, o que houve mesmo no universo da msica brasileira foi um processo de
hibridao dos sistemas rtmicos africano (imparidade rtmica; contrametricidade) e europeu
(proporcionalidade; cometricidade), que resultou um sistema rtmico brasileiro contramtrico
em toda a sua base, mas enquadrado nos compassos.26 O msico brasileiro Egberto Gismonti,
em uma entrevista concedida ao projeto Vozes de Mestres, estabelecendo dilogo com
Sandroni, observou que a principal diferena entre msica brasileira e alem est nos
acentos, no Brasil muito raro o acento no tempo forte, j no pas europeu esta caracterstica
a mais presente (GISMONTI, 2011). Refere-se, portanto, tambm Cometricidade e
Contrametricidade, termos estabelecidos pelo estudioso da msica africana Kolinski (1960),
citado por Sandroni (2001). O primeiro termo remete constncia dos ritmos que recaem
sobre os tempos fortes de determinados compassos, como exemplificado no Recorte 2a e o
segundo, constncia de contratempos, ou seja, queles rtmos que recaem sempre contra o
tempo forte, como pode ser observado na figura 2b .
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
24
Onde houver exemplificaes de clulas rtmicas, ou exemplos menores, estaro indicados como Figura. Os
trechos analisados e transcries sero classificados como Recortes.
25
!!Mrio de Andrade, intelectual, folclorista brasileiro e cabea de um dos principais movimentos nacionalistas
brasileiros vigentes na primeira metade do sculo XX.
26
Ver mais sobre esse sistema rtmico na obra Feitio decente de Carlos Sandroni, citada nas referncias desse
trabalho
'+!
Sandroni (2001) chega concluso de que uma das primeiras manifestaes dessa
fuso mais ampla de sistemas bsicos resultou tambm uma constncia rtmica para a msica
brasileira no final do sculo XIX e incio do sculo XX, que chamou de paradigma do
tresillo27 (exemplificado na Figura 3), integrada por trs variantes rtmicas (que podem ser
conferidas nas Figuras 3a, 3b e 3c). Essas variantes foram constantemente utilizadas pelos
gneros que floresceram nesse perodo, o que inclui o choro, mencionado pelo autor.
Figura 3
- Paradgma do Tresillo
Figura 3b - 2 variante:
Segundo Tinhoro (1991, p. 58), essa contrametricidade, que aparece incorporada nas
trs variantes do paradigma do tresillo no perodo mencionado, evidencia a ginga carioca,
isto , as contribuies rtmicas brasileiras para os gneros europeus, e que aqui inclui a
msica dos chores. Sandroni (2001) concorda com Tinhoro quando observa:
Assim, veremos que lundu, polca-lundu, cateret, tango, maxixe e todas as
combinaes destes nomes, embora em outros contextos possam ter
determinaes prprias, quando estampados nas capas das partituras
brasileiras do sculo XIX, nos informavam basicamente que se tratava de
msica sincopada, tipicamente brasileira e propcia aos requebrados
mestios (Ibidem, p. 31).
Com essas constataes, pde ser verificado tambm que o choro, na sua origem,
j trazia caractersticas hbridas, evidenciadas pela sua estrutura constituda, nesse caso, de
elementos rtmicos resultantes de influncias recebidas de gneros e sistemas rtmicos vindos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
27
Ver mais tambm sobre o paradigma do tresillo na obra Feitio decente de Carlos Sandroni, j citada.
'#!
de outros pases. As variantes do Tresillo estavam presentes de forma marcante nesse gnero
musical, na linha meldica e no acompanhamento. Na melodia, o que mais ocorria eram as
sncopes, colcheias pontuadas seguidas de semicolcheias, colcheias seguidas de duas
semicolcheias etc., todas essas clulas apareciam entre pausas e valores, o que pode ser
conferido na Figura 4. Almada (2006) exemplifica ali as clulas rtmicas mais encontradas nas
melodias do choro. No acompanhamento, as sncopes e as colcheias pontuadas seguidas de
semicolcheias apareciam com mais predominncia como revela a Figura 5.
Figura 4. Clulas rtmicas mais presentes na melodia no choro segundo Almada (2006, p 10).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
28
Sobre as frmulas que constituem as inflexes meldicas (cambiata, apojiatura, bordadura, escapada, dentre
outras), ver mais detalhes na obra A estrutura do choro de Carlos Almada, 2006, p. 35 a 46, citada nas
referncias. Notas meldicas so notas que no pertencem aos acordes, elas podem ser cromticas, ascendentes,
descententes ou diatnicas e so classificadas de acordo sua abordagem. H, basicamente nove tipos de notas
meldicas. 1. Nota de passagem, que geralmente preenchem, de modo ascendente ou descendente os intervalos
(%!
conforme exemplificado no Recorte 1. Segundo esse autor, uma nota exerce papel de
inflexo quando duas condies so observadas: a) a nota no pertence ao arpejo do acorde
que a acompanha; b) a nota invariavelmente resolve (isto , dirige-se por grau conjunto,
ascendente ou descendente, a uma nota harmonicamente estvel, ou seja, uma nota do arpejo)
(Ibidem, p. 29).
Recorte 1. Exemplo de inflexes meldicas (notas circuladas). Trecho do choro Flor Amorosa de
Joaquim Antnio Callado. Compassos 26 e 27. Anexo 1.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
de tera. 2. Bordadura, que ornamentam uma nica nota em graus conjuntos. 3. Suspenso, onde uma nota
mantida antes da sua resoluo, geralmente resolvida de modo descendente. 4. Retardo, uma suspenso de
modo ascendente. 5. Apojuatura, precedida por salto e deixada por grau conjunto. 6. Escapada, frequentemente
usadas em sequncia para ornamentar uma linha escalar. 7. Dupla bordadura, uma combinao de uma
escapada seguida de apojiatura. 8. Antecipao, antecipa de modo conjunto a tnica do prximo acorde. 9. Pedal,
uma nota sustentada que comea como uma nota do acorde, torna-se uma Nota Meldica conforme a harmonia
muda e, finalmente, termina como uma nota do acorde quando a harmonia fica em conformidade com ela. Todas
essas informaes foram retiradas do site <!http://www.clem.ufba.br/bordini/cons/n_mel/n_mel.htm >.
("!
Autores como Neves (1977), Cazes (1999) e Filho e Silva (1998), tambm
destacam a caracterstica ligada ao virtuosismo relacionada ao gnero. Neves (1977) faz
vrias referncias a essa caracterstica, dentre elas, est aquela em que afirma que o choro se
constitui em um gnero musical dos mais complexos, exigindo de seus intrpretes altas
qualidades musicais, o que impede a sua abordagem por msicos que no preencham estas
exigncias (Ibidem, p. 21). Observa ainda que a construo meldica do choro tributria
instrumental de seus autores. bem natural que instrumentistas como Callado ou Nazareth
colocassem suas msicas no limite das possibilidades dos instrumentos (Ibidem, p. 22).
Com esta afirmao, alm de estabelecer dilogo com Luciana Rabello, conversa tambm
com Cazes (1999), quando este autor, ao comentar sobre a polca Flor Amorosa de Callado,
pondera que o estilo virtuosstico da pea se deve ao fato do compositor dominar seu
instrumento (Ibidem, p. 25).
Neves (1977), abordando outro aspecto relacionado melodia no choro, agora
citando Luis Heitor, relaciona o virtuosismo do gnero performance improvisatria do jazz.
Segundo esse autor, (...) a msica do choro mais virtuosstica [que o jazz], mais concertista
e mais pobre harmonicamente como colorido orquestral do que a msica do Jam Session29
(HEITOR, apud NEVES, 1977, p. 23). J Filho e Silva (1998), tambm citando o jazz,
enfocam a questo rtmica junto ao virtuosismo, ao afirmarem que a influncia da msica
africana, que no atingiu com tanta firmeza o jazz norte-americano, contribuiu para a riqueza
rtmica do choro e seu virtuosismo (Ibidem, p. 204). As melodias, referncia importante do
virtuosismo no choro, ponto de partida e suporte das improvisaes, outra caracterstica
importante do gnero, so constitudas por figuras de valor de rpida execuo, como por
exemplo, semicolcheias em compassos de denominador quatro e sncopes, que muitas vezes
resultam hemolas30.
No tocante aos instrumentos solistas, que se incumbem da melodia no choro,
evidenciando o seu carter virtuosstico e improvisatrio, a flauta, conforme Cazes (1999) e
Diniz (2003), sobretudo atravs da influncia e do trabalho pioneiro como solista de Joaquim
Callado, foi considerada um dos primeiros instrumentos solistas do gnero. Geralmente uma
das oitavas era mais aproveitada para o improviso, embora o flautista pudesse
tocar/improvisar nas duas oitavas. Dentre os principais executantes desse instrumento no final
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
29
o ato de convidar algum msico para improvisar durante o show. No Brasil conhecido como dar uma
canja.
30
Hemola - Quando o acento deslocado do tempo forte, dando a impresso de mudana de compasso.!
($!
do sculo XIX, at meados da dcada de 1960, destaco Joaquim Antnio Callado, Patpio
Silva, Agenor Bens e Pixinguinha. O clarinete e o bandolim surgiram tambm como
instrumentos solistas pouco depois da flauta, no entanto, no encontraram dificuldades nesse
mbito, pois possuam extenso ainda maior. Luis Americano, Severino Rangel, Jacob do
Bandolim, Luperce Miranda, dentre outros, se destacaram nesses instrumentos. J o cavaco
como instrumento meldico solista deve muito, sobretudo, a Waldir Azevedo (BERNADO,
2004). Atualmente muitos cavaquinistas virtuoses conseguem adapt-lo s melodias mais
tradicionais, Henrique Cazes um desses exemplos.
1.2.4 A harmonia herana da polca
A harmonia, por sua vez, nos primrdios do gnero choro, no apresenta tanta
complexidade quanto o ritmo e a melodia, conforme fundamentao, sobretudo, em Almada
(2006).
A anlise harmnica feita com os nmeros romanos de I a VII, que representam os sete graus da escala
maior. So distribuidos respectivamente da seguinte maneira: Tnica, Supertnica, Tera, Subdominante,
Dominante, Superdominante e Sensvel.
(&!
II
III
IV
V*!
VI
VII*"
Dm
Em
G7
Am
a) as dominantes secundrias33:
V7/IIm
V7/IIIm
V7/IV
V7/V7
V7/VIm
A7/Dm
B7/EM
C7/F
D7/G7
E7/Am
II#/IIIm
C#/Dm
D#/Em
III#/IV
E/F
IV#/V7
F#/G7
V#/VIm
G#/Am
Trades ou tdrades diatnicas podem representar uma resoluo, que podem ser tensionados por um acorde
de dominante. Se esse dominante no pertencer a tonalidade principal, chamado de dominante secundrio
(GUEST, 2006, p. 52).
34
Trtono uma 4 aumentada formada por duas notas diatnicas que pertencem a mesma escala (MED, 2001,
p. 54).
('!
Im
II
IIIaum
IVm
V7
VI
VII
Am
C5aum
Dm
E7
G#
V7/IVm
V7/V7
V7/VI
A7/Dm
B7/E7
C7/F
II
III
IV
VI
VII
Maior
D
Cm
Dm
Eb
Fm
G7
Ab
Bm
Cm
Dm
Eb
Fm
Gm
Ab
Bb
menor
(harm.)
D
menor
(nat.)
((!
D
Cm
Dm
Eb
G7
Am
Bm
menor
(mel.)
()!
ressalta que devido s suas particularidades timbrsticas, aquele que mais se equilibra com a
percusso.
O violo tambm meio de sustentao para os solistas, a diferena do solo
realizado nesse recorte de tempo que enquanto o cavaco toca somente notas agudas, o violo
responsvel pelos baixos. Dentre os primeiros performers que desempenharam esses papis
esto: Nelson Alves e Canhoto Cavaquinho; Stiro Bilhar, Quincas Laranjeira e Arthur de
Souza o Tute Violo. Tute foi um dos primeiros a introduzir o violo de sete cordas, que
permitia fazer um acompanhamento mais encorpado, realizado, sobretudo, pelas cordas mais
graves, que executavam frases curtas. Essas frases, muito trabalhadas por esse msico, s
vieram a ser mais popularizadas entre os chores quando Pixinguinha, com o sax-tenor,
comeou a fazer contrapontos com a melodia usando as notas graves do instrumento.
Interessante lembrar que o violo de sete cordas hoje em dia tambm usado como
instrumento solista. Os precursores desta modalidade de execuo foram Raphael Rabelo,
Yamand Costa, Rogrio Caetano, dentre outros, que tm se sobressado nessa posio. Do
mesmo modo, apesar do trabalho de acompanhamento ser a principal caracterstica do violo
e do cavaquinho no incio do sculo XX, nesta mesma poca, nomes como Dilermano Reis e
Joo Pernambuco j compunham polcas e peas prximas ao que hoje em dia pode ser
considerado um choro para violo solo. Esse choro bastante difundido atualmente (CAZES,
1999).
1.3 O processo de improvisao
Segundo os depoimentos histricos de Alexandre Gonalves Pinto (1978), eram
comuns longas improvisaes nos encontros dos primeiros chores. No entanto, o que se
percebe nas primeiras gravaes do choro (documentos sonoros que se tem em mos hoje em
dia), so apenas algumas variaes meldicas, ou seja, ornamentos como grupetos,
apogiaturas ou trinados, que aparecem em diferentes pontos da melodia e que no esto na
partitura escrita pelo compositor. Isso remete citao de Paulo Moura (ver p. 40),
dialogando tambm com o Dicionrio Grove de Msica, quando, ao comentar sobre a
improvisao no choro, afirma que improvisar condiz com a elaborao ou ajustes de
detalhes numa obra j existente, ou qualquer coisa dentro desses limites (Ibidem, p. 450). J
o msico goiano Oscar Wilde35, em entrevista, comentou a respeito: essas variaes sobre o
tema tambm podem ser chamadas de improvisos, pois o tema est sendo mudado, e so
coisas que os intrpretes de choro fazem no momento. Essas observaes confirmam o fato
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
35
(*!
O msico goiano Joo Garoto36, por sua vez, tambm em entrevista, afirmou que
a improvisao no choro est mais ligada ao ritmo, o solista tem que ficar atento s
acentuaes rtmicas que o violo faz junto com o pandeiro (GAROTO, 2011). J Almada
(2006), aps fazer todo um detalhamento das principais caractersticas formais, rtmicas,
meldicas e harmnicas do choro, chegou concluso de que essas caractersticas, a sintaxe
do choro, conduzem s maneiras peculiares de improvisar no choro tradicional. Esse
processo improvisatrio, que implica na abordagem da forma Rond (ABACADA) e tambm
nas inflexes meldicas j descritas, diferindo daquele que acontece no jazz, conduz s
variaes. Segundo esse autor,
o simples fato de a parte A [primeira parte] na execuo de um choro
convencional ser apresentada por quatro vezes fornece uma boa pista das
razes pelas quais os instrumentistas de maior talento tenham se sentido
naturalmente impelidos em direo variao meldica (ALMADA, op. cit,
p. 55).
(+!
Na dcada de 1940, Pixinguinha perdeu o emprego na rdio e, com o pouco trabalho em orquestraes, aliado
ao excesso de bebida, passou por momentos de dificuldades. Imerso nesse contexto, teve que aceitar a proposta
de Benedito Lacerda, conforme mencionado por Cazes (1999): Lacerda arranjaria gravaes e edies para as
msicas de Pixinguinha e, em troca, aparecia como parceiro. Fazia parte do compromisso que Pixinguinha no
tocasse mais flauta, passando definitivamente para o sax tenor (Ibidem, p. 76).
38
Andr Diniz (2003) observa que as aulas com Irineu Batina, que integrava a banda do Corpo de Bombeiros
regida por Anacleto de Medeiros, o contato com a prtica e experincia desse msico com arranjos que
integravam diferentes instrumentos nessa banda, interferiram tambm no processo de elaborao do contraponto
brasileiro.
39
Baixaria no choro o nome que se d s melodias tocadas pelo baixo do violo de sete cordas contrapondo
com a melodia principal.
(#!
Regionais so grupos de choro formados pelos instrumentos mais tpicos do gnero, que so: cavaco, violo
(de seis e/ou sete cordas), pandeiro e um instrumento solista. Esses conjuntos atuaram no Rdio na sua poca
urea: a primeira metade e meados do sculo XX.
)%!
de 1930, o foco passo agora para a performance e para as anlises estruturais de obras
selecionadas do repertrio de dois compositores que a pesquisa bibliogrfica e a experincia
em rodas de choro possibilitaram perceber como nomes significativos desse perodo: Joaquim
Antnio Callado e Alfredo da Rocha Vianna Filho o Pixinguinha.
1.4 A performance e o choro que marcaram poca
Joaquim Antnio Callado e Alfredo da Rocha Vianna Filho o Pixinguinha tiveram um papel importante no desenvolvimento do modo de tocar que, sobretudo nas
mos de um deles Pixinguinha - se tornaria em um dos mais significativos gneros
musicais brasileiros, o gnero choro. Faz parte deste tpico tambm a anlise das transcries
das improvisaes feitas por Pixinguinha, pelos Irmos Eymard e por Agenor Bens, esse
ltimos, intrpretes das primeiras gravaes de obras de Callado41. Isso com o intuito de
melhor exemplificar os elementos estilsticos identificados at o momento, conforme j
indicado, e j tentar comprovar o aspecto da hiptese que remete afirmao de que os
procedimentos harmnicos tm condies de interferir nos processos de improvisao do
choro.
1.4.1 Joaquim Antnio Callado
Os chores, vindos das bandas, tinham uma vantagem sobre os outros msicos:
sabiam ler partituras. Exatamente por isso, grafavam para registro, quando necessrio, as
melodias criadas no momento da roda de choro. Um dos pioneiros a realizar esse feito,
segundo Andr Diniz (2008), foi o exmio flautista Joaquim Antnio da Silva Callado,
considerado hoje o pai dos chores. Segundo esse autor, Callado recebeu esse ttulo por ter
levado sua flauta de bano ao encontro dos violes e cavaquinhos, alm de ter organizado o
grupo de msicos populares mais famoso da poca O Choro Carioca, ou Choro do Callado alm de ser autor de quase 70 melodias (Ibidem, p. 15). Afro-brasileiro, filho de trompetista
e mestre de banda, Callado nasceu no Rio de Janeiro em 1848, cidade em que tambm faleceu
em 1880. Iniciou seus estudos musicais aos 8 anos de idade com o compositor brasileiro
Henrique Alves de Mesquita42. Teve seu primeiro reconhecimento como compositor aos 19
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
41
Como no se tem nenhum registro de interpretaes de Callado, uma vez que na poca em que era vivo no
havia gravadoras no Brasil, foram escolhidos registros sonoros de sua msica efetivados pelos primeiros
intrpretes a realizar esse feito: os Irmos Eymard com a obra Flor Amorosa, gravada em 1902 e Agenor Bens
com a obra Cruzes, minha prima, gravada em 1914. A Casa Edison, a primeira gravadora do Brasil, foi
inaugurada em 1900, dez anos aps sua morte.
42
O compositor brasileiro Henrique Alves de Mesquita, dezoito anos mais velho que Callado, ganhou nove anos
de bolsa em Paris. Na capital francesa chegou a estrear a opereta La Nuit au Chateau, sobre libreto de Paul de
)"!
anos com a quadrilha Carnaval de 1867. Dentre suas principais composies esto Saudosa,
Linguagem do Corao e Flor Amorosa, esta ltima, considerada um dos primeiros choros a
serem gravados. Alexandre Gonalves Pinto (1978), o veterano choro que vivenciou o calor
das rodas de choro, no seu histrico livro O choro reminiscncias de chores antigos,
revela a importncia do flautista fazendo as seguintes reverncias: Callado foi um flauta de
primeira grandeza [...] tornou-se um Deus para todos que tinham a felicidade de ouvi-lo
(Ibidem, p. 11). Segundo esse autor, alm de ter feito concertos no teatro do Rio, era msico
de tocar de primeira vista e de compor qualquer choro de improviso, finaliza dizendo que
Callado, foi o rei da msica daquele tempo (Ibidem, p. 12).
Por outro lado importante dizer ainda que em 1871, Antnio Callado tornou-se
professor de flauta do Conservatrio de Msica. O seu instrumento, a flauta transversal,
chegou ao Brasil por volta de 1859, quando o imperador D. Pedro II resolveu contratar
msicos europeus para tocar no palcio, dentre eles, o flautista belga Mathieu-Andr Reichert.
A chegada desse flautista, segundo Cazes (1999), fez crescer o interesse j existente pela
flauta, pois alm de ser um virtuose e criador de repertrio prprio, ele foi um dos
introdutores do sistema Boehm
43
possibilidades para o instrumento (Ibidem, p. 23). O primeiro solista do novo gnero que
iria surgir nesse contexto, de acordo com esse autor, seria o prprio Callado. Referindo-se
sua capacidade de improvisar, depois de mencionar que duas das principais caractersticas do
Choro so o improviso e a competio, Cazes (1999) utiliza uma citao da pesquisadora Iza
Queiroz Santos para revelar um episdio envolvendo Callado e Reichert, que evidencia essas
caractersticas
Certa vez, voltando de uma lio, Callado chegou a uma casa de msica,
trazendo a sua flauta de bano de cinco chaves. Algum o convidou para
subir, pois Reichert ia tocar para um pequeno auditrio. Callado dirigiu-se
ao salo. Depois das apresentaes de costume, Reichert comeou a
audio. A msica de sua autoria ainda estava em manuscrito. Era
dificlima. A execuo impecvel foi muito aplaudida. Reichert, que j
ouvira referncias sobre Callado, manifestou o desejo de ouvi-lo. Callado
no se fez de rogado. Pediu o manuscrito, leu-o ligeiramente e tocou-o de
primeira vista de um modo arrebatador. Houve verdadeiro entusiasmo entre
os presentes. Callado no quis, porm, parar a a competio e props a
Reichert que tocassem juntos. O belga ficaria com a msica e ele faria
variaes. Houve um verdadeiro assombro ante a audcia do mestio. Mas
como se tratasse de um prlio de honra, os dois iniciaram a execuo. Para
nosso orgulho, os dois grandes flautistas se igualaram. Inegavelmente
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Koch. Ainda em Paris, brilhou com a quadrilha Soire Brsilienne. Em 1871, cinco anos aps o retorno ao
Brasil, lanou aquele que considerado o primeiro tango brasileiro: Olhos Matadores (CAZES, 1999, p. 24).
43
Sistema moderno da flauta transversal criado em meados do sculo XIX pelo flautista e compositor Theobald
Boehm (PORTO, 2011, disponvel em: http://www.aflauta.com.br/hist/hist.html ).
)$!
Como na poca ainda no existia um gnero musical chamado Choro, Flor Amorosa era intitulada polca.
Atualmente chamada de choro, pois sua forma e construo rtmica harmnica e meldica similar s
composies que receberam o ttulo de Choro. Por isso utilizarei sempre esse termo para as obras que no
contexto do modo de tocar do chores, entre o final do sculo XIX e meados da dcada de 1920, foram
denominadas polcas.
)&!
bem normal que instrumentistas como Callado ou Nazareth colocassem suas msicas no
limite das possibilidades dos instrumentos (Ibidem, p. 22). O mesmo autor observa ainda que
encontramos em muitas outras obras interessante alternncia da regio aguda e grave, o que
revela preocupao na variao do timbre (Ibidem, p. 22). Pode ser considerado, portanto,
que a maioria dos compositores escreveu melodias para seu instrumento, porm, cada
performer teve condies de fazer uma adaptao da melodia, arranjos puderam ser feitos,
como pde ser constatado com Anacleto de Medeiros na Banda do Corpo de Bombeiros do
Rio de Janeiro, que teve de adaptar composies de Joaquim Callado, Chiquinha Gonzaga e
Ernesto Nazareth para instrumentos como clarinete, trompete ou trombone (Ibidem, p. 23).
Flor Amorosa45
O choro Flor Amorosa possui a forma Rond, trs partes, nomeadas A,
B e C. A parte A aquela que deve ser repetida entre as outras partes, contrastantes, o que
resulta a estrutura AA-BB-A-CC-A e Coda, conforme j abordado. Essa era a estrutura formal
comum at a dcada de 1930, o perodo em que Pixinguinha comps os choros Carinhoso e
Lamentos, com apenas duas partes. As valsas, schottisches e polcas de Callado e seus
contemporneos seguiam esse padro formal.
A sua rtmica, como j dito por Cazes (1999), determina um carter virtuosstico,
revela os padres de fraseado sobre o qual Seve (2010) observa: na msica brasileira, uma
das suas figuras caractersticas, a sncope
e
executada com exatido em andamentos ligeiros, mas tende a ser modificada para
ou
importante lembrar que as melodias e cifras apresentadas foram retiradas do livro VITALLE, Irmos. O
Melhor do Choro Brasileiro, volume I. Irmos Vitale. So Paulo. 1998.
46
Esse cromatismo, nesse perodo, corresponde a uma simples execuo de notas cromticas ascendentes ou
descendentes, na qual as notas tem como funo principal a passagem, fato que no semelhante ao
cromatismo caracterstico do jazz, que se d por meio de intervalos de segunda menor e apojiaturas.
)'!
Recorte 2. Flor Amorosa. Joaquim Antnio Callado. Anlise meldica da parte A. Compassos 1 ao 12.
Anexo 1.
Recorte 3. Flor Amorosa, Joaquim Antnio Callado. Anlise meldica da parte B. Compassos 10 ao 18.
Anexo 1.
A parte C possui caractersticas semelhantes aos das partes anteriores, porm, aqui
o nmero de inflexes meldicas 47 maior, conforme pode ser observado nas notas
assinaladas do Recorte 4. A sncope caracterstica, acentuando o processo contramtrico,
evidenciada nos compassos 23, 27 e 31, assim como o ritmo colcheia mais duas
semicolcheias48 e vice versa, que se evidencia nos compassos 24, 28 e 32.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
47
Nos compassos 23 e 31 a nota d, no faz parte do acorde de Gm, mas faz parte da cadncia II V7 ! I do
tom de F maior, por isso no marcada como inflexo, pertence ao contexto harmnico visto.
48
)(!
Recorte 4. Flor Amorosa, Joaquim Antnio Callado. Anlise meldica da parte C. Compassos 22 ao 37.
Anexo 1.
))!
Recorte 5. Flor Amorosa, Joaquim Antnio Callado. Anlise harmnica da parte A. Compassos 1 ao 12.
Anexo 1
Recorte 6. Flor Amorosa, Joaquim Antnio Callado. Anlise harmnica da parte B. Compassos 10 ao 18.
Anexo 1.
)*!
Recorte 7. Flor Amorosa, Joaquim Antnio Callado. Anlise harmnica da parte C. Compassos 22 ao 37.
Anexo 1.
"
Conjunto musical que fez gravaes na Casa Edison, no comeo do sculo XX. Formado provavelmente por
requinta, clarineta, violo, flauta e tuba. No h registros dos nomes dos componentes, porm sua importncia
est nas primeiras gravaes de valsas e polcas que iriam ser consideradas como clssicos da msica popular
brasileira (http://www.dicionariompb.com.br/grupo-dos-irmaos-eymard, acesso em outubro de 2011).
)+!
clarinete,
requinta, violo, flauta e tuba (Ibidem, p. 105). Durante a audio da gravao foi possvel
perceber apenas as variaes meldicas (improvisos) do instrumento solista, provavelmente o
clarinete (a qualidade do udio no permite a percepo exata do timbre do instrumento), o
que foi transcrito e pode ser observado nos Recortes 8, 9 e 10.
O que pde ser constatado nesse trabalho de improvisao, foi a ocorrncia de
pequenas variaes meldicas, o que est de acordo com as teorias de Almada (2006), j
mencionadas, alm de estar tambm em dilogo com a definio do Dicionrio Grove de
Msica (ver p. 17). Outra ocorrncia percebida foi a antecipao de frases, que ocorre no
compasso 5, quando o arpejo acorde de C antecipado e nos compassos 6 e 7, onde as notas
dos respectivos acordes so precedidas de um tom ascendente. Essas mesmas caractersticas
podem ser observadas nos mesmos Recortes 8, 9 e 10.
Recorte 8. Transcrio da improvisao colhida na anlise da performance dos Irmos Eymard. Choro
Flor Amorosa. Joaquim Antnio Callado. Parte A. Compassos 1 ao 9. Transcrio do pesquisador.
Recorte 9. Transcrio da performance dos Irmos Eymard. Choro Flor Amorosa. Joaquim Antnio
Callado. Parte B. Compassos 10 ao 18. Transcrio do pesquisador.
)#!
Recorte 10. Transcrio da performance dos Irmos Eymard. Choro Flor Amorosa. Joaquim Antnio
Callado. Parte C. Compassos 22 ao 30. Transcrio do pesquisador.
A melodia e cifra dessa pea foi extrada pelo prprio pesquisador, pois no foi encontrada nenhuma edio da
mesma.
*%!
Recorte 11. Cruzes, minha prima. Joaquim Callado. Inflexes meldicas da parte A (sees A1 e A2).
Compassos 1 ao 18. Anexo 1.
Recorte 12. Cruzes, minha prima. Joaquim Callado. Inflexes meldicas da parte B. Compassos 19 ao 35.
Anexo 1.
*"!
No Recorte 13, a grande incidncia da sncope (Compassos 45, 47, 49, 53, 55 e
57) se mostra junto a figuras rtmicas caractersticas da polca - colcheia e duas semicolcheias
(Compassos 44, 46, 48, 52, 54 e 56). A base contramtrica pode ser observada.
Recorte 13. Cruzes, minha prima. Joaquim Callado. Inflexes meldicas da parte C. Compassos 44 ao 59.
Anexo 1.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
53
Segundo Prince (2010, p. 24), o acorde SubV7 (substituto da dominante) tem funo dominante por possur
trtonos semelhantes. No acorde de G7, as notas que geram o trtono so as notas f e si e no acorde de Db,
so as notas f e db, o mesmo trtono, portanto, e por isso, que o ltimo acorde pode subistituir G7
quando a resoluo for para o acorde de C, assim como ocorre em Cruzes, minha prima.
*$!
Recorte 14. Cruzes, minha prima. Joaquim Callado. Anlise harmnica da parte A. Compassos 1 ao 19.
Anexo 1.
Recorte 15. Cruzes, minha prima. Joaquim Callado. Anlise harmnica da parte B. Compassos 19 ao 35.
Anexo 1.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
54
Finalizao de frase onde so executados os acordes de V7 grau e I grau (nesta sequncia) sem inverses.
*&!
Recorte 16. Cruzes, minha prima. Joaquim Callado. Anlise harmnica da parte C. Compassos 44 ao 59.
"
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
55
Agenor Bens nasceu no dia 23 de setembro de 1870 na cidade de Cordeiro RJ. Formou-se em flauta na
Escola Nacional de Msica do Rio de Janeiro. Segundo Pinto (1936/1978) tocava com esplendor na sua flauta,
que era de novo sistema () tocava todos os choros dos grandes flautas antigos e tambm modernos (Ibidem,
p. 83). citado tambm por Cazes (1999) como um dos grandes flautistas do incio do sculo XX. Foi um dos
primeiros a gravar o choro (polca) Flor Amorosa.
*'!
Recorte 17a. Transcrio da performance de Agenor Bens. Polca Cruzes, minha prima de Joaquim
Antnio Callado. Parte A1. 1 vez Compassos 1 ao 9. Transcrio do pesquisador.
Recorte 17 b. Transcrio da performance de Agenor Bens. Polca Cruzes, minha prima de Joaquim
Antnio Callado. Parte A1. Repetio 1 ao 9. Transcrio do pesquisador.
Recorte 18a. Transcrio da performance de Agenor Bens. Polca Cruzes, minha prima de Joaquim
Antnio Callado. Parte A2. 1 vez. Compassos 10 ao 18. Transcrio do pesquisador.
Recorte 18b - Transcrio da performance de Agenor Bens. Polca Cruzes, minha prima de Joaquim
Antnio Callado. Parte A2. Repetio. Compassos 10 ao 18. Transcrio do pesquisador.
*(!
Alexandre Gonalves Pinto (Ibidem) fala dessa maneira sobre Pixinguinha, no seu
j citado livro O choro reminiscncias de chores antigos. Nascido em 23 de abril de
1897, no Rio de Janeiro, Alfredo da Rocha Vianna Filho o Pixinguinha - considerado por
vrios estudiosos do gnero, dentre eles Cazes (1999) e Diniz (2003), como um dos maiores
chores brasileiros de todos os tempos. Foi criado na penso de seu pai, Alfredo Viana, uma
casa em que aconteciam as tradicionais rodas de choro carioca e que, por isso mesmo, recebia
nomes respeitados da msica brasileira como Quincas Laranjeira, Lus de Souza, Juca Kalut
e at mesmo o internacionalmente reconhecido compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos. Seu
primeiro professor de msica foi um dos inquilinos dessa penso, o trombonista e compositor
Irineu de Almeida, que teve oportunidade de ver Pixinguinha exibir o seu virtuosismo desde
*)!
criana, inclusive, executar na flauta o choro (polca) Lngua de Preto de Honorino Lopes,
considerada pelos flautistas uma pea de difcil execuo.
Pixinguinha atuou como profissional antes mesmo de completar quatorze anos,
numa casa de chope na Lapa chamada La Concha. Pouco depois, foi levado pelo violonista
Arthur de Souza o Tute , para substituir o renomado flautista Antnio Maria dos Passos na
Orquestra do teatro Rio Branco. Segundo Cazes (1999), na orquestra, Pixinguinha foi
demonstrando sua vocao para o improviso e acrescentando umas bossas que no estavam
na partitura, mas agradaram ao maestro (Ibidem, p. 53). Esse mesmo autor observa ainda,
que s aps trabalhar como msico em diversos cinemas, teatros, e de j ter feito algumas
gravaes de obras de outros compositores56, Pixinguinha gravou, em 1917, o primeiro disco
com suas prprias composies. Dentre elas estavam a valsa Rosa e o tango Sofre porque
queres, que j traziam algumas inovaes, principalmente harmnicas e, por esse motivo,
eram anunciadas como tango, mesmo sendo maxixes (Ibidem, p. 56). A partir da Pixinguinha
comeou a se destacar no s como intrprete, mas tambm como compositor e principal
propagador do choro.
Em 1919, apareceu liderando o grupo Os Oito Batutas, formado pelos msicos
Donga no violo, China na percusso (Irmo de Pixinguinha), Nelson Alves no cavaquinho,
Raul Palmieri tambm no violo, Lus Pinto da Silva no bandola e reco-reco, Jacob Palmieri
no pandeiro e Jos Alves Lima no bandolim e ganz. Em fevereiro de 1922, Os Oito Batutas,
agora com 7 integrantes, embarcaram para a Frana, circunstncia que fez com que se
tornassem um dos primeiros conjuntos musicais brasileiros a divulgar a msica popular
brasileira, sobretudo o maxixe, no cenrio internacional. O grupo tinha sido convidado para
tocar em uma casa de dana em Paris, onde se apresentavam inmeras orquestras tpicas
oriundas de vrios pases, todas elas chamadas de jazz-bands. importante lembrar, no
entanto, que essa expresso no deve ser confundida com a linguagem musical jazz, j que
Segundo Cazes (1999), a partir da dcada de 10, todo tipo de conjunto popular que quisesse
parecer moderno passou a se intitular jazz-band (Ibidem, p. 61). O mesmo autor cita o
exemplo de uma jazz-band de Santa Catarina, regida por Aldo Krieger (pai do compositor
Edino Krieger), cujo repertrio contm polcas, valsas e marchas de influncia alem. Alm
disso, os gneros executados pelas jazz-bands americanas da poca eram o shimmy e o
ragtime (adaptaes da polca).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
()!Nessa
poca Pixinguinha j havia gravado obras de seu mestre Irineu de Almeida, por exemplo, e j havia
gravado com o Grupo Choro Carioca.!
**!
*+!
o Carinhoso foi composto por volta de 1916 e 1917. Naquela poca, o choro
tinha que ter trs partes. s vezes, a terceira parte era a melhor. A gente
pensava que a inspirao havia terminado e surgia a terceira parte bem mais
bonita. Ento, eu fiz Carinhoso e o encostei. Tocar esse choro naquele
ambiente? Ningum iria aceita-lo. Quando eu fiz o Carinhoso, era uma
polca lenta. Naquele tempo tudo era polca, qualquer que fosse o andamento.
Tinha polca lenta, polca ligeira etc. O andamento do Carinhoso era o
mesmo de hoje e eu o classifiquei de polca lenta ou polca vagarosa. Mais
tarde mudei para chorinho. Outros o classificam de samba. Alguns
preferiram choro estilizado. Houve uma quinta classificao o samba
estilizado que eu coloquei para fins comerciais. Se eu fizesse o Carinhoso
hoje, o chamaria de choro lento. No tem nada de mais. (PIXINGUINHA,
apud FILHO E SILVA, 1998, p. 87).
O mesmo autor reafirma que Pixinguinha no foi influenciado pelo jazz, dizendo:
tudo isto leva certeza de que Carinhoso foi composto antes que a Original Dixieland Jazz
Band tivesse levado cena o primeiro disco de jazz, no mesmo ano de 1917. No seria
possvel, nessas condies, que Carinhoso fosse influenciado por algo que ainda no existia
(Ibidem, p. 88). Naquela poca (aps as viagens), os choros Carinhoso e Lamentos foram
recebidos com estranheza pelo pblico porque j se diferenciavam muito claramente do
formato dos choros que se faziam at ento (CLMACO, op. cit, p. 120). No entanto, de
acordo com Cazes (1999) e Marta Rosseti (1987)57, no h indcios do sucesso dos Batutas
em Paris, o que refora a hiptese de que uma possvel influncia do jazz no existiu. A
viagem que lhes rendeu fama e prestgio internacional foi a turn para a Argentina no final
daquele mesmo ano (1922).
Pixinguinha foi contratado em 1929 pela gravadora Victor, onde exerceu o papel
de orquestrador de discos e maestro da Orquestra Victor Brasileira. Trabalhou ali por cerca
de dez anos e depois na Rdio Mayrink Veiga, como arranjador, perdendo o emprego na
dcada de 1940. Reabilitou-se de uma sria crise econmica, aps a parceria com o flautista
Benedito Lacerda58, em que teve que tocar o saxofone, num contexto que foi de extrema
importncia na criao do j mencionado contraponto brasileiro.
Juntos, gravaram
58
Benedito Lacerda natural de Maca RJ, nasceu no dia 13 de maro de 1903. Tocou flauta desde os oito
anos de idade e aos dezessete ingressou no Instituto Nacional de Msica. Em 1922 entrou para a carreira militar,
atuando como msico, no entanto, deixou essa carreira em 1927, quando passou a integrar orquestras de cinemas
e de teatros, obtendo muito sucesso. Era destaque por onde passava, o que possibilitou que tocasse com diversos
nomes da msica popular brasileira como Francisco Alves, Carmem Miranda, dentre outros (Enciclopdia da
msica brasileira: samba e choro/editor Marcos Marcondes; seleo dos verbetes: Zuza Homem de Mello. So
Paulo: Art Editora; Publifolha, 2000, p. 131-133).
*#!
Naquele Tempo
O choro Naquele tempo, mesmo composto em 1934, perodo posterior turn dos
Oito Batutas no exterior, possui caractersticas semelhantes aos choros analisados at aqui,
tanto na estrutura formal, quanto nos seus elementos musicais (ritmo, melodia e harmonia).
Naquele tempo evidencia a macro-forma rond e, na sua configurao rtmica, apresenta uma
predominncia de semicolcheias e algumas quilteras de trs na parte B (Compassos 19 e 20;
27 e 28 do Recorte 20) e na parte C (Compasso 53 do Recorte 21), o que revela uma pea de
difcil execuo para os solistas. Suas melodias, dentro do previsto por Almada (2006), so
baseadas nos arpejos dos respectivos acordes, acrescentados de inflexes meldicas,
conforme j pode ser observado. Nos recortes que sero apresentados a seguir, as inflexes
meldicas estaro circuladas, e as demais notas pertencentes aos acordes aparecero sem
marcas. No referente ao ritmo, a parte A apresenta sequncias de semicolcheias (Recorte 19)
e, a parte B, quilteras construdas sobre essa figura (Recorte 20). A base contramtrica pode
ser constatada nos compassos 44, 45, 49, 50 e 52 ( Recorte 21)
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
59
Todas as melodias e cifras de Pixinguinha foram extradas do livro VITALE, Irmos. O Melhor de
Pixinguinha. So Paulo. 1997. O pesquisador apenas as editou em um software de computador com o fim de
somente padronizar as imagens na dissertao.
+%!
Recorte 19. Choro Naquele Tempo de Pixinguinha. Inflexes meldicas da parte A. Compassos 1 ao 9.
Recorte 20. Choro Naquele Tempo de Pixinguinha. Inflexes meldicas da parte B. Compasso 19 ao 22.
Recorte 21. Choro Naquele Tempo de Pixinguinha. Inflexes meldicas da parte C. Compassos 38 ao 53.
+"!
e no compasso 50 do Recorte 24, porm, no haver nenhuma modulao fora daquelas que
ocorriam nos choros convencionais desse perodo.
Recorte 22. Choro Naquele tempo de Pixinguinha. Anlise harmnica da parte A. Compassos 1 ao 17.
Recorte 23. Choro Naquele tempo de Pixinguinha. Anlise harmnica da parte B. Compassos 19 ao 34.
+$!
Recorte 24. Choro Naquele tempo de Pixinguinha. Anlise harmnica da parte C. Compassos 35 ao 53.
A cifra utilizada para ilustrar os recortes anteriores foi baseada na edio que
integra o livro Chorinho O melhor de Pixinguinha da editora Irmos Vitale (1997). A
anlise possibilitou perceber o uso constante de dominantes secundrias que, neste choro,
aparecem com mais constncia do que nos outros (aparecem em quadraturas mais longas). O
aparecimento do acorde de Cm6/Eb60 no compasso 6 e 14 do Recorte 22, se deve ao fato da
edio ter passado por um processo de atualizao harmnica. Autores como Almada (2006),
Seve (1999) e Prince (2010), confirmam que essas dissonncias eram pouco vistas nas edies
mais antigas.
Por outro lado, na sua performance, Pixinguinha teve uma atuao que pode ser
percebida a partir de duas categorias: uma primeira como flautista e uma segunda como
saxofonista. Como flautista investiu nos solos e improvisaes, j como saxofonista, tendo em
vista a parceria com Benedito Lacerda (dcada de 1940), iniciou um perodo em que o
contraponto era seu principal objetivo, o que foi evidenciado nas gravaes da poca. A
seguir sero analisadas transcries de improvisos de Pixinguinha como saxofonista nos
choros Naquele tempo e Lamentos, e como flautista no choro Urubu Malandro.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
60
Este acorde est analisado como II grau numa cadncia II-V7!I, sendo que o V7 uma dominante
secundria, pois as suas notas so as mesmas do acorde de Am7(b5), que realmente o acorde de segundo grau
de Gm, acorde este que resolvido no compasso 14.
+&!
"
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
61
+'!
Lamentos
+(!
Recorte 27. Choro Lamentos de Pixinguinha. Anlise meldica da parte A. Compassos 1 ao 25.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
)$!Nos
recortes mencionados esses elementos estruturais esto marcados da seguinte maneira: as dissonncias
com uma seta, os arpejos sobre os acordes com um crculo e os graus conjuntos da parte B sublinhados.!
+)!
Recorte 28. Choro Lamentos de Pixinguinha. Anlise meldica da parte B. Compassos 28 ao 44.
Recorte 29. Choro Lamentos de Pixinguinha. Anlise meldica do Coda ou introduo. Compassos 63 ao
72.
+*!
Recorte 30. Choro Lamentos de Pixinguinha. Anlise harmnica da parte A. Compassos 1 ao 25.
++!
Recorte 31. Choro Lamentos de Pixinguinha. Anlise harmnica da parte B. Compassos 28 ao 44.
Recorte 32. Choro Lamentos de Pixinguinha. Anlise harmnica da Coda ou Introduo. Compassos 63 ao
72.
+#!
Lamentos e improvisao
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
63
No foi encontrada nenhuma gravao de Lamentos em data prxima sua composio. Porm, os elementos
detectados nessa interpretao est coerente com a sintaxe do choro tradicional.
#%!
A obra Urubu Malandro, sempre presente nas rodas de choro, composta no incio
do sculo XX por Louro e Joo de Barro, foi gravada pela primeira vez em 1914 pelo prprio
compositor e, em 1923, pelo grupo Os Oito Batutas. A ltima foi a escolhida para a anlise.
integrada por duas partes mais curtas e possui letra. A escolha dessa obra e de sua gravao
nesse trabalho se deu por dois motivos: primeiro, a harmonia tem apenas uma cadncia;
segundo, ela se constitui em um dos poucos registros que se tem de improvisos longos que
aconteceram naquela poca. Em Urubu Malandro apenas quatro acordes (F, D7, Gm e C7)65
so utilizados durante toda a obra, ou seja, acontece um procedimento harmnico que ainda
no havia sido apresentado at ento. O Recorte 35 evidencia um trecho do improviso de
Pixinguinha em Urubu Malandro (partitura 5. Anexo 1. Faixa 3. Anexo 2).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
64
J a melodia e cifra de Urubu Malandro, bem como a transcrio do trecho improvisado foram feitos pelo
pesquisador.
65
Anlise harmnica do choro Urubu Malandro: o tom F maior; o acorde D7 dominante secundrio de Gm,
segundo grau do campo harmnico da tonalidade. Na sequncia ocorre uma cadncia II ! V7 I, sendo que o
V7 o acorde de C7 que resolvido no tom de F maior.
#"!
Frullato consiste em uma tcnica estendida para flauta, na qual a vibrao contnua dos lbios ou da garganta
seu principal requisito (DALGEVAN, 2009).
#$!
#&!
Enfim, atravs de sua msica e de uma prtica musical em que o estilo improvisatrio
esteve relacionado prtica harmnica, ajudando a constituir processos identitrios ligados
hibridao cultural, o que mais uma vez remete a Hall (2000) e Canclini (2003), a uma
herana cultural diversa capaz de revelar uma estrutura cultural plena de um tempo mltiplo,
dentre outros elementos, as msicas e prticas dos chores evidenciaram dois diferentes
processos identitrios j nesse primeiro recorte de tempo abordado.
!
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PARTE II
Tinhoro usa o termo msica produto quando aponta para a produo industrial
da msica popular. Observa que a a msica produzida para reproduo mecnica
(gramofones e rolos de pianos) acelerou grandemente a pesquisa tecnolgica, a parte
material da produo musical tendeu a crescer. Assim, aponta a relao artista/comrcio
ocorrida nas primeiras dcadas do sculo XX como fator de transformao da msica
popular em frmulas fabricadas para a venda e a progressiva dominao do mercado
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
67
O autor utiliza esse termo quando se refere s polcas, lundus, choros e demais gneros executados ou
consumidos pela populao no final do sculo XIX e incio do sculo XX. Sandroni (2001) comenta tambm o
momento em que essas obras musicais floresceram em grande quantidade e a arbitrariedade com que eram
denominadas, chegando muitas vezes a receber nomes duplos como, por exemplo, Polca-Lund.
#(!
brasileiro pela msica importada dos grandes centros europeus e da Amrica do Norte
(Ibidem, p. 260).
2.1 O aparecimento do rdio: um elemento novo no cenrio
Alm dos discos, outro importante meio de divulgao da msica dos chores foi
o Rdio. Autores como Cazes (1999), Diniz (2003) e Tinhoro (1998) apontam para esse
meio de comunicao como um fator determinante para a propagao da msica popular
brasileira. Tinhoro afirma que a partir da dcada de 1920 vrios gneros musicais
considerados de origem popular se expandiram muito, chegaram at classe mdia atravs
dos arranjos de Pixinguinha nas gravaes realizadas com a Orquestra Vitor Brasileira. Essa
expanso foi favorecida logo em incios da dcada de 1930 pelo aparecimento de rdios
providos de vlvulas eltricas de amplificao, que permitiam uma recepo muito mais clara,
atravs de alto-falantes (Ibidem, p. 314). O autor lembra ainda que, com a rdio, a msica
popular brasileira iria dominar o mercado durante todo o perodo de Getlio Vargas (19301945), em perfeita coincidncia com a poltica econmica nacionalista de incentivo
produo brasileira e a ampliao do mercado interno (Ibidem, p. 315). Relata que essa
msica teve no governo de Getlio Vargas uma considervel participao na vida poltica do
Brasil, podendo mesmo ser considerada
smbolo da vitalidade e do otimismo da sociedade em expanso sob o novo
projeto econmico implantado com a Revoluo de 1930: ao criar em 1935
o programa informativo oficial chamado A Hora do Brasil, o governo fez
intercalar na propaganda oficial nmeros musicais com os mais conhecidos
cantores, instrumentistas e orquestras populares da poca, antecipando-se,
nesse ponto, ao prprio Departamento de Estado norte-americano e seu
programa A Voz da Amrica (Ibidem, p. 315).
Isso remete aos autores Castoriadis (1995), Chartier (1990) e Pesavento (2002)
quando alegam que a msica serve de suporte representativo das significaes de uma
sociedade, implicadas com o Imaginrio nas suas trs dimenses: a real, a utpica e a
ideolgica. Implicaes simblicas ligadas dimenso ideolgica, portanto, que podem ser
observadas atravs do episdio em que o presidente Getlio Vargas autorizou a realizao de
um programa de rdio em 29 de janeiro de 1936, destinado a mostrar aos alemes um pouco
de msica popular brasileira. O presidente tinha como finalidade neutralizar imposies norte-
#)!
Em 1935, segundo Tinhoro (1998), ao ser praticamente obrigado por presses polticas e financeiras a
assinar com os Estados Unidos um acordo de reciprocidade econmica desfavorvel ao Brasil, Getlio Vargas
procurou contrabalanar a capitulao com a assinatura de acordo de compensaes com a Alemanha, que lhe
permitia obter divisas com a exportao de produtos sem interesse para os americanos, como o arroz, a carne e o
algodo. E, ento, como parte de um jogo de astcias polticas destinado a neutralizar as imposies norteamericanas com a ameaa de aprofundamento das relaes com a Alemanha, Getlio [mostrou msica popular
brasileira para os alemes] (Ibidem, p. 315).
#*!
iniciou a parceria com Pixinguinha, o tambm flautista Altamiro Carrilho entrou no seu lugar
no regional. Esse grupo era considerado o melhor dentre os regionais das rdios daquela
poca, o que levou Cazes (1999) a fazer uma observao sobre um dos mais reconhecidos
chores do pas: Jacob do Bandolim demonstra sua admirao pelo conjunto de Lacerda,
tanto na sua msica como na metodologia disciplinadora de trabalho, e afirma ter sido esse
seu modelo (Ibidem, p. 86-87). Jacob referia-se a ao modelo que o direcionou na formao
daquele que considerado no pas um dos maiores grupos de choro de todos os tempos: o
conjunto poca de Ouro. Estavam brotando significados e circunstncias, portanto, que
caracterizariam o segundo cenrio recortado nesse trabalho, dcadas de 1940 a 1960.
No levantamento de alguns elementos desse novo cenrio histrico musical
brasileiro, convm relatar que a partir de 1945, o choro comeou a interagir com as casas mais
sofisticadas de shows e at mesmo com os Teatros e Salas de Concerto. Alm de Heitor VillaLobos, Cazes (Ibidem) cita Radams Gnattali como um dos principais compositores que, com
seus arranjos e composies, fizeram uma aproximao entre o choro e a msica erudita,
constituindo mais um dos momentos de hibridao desse gnero musical com outras
dimenses culturais. Gnatalli comps a Sute Retratos, j na dcada de 1960, homenageando
Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga. Refere-se a eles
como os quatro pilares da msica popular brasileira. Durante a dcada de 1920, Villa-Lobos,
por sua vez, comps a srie Choros. Nessa obra, a instrumentao varia de violo solo, na
primeira pea, a orquestras com coro sinfnico nas ltimas, revelando uma maestria tcnica e
uma riqueza muito grande em termos da formao instrumental (NEVES, 1977). Os choros
tiveram uma repercusso muito grande nesse cenrio que florescia, nas dcadas seguintes que
o constituiria.
A contribuio desses compositores abriu as portas do Teatro para grupos de
choro, favoreceu a apresentao do grupo poca de Ouro, liderado por Jacob do Bandolim,
no Teatro So Caetano do Rio de Janeiro. Diniz (2003) lembra essa circunstncia clebre na
histria da msica popular brasileira: foi no ano de 1968, no Teatro Joo Caetano, ao lado de
Zimbo Trio e de Elizeth Cardoso (Ibidem, p. 36). Poucos grupos nessa poca (dcada de
1960) se apresentavam em lugares como esse. Comeava a a trajetria dos regionais do choro
nos principais palcos do pas, o que viria a acontecer com mais firmeza a partir da dcada de
1970, perodo que Cazes (1999) relaciona ao ressurgimento do choro. Esse cenrio musical
brasileiro comearia a interagir com uma grande influncia do Jazz e com o surgimento da
Bossa Nova.
#+!
Esse perodo est bem prximo ainda do final da Segunda Guerra Mundial (1945), constitui um momento em
que os EUA estava reafirmando a sua hegemonia no cenrio internacional, difundindo seus bens culturais e
avanos tecnolgicos ligados filosofia do American Way of life, alm de coincidir tambm com os primeiros
momentos das relaes financeiras com o Brasil advindas do emprstimo para a construo da Usina de Volta
Redonda (COTRIM, 1996). Produtos industrializados e, dentre eles, aparelhos eletrnicos, assim como
gravadoras de discos, ganharam cada vez mais espao nesse perodo, interferindo na circunstncia cultural e
econmica do pas.
70
Segundo Hobsbawm (1989), Nova Orleans era habitada por ingleses, franceses e espanhis. O autor observa
que o nmero de escravos levados pelos franceses eram bem maior e muitos desses escravos levavam consigo
influncias da cultura francesa.
##!
desfiles e festas em geral. Sua instrumentao, no incio do sculo XX, era bem prxima
instrumentao das bandas militares e a tcnica instrumental especialmente dotada da
especialidade francesa. No perodo de 1900 a 1917 representou a linguagem musical da
populao negra dessa cidade e de 1917 a 1929, de acordo com esse autor, evoluiu muito
rapidamente, quando uma infuso de jazz altamente diluda veio a ser linguagem dominante
na msica de dana ocidental urbana e nas canes populares (Ibidem, p. 75).
Importante ressaltar agora sua expanso mundial e, consequentemente, sua
chegada ao Brasil. A partir de 1917 os msicos de jazz passaram a viajar pelo interior do
pas71, chegando a cidades como Chicago, Nova York, Filadlfia, dentre outras, o que fez
Hobsbawm (Ibidem) consider-lo uma linguagem nacional por volta de 1920. O aumento do
pblico negro fez com que surgisse o race-records, ou seja, o principal elemento responsvel
pela catalogao das primeiras composies do gnero e, dentre esses catlogos estavam,
segundo o autor, a maior parte da obra inicial de um dos maiores jazzistas de todos os tempos:
Louis Armstrong72. Toda essa expanso inicial acarretou o surgimento da Original Dixieland
Jazz Band, a primeira formao com msicos brancos.
Toda essa expanso do jazz nesse cenrio hegemnico americano, somada s
primeiras gravaes no final da dcada de 1920 com pequenos grupos (bateria, baixo, piano,
trompete e, a partir de 1920, o saxofone) e com orquestras, divulgadas pelo gramofone, fez
com que chegasse rapidamente ao cenrio internacional. Aportou primeiramente na Europa,
onde surgiram vrios grupos que, mesmo no executando o jazz eram chamados de jazzbands, conforme assinalado por Tinhoro (1998).
Esse mesmo autor afirma que a primeira apresentao de jazz no Brasil aconteceu
na dcada de 1920, com Harry Kosarim, no entanto, observa ainda que foi provavelmente por
volta dos anos 1930 que esse gnero esteve um pouco mais ativo no pas. Isso, em
conseqncia de um nmero bem maior de exportaes das gravaes, um fato que se deve a
um investimento das gravadoras da Europa no gnero norte-americano. No Brasil, nesse
perodo, j era intenso o nmero de gravaes feitas pela Casa Edison, alm de j ter surgido
o Rdio, que contribuiu muito para a divulgao dos gneros musicais que chegavam do
exterior.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
71
Curiosamente essa migrao dos msicos percussores do jazz de Nova Orleans para outras cidades dos EUA,
mais tarde para a Europa e Amrica Central e do Sul comeou com o fechamento da zona de meretrcio [centro
da boemia de Nova Orleans] pela Marinha norte-americana em 1917 (Ibidem, p. 75).
72
Alm de Louis Armstrong, Benny Godman, Charlie Parker, dentre outros, foram nomes que se destacaram no
incio do jazz.
"%%!
portanto, que a Orquestra Tabajara passou a ter o Choro com constncia em seu repertrio.
Cazes (Ibidem) destaca ainda que esse novo repertrio revelou grandes compositores como
Porfrio Costa e K-Ximbinho, este ltimo o compositor que se destacou, realizando um
casamento perfeito entre o Choro e os elementos harmnicos oriundos do jazz (Ibidem, p.
118).
Foi a partir da dcada de 1940, no entanto, que os chores comearam realmente a
demonstrar em suas composies as influncias do jazz 73 . Outro exemplo disso o
compositor Anbal Augusto Sardinha o Garoto, que, segundo Cazes, nunca negou a sua
influncia jazzstica. Como fazia turns pelos EUA com a cantora Carmen Miranda e
Radams Gnattali, inovava ao misturar o sistema rtmico contramtrico e outros elementos do
choro com harmonias jazzsticas e europeias. A chegada do jazz influenciou tambm a
maneira de improvisar, tendo em vista que o contexto improvisatrio presente nas gravaes
at meados da dcada de 1930 era baseado em variaes meldicas e, somente a partir da
dcada de 1940, de acordo com o cruzamento de dados colhidos nas fontes auditivas
selecionadas, comearam a ser evidenciados improvisos implicados com um nmero maior de
compassos, sim como algum afastamento da melodia principal.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
73
O que no invalida a possibilidade de algumas influncias no choro oriundas dos primeiros contatos de
Pixinguinha com o gnero americano em sua viagem ao exterior no incio da dcada de 1920. A meu ver, um
msico do seu calibre no deixaria de sentir e de ser influenciado de alguma maneira pelos novos sons e timbres
que passou a ouvir durante essa viagem. No acredito que essa influncia tenha acontecido apenas na
indumentria e no instrumental dos integrantes do Grupo Os oito batutas, que tinha Pixinguinha como lder.
"%"!
2.1.1.1 Algumas peculiaridades estilsticas do jazz na dcada de 1930 e sua relao com o
choro
Segundo Hobsbawm (1989), ritmicamente o jazz se compe de dois elementos:
uma batida constante e uniforme geralmente de dois ou quatro por compasso, pelo menos
aproximadamente e uma ampla gama de variaes (Ibidem, p. 49). Dentre as principais
clulas rtmicas do jazz est a quiltera de semnima e colcheia (ao invs de colcheias ou
sncopes como no choro), porm, nas partituras, so encontradas apenas colcheias, mesmo
que nas gravaes os intrpretes as executem como quilteras74.
Nas melodias aparecem tambm a interao com escalas originrias da frica
Ocidental. Segundo Hobsbawm as escalas surgiam da mistura de escalas ditas europeias e
africanas; ou ainda da combinao de escalas africanas com harmonias europeias (Ibidem, p.
49), sendo que essa mistura acarreta a escala de blue, ou seja, a escala maior comum com o
terceiro e stimo graus diminudos de um semitom.
J as consideraes sobre harmonia, tiveram como fundamentao o livro de
partituras The Jazz Real Book, considerado por grande parte dos msicos como a bblia do
jazz. Esse livro contm partituras transcritas por alunos da Berklee College of Music (EUA)
na dcada de 1970, o que evidencia o trabalho com harmonias bem prximas s originais da
cultura americana. Com o intuito de exemplificar melhor a harmonia de um jazz da dcada de
1930 (poca bem prxima quela em que o jazz comea ganhar espao no Brasil), o Recorte
36, tirado do The jazz Real Book, traz como exemplo a anlise da msica All of me de Gerald
Marks e Seymour Simons, composta em 1931. Essa msica foi escolhida por ser considerada
um Standard, ou seja, um tema jazzstico que passa a ser um clssico do estilo (Ibidem, p.
369). Donna Lee de Charlie Parker e Blue Bossa de Kenny Durham so outros exemplos de
standarts. All of me dividida em duas partes (separadas pela barra dupla), a forma mais
utilizada pelos compositores de standarts75 do gnero. Sua melodia, tambm est baseada em
arpejos e inflexes, o que faz com que se assemelhe ao choro, embora no aparente ser to
virtuosstica quanto a melodia desse gnero musical e apresente um maior nmero de notas
dissonantes.
All of me e seus acordes pertencem ao campo harmnico de Do Maior e as
dominantes secundrias mais utilizadas so as do VI grau e II grau. Apenas um acorde de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
74
75
Os jazzistas, ao executar os standards, seguem a seguinte formatao: tocam o tema inteiro (parte A e B),
assim que acaba cada membro do grupo faz um solo de improviso sobre a mesma harmonia, isto , fazem o que
conhecido como Chorus.
"%$!
emprstimo modal ocorre (compasso 26). A principal diferena desse jazz para os choros
compostos na mesma dcada, ou seja, na dcada de 1930, est em acordes dissonantes como
CM7 que aparecem nos compassos 1, 17 e 27 e no acorde de C6 que aparece no compasso
31 76 . No Recorte 36, esto evidenciadas algumas inflexes meldicas e essa anlise
harmnica (vide algarismos romanos em cima da cifra alfabtica).
Recorte 36. Anlise meldica e harmnica do jazz All of me de Gerald Marks e Seymour Simons.
Compassos 1 ao 32. Esse exemplo foi retirado do livro The Jazz Real Book e reeditado pelo pesquisador.
Mesmo revelando poucos acordes, vale ressaltar que s a partir da dcada de 1940, principalmente com o
compositor Anbal Augusto Sardinha o Garoto - acordes similares vieram a ocorrer no choro. Segundo Cazes
(1999) e Antnio e Pereira (1982), esse compositor brasileiro estabeleceu contato com a msica norte-americana,
sobretudo, na dcada de 1940.
"%&!
americana. As verses dessa msica se tornaram uma realidade nessa circunstncia que
propiciava novos processos de hibridao cultural. Tinhoro (Ibidem) observa que
o produto msica urbana de origem popular, entregue desde a dcada de
1940 iniciativa de grupos heterogneos de compositores profissionais (a
esta altura integrados inclusive por mdicos como Joubert de Carvalho e
Alberto Ribeiro, e advogados como Humberto Teixeira e Ari Barroso),
tinha de enfrentar agora, na dcada de 1950, alm das gravaes originais
estrangeiras, a avalanche das verses com que se acomodavam as
novidades da msica internacional (Ibidem, p. 325).
Gava (2008) aponta tambm a msica erudita francesa como uma das principais influncias da Bossa Nova.
Dentre os compositores citados esto Debussy e Ravel.
"%'!
Famosa revista brasileira que vigorou entre os anos de 1928 a 1975. Suas reportagens alternavam fatos
polticos da atualidade com entretenimento.
79
80
Outros destaques da bossa nova: Carlos Lyra, Roberto Menescal, Vincius de Morais, Joo Donato, Newton
Mendona, Billy Blanco, dentre outros.
"%(!
outras, esse msico foi um dos principais nomes da apresentao no Carnegie Hall de Nova
York e sua atuao foi decisiva na divulgao da Bossa Nova no exterior.
Baiano de Juazeiro, Joo Gilberto destacado por Tinhoro (1998) como o
violonista criador da nova batida que acabaria configurando o movimento da chamada bossa
nova (Ibidem, p. 328). Gava (2006) observa que apesar de ter composto algumas canes,
sua importncia sempre residiu, sim, na criao de um estilo interpretativo prprio e
especfico, centrado no acompanhamento violonstico com base em dissonncias, no ritmo
inovador e no canto sussurrado (Ibidem, p. 35). Esses elementos foram, segundo o autor,
assimilados pelo movimento bossanovista.
Nara Leo, por sua vez, destacou-se como uma das melhores intrpretes do
gnero, alm do seu apartamento em Copacabana ter sido considerado um dos principais
locais de encontro dos criadores do novo gnero musical brasileiro. Foi importante e
decisiva a sua atuao tambm no momento em que se buscou, mais adiante, no incio da
dcada de 1960, uma aproximao do samba tradicional com a bossa nova. Em entrevista
revista O Cruzeiro no ano de 1963, citada por Gava (Ibidem), Nara Leo fez alguns
esclarecimentos importantes. Segundo o autor,
de incio, [Nara Leo] procurou desfazer o mito de que o estilo havia
surgido em sua casa, advertindo o leitor de que as reunies domsticas
apenas haviam servido para congregar pessoas que no momento estavam
insatisfeitas com a pouca ateno que o mercado musical dava msica
brasileira mais autntica (samba de morro e maxixe, por exemplo), mercado
que considerava esses ritmos feios. Segundo Nara, foi somente com o
desenvolvimento econmico que o pas pde vivenciar um avano cultural
importante, bem como o surgimento de sentimentos nacionalistas e seu
movimento em prol de uma arte brasileira. No entender da cantora, aquele
foi o momento privilegiado do qual resultou, entre outras novas formas de
arte, a bossa nova, que apesar de certa influncia jazzstica e roupagem
muito inovadora, tinha o samba e o cancioneiro popular como matrizes
essenciais. Era samba branco, dizia-se (Ibidem, p. 63).
"%)!
citado por Gava (2006) fazendo reverncias aos sambistas do morro, destaca que esses
ltimos acontecimentos ligados ao gnero foram decisivos para o destino da bossa nova.
Segundo o autor
Jairo Martins, autor dos trs pequenos blocos de texto, no mediu palavras
para valorizar os sambistas que ali estavam presentes, qualificando-os como
representantes do samba eterno, autntico, tradicional e eminentemente
brasileiro. Mesmo com os bossanovistas por perto, o destaque era para Z
Keti e Cartola, que se juntavam para cantar o samba puro e autntico [...]
Como se pode notar, quisesse ou no, o sentido de sepultamento da bossa
nova era evidente (Ibidem, p. 66).
"%*!
Recorte 37. Exemplo de harmonia pr-bossa nova na msica Manh de Carnaval de Luiz Bonf e Antnio
Maria. Compassos 1 ao 8.
Recorte 38. Exemplo de harmonia ps-bossa nova na msica Manh de Carnaval de Luiz Bonf e Antnio
Maria.
"%+!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
81
Entrevista concedida pelo compositor e pesquisador do Choro Henrique Cazes em Braslia no dia 24 de
janeiro de 2012.
82
Importante ressaltar que j na dcada de 1930 haviam aparecido alguns pequenos sinais desse processo de
hibridao cultural relacionado ao jazz, s que isso aconteceu relacionado ao contexto que levou Pixinguinha e
os Oito Batutas ao exterior, colocando-os em contato com esse gnero musical e sua instrumentao. Esses sinais
puderam ser constatados duas de composies Lamentos e Carinhoso, conforme j observado pg. 73.
"%#!
mencionada por Sandroni (2001) como uma das variantes do tresillo nas suas reflexes
sobre sistemas rtmicos contramtricos (Ibidem, p. 43-44), o acento deslocado dos tempos
fortes, ainda perdura no choro desse recorte de tempo. No entanto, choros com a figura
rtmica fusa j podem ser observados e o compositor Anbal Augusto Sardinha o Garoto exibe em algumas de suas composies (Quanto di uma saudade, Duas Contas e
Debussyana) as figuras rtmicas quilteras86, em variadas sequncias. Evidenciam-se a,
portanto, alguns elementos estilsticos que aparecem no Jazz, um contexto rtmico expondo
novas referncias hbridas. Importante ressaltar que a demonstrao de ousadia ao se colocar
fusas e quilteras nos choros desse perodo, tornou o gnero cada vez mais desafiador para o
instrumentista.
Por outro lado, a partitura no choro continua sendo utilizada como uma base para que
o intrprete mostre seu virtuosismo, sobretudo no momento de execuo da linha meldica.
Quando Neves (1977) afirma que a construo meldica do choro tributria instrumental
de seus autores (Ibidem, p. 47), tem em vista compositores como Garoto, Jacob do
Bandolim, Waldir de Azevedo, dentre outros, que por dominar seus respectivos instrumentos,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
83
84
85
86
As quilteras, segundo MED (2001) so grupos de figuras empregadas com maior ou menor valor do que
realmente representam (Ibidem, p. 144). Esto exemplificados, na sequncia desse trabalho, na anlise do choro
Quanto di uma saudade de Garoto.
""%!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
87
Segundo Cazes (1999) o cavaquinho comeou a ser utilizado como instrumento solista com Waldir Azevedo a
partir da dcada de 40.
88
89
importante esclarecer mais uma vez que os algarismos romanos, que sero utilizados na anlise harmnica
das obras dos compositores selecionados e que aparecem acima das cifras alfabticas, representam os graus de
cada acorde.
"""!
II
III
IV
V7*
Dm7
Em7
F7M
G7
VI
VII
Am7
a) as dominantes secundrias:
V7/IIm
V7/IIIm
V7/IV
V7/V7
V7/VIm
A7/Dm
B7/Em
C7/F
D7/G7
E7/Am
II#/IIIm
C#/Dm
D#/Em
III#/IV
E/F
IV#/V7
F#/G7
V#/VIm
G#/Am
II
Am7
Bm7(b5)
III
IV
C#5
Dm7
V7*
E7
VI
F7M
VII
G#
V7/V7
A7/Dm
B7/E7
V7/VI
C7/F
""$!
II
Cm7
Dm7
Eb(#5)
Fm7
G7/b13/b9 Ab7M
Cm7
Dm7
Eb7M
Fm7
Gm7
Ab7M
Bb7M
Cm7
Dm7
Eb(#5)
F7M
G7
Am7
Bm7(b5)
III
IV
VI
VII
Maior
D
menor
(harm.)
D
menor
(nat.)
D
menor
(mel.)
Dominantes substitutos
Alm da explorao dos acordes do campo harmnico no tom e modo principal,
de suas dominantes secundrias e de acordes de emprstimo modal, comeou a surgir no
choro desse recorte de tempo indcios do investimento em acordes com funo de
dominantes substitutos, que, segundo Guest (2006), so acordes de funo dominante que
substituem o dominante principal ou secundrio (Ibidem, p. 78). O acorde de Db7, por
exemplo, possui o trtono entre as notas f e db (enarmonizado em si), isto , o mesmo
trtono do acorde de G7, dominante de C. Sendo assim, Guest conclui que qualquer acorde
maior ou menor pode ser preparado por subV7 situado # tom acima (Ibidem, p. 79). Na
anlise harmnica ser utilizada a abreviatura SubV7. O quadro 8 mostra alguns exemplos
de SubsV7.
Quadro 8: dominantes substitutos primrio e secundrios de D maior:
SubV7/I
SubV7/II
SubV7/IV
SubV7/V7
Db7/C7M
Eb7/Dm7
Gb7/F7M
Ab7/G7
""&!
Urubu Malandro est exemplificado na primeira parte desse trabalho, pgina 90.
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""(!
Esses autores relatam ainda que a entrada de Garoto no cenrio musical paulista,
nos anos 1920, se d num momento em que a msica popular brasileira inicia uma nova fase.
O disco se aperfeioa. inaugurado o rdio no Brasil (Ibidem, p. 15). Porm, entre 1927 e
1930, foi institudo um perodo em que Garoto principia na carreira artstica, numa So
Paulo um tanto distante das modificaes culturais que se sucediam na capital poltica e
cultural poca, o Rio de Janeiro (Ibidem, p. 15). Mas aos poucos o cenrio do choro e do
samba em So Paulo foi ganhando seu espao, Garoto, Aimor, dentre outros so alguns dos
nomes que se destacaram. Cazes (1999) observa tambm que em 1930, Garoto j fazia suas
primeiras gravaes na Parlophon de So Paulo ao lado do violonista Jos Alves da Silva
Aimor, um companheiro de muitos trabalhos nas emissoras de rdio da capital paulista.
Essa parceria, segundo os autores citados, rendeu-lhe muitos trabalhos, tanto na
cidade de So Paulo quanto no interior do estado, fato que se deveu intensificao da rdio
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
92
Garoto teve aulas de violo erudito com Attilio Bernardini e de harmonia com Joo Spe, autor do Tratado de
Harmonia.
"")!
na dcada de 1930. Esse foi um ano decisivo para Garoto, pois, alm de comear a compor,
gravou seu primeiro disco solo, seu talento foi reconhecido pelo maestro Francisco Mignone,
ento diretor artstico da gravadora Parlaphon. Antnio e Pereira (1982) relatam que o
maestro recebe para um teste Garoto e o violonista Serelepe (D. Montezano) (...) Gravam
duas composies de Garoto, em duo de banjo e violo. Lanado em maro de 1930, o selo do
disco traz como autor Anbal Cruz, o prprio Garoto (Ibidem, p. 16).
Garoto trabalhou em vrias rdios paulistas, dentre elas a Rdio Record e a Rdio
Educadora, o que lhe tributou favorveis reconhecimentos por parte de crticos de So Paulo e
do Rio de Janeiro. Cazes (1999) cita um episdio ocorrido em 1936, quando os msicos
cariocas Slvio Caldas, Non, Lus Barbosa e Araci de Almeida foram se apresentar no Teatro
Santana. Esse dilogo mostra a musicalidade dos paulistas:
Quando Garoto e Aimor foram apresentados ao grupo de artistas vindos do
Rio, Non fez um comentrio com Slvio Caldas:
- Acho bom voc no chamar ningum, sabe como paulista no choro.
O violonista Armandinho Neves, que tinha funo de arregimentar valores
do meio musical paulista, retrucou:
- Non, melhor voc ouvir primeiro os rapazes e falar depois.
Dito isso, Garoto e Aimor foram chamados ao Teatro Santana trazendo o
violo, violo tenor, cavaquinho, banjo, bandolim e guitarra havaiana.
Chegaram querendo mostrar servio. Garoto ameaa tocar guitarra havaiana
e interrompido por Slvio Caldas, que diz:
- No toca esse instrumento, pode ficar mal para voc, estamos
acostumados a ouvir Gasto Bueno Lobo, aquele guitarrista que tocou at
nos cassinos do Cairo.
Garoto Soltou a guitarra para pegar o bandolim, mas foi novamente
interrompido:
- Ei, Garoto, voc acha que vai fazer bonito tocando bandolim? Olha que
ns somos de onde toca o Luperce Miranda.
Garoto, furioso, apanhou o violo tenor, Aimor o violo e comearam a
tocar sem aceitar novas interrupes. A msica se imps, no era preciso
falar mais nada. Apenas Armandinho sorria, satisfeito, certo de que vencera
aquela batalha (Ibidem, p. 91-92).
""*!
causando um enorme impacto, refletido em sua obra (Ibidem, p. 93). Cazes ainda ressalta
que o fantstico desempenho de Garoto chamou a ateno de msicos como Duke Ellington
e Art Tatum, que foram assistir as apresentaes de Carmen Miranda e manifestaram sua
admirao pelo virtuose brasileiro (Ibidem, p. 93). Antnio e Pereira (1982) dialogam com
esse autor, quando focam o domnio sobre o instrumento e a capacidade de improvisao de
Garoto:
Garoto se destacava naturalmente do conjunto. Ele no acompanha
simplesmente Carmen Miranda. A ele se destinam as introdues e solos
das msicas que ele interpreta ao som do violo tenor, com verdadeiro
entusiasmo. Suas enormes habilidades no domnio do instrumento aliado
sua maneira pessoal na interpretao das marchas e sambas que
compunham os shows de Carmen, bastavam para projet-lo (Ibidem, p. 33).
Com shows nas cidades de Chicago, Detroit, Nova York, dentre outras, o sucesso
de Carmen Miranda, do Bando da Lua e de Garoto foi vigoroso. Dentre os principais lugares
que atuaram esto o Colonial Night Club em Chicago, onde Garoto entrou em contato,
segundo Antnio e Pereira (Ibidem), com a quente roda de jazz, assim como entrou em
contato com a Casa Branca, quando se apresentaram em maro de 1940 para o ento
presidente Franklin D. Roosevelt, na comemorao da passagem de seu stimo ano na
presidncia. Segundo os autores, ao final da viagem, aps o dia 10 de julho de 1940, esses
artistas
voltaram como trs realidades diferentes: Carmen, a consagrao e uma
chegada triunfal no Rio. Para o Bando a transformao de um grupo
independente [acompanhar somente]. Para Garoto, a certeza de que a
Amrica representara um crescimento (Ibidem, p. 34).
Depois da sua chegada ao Brasil, em 1940, conforme agora Cazes (1999, p. 93)
Garoto foi residir no Rio de Janeiro, onde passou a ser considerado um dos grandes astros da
fase urea do rdio. Primeiro foi a Rdio Mayrink Veiga e depois a Rdio Nacional, onde
trabalhou com Radams Gnattali. Esse autor afirma que o prprio Garoto nunca negou sua
influncia pelo jazz, o que pode ser constatado tambm na maioria de seus choros, onde
aparece uma linguagem harmnica diferenciada dos compositores dessa poca, o que
evidencia o comeo de um momento de transio que se consolidaria anos mais tarde, com o
surgimento da bossa nova.
Tendo em vista estas afirmaes, pode ser considerado que a obra de Garoto se
revela hbrida quando se observa, de um lado, a riqueza em sncopes e o virtuosismo,
provindos do choro tradicional e dos sambas (que j se revelavam hbridos) e, de outro lado, a
opulncia em recursos harmnicos, ligados diretamente influncia jazzstica, ao seu contato
""+!
com a msica erudita e s improvisaes mais longas que aparecem nas suas gravaes. Essas
constataes levaram tambm Antnio e Pereira (1982) a considerar:
Garoto viveu a poca de transio das transformaes, de onde surgiria
uma nova sntese musical. A tradio brasileira, o choro, o jazz e o erudito.
Ernesto Nazareth, Zequinha de Abreu, Benny Godman, Ravel, Debussy (...)
A nova sntese que se delineia mantm traos dessas formas musicais.
Mistura-se o popular brasileiro, o choro, com elementos do jazz, os
acordes modernos, a msica erudita. Garoto trabalha todos estes
elementos. Era um bom choro e pelo choro fez mais do que dar
continuidade a uma tradio: rompeu com a sua petrificao, sua
estabilidade, e com harmonia moderna realizou uma sntese perfeita
entre o choro e as obras clssicas. Compe, o poeta das cortas (Ibidem,
p. 70-71) [Grifos meus].
""#!
Cazes (1999, p. 94), lamentando a morte desse msico na dcada de 1950, afirma
que se no fosse o ocorrido, certamente Garoto teria sido o maior compositor de violo de
todos os tempos. Antnio e Pereira (1982, p. 71) tambm fazem aluso importncia de
Garoto para o choro, afirmando que o nome Garoto fica diludo no tempo, na msica de uma
histria que no foi muito generosa com os seus de h muito tempo atrs (...) Garoto esbarrou
na limitao dos registros de toda a sua obra. Garoto no a gravou toda. Observam ainda:
quando se chega ao captulo Bossa-Nova, seu nome raramente citado, como se a BossaNova, que tem seu marco teoricamente em 1958, tivesse nascido do nada, ou no necessitasse
de precursores (Ibidem, p. 72). No entanto, atualmente a obra e a musicalidade de Garoto
continuam sendo lembradas pelos violonistas e amantes do choro.
2.3.1.1 A obra
A primeira obra analisada ser o choro Meu cavaquinho, composta entre 1940 e
1945, foi gravado pela primeira vez por Garoto em 1946. J a segunda, Quanto di uma
saudade, foi composta em 1940 e registrada pela primeira vez em 1942 pela gravadora
Odeon. Os recortes, editados pelo pesquisador, foram retirados do lbum 15 choros de
Garoto da editora Fermata do Brasil (1951). Essas obras de Garoto comeam a evidenciar
elementos harmnicos que no eram caractersticos dessa poca, como uma utilizao maior
de acordes dissonantes, de inflexes meldicas mais difceis de serem percebidas, j que as
notas que seriam de passagem tambm passam a pertencer ao acorde. Todas as harmonias
retiradas deste lbum foram conferidas com as respectivas gravaes, isto , os acordes de
ambos so semelhantes.
Meu Cavaquinho
Esse choro (Anexo 1, partitura 4), assim como a maioria das peas de Garoto,
contm duas partes (A e B), apresenta uma estrutura binria, portanto. A clula rtmica mais
presente aqui so as semicolcheias, o que o torna um choro mais rpido, de carter
virtuosstico. A harmonia, retirada do lbum 15 Choros de Garoto (1951), apresenta um dos
"$%!
Recorte 39. Meu Cavaquinho. Garoto. Anlise meldica da parte A. Compassos 1 ao 17.
"$"!
Recorte 40. Meu Cavaquinho. Garoto. Anlise meldica da parte B. Compassos 19 ao 34.
Na parte A, que est no tom de sol menor, ilustrada agora pelo Recorte 41, pode
ser destacado na anlise harmnica o acorde Cm6 (compassos 2, 6 e 10), que apresenta uma
dissonncia pouco comum nesse perodo e o acorde de D93 (compasso 9), que tem funo de
dominante diminuto do prprio Cm6, substituindo o seu dominante secundrio que, no caso,
seria o acorde de G7 (como j foi relatado neste trabalho acordes diminutos podem substituir
dominantes quando tem em comum o trtono).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
93
Na edio original o acorde estava escrito com o smbolo dim, que segundo autores como Guest (2006) e
Chediak (1986) representa o acorde diminuto assim como o smbolo .
"$$!
Recorte 41. Meu Cavaquinho. Garoto. Anlise harmnica da parte A. Compassos 1 ao 17.
A parte B, em sib maior, apresenta o nico trecho que difere das caractersticas
dos choros at a dcada de 1940, o j citado compasso 33, em que aparecem acordes de C7/9
e F7, sendo que as notas executadas so dissonantes em relao aos prprios acordes,
conforme evidenciado no Recorte 42.
Recorte 42. Meu Cavaquinho. Garoto. Anlise harmnica da parte B. Compassos 19 ao 34.
"$&!
Recorte 43. Transcrio de performance de Garoto. Choro Meu Cavaquinho. Compassos 19 ao 34.
Transcrio do pesquisador.
"$'!
"$(!
Recorte 45. Quanto di uma saudade. Garoto. Anlise meldica da parte A. Compassos 1 ao 16.
Na parte B aparecem mais inflexes meldicas, o que pode ser explicado pela
menor quantidade de acordes dissonantes, conforme mostra o Recorte 46.
Recorte 46. Quanto di uma saudade. Garoto. Anlise meldica da parte B. Compassos 17 ao 33.
"$)!
pela msica norte-americana. Quanto di uma saudade est em duas tonalidades, mi menor
(parte A) e mi maior (parte B). Muitos acordes dissonantes que esto demonstrados nos
quadros das pginas 110 e 111 podem ser encontrados nessa obra de Garoto, no entanto, uma
caracterstica muito comum nos choros at a dcada de 1930 ainda persiste: os acordes do
campo harmnico e alguns acordes do campo tonal continuam sendo evidenciados.
Na primeira quadratura, o compositor comea com uma sequncia de acordes
invertidos at chegar numa cadncia para o tom de mi menor, e apenas o acorde de A7/C#
de emprstimo modal. A partir do compasso 8 ocorre algumas modulaes, conforme pode
ser observado no Recorte 47. A primeira delas para a tonalidade de R Maior, que comea
no compasso 8 e segue at o fim do compasso 9. No compasso 10 os acordes D7/9 e G7 j
pertencem tonalidade de D Maior, que, por sua vez, dura at o primeiro tempo do
compasso 13. No segundo tempo do dcimo terceiro compasso a tonalidade principal volta
tona, revelando uma caracterstica que se tornar muito comum a partir da dcada de 1970,
isto , cadncias para a tonalidade principal resolvidas, geralmente, apenas no final das partes.
Alm da grande quantidade de emprstimos modais, que a partir de agora sero
abreviados com as letras e.m, nessa parte A h a evidncia no compasso 15 ( Recorte 47) de
um acorde funcional que ainda no havia sido recorrente nos choros analisados at agora: o
acorde dominante substituto estendido ( SubV7 est.). Esse acorde integra uma sequncia de
semitons descendentes at chegar numa tonalidade principal ou cadncia 95 (CHEDIAK,
1986). Esses acordes daqui em diante estaro escritos com a abreviao SubV7 est..
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
95
"$*!
Recorte 47. Quanto di uma saudade. Garoto. Anlise harmnica da parte A. Compassos 1 ao 16.
Recorte 48. Quanto di uma saudade. Garoto. Anlise harmnica da parte B. Compassos 17 ao 33.
"$+!
Mesmo com uma construo harmnica que permite dizer que o compositor teve
um dilogo com outros gneros como o jazz e a msica erudita, umas das principais
caractersticas do choro de Garoto o virtuosismo j presente no gnero desde seu
surgimento.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
96
97
Trmulo a repetio rpida de um som para dar impresso de continuidade (CAZES, 1988, p. 49).
"$#!
Recorte 49. Transcrio de performance de Garoto. Choro Quanto di uma saudade. Parte A. Compassos
1 ao 16. Transcrio do pesquisador.
Recorte 50. Transcrio de improviso de Garoto. Choro Quanto di uma saudade. Parte B. Compassos 18
ao 33. Transcrio do pesquisador.
"&%!
foi que ps em mim o sentimento musical: tocava to bem que pedi minha me um violino
para mim (JACOB DO BANDOLIM apud PAZ, 1997, p. 16).
J com o instrumento, tocava de ouvido as valsas e modinhas que sua me e os
vendedores ambulantes de jornais cantavam (Ibidem), porm, sem o arco, o que fez
rapidamente seus pais comprarem um bandolim, at porque, segundo Cazes (1999), muitas
cordas eram arrebentadas com o grampo de cabelo que Jacob usava para pinar as cordas do
violino98. Alm do seu vizinho violinista, segundo esse autor, do outro lado da rua morava
dona Valentina, funcionria da Victor, que tinha sua casa frequentada por artistas como
Carmen Miranda, Patrcio Teixeira, Lamartine Babo e Lus Americano.
Jacob do Bandolim no ingressou em nenhum conservatrio de msica ou
equivalente, iniciou em 1935 o curso de perito contador no Instituto Brasileiro de
Contabilidade, cujo rendimento no foi dos melhores, o que resultou uma reprovao99. Paz
observa que o diploma no foi aproveitado porque Jacob nunca exerceu essa profisso. A
msica falava mais alto. (Ibidem, p. 17). Como msico, como vendedor ambulante e como
funcionrio em pequenos comrcios (farmcias, inclusive a do seu pai, papelarias, dentre
outros), de acordo com o mesmo autor, desempenhou algumas atividades para sua
subsistncia.
Cazes (1999) associa o incio de sua carreira como solista ao concurso do
Programa dos Novos, da Rdio Guanabara, organizado por Eratstones Frazo e pelo jornal
O Radical em 27 de maio de 1934. Depois de vencer o concurso, Jacob criou o seu grupo
Jacob e Sua Gente - composto por Valrio Farias e Osmar Menezes nos violes, Carlos Gil no
cavaquinho, Manuel Gil no pandeiro e Natalino Gil na percusso. Esse grupo atuou em
diversas rdios cariocas, chegando at mesmo a substituir o Regional de Benedito Lacerda em
algumas ocasies. Jacob foi se tornando um dos principais intrpretes de choro naquele
perodo, o que levou Paz (1997) seguinte ponderao:
Jacob foi se firmando no meio musical como um msico srio, muito
preocupado com a preservao das nossas razes culturais. Dessa
preocupao nasceu e se cristalizou um intrprete inesquecvel. Muitas
composies esquecidas e algumas que no tinham conseguido nenhum
sucesso na interpretao de seus autores ganharam com Jacob uma nova
roupagem, atravs de uma interpretao particularssima, na qual a
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
98
A relao entre o violino e bandolim est no modo em que esto dispostas as notas de cada corda, pois so as
mesmas. 1 corda nota mi; 2 corda l; 3 corda r; 4 corda sol.
99
"&"!
Em 1945 Jacob passa a atuar na Rdio Mau com o grupo formado por Csar
Faria e Fernando nos violes, Pinguim no cavaquinho e Luna no pandeiro. Esse grupo gravou
em 1947, na Continental, o primeiro disco 78 rotaes, onde trazia composies de Jacob e
outros chores. Cazes (Ibidem) observa que os quatro discos lanados at maro de 1949
revelaram, alm de um timo solista e de um conjunto preciso, um compositor
importantssimo para a histria do choro (Ibidem, p. 101).
Jacob gravou o restante dos seus discos na gravadora RCA Victor, a partir de
1951 e durante dez anos os acompanhamentos de suas gravaes estiveram a cargo do
Regional de Canhoto (PAZ, 1997, p. 41). No ano de 1961 lanou o primeiro disco com o seu
grupo, formado por Csar Faria, Dino 7 cordas e Carlos Leite nos violes, Jonas Silva no
cavaquinho e Gilberto Dvila no pandeiro, conjunto este que mais tarde, em 1967, no disco
intitulado de Vibraes, receberia o nome poca de Ouro (antes foi chamado de Jacob e seu
Regional100 e Jacob e seus Chores). Segundo Diniz (2008), nesse disco pode-se perceber a
busca de uma nova linguagem para o grupo, cada violo trabalhando em uma regio diferente,
cavaquinho dividindo o solo com o bandolim (Ibidem, p. 36). Com o grupo poca de Ouro
Jacob fez shows tambm em So Paulo e Braslia, nessa ltima cidade, tocou em 1967 para o
presidente Costa e Silva no Palcio da Alvorada.
Apesar da vida de msico profissional que levava paralela ao trabalho que
conseguiu no Tribunal de Justia, Jacob do Bandolim dizia: eu no sou profissional. No
preciso de msica para sobreviver, mas sim para me comunicar, para extravasar (...) Da
Justia tiro meu salrio. Msica para mim no profisso (JACOB DO BANDOLIM apud
PAZ, p. 34). Mesmo assim, a autora ressalta que Jacob era muito exigente com horrios e
tinha um perfeccionismo exagerado, confirma o fato quando diz que Jacob no admitia um
erro sequer, fosse de quem fosse, e externava seu desapontamento de modo duro, na frente de
qualquer pessoa (Ibidem, p. 35-36). Mas o choro, segundo a mesma autora, tinha respeito
por pessoas j renomadas como Pixinguinha, Ernesto dos Santos - o Donga, Hermnio Bello
de Carvalho, dentre outros. Outra evidncia do profissionalismo de Jacob, segundo Paz
(Ibidem) foi a sua dedicao para a realizao do show de comemorao aos setenta anos de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
100
Jacob do Bandolim no gostava do termo regional. Para ele a palavra significava um grupo de msicos
desleixados, sem estudo, pau-pra-toda-obra das rdios (DINIZ, 2008, p. 35). Por isso que o grupo logo passou a
se chamar Jacob e seus Chores e mais tarde o to famoso grupo poca de Ouro.
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Diniz (2008) observa que o sarau era uma reunio ltero-musical muito comum na sociadade carioca
(Ibidem, p. 36).
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Dois exemplos citados por Paz (1997) dos atos proibidospor Jacob: o amigo Lcio Rangel, que Jacob muito
admirava, foi suspenso por ter urinado no jardim (Ibidem, p. 88). O segundo exemplo relatado por Carlinhos,
que tocava acompanhando Jacob e morou na casa dele, e citado por Paz (Ibidem): era um domingo de manh. O
conjunto comeou a tocar, e ento o Othon Salleiro se vira para o rapaz do violo e pergunta: Voc toca
violo? No senhor, eu estou comeando. Ele pegou no violo do rapaz e fez uma escala de alta tcnica que
acabou com o rapaz. Jacob levantou, chamou o Othon Salleiro l nos fundos e disse: Eu no permito que voc
faa isso na minha casa. uma pessoa humilde que vem aqui e voc faz uma coisa dessas. Esse rapaz, nunca
mais vai tocar violo. Como no podia mais comparecer aos saraus, Othon Salleiro ficava andando do lado de
fora pra l e pra c, na esperana de ser chamado (Carlinhos apud Ibidem, p. 88).
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nova. A obra de Jacob do Bandolim, portanto, se revela com indcios do incio dos processos
de hibridao que so aqui observados. Jacob do Bandolim deixou uma vasta obra, que ainda
faz parte do repertrio de vrios chores nos dias atuais.
2.3.2.1 A obra
As obras de Jacob do Bandolim, assim como as de Garoto, representam esse
momento de transio em que comeam a aparecer alguns indcios de um dilogo do Choro
com a Bossa Nova e com o jazz, principalmente no tocante harmonia. Os choros Noites
Cariocas e Receita de Samba foram selecionados para anlise por apresentar uma harmonia
um pouco diferenciada e as novas formas de improvisao que j apontavam para a latncia
de maiores transformaes indicadoras de novas configuraes estilsticas no gnero Choro.
Noites Cariocas foi composto em 1957 e Receita de Samba entre 1955 e 1967, poca que a
Bossa Nova e o Jazz estavam em vigor no Brasil.
Noites Cariocas
Recorte 51. Noites Cariocas. Jacob do Bandolim. Anlise meldica da coda final. Compassos 65 ao 74.
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Recorte 52. Noites Cariocas. Jacob do Bandolim. Anlise meldica da parte A. Compassos 1 ao 32.
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Recorte 53. Noites Cariocas. Jacob do Bandolim. Anlise meldica da parte B. Compassos 33 ao 64.
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Recorte 54. Noites Cariocas. Jacob do Bandolim. Anlise harmnica da parte A. Compassos 1 ao 32.
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Recorte 55. Noites Cariocas. Jacob do Bandolim. Anlise harmnica da parte B. Compasso 33 ao 64.
Recorte 56. Noites Cariocas. Jacob do Bandolim. Anlise harmnica da coda final. Compassos 65 ao 74.
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Recorte 57. Noites Cariocas. Jacob do Bandolim. Trecho com a melodia da parte B. Compassos 49 ao 62.
Recorte 58. Transcrio de performance de Jacob do Bandolim. Choro. Noites Cariocas. Compassos 49 ao
62. Transcrio do pesquisador.
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uma das partes. A partir de agora, portanto, tendo em vista essa realidade, sero nomeados de
improviso os solos mais longos que mudam totalmente a melodia ou a maior parte dela, e
sero nomeados de variao meldica, aqueles que apresentam apenas ornamentaes sobre
as melodias, que no se afastam muito delas.
Receita de Samba
Receita de Samba (Anexo 1. Partitura 6), provavelmente foi composto entre 1957
e 1967. um dos grandes clssicos de Jacob do Bandolim e mais uma de suas composies
que no deixam a desejar quando se discute o virtuosismo de suas obras. As semicolcheias
quase contnuas, sobretudo na parte B, e os saltos constantes, so provas disso. A melodia e a
cifra deste choro foram retiradas do lbum Songbook Choro Vol. 1 de Almir Chediak
(2007).
Dividido em uma introduo103 e duas partes, assim como em Noites Cariocas, a
melodia na parte A tem como destaque as notas dissonantes ao acorde nos compassos 12, 16,
24 e 30, o que pode ser observado no Recorte 58. Ainda nessa parte, por conta da quantidade
de acordes dissonantes, pode ser notada a presena de poucas inflexes. Nos compassos 10,
14 e 26 a nota mib realada, j que marcante no prximo acorde, o acorde de Cm6.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
103
A introduo composta somente de um ciclo de acordes do campo harmnico da tonalidade principal Sol
Maior, onde o acorde do IV grau C o primeiro da sequncia. Como no h melodia, apenas o acorde
executado, no cabe aqui uma anlise meldica desse trecho.
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Recorte 59. Receita de Samba. Jacob do Bandolim. Anlise meldica da parte A. Compassos 9 ao 40.
J a parte B est mais prxima do choro tradicional do incio do sculo XX, revela
a melodia composta basicamente de arpejos sobre os acordes e algumas inflexes, sem
destaque para notas que seriam dissonantes aos acordes, conforme est descrito no Recorte
60.
Recorte 60. Receita de Samba. Jacob do Bandolim. Anlise meldica da parte B. Compassos 41 ao 74.
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Recorte 61. Receita de Samba. Jacob do Bandolim. Anlise harmnica da introduo. Compassos 1 ao 8.
Recorte 62. Receita de Samba. Jacob do Bandoli.m Anlise harmnica da parte A. Compassos 9 ao 40.
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Recorte 63. Receita de Samba. Jacob do Bandolim. Anlise harmnica da parte B. Compassos 41 ao 74.
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104
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Recorte 64. Receita de Samba. Jacob do Bandolim. Trecho da melodia da parte B. Compassos 43 ao 64.
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Recorte 65. Transcrio de performance de Jacob do Bandolim. Choro Receita de Samba. Compassos 43
ao 64. Transcrio realizada pelo pesquisador.
Esse relato mostra uma das possveis explicaes da variao meldica ser um dos
meios mais utilizados na improvisao do choro, principalmente at esse recorte de tempo
(dcada de 1960), mas no deixa de fazer tambm uma referncia interao do choro com
outros procedimentos harmnicos na atualidade, necessidade de se conhecer esses novos
procedimentos para se dominar o processo improvisatrio, o que aponta para dados
importantes rumo confirmao da hiptese de que diferentes procedimentos harmnicos
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PARTE III
convivncia
de
diferentes
configuraes
estilsticas
do
choro
na
Canclini (2003) diz que essas so as principais caractersticas que levaram a modernidade dos pases latinoamericanos.
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(2008) dialoga com esse autor, quando afirma que o empreendedorismo urbano citado por
Harvey remete necessidade atual das cidades contemporneas, ante os recentes avanos
capitalistas tecnolgicos, de especulao financeira e comunicacional, de construir novos
espaos financeiros, sem deixar de explorar os bens locais, em um processo de apropriao
do cultural pelo comercial (Ibidem, p. 209). Essa abordagem remete tambm a Ariza (2006),
quando afirma que durante as ltimas dcadas do sculo XX at o tempo presente, a
globalizao se consistiu da seguinte maneira:
Na rea econmica, a presena das companhias transnacionais mais
constante que nunca, as fuses de grandes companhias esto na ordem do
dia e a circulao do capital est em sincronia com a rapidez das
telecomunicaes. No campo cultural, os emblemas da cultura mundial
aumentam e se fazem mais patentes. Os dolos da msica pop, as estrelas de
Hollywood, o hambrguer, a internet tm se convertido em elementos
comuns entre cidados de diversas capitais do mundo (Ibidem, p. 72).
Ariza (Ibidem) deixa claro o fenmeno da globalizao que se intensifica na psmodernidade. Hall (2006), por sua vez, sem deixar de lembrar que a globalizao no um
fenmeno recente106, concorda que desde os anos 70, tanto o alcance quanto o ritmo da
integrao global aumentaram enormemente, acelerando os fluxos e os laos entre as naes
(Ibidem, p. 68-69), o que permite considerar que o cenrio ps-moderno remete
globalizao. A partir dessa abordagem esse autor chega, num primeiro momento,
considerao de que as identidades nacionais esto se desintegrando, como resultado do
crescimento da homogeneizao cultural e do ps-moderno global (Ibidem, p. 69). No
entanto, mais adiante, evidenciando melhor a sua posio em relao a essa circunstncia,
citando Kevin Robin, observa:!!
ao invs de pensar no global como substituindo o local seria mais acurado
pensar numa nova articulao entre o global e o local. Este local no
deve, naturalmente, ser confundido com velhas identidades, firmemente
enraizadas em localidades bem definidas. Em vez disso, ele atua no interior
da lgica da globalizao. Entretanto, parece improvvel que a globalizao
v simplesmente destruir as identidades nacionais. mais provvel que ela
v produzir, simultaneamente, novas identificaes globais e novas
identificaes locais (Ibidem, p. 77-78).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
106
Stuart Hall (2006) confirma esse argumento atravs das abordagens de Wallerstein, quando lembra que o
capitalismo, [um dos fatores determinantes para a globalizao no cenrio ps-moderno], foi desde o incio [fim
do sculo XIX] um elemento da economia mundial e no dos estados-nao. O capital nunca permitiu que suas
aspiraes fossem determinadas por fronteiras nacionais (Wallerstein apud Hall, p. 68). Assim, Hall (Ibidem)
conclui que tanto a tendncia autonomia nacional quanto a tendncia globalizao esto profundamente
enraizadas na modernidade .
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Anthony McGrew, citado por Hall (Ibidem), define globalizao como processos
atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando
comunidades e organizaes em novas combinaes de espao-tempo, tornando o mundo, em
realidade e em experincia, mais interconectado (McGrew apud Ibidem, p. 67).! Harvey
(2006) j faz referncia ao rpido avano tecnolgico dizendo que:
medida que o espao se encolhe para se tornar uma aldeia global de
telecomunicaes e uma espaonave planetria de interdependncias
econmicas e ecolgicas para usar apenas duas imagens familiares e
cotidianas medida em que os horizontes temporais se encurtam at ao
ponto em que o presente tudo que existe, temos que aprender a lidar com
um sentimento avassalador de compreenso de nossos mundos espaciais e
temporais (Ibidem, p. 240).
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107
Segundo Ariza (2006), o jazz transcendeu sua base folclrica de Nova Orleans para se converter na msica
de dana nos sales europeus durante a Segunda Guerra Mundial atravs das Big-Bands e dos anos 60 em diante
conquistou cada vez mais intrpretes de mltiplas nacionalidades. O rock teve seu incio no rhythm`n blues dos
Estados Unidos e depois dos anos 60 se tornou um signo de rebeldia e em um fundamental vnculo de
identificao entre os jovens (Ibidem, p. 77).
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108
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de hibridao cultural 109 . Processos esses que, segundo Burke (2003) envolve[m] a
globalizao cultural. Por mais que reajamos a ela, no conseguimos nos livrar da tendncia
global para a mistura e hibridao (...) Novas tecnologias, obviamente facilitam este tipo de
hibridao (Ibidem, p. 15).
O choro, portanto, vem evidenciando uma tendncia acentuadamente hbrida nas
ltimas dcadas, em decorrncia do que foi citado, o que possibilita observar um processo que
faz aflorar uma identidade mvel e plural, acionada conforme novas situaes colocadas a
ele. E a tais combinaes provisrias responde sempre por formas inusitadas e inovadoras
(VARGAS, 2007, p. 21). Tendo em vista a globalizao, Ariza (2006) dialoga com Vargas
(2007) quando diz que o interesse na busca de novas sonoridades se encontra com o desejo
de abranger maiores mercados (ARIZA, 2006, p. 79). E foi isso que aconteceu com o choro a
partir da dcada de 1970, o que levou Diniz (2003) a considerar que foi deste ano em diante
que o choro ganhou grande pblico.
Tendo em vista essas consideraes, o cenrio globalizado, pode ser dito que a
primeira ida do choro para o exterior foi na dcada de 1920, com Pixinguinha, e, aps essa
data, o grande respaldo internacional veio com Waldir Azevedo no final da dcada de 1960, j
no cenrio de transio comentado. Henrique Cazes 110 , levando em considerao esse
contexto ps-moderno, observa que o choro hoje conhecido no mundo inteiro, o que se
deve facilidade de acesso a qualquer msica do mundo que os meios de comunicao atuais
proporcionam (CAZES, 2012). Srgio Morais111, por sua vez, em entrevista, disse que se o
choro no incio dos anos 1990 j estava bastante divulgado, hoje em dia com a internet, voc
pode mostrar o choro para qualquer pessoa do mundo (MORAIS, 2011). Observaes,
portanto, que levam a crer que esse gnero musical, cada vez mais, est ganhando o cenrio
globalizado ps-moderno, se tornando um bem local em dilogo com o global (HALL,
2006).
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109
Braslia, por exemplo, foi uma cidade que cultivou com intensidade os gneros rock e choro. Clmaco (2008)
ressalta que o bandolinista brasiliense Hamilton de Holanda (um dos grandes destaques do cenrio atual da
msica global que inclui o choro) teve influncias do rock, o que era inevitvel no contexto em que vivia.
110
111
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Diniz
(2003) se junta a esse autor ao lembrar que o show Sarau, organizado pelo jornalista Srgio
Cabral e executado pelos msicos Paulinho da Viola, Copinha e o grupo poca de Ouro, se
constituiu em um dos primeiros passos em direo proliferao dos msicos que praticavam
o choro. Outro momento importante, segundo esses autores, aconteceu quando foi lanado o
LP Cartola, tambm na dcada de 1970, cujos arranjos foram feitos por Dino 7 cordas,
Canhoto da Paraba e Meira e o restante do regional era composto por Copinha, Raul de
Barros, Abel Ferreira, Maral, Luna e Gilberto Dvila (todos chores j renomados).
Nesse contexto foram surgindo vrios grupos de choro, que se dividiam entre
acompanhar sambistas e tocar choro. Alm do grupo poca de Ouro, a partir de 1975, grupos
como A Fina Flor do Samba, Rio Antigo, Amigos do Choro, Anjos da Madrugada, Galo
Preto e Os Carioquinhas surgiram no clima de renascimento da dcada (DINIZ, 2003, p.
46). Cazes (1999) destaca o grupo A Fina Flor do Samba como um ncleo de cristalizao
para outros jovens conjuntos de Choro (Ibidem, p. 142). Integrando alguns desses grupos,
comearam a entrar em evidncia msicos hoje reconhecidos nacionalmente, como o caso
de Joel Nascimento, Raphael Rabelo, Z da Velha, dentre outros.
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O local de encontro dos chores que marcou o ressurgimento do gnero foi o Bar
Sovaco de Cobra no Rio de Janeiro, era espao de encontro dos grandes chores, tendo sido
inclusive homenageado por um deles, o clarinetista Abel Ferreira, em seu Chorinho do
Sovaco de Cobra (DINIZ, 2003, p. 45). J em So Paulo, ocorreu, em 1977, um dos
principais eventos que o choro pde realizar at o momento: o I Festival Nacional do Choro
Brasileirinho, promovido pela TV Bandeirantes112. Diniz (Ibidem) observa que esse foi o
perodo de glria desse gnero musical, segundo o autor, os festivais abriram novos
horizontes para o choro, incentivando o surgimento de instrumentistas e compositores e
reafirmando-o como ritmo nacional (Ibidem, p. 45). Respaldando Diniz, Cazes (1999, p.
153) comenta que
foi impressionante o espao que esse evento teve na mdia. Algo muitas
vezes maior do que o maior espao j ocupado pelo Choro at hoje. Se um
compositor famoso se inscrevia, j era matria. Todas as etapas do concurso
foram exaustivamente divulgadas pela imprensa e pelas matrias anteriores
ao evento, tinha-se a impresso de que o Choro finalmente chegaria terra
prometida.
O jri do festival era composto pelo maestro Guerra-Peixe, pelo jornalista Trik
de Souza e pelos pesquisadores Mozart de Arajo e Jos Ramos Tinhoro. O vencedor na
ocasio foi Rossini Ferreira com o choro Ansiedade.
A repercusso nacional desse gnero musical, portanto, foi se consolidando cada
vez mais. Alm do Rio de Janeiro e de So Paulo, Braslia, atual capital do Brasil, se tornaria
um dos grandes centros dessa manifestao musical. O choro brasiliense, segundo Clmaco
(2008), comeou sua trajetria a partir da dcada de 1960 e, assim como no Rio de Janeiro,
com a participao, sobretudo, do funcionalismo pblico, da Rdio Nacional e das bandas de
msica, o que remete a um processo de ressignificao dessa tradio carioca. O msico
Henrique Filho o Reco do Bandolim, citado por essa autora, assegura que a histria do
choro em Braslia comea com a transferncia de uma grande leva de funcionrios pblicos
da antiga capital federal [...] Existia, entre eles, um gosto acerbado pelo chorinho
(HENRIQUE FILHO apud CLMACO, p.146). Vasconcelos e Oliveira, tambm citados pela
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
112
No Rio de Janeiro tambm aconteceu um evento de relevncia para o choro, o I Concurso de Conjuntos de
Choro, promovido pelo Departamento de Cultura da Secretaria de Educao e Cultura no ano de 1977.
Conforme Cazes (1999) teve como primeiro colocado o grupo Amigos do Choro, em que se destacavam o
bandolim de Rossini Ferreira e a flauta de Grson Ferreira Pinto; em segundo lugar, os jovens chores de Os
Carioquinhas; e em terceiro, o grupo liderado pelo flautista Adauto, Os Bomios. Os concursos de Choro
aconteceram ainda mais trs vezes e premiaram respectivamente: em 78, o Rio Antigo, em 79, o N em Pingo
Dgua e, em 80, o conjunto Choro 7 (Ibidem, p. 153). No se tem registros de outros festivais como estes,
atualmente acontecem festivais em forma de oficinas como o Festival de Choro de So Carlos (anual) e o
Festival Choro Jazz de Jericoacoara (anual).
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autora, referem-se, principalmente, prtica musical dos funcionrios cariocas que foram
transferidos para a nova capital:
profissionalizados ou no-profissionalizados mudaram para a capital em
busca de uma nova perspectiva de vida. Alguns deles eram msicos de
Choro, ou simplesmente Chores e passaram a produzir este estilo
musical na cidade, dando incio ao desenvolvimento das atividades musicais
envolvendo o gnero (VASCONCELOS e OLIVEIRA apud Clmaco,
Ibidem p. 147).
Cazes (1999, p. 144) alega que fenmenos parecidos com o de Braslia aconteceram paralelamente em
Recife, Porto Alegre, Belo Horizonte, Goinia e outras cidades. A imprensa deu grande destaque aos Clubes de
Choro e ajudou a atrair pblico e adeptos . Em Goinia, cidade onde o pesquisador reside, existiu o Clube de
Choro no final da dcada de 1980 e incio da dcada seguinte. Fundado pelo professor da UFG Geraldo Amaral,
foi extindo em meados da dcada de 1990 e reativado pelo entrevistado Oscar Wilde em 2004. Desde 2009 no
existe mais o Clube do Choro de Goinia, porm o governo municipal conta com o projeto Grande Hotel
Revive o Choro, que acontece toda sexta-feira a noite e promove apresentaes de grupos de samba e choro da
capital e do Brasil.
114
Atualmente em Braslia, acontecem rodas de choro em bares. Rodas em quintais, como as mais antigas,
ocorreram, segundo Cazes (1999), at o incio da dcada de 1990. De acordo com o autor, hoje em dia, com os
apertos financeiros pelos quais todos tm passado, est difcil encontrar quem promova rodas de Choro com
assituidade (Ibidem, p. 115).
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Cumpre-se o que foi mencionado por Diniz (2003, p. 57), ou seja, no cenrio atual
aprende-se choro nas oficinas, nos conservatrios e at nas universidades. Importante
ressaltar que alm do Clube do Choro de Braslia, a Escola Porttil de Msica do Rio de
janeiro promove regularmente oficinas de choro com chores/professores renomados como
Maurcio Carrlho, Luciana Rabello, lvaro Carrilho, dentre outros.
Atualmente msicos forjados no cenrio choro de Braslia, muitos atuantes hoje
no Rio de janeiro, e msicos de muitas outras regies do pas, tm possibilitado uma
circunstncia de globalizado para o gnero choro, j que msicos como Marcos Pereira,
Yamand Costa, Hamilton de Holanda, Carlos Malta, dentre outros, so renomados
internacionalmente. O choro tem sido executado pelos brasileiros no exterior e por msicos
estrangeiros, conforme aponta Cazes (1999), encontram-se hoje locais e msicos nas grandes
cidades que cultivam o gnero. Mesmo com essa propagao, Diniz (2003) observa que os
grupos esto mais compactos, mais geis e econmicos, mas sem perder a riqueza do
contraponto, da harmonia e do ritmo do choro (Ibidem, p. 61). Acrescenta que chegada a
hora desse ritmo sacudido e gostoso, nas palavras do genial Pixinga, ser oficializado como
patrimnio nacional (Ibidem, p. 69). com essa frase, que o autor reala o valor do choro no
Brasil. Cazes (1999, p. 197) se junta a ele quando diz:
Por tudo isso, acho que este um grande momento para, com um mnimo
de apoio oficial, tirar do gueto esta poro mais chique da alma brasileira e
tornar o Choro uma atrao to associada ao Brasil quanto o Corcovado, o
Po de Acar e o carnaval. Algo como o que acontece com o jazz em New
Orleans.
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ressurgimento do choro, conforme autores como Cazes (1999) e Diniz (2003), tem a ver
com processos de ressignificao, uma vez que caractersticas residuais do gnero, como o
rtmo sincopado, o contraponto e o virtuosismo, foram mantidos, em dilogo com as
transformaes recorrentes.
Almada (2006) e Seve (1999) afirmam que as mudanas na harmonia foram o
principal requisito para o choro ser chamado de moderno. Considerando o choro moderno,
Seve (Ibidem, p. 5) lembra que
o choro foi inspirao principal na obra de Heitor Villa-Lobos e,
misturando-se a harmonias contemporneas, se transformou atravs
das msicas de autores como Radams Gnatalli, Tom Jobim, Hermeto
Pascoal, Paulinho da Viola e Guinga, ou dos trabalhos de arranjos e
composies de grupos como o N em Pingo D !gua, Galo Preto e
Camerata Carioca. at hoje, sem dvidas, o gnero mais representativo da
msica instrumental carioca e fonte onde bebem nossos maiores msicos
[Grifos meus]
Com base nesse referencial, considerando que o choro moderno faz meno ao
choro ressurgido da dcada de 1970, implicado com as heranas do jazz e da bossa nova,
sobretudo, na harmonia, o jazz considerado pelos autores abordados como um gnero
globalizado, sero abordadas agora as especificidades da sintaxe do choro moderno.
3.2.1 Estrutura formal do choro moderno: a macro-forma e a micro-forma
A macro-forma do choro moderno continua com as mesmas caractersticas
abordadas no captulo anterior. J a micro-forma, apresenta algumas peculiaridades, sinais de
transformaes.
O ritmo, no choro moderno, vem revelando um virtuosismo ainda mais
exacerbado. Um entrelaamento de semicolcheias com sncopes, fusas, semifusas, quilteras
(de trs a doze notas), andamentos rpidos e mudanas de compasso (o que torna a leitura
ainda mais complexa) so comuns em choros de Guinga, Hamilton de Holanda e Hermeto
Pascoal. Essas transformaes deixam o gnero, j considerado por chores como Luciana
Rabelo como um gnero complexo, ainda mais desafiador para o intrprete.
A melodia especialmente desafiadora e virtosstica, quando se tem como
referncia tanto o ritmo (composto de figuras de valor considerado ligeiro) quanto a
harmonia, que com ela estabelece a via de mo dupla j citada, s que agora implicando em
um nmero muito maior de notas de tenso e de progresses de acordes que testam e desafiam
a funcionalidade do sistema tonal, to caracterstico das primeiras sintaxes peculiares ao
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choro tradicional. O acorde agora tem um nmero muito maior de notas, o que torna o
trabalho com arpejos bem mais complexo, sobretudo, se houver inflexes meldicas. Outra
forte relao entre o virtuosismo meldico e a harmonia est nas modulaes, ou seja, se uma
das partes do choro apresentar vrias tonalidades, o executante ter que fazer um trabalho
mais cauteloso de leitura, pois encontrar um nmero mais expressivo de notas alteradas.
A harmonia foi o elemento mais transformado, portanto, e isso aconteceu a partir
das influncias do jazz, que j havia influenciado a bossa nova, a partir das dcadas de 1930 e
1950. Gava (2008, p. 94-95) sintetiza o trabalho harmnico da bossa nova com a seguinte
ponderao:
praticamente toda estrutura harmnica das composies [a partir da bossa
nova] passou a ser construda sobre acordes de posio no-fundamental
(invertidos) ou enriquecidos por notas estranhas (as dissonncias).
Horizontalmente, por sua vez, introduziu-se uma profuso de acordes
de passagem, em sua maioria dominantes individuais, propiciando o
aparecimento de um discurso harmnico mais denso. [Grifos meus]
Tendo em vista tambm que a base harmnica da bossa nova herdada do jazz,
Chediak (1994, p. 13) ressalta que foi possvel fazer msica brasileira nova com elementos
da msica americana. Esse gnero musical brasileiro, portanto, uma vez influenciado pelo
jazz, serviu de base harmnica para o choro da atualidade, contribuiu para a constituio de
um choro mais hbrido. Sendo assim, Seve (1999, p. 5) considera que misturando-se as
harmonias contemporneas, o choro tornou-se mais moderno [Grifos meus]. Clmaco
(2008, p. 331) no deixa de dialogar com Seve quando observa que
essas harmonias que se integram ao universo choro, de forma mais
decisiva as notas de tenso (incluso de notas estranhas ao acorde bsico, a
incluso constante de notas alteradas), promovem o dilogo com os acordes
e escalas modais (que fogem funcionalidade e centralidade direta do
sistema tonal), possibilitando outras sonoridades, uma nova atitude frente
centralizao harmnica herdada das danas europias.
"(+!
acordes para substituir os existentes (Ibidem, p. 24). Sobre a circunstncia, Diniz (2003, p.
62) cr que
alguns compositores, que no esto estritamente inseridos no contexto do
choro, vm acrescentando elementos estticos para o desenvolvimento do
gnero. Os msicos relacionados a seguir so um exemplo da evoluo do
choro na msica contempornea: Cristovo Bastos, Guinga, Hermeto
Pascoal, Marco Pereira, Leandro Braga e Wagner Tiso.
Clmaco (2008, p. 334) dialoga de perto com esses autores quando faz esta observao:
o dilogo com a msica norte-americana de meados do sculo XX em
diante, que por sua vez dialogou com a msica erudita, fez que alguns
msicos crescessem ouvindo choro, bossa nova e jazz, como foi o caso do
carioca Guinga e de Hermeto Pascoal, que evidenciam em suas obras as
marcas dessa convivncia.
No tpico sobre o processo de improvisao, abordado no primeiro captulo (p. 56) j so apresentadas
algumas diferenas da improvisao no jazz e no choro. Mesmo que o recorte de tempo seja diferente, a sua
leitura serve de base tambm para este tpico.
"(#!
Uma prtica muito comum na improvisao do choro, citada pela maioria dos
entrevistados, a volta ao tema. Joo Garoto, por exemplo, chega a afirmar que um bom
improviso de choro quando o solista sempre volta ao tema. Pode ser estabelecido um
dilogo entre esse msico e Henrique Cazes, portanto, quando este afirma que existem
excelentes intrpretes e improvisadores que simplesmente no improvisam, no mximo fazem
variaes sobre o tema, s vezes nem isso, o que nunca acontece no jazz (CAZES, 2012). No
entanto, todos concordam que depois do jazz e da bossa nova, os chorus no choro se tornaram
comuns, embora se mantenham as diferenas aqui apontadas.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
116
117
118
Autores como Med (2001) e Grout (1994) afirmam que na msica ocidental do final do sculo XIX,
compositores como Debussy, utilizaram escalas consideradas exticas, como a pentatnica e de tons inteiros.
Guest (2006) considera que essas escalas so bastante usadas pelos jazzstas nos improvisos, o que pode ser
explicado pela influncia que os mesmos tiveram da msica de Debussy. Como o choro da dcada de 1970 teve
um contato direto com o jazz e a bossa nova (que tambm tinha influncias debussyanas), pressupe-se que
alguns chores faam uso dessas escalas no choro, porm em menor quantidade, conforme o entrevistado.
119
120
Na entrevista Henrique Cazes no chegou a citar, mas no decorrer da conversa foi possvel perceber que se
referia s seguintes maneiras de improvisar: na forma de variao meldica; mudando o tema de alguma das
partes (improviso horizontal); nas baixarias do violo e estabelecendo contraponto (improviso vertical).
")%!
")"!
Essa citao mostra que desde cedo Hermeto Pascoal j apresentava tendncias
para a msica. Mudou-se para Recife PE em 1950, onde trabalhou nas Rdios Tamandar e
do Commrcio como pandeirista no grupo do j conhecido sanfoneiro Sivuca. No entanto,
logo foi para outra rdio, a Difusora de Caruaru, onde tocou o instrumento que gostava de
tocar, a sanfona. Alguns anos mais tarde voltou a atuar na Rdio do Commrcio, com um
status mais elevado, j que recebeu inmeros elogios do principal sanfoneiro dessa rdio:
Sivuca.
Em 1958, aos 20 anos de idade, mudou-se para a cidade do Rio de Janeiro, onde
atuou em rdios e em conjuntos de baile. Clmaco (2008, p. 335) afirma que no teve
dificuldade para encontrar trabalho nessa cidade, pois era capaz de tocar qualquer tipo de
msica. Integrou o conjunto de Pernambuco do Pandeiro, tocando Choro e fazendo o
acompanhamento de cantores. Alm de ter tocado sanfona neste grupo, Hermeto Pascoal
tocou com o violonista Faf Lemos e com o conjunto de Copinha.
Transferiu-se para So Paulo em 1961, quando j tocava flauta. Ali teve
oportunidade de tocar em vrias casas noturnas como integrante dos grupos Som Quatro e
Sambrasa Trio. Em 1966, poca que houve o florescimento dos programas musicais de TV,
integrou o grupo Quarteto Novo como pianista e flautista. Os demais componentes foram
Heraldo do Monte na viola e guitarra, Tho de Barros no baixo e violo e Airto Moreira na
bateria e percusso. O seu site destaca que O grupo inovou com sua sonoridade refinada e
riqueza harmnica, participando dos melhores festivais de msica e programas da TV Record,
")$!
representando o melhor da nossa msica122. O sucesso desse grupo se deu pela ousadia que
Hermeto Pascoal tinha em explorar novos sons, novas harmonias. Nessa poca venceu um dos
Festivais da TV Record com a msica Ponteio de Edu Lobo, venceu vrias vezes na
categoria de arranjador.
J estava ento bastante conhecido no Brasil, em 1978, quando passou a ser
reconhecido no cenrio internacional no s pelas suas habilidades como compositor e
arranjador, mas tambm pela sua atuao como multi-instrumentista e improvisador. Segundo
Cabral (2000, p. 13-14), o sucesso no exterior veio quando
participou do Festival do Jazz, em So Paulo, em 1979, quando foi
aplaudido pelos msicos presentes, entre os quais figuravam atraes
internacionais do porte do saxofonista Stan Getz e do tecladista Chick
Corea; do Festival de Montreaux em que tocou mais de cinco horas em duas
apresentaes, foi aplaudidssimo e recebeu crticas entusiasmadas como a
do crtico Francis Maramande, do Jazz Magazine, que chamou a ateno
para um Brasil com fronteiras musicais muito livres; do Teatro Procpio
Ferreira em So Paulo quando encontrou o trompetista e mito do Jazz
americano Dizzy Gillespie.
Observa ainda:
o que o artista mostrava naquelas apresentaes era a mesma coisa que faria
dele um dos nomes de maior destaque de toda a msica brasileira: nunca
tocava a mesma msica do mesmo jeito, improvisando sempre, criava
melodias em pleno palco e, muitas vezes, transformava os objetos do
cotidiano em instrumentos musicais (Ibidem, p. 11-12).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
122
123
")&!
Hermeto Pascoal gravou dois Lps nos EUA no ano de 1969, ainda com o Quarteto
Novo. Nesse mesmo ano conheceu Miles Davis, gravou duas de suas composies e, quando
voltou para o Brasil, em 1973, gravou uma srie de discos com o seu Grupo124 de 1978 at os
dias atuais. De 23 de junho de 1996 a 22 de junho de 1997 comps uma das suas obras
primas, o Calendrio do Som, que registrou uma composio para cada dia desse ano. Hoje
em dia desenvolve um trabalho com sua esposa Aline Morena, intitulado Chimarro com
Raparuda, alm de realizar shows, workshops e concertos pelo mundo todo.
Referente ao choro, Hermeto Pascoal tem evidenciado interao com o gnero.
Logo que chegou ao Rio de Janeiro, atuou e gravou com o grupo de Pernambuco do Pandeiro.
As suas composies Chorinho pra ele, Rebulio e Intocvel esto entre seus principais
clssicos, esto sendo muito executados atualmente pelos chores e algumas partituras do
Calendrio do Som, trazem anotaes como estas:
Compondo essa msica lembrei-me muito do grande amigo e incentivador
Pernambuco do pandeiro e seu regional (...) Me lembrei tambm dos
violonistas Jorge e Pinguim, Ubiratan e seu cavaquinho (...) E um dos
melhores flautistas de todos os tempos que chama-se Manoelzinho da
flauta... (PASCOAL, 2000, p. 300).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
124
Em todos os lbuns que Hermeto Pascoal gravou com seu grupo, a intitulao dos discos era apenas
Hermeto Pascoal e Grupo, ou seja, no tem um nome especfico para essa formao. O instrumental que
compunha o Grupo, geralmente tinha bateria, percusso, guitarra, baixo e sopros (saxofones e flautas).
125
Srgio Cabral faz reverncia s apresentaes de Hermeto Pascoal com o Quarteto Novo ao observar: o
que o artista mostrava naquelas apresentaes era a mesma coisa que faria dele um dos nomes de maior destaque
de toda a msica brasileira: nunca tocava a mesma msica do mesmo jeito, improvisando sempre, criava
melodias em pleno palco e, muitas vezes, transformava os objetos do cotidiano em instrumentos musicais
(CABRAL, 2000, p. 11-12).
")'!
Rebulio
O choro Rebulio foi composto na dcada de 1980 e gravado pela primeira vez
em 1987, no disco S no toca quem no quer que, inclusive, foi a verso utilizada para as
anlises. A partitura e a cifra foram retiradas do website do prprio compositor e reeditadas
pelo pesquisador.
Constitui-se em um choro, cuja forma semelhante forma dos choros analisados
no captulo anterior - possui duas partes (A e B) - o que evidencia a permanncia de um
padro. Ritmicamente, Hermeto Pascoal deu preferncia s semicolcheias e s quilteras, no
evidenciando o emprego regular de sncopes nesta obra. Como o compositor multiinstrumentista, pode ser presumido que os choros analisados foram compostos para qualquer
instrumento, cabendo ao instrumentista fazer alguma adaptao quando necessrio.
A melodia, apesar de apresentar muitos graus conjuntos na parte A, possui,
relativamente, um nmero de inflexes meldicas pequeno quando comparado as inflexes
marcadas nos recortes de tempo dos captulos anteriores126, pois os acordes se revelam com
muitas dissonncias. Ocorrem algumas notas alteradas, em consequncia do acorde que
aparece nos compassos 5, 6, 8 e 9. A tonalidade desse trecho Sol menor. No Recorte
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
126
No primeiro captulo, onde a harmonia se evidenciava diferente da abordagem referente a esse captulo, era
raro encontrar compassos inteiros sem inflexes ou apenas uma inflexo por compasso. Isso ocorria apenas
quando a melodia era composta por arpejos consonantes.
")(!
Recorte 66. Rebulio. Hermeto Pascoal. Anlise meldica da parte A. Compassos 1 ao 10.
Recorte 67. Rebulio. Hermeto Pascoal. Anlise meldica da parte B. Compassos 11 ao 25.
"))!
Recorte 68. Rebulio. Hermeto Pascoal. Anlise harmnica da parte A. Compassos 1 ao 10.
ritornello aparecem algumas particularidades, como o acorde SubV7 do I grau, que resolve no
dominante secundrio do quarto grau, no compasso
")*!
Recorte 69. Rebulio. Hermeto Pascoal. Anlise harmnica da parte B. Compassos. 11 ao 25.
Rebulio e a improvisao
")+!
Recorte 71. Transcrio de performance de Hermeto Pascoal Choro Rebulio. Hermeto Pascoal.
Compassos 1 ao 19. Transcrio do pesquisador.
")#!
Recorte 72. Transcrio de performance de Hermeto Pascoal. Choro Rebulio. Hermeto Pascoal. Terceiro
chorus. Compassos 19 ao 28. Transcrio do pesquisador.
Recorte 73. Transcrio de performance de Hermeto Pascoal. Choro Rebulio. Hermeto Pascoal. Quarto e
quinto chorus. Compassos 29 ao 46. Transcrio do pesquisador.
"*%!
Este choro foi composto na dcada de 1970 e gravado no disco Slave Mass em
1977. A melodia e a cifra foram retiradas do Songbook Hermeto Pascoal e Egberto
Gismonti realizado pelo contrabaixista Fernando Tavares em 2007, livro muito usado em
cursos e Workshops de contrabaixo pelo Brasil. A partitura que originou os recortes foi
reeditada pelo pesquisador.
Nesta composio Hermeto Pascoal apresentou algumas caractersticas prprias
do choro tradicional, como compasso, forma, ritmo e melodia virtuosstica. Sua forma
constituda de uma pequena introduo e duas partes A e B. Ritmicamente prevalecem as
semicolcheias na primeira parte e, na segunda parte, as fusas e as quilteras aparecem em
grande quantidade, o que dificulta mais ainda a execuo da obra.
A melodia da introduo formada por arpejos e inflexes que acontecem
somente entre as notas dos acordes, conforme descrito por Almada (2006), e no de forma
aleatria, como comum em choros dessa poca. O Recorte 74 ilustra essas observaes.
Recorte 74. Chorinho pra ele. Hermeto Pascoal. Anlise meldica da introduo .Compassos 1 ao 4.
"*"!
Recorte 75. Chorinho pra ele. Hermeto Pascoal. Anlise meldica da parte A. Compassos 5 ao 24.
Recorte 76. Chorinho pra ele. Hermeto Pascoal. Anlise meldica da parte B. Compassos 26 ao 34.
"*$!
Recorte 77. Chorinho pra ele. Hermeto Pascoal. Anlise harmnica da introduo. Compassos 1 ao 4.
Esses
acordes,
acima
exemplificados,
podem
tambm
ser
classificados,
respectivamente, como dominantes secundrios substitutos dos seguintes graus: III grau; VI
grau; II grau e V7 grau. A parte A, em Sol Maior, possui harmonia simples, com acordes do
campo harmnico desta tonalidade e com poucas dissonncias, que acontecem entre os
compassos 5 e 12. A partir do compasso 13, comea uma srie de modulaes, a primeira
para a tonalidade de Sib Maior, no compasso 14, a segunda para Lb Maior, no compasso 16
e a terceira para D Maior no compasso 18. Nos compassos 19 e 20 so executados acordes
pertencentes ao campo harmnico de Sol Maior, porm, essa tonalidade s volta a surgir no
ltimo compasso desse trecho, pois os mesmos acordes da introduo so tocados antes disso,
conforme pode ser conferido no Recorte 78.
Recorte 78. Chorinho pra ele. Hermeto Pascoal. Anlise harmnica da parte A. Compassos 5 ao 24.
"*&!
acordes j so de emprstimo modal, suas origens esto nos modos menor natural e menor
harmnico, pertencentes ao campo tonal de Sol. O Recorte 79 exemplifica tais circunstncias.
Recorte 79. Chorinho pra ele. Hermeto Pascoal. Anlise harmnica da parte B. Compassos 26 ao 34.
"*'!
intenso do compositor com o estilo improvisatrio e com a harmonia do jazz, e, talvez por
isso mesmo, e por estar inconscientemente trabalhando o residual, Hermeto Pascoal no tenha
sentido necessidade de lanar mo da improvisao na performance de seus choros, as
peculiaridades estilsticas dessa improvisao j esto imbricadas no corpo da obra, assim
com o dilogo com elementos estilsticos residuais ligados ao gnero. Interessante, no
entanto, que outros intrpretes do Chorinho pra ele como o saxofonista Paulo Moura e o
prprio Hamilton de Holanda, que ser analisado a seguir, ao executar esse choro de Hermeto
Pascoal, realizam improvisaes prximas do que o compositor fez em Rebulio. O que
est sendo afirmado nesse momento pode ser conferido no Recorte 80, que traz uma
transcrio da improvisao de Hamilton de Holanda a partir da execuo do Chorinho pr
ele de Hermeto Pascoal. A transcrio abaixo foi retirada a partir da audio do CD Samba
do Avio, gravado por Hamilton de Holanda e Richard Galliano em 2007 (Anexo 2. Faixa
14).
Recorte 80. Transcrio de performance de Hamilton de Holanda. Choro Chorinho pra ele de Hermeto
Pascoal. Compassos 5 ao 24. Transcrio do pesquisador.
"*(!
Recorte 81. Chorinho pra ele. Hermeto Pascoal. Melodia da parte A. Compassos 5 ao 24.
"*)!
vez, remete tambm a Burke (2003), quando observa: devemos ver as formas hbridas como
o resultado de encontros mltiplos e no como o resultado de um nico encontro, quer
encontros sucessivos adicionem novos elementos mistura quer reforcem os antigos
elementos (Ibidem, p. 31).
O outro compositor de choro selecionado nessa investigao o brasiliense
Hamilton de Holanda, reconhecido nacional e internacionalmente, e que teve em Hermeto
Pascoal, no perodo de sua formao musical, uma das principais influncias. Em entrevista
no programa Metrpolis da TV Cultura, Hamilton de Holanda faz meno a Hermeto
Pascoal quando diz que a msica dele fez parte da minha adolescncia, um pilar, referncia
total para msicos daqui e de fora128
3.3.2 Hamilton de Holanda
Nascido no Rio de Janeiro em 1976, embora criado em Braslia desde criana,
Hamilton de Holanda conviveu de perto com o choro, uma vez que seu pai, Jos Amrico de
O. Mendes, violonista, foi um dos fundadores do Clube do Choro de Braslia (CLMACO,
2008). Fez em Braslia sua primeira apresentao em 1981, nesse mesmo Clube, executando
escaleta, um dos seus primeiros instrumentos. A partir de 1982, no entanto, passou a atuar
com o bandolim, o que mais tarde lhe renderia o ttulo de um dos maiores bandolinistas da
atualidade pela Frana129 e a responsabilidade de ser considerado um dos fundadores de uma
nova escola desse instrumento, depois daquela que teve o choro Jacob do Bandolim como
seu representante. Segundo depoimento de Santos Filho o Reco do Bandolim, no
documentrio O prazer de tocar juntos, Hamilton de Holanda :
incomum, um msico genial (...) Eu poderia at dizer o seguinte, na
histria do bandolim, pode-se referir ao Luperce Miranda, ao Jacob do
Bandolim, que fez uma escola do bandolim, voc pode se referir ao
Armandinho Macedo e o Hamilton comea uma nova histria pro
bandolim, mundial, o novo bandolim que se apresenta pro mundo
(FILHO, apud CARNEIRO, 2005).
Segundo Clmaco (2008), Hamilton ganhou, em 2001 o prmio Icatu Hartford Artes de melhor
instrumentista do Brasil, o que lhe permitiu viver em Paris por um perodo de um ano, na Cit Internationale de
Arts. Foi considerado pelo jornal francs Corse Matin como o melhor bandolinista do mundo, afirmao
corroborada pelo msico Hermeto Pascoal. Foi tambm chamado de Prince de la mandoline pela famosa revista
parisiense Magazine (Ibidem, p. 341).
"**!
"*+!
influncias, por sua interao com o Clube do Choro de Braslia, que sempre recebeu
simpatizantes e performers que dialogam com esse gnero americano, como o caso do
prprio Hermeto Pascoal e do saxofonista e clarinetista brasileiro Paulo Moura, dentre outros
(HOLANDA, 2010).
Referindo-se formao desse msico bastante ativo no cenrio musical
brasileiro, s instituies que interagiram com a sua formao (Clube do Choro, Escola de
Msica de Braslia, e Departamento de Msica da UnB), Clmaco (2008, p. 340) observa:
...um msico forjado, naturalmente, nas perspectivas do ensino formal e
informal, ou seja, fruto tanto da vivncia em rodas de choro, do palco do
clube, quanto da sistematizao de duas das principais instituies
dedicadas ao ensino da msica em Braslia, que lhe propiciaram o
conhecimento da msica erudita.
"*#!
3.3.2.1 A obra
Na seleo de obras para a anlise, foi percebido que Hamilton de Holanda
especifica os ttulos das peas, o que evidencia de forma direta as interaes culturais que
acontecem nos seus trabalhos. Na primeira obra a ser analisada, Aquarela na Quixaba (Anexo
1. Partitura 5), o compositor usa o termo choro exaltao para especificar o estilo. J o
segundo choro, Brasileiro (Anexo 1. Partitura 6) est com o subttulo samba choro. As
partituras e cifras foram extradas do lbum Livro de Msicas: Hamilton de Holanda
publicado em 2002.
Aquarela na Quixaba
Recorte 82. Aquarela na Quixaba. Hamilton de Holanda. Anlise meldica da Introduo. Compassos 1 ao
8.
"+%!
relativamente menor, num trecho que contm 67 compassos 131 (indicados com crculo).
Exemplos claros das notas dissonantes que esto integrando a melodia aparecem nos
compassos 27, 28 e 29, em que a quinta aumentada e a sexta do acorde de Am surgem (estes
indicados com uma seta). Outra peculiaridade da parte A est na escala de tons inteiros no
compasso 49 (considerando tambm sua anacruse), que, segundo Barasnevicius (2009, p. 82),
pode ser aplicada em acordes com as tenses 7m (stima menor) e 6m (sexta menor) [a
mesma 13m, s que uma oitava abaixo]. A exemplificao est no Recorte 83.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
131
importante ressaltar que a melodia do compasso 9 ao 18 de Aquarela na Quixaba a mesma nos compassos
37 ao 46.
"+"!
Recorte 83. Aquarela na Quixaba. Hamilton de Holanda. Anlise meldica da parte A. Compassos 9 ao 67.
Recorte 84. Aquarela na Quixaba. Hamilton de Holanda. Anlise meldica da parte B. Compassos 71 ao
100.
"+$!
Recorte 85. Aquarela na Quixaba. Hamilton de Holanda. Anlise harmnica da Introduo. Compassos 1
ao 9.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
132
133
"+&!
Recorte 86. Aquarela na Quixaba. Hamilton de Holanda. Anlise harmnica da parte A. Compassos 9 ao
67.
"+'!
Recorte 87. Aquarela na Quixaba. Hamilton de Holanda. Anlise harmnica da parte B. Compassos 69 ao
100.
"+(!
Recorte 88. Aquarela na Quixaba. Hamilton de Holanda. Melodia do trecho analisado no recorte seguinte.
Compassos 69 ao 87.
"+)!
Recorte 89. Transcrio de performance de Hamilton de Holanda. Choro Aquarela na Quixaba. Hamilton
de Holanda. Compassos 70 ao 87. Transcrio do pesquisador.
Brasileiro
Recorte 90. Brasileiro. Hamilton de Holanda. Anlise meldica da introduo. Compasso 1 ao 17.
"+*!
Recorte 91. Brasileiro. Hamilton de Holanda. Anlise meldica da parte A. Compassos 17 ao 53.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
134
Entre os compassos 58 e 65 a tonalidade da parte B de Mib Maior. A partir do compasso 66, os acordes do
campo harmnico de D Maior voltam a ser executados.
"++!
Recorte 92. Brasileiro. Hamilton de Holanda . Anlise meldica da parte B. Compassos 57 ao 85.
"+#!
Recorte 93. Brasileiro. Hamilton de Holanda. Anlise harmnica da introduo. Compassos 1 ao 16.
Recorte 94. Brasileiro. Hamilton de Holanda. Anlise harmnica da parte A. Compassos 17 ao 53.
"#%!
Recorte 95. Brasileiro. Hamilton de Holanda. Anlise harmnica da parte B. Compassos 54 ao 94.
Brasileiro e a improvisao
A gravao utilizada para esta anlise da performance faz parte do disco Luz das
Cordas de 2003 (Anexo 2. Faixa 13). Nesta verso Hamilton de Holanda se dispe de uma
formao diferente, ela acontece com bateria, baixo, e violo 7 cordas.
"#"!
Recorte 97. Brasileiro. Hamilton de Holanda. Melodia do trecho analisado no recorte anterior. Compassos
58 ao 74.
"#$!
Enfim, tendo em vista o cenrio ps-moderno, pde ser percebido que o contato
cada vez mais intenso com os gneros globais legou ao choro processos acentuados de
hibridao cultural. Isso aconteceu tanto no mbito do seu processo composicional quanto nos
processos relacionados improvisao, conforme exemplificado atravs dos recortes que
ilustram esse captulo. As anlises evidenciaram que houve o experimento de novas
possibilidades meldicas e harmnicas resultantes da gama de interaes culturais
promovidas pelos compositores e performers a partir de seu contato com elementos da cultura
americana que receberam via rdio, televiso, internet, atravs dos intensos fluxos
comunicacionais e internacionais que perpassam a ps-modernidade (HARVEY, 2005).
Essas anlises possibilitaram considerar, de um lado, Hermeto Pascoal, que
apresentou uma vasta influncia jazzista quando realizou chorus de improviso e utilizou
escalas de tons inteiros com vrias alteraes. Ao mesmo tempo, pde ser observado que esse
msico no deixou de lado o seu conhecimento da sintaxe do choro tradicional ou do choro
moderno, nos momentos que fez prevalecer nas suas obras ou interpretaes o trabalho com
semicolcheias, com notas repetidas, com a rtmica contramtrica mencionada por Sandroni
(2001) e, mesmo com momentos de variao da melodia. Hamilton de Holanda, alm de
evidenciar processos semelhantes aos que acabaram de ser descritos, na evidncia de seus
processos de hibridao cultural (CANCLINI, 2003) foi ainda mais direto, quando intitulou
suas obras de choro-jazz, choro-samba, dentre outras denominaes semelhantes.
A abordagem dessas situaes imediatas e concretas de relaes entre sujeitos,
atravs da observao de suas prticas, obras e formulaes verbais, promotoras do dilogo
entre o j dito com o que est sendo dito agora e desta maneira, atravs dessa forma e
desse encontro de diferentes representaes sociais (ORLANDI, 2001), a percepo das
qualidades performativas dos processos identitrios que propiciam ao sujeito diferentes
possibilidades identitrias (HALL, 2005), levou novamente a Clmaco (2008, p. 311), quando
reflete sobre a convivncia de diferentes caractersticas estilsticas do choro no cenrio psmoderno atual.
Esse cenrio, incorporando a diversidade acentuada, propicia a constatao da
convivncia do choro tradicional com o choro moderno e com a prtica que trata esse gnero
musical (e outros gneros musicais brasileiros tambm) como um standart, privilegiando um
processo improvisatrio bem prximo quele do gnero americano, sem deixar de passar por
citaes histricas, ou seja, por pequenos trechos que relembram rapidamente choros
conhecidos. Essa autora, tendo como referncia a pesquisa do choro que realizou na cidade de
"#&!
CONSIDERAES FINAIS
Este trabalho pretendeu investigar a interferncia de diferentes tratamentos
harmnicos na forma de improvisar a melodia do gnero musical choro, buscando constatar
procedimentos tcnicos/estilsticos e processos identitrios implicados com hibridao
cultural. As referncias de aparato histrico como Cazes (1999), Diniz (2008 e 2003) e
Tinhoro (1998), os conceitos de improvisao, processos identitrios e hibridismo,
fundamentados,
sobretudo,
em
Gainza
(2007),
Hall
(2006)
Canclini
(2003),
respectivamente, e os dados colhidos a partir das anlises, que tiveram como base
bibliogrfica, sobretudo, Almada (2006), Chediak (1986) e Guest (2006), foram fundamentais
para que estes objetivos fossem alcanados.
Alm da fundamentao harmnica importante e necessria alcanada com esses
trs autores, a abordagem dos cenrios histricos com Tinhoro (1998), Harvey (2005) e
Ariza (2006) foi bsica no momento das anlises estruturais, fornecendo dados relevantes que,
relacionados a essas anlises e s anlises das performances realizadas atravs da audio e
observao de Cds e DVDs, possibilitaram chegar aos diversos processos de hibridao
cultural mencionados, implicados com processos identitrios diversos, com o entrecruzar do
j dito com o que est sendo dito agora, nessa nova situao concreta de encontros
culturais, dessa maneira e atravs dessa forma (ORLANDI, 2001).
Como j vem sendo alinhavado em cada captulo, ficou claro que h uma via de
mo dupla entre a melodia e a harmonia nessa investigao, que no se pode falar em uma
sem falar na outra, que esses processos se interagem de forma estreita.
Comeo
"#(!
"#)!
136
"#*!
"#+!
gnero que mesclava elementos oriundos do jazz com ritmos contramtricos (originrios,
sobretudo do choro e do samba): a Bossa Nova. Nesse perodo, que tem como referncia
nessa investigao as dcadas de 1940 a 1960, pde ser notado que compositores como
Garoto e Jacob do Bandolim comearam a revelar um momento de transio no choro, a
mostrar um dos primeiros sinais de transformao estilstica no gnero, sobretudo na estrutura
formal e na harmonia. Esses elementos anunciavam a latncia de transformaes, a estrutura
formal rond, comeava a conviver mais com a estrutura binria, e a harmonia passava a ter
mais acordes dissonantes e modulaes. No referente improvisao, o contexto que fazia
prevalecer variaes meldicas a partir da melodia principal, comeava a conviver com
pequenos trechos, geralmente na parte B, que encaminhavam para um distanciamento maior
dessa melodia.
A partir da dcada de 1970, no entanto, a simples latncia foi se transformando
em afirmaes maiores dessas caractersticas estilsticas, da interao do gnero choro com
outro tempo que agora tambm se afirmava no cenrio brasileiro: o perodo ps-moderno,
conforme descrito por Harvey (2005) e Ariza (2006). Esse perodo, caracterizado pela
intensificao da globalizao, pelo avano tecnolgico que trouxe grandes transformaes
aos meios de comunicao e de transporte, elementos que mudaram as interaes no cenrio
cultural mundial, proporcionou uma riqueza de importaes e exportaes musicais.
gnero musical choro, nesse cenrio, passou a interagir de forma intensa com gneros como o
jazz e o rock - agora percebidos como gneros globais alm de comear a ser cultivado em
vrios pases.
Nesse contexto de interaes e de contato com grandes fluxos comunicacionais
(ABDALA JR, 2002), os compositores/performers do choro passaram a mostrar em suas
composies e performances o resultado das inevitveis interaes musicais, melodias e
harmonias cada vez mais diferenciadas, baseadas em acordes ricos em dissonncias,
improvisaes longas, afastadas da melodia principal e marcadas por elementos novos como
as escalas que antes eram vistas com mais constncia no jazz ou blues (escala de tons inteiros,
escala pentatnica, dentre outras). No entanto, ficou evidenciado tambm, que muitos
compositore/performers, dentre estes, Hermeto Pascoal e Hamilton de Holanda, no deixaram
de cultivar elementos estilsticos residuais do choro, continuaram a executar trechos com
variaes meldicas, chegando s vezes a no improvisar em algumas gravaes, deixando
apenas para o corpo das composies as transformaes estilsticas, alm de continuarem a
evidenciar, na grande maioria de suas improvisaes, o sistema rtmico contramtrico e a
ambincia de liberdade, afeto, confraternizao, trocas musicais.
"##!
O relato dessa pesquisa permite afirmar, portanto, que foi possvel confirmar a
pressuposio de que diferentes procedimentos harmnicos, percebidos na via de mo dupla
que estabelecem com a linha meldica, implicados com diferentes processos de hibridao
cultural inerentes ao cenrio cultural brasileiro do final do sculo XIX ao Tempo Presente,
interferiram de forma diferente nas diversas configuraes estilsticas do gnero musical
choro e dos processos improvisatrios relacionados sua performance. Enfocados nos
recortes de tempos realizados a partir desse perodo maior, diferentes processos identitrios
implicados com diferentes processos de hibridao cultural foram evidenciados, sem deixar
de revelar as implicaes do tempo mltiplo inerente a toda trama scio-histrico e cultural,
ou seja, as intrincadas e inseparveis relaes de passado, presente e futuro (FREIRE, 1994),
que tornam cumulativas, mas ao mesmo tempo significativas e peculiares as diferentes
possibilidades de hibridao cultural.
Termino esse relato dizendo que os dados colhidos na pesquisa bibliogrfica e
documental, nas entrevistas, nas audies de rodas de choro, de CDs, DVDs e, sobretudo, na
internet, me levaram a crer que os investimentos em trabalhos e pesquisas sobre o choro no
Brasil esto, aos poucos, conquistando espao dentro das universidades brasileiras. Espero ter
contribudo de alguma forma para o pblico que ir pesquisar nesse campo, ter possibilitado
informao para estudantes e amantes da msica popular brasileira. Pretendo continuar
estudando e cooperando com pesquisas mais profundas sobre o assunto, visando sempre a
maior valorizao da msica brasileira. Estou j investigando outros ngulos relacionados a
esse gnero musical e sua performance que devero ser explorados em outro curso de
qualificao.
REFERNCIAS
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CDs
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Paulo. 1968/1994. Faixa 1.
__________________. Vibraes: Jacob do Bandolim e seu conjunto poca de Ouro.
RCA/BMG Ariola. So Paulo. 1967/1989. Faixa 2.
BENS, Agenor. A Casa Edison e seu tempo. Biscoito Fino: Rio de Janeiro. CD 2. 1902.
Faixa 1.
GAROTO. Garoto, o gnio das cordas. EMI: So Paulo. 2003. Faixa 6.
PASCOAL, Hermeto. Slave Mass. LP Independente. 1977. Faixa 3.
__________________. S no toca quem no quer. LP Independente. 1987. Faixa 14.
PIXINGUINHA. Pixinguinha e Benedito Lacerda. CD Independente. 2004. Faixa 6.
_____________. Pra Sempre Pixinguinha. EMI: 1968 a 1971. Faixa 12.
_____________. Os Oito Batutas. Victor: Buenos Aires, 1923. Faixa 3.
VASCONCELOS, Hamilton de Holanda. Samba do Avio. Roy Tarrant: Rio de Janeiro,
2007. Faixa 9.
__________________________________. A msica de Hamilton de Holanda. Estdios
Mosh: So Paulo, 2003. Faixa 1.
__________________________________. Luz das Cordas. Estdios EG, Fibra, VU e
Discover: Rio de Janeiro e So Paulo, 2000. Faixa 2.
DVDs
CARNEIRO, Flvio. O Prazer de Tocar Juntos. Produo executiva: J. procpio. Pesquisa e
Produo: Flavio Carneiro. Produtor Associado: Mrio Ligocki. Direo de Arte: Bruna
Bittes Finalizao: Fbio Lima. Braslia: Pavirada Filmes, DVD, 2005.
KAURISMAKI, Mika. Brasileirinho. Produzido e Dirigido por Mika Kaurismaki. DVD, 150
minutos. 2000.
PAVEL, Andreas. A Fala da Flauta. Produzido e dirigido por Andreas Pavel. DVD, 2008.
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ANEXO 2 CD
Faixa 1: Flor Amorosa Irmos Eymard.
Faixa 2: Cruzes, minha prima Agenor Bens.
Faixa 3: Naquele Tempo Pixinguinha e Benedito Lacerda.
Faixa 4: Lamentos Pixinguinha.
Faixa 5: Urubu Malandro Pixinguinha.
Faixa 6: Meu Cavaquinho Garoto.
Faixa 7: Quanto di uma saudade Garoto.
Faixa 8: Noites Cariocas Jacob do Bandolim.
Faixa 9: Receita de Samba Jacob do Bandolim.
Faixa 10. Rebulio Hermeto Pascoal.
Faixa 11. Chorinho pra ele Hermeto Pascoal.
Faixa 12. Aquarela na Quixaba Hamilton de Holanda.
Faixa 13. Brasileiro Hamilton de Holanda.
Faixa 14. Chorinho pra ele Hamilton de Holanda.
$&)!
E.L.L.M.: Quando voc vai compor, pensa mais no choro tradicional, ou no moderno, com
elementos do jazz e da bossa nova?
J.G.: medida que vou conhecendo novas msicas, novas harmonias eu procuro colocar uma
harmonia mais ligada a bossa nova, mas sempre mantendo a coisa do ritmo do choro. A gente
acaba sendo influenciado por coisas que vo surgindo. Mas minha base, at na hora de
improvisar tambm o choro tradicional.
E.L.L.M.: Fale sobre a influncia da bossa nova, sobretudo na improvisao do choro.
J.G.: Na verdade, eu acho que o choro influenciou a bossa nova, pois o Garoto j usava
aquelas harmonias complicadas bem antes da bossa nova. Eu concordo que depois da bossa
nova claro que tinha mais compositores que escreviam essas harmonias. A bossa nova me
influenciou. Ela quebra o estilo convencional do choro, principalmente nas harmonias. Mas o
cara que toca choro, toca bossa nova fcil. J na improvisao, a harmonia da bossa nova
influenciou tambm, porque para improvisar bem o msico tem que saber o que est
acontecendo na harmonia e se ela mudou, o msico ter que buscar novos caminhos.
2 Entrevista: Oscar Wilde
Entrevista semi-estruturada feita no Grande Hotel, localizado av. Gois esquina com rua 3
centro, Goinia GO, no dia 9 de dezembro de 2011 s 18h.
E.L.L.M.: Fale um pouco da importncia das rodas de choro.
Oscar Wilde: o lugar onde mais se aprende choro. Se o choro nunca passar por ali, nunca
vai conseguir tocar bem, inclusive improvisar. Se na roda de choro tiver muita gente
experiente, melhor ainda, porque o msico vai pegar mais informaes. Voc [referindo-se
ao pesquisador] por exemplo, comeou nas rodas daqui do Clube do Choro, lembra? E hoje t
a tocando desse jeito, improvisando muito. Pena que hoje em dia no t tendo mais isso em
Goinia, mas estou tentando organizar uma a pra gente.
E.L.L.M.: Como voc ver o choro depois da chegada do Jazz e da Bossa Nova. A
improvisao tambm mudou?
O.W.: A rapaz, daquela poca pra c mudou muita coisa. Se bem que o Garoto j fazia choros
com a harmonia da bossa nova n. Mas mudou muita coisa, tanto que o choro quase deixou
de existir. Hoje em dia tem muita gente que improvisa no choro usando a linguagem do Jazz,
d para perceber quando um msico que toca jazz est improvisando no choro, pois os
$&*!
jazzistas usam aquelas escalas diferentes, que um choro geralmente no usa. Mas ainda tem
muita gente como a Luciana Rabello, Maurcio Carrilho que ainda cultivam a escola mais
tradicional, onde tem poucos acordes dissonantes e mais variaes do que improviso. Essas
variaes sobre o tema tambm podem ser chamadas de improvisos, pois o tema est sendo
mudado, e so coisas que os intrpretes de choro fazem no momento.
E.L.L.M.: Isso mudou seu jeito de tocar tambm?
O.W.: No muito, at porque eu no sou muito de improvisar, procuro fazer mais variaes.
A melodia do choro j muito bonita, pra que improvisar...
$&+!
E.L.L.M.: Voc acha ento que aps Garoto, Jacob, jazz, bossa nova etc, essa nova
harmonia mudou a execuo/improvisao do choro?
S.M.: Sem dvida, na poca do Garoto e Jacob foi que a harmonia comeou a sofrer as
alteraes que marcaram o choro. Hoje em dia colocado um acorde dissonante, algo muito
diferente do tradicional, se voc faz baseado no tradicional o improviso pode no d certo,
ento o msico tem que ficar atento a essas pegadinhas que a harmonia costuma fazer.
E.L.L.M.: Atualmente, com tanta informao, como voc coloca o choro nesse contexto?
S.M.: Hoje em dia a gente bombardeado por uma quantidade muito grande de informao,
acabando que somos influenciados por qualquer msica do mundo se o choro no incio dos
anos 1990 j estava bastante divulgado, hoje em dia com a internet, voc pode mostrar o
choro para qualquer pessoa do mundo.
4 Entrevista: Henrique Cazes
Entrevista semi-estruturada realizada no Centro Cultural Banco do Brasil em Braslia, no dia
24 de janeiro de 2012, s 15h55min.
E.L.L.M.: Fale sobre o contexto do choro na dcada de 1960.
Henrique Cazes: Essa foi uma poca que a msica sofria vrias transformaes. A bossa
nova usava harmonia com dissonncias como a sexta, a dcima primeira, a nona etc, que no
eram utilizada pelos chores, mesmo na dcada de 60. Jacob do Bandolim, por exemplo,
sempre declarou que no fazia isso, mas na sua obra encontramos vrios acordes com sexta e
outras dissonncias. Embora, Garoto e Valzinho j faziam isso na dcada de 40, Valzinho
inclusive tocava em regional. Em uma entrevista, perguntaram o Jacob se o choro sempre ia
usar harmonia quadrada, ele ento respondeu: sim, mas com mais modulaes, pois pra fazer
modulaes no precisa de harmonia complicada. muito importante voc pegar esse
depoimento do Jacob. Alm de tudo isso, no perodo da bossa nova alguns chores ficavam
sem trabalhar e eram vistos pelos outros msicos como ultrapassado a bossa nova estava em
alta, msicos que tocavam choro na dcada de 60, eram chamados de velhos, atrasados,
alguns ficaram sem trabalho, ou tiveram que mudar at mesmo de pas.
E.L.L.M.: Voc comeou a tocar choro em que poca. Foi nas rodas?
H.C.: Eu comecei na verdade, no foi pelo choro, nem pelo samba, comecei tocar violo para
compor, mas logo me liguei ao samba, depois ao choro. Choro comecei quando tinha 17 anos
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no Sovaco de Cobra. L era uma roda de choro que no era daquelas rodas de choro muito
srias, ento dava pra voc errar, mandar uma na trave, no tinha problema.
E.L.L.M.: A roda foi importante para despertar o lado improvisatrio ento, n?
H.C.: Claro, e sempre tinha que ir atrs de algum. Na minha dissertao, criei um termo que
chama acompanhante alfa que era aquele acompanhante que sabia realmente a msica, ou
seja, todo mundo ia atrs dele.
E.L.L.M.: Aponte diferenas sobre a improvisao do jazz e do choro.
H.C.: O jazz tipicamente individualista, cada um brilha, ou tenta superar o outro que est
brilhando, individual mesmo, tanto que o jazz no tem roda. O que roda? Roda um
ambiente que as pessoas esto tocando uma para as outras e no para o pblico. Por que que o
choro da roda to diferente do choro tocado num palco? As vezes, voc consegue recriar no
palco um ambiente de uma roda de choro, mas para isso tem que estar entre pessoas que tm
uma relao muito bacana entre elas. No palco qualquer clima de competio fica muito
evidente, ento a primeira coisa essa, a atitude, a atitude do improviso no jazz diferente do
improviso no choro. Um exemplo est na roda de choro gravado no DVD Brasileirinho, onde
Z da Velha trabalha um improviso vertical, igual Pixinguinha trabalhava nos contrapontos, e
o Silvrio Pontes faz um trabalho horizontal, aquele que mais se aproxima do jazz. Ou seja,
no choro existe outras maneiras de se improvisar, eu posso catalogar pelo menos umas quatro
ou cinco maneiras diferentes de improvisar no choro. E mais, existem excelentes intrpretes e
improvisadores que simplesmente no improvisam, no mximo fazem variaes sobre o tema,
as vezes nem isso, o que nunca acontece no jazz, isso ocorre pelo respeito que eles tem ao
tema. No choro o improviso uma opo, no jazz uma obrigao. O prprio Hamilton de
Holanda uma vez, num encerramento de um show, tocou um choro do Rogerinho e no
improvisou.
E.L.L.M.: E o choro atualmente, com essa coisa da internet, informao rpida e fcil?
H.C.: O choro hoje conhecido no mundo inteiro, o que se deve a facilidade de acesso a
qualquer msica do mundo que os meios de comunicao atuais proporcionam. Porm, pode
ser limitadora, pois acaba-se criando uma metodologia, como por exemplo o improviso no
jazz. A grande maioria dos msicos improvisam igual no jazz, mesmo em outros gneros, por
que? Porque como no jazz tem muito improviso, aquela coisa da obrigao, a todos acabam
ouvindo muito jazz para improvisar, e na internet fcil encontrar isso.
$'%!
$'"!
E.L.L.M.: Voc foi influenciado pelo jazz? Acha que pode influenciar os msicos na
improvisao?
F.C.: No estudei jazz. Mas o meu instrumento improvisador, as baixarias que fao so
todas improvisadas, as inverses so diferentes em cada vez que toco o mesmo choro, at
porque os acordes invertidos dependem de cada msico, dificilmente voc repete. Eu trabalho
muito com escalas maiores, menores e arpejos, mesmo assim so infinitas as possibilidades.
O Dino fazia muito isso. O Raphael j comeou usar pentatnicas, o Rogerinho tem uma
variedade de escalas, de tons inteiros, dominante diminuto e outras.
E.L.L.M.: Essas escalas, por exemplo s comearam a ser usadas aps o choro e a bossa
nova, fale um pouco disso.
F.C.: , acabou sendo uma forma de ensino formal, o choro no ouvia s choro, isso acabou
que ele aprendeu outras coisas, como as escalas comuns do jazz. Com essa coisa da internet,
posso ser influenciado por qualquer coisa, e inconscientemente, voc acaba que aprende
alguma coisa ali.
E.L.L.M.: Fale um pouco das rodas de choro e sua relao com o improviso.
F.C.: A roda de choro uma unanimidade nessa coisa de aprender a tocar de verdade o choro.
Hoje uma coisa mais difcil de acontecer, pois o choro se profissionalizou muito, os msicos
tambm, ento a roda ficou meio dispersa. Aqui em Braslia mesmo raro ter uma roda de
choro como as antigas, nos quintais. Nas rodas do Jacob por exemplo, que no era
profissional, no vivia do choro, o Dino, raramente participava, porque tinha que tocar em
algum lugar, o que acontece muito hoje em dia. Hoje o que estamos fazendo aqui [no bar Vila
Mad] importantssimo pro Ian [bandolinista de 10 anos de idade que faz participaes no
bar], aqui como se fosse uma roda pra ele, porque est tocando, improvisando etc. Mas a
roda faz muita diferena, os msicos amigos meus que no tiveram essa experincia tiveram
mais dificuldade em aprender tocar choro.
E.L.L.M.: Fale sobre as diferenas do improviso no choro e no jazz.
F.C.: Melodicamente no tem nada a ver um com o outro. No choro existem as variaes que
so mais comuns. Hoje, mesmo que j se improvise bem mais, mudando a melodia, assim
como no jazz, buscamos mais esse contato com o tradicional. A nica coisa que se aproxima
do jazz quando pegamos a terceira parte, como voc fez [referindo-se ao pesquisador] hoje
$'$!