Tropos e Fantasias - Joao Da Cruz e Sousa e Virgilio Varzea
Tropos e Fantasias - Joao Da Cruz e Sousa e Virgilio Varzea
Tropos e Fantasias - Joao Da Cruz e Sousa e Virgilio Varzea
Virglio Vrzea
Tropos e fantasias
Publicado originalmente em 1885.
Livro 488
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ao livre acesso aos bens culturais. Assim esperamos!
isso!
Iba Mendes
iba@ibamendes.com
NDICE
CASOS E COISAS............................................................................................ 1
ALLEGROS E SURDINAS.................................................................................. 2
PIANO E CORAO........................................................................................ 3
A BOLSA DA CONCUBINA.............................................................................. 5
O PADRE........................................................................................................ 11
PONTOS E VRGULAS.................................................................................... 16
SABI-REI....................................................................................................... 18
TROPOS E FANTASIAS
CASOS E COISAS
1
ALLEGROS E SURDINAS
A B. Lopes
A falange gloriosa dos canrios, dos coleiros, dos gaturamos, dos sabis,
rasgava o horizonte, aqui e ali, de risadas apoplticas, que chocalhavam
comoguizos, que tiniam, que bimbalhavam como campanrios de aldeia.
Cintilava, cantava o verde florido dos prados e o azul refrigerante dos cus.
Almas e almas vagavam, como silfos, comoasas, como nuvens e nuvens, pelas
zonas consoladoras e luminosas do idealismo.
A falange gloriosa dos canrios, dos coleiros, dos gaturamos, dos sabis,
rasgava o horizonte, aqui e ali, de risadas apoplticas, que chocalhavam como
guizos, que tiniam, que bimbalhavam como campanrios de aldeia.
Uma simpatia boa acariciava por fora, a casinha alva, muito alva, encarapitada
do cimo da colina.
2
Dentro, morrera o Gigi, uma criana, um beijo cristalizado, um sonho dos
colibris; e as esperanas dos pais, imergiam, pela sombra melanclica das
mgoas, como pombas, tristes, tristes...
Estendiam-se, para alm, nas serras oblongas, alguns mugidos vagos de bois
satisfeitos que pastavam deleitosamente.
Uma simpatia boa acariciava por fora, a casinha alva, muito alva, encarapitada
no cimo da colina.
PIANO E CORAO
A Isidoro Martins Jnior
3
melodias do corao, harmonias do piano.
Assim o piano.
Cada palpitao do piano, uma fibra do corao, que bate.
4
Chora e canta, ri e solua.
A BOLSA DA CONCUBINA
A Horcio de Carvalho
O amor uma escada que tem uma extremidade na glria e outra no abismo,
disse-o Matias de Carvalho.
Para a felicidade domstica, o agente que mais influi o amor, mas no esse
amor gasto que anda a suspirar pelos madrigais, pelas belas noites de luar,
pelos suntuosos saraus de onde se sai com o estmago encharcado de maus
5
vinhos e a conscincia cambaleando, pelo efeito das luzes, das flores, das
msicas e das pompas.
No! No!...
Mas o amor sadio, limpo, asseado, o amor que sabe ter energias e sabe ter
herosmos, o amor que ri com a esposa e solua com o filho, o amor que mostra
a camisa rota do operrio, o arado do aldeo, mas que noite, nas suavssimas
meias sombras do lar, lembra-se que tem de almoar no dia seguinte e que a
mulher j lhe disse, abraando-o expansivamente, entre as harmonias alegres e
francas de um sorriso, que no h lenha em casa.
esse o amor.
O amor que faz bem, que corporifica os sentimentos da alma, que se multiplica
de vitalidade pelos sentidos, pelos olhos, pelos ouvidos, pelos gestos, por todos
os atos e complementos psicolgicos e fisiolgicos.
O amor que a filosofia dos seres bons, honestos, o amor que o oxignio da
temperatura do afeto humano.
H desgraados que deveriam ser felizes, assim como h felizes que deveriam
ser desgraados.
6
O amor.
O amor, tem razo o poeta, uma escada que tem uma extremidade na
glria e outra no abismo.
Casaram-se.
Ela muito limpa sempre, muito asseada, sabendo ler bem, costurando noite,
na mquina, palets, calas, coletes, sacos de aniagem; fazendo mo toalhas
de rosto, bordando, toda alegre, com os seus pospontos muito bem acabados,
delicadamente feitos; indo ao quintal de manh cedo, aos raios mais firmes do
dia, ver a alacridade doce de suas plantas, de suas flores, de sua horta muito
galante, dando de comer, milho modo, aos pintos, que vinham, vinham,
vinham, em pequeninos gritos, em expanses castas, abrindo o bico, rufiando
as asas tenras, roando as pernas pela macia plumagem das mes, umas
galinhas gordas, satisfeitas, parecendo donas de casa, amarelas, rajadas de
branco e preto, levando os grozitos de milho ao bico e dando aos pintos todos
contentes de sua vida.
Ele um pintor bomio, sem apreo honra; casara-se por amor, mas depois uns
amigos maus, hipcritas, transformaram-no inteiramente. Mesmo dizia-se que
nunca tivera juzo.
Era pobre, pobre e amasiara-se com uma mulher com a qual banqueteava-se.
7
A honesta mulher sabia de tudo, mas ah! grande luz do seu imenso corao,
envergonhava-se, no queria escndalos, chorava no escuro, baixinho, toda
pesarosa, toda magoada; lembrava-se do filho que tinham, sabia que era ele o
pai e que se esse pai os abandonasse, seria desairoso para ela e ento
suportava tudo.
Ah! o seu filho, o seu querido filho to bonito como ela o chamava.
E no entanto a criana era raqutica, no parecia ter seis meses; o crnio muito
comprido e achatado, o frontal muito largo, de uma salincia enorme,
abaulado, deixando aparecer muito no fundo, dois olhos sem expresso, quase
sem movimento, davam-lhe o aspecto de uma caveira; o corpo mal
desenvolvido, o rosto amarelado e de uma pele seca, as pernas em arco,
magras, tudo emprestava quilo que ela chamava o seu querido filho to
bonito, uma aparncia sinistra e m.
8
E ela, a mulher, essa outra ela to modesta, to santa, to trabalhadeira,
ainda nova, na manh transparente dos seus vinte e dois anos, sentia a
necessidade, umas abundncias de extremos, de umas exuberncias de
afeies puras, revolvia-se toda, s vezes, como uma freira na sua cela, ficava
nuns letargos mornos, sensuais, num sonambulismo etreo, fechando os olhos
numa dormncia calada, como se cedesse ao poder de um magnetismo
soberano.
Tinha necessidade de adulterar mas o seu querido filho e to bonito ali estava,
fisicamente feio, como a atalaia da sua honra, como a porta de bronze a lhe
interceptar a entrada no palcio silforamtico da prostituio.
O proprietrio da casa onde moravam j lhes falara uma vez, duas, trs vezes.
No entanto, a vida dela caa, caa como as ptalas de uma rosa ao chegar o
inverno desabrido e mido.
9
Uma ocasio foram dizer-lhe, um pequeno aprendiz seu, que o filho fora
atacado de varola.
Para que nada falte ao pequeno, a te envio uma sofrvel importncia; a sua
doena no h de ser nada; daqui a pouco te mandarei l o mdico. Teu
marido A."
Meteu o bilhete num envelope, puxou de uma bolsa, colocou dentro umas
cinco notas de mil ris e deu ao pequeno que saiu.
Ele, bestializado com tudo aquilo, meio parvo, fechava de vez em quando os
olhos, como que para no ver ou no desvendar a profundidade do seu abismo.
Era viva, herdara alguma cousa para a sua subsistncia e sabia atrair os ladinos
e triunfar dos seus caprichos, comofazia com ele.
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Estava abatida, desconsolada, desfalecida.
No ia porque nas aves e no sol, ela via seu filho contente adormecido aos seus
beijos.
O PADRE
A Joo Lopes
Um padre, o apstolo da Igreja, que deveria ser o arrimo dos que sofrem, o
sacrrio da bondade, o amparo da inocncia, o atleta civilizador da cruz, a
cornucpia do amor, das bnos imaculadas, o reflexo do Cristo...
Fazer da Igreja uma senzala, dos dogmas sacros leis de impiedade, da estola um
vergalho, do missal um prostbulo...
11
Um canibal que pega nos instintos e atira-os vala comum da noite da matria
onde se revolvem as larvas esverdeadas e vtreas da podrido moral.
Mas com a palavra educada, vibrante essa palavra que fulmina profunda,
nova, salutar como as teorias de Darwin.
Com a palavra inflamvel, com a palavra que o raio e dinamite, como o era na
boca de Gambetta, a maior concretizao do estupendo depois do sol.
Ouves, padre?...
Compreendes, sacerdote?...
Entendes, apstolo?...
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Ento para que empunhas o chicote e vais vibrando, vibrando, sem compaixo,
sem amor, sem te lembrares daquele olhar doce e aflitivo que tinha sobre a
cruz, o filho de Maria?...
Lembras-te?!...
No compreendes que se aoitares um msero que for pai, uma desgraada que
for me, as bocas dos filhinhos, daquelas criancinhas negras, sintetizando o
remorso, o aguilho da tua conscincia, se abriro nuns gritos desoladores que,
como uns bisturis envenenados, trespassar-te-o as carnes?...
Nunca?!...
Ests!...
13
s bondoso, eu sei, tens a alma to serena e to lcida como uma imagem de
N.S. da Conceio.
Eu sei disso!...
Requiescat in pace!...
E depois o cu!
Tu s bom...
Porm... por Deus, como que vendes a Cristo como um quilo de carne verde
no mercado?!...
Ah! verdade, s muito pobre, andas com os sapatos rotos, no tens que
comer e... s muito caridoso...
O Azul!...
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Pois faamos uma coisa:
O ABUTRE DE BATINA
Pode ser que a influncia animal da matria excite o esprito e que tu... vejas.
Pode ser...
Compreendes?...
Tens dentro de ti, bate-te no peito, nas palpitaes da seiva, um corao que eu
penso no ser um msculo oco.
15
Uma piedade justa, que no desdoura, que no humilha; honesta como a
inteno destes pontos e vrgulas, franca como a expansibilidade do aroma.
Vibra-o pois, fibra por fibra, se no queres que os meus ditirambos e sarcasmos,
quentes, inflamados, como brasas, persigam-te eternamente, por toda a parte,
no fundo de tua conscincia, como uns outros medonhos Camilos de Zola;
vibra-o se no queres que eu te estoure na cabea um conto sinistro, negro, a
Edgar Poe.
PONTOS E VRGULAS
A Artur Rocha
So longas as estradas.
curta a piedade dos homens.
Quer isto dizer que se acha na capital de Santa Catarina, o notvel glosista
Margarida, esse analfabeto, esse doudo da luz, arremessado nas trevas, bom
velho rude e cho, que, se no , na frase original e observada do esplndido
fantasista, Virglio Vrzea um sofrimento que vive a rir um humorismo
fnebre, dentro de uma alma cristalina de poeta.
So longas as estradas.
E ele veio de muito longe, do pas das lgrimas e das saudades, dos
enevoamentos do luto, porque perdeu sua esposa, o mote supremo de todas as
suas glosas.
16
Vem em busca de um filho, que sups morto tambm, morto, na
impassibilidade da pedra, na rigidez do granito.
Vem procur-lo, vem v-lo ainda, embora, do fundo pesado da sua existncia,
alguma cousa lhe murmure aos ouvidos:
So longas as estradas.
Mes, esposas e filhas, operrias do bem domstico, colunas direitas dos brios
sociais, bblias inesgotabilssimas do conforto, das consolaes e... da piedade,
arremessai um ceitil da vossa fartura aos peregrinos que passam, abri o escrnio
da vossa abastana aos que imploram, dignamente, em p, de rosto limpo
mas... desfigurado; deixai as vossas aristocracias de princesas bourbnicas, as
vossas reverncias e cortesias fidalgas, desapertai o colete do estilo, quebrai a
linha da hereditariedade titular, sa, por um momento, dos arminhos flcidos
das nossas alcovas elegantes e confortveis, arquiteturadas, cinzeluradas de
azul, brosladas de prata, cheias de caprichos arabescados de arte.
Formai das glosas, dos versos, das rimas do poeta, uma nuvem de ouro, com
cintilaes purpreas, para subirdes, envoltas nela, aos intermndios da crena,
de onde o adorvel, o cndido Jesus das cndidas bnos, entornar nos
vossos lbios os aprazveis licores da ventura infinita, e, vamos, provai, livres da
vossa irritabilidade nervosa, do vosso temperamento sanguneo, que aqui,
nesta terra de Oliveira Paiva, o apstolo sincero da bondade extrema, deixa de
existir a sentena do mestre:
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Atirai em leilo os livros que ele traz, arrematai-os todos, ponde em quermesse
os vossos coraes, enchei aquelas mos calosas e dignas, dos mais simpticos
e sonoros nqueis e tudo ser feito.
Deveis pesar os clares da vossa felicidade, pelas sombras das mgoas alheias.
SABI-REI
A Csar Muniz
O sabi rufiava as asas pardas e amplas, sempre que fazia explosir, como uma
girndola no ar inefvel e translcido, a sua escala cromtica, de gorjeios claros
e espontneos, pela saleta de uns tons violceos, com filetes e cinzeladuras
doiradas.
Parecia que nos raios do grande Filsofo da evoluo natural, vinha presa,
fundida, corporificada toda aquela msica sonorosa e adoravelmente casta que
lhe saa do laringe metlico.
18
Sentia-se como que o irromper imponentssimo de heris, de espritos
saudveis, em marchas triunfais, em pompas, pela curvido marmrea do Azul,
ao escutar-se o primoroso tenor das selvas.
www.poeteiro.com
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