Tempo Mythos e Praxis PDF
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M. L. PORTOCARRERO, 2005, 59.
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no contexto de uma reflexo sobre a vontade, via de acesso pessoa concreta,
simultaneamente agente e paciente, que surge a necessidade ricuriana de uma meditao deste
tipo. Pretendo, justamente, afirmar que a receo ricuriana da Potica, enquanto soluo para
o seu problema do tempo, parte ela prpria de uma determinada conceo do filosofar, tocada
pela ateno dimenso social e muitas vezes trgica da ao humana, aquela que marcou
o incio do sc. XX, com a experincia das duas Grandes Guerras mundiais e nomeadamente
com o fenmeno do holocausto nazi. Quer isto dizer que o homem tempo, real pano de fundo
de toda a filosofia de Ricur, no o homem maravilhoso, o homem do Cogito da Modernidade,
nem o homem das filosofias da interioridade. , pelo contrrio, o homem afetivo, constitudo
por uma textura de voluntrio e involuntrio, um sujeito relacional, que vive num universo
de interao, j sempre linguageiramente mediado e que recusa, pela desproporo ontolgica
que o constitui, o registo meramente epistmico em que a filosofia se moveu durante sculos
(ID., Ibid.).
3
M. BATISTA PEREIRA, 1991, 237.
4
M. L. PORTOCARRERO, 2005, 55.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 19
5
ID., Ibid., 60.
20 Martinho Tom Martins Soares
6
O Cristianismo, o maior difusor e promotor destas teorias, ainda hoje profundamente
marcado, na sua escatologia, por estas vises antigas do tempo. Os pensadores cristos, entre
os quais se destaca Agostinho, associaram a cultura bblica judaica, pouco desenvolvida em
termos filosficos, s teorias filosficas gregas, para tentar fundamentar teoricamente muitas
das crenas do povo judeu e cristo. Por exemplo, o par antinmico tempo/eternidade uma
herana bblica e helnica (platnica), e resulta do cruzamento que Agostinho fez das teorias
de Plato e de Plotino com as Escrituras Sagradas, visando a fundamentao filosfico-teolgica
das noes bblicas de Cu, de Reino de Deus, de vida eterna, que opem a eternidade de
Deus ao carter transitrio da vida humana. No obstante, Agostinho, em particular, e o Cristianismo,
em geral, no se limitaram a decalcar ou a parafrasear a doutrina escatolgica crist no
uma cpia servil do mito timaico, a oposio crist tempo/eternidade no exatamente uma
rplica da associao platnica chronos-aion (sendo esta muito menos antagnica) na verdade,
os pensadores do cristianismo adaptaram estas concees helnicas e imprimiram-lhes um cunho
original, inequivocamente judaico-cristo.
24 Martinho Tom Martins Soares
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O tempo (chronos) era entendido negativamente, relacionado com a caducidade da vida
humana e prefigurado no envelhecimento a que est sujeito todo o ser humano. Inconformado,
o grego arcaico manifestava um desejo constante de vida sem morte nem velhice (condio
prpria dos deuses). Sobre a conceo de tempo na poca arcaica grega Vide EGGERS LAN.
8
Cest le premier texte explicite que la philosophie grecque nous ait livr sur le sujet
du temps distingu du devenir et de ltre (DE LA HARPE, 130).
9
Atestam a presena fundamental desta teoria na conceo platnica de tempo os estudos
de Maula de De La Harpe: The basic distinction of Timaeus account of the universe, is
between the paradigm and its copy. The paradigm is, but does not become, remaining always
the same, and is intelligible but not sensible. The copy is always involved in becoming, and
never really is, changing perpetually, and is sensible but not intelligible (MAULA, 6). Or
survint Platon qui seffora de concilier les deux tendances opposes, en faisant de chacune
dentre elles un ple dialectique de la pense. Il oppose ainsi le sensible, soumis lincohrence
du devenir, plein de contradictions, o rvent lopinion et limagination, lintelligible, lieu
mtaphysique des essences et des formes immuables (DE LA HARPE, 129).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 25
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difcil apontar um significado preciso ou unvoco para o termo aion, pois ele foi
sofrendo mutaes a esse nvel, ao longo dos tempos, sobretudo, entre o tempo que decorre
de Homero a Aristteles. Em Homero e Pndaro, aion comeou por significar fora de vida
ou impulso vital; nos trgicos, assumiu o trao semntico de tempo de existncia de um
indivduo, ou seja, o tempo que durava a vida de cada ser humano. Empdocles quem primeiro
emprega o termo com o valor de eternidade, sentido que foi adotado pelos filsofos, em oposio
a chronos. No Timeu, Plato utiliza o conceito com o sentido de eternidade, mas ainda mantm
com algo do seu significado primordial: aion significa [] a eternidade como a forma de
presente ilimitado e estvel, indivisvel, de um Periechn que ao tempo profano, divisvel,
numervel e fluido se ope, consistindo a capacidade icnica do tempo no eterno retorno do
seu movimento circular (M. C. FIALHO, 1990, 71). Degani relaciona o aion platnico com
o Ser uno, imvel e permanente definido por Parmnides (Vide captulo VI, p. 81). Acerca
da evoluo semntica do termo aion, Vide os estudos de DEGANI; FESTUGIRE, 172-189
e EGGERS LAN, 27-33, 160-170.
26 Martinho Tom Martins Soares
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M. C. FIALHO, 1990, 70.
12
PLATO, Timeu; Apud M. C. FIALHO, 1990, 66.
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Por esse motivo, ao tempo pertence o ter sido ou o vir a ser (37e, 4 sqq.), e ao
que nele nasce a alterao e a mudana (cf. 38 a, 3-4), por oposio vida do paradigma
notico, que aorstica e imutavelmente akintos sem velhice nem juventude. [] A
instabilidade e a mudana, momentos fundamentais da experincia arcaica de tempo, assim como
da vivncia trgica, parece traduzi-las Plato por kinsis, componente essencial de chronos
enquanto diverso de ain, e pertencente ao sensvel (M. C. FIALHO, 1990, 67).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 27
vez que cabe ao tempo dar do aion apenas uma ideia parcial e imperfeita
pois impossvel uma adaptao perfeita do paradigma da criao ao
mundo criado a ordem e a coeso que ao tempo conferida pelo nmero
e pelo movimento regular aproxima-o da unidade suprema da eternidade.
A lei do nmero torna-se operante com a criao, ou melhor, ordenao
do cu pelo demiurgo [] de modo que chronos e ouranos so indissociveis
(38b, 6 sqq.) e o movimento ordenado daquele se torna percepcionvel
no cu na sua forma mais perfeita, o crculo14.
O ser humano, tal como os outros entes do universo, deve deixar-
-se conduzir pela ordem harmoniosa da natureza. O indivduo recebe ins-
trues morais e intelectuais contemplando a estrutura do universo, por
isso, a vida moral de cada pessoa deve imitar o curso ordenado dos corpos
celestes. A natureza cclica do tempo a realizao da ordem do Cosmos,
de que o Homem um elemento. Tais movimentos representam para a
alma, ao imit-los, a sua preparao para poder participar do permanente,
liberta das perturbaes a que a sua morada corprea a condena15.
O corpo, porque tem um percurso retilneo, com princpio e fim, irreversvel
e nico, no pode aceder harmonia do tempo, mas a alma pode participar
e integrar-se na harmonia dos movimentos celestes cclicos, tambm estes
animados pelo nous. Assim, o tempo uma fonte de bem moral para o
homem, tal como uma fonte de bem fsico para o cosmos. O tempo
timaico, dado essencialmente na astronomia e na cosmologia, atingvel e
compreensvel pelo clculo, eixo de articulao com o notico, apresenta-
-se, afinal, como possibilidade de fuga ao transitrio porquanto, ainda no
transitrio, representa o uno e permanente16. Ao introduzir inteligibilidade,
bondade e beleza no domnio da mudana, a sua funo aperfeioar
o cosmos, incluindo o homem. notria, nesta ligao do tempo ao nmero
e ao movimento do cu, a influncia das teorias pitagricas.
14
ID., Ibid., 68.
15
ID., Ibid., 75.
16
ID., Ibid., 73.
28 Martinho Tom Martins Soares
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J. GUITTON, 6.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 29
que se pode dividir em simultneo e que h uma ordem nas suas partes,
esta ordem, enquanto numervel pelo instante, o tempo. O movimento
composto por sucessivos instantes, inextensos como os nmeros, mas
ordenados como eles. o instante que distingue o tempo como antes e
depois. O instante nico porque todos os movimentos existentes tm
como nmero o mesmo instante.
Visto que o tempo numervel e, ainda que possa no ser numerado,
ele s pode ser numerado pela alma, por isso, no poderia haver conscincia
de tempo se no houvesse uma alma para o contar. No entanto, o movimento,
que o substrato do tempo, pode existir sem a alma. E, porque se trata
de um estudo de Fsica, nada mais se refere acerca da alma. Mais adiante,
voltaremos a esta conceo, para confrontarmos alguns aspetos que fazem
sobressair determinadas lacunas da tese agostiniana e tambm da aristo-
tlica.
18
[] la conception dAristote trouve dans luvre du no-platonicien une critique
dcide et lucide. Le centre de gravit se dplace du ple physique vers le ple psychique
et spirituel, par un retour aux formules de Platon. Il ne sagit plus des conditions logiques
que doit remplir la thorie mathmatique et physique, mais de la nature et de la cration du
temps (DE LA PLACE, 131).
30 Martinho Tom Martins Soares
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Plotin exagere encore lontologie platonicienne en faisant du temps une authentique
crature mtaphysique (ID., 131).
20
Devemos ter sempre presente, ao longo deste estudo, que estamos ainda a sculos
de distncia da revoluo copernicana e de Galileu; considera-se que o Sol que gira em torno
da Terra e no o contrrio. assente neste dado, entretanto corrigido pela cincia, que se
desenvolve a reflexo destes filsofos e tambm a de Agostinho. Contudo, para o estudo do
tempo no um fator determinante que seja o Sol ou a Terra a movimentar-se, o que relevante
o movimento e no quem o origina.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 31
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Vide SOLIGNAC, Note complmentaire n. 18, 588.
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Dabord, il faut avouer quil ny a pas, chez Augustin, de phnomnologie pure du
temps. Peut-tre ny en aurat-il jamais aprs lui. Ainsi, la thorie augustinienne du temps
est-elle insparable de lopration argumentative [...] (TR I, 23). Mais adiante, o mesmo autor
explica o que entende por fenomenologia pura, definio essa que demonstra a sua opinio
da ausncia de fenomenologia pura no mtodo agostiniano: Par phnomnologie pure, jentends
une aprhension intuitive de la structure du temps, qui, non seulement puisse tre isole des
procdures dargumentation par lesquelles la phnomnologie semploie rsoudre les apories
reues dune tradition antrieure, mais ne paie pas ses dcouvertes par de nouvelles apories
dun prix plus lev. Ma thse est que les authentiques trouvailles de la phnomnologie du
temps ne peuvent tre dfinitivement soustraites au rgime aportique qui caractrise si fortement
32 Martinho Tom Martins Soares
25
Cf. CHAIX-RUY, 3. A teologia da religio fundada por Mani inspirou-se na conceo
dualista do gnosticismo. Essencialmente, o maniquesmo supunha a existncia de dois princpios
ou substncias, coeternas e diametralmente opostas: o Bem, que Deus, esprito e luz; e o
Mal, que o Diabo, a matria, as trevas (Vide ainda A. ESPRITO SANTO, nota 30, p. 95;
nota 36, p. 97; nota 45, p. 99, 101; nota 66, p. 113).
34 Martinho Tom Martins Soares
2.1CONTRASTE TEMPO/ETERNIDADE
26
98.
27
97.
28
2,4.
29
Cf. ID., 2.
30
HAEFFNER, 83.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 35
31
TR I, 22.
32
Je discerne trois incidences majeures de la mditation de lternit sur la spculation
concernant le temps. Sa premire fonction est de placer toute la spculation sur le temps sous
lhorizon dune ide-limite qui contraint penser la fois le temps et lautre du temps. Sa
seconde fonction est dintensifier lexprience mme de la distentio au plan existentiel. Sa troisime
fonction est dappeler cette exprience mme se surpasser en direction de lternit, et donc
se hirarchiser intrieurement, lencontre de la fascination par la reprsentation dun temps
rectilinaire (RICUR, TR I, 50-51).
33
O texto latino e a respetiva traduo em portugus usados nesta investigao so retirados
de Agostinho, Confisses, trad. e notas de A. Esprito Santo et alii, Lisboa, IN-CM, 2000.
Apoiamo-nos tambm na edio bilingue de Les Confessions de Saint Augustin, livres VIII-
XIII ; texte de ldition de M. Skutella, introd. et notes par A. Solignac, trad. de E. Trhorel
et G. Bouissou, Bibliothque Augustinienne, n. 14, Descle de Brouwer, 1962, pp. 572-591.
34
Propomos uma traduo da pergunta diferente da de A. Esprito Santo, mais livre,
para reforarmos a resposta negativa que se espera: porventura, Senhor, pois que a eternidade
te pertence, poders tu ignorar estas coisas que te digo ou poders tu voltado para o tempo
36 Martinho Tom Martins Soares
no ver o que fao no tempo?. Agostinho no tem dvidas de que Deus, na sua eternidade,
conhece tudo o que se passa no tempo, a sua questo retrica. Admite que o objetivo destas
narraes despertar o seu afeto para com Deus e para que os que leem estas confisses possam
com ele louvar a Deus. Transcrevo, em seguida, as tradues de A. Esprito Santo e de
E. Trhorel/G. Bouissou: porventura, Senhor, sendo tua a eternidade, ignoras o que te digo
ou vs a cada momento o que se passa no tempo?; Se peut-il aucunement, Seigneur, puisque
lternit tappartient, se peutil que tu ignores ce que je dis, ou que tu voies selon le temps
ce qui se passe dans le temps?. Cf. SOLIGNAC, nota 1, 270-271.
35
Se se comea pela eternidade, esta estudada por sua vez a partir da criao ex
nihilo. Como seria de esperar, porque ns estamos no tempo e dele que vemos a eternidade,
e por outro lado o tempo no s deriva dela, mas de algum modo a ela h de retornar, o
estudo faz-se sempre em contraste entre ambos, ressaltando no conjunto a eternidade como
concentrao e o tempo como distenso (J. REIS, 313-314).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 37
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J. Guitton refere que a questo da eternidade do mundo muda de sentido, consoante
se aceite ou se rejeite a existncia de uma relao unilateral entre o mundo e Deus. Se aceitarmos
a teoria de Plotino, de que o mundo um efeito necessrio, isso implica que seja coeterno
a Deus, pois Deus eterno. Neste caso, seria absurdo pensar um comeo ou um fim para
o universo, tal como no se poderia submeter ao tempo a causa eterna que o sustm. Se admitirmos,
por outro lado, uma dependncia unilateral do mundo em relao a Deus, a questo da eternidade
assume outro significado. possvel entend-la sob duas perspetivas: ou um mundo tirado eter-
namente do nada pela vontade omnipotente de Deus, isto , um universo eternamente contingente,
como defendem os platnicos; ou podemos tambm supor, concordando com Agostinho, que
Deus quis desde toda a eternidade criar o universo, mas essa vontade s passou a ato com
o tempo. Teramos uma criao eterna no seu princpio, mas temporal nos seus efeitos, uma
criao que teria sucedido ao nada. Contudo, o mais importante que esta tenha sido ex nihilo.
Que la cration se soit produite ab aeterno ou post nihilum, elle nen demeure pas moins
une cration ex nihilo (156).
A criao ab aeterno levanta-nos um problema de alcance intelectual: como que se
pode conceber um mundo criado desde sempre por Deus. que apesar de J. Guitton dizer
que le concept de cration ninclut donc pas en toute rigueur celui de commencement (157),
a verdade que nos extremamente difcil (devido analogia com o modo de criar humano)
imaginar uma criao sem um comeo, mas com um obreiro. Como que a criao poderia
existir dependente de um autor, sem que a vontade do autor a precedesse. O prprio J. Guitton
admite que si lon veut mettre en lumire la souverainet totale et lindpendance de Dieu
par rapport son ouvrage, on est tent de la symboliser par une antriorit (Ibid.). Todavia,
o mesmo afirma que para um filsofo no nada difcil conceber uma criao coeterna e
dependente de Deus, sem pr em causa a transcendncia do criador: Sans doute demeure-
t-il vrai que, pour un philosophe, lexistence ternelle de lunivers ct de Dieu ne fait pas
chec sa transcendance (Ibid.). O problema aqui no tanto pr em causa a transcendncia
do criador, a dvida reside na impossibilidade de se compreender um universo coeterno ao
seu criador, que existe ao mesmo tempo que Ele e foi criado por Ele. De facto, para estar
sujeito lei do tempo, calculamos que o mundo no pode ser consubstancial a Deus, nesse
caso, comungaria da imutabilidade e da simultaneidade divina. No entanto, a nossa razo limitada
e falaciosa, tende para a afirmao de que esse mundo no pode existir desde sempre e ser
criado, porque, mentalmente, -nos mais fcil aceitar um comeo e muito mais difcil imaginar
38 Martinho Tom Martins Soares
um desenrolar infinito e eterno do tempo, por isso mais cmodo aderir explicao de Agostinho,
de que o universo foi feito post nihilo. No fundo, tudo no passa de uma falcia, pois estamos
a falar de eternidade por analogia com tempo, ou seja, estamos a aplicar eternidade as categorias
temporais s quais a nossa experincia e a nossa razo esto limitadas. Este problema do comeo
do mundo no se pode resolver sem dados concretos ou cientficos, mas esses, para j, so
insuficientes e inseguros.
37
On part du monde donn et on se rend attentif ses dficiences et ses vides.
Tout ce qui existe reoit et perd, meurt et renat, est et nest pas. Limperfection mme du
changement exige quil existe quelque part une realit qui ne perd ni ne reoive, car ltre
vritable est pur de ce mlange quon appelle le temps et, dune manire gnrale, la mutabilit.
[...] Saint Augustin slve ainsi par dgrs de la nature sensible la spirituelle et de celle-
ci la nature divine. A chaque niveau, la mutabilit diminue. On atteint enfin, par rcurrence,
limmuable. [...] Saint Augustin peut aller jusqu limmuable par deux mthodes parallles
et solidaires, lune asctique qui a pour fin de purifier, lautre dialectique qui dmontre (J.
GUITTON, 148).
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neque in uniuerso mundo fecisti uniuersum mundum, quia non erat, ubi fieret, antequam
fieret, ut esset (XI, v, 7).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 39
(XI, v, 7). Nota P. Ricur que este nada da origem acusa a partir de
agora o tempo de deficincia ontolgica39.
No entanto, Deus no pode ter dito no tempo a sua palavra criadora,
o que disse no teve durao, como quando falou aos homens no momento
do batismo ou da transfigurao de Jesus, atravs dos anjos ou de criaturas
temporais que servem a sua eterna vontade. O Criador no podia falar
por intermdio de nenhuma criatura material e temporal quando nada existia
ainda, nem o tempo, logo, no poderia ter criado a primeira criatura com
palavras que soam e passam [uerbis sonantibus et praeterentibus (XI, vi,
8)]. A primeira criao de Deus, tivesse sido ela qual fosse, no pode
ter sido obra de uma voz transitria, cujas slabas se sucedessem umas
aps as outras no tempo, porque essa, supe Agostinho, s pode ser dita
depois de algo criado e por uma criatura. Assim, antes do tempo, o Autor
divino s poder ter falado a partir da eternidade e na eternidade, logo,
disse tudo simultanea e sempiternamente, atravs do Verbo que lhe
coeterno: simul et sempiterne dicis omnia (XI, vii, 9). No Verbo sem-
piternamente dito, sempiternamente so ditas todas as coisas. A palavra
de Deus tem j sempre a totalidade e dura ad aeternum, logo, a voz criadora
no tem de deixar a palavra ou a slaba anterior para passar seguinte.
[] se assim no fosse, j existiria tempo e mudana e no verdadeira
eternidade nem verdadeira imortalidade (XI, vii, 9).
Note-se que este contraste entre o Verbum divino e eterno e as uerba
humanas e efmeras acentuam novamente a negatividade ontolgica do
tempo40. Porm, a instruo interior de Deus transpe o abismo que se
abre entre o Verbum eterno e a vox temporal. Ela eleva o tempo em direo
eternidade, porque o Verbo, que o princpio e nos fala exteriormente
no Evangelho, faz-se ouvir tambm dentro de ns; Ele o Mestre interior
que nos instrui: a ouo a tua voz, Senhor, a voz de quem me diz que
nos fala aquele que nos ensina, enquanto quem no nos ensina, ainda que
nos fale, no nos fala. De resto, quem nos ensina, seno a verdade inaltervel?
39
La cration ex nihilo est ici anticipe, et ce nant dorigine frappe ds maintenant
le temps de dficience ontologique (TR I, 53).
40
Le Verbum demeure; les verba disparaissent. Avec ce contraste (et la comparaison
qui laccompagne), le temps est nouveau frapp dun indice ngatif: Si le Verbum demeure,
les verba ne sont pas, car ils fuient et passent (6, 8) (ID., Ibid., 53).
40 Martinho Tom Martins Soares
Porque, quando somos orientados, mesmo por uma criatura mutvel, somos
levados verdade inaltervel, onde verdadeiramente aprendemos [] (XI,
viii, 10). A nfase, aqui, colocada menos sobre a dissemelhana que
sobre a semelhana entre a eternidade e o tempo. Essa semelhana deve-
-se ao facto de entre o Verbo eterno e a voz humana no haver somente
diferena e distncia, mas instruo e comunicao: o Verbo o mestre
interior, buscado e ouvido no interior (intus) (XI, viii, 10). A escuta interior
est, por isso, antes da escuta exterior e toda a escuta precede a fala.
Escutar a voz de Deus dentro de si retornar quele que permanece
enquanto erramos. Retornamos porque reconhecemos o nosso erro, esse
(re)conhecimento vem-nos da instruo do Princpio que nos fala. Os
primeiros nove livros das Confisses so o testemunho deste mesmo regresso
casa do Pai. Como observa P. Ricur, a atrao da experincia temporal
pela eternidade do Verbo no to grande a ponto de abolir a narrao
ainda temporal numa contemplao subtrada s coeres do tempo. A expe-
rincia da converso, relatada no livro VIII e o xtase de stia, narrado
no livro IX, pem fim errncia, forma decada da distentio animi, mas
no suprimem a condio temporal da alma. Atravs desta peregrinao
ao passado, a alma relanada novamente sobre as vias do tempo41.
Regressando novamente questo principal, verificamos que, embora
as coisas sejam ditas simultanea e sempiternamente, no so feitas simultanea
e sempiternamente. Como explicar que os efeitos da eternidade e da simul-
taneidade sejam a temporalidade e a sucesso? Dito de outro modo: como
que uma criatura temporal pode ser feita pelo e no Verbo eterno? Como
possvel que o tempo, com a sua irredutvel sucesso, com uma coisa
antes e outra depois, seja criado num ato de simultaneidade, sem o mnimo
de sucesso?42. Como entender esta antinomia entre tempo e eternidade?
Agostinho apresentar a soluo da matria informe e no sujeita ao tempo
como intermediria entre eternidade e temporalidade no livro XII das Con-
fisses. Para j, ele encontra uma outra explicao que ir, mais tarde,
conciliar com a da matria informe, na teoria das razes seminais: tudo
41
Prgrination et narration sont fondes dans une aproximation de lternit par le
temps, laquelle, loin dabolir la diffrence, ne cesse de la creuser (ID., Ibid., 63).
42
J. REIS, 315.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 41
43
La solution au problme du rapport du temps lternit est ainsi apporte sur le
plan de la connaissance. Cette solution serait complte si elle stendait aussi au plan du vouloir,
de la dcision cratrice (SOLIGNAC, Note complmentaire n. 17, 577).
44
172.
45
TR I, 55.
46
J. REIS, 319.
47
166.
48
No conseguimos entender como que no conhecimento de Deus pode haver momento,
porque, mesmo transformado este numa relao de ordem, como defende J. Guitton, a ordem
e o conhecimento, no caso do ser humano, que a nica realidade a que temos acesso direto,
no deixam de implicar extenso temporal, ainda que possam ocorrer num instante fugaz, muito
prximo da nossa imagem mental de eternidade, entendida como ausncia de extenso.
42 Martinho Tom Martins Soares
49
J. Guitton opina que Agostinho foi demasiado severo com os platnicos ao recusar
a eternidade do mundo, j que a doutrina platnica da eternidade da criao no tem nenhum
erro racional, como acusava o Bispo. Ademais, partiu de um pressuposto errado ao julgar que
os platnicos eram criacionistas como ele, mas isso seria muito duvidoso. Si saint Augustin
avait pouss plus loin lanalyse des concepts dternit et de cration, il aurait pu, sur ce problme
limit, saccorder avec ses adversaires platoniciens. Rien dessentiel ne let plus spar de
ses anciens amis (161-163).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 43
50
Plato no leu a realidade temporal humana luz da lrica arcaica e da tragdia clssica,
que versou sobre a efemeridade trgica do gnero humano, marcado na sua existncia pela
durao limitada do dia. Diz-nos, a este propsito, M. C. Fialho que o tempo platnico no
o tempo do acontecer humano onde ao Homem dada, no mundo, a experincia da sua
natureza de ser histrico, marcada pela irreversibilidade e singularidade de cada momento, de
indivduo com existncia prpria, nica e determinada pela certeza de um fim (M. C. FIALHO,
1990, 73). Trata-se de um tempo circular, evidenciado na revoluo do sol, pois esta natureza
cclica do tempo que manifesta a ordem do Cosmos, da qual o ser humano apenas uma parcela.
O acontecer humano no tem, no entanto, identidade prpria. cclico como o acontecer csmico.
O que na histria humana ocorreu repetir-se-, sem que o Homem dela seja verdadeiramente
o agente, mas apenas por integrao na ordem csmica [] (ID., Ibid., 74).
Anselmo Borges sistematiza da seguinte forma as consequncias de tal conceo na men-
talidade do grego antigo: O eterno retorno domina a mentalidade do homem arcaico. []
Mas evidente que com uma conceo do tempo como eterno retorno e repetio o que acaba
por anular-se a prpria possibilidade de histria. Nesta conceo, no h a possibilidade de
conceber a histria enquanto conjunto de acontecimentos que so contingentes, subjetivos, irre-
versveis, abertos a um futuro novo. A categoria decisiva da histria efetivamente o futuro,
sempre imprevisvel. [] para o homem grego, propriamente no h histria. Para os filsofos
gregos, havia a ideia de que s h cincia do universal e necessrio. [] Portanto, a histria
no pode ser propriamente uma cincia. Por isso mesmo, impunha-se tambm a ideia de que
o tempo s mediante o movimento circular pode ser reproduo do eterno e infinito. Plato
e Aristteles concretamente no superaram uma conceo circular do tempo. O tempo deve
ser algo de semelhante a um crculo. Porqu? Para eles, o tempo s pode ser imagem da eternidade,
se o seu decurso for circular. No finito, s o crculo pode ser a imagem do infinito e da eternidade.
De facto, no crculo, a sua rbita no tem fim, e, por outro lado, na rbita do crculo, encontramos
equidistncia perfeita de todos os pontos em relao ao centro (1998, 6-7).
44 Martinho Tom Martins Soares
e uma nova vontade de criar um ser, que antes nunca fora criado, como
que h uma verdadeira eternidade, quando nasce uma vontade que antes
no existia? Pois a vontade de Deus no uma criatura, mas existe antes
da criatura, porque nada seria criado, se a vontade do Criador no precedesse.
Logo, a vontade de Deus pertence sua prpria substncia. Ora, se na
substncia de Deus nasceu alguma coisa que antes no existia, no se
diz, com verdade, que tal substncia eterna; mas se a vontade sempiterna
de Deus era que existisse a criatura, por que razo tambm a criatura
no sempiterna? (XI, x, 12).
Antes de apresentar a sua refutao, Agostinho, no captulo xi, 13,
refina uma ltima vez a sua noo de eternidade em contraste com o tempo,
pois a sua argumentao vai ter como premissa, mais uma vez, a valorizao
da eternidade e a consequente deficincia ontolgica do tempo. Aqueles
que atribuem a Deus uma vontade nova no momento da criao no
compreendem como so feitas as coisas por e em Deus, porque tm um
corao que borboleteia (cor eorum uolitat) pelo passado e pelo futuro,
em vez de um corao estvel que escute o Verbo. Esta estabilidade do
corao evoca o contraste entre a fugacidade do tempo e a fixidez do
presente eterno: Quem poder det-lo [o corao] e fix-lo, a fim de
que ele pare (ut paululum stet) e por um momento capte o esplendor da
eternidade sempre fixa (semper stantis), e a compare com os tempos nunca
fixos (nunquam stantibus), e veja que ela incomparvel [] (XI, xi,
13). Assim, a eternidade sempre fixa (semper stans), em contraste com
os tempos nunca fixos (nunquam stantes) porque no eterno nada passa,
logo, no h passado nem futuro, mas tudo inteiramente presente (totum
esse praesens). Mas esta mesma eternidade to distante da experincia
temporal humana parece tornar-se prxima enquanto horizonte at ao qual
se pode pensar o tempo: Quem poder deter o corao do homem, a
ponto de ele parar e ver como a eternidade, que fixa, nem futura nem
passada, determina os tempos futuros e passados? (ibidem).
Agostinho responde ao primeiro ponto da objeo de forma clara e
direta: antes de fazer o cu e a terra, [ou seja, antes de fazer qualquer
criatura, Deus] no fazia coisa alguma [non faciebat aliquid]. Com efeito,
se fazia alguma coisa, que coisa fazia seno a criatura? (XI, xii, 14).
Apesar de a resposta no negar a suposio de um antes da criao, o
fundamental que este antes marcado pelo nada, ou seja, o nada do
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 45
51
RICUR, TR I, 56.
52
na verdade este nada, conscienciemo-lo bem, que confere extenso ao tempo; se
tirssemos a todos os momentos os seus nadas anteriores e posteriores, eles abater-se-iam sobre
um nico momento (organizado na vertical para no se confundirem) to sem extenso como
a eternidade. O que na realidade acontece, porm, que todos os tm, assim o tempo se fazendo
extenso. Mas no os tem a eternidade. E assim ela no se situa neste ou naquele momento
do tempo. Ela, em absoluto no se situando e existindo (ela que internamente sem sucesso
e portanto desde esse ponto de vista simples), contempornea de qualquer ponto do tempo,
assim o podendo fundar. Melhor: existindo j sempre antes e depois porque no tem os respetivos
nadas -, ela mesmo anterior e posterior ao tempo; este -lhe em rigor interior, tal como
acontecia, mas nesse caso sem pr o problema, na perspetiva em que o tempo (pensado e criado
num nico ato por Deus) se concebia dentro dela (J. REIS, 320).
53
Vide RICUR, TR I, 56.
46 Martinho Tom Martins Soares
54
Nec tu tempora praecedis: alioquin non omnia tempora praecederes. Sed praecedis
omnia praeterita celsitudine semper praesentis aeternitatis et superas omnia futura, quia illa futura
sunt, et cum uenerint, praeterita erunt; tu autem idem ipse es, et anni tui non deficiunt. Anni
tui nec eunt nec ueniunt: isti enim nostri eunt et ueniunt, ut omnes ueniant. Anni tui omnes
simul stant, quoniam stant, nec euntes a uenientibus excluduntur, quia non transeunt: isti autem
nostri omnes erunt, cum omnes non erunt. Anni tui dies unus, et dies tuus non cotidie,
sed hodie, quia hodiernus tuus non cedit crastino; neque enim succedit hesterno. Hodiernus
tuus aeternitas (XI, xiii, 16).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 47
55
SOLIGNAC, Note complmentaire n. 18, 584.
56
A eternidade tambm pensada negativamente, como ausncia de tempo. En ce sens,
la ngation est double: il faut que je puisse nier les traits de mon exprience du temps pour
percevoir celle-ci comme en dfaut par rapport ce qui la nie. Cest cette double et mutuelle
ngation, pour laquelle lternit est lautre du temps, qui, plus que tout, intensifie lexprience
du temps (RICUR, TR I, 58).
57
Na obra De Doctrina Christiana, onde aborda, ainda com termos neoplatnicos, a
questo da relao entre tempo e eternidade e da encarnao do Verbo, Agostinho diz que o
Verbo faz-se temporal para nos eternizar (J. GUITTON, 121).
58
RICUR, TR I, 58.
59
Cf. De ciuitate Dei, XII, 17, Apud J. GUITTON, 170.
48 Martinho Tom Martins Soares
60
Vide J. GUITTON, 167-170.
61
O tema do tempo e da eternidade vem desenvolvido nas Enadas VI, viii e III, vii
de Plotino. A se define eternidade do nous como uma vida que persiste na sua identidade,
que est sempre presente a ela prpria na sua totalidade, que no agora isto e depois aquilo,
mas que simultaneamente, de uma s vez, que no agora uma coisa e daqui a pouco outra,
mas que uma perfeio indivisvel. Tal como um ponto onde se unem todas as linhas, sem
que elas se estendam jamais para fora; este ponto persiste em si prprio na sua identidade;
no sofre modificao alguma; est sempre no presente e no tem passado nem futuro: ele
o que e -o sempre. A eternidade no o substrato dos inteligveis, mas de certa forma
o reflexo que sai deles mesmos [] (Apud SOLIGNAC, Note complmentaire n. 18, 583).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 49
62
SOLIGNAC, Note complmentaire n. 18, 583, 584.
63
Puisquil y a une ternit dune part, et dautre part un temps, saint Augustin envisage
chacune de ces deux ralits en projection dans celle quon lui oppose. Essayons de voir lternit
du niveau du temps: nous comprendrons pourquoi elle se figure si grossirement sous les espces
de lespace. Mais efforons-nous aussi, par une sorte de vision anticipe, de voir le temps du
point de vue de lternit, si imparfaite et si fuyante quen soit limage elle nous gardera
dans la vrit (J. GUITTON, 174).
50 Martinho Tom Martins Soares
abolida ou alterada pela outra. Foi por uma vontade nica e inaltervel
que Ele impediu que as coisas fossem antes do seu tempo, tal como no
as fez depois de j terem comeado. Isto mostra aos homens o quanto
o criador independente das suas criaturas e como elas so o efeito de
uma bondade totalmente gratuita. Comenta o autor que, na eternidade, Deus
no tinha as criaturas consigo e no era por isso que era menos feliz64.
Os advrbios de tempo, tais com antes, ento, agora, depois
ou os substantivos como comeo, fim, durao s se podem aplicar
ao tempo humano; em relao Divindade eles assumem um sentido
diferente ou so, simplesmente, absurdos. Para alm da linguagem, temos
de considerar o risco que representa a nossa imaginao quando pensa
acerca de Deus e projeta nEle qualidades humanas maximizadas. Somos
constantemente tentados a idealizar um Deus nossa imagem e semelhana,
por isso tudo o que possamos dizer ou imaginar acerca do Divino estar
sempre afetado pelos nossos conceitos e ficar sempre infinitamente distante
desse mistrio inenarrvel e absolutamente transcendente que a nossa razo
deve procurar, mas nunca conseguir esgotar.
O que os crentes acreditam que a criao fruto do amor divino
e que a Divindade Absoluta estabelece uma relao nica e pessoal de
amor com cada uma das suas criaturas humanas. No temos palavras
rigorosas e claras para falar acerca de Deus e da eternidade. No sabemos
o que a eternidade, se h alguma realidade por trs da palavra, talvez
fosse melhor design-la por outro do tempo ou por supratemporalidade.
Em ltima instncia, parece no passar de uma palavra encontrada para
tentar explicar e apreender a essncia e a existncia de Deus em contraste
64
Patitur quippe qui afficitur, et mutabile est omne quod aliquid patitur. Non itaque
in ejus vacatione cogitetur ignavia, desidia, inertia; sicut nec in ejus opere labor, conatus, industria.
Novit quiescens agere, et agens quiescere. Potest ad opus novum, non novum, sed sempiternum
adhibere consilium; nec poenitendo quia prius cessaverat, coepit facere quod non fecerat. [...]
In illo autem non alteram praecedentem altera subsequens mutavit aut abstulit voluntatem, sed
una eademque sempiterna et immutabili voluntate rea quas condidit, et ut prius non essent egit,
quamdiu non fuerunt, et ut posterius essent, quando esse coeperunt: hinc eis qui talia videre
possunt mirabiliter fortassis ostendens, quam non eis indiguerit, sed eas gratuita bonitate condiderit,
cum sine illis ex aeternitate initio carente in non minore beatitate permansit (De civ. Dei,
XII, 17; Apud J. GUITTON, 172).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 51
65
J. GUITTON, 136.
66
ID., Ibid., 136-138.
54 Martinho Tom Martins Soares
67
Inuisibilis enim erat et incomposita et abyssus erat, super quam non erat lux (XII,
viii, 8).
68
Alterum, quod ita informe erat, ut ex qua forma in quam formam uel motionis uel
stationis mutaretur, quo tempori subderetur, non haberet (XII, xii, 15).
69
Ubi enim nulla species, nullus ordo, nec uenit quidquam nec praeterit, et ubi non
fit, non sunt utique dies nec uissitudo spatiorum temporalium (XII, ix, 9).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 55
70
Nimirum enim caelum caeli, quod in principio fecisti, creatura est aliqua intellectualis,
quamquam nequaquam tibi, trinitati, coaeterna, particeps tamen aeternitatis tuae, ualde mutabilitatem
suam prae dulcedine felicissimae contemplationis tuae cohibet et sine ullo lapsu, ex quo facta
est, inhaerendo tibi excedit omnem uolubilem uicissitudinem temporum (XII, ix, 9).
71
139.
72
Apud ID., 141.
73
De Gen. ad litt., V, 28; VI, 17-19; Apud J. GUITTON, 143.
74
De Gen. ad litt V, 28; Apud ID., 143.
56 Martinho Tom Martins Soares
ad-vir, mas h tambm vontade de a fazer existir. Fica por explicar como
que se faz a passagem da existncia em Deus para a existncia temporal.
Como que a criatura pode proceder do criador sem lhe ser coeterna.
O terceiro modo de existncia possvel pretende ser uma resposta a este
problema. As coisas, para alm de poderem existir de uma maneira eterna
e temporal, podem ainda existir, potencialmente, nas suas razes causais
ou seminais, ou seja, numa espcie de sementes primordiais, com capacidade
para se desenvolverem e originarem vida, o prprio ser humano seria o
fruto de tais sementes. Deus, num primeiro instante, teria criado o universo
vivo de uma forma invisvel, causal e potencial, projetando e depositando
fora de si prprio a ordem dos desenvolvimentos futuros, no sob a forma
de intervalos temporais, mas sob a forma de conexes causais. Assim
se explica a origem da matria informe, mas formvel, de onde se tirou
mais tarde a criatura espiritual e a criatura corporal75. Teramos assim uma
criao, simultaneamente, completa e inacabada. Completa porque nada
de novo lhe pode acrescentar o fluir dos tempos, mas inacabada porque
contm, no seu princpio, apenas as sementes que o futuro far desabrochar.
[...] le monde senfanfe, il est charg des causes de toutes les naissan-
ces futures. En crant les raisons causales, Dieu achevait en un certain
sens son uvre: le temps allait faire paratre ce qui tait donn ds le
principe76.
Esta perspetiva original de Agostinho coloca-nos s portas, ainda que
de forma algo rudimentar, terica e discutvel, da teoria evolucionista,
podendo servir para conciliar o dogma cristo com o evolucionismo. Estamos
em crer que Darwin e a cincia contempornea haveriam de reconhecer
algumas pertinncias a esta teoria. Contudo, acautela J. Guitton: on ne
gagne pas beaucoup en gnral faire intervenir les matres dautrefois
dans les conflits suscits par les dernires dcouvertes de la science: ces
tentatives conduisent si facilement abuser de textes isols et de ressem-
blances lointaines77. Barbosa tem uma opinio semelhante: o facto de
no haver no augustinismo uma determinada explicao dos fenmenos
75
De Gen. ad litt. V, 12-13; Apud ID., 144.
76
J. GUITTON, 144.
77
174.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 57
fsicos ainda uma das suas vantagens, pois coloca o domnio da sapincia
ao abrigo das flutuaes da experincia e do progressivo avano cient-
fico78.
O facto de tudo j estar potencialmente predefinido desde o incio
nas razes causais anula a interveno de Deus no mundo, mas a Bblia,
pelo contrrio, sugere que Deus age na vida dos homens de forma impre-
visvel. Como conciliar interveno divina ao longo dos tempos com razes
seminais? Agostinho explica que as razes seminais no so sementes que
podemos ver com os olhos, mas propriedades invisveis que conferem
matria uma capacidade limitada de transformao. No princpio, as coisas
no tm diante de si um nmero ilimitado de possibilidades de modificao,
cada espcie recebeu aptides definidas. Deus guardou para si, na sua von-
tade, algumas causas de metamorfoses futuras. Esta teoria leva o autor
a concluir que h dois tipos de futuro: h seres futuros que devero obri-
gatoriamente advir das sementes e h outros que podero advir dessas
mesmas sementes se a omnipotncia de Deus intervier. As causas que Deus
confiou criatura indicam as suas vias possveis de desenvolvimento. As
que Ele reservou para si prprio acontecero, na hora oportuna79. Deus
no tinha deposto a graa nas causas naturais, Ele tinha-a guardado em
Si Prprio, mas esta explicao do filsofo cristo permite conceber a
insero da graa na natureza. Para alm de legitimar as preces dos crentes
e a confiana num Deus solcito, o autor cristo liberta o futuro de deter-
minismo, deixando-o aberto para um nmero ilimitado e nem sempre pre-
visvel de possibilidades. Acrescenta surpresa ao futuro e eleva-o categoria
de esperana, mas este acrescento de imprevisibilidade e de esperana est
dependente da vontade de Deus80. O ser humano no saber fazer mais
do que realizar um vasto conjunto de possibilidades que a sua natureza
permite. Resta saber qual o seu limite.
78
14.
79
Cf. De Gen. ad litt. IX, 32; Apud ID., 145.
80
A noo de razo seminal da autoria de Plotino e dos estoicos, mas Agostinho d
um sentido novo e divergente ao conceito. Para Plotino, as razes eram partes da alma universal,
donde tinham sado e continham em si tudo o que se iria desenvolver no espao e no tempo,
roubando assim criatura toda a novidade e espontaneidade. Em Agostinho, ao contrrio, esta
teoria torna a criao mais inteligvel. As razes seminais so o lao que une o universo a
58 Martinho Tom Martins Soares
Deus e o infinito ao finito. Si on les regarde en Dieu, leur origine prmire, elles sont
le terme de lacte crateur. Si on les considre dans la crature, elles y demeurent comme
le signe de la pousse cratrice. En transmettant ltre la puissance de se reproduire suivant
son type, elles confrent aux causes secondes, qui les vhiculent, leur vritable efficience. De
cette manire laction cratrice est toujours et partout prsente; elle pntre les natures individuelles,
elle apparat dans leurs lments les plus menus, dans les phases les plus insignifiantes de
leur histoire (J. GUITTON, 147).
81
Os autores semitas que redigiram os velhos textos do A. T. no possuam a linguagem
precisa de que o pensamento helnico dispunha, logo, optaram por escrever narrativas metafricas.
Efetivamente, no foram capazes de traduzir filosoficamente o que a sua crena tinha como
dogma revelado e viram-se obrigados a recorrer linguagem figurada. Lide dun Dieu unique
ne pouvait se traduire, dans ces premiers temps, que sous des mtaphores palpables, toutes
proches de la sensation et de limage (J. GUITTON, 152). Coube aos primeiros intelectuais
convertidos ao cristianismo, que dominavam conceitos helnicos, verter para filosofia e teologia
os escritos bblicos. Um dos pensadores cristos mais proeminentes na adaptao da linguagem
bblica ao rigor filosfico helnico foi, precisamente, Agostinho.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 59
82
Cf. J. GUITTON, 93-94. A mentalidade hebraica apenas conhece o tempo preenchido
e pleno na vida do povo, do mundo ou do indivduo, [em contraste com a mentalidade do
homem ocidental que tem uma viso linear do tempo], de grandeza ilimitada, contnua e homo-
gnea, espacial e vazia, medida quantitativa universal projetada a partir da srie de momentos
presentes fugazes e indivisveis (M. BATISTA PEREIRA, Originalidade e Novidade em Filosofia.
A propsito da experincia e da histria: Biblos 53, (1977), 46 e passim; Apud SANTIAGO
DE CARVALHO, 68).
60 Martinho Tom Martins Soares
83
Vide a articulao esquemtica proposta por HAEFFNER, 85-87.
84
A linguagem vai ser o guia de investigao de Agostinho. Ele vai reiteradamente
linguagem ver o que ela j diz, para deste modo se orientar, embora sem prejuzo de a ter
de superar se e quando a evidncia o exigir. Se ela com efeito exprime a nossa experincia,
e o tempo tem nesta um lugar central, nada mais natural que a linguagem diga j muito do
que ele ; mas, fruto dessa mesma experincia, tambm ela se engana, pelo que dever ser
corrigida quando for o caso, para alm de aperfeioada na sua explicitao (J. REIS, 323).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 61
85
[] ut scilicet non uere dicamus tempus esse, nisi quia tendit non esse? (XI,
xiv, 17).
86
Mais sil est vrai que nous parlons du temps de faon sense et dans des termes
positifs (sera, fut, est), limpuissance expliquer le comment de cet usage nat prcisment
de cette certitude. Le dire du temps rsiste certes largument sceptique, mais le langage est
lui-mme mis la question par lcart entre le que et le comment. [...] Ainsi le paradoxe
ontologique oppose non seulement le langage largument sceptique, mais le langage lui-
mme : comment concilier la positivit des verbes avoir pass, survenir, tre et la negativit
des adverbes ne... plus pas... encore, pas toujours? La question est donc circonscrite:
comment le temps peut-il tre, si le pass nest plus, si le futur nest pas encore et si le prsent
nest pas toujours ? (RICUR, TR I, 25-26).
62 Martinho Tom Martins Soares
87
Agostinho faz j aqui uma espcie antecipao da soluo que apresentar mais
frente para salvar a possibilidade de se conhecer o passado, que coloc-lo no tempo presente
atravs da memria. O mesmo vai dizer em relao ao futuro. Depois de verificar que tambm
este no tem extenso, h de recuper-lo ao coloc-lo no presente, atravs da expectativa. A
este propsito refere Paul Ricur: Mais cette certitude du langage, de lexprience et de laction
ne sera recouvre quaprs avoir t perdue et profondment transforme. A cet gard, cest
un trait de la qute augustinienne que la rponse finale soit anticipe sous diverses modalits
qui doivent dabord soccomber la critique avant que leur sens vritable nmerge (TR
I, 26).
88
Na etapa atual da argumentao, o presente ainda visto como oposto ao passado
e ao futuro, mas, quando surgir, mais adiante, a ideia de um trplice presente, em que a memria
e a expectativa aparecero como modalidades do presente que situam o passado e o futuro
no mesmo presente, esse contraste deixar de fazer sentido. Cf. supra, nota 87.
89
Videamus ergo, anima humana, utrum praesens tempus possit esse longum: datum
enim tibi est sentire moras atque metiri (XI, xv, 19).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 63
o que j no pode ser dividido, por mais nfimas que sejam as parcelas,
pode ser o presente:
Se se puder conceber algum tempo (si quid intellegitur temporis90)
que no seja suscetvel de ser subdividido em nenhuma frao de tempo,
ainda que a mais minscula, esse o nico a que se pode chamar presente,
mas este voa to rapidamente do futuro para o passado que no se estende
por nenhuma durao (ut nulla morula extendatur). Na verdade, se se estende,
divide-se (nam si extenditur, diuiditur) em passado e futuro: mas o presente
no tem extenso alguma (praesens autem nullum habet spatium) (XI,
xv, 20).
90
A anlise de Agostinho assume-se com este si intellegitur dependente de uma argu-
mentao especulativa, o que impossibilita qualquer fenomenologia pura do tempo. (Cf. RICUR,
TR I, 28).
91
Impitoyable machine argumentative (TR I, 28).
92
TR I, 27.
64 Martinho Tom Martins Soares
93
La protestation du sentimus, comparamus, metimur est celle de nos activits sensorielles,
intellectuelles et pragmatiques relativement la mesure du temps. Mais cette obstination de
ce quil faut bien appeler lexprience ne nous fait pas avancer dun pas dans la question du
comment. Toujours se mlent de fausses certitudes lvidence authentique (RICUR,
TR I, 28).
94
Cum ergo praeterit tempus, sentiri et metiri potest (XI, xvi, 21).
95
Callahan refere que a partir deste aparente paradoxo que Agostinho desenvolve o
raciocnio que o levar conceo psicolgica da natureza do tempo: This statement that an
extended interval of time may somehow be present seems to contradict our previous conclusion
that the present is without extension, but it is from this apparent paradox that St. Augustine
will attempt to clarify the nature time. His psychological approach, moreover, will provide the
proper method by which to accomplish this end (154).
96
Cf. RICUR, TR I, 28.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 65
97
Ricur critica esta soluo partindo precisamente do efeito ambivalente desta palavra
adhuc, que ao mesmo tempo a soluo da aporia e a origem de um novo enigma. A imagem
presente que tem o poder de remeter para o passado (trange pouvoir, en effet), por um lado,
66 Martinho Tom Martins Soares
existe agora, por outro, vale para as coisas passadas que existem ainda (adhuc) na memria.
Comment est-il possible que les images-empreintes, les vestigia, qui sont des choses prsentes,
graves dans lme, soient en mme temps au sujet du pass? (TR I, 33). Cf. infra
nota 99.
98
A alma a resposta questo ubi sint; nela que, doravante, se vo situar, por intermdio
da memria, da ateno e da expectativa, como se afirmar j a seguir, as imagens das coisas
passadas, presentes e futuras. um facto bastante enigmtico a linguagem quase espacial com
que se formulam as questes e as respostas. Ricur questiona-se: ser porque se colocou a
questo em termos de lugar que se obtm uma resposta nos mesmos moldes ou ser, antes,
a quase espacialidade da imagem-impresso e da imagem-sinal, inscrita na alma, que reivindica
a questo da localizao das coisas futuras e passadas. No entanto, nesta etapa de anlise,
ainda cedo para tirarmos concluses definitivas e esclarecedoras (cf. TR I, 34). J. Reis, por
seu turno, entende que no se trata da imagem da perceo, a imagem que reside no corpo
e por meio da qual se v o objeto. Esta imagem de que fala Agostinho existe na memria
e s pode ser inteiramente referida a vazio, porque o objeto j no existe, ela prpria o
objeto. A imagem, mais do que um meio, aquilo mesmo que agora se v. Da que ele pergunte:
onde se v exatamente? L mesmo no stio espacial e temporal da prpria coisa? Ou em
ns, que somos antes de mais o nosso corpo []? J. Reis depreende que, por um lado,
no espao e no tempo onde a coisa se deu e, por outro, simultaneamente, ela encontra-se no
nosso corpo, onde entrou aquando da perceo. Quando se trata da perceo, porque o que
se v a prpria coisa, a imagem est no nosso corpo atravs da qual vemos a coisa; quando
se trata da memria, porque o que se v a prpria imagem mas por outro lado se julga
que isso se faz porque h em ns desde a perceo uma imagem atravs da qual possvel
a imagem propriamente dita, supomos que h em ns uma imagem-meio atravs da qual podemos
ter a imagem-objeto. Ou seja, em resumo: a imagem recebida em ns e que como meio permite
a perceo, em ns continua com a sua proximidade espacial e temporal e desdobra-se em
imagem-meio e imagem-objeto (a imagem-memria propriamente dita) sempre que a inteno
memorante a anima [] Isto no claramente explicitado, mas o que se supe. []
l nos respetivos stios espaciais e temporais que vemos as imagens, mas a partir de ns
(Cf. 326-329).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 67
99
A crtica de Ricur soluo encontrada para a imagem do passado aplica-se, ainda
que noutros moldes, soluo para o futuro. O problema tem origem na palavrinha iam. Os
sinais relativos ao futuro so ditos j existentes, mas j, segundo Agostinho, significa duas
coisas: o que j existe no futuro, mas presente (XI, xviii, 24); o que quer dizer que no
se veem as prprias coisas do futuro, porque no existem ainda (nondum). No entanto, j
assinala, simultaneamente, a existncia presente do sinal e o seu carter antecipatrio, ou seja,
atravs do sinal presente, eu anuncio as coisas futuras ou digo antecipadamente o futuro. Limage
anticipante nest donc pas moins nigmatique que limage vestigiale. Ce qui fait nigme, cest
la structure mme dune image qui vaut tantt comme empreint du pass, tantt comme signe
du futur. Il semble que pour Augustin cette structure soit purement et simplement vue telle
quelle se montre (TR I, 33-34). A anlise destas e doutras aporias leva Ricur a exclamar:
La solution est lgante mais combien laborieuse, combien coteuse et combien mal assure !
(Ibid., 32).
100
Futura ergo nondum sunt, et si nondum sunt, non sunt, et si non sunt, uideri omnino
non possunt; sed praedici possunt ex praesentibus, quae iam sunt et uidentur (XI, xviii, 24).
68 Martinho Tom Martins Soares
Ora, isto leva-nos a concluir que existem, de facto, tanto coisas passadas
como futuras, o que no quer dizer que existam onticamente, como no
incio da reflexo se admitia. No h onticamente o passado e o futuro,
mas h-os de modo que J. Reis qualifica de gnosiolgico101. Passado e
futuro figuraro doravante como adjetivos (futura e praeterita), como qua-
lidades temporais que podem existir como presentes tambm o presente
se tornou adjetivo plural (praesentia) sem que as coisas de que falamos
quando as narramos ou predizemos ainda existam ou j existam. Este deslizar
quase impercetvel abre, na realidade, caminho resoluo do paradoxo
inicial do ser e no-ser e, consequentemente, da medida do tempo. Mais
uma vez, a linguagem, articuladora da experincia e a ao, resistiu ao
assalto do ceticismo.
101
J. REIS, 325.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 69
assim a sua anlise. Para j, suspende esta ideia, que surge de certa forma
em antecipao, guardando-a para a explicao final da essncia do tempo,
onde ter de aparecer como resultado de uma raciocnio mais esclarecido
e minudente102.
102
Cf. supra, nota 87.
103
Cf. supra, nota 98.
104
Cf. supra, nota 98.
105
Mais frente, o autor propor o termo ateno em vez de viso, termo que contrasta
melhor com a distentio.
106
Utilizamos o termo expectao como traduo do substantivo expectatio. Expectao
tem um sentido passivo. Mais frente, Agostinho dir que o esprito expectat. Essa atividade
da alma traduzi-la-emos por expectativa. A. Esprito Santo segue o mesmo critrio.
107
Como bem notou J. Guitton, Agostinho chega a estas concluses com a passagem
da anlise da linguagem para a observao interior e da dialtica para a conscincia (183).
70 Martinho Tom Martins Soares
contanto que se entenda o que se diz: no existe agora aquilo que est
para vir nem aquilo que passou (ibidem). Aps este esclarecimento impor-
tante, no mais possvel voltar a cair na iluso de um passado e de
um futuro que existiriam onticamente. O passado e o futuro so gnosiolgicos
e existem no presente como imagens dos respetivos tempos. O objeto de
estudo fica, a partir de agora, bem mais definido: vai consistir na deter-
minao do modo de existncia do passado e do futuro na conscincia
presente. Contudo, antes, ser ainda necessrio definir este presente do
presente, que a sede de todas estas investigaes.
Aproveitemos a ocasio, antes de partirmos para o tpico seguinte,
para fazermos a sinopse deste percurso intelectual empreendido por Agos-
tinho em busca de uma explicao para o tempo. Salientamos alguns avanos
fundamentais, concretamente, depuraes importantes ao nvel do significado
e da essncia do tempo. O tempo foi-nos apresentado, inicialmente, em
contraste com a eternidade divina, como a durao que traduz o modo
de ser contingente, prprio da criatura e que manifesta a sua incapacidade
para ser em plenitude ou o seu dfice ontolgico. Em seguida, o ser do
tempo revelou-se, paradoxalmente, como uma negatividade: um ser que
se define pela sua tendncia para no ser. Mas, eis que surge um elemento
positivo: no esprito que o tempo existe verdadeiramente como trplice
presente e a que a sua negatividade dominada; a conscincia, atravs
da memoria, do contuitus e da expectatio, v-se com capacidade para ultra-
passar o tempo no momento em que o percebe, sendo este o primeiro
esquisso da soluo final que aparecer desenvolvida mais frente. Efe-
tivamente, o ser do tempo no est ainda totalmente desvelado, s uma
anlise mais precisa das condies da medida do tempo conduzir a um
resultado definitivo. Enquanto no se esclarecer o enigma da medida do
tempo, que ficou pendente, a soluo do ser e do no-ser do tempo pela
noo de um trplice presente permanece mal fundamentada108.
108
Le triple prsent nas pas encore reu le sceau dfinitif de la distentio animi, tant
quon nas pas reconnu dans cette triplicit mme la faille qui permet daccorder lme elle-
mme une extension dune autre sorte que celle quon a refus au prsent ponctuel. De son
cot, le langage quasi spatial lui-mme reste en suspens tant quon na pa priv cette extension
de lme humaine, fondement de toute mesure du temps, de tout support cosmologique (RICUR,
TR I, 34).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 71
109
Vide SOLIGNAC, Note complmentaire n. 18, 586.
72 Martinho Tom Martins Soares
apenas um ponto, no tem extenso, logo, como que pode ser medido?110
O argumento , novamente, construdo sobre referncias quase espaciais,
tal como j o fora a noo de trplice presente. Passar transitar de um
lado para o outro. Mas donde (unde) vem ele, por onde (qua) e para
onde (quo) passa, quando se mede? (ibidem). Ser que o trnsito do tempo
parte do (ex) futuro, passa pelo (per) presente e dirige-se para (in) o passado?
a resposta de Agostinho claramente afirmativa. Nesse caso vem daquilo
que no existe, passa por aquilo que no tem extenso e dirige-se para
aquilo que j no existe (ibidem). Mas ns s medimos o tempo em
alguma extenso (in aliquo spatio). Em que extenso de tempo medimos,
pois, o tempo que passa? (ibidem). As hipteses do passado e do futuro,
por razes j analisadas, no so solues viveis. S Deus pode solucionar
este enigma e ajudar o seu servo a sair deste impasse: O meu esprito
anseia por compreender este enigma to enredado. No feches, Senhor
meu Deus, Pai de bondade, por Cristo te peo, no feches ao meu desejo
estas coisas, a um tempo comuns e misteriosas, e no impeas que ele
nelas penetre e elas se tornem claras mediante a luz da tua misericrdia,
Senhor. [] D-me o que amo: pois eu amo, e isso foste Tu que mo
deste (XI, xxii, 28)111.
O autor cristo recorre mais uma vez linguagem corrente, na qual
continua a manifestar uma confiana moderada, pois ela oferece-nos provas
da existncia do tempo e da nossa capacidade para o medir. E dizemos
tempo e tempo, tempos e tempos: Durante quanto tempo (quandiu)
que ele disse isto?; [] Durante muito tempo (quam longo tempore)
no vi aquilo; e: Esta slaba tem o dobro do tempo (duplum temporis)
daquela simples breve. [E a verdade que] dizemos e ouvimos tais
coisas, e somos compreendidos e compreendemos (ibidem). O mesmo
problema mantm-se desde o incio desta reflexo: o tempo parece-nos
110
Agostinho negligencia a diferena entre passar e estar presente, por isso considera
que o presente um ponto, no tem extenso, um instante indivisvel. Ser a dialtica do
trplice presente, interpretada como distenso, que ir salvar o presente, mas antes este tem
de se perder no labirinto da aporia (cf. RICUR, TR I, 35).
111
Agostinho no se resigna como os cticos. O reconhecimento do enigma acompanhado
de um desejo ardente que, para ele, uma figura do amor. Ici se montre le ct hymnique
de la qute que linvestigation sur le temps doit son enchssement dans une mditation sur
le Verbe ternel (ID., Ibid., 36).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 73
2.2.2.1Tempo e movimento
112
No concordamos, por isso, com Haeffner, quando diz que Agostinho introduz esta
reflexo apenas por desespero, porque no consegue avanar no seu prprio caminho (cf.,
86-87).
113
Sobre a discusso acerca da identidade deste homo doctus, Vide A. ESPRITO SANTO,
nota 96, 583 e SOLIGNAC, Note complmentaire n. 18, 586. Efetivamente, Plato, no Timeu,
afirma que qualquer movimento sublunar s passvel de ser medido se se tiver como referncia
uma medida temporal fixa. O Acadmico encontra esta medida nos movimentos regulares e
circulares do cu: Tous les mouvements de tous les mobiles sublunaires, cest--dire tous les
temps particuliers de tous les mobiles sublunaires ne seront donc mesurs que par rfrence
au mouvement circulaire, rgulier et continu, de la sphre des fixes (PLATO, Timeu, III
8. 29; Apud FESTUGIRE, 181).
74 Martinho Tom Martins Soares
114
Esta temtica claramente retomada de Plato. Tal como referimos, no incio deste
captulo, no Timeu, o Acadmico estabelece como unidade de tempo o dia, associando intrin-
secamente o tempo e o cu. O dia entendido como a manifestao visvel da unidade numrica
do Uno e do permanente, uma vez que possibilita a medida e a comensurabilidade do tempo.
Para alm disso, o dia formado pelo movimento circular do Sol; este crculo o sinal mais
perfeito do Uno. Assim, chronos e ouranos so indissociveis: relembremos que aquando
da ordenao do cu pelo demiurgo que a lei do nmero se torna operante e o movimento
ordenado do tempo torna-se percetvel no cu, na forma do crculo, o que resulta na j referida
e criticada conceo circular do tempo. Vemos, pois, que o meio que nos possibilita a noo
de nmero e de tempo, a atividade da filosofia, o Sol enquanto luz, que se oferece em cada
uma das suas aparies e ausncias como unidade (dia) e simultaneamente torna visvel o espao
celeste e os movimentos astrais, mensurveis a partir do dia (M. C. FIALHO, 1990, 72 sqq.).
115
185.
76 Martinho Tom Martins Soares
116
Cf. RICUR, TR I, 38. Callahan no se refere prioridade de nenhum dos elementos,
visto que esta distino s seria vivel se fosse possvel uma acelerao ou um abrandamento
da revoluo solar e acrescenta que esta distino aqui evocada apenas para impossibilitar
o movimento de constituir o tempo: The distinction would assume practical meaning only
if the sun should complete its revolution more rapidly or less rapidly. [...] He considers this
point important here only insofar as its indicates that time itself is not changed by the motions
of the heavenly bodies, even though a temporal expression like day might be used differently
if there should be a change in these motions (162).
117
Na mitologia clssica, onde os deuses tambm podiam interferir no tempo sempre
que lhes aprouvesse, h um milagre semelhante a este do Antigo Testamento: no Anfitrio de
Plauto, narra-se um episdio em que Jpiter prolonga a noite para poder estar mais tempo com
Alcmena. No necessrio perguntar que fenmeno fsico que ocorreu, pois a Noite era
encarada como uma divindade, a quem o pai dos deuses pediu o favor de se prolongar. Mas
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 77
a explicao astronmica mais plausvel seria, tambm aqui, a paragem do Sol. Claro que na
mitologia no havia explicaes fsicas, tudo era justificado espiritualmente, considerava-se toda
a natureza divinizada. interessante reparar como, acabado o romance, Jpiter teve o cuidado
de repor e acertar a ordem temporal, o que manifesta a crena helnica, criticada por Agostinho,
do tempo dependente dos movimentos astrais: Agora, Noite, tu que esperaste por mim, res-
tituo-te liberdade: d lugar ao dia; que ele ilumine os mortais com a sua luz clara e cndida.
E quanto tu, Noite, foste mais longa do que a anterior, tanto mais breve farei que seja este
dia: assim se compensaro os dois desequilbrios (PLAUTO, O Anfitrio, Introduo e verso
do latim de Carlos Alberto Louro Fonseca, Lisboa, Edies 70, 1996, p. 59). Repare-se que
enquanto no episdio bblico no se considera a interferncia de Deus descontroladora do tempo,
aqui, pelo contrrio, h a necessidade de restabelecer a normalidade temporal. Este passo, no
entanto, parece ser uma pardia de um excerto da Ilada de Homero, que j no livro VII nos
apresenta a noite divinizada. jax e Heitor so convidados pelos arautos, ministros de Zeus
e representantes dos exrcitos inimigos, a cessar o combate porque j era noite e bom obedecer
noite (vv 281-282 et passim).
Por sua vez, Saint-Exupry, na obra O Principezinho18 (ed. Caravela, pp. 49-52), tambm
nos apresenta um caso curioso, a partir do qual se pode estabelecer um paralelo intertextual
pertinente com a reflexo agostiniana acerca da relao entre tempo e movimento, motus e
mora na unidade de um dia e que se coaduna com as hipteses evocadas por Agostinho de
alterao do movimento csmico. A dado momento, na sua viagem pelo espao, o Principezinho
encontra um pequenssimo planeta onde vivia um acendedor de candeeiros com uma vida exte-
nuante, pois tinha instrues (que insistia em cumprir cega e fielmente) para acender o nico
candeeiro do planeta noite e a apag-lo de manh. Tarefa aparentemente simples. O problema
que de ano para ano o planeta tinha vindo a acelerar o seu movimento de rotao e, atualmente,
bastava-lhe apenas um minuto para completar uma volta em redor do Sol. Repare-se que, neste
caso, a mora do dia no so vinte e quatro horas, um minuto, ela alterou-se com o motus,
a quem est subordinada, ou seja, o dia motus e mora; alterando o movimento, altera-se
a durao. Assim o entendeu, infelizmente, o acendedor e isso causava-lhe um imenso transtorno:
visto que tinha como referncia para os dias o movimento csmico e no o antigo perodo
de vinte e quatro horas, que correspondia a um dia, para o qual tinha sido instrudo, estava
obrigado a acender e a apagar o candeeiro uma vez por minuto. Se considerasse o dia apenas
como mora, ou seja, um ciclo de vinte e quatro horas e no uma rotao completa do planeta,
s acenderia o candeeiro depois de mil e quatrocentos e quarenta dias e noites; que, na nova
velocidade de revoluo do planeta, s uma hora tem sessenta dias, e esse o problema: o
movimento mudou, porm as instrues que guarda na sua memria permaneceram inalterveis.
Note-se que apesar de o movimento do Sol ter deixado de fornecer uma unidade de tempo
fixa, h uma outra cronometragem temporal, marcada pelo movimento de outros relgios, a
qual permite saber que a atual rotao do planeta dura um minuto. Porque o movimento do
78 Martinho Tom Martins Soares
Deus deteve o motus do Sol, houve claridade por mais tempo, a mora
continuou a fluir, houve movimento dos combates e houve o tempo em
que se desenrolou a batalha, mas no se pe a hiptese de o tempo estar
relacionado com esses mesmos movimentos. Neste caso, depreende-se que
a nica funo do Sol marcar o dia e a noite, mas o substrato a durao
ou o intervalo temporal, o qual suspeitamos que no se pode deter, mesmo
que fosse possvel (dizemos com uma linguagem cientfica atual) imobilizar
a rotao da Terra, porque haveria sempre outros movimentos que atestariam
a passagem do tempo.
O autor das Confisses, derrogando toda a tradio que o precede,
assim o primeiro a admitir que se pode falar de espao de tempo sem
referncia cosmolgica: ningum me diga que os tempos so os movimentos
planeta j no regular, est em acelerao constante, aconselhvel que se tome por unidade
de tempo, j no o dia, mas outros movimentos uniformes.
Como em cada minuto h um dia e uma noite, ao fim de meia hora de conversa, o
acendedor lembra ao Principezinho que j est ali h um ms. A alterao da durao do dia
acarretou consigo, consequentemente, a alterao da durao dos meses, visto que so inter-
dependentes. Contudo, a questo que realmente nos interessa saber se, por acaso, tal impossvel
se tornasse realidade isso nos faria ficar mais tempo sobre a face da Terra, ou aceleraria o
nosso processo de envelhecimento, ou alteraria a medida com que confrontamos, intelectualmente,
os intervalos temporais? Agostinho diz que no. Para ele, uma outra lei temporal que nos
rege, uma lei maior, apenas assinalada e marcada pelo movimento dos elementos naturais.
A alma est acima e fora do movimento externo. H, segundo o autor Hiponense, um tempo
independente do movimento e com o qual medimos o prprio movimento. este tempo que
nos governa que ele procura, na sua investigao.
Relativamente aos transtornos que esta acelerao trouxe vida do acendedor, o visitante
sugeriu-lhe uma estratgia que to hilariante quanto til: O teu planeta to pequenino
que, com trs passadas, lhe ds a volta. Portanto, basta pores-te a andar devagarinho e ficas
sempre ao sol. Assim, quando quiseres descansar, comeas a andar e o dia dura tanto tempo
quanto tu quiseres (SAINT-EXUPRY, 52). A proposta do Principezinho visava libertar o acen-
dedor da escravatura do tempo, a que podemos chamar cosmolgico. Para tal bastava acompanhar
o movimento do planeta e obteria claridade por muito mais tempo, mas, por outro lado, no
teria a noite de que ele tanto precisa para descansar. Em todo o caso, mesmo que o acendedor
siga o conselho do seu hspede, de fugir ao movimento do tempo cosmolgico com o seu
prprio movimento, provocando uma distenso no dia, consegue prolongar a claridade desse
dia, mas no consegue dominar um outro tempo que o transcende e o subjuga, no consegue
furtar-se a um outro tempo maior, que o domina, o faz envelhecer e arrasta todos os entes
na sua durao um tempo, diramos, apreensvel e mensurvel pela conscincia, mas irredutvel
ao nmero. Mais frente voltaremos a abordar com maior profundidade e exposio esta dicotomia
entre tempo do mundo e tempo da alma.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 79
dos corpos celestes (ibidem). Mas ele est prestes a encontrar na distentio
animi um substituto para este suporte cosmolgico do espao de tempo,
como deixa j antever, no fim da sua argumentao, pelo uso do termo
distentionem, ainda sem o determinativo animi, mas no referido ao movi-
mento de um corpo: vejo, pois, que o tempo uma certa [distenso118]
(quandam distentionem). Mas vejo? Ou parece-me que vejo? Tu mo mos-
trars, luz, Verdade (ibidem).
Apesar de toda a argumentao anterior, Agostinho, ainda no fez
a erradicao total da cosmologia, apenas invalidou a tese extrema de que
o tempo o movimento de um corpo, mas at Aristteles concordaria
com essa afirmao. De facto, convm relembrar que Aristteles, apesar
de associar o tempo ao movimento, nunca disse que o tempo era movimento
ou vice-versa, apenas afirmava que o tempo era alguma coisa do movi-
mento119. No entanto, Agostinho parece excluir qualquer possibilidade de
o tempo ser algo do movimento. Apesar de reconhecer que todos os corpos
se movem no tempo, esclarece que o movimento de um corpo uma
coisa e a medida da durao desse movimento outra. bvio que s
a segunda deve ser entendida como tempo. No , pois, o tempo que
medido pelo movimento, mas o movimento que medido pelo tempo.
Atravs do tempo, medimos o movimento de um corpo e podemos dizer
quanto durou. Ricur alerta que Agostinho j no est a pensar na medida
do movimento de corpos celestes, mas na medida do movimento da alma
humana. Se a medio do tempo consiste na comparao entre um tempo
mais longo e um tempo mais curto, necessrio que haja um termo fixo
de comparao. Todavia, esse termo no pode ser o movimento circular
dos astros, porque esse, segundo o autor, varivel. O movimento pode
parar, o tempo no. S assim se compreende que nos seja possvel medir
tanto um corpo em movimento como em repouso120.
118
Para maior aproximao ao timo latino e, na esteira do correlato francs usado por
Ricur, propomos o termo distenso em vez de extenso, como traduz A. Esprito Santo.
119
Vide o que dissemos antes acerca da conceo aristotlica do tempo e cf. CALLAHAN,
163-164.
120
Cf. RICUR, TR I, 38-39. Solignac, por seu turno, acrescenta que se o tempo se
confinasse ao movimento dos corpos, perder-se-ia a noo de presena e de presente, que
constituem o valor essencial do tempo humano, como o afirmar Heidegger. O tempo no pode
ser somente ao nvel das coisas; ele ao nvel da alma que o apreende e o mede (Note com-
plmentaire n. 18, 587-588).
80 Martinho Tom Martins Soares
121
Cf. XI, xxv, 32.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 81
2.2.3Distentio animi
122
TR I, 39-40.
123
Haeffner refere que onde a conversa com Deus se condensa em expresso de oraes
prprias, podem-se reconhecer tambm limiares da articulao para o progresso do pensamento
(85).
124
Vide TR I, 41.
82 Martinho Tom Martins Soares
125
174.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 85
126
337.
127
ID., 337. Repare-se no aumento gradual de importncia de que tem sido alvo a alma
na conceo agostiniana de tempo. alma humana foi-lhe reconhecida a faculdade de medir
os intervalos de tempo e o movimento recorrendo ao prprio tempo. A alma humana tem o
poder de medir intervalos temporais nos quais se incluem os dos movimentos csmicos, ainda
que estes possam suspender ou alterar a sua velocidade. Tambm Plotino tinha dito que o tempo
era uma distenso da atividade da Alma, mas, relembremos, no falava da alma humana, mas
sim da Alma do mundo. Ademais, para Agostinho, o tempo uma atividade da alma atravs
da qual o movimento medido, para Plotino a atividade da alma devido qual existe o
movimento. Aristteles tambm considerava a atividade da alma necessria para a existncia
do tempo, a ela cabia a funo de apreender o tempo. Ressalve-se, porm, as divergncias.
Na conceo temporal agostiniana, a atividade da alma ocupa um lugar capital, enquanto que,
na conceo aristotlica de tempo, ela referida apenas de forma efmera e assume um carter
pouco relevante. O tempo, como aspeto do movimento, s existe se for percebido pela alma,
mas pode ser considerado na sua relao com o movimento sem a referncia explcita alma
que o percebe (cf. CALLAHAN, 162-171).
86 Martinho Tom Martins Soares
128
A composio imaginativa do som que confiado memria corresponde a um primeiro
presente; a memria onde guardado o som passado, mas tambm o futuro ou a previso
do presente efetivo da emisso do som; a esta previso segue-se a passagem punctual pelo
presente, de tal modo que logo o passado vai crescendo custa da diminuio do futuro (cf.
J. REIS, 338).
129
Para marcar a diferena entre os termos latinos attentio e intentio, em vez de ateno,
como traduziu A. Esprito Santo, propomos inteno.
130
Immo sonuit et sonabit: nam quod eius iam peractum est, utique sonuit quod autem
restat, sonabit atque ita peragitur, dum praesens intentio futurum in praeteritum traicit deminutione
futuri crescente praeterito, donec consumptione futuri sit totum praeteritum (XI, xxvii, 36).
131
TR I, 45.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 87
132
Cf. infra o problema da extenso do presente.
133
Sed quomodo minuitur aut consumitur futurum, quod nondum est, aut quomodo crecit
praeteritum, quod iam non est, nisi quia in animo, qui illud agit, tria sunt? Nam et expectat
et attendit et meminit, ut id quod expectat per id quod attendit transeat in id quod meminerit
(XI, xxviii, 37).
88 Martinho Tom Martins Soares
mas a ateno da alma f-lo durar e, deste modo, oferece uma passagem
apenas punctual do futuro para o passado:
134
Esta abordagem introspetiva permite a Agostinho pensar o tempo em termos psicolgicos,
mtodo que Aristteles no poderia seguir, visto que para ele o tempo era uma questo fsica
e a prpria atividade da mente apenas um outro gnero de movimento. Para o Estagirita,
a alma estava dependente do movimento externo para poder calcular o tempo com alguma
exatido, enquanto que a viso agostiniana tem a alma como independente do movimento externo,
no fundo, ela assume a funo de rbitro rigoroso do tempo. (CALLAHAN, 174-175)
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 89
135
TR I, 46. , pois, no seio das referncias da alma que se situa a distentio temporal,
por sua vez, reveladora de que o tempo s tem ser por meio da experincia vivida e narrada
de uma conscincia, capaz de o sentir como a passagem do futuro para o passado, atravs
do presente vivido (M. L. PORTOCARRERO 2005, 57).
136
Comme on verra plus loin, cet exemple nous met sur la voie qui conduit de la con-
sidration du temps celle du rcit (RICUR, 1982, 5).
137
Optamos por traduzir tenditur por estende-se em vez de amplia-se, como traduziu
o nosso tradutor, para marcarmos de forma mais vincada, tambm ao nvel lexical, a oposio
intentio/distentio. Pela mesma razo, traduziremos distenditur por distende-se, em vez de
estende-se.
138
Vide nota anterior.
90 Martinho Tom Martins Soares
139
Dicturus sum canticum quod noui: antequam incipiam, in totum expectatio meam
tenditur; cum autem coepero, quantum ex illa in praeteritum decerpsero, tenditur et memoria
mea, atque distenditur uita huius actionis mea in memoriam propter quod dixi et in expectationem
propter quod dicturus sum, praesens tamen adest attentio mea, per quam traicitur quod erat
futurum ut fiat praeteritum (XXVIII, 38).
140
177.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 91
141
352. Para o desenvolvimento da problemtica da continuidade do presente, Vide ID.,
343-353.
92 Martinho Tom Martins Soares
142
ID., 343.
143
ID., 349. As palavras em itlico e entre aspas so da responsabilidade do autor.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 93
144
ID., 350.
145
ID., 350.
146
Porque na tradio se pensa o instante como inextenso, nem nos passa pela cabea
que, pondo um a seguir ao outro, assim podemos constituir, com eles prprios, a continuidade,
antes julgamos que contnuos so s o passado e o futuro e o instante no passa da sua diviso.
No entanto, a simples continuidade do passado e do futuro, porque eles so passado e futuro
de um presente, so o j e o ainda no dele, implica que os instantes constituam uma continuidade
(ID., 344).
94 Martinho Tom Martins Soares
147
ID., 352.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 95
2.2.5Distentio/intentio animi
148
Segundo a origem semntica do termo e seguindo a norma da transliterao dos vocbulos
latinos para lngua portuguesa o t latino transliterado com c-, seria mais correto usar
o termo distenso grafado com c em vez de s, aproximando-o, assim, da raiz etimolgica
de ateno e de inteno, ambos derivados de attentio e intentio. Infelizmente, o Dicionrio
de Lngua Portuguesa da Academia das Cincias de Lisboa no contempla o termo grafado
com c, apresentando apenas a palavra distenso, cuja origem semntica no distentio,
mas distensio.
149
188.
96 Martinho Tom Martins Soares
podendo concluir-se que le temps est une intention distendue et une dis-
tension intentionnalise150. Isto faz com que o ser do tempo da existncia
humana seja ao mesmo tempo ser e no-ser, devir perptuo e durao.
A anlise crtica de Paul Ricur151 tambm vai neste sentido, mas
resulta de um exame mais minudente. Centra-se no contraste entre a pas-
sividade da impresso deixada pelas coisas que passaram e que medida
pela alma e a atividade de um esprito que tende em direes opostas,
um esprito que, tal como frisara Solignac, se distende ao tender para a
expectativa, para memria e para a ateno. Da parte para a anlise crtica
da oposio distentio/intentio animi.
Ricur nota que apesar de Agostinho recorrer novamente a termos
relacionados com o contexto espacial, neste movimento do futuro para
o passado, atravs do presente, tal no significa que se queira fazer entender
o passado e o futuro como lugares, essa metfora justifica-se pelo carter
passivo que acompanha a atividade do esprito. Devemos dinamizar essa
representao e discernir o jogo de ao e de passividade que a se dissimula,
afirma o filsofo francs152. De facto, no existiria futuro que se esvazia
nem passado que se enche sem um esprito que faz essa ao (animus
qui illud agit) (xviii, 37). Dito de outro modo, s existem impresses
na alma enquanto o esprito age, isto , espera, est atento e recorda-se,
porque esta atividade do esprito acompanhada pela passividade. Isto
quer dizer que o que ele espera passa, atravs daquilo a que est atento,
para aquilo que recorda: [] ut id quod expectat per id quod attendit
transeat in id quod meminerit (XI, xxviii, 37). Conclui, ento, o filsofo
que o esprito que faz passar e que fazer passar tambm passar, por
isso o vocabulrio no cessa de oscilar entre a atividade e a passividade.
O esprito espera e recorda e, porm, a expectativa e a memria esto
na alma como imagens-impresses e imagens-sinais. no presente que
se concentra o contraste. Por um lado, o presente, enquanto atravessado,
reduz-se a um ponto (in puncto praeterit), o que denota a mais extrema
ausncia de extenso, por outro, enquanto faz passar, ou seja, enquanto
150
Note complmentaire n. 18, 590.
151
Cf. TR I, 44-49.
152
TR I, 45.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 97
153
TR I, 47.
98 Martinho Tom Martins Soares
154
Ce ne sont pas seulement trois actes qui ne se recouvrent pas, mais cest lactivit
et la passivit qui se contrarient, pour ne rien dire de la discordance entre les deux passivits,
attaches lune lattente, lautre la mmoire. Plus donc lesprit se fait intentio, plus il souffre
distentio (RICUR, TR 1, 48).
155
Vide TR I, 48.
156
TR I, 49.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 99
157
As expresses entre aspas so retiradas do autor, sendo as prprias aspas uma opo
do mesmo.
158
J. REIS, 340.
100 Martinho Tom Martins Soares
159
ID., 340-341.
160
ID., 341.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 101
161
O verbo decerpo tem o sentido de separar colhendo. Tanto Ricur como J. Reis
no traduzem esta forma verbal na primeira pessoa. Traduzem-na pela passiva pondo o nfase
nas coisas que passam e no no sujeito que as colhe e as separa fazendo-as passar. A traduo
de Ricur a seguinte: [...] mesure que les lments prlevs de mon attente deviennent
du pass [...]. J. Reis parece apoiar-se nesta traduo: [...] medida que os elementos da
minha previso se vo desprendendo para o passado []. Para ns a traduo mais correta
a de A. Esprito Santo, que pe a tnica na ao do sujeito: [] tanto quanto aquilo que
eu desviar da expectativa para o passado [].
102 Martinho Tom Martins Soares
162
Cf. J. REIS, 342.
163
ID., 342.
164
ID., 342.
165
ID., 342.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 103
166
Cf. RICUR, TR I, 50, 57-62.
104 Martinho Tom Martins Soares
[] eis que a minha vida uma disperso (distentio est uita mea),
e a tua dextra acolheu-me no meu Senhor [] a fim de que [] seja recons-
167
ID., Ibid., 58.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 105
titudo a partir dos meus dias velhos, seguindo-te s a ti, esquecido do passado
e no distrado (non distentus), mas atrado (sed extentus), no para aquelas
coisas que ho de vir e passar, mas para aquelas coisas que esto adiante
de mim, no com disperso (non secundum distentionem), mas com ateno
(sed secundum intentionem), encaminho-me para a palma da celestial vocao
onde [] contemplarei as tuas delcias, que no vm nem passam. Agora,
porm, os meus anos decorrem entre gemidos, e tu, minha consolao, Senhor,
s meu Pai eterno; mas eu dispersei-me (dissilui) nos tempos, cuja ordem
ignoro, e os meus pensamentos, as entranhas mais ntimas da minha alma
so dilaceradas por tumultuosas vicissitudes, at que, limpo e purificado pelo
fogo do teu amor, me una a ti (XI, xxix, 39).
168
Vide TR I, 61-62.
106 Martinho Tom Martins Soares
169
J. GUITTON, 191.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 107
170
Videant itaque nullum tempus esse posse sine creatura (XI, xxx, 40).
108 Martinho Tom Martins Soares
realidade externa deve ser entendida como uma miragem voltil. Tudo
reencaminhado conscincia coletiva, ministrada pelo Big Brother, pois
a individual insegura. A nica certeza a que assegurada pelo Partido,
e essa moldvel s exigncias das circunstncias. Um cidado que ouse
questionar ou conspirar contra esta metodologia brbara, torturado at
atingir um tal estado vegetativo que se torna uma plasticina nas mos
do Partido.
O protagonista da histria, Winston Smith, depois de ter sido feito
prisioneiro poltico, foi encarcerado numa cela hermtica, onde flagelado
pelos requintados algozes do Partido. Diz-se-nos que ele perdera conta
do tempo que l tinha estado; pelo menos algumas horas; sem relgio
e sem luz do dia tornava-se difcil medir o tempo171. Mais adiante acrescenta:
os seus olhos percorreram as paredes, como se sentisse a vaga esperana
de encontrar algures uma janela. Aqui no h distino entre a noite e
o dia. No vejo como se possa medir o tempo [ disse Winston para
outro prisioneiro]172.
Winston manifesta necessidade do movimento csmico para calcular
o tempo cronolgico. Sem luz do Sol ou movimentos regulares, a contagem
do tempo torna-se uma tarefa quase impossvel. Ainda que a conscincia
possua alguma capacidade para medir e comparar duraes e saber, tal
como dizia Agostinho, se se passou um tempo longo ou breve; ainda que
o sujeito possa interiormente marcar ritmos, pronunciar slabas ou notas
musicais breves e longas; no conseguir medir o tempo cronolgico objetivo,
que est associado ao movimento exterior, como defende Aristteles. Movi-
mento este que se numera nas horas, nos dias, nas noites, nos meses e
nos anos. Sem movimentos regulares externos, csmicos ou corporais, o
sujeito sente a mudana ou o fluxo do tempo, mas no capaz de quan-
tific-la.
Na ausncia de movimentos astronmicos, outros h que nos podem
servir de relgio, desde que sejam regulares, ainda que a ausncia da luz
do Sol no nos permita saber se dia ou noite: deviam ter decorrido
umas semanas, ou meses. Se quisesse, poderia agora medir a passagem
171
ORWELL, George, 1984, Ed. Mil Folhas Pblico, 2002, 234.
172
ID., 239.
110 Martinho Tom Martins Soares
173
ID., 281.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 111
que a natureza da realidade evidente. Quando, numa das tuas alucinaes, visionas
alguma coisa, concluis que toda a gente v o mesmo que tu. Mas eu digo-te,
Winston, a realidade no exterior. A realidade existe no esprito humano, e em
mais parte nenhuma. No no esprito individual, que pode cometer erros, e que
para todos os efeitos perecvel: s existe no esprito do Partido, coletivo e imortal.
O que o Partido consagrar como verdade, verdade. Impossvel ver a realidade
exceto atravs dos olhos do Partido. isto que tens de reaprender, Winston174.
O tempo parece, pois, ter uma dupla face externa e interna. Ele no
apenas a sucesso de instantes que se observa no movimento, porque
lhe intrnseco, como defende Aristteles; parece ser tambm uma durao
intimamente mensurvel no passado, no presente e no futuro, na mente
de cada indivduo. Sabemos hoje que o fluxo temporal da vivncia psquica
diferente do ritmo cronolgico do mundo: o ritmo cronolgico do mundo
regular e autnomo; a forma como, por vezes, vivenciamos o tempo,
psicologicamente, relativa. A nossa sensao de tempo bastante diferente
se estivermos encarcerados numa cela a padecer horrveis torturas ou, como-
damente, estirados numa praia a tomar banhos de sol. Um minuto com
a mo no fogo bem diferente de um minuto com a mo fora dele. No
entanto, em termos matemticos, um minuto em qualquer dos casos a
soma de sessenta segundos.
O Partido tenta vedar o acesso ao tempo que corre inerente ao movi-
mento, ou seja, o tempo cronolgico e quantitativo, que observvel no
movimento do Sol e dos outros astros, no fluxo da gua, nas voltas da
roda do oleiro, no crescimento de uma rvore e desde logo no crescimento
do prprio ser humano, mas mais dificilmente conseguir eliminar o fluxo
temporal intrassubjetivo, feito de memrias e expectativas. A questo
saber que relao existe entre estes dois tempos, ou se se trata apenas
de um s e mesmo tempo absoluto que se manifesta de forma autnoma
e regular na natureza e vivido pelo ser humano de forma subjetiva e
qualitativa? A ocultao do primeiro afetar o segundo, ou, pelo contrrio,
revel-lo- e vice-versa? Ser que o tempo est, de facto, associado aos
movimentos externos ou depende do sujeito que observa e exterioriza na
174
ID., 255-256.
112 Martinho Tom Martins Soares
physis algo que s existe dentro dele? Parecem-nos questes muito per-
tinentes, para as quais procuraremos respostas, atravs do confronto entre
Aristteles e Agostinho. Estes excertos de Orwell, aqui citados, relem-
braram-nos problemticas j analisadas em seces anteriores, como a ques-
to da inexistncia de um tempo fsico ocupando um espao e, por con-
seguinte, a sua existncia gnosiolgica (sob forma de impresses) na
conscincia. Mais do que isso, tiveram o mrito de pr em causa uma
viso estritamente psicolgica do tempo, que se revela redutora e insuficiente
para uma teoria geral do tempo. Encontrmos, pois, neste texto um pr-
-texto para a abordagem da problemtica do tempo do mundo e do tempo
da alma.
175
RICUR, TR III, 19
176
TR III, 19.
177
ARISTTELES, Fsica IV, 11, 2, 9 a 10; Apud RICUR, TR III, 20.
114 Martinho Tom Martins Soares
178
J. Reis, defensor convicto do tempo como movimento dos corpos, acusa Agostinho
de ter separado o tempo do movimento, e lembra que at aos tempos modernos, pelo menos,
o tempo no em nenhum autor algo psicolgico no sentido de que sem entrar o sujeito em
cena, pura e simplesmente no o haveria. Ao contrrio, o tempo est logo nos prprios movimentos
objetivos e [] ele o que fica do movimento do cu quando se abstrai desse movimento
(332).
179
Relembramos que para Aristteles a referncia de todos os movimentos, incluindo
o movimento psicolgico que conta o tempo, era o movimento celeste. O tempo apenas a
medida do movimento, mesmo que ele no seja uniforme, porque todos os movimentos esto
referidos ao movimento celeste e este constante, o que confere continuidade e uniformidade
ao tempo. No caso da tese agostiniana, o que confere continuidade e uniformidade ao tempo
a atividade de trplice inteno da alma.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 115
180
Todavia, muitos conceitos aristotlicos acerca do tempo foram adaptados por Agostinho
sua doutrina psicolgica. Ainda que situe o tempo na alma humana e conclua que o mesmo
no fsico, no realmente quantitativo nem estendido, a sua linguagem reflete uma constante
analogia com a terminologia decorrente da anlise fsica de Aristteles.
181
TR III, 21.
116 Martinho Tom Martins Soares
182
ID., Ibid., 22.
183
ID., Ibid., 23. Por sua vez, para Agostinho, o tempo s aparentemente um devir,
um fluxo, como pressupunha Aristteles, porque, na verdade, a continuidade temporal no
linear, mas feita da sobreposio de vrias correntes psicolgicas, escandidas de acordo com
os trs modos da expectativa, da ateno e da memria. Ela formada pelo renovamento constante
de unidades indivisveis, de perodos rpidos e completos, divididos pela trindade imanente do
presente, do passado e do futuro. (Cf. J. GUITTON, 190-191).
184
Vide ARISTTELES, Fsica IV, 219 a 3-7; Apud RICUR, TR III, 23.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 117
185
Aristteles entende o tempo como a medida do movimento num sentido quantitativo.
Para Agostinho, no entanto, o tempo, porque existe numa atividade indivisvel da alma, pode
ser chamado de distenso, no no sentido quantitativo como o movimento que ele mede, mas
no sentido metafrico, por referncia distenso quantitativa do movimento. O primeiro v
o instante como um limite do tempo que d ao tempo a sua continuidade, modificando a quantidade.
Para o segundo, a ateno presente, que o limite entre o futuro e o passado, fornece a continuidade
ao tempo, porque a antecipao tem de passar atravs da ateno para a memria, formando-
-se entre eles um elo. Contudo, esta continuidade no pode ser considerada quantitativa como
considerado o tempo em Aristteles. A durao de um movimento que medida pelo tempo
representada na alma como quantitativa, mas a sua extenso, na realidade, no tem quantidade.
Os dois filsofos dizem que o tempo mede o movimento, mas a medida para o Estagirita
quantitativa, enquanto que para Agostinho uma atividade vital sem quantidade.
118 Martinho Tom Martins Soares
ferncia operada pelo filsofo grego da analogia existente entre trs entidades
contnuas, a saber: a grandeza, o movimento e o tempo. A continuidade
a possibilidade de dividir at ao infinito uma grandeza. A relao entre
o antes e o depois consiste na relao de ordem que resulta desta mesma
diviso contnua. A relao entre o antes e o depois s existe no tempo
porque est no movimento, e s est no movimento porque est na gran-
deza186. Daqui, conclui o filsofo, o tempo o antes e o depois no movimento.
Sendo assim, a sucesso, que o antes e o depois no tempo, procede
de uma relao de ordem que est no mundo antes de estar na alma.
A atividade da alma consiste apenas na discriminao do antes e do depois
no movimento, mas, em todo o caso, a sua funo pouco relevante,
pois a sucesso j se encontra nas coisas e possvel determinar o antes
e o depois do tempo determinando o antes e o depois do movimento.
A prioridade no vai pois para o conhecimento, para a determinao ou
para a perceo, mas para o antes e o depois prprios do movimento em
relao ao antes e ao depois prprios do tempo. O esprito encontra a
sucesso nas coisas antes de a encontrar em si prprio; antes de construir
o tempo pela sua atividade narrativa, comea por suport-lo e at mesmo
a sofr-lo187.
Com a introduo do nmero, a definio aristotlica do tempo fica
completa, pois o tempo o nmero do movimento segundo o antes e
do depois188. Este nmero junta-se ao tempo como a forma se junta
matria, por isso essencial, no verdadeiro sentido do termo, para uma
definio do tempo. A alma, atravs da perceo do tempo, consegue dis-
tinguir duas extremidades e um intervalo, isto , a alma reconhece que
h dois instantes e os intervalos delimitados por esses instantes podem
186
Si lavant et laprs sont dans la grandeur, ncessairement dans le mouvement aussi,
par analogie avec la grandeur. Mais dans le temps aussi existent lavant et laprs, en vertu
de la correspondance entre le temps et le mouvement (ARISTTELES, Fsica IV, 219 a
15-18; Apud RICUR, TR III, 24).
187
Nous butons, ici encore, sur un irrductible: quelle que soit la contribution de lesprit
la saisie de lavant et de laprs et, ajouterons-nous, quoi que lesprit construise sur cette
base par son activit narrative , il trouve la sucession dans les choses avant de la reprendre
en lui-mme ; il commence par la subir et mme par la souffrir, avant de la construire (RICUR,
TR III, 25).
188
ARISTTELES, Fsica IV, 219 b 2; Apud RICUR, TR III, 25.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 119
189
ARISTTELES, Fsica IV, 219 a 29; Apud RICUR, TR III, 25.
190
Il en resulte que la dfinition aristotlicienne du temps le nombre du mouvement,
selon lavant et laprs (219 b 2) ne comporte pas de rfrence explicite lme, en dpit
du renvoi, chaque phase de la dfinition, des oprations de perception, de discrimination
et de comparaison qui ne peuvent tre que celles dune me (RICUR, TR III, 25, 26).
191
ARISTTELES, Fsica IV, 223 a 27-28; Apud RICUR, TR III, 26, nota 1.
192
ARISTTELES, Fsica IV, 223 a 28; Apud RICUR, TR III, 26, nota 1.
193
Lactivit notique peut ainsi rester implique par largumentation, sans tre incluse
dans la dfinition proprement dite du temps (RICUR, TR III, 26, nota 1).
120 Martinho Tom Martins Soares
194
TR III, 29.
195
SANTIAGO DE CARVALHO, 66.
196
ID., 66.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 121
197
Vide C. J. CORREIA, 232-234.
198
Si, en effet, lextension du temps physique ne se laisse pas driver de la distension
de lme, la rciproque simpose avec le mme caractre contraignant. Ce qui fait obstacle
la drivation inverse, cest tout simplement lcart, conceptuellement infranchissable, entre
la notion dinstant au sens dAristote et celle de prsent au sens dAugustin (RICUR, TR
III, 30).
199
C. J. CORREIA, 233.
200
No sei o que que vivo no instante, precisamente no instante vivido, pois
vivo-o sem o vivenciar, e esse que deve ser o mistrio do tempo: nunca estou l, no instante,
de modo refletido (BORGES, 2004, 116).
201
RICUR, TR III, 30. A obra de Benveniste onde Ricur recolhe esta informao
a seguinte: . BENVENISTE, Le langage et lexprience humaine: Problmes du langage,
Paris, Gallimard, coll. Diogne, 1966. Mais frente, no terceiro captulo, a propsito do
tempo histrico, voltaremos a citar esta tese de Bnveniste com maior desenvolvimento.
122 Martinho Tom Martins Soares
202
Vide Gerd Haeffner, Anotaes pergunta agostiniana sobre a essncia do tempo
no Livro XI das Confisses (trad. do alemo por Manuel Losa), Revista Portuguesa de Filosofia,
44, 1998, 81-97.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 123
203
Esta afirmao de Haeffner inferida do que diz Agostinho no livro XI, xxvi, 33,
a propsito do exemplo da recitao dos versos, na qual impossvel encontrar uma medida
exata para o tempo, uma vez que se pode acelerar ou arrastar essa recitao: sed neque ita
comprehenditur certa mensura temporis, isto : mas nem assim se apreende uma medida exata
do tempo.
124 Martinho Tom Martins Soares
ou: Isto durou o dobro daquilo (XI, xxiv, 31)]204. Em suma, a medio
no se faz com base numa unidade de tempo absoluta, mas atravs de
uma comparao. Por este facto, conclui Haeffner que o conceito agostiniano
de tempo relacional, na medida em que para ele tempo o mesmo
que de cada vez um tempo; tempus , no seu vocabulrio usual, pri-
mariamente no singulare tantum, mas sim o singular de tempora205.
Se o conceito de tempo relacional, tambm objetivo, logo, no faz
sentido falar de conceo psicologista do tempo em Agostinho. Assim,
o autor trata de tirar do domnio fechado da alma a medio do tempo
futuro e do tempo passado. A expectatio e a memoria no so entendidas
como um acontecimento da alma, mas como uma referncia intencional
ao tempo objetivo, ou seja, uma sensao interior, subjetiva. Deste modo
conclui o autor que no se obrigado a atribuir a Agostinho tal tese
psicologstica. O tempo esta a sua tese no existe, realmente, sem
a alma e, nessa medida, s nela, mas em caso nenhum s por meio
da atividade da alma. que a sua funo constitutiva para o tempo
pressupe relaes de tempo que, de algum modo, j existem objetivamente,
coisa que Agostinho exprime ao afirmar que os tempos so criados por
Deus206.
Provavelmente, Ricur no discordaria totalmente de que o conceito
agostiniano de tempo relacional, que ele pretende medir o tempo com-
parando duraes, mas ressalvaria o facto de se tratar da comparao de
affectiones, imagens gnosiolgicas, e no movimentos fsicos. A alma con-
tinua a precisar do movimento para calcular o tempo com exatido, mas
capaz de medir um intervalo de tempo sem o auxlio de nenhum movimento
externo. Haeffner, porm, parece ignorar o que diz Agostinho sobre a impres-
so que as coisas deixam ao passarem na alma: Meo a impresso (affec-
tionem) que as coisas, ao passarem, gravam em ti e que em ti permanece
(manet) quando elas tiverem passado, e meo-a, enquanto presente, e no
as coisas que passaram, de forma a que essa impresso ficasse gravada
(XI, xxvii, 36). A impresso pois, a nosso ver, o elemento fixo que
204
HAEFFNER, 90.
205
ID., 90.
206
ID., 92.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 125
207
355.
208
ID., 355.
126 Martinho Tom Martins Soares
209
ID., 355. De facto, J. Reis revela-se um acrrimo aristotlico. A alma no tem influncia
alguma na nossa vivncia temporal, logo, est fora de questo falar de tempo psicolgico, porque
esse no existe. O tempo, para este pensador, j existe nas prprias coisas, objetivamente, sem
o concurso do sujeito.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 127
mesmo concorre para a riqueza da sua obra: cada abordagem faz emergir
novas ideias e novos paradoxos, o que evidencia um trabalho sempre ina-
cabado e bastante frtil. No fundo, estas anotaes de Haeffner e de
J. Reis so mais um contributo para a complexidade da questo do tempo
em Agostinho. Seguramente, o seu pensamento, exposto no livro XI das
Confisses, permite vrias leituras, pelo facto mesmo que nem sempre
fcil seguir o emaranhado da sua argumentao ou porque o autor nem
sempre explcito, deixando alguns raciocnios em aberto. Vimos mesmo
como algumas das suas asseres no passam de meras hipteses argu-
mentativas levantadas com o propsito de demonstrar, precisamente, a ideia
contrria. , sobretudo, nos ltimos captulos do livro que o seu pensamento
aparece sistematizado com mais segurana; os captulos anteriores so acima
de tudo esboos que o ajudam a alcanar as grandes concluses finais
que aparecem expostas entre os captulos XXVII, 36 e XXX, 40.
Uma ltima e breve palavra para compararmos a relao entre as dou-
trinas de Agostinho e de Plotino. Constata-se que a teoria agostiniana, apesar
de ter pontos de contacto com a plotiniana, principalmente, ao nvel dos
conceitos, diverge dela na essncia. A conceo de Plotino , sobretudo,
metafsica, porque para ele o tempo existe independentemente da alma que
o percebe. O tempo uma distenso da vida da Alma, expresso tambm
usada por Agostinho, mas o grego fala da Alma universal e criadora, no
da alma humana individual. Esta, no tendo em si mesma os objetos,
obrigada a dirigir-se intencionalmente para a Inteligncia a fim de os obter.
neste movimento de si para o seu fundamento, para a Me que a sustm,
que est a sua distenso. A distenso o que vai da carncia ou nada
desta Alma posse ou presena de ser, isto , a prpria constituio do
presente. Logo, esta distenso passa-se muito mais na dimenso ontolgica
do que na dimenso de sucesso e, por isso mesmo, a sucesso que
nela ainda h ao nvel do presente contnuo que se processa e no ao
nvel do passado e do futuro210. Assim, afirma Plotino, a distenso da
Alma ocupa tempo211. A parte desta vida que avana ocupa a cada momento
um tempo novo, enquanto a sua vida passada ocupa o tempo passado.
210
J. REIS, 354.
211
Apud SOLIGNAC, Note complmentaire n. 18, 588.
128 Martinho Tom Martins Soares
3.3TEMPO E CINCIA
212
Apud PRIGOGINE, 1999, 20.
213
Ilya Prigogine nasceu em 1917 em Moscovo, mas de nacionalidade belga. Conquistou
o prmio Nobel de Qumica em 1977 pelo seu trabalho sobre as estruturas dissipativas. Consiste
a sua tese em demonstrar que j no possvel acreditar na viso demasiado simplificada do
mundo que nos foi legada pela cincia clssica de Galileu e Newton e que punha a nfase
nos fatores do equilbrio, da ordem, da estabilidade. Hoje vemos flutuaes e instabilidade
por todo o lado e comeamos a ganhar conscincia da inerente complexidade do Universo.
Para os fundadores da cincia ocidental, como Leibniz e Descartes, o objetivo era a certeza.
Acontece, porm, que entretanto se tornou difcil coadunar a descrio termodinmica de um
universo em constante evoluo entrpica com a descrio intemporal dada pelas leis da natureza.
Pergunta-se tambm como que o aumento da entropia (associado ao aumento de desordem)
pode ter produzido estruturas to complexas como a vida?. A fsica do desequilbrio revela-
-nos que os sistemas que so empurrados para longe do seu ponto de equilbrio do origem
a novas estruturas (as chamadas estruturas dissipativas) atravs de processos de auto-organizao.
O aparecimento destas estruturas mostra o papel construtivo da irreversibilidade temporal.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 129
Assim, afirma o autor: sejam quais forem os avanos feitos nesta direo, uma coisa clara:
a direo do tempo (o elemento narrativo) representa um papel essencial na descrio da natureza,
o que significa que o tempo deve ser includo na nossa formulao das leis da natureza. As
leis de Newton pretendiam exprimir certezas. Agora devemos fazer com que elas exprimam
possibilidades que podem ou no realizar-se no futuro. Em suma, no havendo certezas em
relao a todos os sistemas da natureza (h leis que se alteram com o tempo) tem que se
calcular as probabilidades inerentes a um futuro sempre aberto e imprevisvel, logo, h que
ter em conta o tempo, fator que at agora tinha ficado excludo da cincia. Como aquilo que
temos sempre um conhecimento limitado das condies iniciais, a predictabilidade que definia
a mecnica clssica no se verifica aqui. J no h s sistemas estveis e intemporais, a ins-
tabilidade, por seu lado, apenas pode ser incorporada ao nvel estatstico. S esta abordagem
nos permite exprimir as leis da natureza de uma forma que inclua a direo do tempo e nos
permita descrever possibilidades em vez de certezas (Cit. in PRIGOGINE, 1996, 78).
214
PRIGOGINE, 1999, 21.
215
ID., Ibid., 22.
216
ID., Ibid., 23.
130 Martinho Tom Martins Soares
217
ID., Ibid., 24.
218
ID., Ibid., 74.
219
A fsica clssica era determinista. Entre o passado e o futuro havia similitude, de
tal modo que o universo e a vida apareciam como um filme, em que tudo est previsto. Hoje,
sabemos que na raiz da matria mora a probabilidade, segundo o princpio da indeterminao.
O universo enquanto tal uma histria aberta, e, por isso, estando ainda a fazer-se, constantemente
novo, imprevisvel, com uma estrutura narrativa, de tal modo que no possvel determinar
nem prever adequadamente o que ser. No se sabe o que reside no ncleo da matria e, con-
sequentemente, no se pode determinar o conjunto de todas as suas possibilidades. O nosso
desconhecimento da matria no tem ento a sua razo apenas na nossa finitude e ignorncia,
mas na sua constituio aberta e narrativa, de tal modo que no podemos sequer dizer que
o ser humano seja o estdio ltimo da histria da evoluo. De qualquer modo, e essencial
sublinhar este aspeto, a evoluo do cosmos procede de um dinamismo que produz o novo
emergente, que irredutvel ao que o precede, e a continuidade gera-se precisamente no processo,
de tal maneira que s visvel a partir do novo e do futuro, e no propriamente do passado
antecedente. Portanto, quando se pensa em encontrar um possvel suporte para a continuidade
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 131
223
ID., Ibid., 210.
224
ID., Ibid., 210-211.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 133
225
quase unnime entre os especialistas que existiu de facto um livro dedicado comdia.
Aristteles refere-se vrias vezes a ele. No incio do captulo 6 da Potica (1449b 21), o autor
promete falar mais tarde acerca da arte de imitar em hexmetros e da comdia. Dos hexmetros
fala nos captulos 23 e 24, mas a segunda parte da promessa ficou por cumprir. Tambm na
Retrica III, 1419b 5, o filsofo confirma a existncia de um tratado da sua autoria sobre comdia.
226
Lun des principaux interts de la Potique est dtre un discours la fois descriptif
et normatif. En effet, dun ct Aristote y examine en tmoin de son temps les tragdies existantes
et ce qui fait leur succs, et de lautre, il tente de dgager les normes auxquelles toute bonne
tragdie devrait rpondre (KLIMIS, 25).
136 Martinho Tom Martins Soares
227
[] a estratgia de apropriao que eu suponho [] consistiu, para mim, em tentar
a reinscrio dos conceitos maiores da Potica no quadro de uma problemtica que no era
a de Aristteles, a saber, a da narratividade. No era a de Aristteles na medida em que a
narrativa era, nele, oposta ao drama representado pelos prprios personagens. A operao consiste
ento em desencravar a narrativa do sentido aristotlico e elev-la categoria de metagnero.
Em nome de qu? Precisamente em nome do parentesco que o mythos reinstaura entre narrativa
e drama (RICUR, 1992, 334-335).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 137
228
Si no hay imitacin de una accin ejecutada lingsticamente entre el emisor y el
recetor del mensaje que aparecen representados atuando, hablando y operando dramticamente,
de forma direta mejor que a travs de una narracin, no hay poesa. Los poetas que monologan
o cuentan pero no hacen atuar a sus personajes a travs de la palabra no hacen poesa. Sern
muy sentimentales o muy sabios o ambas cosas a la vez, pero no son poetas. Para hablar de
poesa, debemos toparnos ante la imitacin de una accin humana envuelta en palabras, es
decir, ante una dramatizacin que se refleje lingsticamente en el uso del tu por parte de
personajes que ejercen mutua interaccin los unos sobre los otros (LPEZ EIRE, Poticas
e Retricas griegas, 89).
229
La poesa es drama o, como mucho, pica muy dramatizada. La poesa es mmesis
de aciones humanas, de aciones de la vida o la experiencia humanas, acompaadas de los rasgos
de los carateres de quienes las ejecutan, y no trata de aleccionar a nadie sino de proporcionar
placer a quienes la contemplen (ID., Ibid.).
230
Vide LPEZ EIRE, 2002, 132, 133, 137, 138.
138 Martinho Tom Martins Soares
231
Vide ID., Ibid., 138.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 139
232
Pelo exposto se torna bvio que a funo do poeta no contar o que aconteceu
mas aquilo que poderia acontecer, o que possvel, de acordo com o princpio da verosimilhana
e da necessidade (1451a 36-38). Todas as citaes da Potica reportam-se a ARISTTELES,
Potica; traduo e notas de Ana Maria Valente, prefcio de Maria Helena da Rocha Pereira,
Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2004.
233
Note-se, Aristteles no diz que a poesia filosfica e a histria no; o que ele diz
que a primeira mais filosfica do que a segunda, de onde se pode concluir que ambas
so filosficas.
234
O historiador e o poeta no diferem pelo facto de um escrever em prosa e o outro
em verso (se tivssemos posto em verso a obra de Herdoto, com verso ou sem verso ela
no perderia absolutamente nada o seu carter de Histria). Diferem pelo facto de um relatar
o que aconteceu e outro o que poderia acontecer. Portanto, a poesia mais filosfica do que
a Histria. que a poesia expressa o universal, a Histria o particular (1451b 1-7).
235
Como el verbo tico prattein en uso transitivo significa hacer y en el intransitivo
irle a uno las cosas bien o mal, encontrarse uno bien o mal, el nombre verbal correspondiente
a este verbo, es decir, praxis, significa tanto accin como padecimiento o situacin favorable
o desfavorable. De manera que la poesa es la imitacin de una accin o pasin de un
140 Martinho Tom Martins Soares
237
ID., Ibid., 92, 93.
238
[...] evidente, em primeiro lugar, que se no devem representar os homens bons
a passar da felicidade para a infelicidade, pois tal mudana suscita repulsa, mas no temor
nem piedade; nem os maus a passar da infelicidade para a felicidade, porque uma tal situao
de todas a mais contrria ao trgico, visto no conter nenhum dos requisitos devidos, e no
provocar benevolncia, compaixo ou temor; nem to pouco os muito perversos a resvalar da
fortuna para a desgraa (1452b 34-38).
239
Cf. LPEZ EIRE, 2002, 131-132.
142 Martinho Tom Martins Soares
240
Le second grand texte qui a mis en mouvement ma recherche est la Potique
dAristote (TR I, 66).
241
[]la replique inverse de la distentio animi dAugustin (ID., Ibid.).
242
Il va de soi que cest moi, lecteur dAugustin et dAristote, qui tablis ce rapport
entre une exprience vive o la discordance dchire la concordance et une activit minemment
verbale o la concordance rpare la discordance (ID., Ibid.).
243
Dautre part, le concept dactivit mimtique (mimsis) ma mis la voie de la seconde
problmatique, celle de limitation cratrice de lexprience temporelle vive par le dtour de
lintrigue (ID., Ibid.).
244
La Potique, en effet, est, quant elle, muette sur le rapport entre lactivit potique
et lexprience temporelle. Lactivit potique na mme, en tant que telle, aucun caractre
temporel marqu (ID., Ibid., 66-67).
245
M. C. FIALHO, 2003, 132.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 143
1.1MYTHOS E MIMESIS
246
A mimesis consiste nessa operao de representar, pela articulao discursivo-narrativa,
os homens em ao (1448a 1), isto , o ser-no-mundo do homem, j que todo o Dasein ,
por definio, situado e temporal, e toda a temporalidade supe ao ou sofrimento. Por isso
mesmo h que entender que nem mythos nem mimesis so compreensveis, em Aristteles, esttica
mas dinamicamente (M. C. FIALHO, 2003, 132). Cf. etiam RICUR, TR I, 69; M. Batista
Pereira, por seu turno, refere sobre o mesmo assunto: dentro de uma arte potica, mythos
no apenas sistema mas agenciamento dos factos em sistema e mimesis a atividade
ou processo ativo de imitar ou representar. Da, o primado da atividade criadora de intrigas
sobre toda a espcie de estruturas estticas, de paradigmas acrnicos e de invariantes temporais
(1993, 441).
144 Martinho Tom Martins Soares
247
O mythos aristotlico no se traduz por mito. O autor d ao conceito um sentido
diverso daquele a que estamos habituados, quando falamos de mito, ou seja, uma histria complexa
com uma determinada viso do mundo e uma determinada explicao etiolgica de uma realidade
complexa, onde se mistura o visvel e o invisvel, inventada por uma determinada sociedade,
que a transmite de gerao em gerao e sobre ela assenta a sua ordem social, constituda
de valores epistemolgicos, cosmolgicos, pedaggicos, filosficos, trgicos, transmitidos pelo
prprio mito. Mas o mito da Potica tem um sentido especfico: en effet, la Potique thorise
une pratique relativement tardive et particulire du mythe, celle quen faisaient les potes en
puisant dans le fond commun de la mythologie pour trouver des sujets leurs compositions
(Vide KLIMIS, 8).
248
103-109.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 145
dans la Potique. [...] toute mimsis a pour but de rendre la forme propre
de ce quelle imite dune faon stylise, cest--dire non pas neutre, mais
qui embellisse son modle, comme dans la tragdie et lpoppe, ou au
contraire qui en exagre les dfauts sous forme de caricature, comme dans
la comdie249. esta ltima significao que Ricur, tal como Klimis
e outros autores, consideram mais pertinente para o contexto aristotlico.
No entanto, deve ser completada e enriquecida com a segunda perspetiva
aqui apresentada, ou seja, a das representaes mentais resultantes do
carter criador do pensamento.
A ideia de representao mental merece uma ateno especial da nossa
parte, pelas valiosas potencialidades que ela confere ao termo grego e a
partir da Literatura e s artes em geral. Klimis observa muito corretamente
que toute forme de mimsis esthtique vhicule des reprsentations: la
peinture, bien sr, puisquelle produit des images visuelles, mais aussi la
musique et le chant qui sont des reprsentations auditives, et surtout
la tragdie, lpope et la comdie, qui vhiculent des reprsentations non
plus visuelles, mais inscrites dans la discursivit dun texte250. Interessa-
-nos sobremaneira refletir nestas representaes produzidas pelo texto, j
que elas atestam a extrema importncia do convvio com os livros e o
cultivo empenhado da leitura desde a mais tenra idade, para uma slida
formao e desenvolvimento da capacidade criativa do leitor. De facto,
249
ID., 109. O termo francs stylisation tem o mesmo significado do portugus esti-
lizao. Segundo o Dicionrio da Lngua Portuguesa Contempornea, da Academia das Cincias
de Lisboa, estilizar significa 1. Modificar ou modificar-se, tornando ou tornando-se mais
perfeito ou esttico; [o mesmo que] aperfeioar, aprimorar, apurar. 2. Ser a representao, o
smbolo [ ou] representar, simbolizar. M. Batista Pereira, por sua vez, no fala de estilizao,
mas recorre a um correlato, habitualmente presente no contexto da pintura, usado por Ricur,
falamos de aumento icnico. A mimesis entendida, de igual modo, como um processo de
imitao criadora, que reativa traos essenciais da ao humana axiologicamente superiores
aos da realidade. Nesse sentido, a mimesis condensa a ao humana, produzindo no poema
trgico um anlogo do aumento icnico conseguido pelo pintor no universo das formas e
das cores. s obras de fico se deve em grande parte o alargamento do nosso horizonte de
existncia, pois as obras literrias s por abreviao, saturao e culminao pintam a realidade.
O aumento icnico da fico pode traduzir-se na metfora de uma janela, cuja estreita abertura
desemboca na imensidade de uma paisagem ou no acrscimo de ser nossa viso de mundo
empobrecido pelo uso quotidiano (1993, 431).
250
105.
146 Martinho Tom Martins Soares
251
Cf. 107.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 147
252
A epopeia e a tragdia, bem como a comdia e a poesia ditirmbica e ainda a maior
parte da msica de flauta e de ctara so todas, vistas em conjunto, imitaes (mimhvsei"). Diferem
entre si em trs aspetos: ou porque imitam por meios diversos ou objetos diferentes ou de
outro modo e no do mesmo. (1447a 6-10).
253
Sobre este assunto, Vide KLIMIS, 120-128. Efetivamente, a msica tem o poder de
representar emoes semelhantes s emoes reais, mas no pode suscitar um prazer de reco-
nhecimento, pois nenhum corte separa o seu modelo da representao. As emoes suscitadas
so instantneas e brutas, pois no so mediatizadas pela reflexo. Elle na donc pas besoin
de passer par lintermdiaire, ni dun mdium dexpression discursif, ni dun raisonnement de
la part du public pour tre agissante (123). Por outro lado, ela imita de forma to similar
todo o tipo de emoes que estas so realmente sentidas pelos ouvintes. Quanto ao mimo e
dana, sabemos que, ao contrrio da msica, Aristteles no lhes dedica nenhum estudo desen-
volvido. Sabemos tambm que na Potica ele no considera a arte de ator como pertencente
potica e recusa, sistematicamente, qualquer recurso aos gestos ou a quaisquer artifcios de
encenao para produzir a emoo prpria do gnero trgico. H, na verdade, uma desvalorizao
da expresso corporal em favor da utilizao do discurso, mas tragdia e mimo tm o mesmo
objetivo de tocar o pathos do pblico, o primeiro atravs do discurso, o segundo atravs da
expresso fsica. Nos dois casos, a separao entre a realidade e a representao que permite
ao espetador reconhecer um no outro e com isso obter prazer. O mimo tenta evocar a vida
mental apenas atravs do movimento corporal. Apesar destes pontos em comum, no podemos
ignorar o que separa estas duas artes. Falta ao mimo a discursividade prpria da linguagem.
Para alm de no ter discurso, o mimo um espetculo constitudo de pequenos episdios
sem ligao lgica entre si, que se desenrola sem quaisquer referncias temporais, representando
em simultneo factos que deveriam ser sucessivos. , portanto, uma arte efmera, sem histria,
assente na representao de carateres e no de aes e que se dirige mais ao nosso imaginrio
do que nossa capacidade de reflexo e de ao. Ora, este tipo de arte, que, tal como a
dana e a msica, se baseia no pr-discursivo (neste caso, em gestos corporais) que Aristteles
148 Martinho Tom Martins Soares
quer a todo o custo evitar na Potica. Em todo o caso, j afirmmos a nossa convico em
como estas diferenciaes no so de todo aplicveis s artes contemporneas, que conseguem
ter a sua prpria discursividade obrigando, por vezes, os espetadores a um enorme exerccio
de reflexo e extrapolao. Achamos, por isso, que devemos ser mais prudentes nos privilgios
atribudos ao texto.
254
[...] ta;" maqhvsei" poiei'tai dia; mimhvsew" ta;" prwvta", [ pela imitao que
adquire os seus primeiros conhecimentos] (1448b 7-8).
255
[...] kai; to; caivrein toi'" mimhvmasi pavnta" [todos sentem prazer nas imitaes]
(1448b 8).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 149
quer sofrer a dor, e a mesma dor o seu prazer. Que coisa seno uma
pasmosa loucura? [] Mas, enfim, que compaixo h em coisas fingidas
e cnicas. Com efeito, o espetador no chamado a socorrer, mas apenas
convidado a condoer-se, e mais aplaude o ator de tais representaes, quando
mais sofre. E, se aquelas calamidades humanas, quer antigas, quer fingidas,
so representadas de tal modo que o espetador no sofre, ele vai-se da
embora aborrecido e criticando; se, porm, sofrer, fica atento e chora lgrimas
de contente (Confisses, III, ii, 2).
256
Apprendre, conclure, reconnatre la forme: voil le squelette intelligible du plaisir
de limitation (ou de la reprsentation) (RICUR, TR I, 83).
150 Martinho Tom Martins Soares
257
Vide LPEZ EIRE, 2002, nota n. 11, 115-116.
258
Acerca da Alma, III, 7, 431 a 16-17; Apud KLIMIS, 116.
259
Acerca da Alma, III, 11, 434 a 9-10; Apud KLIMIS, 116.
260
KLIMIS, 116.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 151
261
ID., 117.
262
On voit donc le role prpondrant que joue lcart par rapport au rel dans la mimsis,
attestant de la ncssit du dtour par lAutre pour mieux se comprendre Soi-mme (KLIMIS,
117).
263
Vide Poticas y Retricas griegas, 98-100.
152 Martinho Tom Martins Soares
a obra potica , pois, hedonista, uma vez que consiste, no caso da tragdia,
na produo de um efeito catrtico no pblico. Esta finalidade determina
a forma substancial da tragdia, a sua estrutura e o seu contedo, que
devem estar orientados para suscitar no espetador sentimentos de terror
e de compaixo.
264
En effet, la poisis est la seule sexprimer a travers dun discours (lovgo"), alors
que la danse, la musique et la peinture peuvent tre regroupes sous la ctgorie de lagir. Par
l, le plaisir esthtique quelle est susceptible de gnrer est plus raffin que les motions brutes
dues aux autres formes de mimsis: cause de la mdiation de la discursivit, le public doit
faire un effort supplmentaire de mmorisation et de rflexion pour pouvoir la fois suivre
le droulement de laction, et de reconnatre les types idaux qui y sont reprsents (KLIMIS,
119).
265
Cf. captulo VI, 1449b 24-28: ejvstin ou\n tragw/diva mivmhsi" pravxew" spoudaiva"
kai teleiva" mevgeqo" ejcouvsh", hJdusmevnw lovgw cwri;" eJkavstw tw'n eijdw'n ejn toi'" morivoi",
drwvntwn kai ou di! ajpaggeliva", di! ejlevou kai fovbou peraivnousa th;n tw'n toiouvtwn paqhmavtwn
kavqarsin.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 153
266
La idea bsica de la mmesis o imitacin de carateres, pasiones y aciones a travs
de palabras, ritmo y meloda es de claro origen platnico. Para cerciorarse uno de ello no hay
ms que revisar los siguientes pasajes de la obra del divino filsofo: Repblica 298d, 401d,
655a y 655d. [...] Dos ideas fundamentales son de innegable cuo platnico, a saber: que
la poesa es una mimesis de los hombres en accin y que los hombres dejan ver su carter
en la accin, revelando as a la postre o bien ser gente moralmente seria o de baja estofa.
Vase Platn, Repblica, 603c.. (LPEZ EIRE, 2002, notas 5 e 8, 113, 114).
267
TR I, 71
268
ejpei de pravxewv" ejsti mivmhsi", pravttetai de uJpo; tinw'n prattovntwn, ou}"
ajnavgkh poiouv" tina" ei\nai katav te to h\qo" kai th;n diavnoian (1449b 34-37). A traduo
da nossa responsabilidade. Optmos por uma traduo mais literal do texto aristotlico.
154 Martinho Tom Martins Soares
ao imitar uma ao, atravs dela, imita tambm os indivduos que agem:
A tragdia a imitao de uma ao e, atravs desta, principalmente
dos homens que atuam269. que, se por um lado, a ao depende da
qualidade dos seus carateres ou da sua maneira de ser e dos seus pensamentos
palavras por meio das quais demonstram alguma coisa ou exprimem
uma opinio (1450a 6) por outro, estes elementos esto-lhe subordinados,
pois ela que o objeto principal da mimese. Para que esta ideia fique
clara e inequvoca, o seu autor reitera-a, ainda no mesmo captulo VI:
269
ejvstin te mivmhsi" pravxew" kai; dia; tauvthn mavlista tw'n prattovntwn (1450b
3-4). Ya Platn en la Repblica (603c) se refiere a la mimtica como el arte que imita esas
aciones de los hombres que alegran o entristecen. Lo ms importante de la tragedia es el argumento
porque la mmesis en que consiste es la mmesis de una accin y porque los personajes son
accidentales. (LPEZ EIRE, 2002, nota n. 14, 117).
270
Au terme de cette double hirarchisation, laction apparat comme la partie principale,
le but vis, le principe et, si lon peut dire, lme de la tragdie (RICUR, TR I, 71).
271
Limitation ou la reprsentation est une activit mimtique en tant quelle produit
quelque chose, a savoir prcisment lagencement des faits par la mise en intrigue (ID.,
Ibid., 72).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 155
dos factos, pela correlao que Aristteles estabelece entre mimesis e mythos
(hJ mivmesi" oJ mu'qo" th'" pravxew" #estin). A instruo aristotlica consiste
na construo do mythos, o agenciamento dos factos, como o objeto da
mimesis. A poesia trgica , com efeito, um fazer, um fazer que representa
outro fazer272. Simplesmente, o fazer mimtico no efetivo ou tico,
inventado ou potico. que no interior da mimesis desenvolve-se uma
tenso entre a submisso realidade da ao humana e o trabalho criador,
que a poesia em si mesma, porque o real da referncia mimtica no
algo cristalizado e inerte, de que s seria possvel uma cpia, mas o
reino da natureza enquanto fonte dinmica e criadora, de que s h mimesis
quando tambm se cria. Por isso toda a poesis mimtica e toda a mimesis
potica273. Assim, ela mantm simultaneamente uma proximidade com
a realidade e a distncia efabuladora, que permite magnificar as aes imi-
tadas274.
272
A tragdia supe sempre uma ou vrias aes, o seu objetivo no um dado inerte,
uma deciso, um fazer, algo que interrompe o curso natural do tempo cronolgico e inicia
uma nova dimenso no mundo, a do valor, enquanto nomeadamente o referente das decises
cientficas um estado ou uma coisa (M. L. PORTOCARRERO, 2005, 63).
273
M. BATISTA PEREIRA, 1993, 428.
274
M. L. PORTOCARRERO, 2005, 64.
156 Martinho Tom Martins Soares
275
Nous trouvons donc dans ce chapitre la preuve que cest bien dans le sens dune
stylisation qu Aristote entend la mimsis, et certainement pas dans celui dune simple imitation
(113).
276
Assim, conclui Aristteles, no captulo III, se Sfocles se aproxima de Homero, por
representar indivduos nobres e virtuosos, tambm se aproxima de Aristfanes, por apresentar
as personagens como se estivessem agindo e atuando. Da resulta que alguns dizem que as
suas obras se chamam dramas por imitarem os homens em ao: oJvqen kai dravmata kalei'sqaiv
tine" aujta fasin, oJvti mimou'ntai drw'nta" (1448a 28-30).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 157
volta a ser focada num pargrafo do captulo V277. A se explica que tanto
a tragdia como a epopeia recorrem ao discurso versificado, porm, o verso
(to metron) da epopeia uniforme ou simples (aploun) e o discurso
um relato (apangelian); para alm disso, diferem na unidade de tempo
(a epopeia naturalmente muito mais extensa do que a tragdia), embora
nem sempre assim tivesse sido278. Outro fator concorre para que algumas
epopeias, com honrosa exceo dos poemas homricos, sejam consideradas
um gnero inferior tragdia, trata-se do princpio da coerncia e da unidade
estrutural, orgnica, da obra potica, que exige que toda a arte mimtica
seja uma imitao nica de uma ao nica: o enredo, como imitao
que de uma ao, deve ser de uma ao una (1451a 31).
O captulo XXVI confronta os dois gneros literrios, fazendo uma
sntese dos fatores que os separam, na tentativa de discernir qual das duas
artes melhor (beltion): Poderia perguntar-se qual das duas melhor,
a imitao pica ou trgica (1461b 26). O filsofo atribui a palma
tragdia, que em quase tudo superior epopeia. verdade que ambas
produzem o seu efeito prprio, porm, a epopeia s atravs da leitura,
a tragdia atravs da leitura ou do espetculo. A tragdia pode recorrer
aos versos da epopeia, mas a epopeia no pode recorrer msica que
se emprega nas representaes teatrais ou at a que est implcita nos
ritmos dos versos. Logo, em termos de representao como de leitura,
a tragdia revela-se superior. Depois h os critrios j referidos: a extenso
temporal a tragdia vence porque com efeito, o que mais concentrado
277
A epopeia segue de perto a tragdia por ser tambm imitao, com palavras e ajuda
de metro, de carateres virtuosos. Todavia, difere desta por ter um metro uniforme e por ser
uma narrativa. [tw/' de; to; mevtron aJplou'n ejvcein kai; ajpanggelivan ei\nai, tauvth/ diafevrousin].
Diferem ainda quanto extenso: uma esfora-se o mais possvel por durar uma s revoluo
do Sol ou demorar pouco mais, enquanto a epopeia, no tendo limite de tempo, diferente
neste aspeto. Contudo, primitivamente, procediam de igual modo nas tragdias e nas epopeias
(1449b 9-16).
278
A tragdia clssica, diferentemente da anterior, que, segundo Aristteles, era to ilimitada
no tempo de ao como a epopeia, tendia a estabelecer como espao cronolgico da ao uma
revoluo do Sol ou pouco mais. Lpez Eire diz que foi da m compreenso desta passagem
que surgiu a famosa lei da unidade de tempo que, juntamente com as outras duas a unidade
de lugar e a de ao regeram despoticamente as obras dramticas do Classicismo renascentista
(2002, nota 13, 117).
158 Martinho Tom Martins Soares
279
TR I, 76.
280
dh'lon ou\n ejk touvtwn oJvti to;n poihth;n ma'llon tw'n muvqwn ei\nai dei poihth;n h twn'
mevtrwn, oJvsw/ poihth;" kata; th;n mivmhsivn ejstin, mimei'tai de ta;" pravxei": De tudo isto resulta
evidente que o poeta deve ser um construtor de enredos mais do que de versos, uma vez que
poeta devido imitao e imita aes (1451b 26-28).
281
Cf. RICUR, 1992, 333.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 159
uma intriga to mais desenvolvida quanto mais rica for uma personagem.
Mas o Estagirita muito claro no seu pensamento: o mais importante
de um enredo a ao, qual esto sujeitas as personagens, pois a tragdia
no imitao de homens, porm, de aes. A praxis e o mythos so
o fim (teleos) da tragdia e o fim o mais importante de tudo282:
282
A teleologia aristotlica consiste na afirmao de um fim ou intencionalidade para
cada coisa, no universo. Tudo est orientado para a perfeio. Para entender rigorosamente a
Potica e toda a filosofia de Aristteles preciso partir do princpio de que s a forma (eidos)
configura a unidade da substncia, confere-lhe o seu ser prprio, a sua marca individual e permite
responder questo que substncia essa?. S ela objeto da cincia e produz satisfao
intelectual e esttica na arte e na poesia. A matria sobre a qual age a forma o limite inferior
dos seres ou das substncias, esta matria sem a forma incognoscvel, tem de se adaptar
forma. A forma s se encontra na matria, a essncia de qualquer substncia, s o Primeiro
Motor imvel (o deus aristotlico, ato puro, mas no criador, que d unidade s substncias
da natureza e do mundo) forma pura. S com o auxlio da forma a matria alcana a sua
perfeio relativa ou atinge o seu fim, a sua finalidade, ou seja, realiza a sua entelequia. A causa
formal e a causa final so idnticas no domnio da Natureza e assim a realizao da causa
formal de uma coisa natural ao mesmo tempo o cumprimento da sua finalidade ou causa
final entelequia. O fim prprio de um ser realizar a sua forma, o fim prprio do homem
ser o mais homem possvel, o fim de toda a Natureza ser o melhor possvel. Tudo tende
para a sua causa final, a Natureza tende para o bem e para o belo, nisto consiste a teleologia
aristotlica. As formas que configuram os entes e coincidem com as suas causas finais so agora
as formas aristotlicas, mas anteriormente eram as ideias de Plato, idnticas a si mesmas, princpios
imutveis do ser, descidas, segundo a nova metafsica do Estagirita, do supraceleste mundo
inteligvel a este mundo real. As ideias platnicas esto neste mundo, nas formas aristotlicas
que configuram a matria. Contudo, tambm em Aristteles, a Ideia de Bem, que se identifica
com a Ideia do Belo, continua a ser a causa suprema, final, ltima e definitiva da razo do
Universo, ou seja, o princpio teleolgico que d unidade a todas as Ideias que derivam dela;
Aristteles s as fez descer ao nosso mundo real, sensvel e emprico, fazendo-as encarnar como
formas na matria sensvel. Isto tudo para dizer que tambm a obra de arte, imagem dos
seres vivos, deve cumprir a sua entelequia: na sua elaborao a forma e a causa final do artefacto,
idnticas uma outra, tm de passar da mente do artista matria, unificando-a e proporcio-
nando-lhe assim um alto grau de coeso interna. Assim, se a natureza apresenta para cada coisa
uma unidade bem compacta, orgnica e funcional, uma forma, uma finalidade, em todas as
artes mimticas, a mimesis tem de ser de um s objeto, e, por consequncia, a tragdia imitar
uma s ao. A mesma entelequia preside Natureza e arte, as duas tendem para o bem,
para o melhor, para a tima organizao do seu material, a arte imita a Natureza e esta no
faz nada debalde nem irracionalmente (Vide LPEZ EIRE, 2002, 136, 137, 143-147).
160 Martinho Tom Martins Soares
283
Nous rencontrerons dailleurs dans la smiotique narrative contemporaine issue
de Propp des tentatives comparables celle dAristote pour reconstruire la logique narrative
partir non des personnages mais des fonctions, cest-t--dire des segments abstraits daction
(RICUR, TR I, 78).
284
La subordination du caractre laction nest donc pas une contrainte de mme nature
que les deux prcdentes, elle scelle lquivalence entre les deux expressions: reprsentation
daction et agencement des faits. Si laccent doit tre mis sur lagencement, alors limitation
ou la reprsentation doit ltre daction plutt que dhommes (ID., Ibid., 78).
285
La question qui ne nous abandonnera pas jusqu la fin de cet ouvrage est de savoir
si le paradigme dordre, caractristique de la tragdie, est susceptible dextension et de trans-
formation, au point de pouvoir sappliquer lensemble du champ narratif (ID., Ibid., 79).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 161
286
Ainsi, le muthos tragique slve comme la solution potique du paradoxe spculatif
du temps, dans la mesure mme o linvention de lordre est mise en place lexclusion de
toute caractristique temporelle (ID., Ibid., 79).
287
kei~tai dh; hJmi~n th;n tragw/divan teleiva" kai; o+vlh" rpavxew" ei\nai mivmhsin !ecouvsh"
ti mevgeqo": (1550b 23-25).
162 Martinho Tom Martins Soares
288
[...] les ides de commencement, de milieu et de fin ne sont pas prises de lexprience:
ce ne sont pas des traits de laction effective, mais des effets de lordonnance du pome (TR
I, 81).
289
Cf. LPEZ EIRE, 2002, nota n. 15, 118.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 163
Alm disso, uma coisa bela seja um animal seja toda uma ao
sendo composta de algumas partes, precisar no somente de as ter ordenadas,
mas tambm de ter uma dimenso (megethos) que no seja ao acaso: a beleza
(to kalon) consiste na dimenso (megethos) e na ordem (taksis), e, por isso,
um animal belo no poder ser demasiado pequeno (pois a viso confunde-
-se quando dura um espao impercetvel de tempo), nem demasiado grande
(a vista no abrange tudo e, assim, escapa observao de quem v a unidade
e a totalidade), como no caso de um animal que tivesse milhares de estdios
de comprimento. E assim, tal como em relao aos corpos e aos animais
necessrio que tenham uma dimenso que possa ser abrangida por um
s olhar, tambm em relao aos enredos ser necessria uma durao deter-
minada, fcil de recordar. (1450b 35-40; 1451a 1-6).
290
Vide ID., Poticas y Retricas griegas, 123.
291
Sobre a histria do critrio de beleza na arte grega, Vide ID., Ibid., 123-125.
292
Quoi quil en soit de la capacit du spectateur dembrasser luvre dune seule vue,
ce critre externe entre en composition avec une exigence interne luvre qui seule importe
ici (TR I, 81).
164 Martinho Tom Martins Soares
293
Ces notations confirment quAristote ne marque aucun intrt pour la construction
du temps susceptible dtre implique dans la construction de lintrigue (ID., Ibid., 82). Klimis
discorda desta radicalizao da oposio histria/potica, cronologia/lgica: En effet, si certaines
pratiques du mythe qui illustrent la simple contemplation du divin mettent effectivement en
jeu une forme de temporalit quon a pu qualifier de pass immmorial et quasi intemporel,
il nen va plus de mme ds que le mythe en vient parler de la naissance, du devenir, ou
des exploits des dieux ou des hros, car il reprsente alors une action dont le droulement
doit forcment avoir lallure du temps rel. Un autre argument en faveur de lide dune temporalit
luvre au sein du mythe tragique, est lindissociabilit des concepts de temps et de changement.
Or, ltendue du mythe tragique est prcisment dfinie comme la suite dvnements qui permettent
le changement de la bonne fortune au mauvais sort. La tragdie doit donc ncessairement faire
appel une certaine forme de temporalit pour pouvoir reprsenter ce passage dun terme
son contraire. On pressent toutefois que le temps tragique ne sidentifie pas au temps physique,
et quil faut maintenant tenter de dfinir leurs diffrences tout autant que leurs points communs
(32).
294
Le possible, le gnral ne sont pas chercher ailleurs que dans lagencement des
faits, puisque cest cet enchanement qui doit tre ncessaire ou vraisemblable (TR I, 84).
295
ID., Ibid., 84.
166 Martinho Tom Martins Soares
296
Penser un lien de causalit, mme entre des vnements singuliers, cest dj uni-
versaliser (ID., Ibid., 85).
297
KLIMIS, 27.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 167
298
Cette mention dun rapport de consquence des vnements semble faire rfrence
a un lien de type causal, interprtation qui serait corrobore par la distinction que fait Aristote
entre les enchanements de type tade dia tade et tade meta tade. Or, ici aussi, des imprcisions
de traduction donnent lieu une comprhension errone du texte. [] pour Aristote, le mythe
tragique doit au contraire tre ouvert limprvisible, puisque des renversements de situation
doivent toujours tre possibles. Il me semble donc plus prudent de comprendre cet enchanement
propre au tragique comme une suite o chaque action a un rsultat qui devient le moyen pour
quune autre action se produise. Il faut ainsi rflchir en termes de conditions de possibilit,
et non de causalit logique, car la ncessit interne au mythe tragique na rien dabsolu (29).
299
La combinaison des faits luvre au sein du mythe tragique peut ainsi tre qualifie
de discursive, car elle fait progresser laction pas pas, en utilisant chaque rsultat daction
comme moyen pour passer ltape suivante. Envisager cette sunthesis en termes de condition
de possibilit et non de causalit logique a en outre lavantage de permettre la comprhension
du processus en train de se raliser, plutt que dtudier a posteriori un produit achev
(ID., 31).
168 Martinho Tom Martins Soares
Cada efeito deve, efetivamente, ter como raiz uma causa interna, obe-
decendo s normas da necessidade e da verosimilhana, que qualquer poeta
deve observar para conseguir o concentrado mximo de realismo e coerncia
que convence e impressiona os espetadores. Pois h uma diferena entre
uma coisa que acontece derivada de outra (tade dia tade) e uma que sucede
depois da outra (tade meta tade), sem nexo causal ou de forma desgarrada,
como na sucesso cronolgica do relato histrico300. Uma tragdia no
um conjunto de episdios avulsos que se seguem, simplesmente, uns
aos outros. Os episdios devem estar concatenados de forma necessria
(sem excedentes, tudo deve concorrer de forma imprescindvel para o desen-
rolar da narrativa) e verosmil (tudo deve estar orquestrado de forma
plausvel, para que o espetador acredite e participe no pathos). Por isso,
Aristteles salienta, como alis o tem vindo a fazer e o far de forma
quase obsessiva ao longo deste tratado literrio, que tanto a intriga simples
como a complexa, que analisaremos mais frente, devem ser urdidas sempre
de forma orgnica, contnua e unitria, obedecendo aos princpios da neces-
sidade ou da verosimilhana [hjv ejx ajnavgkh" hjv kata; to; eijko;"]. O mythos
deve formar um todo orgnico, inteiro, completo, coeso, harmonioso, equi-
librado e coerente, pois, segundo o Estagirita, a satisfao intelectual e
esttica que a poesia proporciona deriva da perfeita disposio unitria
da sua estrutura, que deve mostrar aos olhos do curioso observador a mesma
estrutura que se deteta nas formas dos seres vivos, as quais so encarnaes
na matria das ideias platnicas301.
Em nome desta unidade e totalidade, toda a arte potica deve ser
uma imitao nica de uma ao nica. S deste modo ela capaz de
produzir prazer.
300
Cf. 1459a 21-28.
301
Lpez Eire refere que a unidade orgnica e a coeso da obra literria como princpio
medular de toda a poesia, princpio obsessivo e normativo da Potica, tem como precedentes
a filosofia platnica e alguns tratados sofistas. Este axioma consiste na reunio equilibrada,
proporcional e simtrica de todas as partes (sstasis) do argumento num todo unitrio, tendo
como base os princpios da necessidade e da verosimilhana, o que leva a excluir da tragdia
o irracional, o fortuito e o desnecessariamente malvolo (2002, 138-139).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 169
ao, deve ser de uma ao una, que seja um todo, e que as partes dos
acontecimentos se estruturem de tal modo que, ao deslocar-se ou suprimir-
-se uma parte, o todo fique alterado e desordenado. Realmente aquilo cuja
presena ou ausncia passa despercebida no parte de um todo (1451a
30-35)302.
302
Unicit et totalit sont ainsi les deux caractristiques principales de laction tragique
et de sa reprsentation au sein du mythe, car pour Aristote de mme que dans les autres arts
de reprsentation, lunit de la reprsentation provient de lunit de lobject, de mme le mythe,
qui est reprsentation daction, doit ltre dune action une et qui forme un tout (KLIMIS,
53).
303
Es la accin y no el hroe o protagonista lo que da unidad a la obra potica. La
unidad de accin es el principio fundamental de la obra potica, sea esta epopeya o tragedia
(LPEZ EIRE, 2002, nota n. 16, 118).
304
La sorte duniversalit que comporte lintrigue drive de son ordonnance, laquelle
fait sa compltude et sa totalit (RICUR, TR I, 85).
305
Les universaux que lintrigue engendre ne sont pas des ides platoniciennes. Ce sont
des universaux parents de la sagesse pratique, donc de lthique et de la politique (ID., Ibid.,
85). Esta observao de Ricur parece ir contra o que temos dito at aqui com base no estudo
de Lpez Eire, que identifica os universais representados no mythos com as ideias ou as formas
platnicas. No entanto, no nosso entender, esta afirmao de Ricur apenas corrobora o que
j dissemos acerca da mundiviso filosfica que separa Plato e Aristteles. De facto, o filsofo
170 Martinho Tom Martins Soares
francs parece querer reafirmar que a narrativa no se ocupa das formas inimitveis e inacessveis
ao sentido esttico e criativo do ser humano, mas representa a realidade social quotidiana, aquela
na qual estamos inseridos e que faz parte do nosso conhecimento prtico tico-poltico. Segundo
Aristteles, neste contexto que se encontram os universais filosficos e no no inalcanvel
ultramundo platnico. As ideias de Bem e de Belo no esto fora do nosso alcance, mas
esto presentes na prpria ao humana. Cames exprime esta mesma convico com a bela
alegoria da Ilha dos Amores, onde at mesmo o desventurado Leonardo, depois de muito correr,
alcana a magnfica ninfa Efire, exemplo de beleza. A parede que, segundo Petrarca, cons-
tantemente se erguia entre a espiga e a mo, fica assim derrubada (cf. Cames, Lusadas, IX,
75-82).
306
Composer lintrigue, cest dj faire surgir lintelligible de laccidentel, luniversel
du singulier, le ncessaire ou le vraisemblable de lpisodique (TR I, 85).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 171
307
Le modle tragique nest pas purement un modle de concordance, mais de concordance
discordante. Cest par l quil offre un vis--vis la distentio animi (TR I, 86). A propsito
da importncia destes elementos discordantes para a progresso da narrativa, sublinhe-se que
uma das caractersticas que permite que um acontecimento possa ser um componente da narrativa
o facto de ele criar um efeito de rutura na sequncia, produzindo uma verdadeira progresso
na continuidade da histria. Sem esta novidade a narrativa no poderia progredir, logo a atividade
de ordenao e configurao do mythos trgico consiste, j segundo o Estagirita, na descrio
das inverses da fortuna em infortnio. A ordem de comeo, meio e fim, criada pela intriga,
sempre marcada pela discordncia concordante (sempre falhada pela racionalidade narratolgica
de tipo estrutural) que, para ser entendida leva tempo, logo s pode ser temporal (M. L. POR-
TOCARRERO, 2005, 64).
308
Ds lors, il semble vident que la tragdie complexe constitue le type idal de
la tragdie pour Aristote. Etant donn que la priptie et la reconnaissance constituent ses carac-
tristiques essentielles [... car elles sont] les articulations combinatoires sans lesquelles le mythe
tragique ne pourrait pas exister (KLIMIS, 48).
172 Martinho Tom Martins Soares
309
ID., 49.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 173
de sinais materiais ou fsicos rejeitado pela arte potica, pois este tipo
de reconhecimento depende do espetculo para se concretizar e no est
articulado com o encadeamento das aes no seio do texto. O reconhecimento
construdo no prprio texto o mais valorizado por Aristteles, pois esse
obriga a um processo intelectual por parte das personagens e por parte
do pblico: a personagem faz apelo memria e reconhece outrem que
provoca um abalo na ao e lhe inverte o curso; ao nvel externo, do impacto
do texto sobre o pblico, este deve reconhecer e efetuar um raciocnio
para compreender a mudana trgica da situao que presencia e que lhe
afeta as emoes. Deste modo, lcito concluir que Aristteles coloca este
reconhecimento resultante de uma recordao, interno prpria intriga,
numa relao direta com o outro reconhecimento suscitador de prazer inte-
lectual no recetor, quando este compara as imitaes com o modelo310.
Ainda dentro do mythos, esclarece Aristteles, no mesmo captulo
XI, o reconhecimento entre indivduos pode ocorrer de duas formas: ou
s um que reconhece o outro, quando evidente quem o outro, ou
ambos reconhecem-se mutuamente.
J no fim do captulo, o Estagirita aborda muito sucintamente o pathos,
a terceira caracterstica de uma intriga complexa, dizendo somente que
uma ao destrutiva ou dolorosa, como, por exemplo, a morte em cena,
as dores extremas, feridas e outros tantos factos similares, que decorrem
diretamente da peripcia e do reconhecimento. O termo grego pathos designa
habitualmente a esfera das emoes do homem, tanto positivas como nega-
tivas, de acordo com a informao expressa na tica a Nicmaco, B, 4.
Por esta dupla valncia se entende a incluso do pathos no prazer suscitado
pela tragdia. Com efeito, o pathos tanto o responsvel pela katharsis,
pois provoca, nos espetadores, compaixo e temor, dois elementos fun-
damentais na definio de tragdia, como pode ser a expresso do sofrimento
dos protagonistas. Existem duas maneiras de suscitar a emoo trgica:
ou recorrendo aos meios internos do prprio mythos, produzindo atravs
310
Cf. ID., 41-45. Enfin, au niveau de la rdaction du mythe, le pote doit faire travailler
conjointement son imagination et son intellect pour trouver le meilleur renversement de situation
possible, cest--dire celui qui soit le plus apte surprendre le public, tout en tant articul
lenchanement du texte selon le ncessaire ou le vraisemblable (ID., 45).
174 Martinho Tom Martins Soares
311
46. Vide ID., 45-47.
312
[] seule la tragdie complexe rpond aux critres de lart potique: nous avons
vu que le spectacle et lacte pathtique quil peut gnrer ne sont pas considrs par Aristote
comme appartenant lart potique, mais quils sont plutt affaire de mise en scne
(ID., 48).
313
La discordance premire, ds lors, ce sont les incidents effrayants et pitoyables. Ils
constituent la menace majeure pour la cohrence de lintrigue (TR I, 87).
314
letra: uns por causa dos outros.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 175
315
RICUR, TR I, 88.
316
Mais nous atteignons le cur de la concordance discordante, encore commune aux
intrigues simples et complexes, avec le phnomne central de laction tragique quAristote
dnomme renversement (metabol) (TR I, 88).
317
Aristote fait ainsi du renversement la clef de vote de processus de sunthesis tn
pragmatn, parvenant par l linsrer dans la continuit univoque du droulement de laction
tragique (50).
176 Martinho Tom Martins Soares
318
ID., 50-51.
319
Les renversements caractristiques de lintrigue complexe sont, comme il est bien
connu, le coup de thtre (pripteia) (selon lhereuse trouvaille des derniers traducteurs franais)
et la reconnaissance (anagnrisis), quoi il faut ajouter leffet violent (pathos) (TR I, 88).
320
Mais cest cette force du modle que toute thorie de la narrativit semploie prserver
par dautres moyens que ceux du genre tragique. A cet gard, on peut se demander si lon
ne sortirait pas du narratif si lon abandonnait la contrainte majeure que constitue le renversement,
pris dans sa dfinition la plus large, celui qui inverse leffet des actions (52a 22) (TR
I, 89).
321
TR I, 90.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 177
322
A palavra grega hamartia, normalmente traduzida por erro, cognata do substantivo
abstrato hamartema e do verbo hamartano, que aparece documentado na Ilada com o sentido
de errar o alvo. Contudo, este vocbulo tem tido vrias interpretaes ao longo dos sculos,
dando azo a artigos e at a livros. Por motivos bvios, no vamos aqui fazer uma exposio
das suas vrias acees. No entanto, para um estudo aprofundado do termo, aconselhamos a
obra de Jan Bremer, Hamartia, totalmente dedicada aos vrios significados do lexema; a traduo
da Potica e respetivos comentrios da autoria de Lucas; a introduo de M. H. Rocha Pereira
traduo da Potica, editada pela Fundao Calouste Gulbenkian; e o artigo M. C. FIALHO,
Algumas consideraes sobre o Homem trgico: Biblos, 1977. A partir das vrias ocorrncias
da palavra na Potica, pode verificar-se que hamartia e hamartema podiam ser usados em
relao a qualquer ao cujo resultado falhou, e que podiam abranger igualmente erro e
crime (M. H. ROCHA PEREIRA, 25. As expresses entre so citadas pela autora a partir
de Lucas, 1968, 300). Na tica a Nicmaco (V 1135b 16-25) o Estagirita apresenta trs conceitos
afins: hamartema, que significa erro, no sentido lato; athychema, falta involuntria; e adikema,
injustia. Assim, na tragdia, a hamartia uma certa forma profunda de ignorncia que conduz
a consequncias desastrosas sem subverter a integridade moral do heri trgico (M. H. ROCHA
PEREIRA, 26). Por isso, convm esclarecer, hamartia no culpa, nem dor, nem erro, mas
incapacidade de atingir o alvo, incapacidade do Homem de coincidir com os seus prprios fins,
o que o transformaria de mortal em deus; hamartia a prpria limitao constitucional do
Homem finitude que pode englobar culpa, dor ou erro (ou ser atualizada numa dessas
vrias formas) mas que as ultrapassa para significar um dos aspetos da prpria condio humana
(M. C. FIALHO, 1976, 384).
323
A essncia do trgico reside exatamente na fragilidade e finitude da condio humana,
as quais ocasionam a hamartia. A partir do momento em que o Homem fosse perfeito, anu-
lar-se-ia a sua condio e a possibilidade de se gerar um conflito trgico. De igual modo, comenta
M. C. FIALHO (1976, 382), se a modificao se operasse apenas a nvel de fico dramtica,
cessaria a possibilidade de comunicao espetador-tragdia, j que entre aquele e as personagens
envolvidas nesta (que o deixaria de ser, por sua vez) cessaria a possibilidade de uma linguagem
comum, de uma experincia comum. Para que a tragdia possa existir, possa atingir o seu
efeito prprio e produzir prazer intelectual, adveniente do reconhecimento, fundamental que
represente aes de seres finitos e contingentes, presos entre a precariedade e a realizao absoluta.
Esta exigncia faz da hamartia o cerne da prpria tragdia, porque cerne da prpria condio
humana (as expresses entre so retiradas de M. C. FIALHO, 1976, 387).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 179
324
No obstante, Klimis adverte que Aristteles no pretende fazer resultar o prazer esttico
de uma simpatia (sympathein) nem de uma empatia, papel que cabe msica, mas de um
reconhecimento, porque a tragdia, ao invs da msica, est submetida a um desvio pela synthesis
ton pragmaton, que necessita de um esforo de raciocnio por parte dos espetadores, a fim
de que estes sejam afetados pelas emoes mediatizadas pela reflexo (cf. 123).
325
A tragdia a imitao de uma ao elevada e completa, dotada de extenso, [...]
que se serve da ao e no da narrao e que, por meio da compaixo e do temor, provoca
a purificao [katharsis]de tais paixes (1449b 26-27).
326
Cest la composition de lintrigue qui pure les motions, en portant les incidents
pitoyables et effrayants la reprsentation, et ce sont des motions pures qui rglent le dis-
cernement du tragique (TR I, 92).
327
Dans la Potique, nous avons vu quil affirme clairement que cest lenchanement
des faits qui doit susciter les motions du public. Le mythe tragique le plus russi sera donc
celui qui parviendra toucher le pathos par sa seule structure interne. [...] Lefficacit du mythe
sera donc optimale si la frayeur et la piti naissent de la combinaison des faits et pas du
spectacle (KLIMIS, 17-18).
328
TR I, 92.
180 Martinho Tom Martins Soares
329
En ce sens, le terme aristotlicien de mimsis est lemblme de ce dcrochage qui,
pour employer un vocabulaire qui est aujourdhui le ntre, instaure la littrarit de luvre
littraire (Ibid., 93).
330
Ibid., 93.
331
[...] la potique transpose en pome lagir et le ptir humains (ID., Ibid., 94).
332
1993, 437.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 181
333
Ricur l no seu Temps et rcit trs nveis de mimese o do poeta criador, em
consonncia com a dinmica potica da prpria natureza, o da mimese no mythos de aes
humanas, o da apropriao do espetador-ouvinte, de acordo com a abertura determinada pela
sua prpria temporalidade, sendo o prazer sentido neste ltimo nvel o do reconhecimento do
que se deixa imitar na fico narrativa prazer que assume, na tragdia, a modalidade de
catarse. Ora a catarse decorre do efeito conjugado de duas emoes, eleos kai phobos (compaixo
e temor), que marcam, utilizando expresso e conceito ricurianos, a mimese III (a projeo/apro-
priao mimtica do espctador em relao narrativa trgica) (M. C. FIALHO, 2003, 132-
-133).
334
Jespre montrer quelle [la activit mimtique] tire son intelligibilit de sa fonction
de mdiation, qui est de conduire de lamont du texte laval du texte par son pouvoir de
refiguration (TR I, 94).
335
Fica o salto imaginrio da atividade mimtica enquadrado, maneira de um rio,
entre a operao de pr-compreenso a montante e a atividade de receo e apropriao da
obra potica pelo mundo do espetador ou leitor a jusante (M. BATISTA PEREIRA, 1993,
437).
182 Martinho Tom Martins Soares
336
TR I, 95.
337
Uma vez que quem imita representa os homens em ao, foroso que estes sejam
bons ou maus (os carateres quase sempre se distribuem por estas categorias, isto , todos distinguem
os carateres pelo vcio e pela virtude) e melhores do que ns ou piores ou tal e qual somos,
como fazem os pintores [...] tambm a tragdia se distingue da comdia neste aspeto: esta quer
representar os homens inferiores, aquela superiores aos da realidade (1448a 1-4; 16-18).
338
Como a tragdia a imitao de uma ao e realizada pela atuao de algumas
pessoas que, necessariamente, so diferentes no carter e no pensamento ( atravs disto que
classificamos as aes [so duas as causas das aes: o pensamento e o carter] e por causa
destas aes que todos vencem ou fracassam), o enredo a imitao da ao, entendendo aqui
por enredo a estruturao dos acontecimentos, enquanto os carateres so o que nos permite
dizer que as pessoas que agem tm certas qualidades [] (1449b 36 1450a 8).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 183
339
Bref, pour que lon puisse parler de dplacement mimtique, de transposition
quasi mtaphorique de ltique la potique, il faut concevoir lactivit mimtique comme lien
et non pas seulement comme coupure (TR I, 96).
340
Ibid., 96.
341
M. BATISTA PEREIRA, 1993, 438.
184 Martinho Tom Martins Soares
pois nada impede que alguns factos que realmente aconteceram sejam
possveis e verosmeis e nessa medida que ele o seu poeta (1451b
29-32).
342
A Potica e a Retrica constituem as duas nicas tekhnai de Aristteles que chegaram
at ns, da que haja vantagem em confront-las. Dans chacun de ces traits, Aristote tente
en effet dlaborer un cadre conceptuel de rgles relativement souples, permettant au pote et
au rhteur de toucher le pathos de leur auditoire. Pourtant, le telos de ces deux tekhnai est
tout fait diffrent. La Rhtorique est tout entire subordonne la persuasion (peiqwv) et
ladhsion (pivsti"). Le bon orateur se doit de convaincre son auditoire, quil sagisse dune
assemble judiciaire ou tout simplement dliberative. [...] La Potique vise quant elle luniversel,
et ne doit pas persuader son public au sens dinduire chez tous une comprhension univoque
du sens prcis donn par le pote son uvre. Elle doit au contraire provoquer un sentiment
de frayeur et de piti la base dun processus dinterprtation et de rflexion sur la condition
humaine variant dun spectateur lautre. Cette prtension universalisante va donc de pair avec
un tout autre type de persuasion que la rhtorique: laction pure et stylise que le spectateur
a sous les yeux doit lui paratre suffisament vraisemblable (et donc convaincante) pour quil
se laisse prendre aux rebondissements de lintrigue et en prouve un plaisir n de la frayeur
et de la piti. Mais le plus intressant pour notre propos est de constater que dans les deux
cas, cest par lintermdiaire dun discours structur discursivement comme une argumentation
que le pathos du public doit tre touch (KLIMIS, 17). Opinio semelhante tem Lpez Eire,
cf. Poticas y Retricas griegas, 127.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 185
343
TR I, 98.
344
Poticas y Retricas griegas, 125.
345
ID., Ibid., 125.
186 Martinho Tom Martins Soares
346
Cada tipo de poesa posee su fin y su efecto propios. La tragedia tiene por funcin
producir placer a travs de la mmesis o la imitacin de aciones que suscitan en el espectador
compasin y terror, y, en consecuencia tiene una estructura determinada que se adapta perfectamente
a esa finalidad y ese pretendido objeto (LPEZ EIRE, 2002, nota 1, 112). Klimis reitera a
mesma ideia: on peut finalement constater que dans les trois cas envisags par Aristote (trame
gnrale, caractres, relations entre les actants), les motions du public sont provoques grce
deux lments: la dviance, lcart par rapport ce qui serait logiquement attendu, ainsi
que la runion dopposs (homme juste victime dune mauvaise fortune, hostilit au cur
dalliances) (67).
347
Ds lors, toutes les amorces de mimsis III dans le texte dAristote sont relatives
ce plaisir propre et aux conditions de sa production (TR I, 98).
348
Assim, pegando nas palavras de M. C. FIALHO, legtimo reconhecer que pela
abertura cognitiva, viabilizada pela conjugao daquelas duas emoes [compaixo e temor],
que o homem apreende, na transposio criadora feita para um particular que a narrativa
ficcional, o universal que o toca como possibilidade de acontecer, no tempo nico da sua existncia
de indivduo, irmanado, contudo, pela sua natureza de homem, com o tecedor de narrativas
e com todos aqueles que, consigo, delas se apropriam (2003, 133).
349
Ricur, ao defender a existncia de trs mimeses (uma a montante ou ponto de partida,
outra a jusante ou ponto de chegada e a unir estas duas a mimese II, intermediria que, pela
sua funo de corte, abre o mundo da composio potica e institui a literariedade de uma
obra literria) vai contra a teoria da semitica do texto que estabelece a cincia do texto apenas
sobre a abstrao da mimese II, considerando unicamente as leis internas da obra literria sem
considerao pela mimese I nem pela mimese III, ou seja, pelo autor, pelo contexto, pelo leitor.
Contudo, uma hermenutica do texto no pode ignorar o facto de toda a obra assentar sur
le fond opaque du vivre, de lagir et du souffrir, pour tre donne par un auteur un lecteur
qui la reoit et ainsi change son agir. Pour une smiotique, le seul concept opratoire reste
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 187
1.3.1A katharsis
354
Mais lorsque limpossible figure extreme du discordant menace la structure,
nest-ce pas le persuasif qui devient la mesure de limpossible acceptable? (TR I, 100).
355
essa posio chave da katharsis, na flexo da ao mimada pelo drama e do mundo
prxico do espetador, que tornar possvel o seu reemprego na escala de uma esttica da receo.
Assim, o terceiro termo de nosso ternrio revela ser, paradoxalmente, ao mesmo tempo o mais
dependente das obrigaes limitativas do gnero trgico (as paixes purificadas continuam sendo
a piedade e o terror) e o mais aberto para uma retomada, na qual a aisthesis desdobraria a
capacidade de aplicao da katharsis muito alm das duas paixes trgicas (RICUR, 1992,
334).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 189
356
Vide M. H. ROCHA PEREIRA, 13 et passim.
357
Sobre as principais tendncias interpretativas do termo ao longo dos tempos, Vide
KLIMIS, 132-150. Relativamente s diferenas entre a catarse musical e a trgica, a mesma
autora, na pgina 144, diz que a katharsis musical age diretamente ao nvel do pathos, e est
muito prxima da purgao fsica com a qual pode ser comparada. Ao contrrio, a katharsis
trgica toca o corpo pthico do seu pblico por intermdio do texto, o qual implica uma operao
de reflexo por parte dos espetadores. A reflexo torna-se assim a condio de possibilidade
da impresso afetiva. Klimis entende, por isso, a catarse trgica como uma forma sublimada
da catarse musical, porque consegue tocar o pathos do pblico recorrendo exclusivamente ao
encadeamento discursivo, sem precisar de uma figurao corporal.
190 Martinho Tom Martins Soares
358
KLIMIS, 137.
359
[] ora, o que distingue a purgao potica de uma purgao literal, no sentido
mdico ou mstico, seno o facto de que ela obra da compreenso do mythos? Ela vale ento
elucidao, esclarecimento do terror e da piedade, ou, como arrisco-me a dizer, metaforizao
dessas paixes (RICUR, 1992, 334). Este passo leva M. Batista Pereira a comentar que
a katharsis no menos fictcia que a mimesis e o mythos, pois a compreenso sentida
da fbula, que purifica as paixes (1993, 430).
360
Cf. KLIMIS, 141.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 191
361
69; cf. ID., 68-70.
192 Martinho Tom Martins Soares
362
A katharsis a possibilidade de a intriga produzir um efeito (potico) purificador
das paixes do espetador ou leitor, atuando ao nvel das emoes de terror e piedade. A praxis
pertence aos dois domnios da tica e da potica e a atividade potica que atravs da katharsis
opera como que uma transfigurao da praxis tica. A intriga transforma pela sua coerncia
o caos dos incidentes absurdos, integrando-os em universais verosmeis, que purificam as paixes
pelo modo como reativam traos temporais bsicos da ao humana. Esta pertence por sua
vez por meio da intriga, ao domnio da tica e simultaneamente ao mbito do imaginrio, onde
encontra a ordem que permite distingui-la do reino do irracional ou dos acontecimentos esparsos.
A katharsis funciona como efeito da obra, uma purgao (potica) de paixes, isto , como
uma trasfigurao do tico pelo potico ou, ainda, em linguagem ricuriana, como um alargamento
dos quadros ticos e simblicos do nosso horizonte de compreenso da praxis (nos seus valores
fundamentais). A praxis em Aristteles, no o esqueamos, pertence simultaneamente ao domnio
tico e ao mbito potico. Da que o mythos se situe na charneira do terico e do prtico
e nos interpele: ele gera tramas e figuras, que enriquecem a nossa condio temporal de agentes,
pela possibilidade de identificao que oferecem (M. L. PORTOCARRERO, 2005, 65).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 193
Nesse sentido, a mimesis III de Ricur ainda vai muito mais alm,
focando o mundo que a obra literria desenrola diante do leitor e do
qual este se apropria. Como veremos a seu tempo, o eixo principal da
teoria ricuriana acerca do ponto de chegada da obra literria passa, ine-
vitavelmente, pela relao entre narrativa e cultura. verdade que Aristteles
no fez incurses nestes campos, mas, segundo o filsofo francs, legou-
-nos o espetador ideal, e ainda melhor, o leitor ideal: son intelligence,
ses motions pures, son plaisir, la jonction de luvre et de la culture
que celle-ci cre363.
363
TR I, 104.
CAPTULO III
A DIALTICA TEMPO-NARRATIVA
364
TR I, 105.
365
na estrutura narrativa do discurso que deve ser procurada a inteligibilidade do
tempo, uma vez que nesta se exprime afinal o mistrio da dimenso no objetivvel da experincia
humana, na sua relao mais originria com o mundo (M. L. PORTOCARRERO, 2005, 58).
366
Comment parlerions-nous dune qualit narrative de lexprience, comment pourrions-
nous parler de celle-ci comme dune histoire ltat naissant puisque nous navons pas daccs
aux drames temporels de la vie humaine en dehors des histoires son sujet par dautres ou
par nous-mmes? (1982, 12).
196 Martinho Tom Martins Soares
367
O exemplo agostiniano da recitao de um salmo, que pe em evidncia, simultaneamente,
o paradoxo do tempo e a forma como ele se torna inteligvel e produtivo nos atos do discurso,
fornece ao filsofo francs o ponto de partida para o seu trabalho em torno da reciprocidade
entre tempo e narrativa. Como o prprio admite em Entre temps et rcit: Concorde/Discorde,
lanalyse dAugustin fraye la voie la considration de lactivit narrative, en tant que solution
potique du paradoxe spculatif, par son choix mme de lexemple de la rcitation dun pome.
Lexemple contient la fois lexposition du paradoxe et la manire dont il est rendu intelligible
et, si lon peut dire, productif au plan des actes de discours. La rcitation la fois rvle
et surpasse le paradoxe, dans la mesure o elle-mme comporte la fois intention et distention
(1982, 6).
368
Cf. TR I, 105.
369
Faltou a Aristteles o confronto de mythos com o tempo, em que o narrativo surgisse
como o guardio do tempo e a fico fosse o instrumento de explorao de modos possveis
de temporalizao, que escapam linearidade do tempo cronolgico (M. BATISTA PEREIRA,
1993, 430).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 197
370
Sublinhamos o motivo de interesse desta apropriao de Ricur: [] justamente
a unio da fico e da ordem na mesma operao, a poiesis do poema, o motivo do interesse
de Ricur pela Potica, j que ela reflete e resolve, de maneira potica, o paradoxo do tempo
(M. L. PORTOCARRERO 2005, 61). Esta unio da fico e da ordem referida pelo prprio
filsofo: ce qui est en jeu, en effet, cest lunion de la fiction et de lordre au sein dune
seule et mme opration (1982, 6).
371
M. L. PORTOCARRERO, 2005, 61. De facto, a intriga tem a virtude de fazer a
mediao entre eventos ou incidentes isolados e uma histria tomada como um todo. Servindo
para conjugar acontecimentos episdicos com uma histria inteligvel, a intriga fornece uma
soluo potica ao paradoxo do tempo. este ato que Ricur designa com a expresso extrair
uma figura de uma sucesso (Cf. 1982, 7). Tambm M. Batista Pereira assinala esta perspetiva
ao dizer que toda a narrao combina, em propores variveis, duas dimenses, a cronolgica
e a no-cronolgica, a episdica e a configurativa, construindo totalidades significantes a partir
de acontecimentos dispersos (1993, 433).
198 Martinho Tom Martins Soares
372
M. Batista Pereira, leitor de Ricur, justifica esta dupla vertente de submisso e rutura
criadora da construo potica em relao ao real, por esta atividade no constituir apenas uma
simples cpia mas sim uma criao dinmica ordenada de uma histria que conta factos que
poderiam ter acontecido. Na ordem e organizao do mito consiste a construo ou criao
potica, que se chama mimesis e, por isso, o que se diz imitar, composto e construdo como
algo, que poderia ter acontecido e no uma mera reduplicao da realidade. Diz, ento, o
autor que se desenvolve no interior da atividade de composio uma tenso entre a submisso
realidade da ao humana e o trabalho criador, que a poesia em si mesma, porque o real
da referncia mimtica no algo cristalizado e inerte, de que s seria possvel uma cpia,
mas o reino da natureza enquanto fonte dinmica e criadora, de que s h mimesis, quando
tambm se cria (1993, 428). E, mais adiante, acrescenta: [] a mimesis s imita criativamente
mediante a distncia criada pela fico; o mythos s narrado ou representado sob a condio
da funo efabuladora, que faz da literatura um imenso laboratrio e experincias de pensamento,
onde se ensaiam as mltiplas formas de combinar felicidade e infelicidade, bem e mal, vida
e morte (ID., Ibid., 429-430).
373
TR I, 94. Vide supra nota 349.
374
TR I, 107.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 199
375
Ibid., 108. Neste processo concreto, a prefigurao do campo prtico do nosso quo-
tidiano, mediante a configurao textual, termina na refigurao operada numa receo da obra
aberta ao mundo (M. BATISTA PEREIRA, 1993, 438-439).
376
Cest en construisant le rapport entre les trois modes mimtiques que je constitue
la mdiation entre temps et rcit. Cest cette mdiation mme qui passe par les trois phases
de la mimsis (RICUR, TR I, 107).
377
Cf., Ibid., 91.
378
M. L. PORTOCARRERO, 2005, 66.
200 Martinho Tom Martins Soares
no vive para a sua prpria glria visa, pelo contrrio, em todos os seus
usos, trazer linguagem uma maneira de habitar e estar no mundo que
o precede e pede para ser dita379. Representar um acontecimento humano
, em primeiro lugar, compreender o que nele ocorre, nomeadamente, a
sua semntica, os seus smbolos e a temporalidade inerente. A composio
da intriga e a mimtica textual ou literria que ela implica ergue-se sobre
esta pr-compreenso da referncia a montante. que se, de facto, s
por meio da estrutura simblica e narrativa da palavra humana podemos
aceder ao homem capaz na sua dimenso histrica, tica e institucional380,
essas mesmas dimenses semnticas e simblicas j prefiguradas na ao
humana devem ser configuradas na narrativa, antes de serem refiguradas
pelo leitor. Isto significa que a atividade de configurao ou mimesis II
efetua a mediao entre um estado pr-narrativo, j constitudo por uma
rede de smbolos e um mundo pblico, o do leitor, passvel de ser trans-
formado pela configurao inovadora da narrativa.
O poeta, sendo tambm agente temporal, encontra no campo da praxis
uma ordenao implcita, uma forma primitiva de narratividade, constituda
por um grupo de estruturas temporais e pressupostos reguladores de relaes
que lhe permitem provocar a novidade e a emoo por meio da transgresso
operada pela novidade da fbula. Sem o seu enraizamento no seio de tais
pressupostos a histria no faria sentido pois no evocaria qualquer fami-
liaridade com a nossa experincia quotidiana381.
Assim, algumas competncias so exigidas ao construtor de intrigas
ou poeta, lato sensu: uma vez que toda a narrativa imitao de uma
ao, ele deve, primeiramente, ser capaz de identificar a ao pelos seus
traos estruturais; em segundo, para que uma ao possa ser narrada com
sentido e de modo articulado, preciso identificar o que Ricur designa
de mediaes simblicas (mdiations symboliques)382 da ao, ou seja, arti-
culaes simblicas da ao, portadoras de carateres temporais que permitem
a sua narrao. Em suma, para que possa haver narrao, o poeta deve
379
ID., Ibid., 66.
380
ID., Ibid., 60.
381
ID., Ibid., 67.
382
TR I, 108.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 201
383
Sem o enraizamento numa pr-compreenso do mundo da ao, que implique o conhe-
cimento espontneo das suas estruturas inteligveis, das suas mediaes simblicas e do seu
carter temporal, no se pode compor qualquer intriga, apesar da fora criadora do gnio potico
(M. BATISTA PEREIRA, 1993, 439). J Cames, na senda do classicismo renascentista, quando
se propunha redigir a epopeia dOs Lusadas, dizia apoiar-se no s no engenho mas tambm
arte, pois tinha conscincia que o fero engenho sem arte que o domestique insuficiente. A
arte no se cinge unicamente ao domnio das estruturas discursivo-gramaticais mas tambm
ao conhecimento do mundo da ao e dos seus traos inteligveis, simblicos e temporais.
384
Les actions ont encore des agents qui font et peuvent faire des choses qui ont tenues
pour leur uvre, ou, comme on dit en franais, pour leur fait: en consquence, ces agents
peuvent tre tenus pour responsables de certaines consquences de leurs actions (RICUR,
TR I, 109).
385
Nous comprenons aussi que ces agents agissent et souffrent dans des circonstances
quils nont pas produites et qui nanmoins appartiennent au champ pratique, en tant prcisment
quelles circonscrivent leur intervention dagents historiques dans le cours des vnements
physiques et quelles offrent leur action des occasions favorables ou dfavorables (ID., Ibid.,
110).
202 Martinho Tom Martins Soares
386
Ibid.
387
Matriser le rseau conceptuel dans son ensemble, et chaque terme titre de membre
de lensemble, cest avoir la comptence quon peut appeler comprhension pratique (Ibid.).
388
Lintrigue, entendue au sens large qui a t le ntre dans le chapitre prcdent,
savoir lagencement des faits (et donc lenchanement des phrases daction) dans laction totale
constitutive de lhistoire raconte, est lquivalent littraire de lordre syntagmatique que le rcit
introduit dans le champ pratique (RICUR, TR I, 112).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 203
389
Ibid.
390
Cf. Ibid., 113.
391
ID., Ibid.
392
M. BATISTA PEREIRA, 1993, 439.
393
TR I, 113.
204 Martinho Tom Martins Soares
394
Le mot symbole y est pris dans une acception quon peut dire moyenne, mi-chemin
de son identification une simple notation [] et de son identification aux expressions double
sens selon le modle de la mtaphore, voire des significations caches, accessibles seulement
un savoir sotrique. Entre une acception trop pauvre et une acception trop riche, jai opt
pour un usage voisin de celui de Cassirer, dans la Philosophie des Formes symboliques, dans
la mesure o, pour celui-ci, les formes symboliques sont des processus culturels qui articulent
lexprience entire (TR I, 113). No contexto da via longa da hermenutica ricuriana,
M. L. Portocarrero descreve o smbolo em termos de duplo sentido e de ambivalncia lingustica,
nomeao de um inominvel que, rompendo os limites da linguagem unvoca habitual, demanda
apesar de tudo a experincia da comunicao e da palavra partilhada. So as expresses ambguas
e simblicas da autocompreenso originria que o homem tem de si [ que nos do acesso]
s experincias ontolgicas mais radicais da condio humana, aquelas que o pensamento por
conceitos e a sua linguagem unvoca deixam escapar (2002, 48).
395
TR I, 114.
396
Un systme symbolique fournit ainsi un contexte de description pour des actions
particulires (ID., Ibid., 114).
397
Ibid., 115.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 205
398
Ibid., 116.
206 Martinho Tom Martins Soares
399
Ibid., 118.
400
Ce qui importe, cest la manire dont la praxis quotidienne ordonne lun par rapport
lautre le prsent du futur, le prsent du pass, le prsent du prsent. Car cest cette articulation
pratique qui constitue le plus lmentaire inducteur du rcit (Ibid., 119).
401
Cf. M. BATISTA PEREIRA, 1993, 440.
402
ID., Ibid.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 207
403
Ibid.
404
TR I, 122.
405
Vide Ibid., 122.
406
Cest sur le socle de lintratemporalit que sdifieront conjointement les configurations
narratives et les formes plus labores de temporalit qui leur correspondent (RICUR, TR
I, 124-125).
407
M. L. PORTOCARRERO, 2005, 67.
208 Martinho Tom Martins Soares
408
RICUR, TR I, 126-127.
409
Ibid., 127 e ss.
410
Ibid., 127. Cf. etiam RICUR, 1982, 6-7.
411
Cf. RICUR, TR I, 128.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 209
412
Ils sont pourtant directement impliqus dans le dynamisme constitutif de la configuration
narrative. Ce faisant, ils donnent son sens plein au concept de concordance-discordance du chapitre
prcdent (ID., Ibid.).
413
A pertinncia desta dupla estrutura temporal da narrativa resulta da inscrio dos acon-
tecimentos do mundo no tempo do discurso, inscrio esta que se rege pelo nexo da probabilidade
e da verosimilhana, para a criao de universais poticos. Pela sua estrutura episdica, o
tempo narrativo faz referncia ao tempo em que os acontecimentos se desenrolam ou poderiam
desenrolar, isto , ao tempo do mundo; mas por outro lado toda a narrativa constri uma nova
pertinncia semntica ao inscrever os acontecimentos no tempo do discurso. E isto implica uma
estruturao qualitativa do tempo segundo a lgica do que provvel: a intriga gera universais
poticos, isto , possveis, porque nela os episdios seguem-se no um aps o outro, mas
um por causa do outro. Este nexo causal no agora o nexo necessrio da lgica, mas um
nexo verosmil. A intriga produz categorias verosmeis, quando a estrutura repousa sobre o nexo
interno e no sobre acidentes externos. Ento, compor intrigas fazer surgir universais poticos,
o que significa que a atividade potica se caracteriza no por ver o universal, mas por faz-
-lo surgir (M. L. PORTOCARRERO 2005, 65).
414
Ao extrair da sucesso uma figura, o ato potico revela ao ouvinte ou leitor a fora
criadora de uma totalidade significante capaz de ser seguida como histria, que no abstrata
nem linear (M. BATISTA PEREIRA, 1993, 442).
210 Martinho Tom Martins Soares
415
A funo da intriga a combinao de factos e a representao de uma ao, j
o dizia Aristteles. Esta operao dinmica que consiste na representao de uma ao tem,
enquanto composio ou fbula, um papel de sntese capaz de transformar meras sequncias
cronolgicas num enredo passvel de ser seguido; gera, portanto, um tempo narrativo prprio,
feito simultaneamente de tempo csmico e tempo vivido (ID., Ibid., 61).
416
o prprio filsofo quem o diz : [] lintelligibilit de lhistoire en tant que tout
consiste dans sa capacit tre suivie. Suivre une histoire, cest progresser au milieu de contingences
et de pripties, sous la pression dune attente qui trouve son remplissement dans la conclusion
de lhistoire. Mais cette conclusion nest pas limplication logique de quelques prmisses antrieures.
Cest le point final, qui fournit le point de vue do lhistoire peut tre aperue comme
un tout. Comprendre lhistoire cest comprendre comment et pourquoi les pisodes successifs
conduisent cette conclusion, laquelle, faute dtre prvisible, doit tre finalement acceptable,
grce sa relation de convenance avec les pisodes rassembls par lhistoire (RICUR,
1982, 8).
417
RICUR, TR I, 130.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 211
418
La dimension de configuration, en revanche, prsente des traits temporels qui rsultent
de la transfiguration ou de la mtamorphose de la succession en configuration. Dabord, lar-
rangement configurant transforme la succession des vnements en une totalit signifiante, corrlat
de lacte de prendre-ensemble: cest cet arrangement qui fait que lhistoire peut tre suivie.
Grce cet acte rflexif, lintrigue prise comme un tout peut tre traduite en une pense
unique: cest ce que nous avons appel plus haut le sujet ou le thme de lintrigue. Mais
ce serait une erreur totale de tenir cette pense pour in-temporelle. Le temps de la fable
et du thme est le temps narratif qui fait mdiation entre pisode et configuration (ID.,
1982, 8).
419
TR I, 131.
420
Ibid.
212 Martinho Tom Martins Soares
421
A intriga enquanto modelo de concordncia e de ordenao, ao contrastar com o
diferir da distentio animi, aparece como a soluo potica do paradoxo especulativo do tempo,
pois a inveno da ordem, sem qualquer caracterstica temporal expressa, vem ocupar o lugar
do nescio da resposta de Agostinho pergunta sobre o tempo (M. BATISTA PEREIRA,
1993, 441).
422
M. L. PORTOCARRERO, 2005, 61-62.
423
TR I, 131. Em Entre temps et rcit: Concorde/Discorde, Ricur explica do seguinte
modo o poder esquematizador da imaginao produtiva e a sua relao com a tradio: La
mise-en-intrigue, selon moi, est une des expressions les plus frappantes du pouvoir de schmatisation
que Kant attribue limagination productrice. Cette parent profonde entre la structuration
narrative et limagination productrice implique son tour que la mise-en-intrigue opre toujours
dans le cadre dune tradition culturelle. [] le pouvoir de schmatisation qui est luvre
dans la mise-en-intrigue est trans-culturel [] par sa manire de prendre forme au moyen de
paradigmes transmis par des traditions. De tels paradigmes, entendus comme des modes typiques
de mise-en-intrigue, procdent de la sdimentation du travail de limagination productrice et
fournissent des rgles pour une exprimentation ultrieure dans le domaine narratif. Cest ainsi
quils changent sous la pression de nouvelles inventions, dans la mesure mme o ils procdent
de la dynamique de la mise-en-intrigue. Mais ils changent lentement et mme rsistent aux
changements, dans la mesure o ils sont les formes sdimentes de ce processus. Invention
et sdimentation sont impliqus titre gal dans la constitution des traditions (RICUR,
1982, 11).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 213
do processo que une mimese III mimese II424. A imaginao que Ricur
denomina de produtiva tem um enorme poder de esquematizao. Cabe
imaginao esquematizar, passando ao aspeto quase sensorial, a significao
emergente de uma nova atribuio metafrica425. Tem igualmente uma funo
de sntese que opera, atravs da configurao, uma ligao entre entendimento
e intuio, engendrando snteses, ao mesmo tempo, intelectuais e intuitivas.
O esquematismo , assim, a capacidade que a imaginao produtiva tem
de engendrar, na tecitura da intriga ou no ato configurante, uma inteli-
gibilidade mista entre o tema da histria narrada e a apresentao intuitiva
das circunstncias, dos carateres, dos episdios, e das mudanas de fortuna
que produzem o desenlace. Cest ainsi quon peut parler dun schmatisme
de la fonction narrative426. Este esquematismo, por sua vez, constitui-
-se numa histria que tem todas as caractersticas de uma tradio. No
entendemos por tradio a transmisso de um herana morta ou inerte,
mas a transmisso viva de um legado inovador, que sempre pode ser
reativado por um regresso aos momentos mais criadores do fazer potico.
Entendido desta maneira, a tradio enriquece a relao da intriga com
o tempo com um trao novo427. A tradio supe dois fatores interde-
pendentes: a sedimentao e a inovao. A sedimentao guarda os para-
digmas universais ancestrais que enformam a composio das intrigas. Estes
paradigmas ou regras da composio narrativa so muito resistentes
mudana, alterando-se, muito lentamente, apenas quando so pressionadas
por novas invenes. Relativamente inovao, tem um estatuto correlativo
ao da sedimentao. Na construo de uma narrativa h sempre lugar para
a inovao, na medida em que esse ato sempre singular e novo. por
424
na experincia da leitura que surpreendemos o fenmeno de ressonncia, de eco
ou de reverberao, pelo qual o esquema, por sua vez, produz imagens. Ao esquematizar a
atribuio metafrica, a imaginao difunde-se em todas as direes, reanimando experincias
anteriores, despertando recordaes adormecidas, irrigando os campos sensoriais adjacentes
(RICUR, 1991, 219).
425
Ricur foi buscar a Kant o conceito de esquematismo, que significa, em termos
gerais, um mtodo para atribuir uma imagem a um conceito. Cf. ID., Ibid., 218-219.
426
RICUR, TR I, 132.
427
Ainsi comprise, la traditionalit, enrichit le rapport de lintrigue au temps dun trait
nouveau (ID., Ibid., 133).
214 Martinho Tom Martins Soares
428
De la mme manire que la grammaire dune langue rgle la production de phrases
bien formes, dont le nombre et le contenu sont imprvisibles, une uvre dart pome, drame,
roman est une production originale, une existence nouvelle dans le royaume langagier. Mais
linverse nest pas moins vrai: linnovation reste une conduite gouverne par des rgles: le
travail de limagination ne nat pas de rien. Il se relie dune manire ou dune autre aux paradigmes
de la tradition (ID., Ibid., 135).
429
ID., Ibid., 136.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 215
430
M. L. PORTOCARRERO, 2005, 67.
431
ID., Ibid.
432
Cf. ID., Ibid. M. Batista Pereira acrescenta que a progresso da mimesis I para a
mimesis II a de uma pr-narrao ou narrao incoativa ou potencial atravs de configuraes
narrativas para o mundo da vida do leitor ou do ouvinte (1993, 442).
433
ID., Ibid., 430.
434
RICUR, TR I, 136. M. Batista Pereira comenta que este modelo de comunicao
, enquanto interseo do mundo do texto e do mundo do leitor ou do ouvinte, uma verso
tpica da fuso de horizontes de H.-G. Gadamer, em que a linguagem se orienta para alm
dela mesma na oferta e receo da experincia e mundo. Na reflexo sobre si mesma, a linguagem
conhece-se no ser e referida ao ser, pois ela da ordem do mesmo e o mundo o seu outro
(1993, 443).
216 Martinho Tom Martins Soares
3.1LEITURA
435
M. L. PORTOCARRERO, 2005, 65.
436
Ibid., 66.
437
M. BATISTA PEREIRA, 1993, 442.
438
Vide ID., Ibid., 443.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 217
439
M. L. PORTOCARRERO, 2005, 68.
440
TR I, 145.
441
Ils fournissent des lignes directrices pour la rencontre entre le texte et son lecteur.
Bref, ce sont eux qui rglent la capacit de lhistoire se laisser suivre. Dun autre ct, cest
lacte de lire qui accompagne la configuration du rcit et actualise sa capacit tre suivie.
Suivre une histoire, cest lactualiser en lecture (ID., Ibid.).
218 Martinho Tom Martins Soares
442
ID., Ibid., 146.
443
Ibid., 146.
444
M. BATISTA PEREIRA, 1993, 432. A citao de M. Batista Pereira reporta-se a
RICUR, Mimesis, Rfrence et Refiguration dans Temps et Rcit, tudes Phnomnologiques
11, 1990, 33-34.
445
1992, 338.
446
M. L. PORTOCARRERO, 2005, 68.
447
ID., Ibid.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 219
448
Contra a semitica do texto, que se confinasse apenas abstrao isolada do momento
segundo da mimesis e abandonasse a mimesis da pr-compreenso e a referncia da imitao
criadora da mimesis II ao mundo, a Hermenutica reconstri o conjunto das operaes pelas
quais uma obra histrica ou de fico se eleva sobre o fundo opaco do viver, do agir e do
sofrer e confiada pelo seu autor ao leitor, que a recebe e por ela pode mudar o seu agir
(M. BATISTA PEREIRA, 1993, 438).
449
1982, 3.
450
Ce que reoit un lecteur, cest non seulement le sens de luvre mais, travers
son sens, sa rfrence, cest--dire lexprience quelle porte au langage et, titre ultime, le
monde et sa temporalit quelle dploie en face delle (RICUR, TR I, 148).
220 Martinho Tom Martins Soares
451
Dautre part, on enferme la littrature dans un monde en soi et on casse la pointe
subversive quelle tourne contre lordre moral et lordre social. On oublie que la fiction est
trs prcisment ce qui fait du langage ce suprme danger dont Walter Benjamin, aprs Hlderlin,
parle avec effroi et admiration (ID., Ibid., 150).
452
Apud Ibid.
453
Na referncia produtiva, a fico redescreve o que a linguagem convencional j des-
creveu. Como toda a obra potica, a fico narrativa procede de uma epoche do mundo ordinrio
da ao humana e das descries deste mundo ordinrio realizadas pelo discurso humano. Neste
contexto, a redescrio acontece sobre a suspenso da descrio da realidade, que frequentemente
exagerada pelos crticos literrios empenhados em dar literatura um estatuto autnomo
(M. BATISTA PEREIRA, 1993, 431).
454
Vide nota anterior.
455
ID., Ibid., 431.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 221
Ricur diga que uma obra literria no uma obra sem referncia mas
uma obra com referncia dupla, isto , uma obra, cuja ltima referncia
tem por condio uma suspenso da referncia da linguagem convencio-
nal456. A redescrio da realidade de acordo com as estruturas simblicas
da fico , assim, a verdade pretendida por esta referncia de segunda
ordem, comum tanto histria como fico, embora, como veremos
adiante, segundo modalidades referenciais diferentes.
Ricur quer assim assegurar que as obras poticas tm um referente
externo, pois representam o mundo da praxis, porm sob o signo redescritivo
da metfora, ou seja, o referente metafrico, no descritivo457. O referente
metafrico , segundo o autor, a criao de um segundo sentido, que destri
o sentido primrio ou literal do termo, instaurando uma nova pertinncia
semntica. Este novo sentido consegue transmitir, de uma forma figurada
ou conotativa, algo acerca do ser-no-mundo que no se podia exprimir
diretamente, nem se podia entender no sentido literal ou denotativo do
termo458. Batista Pereira assinala este facto dizendo que nesta perspetiva,
a mimesis aristotlica subentende que a imaginao criadora e o fascnio
da poesia tm verdade, porque revelam como mimesis physeos o real
enquanto ato, isto , dizem o que a simples descrio incapaz de revelar,
isto , as possibilidades latentes de existncia, que s vivem na expresso
viva da metfora459. Em A metfora viva, o autor francs afirma que la
posie, par son muthos, r-dcrit le monde460. Agora, reitera essa convico,
aplicada narrativa: le faire narratif ressignifie le monde dans sa dimension
456
RICUR, Pour une thorie du Discours Narratif, 57, Apud M. BATISTA PEREIRA,
1993, 432.
457
[] les textes potiques eux aussi parlent du monde, bien quils ne le fassent pas
de faon descriptive (Ibid.)
458
La rfrence mtaphorique, je le rappelle, consiste en ceci que leffacement de la
rfrence descriptive effacement qui, en premire approximation, renvoie le langage lui-
mme se rvle tre, en seconde approximation, la condition pour que soit libr un pouvoir
plus radical de rfrence des aspects de notre tre-au-monde qui ne peuvent tre dits de manire
directe. Ces aspects sont viss, de faon indirecte, mais positivement assertive, la faveur de
la nouvelle pertinence que lnonc mtaphorique tablit au niveau du sens, sur les ruines du
sens littral aboli par sa propre impertinence (TR I, 150,151).
459
1993, 428.
460
Apud TR I, 152.
222 Martinho Tom Martins Soares
461
Ibid., 153.
462
M. L. PORTOCARRERO, 2005, 64.
463
[] a primeira forma pela qual o homem tenta compreender e dominar o diverso
do campo prtico oferecer-se uma representao fictcia desse campo prtico. Quer se trate
da tragdia antiga, do drama moderno, do romance, da fbula ou da lenda, a estrutura narrativa
fornece fico as tcnicas de abreviao, de articulao e de condensao pelas quais se obtm
o efeito de aumento icnico que se descreve, alis, em pintura e nas artes plsticas (RICUR,
1991, 222). Cf., supra, nota 249.
464
[] a prpria atividade mimtica constituda pela tenso entre a submisso ao
real e o trabalho criador prprio da construo de enredos que fundam acontecimentos significativos;
ela mantm simultaneamente uma proximidade com a realidade e a distncia efabuladora, que
permite magnificar as aes humanas imitadas. O mythos no se limita a ser uma reordenao
das aes de uma forma mais coerente; a prpria rutura que abre o espao imaginrio da
fico, por meio de uma composio que nos restitui o humano de forma mais nobre e elevada
(M. L. PORTOCARRERO, 2005, 64).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 223
465
Ce qui est resignifi par le rcit, cest ce qui a dj t pr-signifi au niveau de
lagir humain (RICUR, TR I, 153).
466
Ibid.. M. BATISTA PEREIRA tambm salienta que relativamente ao mundo da pr-
-compreenso a criao narrativa um aumento icnico, que faz subir a legibilidade do mundo
e ascender o significado da ao humana (1993, 443).
467
RICUR, TR I, 153.
224 Martinho Tom Martins Soares
468
RICUR, Pour une Thorie du Discours Narratif 3, 50-51; Apud M. BATISTA
PEREIRA, 1993, 444. Em Temps et Rcit I, o autor afirma o mesmo noutros termos: [...]
la fiction emprunterait autant lhistoire que lhistoire emprunte la fiction. Cest cet emprunt
rciproque qui mautorise poser le problme de la rfrence croise entre lhistoriographie
et le rcit de fiction. Le problme ne pourrait tre lud que dans une conception positiviste
de lhistoire qui mconnatrait la part de la fiction dans la rfrence par traces, et dans une
conception anti-rfrentielle de la littrature qui mconnatrait la porte de la rfrence mtaphorique
en toute posie (154-155).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 225
469
Cf., RICUR, TR I, 154.
226 Martinho Tom Martins Soares
470
ID., Ibid.
471
Cest cet emprunt rciproque qui mautorise poser le problme de la rfrence
croise entre lhistoriographie et le rcit de fiction (Ibid.).
472
Ibid., 155.
473
[] la refiguration du temps par le rcit est, selon moi, luvre conjointe du rcit
historique et du rcit de fiction (Ibid., 169).
474
Ma thse est que lhistoire la plus loigne de la forme narrative continue dtre
relie la comprhension narrative par un lien de drivation, que lon peut reconstruire pas
pas, degr par degr, par une mthode approprie (Ibid., 165,166).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 227
475
Ibid., 166.
476
Je soutiens seulement que la signification de ces constructions est emprunte, quelle
drive indirectement de celle des configurations narratives que nous avons dcrites sous le titre
de mimsis II et, travers celles-ci, senracine dans la temporalit caractristique du monde
de laction (Ibid.).
477
Ibid., 167.
228 Martinho Tom Martins Soares
478
Nous pourrions ainsi reprendre chacun des traits par lesquels nous avons caractris
la pr-comprhension de laction: le rseau dintersignification entre catgories pratiques; la
symbolique immanente cette pr-comprhension; et surtout sa temporalit proprement pratique.
On pourrait dire que chacun de ces traits est intensifi, augment iconiquement (Ibid., 155).
M. BATISTA PEREIRA corrobora esta ideia, admitindo que no aumento icnico do tempo
da narrativa so intensificados e concentrados os traos prticos, simblicos e temporais da
pr-compreenso da ao (1993, 444).
479
Finalement, cest le temps de laction qui, plus que tout, est refigur par la mise
en action (RICUR, TR I, 155).
480
Cf. Ibid., 155,156.
481
A sua grande tese [] a de que no h acesso direto ao tempo. Este faz parte
de mim, invisvel em si mesmo, o que impossibilita a elaborao de uma fenomenologia
pura. Exige, pelo contrrio, a mediao do discurso indireto o da intriga narrativa que, pelos
laos que estabelece entre os episdios, permite que a vivncia discordante do tempo tenha
finalmente uma representao concordante (M. L. PORTOCARRERO, 2005, 56).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 229
482
A ignorncia augustiniana (nescio) pressentiu que o homem incapaz de uma apreenso
intuitiva da estrutura do tempo, que se mantm invisvel e se furta a toda a observao direta,
o que radicalmente contraria a tentativa da Fenomenologia apostada em fazer aparecer o tempo
em si mesmo. O narrar vem socorrer as aporias da ambio de ver o tempo, que se diz no
discurso da ao e no na abrangncia da intuio humana sempre parcelar e, nesta sequncia,
a potica da narratividade da ao que responde e corresponde aportica da temporalidade
(M. BATISTA PEREIRA, 1993, 446-447).
483
Sem narrativa no h acesso ao tempo, tal o pressuposto de que parte Ricur,
em consequncia do falhano da filosofia (ou fenomenologia) de Agostinho a Heidegger para
conceber o tempo vivido de modo coerente (M. L. PORTOCARRERO, 2005, 56).
484
O tema da aportica da temporalidade, resultante da anlise fenomenolgica, desen-
volvido na primeira seco da quarta parte da obra. A, Ricur rebate dois exemplos paradigmticos:
a fenomenologia da conscincia ntima do tempo de Husserl e a fenomenologia hermenutica
da temporalidade de Heidegger.
485
Si le caractre aportique de toute phnomnologie pure du temps pouvait tre argument
de faon au moins plausible [ diz Ricur], le cercle hermneutique de la narrativit et de
la temporalit serait largi bien au-del du cercle de la mimsis, auquel a d se borner la discussion
dans la premire partie de cet ouvrage, aussi longtemps que lhistoriographie et la critique littraire
nont pas dit leur mot sur le temps historique et sur les jeux de la fiction avec le temps
(TR I, 157).
230 Martinho Tom Martins Soares
relao ao tema central da obra, porm fornece a Ricur uma base epis-
temolgica para o objetivo ontolgico final, a saber, a comprovao da
dialtica tempo-narrativa, na medida em que este dilogo pe a descoberto
e responde aporia maior da dupla perspetiva sobre o tempo486. S depois
da confrontao das teorias destas trs disciplinas, que o crculo her-
menutico pode ser igualado ao crculo de uma potica da narratividade
e de uma aportica da temporalidade487. Por razes metodolgicas, no
nos podemos deter sobre estas problemticas que governam a segunda,
a terceira e cerca de metade da quarta parte de Temps et Rcit (I, II, III).
Embora elas contribuam para a construo da tese principal da obra, uma
vez que so, como j dissemos, a base epistemolgica onde assenta a teoria
ricuriana da dialtica do tempo-narrativa, no nos possvel expor aqui
esse dilogo, no s devido extenso que isso implicaria, mas tambm
pela necessidade de permanecermos, o mais possvel, fiis aos objetivos
que norteiam este nosso estudo. Ousamos dar um salto e ir diretamente
para as linhas mestras, exposta em Temps et Rcit III, convictos de que
a compreenso das mesmas no fica comprometida pela ausncia da expla-
nao epistemolgica que a antecede.
O que encontramos, nesta parte final da trilogia Tempo e Narrativa,
a sequncia e a explicitao do que j ficou esboado para trs, que
poderamos resumir da seguinte forma: a configurao narrativa tem como
fim a refigurao da experincia temporal. Ressalve-se que, neste momento,
a configurao narrativa j inclui a intriga ficcional e a intriga histrica.
De facto, a histria e a fico, tomadas em conjunto, confluem para solucionar
o problema da refigurao do tempo, pela forma como contrapem s
486
O tempo o referente comum ltimo da narrativa de fico, da narrao histrica
e da fenomenologia do tempo vivido, desde Agostinho a Husserl e Heidegger. Da a longa
e difcil conversao triangular entre a historiografia, a crtica literria e a filosofia fenomenolgica,
interlocutoras, que ordinariamente se ignoram mutuamente (M. BATISTA PEREIRA, 1993,
444). As expresses entre aspas ( ) so citaes de Ricur realizadas por M. Batista Pereira.
487
Ce nest quau terme de ce que je viens dappeler une conversation triangulaire,
dans laquelle la phnomnologie du temps aura joint sa voix celles des deux prcdentes
disciplines, que le cercle hermneutique pourra tre gal au cercle dune potique de la narrativit
(culminant elle-mme dans le problme de la rfrence croise voque plus haut) et dune
aportique de la temporalit (RICUR, TR I, 157).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 231
488
TR III, 147 et sq.
489
Vide Ibid., 147. la rinscription du temps vcu sur le temps cosmique, du ct
de lhistoire, rpond, du ct de la fiction, une solution oppose des mmes apories de la ph-
nomnologie du temps, savoir les variations imaginatives que la fiction opre sur les thmes
majeurs de cette phnomnologie (Ibid., 148).
490
Une troisime option, ouverte par la rumination des apories de la phnomnologie
du temps, consiste rflchir sur la place du temps historique entre le temps phnomnologique
et le temps que la phnomnologie ne russit pas constituer, quon lappelle temps du monde,
temps objectif ou temps vulgaire (Ibid., 153). Cf. a seco 3 do primeiro captulo deste estudo,
onde se confrontam as teorias do tempo de Agostinho e de Aristteles, ou seja, tempo psicolgico
e tempo cosmolgico. Foi a que analismos as insuficincias e aporias de cada uma das teorias,
concluindo que uma oculta a outra. A emergncia do tempo histrico vem resolver esta oculta-
o, na medida em que ele emerge da associao destas duas correntes temporais, transcen-
dendo-as.
232 Martinho Tom Martins Soares
491
Or, lhistoire rvle une premire fois sa capacit cratrice de refiguration du temps
par linvention et lusage de certains instruments de pense [] (TR III, 153).
492
A ce titre, ils attestent la fonction potique de lhistoire, et travaillent la solution
des apories du temps (Ibid.).
493
Ibid., 154.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 233
Ricur que par sa periodicit, le rite exprime un temps dont les rythmes
sont plus vastes que ceux de laction ordinaire. En scandant ainsi laction,
il encadre le temps ordinaire, et chaque vie humaine, dans un temps de
grande ampleur494. Enquanto o mito tem a virtude de ampliar o tempo
ordinrio, o rito, por outro lado, aproxima o tempo mtico da esfera profana
da vida e da ao.
Benveniste chama tempo crnico ao tempo calendarizado, para evi-
denciar, simultaneamente, a originalidade e a singularidade deste tempo495.
O mesmo autor refere que desde sempre o homem em sociedade sentiu
a necessidade de objetivar o tempo crnico e sempre se esforou por faz-
-lo. Conclui, pois, que este tempo socializado o do calendrio496.
A partir da mesma obra do linguista francs (p. 6), Ricur apresenta
os trs pontos que todos os calendrios tm em comum e que so distintivos
do tempo calendarizado497. Juntos constituem a contagem e a diviso do
tempo crnico. Um dos pontos a existncia de um acontecimento fundador,
que instaura uma poca nova na contagem dos anos, isto , um evento
que determina o ponto axial a partir do qual todos os acontecimentos pos-
teriores ou anteriores so datados por exemplo, o nascimento de Cristo,
a subida ao trono de determinado rei, a Revoluo Francesa, etc. Outro
ponto que a partir deste acontecimento axial possvel percorrer a linha
do tempo nas duas direes, seja do passado para o presente seja do presente
para o passado. A nossa vida um desses acontecimentos marcantes do
tempo, que nos permite fazer retrospetivas nos dois sentidos. Tambm ns
datamos, frequentemente, o nosso percurso de vida por relao com acon-
tecimentos vividos por ns ou por outros. Por fim, comum a todos os
calendrios a fixao de um conjunto de unidades de medida que servem
para reconhecer intervalos constantes entre as recorrncias de fenmenos
csmicos. Estes intervalos constantes so determinados pela astronomia:
o dia, com base na medio do intervalo entre o nascer e o pr do Sol;
494
Ibid., 156.
495
[] dans notre vue du monde, autant que dans notre existence personnelle, il ny
a quun temps, celui-l, in . BENVENISTE, Le langage et lexprience humaine: Problmes
du langage, Paris, Gallimard, coll. Diogne, 1966, p. 5; Apud RICUR, TR III, 157.
496
Apud Ibid.
497
Ibid.
234 Martinho Tom Martins Soares
498
Apud RICUR, TR III, 157.
499
Ibid., 158.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 235
500
Quant la mesure, elle se greffe sur lexprience quAugustin dcrit trs bien comme
raccourcissement de lattente et allongement du souvenir [] (Ibid., 159.
501
Ibid.
502
Apud RICUR, TR III, 159.
503
BENVENISTE, o.c., Apud RICUR, TR III, 159.
236 Martinho Tom Martins Soares
tambm verdade que uma mesma data pode servir para referir um acon-
tecimento futuro ou um acontecimento passado, sendo impossvel tomar
um dia do calendrio em si mesmo e dizer se pertence ao passado, ao
presente ou ao futuro. Para ter um presente, como considera Benveniste,
preciso que algum fale; o presente necessita de ser enunciado para ser
assinalado, para existir, ele precisa que haja uma coincidncia entre um
acontecimento e o discurso que o enuncia. Da que Ricur conclua que
para alcanar o tempo vivido a partir do tempo crnico, necessrio
[] passar pelo tempo lingustico, referido ao discurso504. Assim, uma
data s pode ser dita futura ou passada se soubermos a data de enunciao
que a pronuncia.
O tempo crnico vai buscar a sua especificidade exterioridade do
calendrio em relao aos acontecimentos vividos e s ocorrncias fsicas,
o que lhe permite ser mediador entre as duas perspetivas sobre o tempo.
Diz Ricur, de forma lapidar, que il cosmologise le temps vcu, il humanise
le temps cosmique505. , pois, desta forma que ele contribui para reinscrever
o tempo da narrativa no tempo do mundo.
504
TR III, 159.
505
Ibid., 160.
506
Lanalytique heideggrienne de ltre-l nous a donn loccasion de formuler cette
aporie dans les termes dune antinomie entre temps mortel et temps public (Ibid., 161).
507
Ibid.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 237
508
ID., Ibid., 163.
509
Ibid., 167.
238 Martinho Tom Martins Soares
510
Ibid., 169.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 239
511
Le trait le plus visible, mais non ncessairement le plus dcisif, de lopposition entre
temps fictif et temps historique est laffranchissement du narrateur [] (Ibid., 185).
240 Martinho Tom Martins Soares
512
Ibid.
513
1993, 445.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 241
514
Cf. TR III, 184.
515
Cf. ID., Ibid., 184-202.
242 Martinho Tom Martins Soares
516
Ibid., 187. A este propsito, seria interessante analisar algumas narrativas antigas, como,
por exemplo, o caso complexo das histrias de Herdoto para averiguar se o que predomina
a fico ou a histria ou se o tempo ficcional que arrasta o tempo histrico para o seu
campo gravitacional ou o contrrio. Ricur confina o seu estudo a estas trs obras maiores
da poca moderna, mas seria pertinente abordar tambm o subgnero do romance histrico e
outras obras mais complexas de todos os perodos literrios, quanto ao poder de atrao do
tempo histrico e do tempo ficcional. Temos presente o caso paradigmtico das Crnicas de
Ferno Lopes.
517
[] la Premire Guerre mondiale, en tant quvnement historique, est chaque
fois fictionalise de faon diffrente, ainsi que tous les personnages historiques inclus dans le
roman. Ils gravitent dsormais dans des sphres temporelles htrognes (RICUR, TR
III, 187).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 243
518
Ibid., 191.
244 Martinho Tom Martins Soares
519
La passit dune observation au pass nest pas elle-mme observable, mais mmorable.
Cest pour rsoudre cette nigme que nous avons labor la notion de reprsentance ou de
lieutenance, signifiant par l que les constructions de lhistoire ont lambition dtre des recons-
tructions rpondant la requte dun vis--vis. En outre, entre la fonction de reprsentance
et le vis--vis qui en est le corrlat, nous avons discern une relation de dette, qui place les
hommes du prsent devant la tche de restituer aux hommes du pass aux morts leur d
(Ibid., 228).
520
Le problme serait non seulement insoluble, mais insens, sil restait pos dans les
termes traditionnels de la rfrence. Seul, en effet, lhistorien peut, absolument parlant, tre
dit se rfrer quelque chose de rel, en ce sens que ce dont il parle a pu tre observ
par les tmoins du pass. Par comparaison, les personnages du romancier sont tout simplement
irrels; irrelle est aussi lexprience que la fiction dcrit. Entre ralit du pass et irralit
de la fiction, la dissymtrie est totale (Ibid., 228).
521
En nous loignant du vocabulaire de la rfrence, nous adoptons celui dapplication,
reu de la tradition hermneutique et remis en honneur par H.-G. Gadamer dans Vrit et Mthode
(Ibid., 229).
522
Ibid., 230.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 245
523
Toda a obra de fico, verbal ou plstica, narrativa ou lrica, est possuda de um
movimento de transcendncia na imanncia e projeta para fora de si um mundo, que se pode
chamar o mundo da obra ou novo espao de habitabilidade para o homem, capaz de gerar
um confronto entre o mundo do texto e o mundo do leitor (M. BATISTA PEREIRA, 1993,
446).
524
RICUR, TR II, 234; Apud M. BATISTA PEREIRA, 1993, 446.
525
1993, 446.
246 Martinho Tom Martins Soares
526
Cest dans une telle thorie largie de la lecture que le renversement se fait, de
la divergence la convergence, entre le rcit historique et le rcit de fiction (RICUR, TR
III, 265).
527
Par entrecroisement de lhistoire et de la fiction, nous entendons la structure fon-
damentale, tant ontologique qupistmologique, en vertu de laquelle lhistoire et la fiction ne
concrtisent chacune leur intentionnalit respective quen empruntant lintentionnalit de lautre
(Ibid.).
528
Vide Ibid., 264-279.
529
Dune part il ne sagit pas de rpter simplement ce qui a t dit dans le premier
volume sur le rle de limagination dans le rcit historique au plan de la configuration; il sagit
bien du rle de limaginaire dans la vise du passe tel quil fut (Ibid., 265).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 247
530
Cf. ID., Ibid., 268.
531
Ltonnant est que cet entrelacement de la fiction lhistoire naffaiblit pas le projet
de reprsentance de cette dernire, mais contribue laccomplir (Ibid., 271).
248 Martinho Tom Martins Soares
532
Le quasi-pass de la voix narrative se distingue alors entirement du pass de la
conscience historique. Il sidentifie en revanche avec le probable au sens de ce qui pourrait
avoir lieu. [] Le quasi-pass de la fiction devient ainsi le dtecteur des possibles enfouis
dans le pass effectif (Ibid., 278).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 249
533
Pour conclure, lentrecroisement entre lhistoire et la fiction dans la refiguration du
temps repose, en dernire analyse, sur cet empitement rciproque, le moment quasi historique
de la fiction changeant de place avec le moment quasi fictif de lhistoire. De cet entrecroisement,
de cet empitement rciproque, de cet change de places, procde ce quil est convenu dappeler
le temps humain, o se conjuguent la reprsentance du pass par lhistoire et les variations
imaginatives de la fiction, sur larrire-plan des apories de la phnomnologie du temps
(Ibid., 279).
534
Vide RICUR, Temps et Rcit III, 349-392.
250 Martinho Tom Martins Soares
535
Cf. TR III, 349, 350.
536
Nous croyons ds lors pouvoir affirmer quau plan pistmologique de la configuration,
la multiplication des chanons intermdiaires entre rcit et temps a seulement allong les mdiations
sans jamais les rompre, en dpit des coupures pistmologiques lgitimement opres de nos
jours par lhistoriographie et la narratologie dans leurs domaines respectifs (TR III, 350).
537
Cf. TR III, 350.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 251
538
Vide TR III, 352.
539
Cf. ID., Ibid.
540
Assim, a identidade narrativa no fruto somente da interpenetrao fecunda entre
histria e fico, proveniente da representao do passado histrico, como tambm resulta dos
efeitos de sentido gerados no confronto entre mundo do texto de fico e mundo do leitor.
Cf. M. BATISTA PEREIRA, 1993, 448.
541
TR III, 355.
252 Martinho Tom Martins Soares
542
Ibid.
543
Ibid. M. Batista Pereira comenta: as vidas humanas tornam-se mais legveis quando
interpretadas a partir de histrias narradas a seu respeito e, por sua vez, estruturadas segundo
os modelos narrativos da histria ou da fico. A identidade pessoal s se pode articular na
dimenso temporal da existncia humana (1993, 448).
544
TR III, 355. O termo identidade encerra uma ambiguidade, que se torna necessrio
esclarecer, pois a identidade como mesmidade (lat. idem, ingl. same, al. gleich) e a identidade
como si-mesmo (lat. ipse, ingl. self e al. sebst) no coincidem. (M. BATISTA PEREIRA, 1993,
448).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 253
545
Cf. ID., Ibid., 449.
546
Ibid. O professor de Coimbra redige o seu artigo da Humanitas de 1993, ao qual
temos vindo a recorrer com frequncia, apoiando-se em vrias obras de Ricur. Para o tema
da identidade narrativa ele segue, sobretudo, a obra Soi-mme comme un autre, onde o filsofo
francs expe de forma mais detalhada este tema abordado na concluso de Temps et Rcit
III. Para alm desta, h uma outra obra de Paul Ricur que retoma, desenvolve e aprofunda
esta temtica que encerra a trilogia, refiro-me a Histoire e Narrativit.
254 Martinho Tom Martins Soares
547
Ibid., 448.
548
TR III, 356.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 255
549
Afirma Ricur, a este propsito, o quanto a psicanlise constitui um laboratrio par-
ticularmente instrutivo para uma pesquisa propriamente filosfica sobre a noo de identidade
narrativa (Ibid.).
256 Martinho Tom Martins Soares
550
Ibid.I, 358.
551
Il reste quil appartient au lecteur, redevenu agent, initiateur daction, de choisir entre
les multiples propositions de justesse thique vhicules par la lecture. Cest en ce point que
la notion didentit narrative rencontre sa limite et doit se joindre aux composantes non narratives
de la formation du sujet agissant (TR III, 359).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 257
552
La seconde nat de la dissociation des trois ek-stases du temps: futur, pass, prsent,
en dpit de la notion incontournable du temps conu comme un singulier collectif (Ibid.).
553
Cf. ID., Ibid., 372. M. Batista Pereira reconhece, na senda de Ricur, que a narrao
no um encadeamento dialtico nem a identidade narrativa uma figura do Absoluto (1993,
452).
554
TR III, 374.
258 Martinho Tom Martins Soares
555
Ma relecture atteint ici le point o la mditation sur le temps ne souffre pas seulement
de son impuissance outrepasser la bifurcation de la phnomnologie et de la cosmologie,
ni mme de sa difficult donner un sens la totalit qui se fait et se dfait travers les
changes entre -venir, avoir-t et prsent mais souffre, tout simplement, de ne pas vritablement
penser le temps (TR III, 374).
556
Laporie surgit au moment o le temps, chappant toute tentative pour le constituer,
se rvle appartenir un ordre du constituant toujours-dj prsuppos par le travail de constitution.
Cest ce quexprime le mot dinscrutabilit (ID., Ibid., 375).
557
1993, 447.
558
TR III, 386.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 259
559
1993, 459.
560
Cf. RICUR, TR III, 388.
260 Martinho Tom Martins Soares
561
Ibid., 389.
562
Ibid., 390.
563
Ricur diz que a elegia, figura lrica da lamentao, est dissimulada em vrios pontos
do seu texto, devido ao pudor e sobriedade que o tratamento da prosa exigem: le lecteur
aura reconnu, dissimuls en plusieurs points de notre texte, sous la pudeur et la sobrit de
la prose, les chos de la sempiternelle lgie, figure lyrique de la plainte (Ibid.).
564
Cf. Ibid.
565
O lirismo do pensamento meditante vai diretamente ao fundamental da existncia
humana revelado no sentimento da situao sem passar pela arte de narrar (M. BATISTA
PEREIRA, 1993, 460; Cf. RICUR, TR III, 391).
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 261
566
1993, 460.
567
TR III, 352.
568
Il ne sera pas dit, non plus, que laveu des limites du rcit, corrlatif de laveu
du mystre du temps, aura cautionn lobscurantisme; le mystre du temps nquivaut pas
un interdit pesant sur le langage; il suscite plutt lexigence de penser plus et de dire autrement.
Sil en est ainsi, il faut poursuivre jusqu son terme le mouvement de retour, et de tenir que
la raffirmation de la conscience historique dans les limites de sa validit requiert son tour
la recherche, par lindividu et par les communauts auxquelles celui-ci appartient, de leur identit
narrative respective. Cest l le noyau dur de toute notre investigation; car cest dans cette
recherche seulement que se rpondent avec une pertinence suffisante laportique du temps et
la potique du rcit (RICUR, TR III, 392). Cf. etiam M. BATISTA PEREIRA, 1993, 460.
262 Martinho Tom Martins Soares
569
Numa reflexo posterior a Temps et Rcit, Une reprise de la Potique dAristote (1992),
Paul Ricur admite no ter vincado devidamente, em Temps et Rcit, o carter estratgico da
reinscrio narrativa do modelo aristotlico, por isso ele volta a abordar o tema neste trabalho,
em termos de estratgia de apropriao, explicando, mais detalhadamente, em que consistiu
essa reconstruo de um texto com dois mil e trezentos anos para uma teoria atual da nar-
ratividade.
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 263
dAristote, trs condies fundamentais para levar a cabo este seu arti-
fcio570.
Em primeiro lugar, o conceito de composio narrativa ou agenciamento
dos factos, conhecido por ns como mythos, deve poder ser elevado ao
mais alto grau de formalidade que seja compatvel com a compreenso
narrativa. Para isso necessrio demarcar a compreenso narrativa da racio-
nalidade estrutural, espelhada na perspetiva narratolgica, que o autor con-
sidera uma logicizao de segundo grau em relao compreenso nar-
rativa. Esta demarcao s possvel se se preservar de toda a dissoluo
o paradoxo da concordncia discordante, implcito no mythos aristotlico,
que implica a sntese do heterogneo. Da concordncia depende, de facto,
a definio de mythos como reunio de acontecimentos heterogneos numa
histria coesa, necessria e verosmil, onde os acontecimentos se sucedem
segundo uma ordem especfica de causalidade, no linear, que faz com
que a histria tenha um princpio, um meio e um fim. A virtude da inteligncia
narrativa est, pois, na capacidade de incorporar a discordncia na con-
cordncia, fazendo com que a surpresa contribua para o efeito de sentido
que faz aparecer a fbula como verosmil e necessria571. O conceito de
sntese do heterogneo, ligado ao de concordncia discordante, indis-
pensvel para levar o mais longe possvel o formalismo prprio da com-
preenso narrativa.
Uma segunda condio necessria para a estratgia de generalizao
do modelo aristotlico diz respeito ficcionalidade, isto , a considerao
do conceito de fico, no sentido ativo de fingir, que implica, a instaurao
de uma rutura ou suspenso do mundo efetivo da praxis. Com este corte
gera-se um novo espao de sentido para o qual remete o prprio conceito
de mythos, s possvel sob a condio de funo fabuladora, que faz com
que a literatura seja um laboratrio de experincias, segundo a conhecida
expresso de Ricur, onde se configuram mundos e vidas possveis572.
570
Cf. RICUR, 1992, 336-339.
571
ID., Ibid., 337.
572
O mythos s contado ou realizado sob a condio de funo fabuladora [] que
faz da literatura um imenso laboratrio de experincias de pensamento no qual so ensaiadas
mltiplas maneiras de compor juntamente felicidade/infelicidade, bem/mal, vida/morte, a tragdia
sendo apenas uma combinao tpica dessas grandezas entre outras permutaes possveis (1992,
337).
264 Martinho Tom Martins Soares
573
[] a filosofia da narrao, da identidade e do tempo um dos momentos mais
altos do pensamento de P. Ricur (M. BATISTA PEREIRA, 1993, 394).
266 Martinho Tom Martins Soares
ainda hoje pode ser considerado um dos mais influentes pensadores cristos
de sempre. Assim, antes de darmos por terminada esta incurso numa das
vias fundamentais do pensamento ricuriano, a da soluo potica da apo-
rtica do tempo, pertinente recapitularmos alguns dos passos mais marcantes
deste convvio entre a antiguidade clssica e a contemporaneidade. curioso
notar como este dilogo, em si mesmo, anula o passar dos sculos e vence
a distenso do tempo, tornando ao presente temas que j atormentavam
os homens do passado e continuaro a atormentar os do futuro e que,
por isso, podemos considerar intemporais. Que melhor maneira o filsofo
poderia ter encontrado para demonstrar que possvel subir na hierarquia
do tempo at se libertar da lei da morte, como dizia Cames, ou, acres-
centamos ns, da lei do tempo.
O trabalho de Ricur neste domnio do tempo e da narrativa pode
ser entendido, de um lado, como um forte desejo de projetar o ser humano
para fora da disperso mundana e fragmentadora da distentio animi. Valo-
rizando, na senda de Agostinho, a hierarquizao interna do tempo, como
uma ascese espiritual que leva o sujeito a desprender-se da distrao e
a tender para a ateno eterna, Ricur d um sentido narrativo e escatolgico
ao agir humano; por outro lado, move-o o anseio de encontrar no uma
definio conceptual, mas, pelo menos, uma figura narrativa do tempo
vivido. Verificmos a que ponto a reflexo de Agostinho acerca do tempo,
que culmina no paradoxo da distenso da alma sobre o triplo presente,
abriu caminho a Ricur para a atividade narrativa como soluo potica
para a aporia do tempo. Nas Confisses do Hiponense ele encontra um
esprito que se debate entre a disperso no efmero e a tenso para o
divino, mas onde, apesar de tudo, predomina a discordncia provocada
pela distenso da alma sobre o tempo. Ora este domnio da discordncia
sobre a concordncia aflige o filsofo, que na sua perspiccia busca um
contraponto que possibilite ao esprito contemplar as aes temporais da
sua vida reunidas num todo coeso e no como peas espalhadas de um
puzzle. A leitura da Potica de Aristteles, onde os acontecimentos dispersos
e episdicos da vida so reunidos numa histria com sentido, ordenada
segundo princpios lgicos, leva-o a afirmar que a potica narrativa permite
fazer da nossa condio temporal, condenada distentio, uma experincia
positiva. Ricur conclui que a experincia temporal s pode ser inteligvel
se lida na configurao narrativa, pois s esta tem a virtude de revelar,
Tempo, Mythos e Praxis. O dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles 267
574
M. Batista Pereira reconhece todo o valor da filosofia ricuriana do tempo, da narrao
e da identidade, neste tempo ps-estruturalista, em que de novo a rememorao, pela eficcia
da leitura, interfere na configurao da nossa ipseidade num tempo inescrutvel (1993, 395).
270 Martinho Tom Martins Soares
BIBLIOGRAFIA SECUNDRIA
Prefcio............................................................................................................. 9
Resumo............................................................................................................. 13
Introduo......................................................................................................... 15
Captulo I: TEMPO
Bibliografia....................................................................................................... 271
ISBN 978-972-8386-97-9