ESTUDO 02

Ams, a voz do campo

Jakler Nichele & Samir Confessor
A sentena da injustia social
Chegamos ao ano 798 a.C. no tempo do rei
Jos, poca em que morreu o profeta
Eliseu, sucessor de Elias. Depois de muitos
altos e baixos, alm da instabilidade, dos
governos anteriores, Jos conseguiu algu-
mas vitrias importantes para o fortaleci-
mento do reino, como a retomada dos ter-
ritrios perdidos para Damasco. Isso fez
com que a euforia desenvolvimentista do
reino de Israel crescesse. Esta foi a prepa-
rao do caminho para que seu filho Jero-
boo II restabelecesse completamente os
antigos limites do reino. 134 anos e 11 reis
depois da ciso de Israel o momento era de
forte expectativa.
No tempo de Jeroboo II (783 e 743 a.C.), o
Reino do Norte conheceu relativa tranqui-
lidade pelo fato de o imprio assrio estar
passando por uma crise interna alm de
estar ocupado com Damasco. Com a Assria Figura 3 Ams, um homem do campo, sai de Jud para criticar a falsa prosperidade no Reino do Norte.
deixando de exercer influncia sobre a
regio, possibilitou-se o fortalecimento e o do povo. O visvel progresso estava acom- O Profeta
crescimento dos reinos menores, antes panhado de injustias e contrastes sociais,
ameaados por tal imprio. Jeroboo II Conhece-se muito pouco a respeito da
corrupo do direito e fraude no comrcio.
tirou vantagens polticas dessa situao. pessoa do profeta Ams. Basicamente, o
Jeroboo II contava com aliados funda-
Alm da recuperao dos territrios perdi- que mais claro o lugar onde nasceu e
mentais para a manuteno desse estado
dos, houve uma fase de grande prosperida- sua profisso. Seus anos de nascimento e
de coisas: os sacerdotes. Eles atuavam
de, com muitas construes luxuosas, de morte so desconhecidos.
principalmente nos santurios de Betel e
aumento de recursos agrcolas, progresso Sabemos que para o hebreu antigo os
D, considerados templos do rei (Am
da indstria txtil e paz para o povo. nomes dizem muito a respeito da pessoa.
7.13) , alm dos inumerveis lugares altos
Esse milagre econmico em Israel foi Quando inserido num contexto literrio o
(Am 7.9). Com a legitimao religiosa do
alimentado pelas celebraes de ao de significado potencializado. Podemos
status quo de seu governo, o rei podia
graas, que se multiplicaram enormemente encontrar dois sentidos semelhantes para o
pensar que tudo ia bem, que o Dia do
no pas. O povo era incentivado a produzir nome do profeta Ams: o Senhor forte
Senhor, o tempo de paz definitiva, estava
mais, j que o momento era favorvel. O e aquele que ajuda a carregar o fardo ou
prximo. Assim, a religio tranquilizava a
incentivo produo e as boas condies carregador de fardos. De fato, apesar da
conscincia da classe dominante, fomentan-
da economia, livre da presso externa da aparente prosperidade, o povo sofria
do o sentimento de superioridade em
Assria, geraram um excedente de riquezas carregando um rduo e pesado fardo para
relao a outros povos. A aliana com Deus
que acabou deixando a nao tranquila. bancar as elites dominantes e somente
se tornou letra morta, celebrada no culto,
Seria, entretanto, ingnuo pensar que toda Jav, o Deus de Israel, os ajudaria a resistir
mas sem qualquer influncia na vida diria.
a riqueza de Israel, nesse perodo, fosse em tal momento.
Dentro dessa situao que Ams comea a
fruto da boa administrao do trabalho e Ams era natural de Tecoa (ou Tcua), uma
falar. Alm de denunciar a situao de
da produo. Mais ingnuo ainda seria pequena, mas importante, cidade de Jud
desigualdade social, ele aprofunda sua
pensar que toda essa riqueza tenha sido (Reino do Sul), a cerca de 15 km ao sul de
crtica, principalmente no que se refere
repassada de forma igualitria ao povo. Jerusalm e 9 km a sudeste de Belm, nos
religio. Denuncia uma religio que mera
Ams surge neste momento, vindo do limites do deserto de Jud. Tecoa foi um
fachada para a injustia e que acoberta um
Reino do Sul, como o primeiro homem dos lugares fortificados por Roboo, filho
sistema inquo, j viciado pela raiz.
lcido a perceber as verdadeiras causas de Salomo, para a proteo de Jerusalm
Ao lado desse grande desenvolvimento
dessa aparente prosperidade de Israel: a (2Cr 11.6). Ficava no meio das montanhas,
econmico, multiplicou-se tambm a mis-
explorao dos camponeses, a injustia e a incrustada nas regies mais altas da Judia.
ria do povo pela distribuio desigual dos
alienao religiosa. Logo depois o profeta Por isso servia de lugar para tocar
bens produzidos quem ficavam acumula-
Osias seguir em frente na crtica s atitu- trombeta, e assim transmitir sinais e
dos nas mos de poucos. Contra esta
des loucas dos dirigentes, que levaro a na- anncios ao povo (Jr 6.1). Esta idia,
situao, Ams grita:
o inteira falncia. Quem quisesse ver simbolicamente, traduz o trabalho do
para onde convergia a riqueza de Israel Eu quero ver brotar o direito profeta. Mesmo sendo de Jud, Ams foi
deveria ir capital, Samaria. L veria as como gua e correr a justia incomodado por Deus para anunciar a sua
luxuosas manses, os requintados palcios como riacho que no seca. mensagem no Reino do Norte, circulando
(Am 5.24) por entre suas principais cidades.
e as interminveis festas daqueles que go-
zavam da boa vida. Ams olha tudo isso e Enquanto isso, no Reino do Sul, governava Ams era um homem do campo. Como um
conclui: tudo isso fruto da opresso e do o rei Uzias (ou Azarias) que tambm foi pequeno proprietrio agrcola, pastoreava
roubo contra trabalhadores; essa riqueza encarado como um tempo de grande gado e ovelhas, alm de cultivar sicmoros
de alguns gerada pelo empobrecimento prosperidade em Jud. (Am 7.14), um tipo de figueira produtora de
figos de qualidade inferior. interessante

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notar que no se cultivava sicmoros em Ams fez inmeras denncias, dentre elas, restaurao de Israel como uma terra em
Tecoa, mas no Mar Morto e na Sefel. Isso contra os comerciantes que se enriqueciam que a justia experimentada permite ao
deve ter obrigado Ams a fazer viagens custa dos pobres (8.4-6), os tribunais que homem viver sua dignidade.
com certa frequncia. De fato, a leitura do decidiam em detrimento do justo e do O livro de Ams se apresenta como uma
seu livro nos revela Ams como um homem indigente mediante suborno (5.10-12), a coleo de orculos. No se sabe precisa-
bem informado sobre os acontecimentos escravido de prisioneiros de guerra e de mente como e quando tenha sido execu-
dos pases vizinhos, um homem que devedores (1.6,9; 2.6; 8.6), os tributos e tado o trabalho de composio. Provavel-
conhece a fundo a situao social, poltica e impostos altos (2.8; 5.11), o luxo e a mente foi sido escrito, pelo menos em
religiosa de Israel. Apesar de possuir riqueza da classe alta (3.10,15; 4.1; 5.11; parte, pelo prprio profeta, mas sobretudo
empregados, no era procedente da classe 6.4-7), a religio (5.21-27), as senhores por seus discpulos imediatos. Costuma-se
rica e aristocrtica, empoleirada no poder nobres (4.1), o rei (3.9-11; 6.1) e os grandes atribuir ao profeta a primeira redao do
nem morava num grande centro urbano. proprietrios (3.9-11; 6.4-6). ciclo das vises, dos orculos contra os
Ams era um homem profundamente A soluo para tantos problemas seria a pases estrangeiros, e do bloco central do
ligado vida do campo, da qual conhecia as converso do povo, tribunais justos (5.15) e livro. Depois, o texto foi relido e atualizado
dificuldades e alegrias, as cenas cotidianas fim da escravido. Ou seja, todos deviam em pocas sucessivas, que deixaram suas
e o ritmo das estaes. Sua imaginao passar a amar o bem e a odiar o mal. marcas em correes ou acrscimos. At a
estava repleta de figuras rurais: a altura dos Ams no acreditava em mudanas no fixao definitiva do Cnon, o texto era, de
cedros e a resistncia dos carvalhos (Am sistema monrquico. A sociedade de seu certa forma, flutuante. Algumas passagens
2.9), o carro cheio de feixes (Am 2.13), a tempo estava muito corrompida, seus certamente aparentam ser de poca
chuva de um aguaceiro primaveril que rega contemporneos no queriam converter-se. posterior ao exlio: Am 4.13; 5.8-9; 9.5-6.
um campo e deixa seco o do vizinho (Am Por isso, ele dizia que o Dia do Senhor consenso entre os estudiosos que a
4.7), uma nuvem de gafanhotos que destri seria de trevas e no de luz (5.18). mensagem deixada por Ams influenciou a
a colheita (Am 7.1-3) e a seca que queima a Sua esperana consistia em acreditar que profecia de Isaas (Primeiro Isaas), o
terra (Am 7.4-6), a ferrugem e o carbnculo somente Deus seria capaz de mudar a sorte primeiro profeta a pregar no Sul.
que esterilizam os jardins e as vinhas (Am do seu povo em um tempo de paz (9.11-
4.9), os frutos maduros (Am 8.2). 15). Para tanto, um resto fiel da casa de E agora?
Seu lugar preferido para falar em pblico Jos poderia ser salvo (5.15).
No primeiro versculo lemos que Ams teve
era o santurio de Betel, pois l encontrava Alguns especialistas dizem que provavel-
vises. A palavra viso frequentemente
sempre muita gente que vinha oferecer mente Ams no atuou mais do que dois
utilizada para descrever a percepo espi-
seus sacrifcios e trazer suas ofertas, anos. Segundo o apcrifo Vida dos Profe-
ritual concedida aos profetas. No se trata
agradecendo a Deus pela prosperidade que tas, Amasias o teria torturado aps a srie
necessariamente de uma experincia sobre-
estaria concedendo ao povo. Contudo essa de denncias profticas. O filho de Amasi-
natural com imagens, mas da habilidade de
prosperidade era falsa, porque, como j as o teria matado com pancadas na cabea.
enxergar a verdade, de fazer a leitura da
vimos, a explorao e a injustia, o roubo e Segundo as lendas, Ams moribundo ainda
realidade que o cerca.
o suborno permitiam que alguns se teria andado at a sua prpria terra onde
Nem todos viam o que ele via. Ams nos
deitassem em divs de marfim e se regalas- morreu depois de alguns dias e foi sepul-
apresenta a realidade dos dias de Jeroboo
sem em festas interminveis (Am 6.1-7), tado. Este imaginrio antigo s refora a
em uma tica bem peculiar. Amasias, que
enquanto as pessoas iam ficando cada vez importncia do profeta e de sua mensagem.
denunciara Ams junto corte, fazia outra
mais pobres e excludas. O povo no perce-
anlise dos fatos. Para Ams, esta diferena
bia isso. Continuava a acreditar na propa- O Livro
tem sua origem em sua experincia de
ganda enganosa das autoridades governa-
fcil localizar sua estrutura bsica. Ei-la: Deus: falou o Senhor Jav, quem no
mentais. Deixava-se convencer pela prega-
profetizar? Jav fez ver (7.1-7; 8.1; 9.1).
o espiritualista dos lderes religiosos, que Esquema do Contedo Nisto reside a inspirao de Ams. Sua
legitimavam a situao, fazendo perigosas
1.1-2 Nota editorial introdutria e apresentao viso da realidade teolgica.
concesses ao baalismo.
Ao atentarmos para a ameaa e crtica pro-
Ams se props a ser a voz dos campo- 1.3-2.5 Castigo das naes vizinhas
ftica, constatamos que, no contedo cen-
neses, levantando-se contra esse sistema de 2.6-6.14 A denncia contra Israel tral de sua palavra, a teologia de Ams
explorao e injustia, claramente identi- 7.1-9.10 Vises de Ams, dilogo com Amasias e vivenciada em relao ao presente testemu-
ficado como idolatria, porque levava ao condenao de Israel
nhando o Deus que caminha com o homem.
abandono do Senhor e de seu projeto 9.11-15 Orculo de esperana Em Ams temos, pois, uma teologia que l
(Aliana), para servir a outros deuses, ou
o hoje, l a histria! Histria esta marcada
seja, a outros projetos que escravizam e Na primeira parte da mensagem (1.3-2.5) pelo grito do pobre...
matam. Esse seu grito em defesa do pobre temos orculos dirigidos a diversas naes:
para ele um rugido do Senhor (1.2), um Sria, Filistia, Fencia, Edom, Amon, Moabe A TEOLOGIA QUE NO CONSIDERA
imperativo ao qual ele no pode resistir e Jud. O profeta quer mostrar que Deus A DOR DO POVO NO MERECE SER CHAMADA DE
(3.3-8). Essa a sua vocao proftica. fica indignado com a injustia humana. TEOLOGIA. ESTE UM DOS LEGADOS PRIMORDIAIS DO
Suas intervenes, portanto, so sempre Na segunda parte (2.6-6.14), Ams revela os TRABALHADOR DE TECOA.
marcadas pela clareza de opo social ao erros de Israel (Norte) apresentando-os
lado dos deserdados, dos excludos, dos como mais absurdos do que os das naes Para saber mais ...
injustiados (ex: Am 2.68; 3.13-15; 5.10-13; vizinhas. Inclusive as pags! Por conta disso BALANCIN, E. M.; STORNIOLO, I. Como ler o livro de Ams. 4
e especialmente 8.4-6). Tal opo resultou, o castigo de Israel seria maior. Neste bloco ed. So Paulo: Paulus, 2005.
claro, em conflito. A classe dirigente da particularmente destaco o trecho 5.21-24 CARSOM, D. A. et al. Comentrio Bblico Vida Nova. So
Paulo: Vida Nova, 2009.
nao estava conduzindo o pas runa, relendo-o para nossa realidade. KUNSTMANN. W. Os profetas menores. Porto Alegre:
mas parece que s Ams conseguia ver Na terceira parte (7.1-9.10) h o relato de Concrdia, 1983.
isso. Ele profetizou a morte do rei, a depor- uma srie de vises de Ams sobre o LOPES, H. D. Ams: um clamor pela justia social. So Paulo:
tao do povo, e at mesmo o avano das castigo de Israel interrompida no final do Hagnos, 2007.
tropas assrias sobre o pas. Era a declara- cap 7 pela reao do sacerdote Amasias de MOTYER, J. A. O dia do leo. So Paulo: ABU, 1984.
o da falncia do sistema apregoado pelos SCHKEL, L. A. & DIAZ, J. L. Profetas I. 2 ed. So Paulo:
expulsar Ams de Betel. Paulus, 2004.
dirigentes polticos e religiosos. Isso custou Na ltima parte (9.11-15), o profeta anuncia SCHWANTES. M. Ams: Meditaes e estudos. So
a Ams sua expulso de Israel pelo sacer- a esperana apesar de todo o castigo: a Leopoldo: Sinodal, 1987.
dote de Betel, Amasias (Am 7.10-17).

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