Legenda Áurea Livro PDF
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Abril
2008
Livros Grtis
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NDICE
Introduo
1. Apresentao...................................................................................................... p.01
2. Pressupostos tericos ........................................................................................ p. 05
3. Discusso Bibliogrfica .................................................................................... p. 10
4. Jacopo de Varazze e a Legenda urea: reflexes ............................................ p. 19
Concluso.............................................................................................. p.171
Anexo..................................................................................................... p.187
-1-
INTRODUO
1. Apresentao
Os relatos de Santo Ambrsio e de Santa Eugnia. Ambos foram realizados sob a orientao
desses processos em dois relatos presentes na compilao conhecida como Legenda urea1 a
mbito social por percursos diferentes. Nesse sentido, tanto a afirmao da qualidade divina
Ressaltamos que a importncia dessa etapa na graduao foi dupla para nossa
formao. Alm de aprofundarmos as nossas reflexes acerca dos Estudos de Gnero, tivemos
um maior contato com a obra LA do sculo XIII, compilada pelo dominicano Jacopo de
Varazze. E foi durante as nossas leituras que percebemos a constante e detalhada descrio
Portanto, comeamos a questionar o porqu deste destaque. Seria este parte da retrica
1
-2-
serviam aos interesses da Igreja, no sculo XIII? Como as relaes de poder institudas no
mbito religioso aparecem nos relatos de martrios antigos? Qual o papel das maceraes
somticas dos santos nas construes de uma santidade genderificada? Essas so as principais
questes que permearam nossa pesquisa para as quais elaboramos algumas hipteses
A partir dessas questes iniciais, desenvolvemos nossa pesquisa, cujo objetivo central
foi examinar as estratgias narrativas utilizadas nos relatos sobre os mrtires selecionados
considerando elementos como a posio social ocupada pelo cristo martirizado e o motivo
A temtica martrio foi difundida por obras hagiogrficas, a partir do sculo II,
devido s perseguies aos cristos, o que conferiu outra significao a esse termo grego que
a ser aquele que, apesar de nunca ter visto ou ouvido Cristo em vida, estaria to convencido
Segundo Lucy Grig, no artigo Torture and truth in late antique martiriology,4 o mrtir
era um soldado de Cristo que confrontava a fora do mal, representada, nesse momento, pelo
estado romano. Este personagem desejaria a sua morte, exacerbando as torturas, j que, dessa
forma, quanto maiores fossem os seus sofrimentos, maior seria a demonstrao da vitria
crist coroada com a sua morte. Segundo a autora, os mrtires se tornaram os heris da Igreja
3
Sublinhamos o motivo real do martrio, pois, mesmo nos relatos sobre personagens contemporneos s
perseguies aos cristos, a defesa da f nem sempre era a verdadeira motivao para a execuo.
4
GRIG, Lucy. Torture and truth in late antique martiriology. Early Medieval Europe. v.2, n.4, p.321-336, 2002.
p. 322.
2
-3-
hagigrafos, foram norteados pela unio de quatro noes: a ecclesia, j que sem a Igreja no
haveria o martrio; o dom da vida, pelo mrtir simbolizar a doao da vida em nome de um
amor maior representado pela f; a cristologia, pois deixar-se morrer era seguir o exemplo de
Cristo, que deu a vida pelos irmos; e a defesa da verdade do Evangelho, j que o mrtir no
morre por si, mas para testemunhar sua f diante de seu perseguidor.
destaca Nri de Almeida Souza no artigo Hipteses sobre a natureza da santidade,6 a Igreja
crist caracterizava-se por uma intensa ascese, com a valorizao da exposio do corpo alm
dos limites biolgicos, atravs de penitncias, das maceraes, da abstinncia sexual, dos
jejuns, entre outros, sendo identificada como martrio branco ou espiritual. Ou seja, a vida
asctica mantinha uma proximidade com o martrio de sangue: a superao da dor fsica.
Assim, nos anos iniciais do medievo, os santos eram aqueles que iam alm da condio
desejo por um novo ideal de vida religiosa, acompanhado por uma diferente percepo da
santidade, que dentre outros aspectos, encontramos a retomada do desejo pelo martrio
sangrento, contudo, com uma marcada releitura. O mrtir no era mais o perseguido pela sua
f, mas sim aquele que morria na defesa da cristandade, contra os inimigos da Igreja e da
justia.
5
FISICHELLA, Rino. Martrio. IN: _____. PACOMIO, Luciano & PADOVESE, Luigi (Orgs.) Lexicon.
Dicionrio Teolgico Enciclopdico. So Paulo: Loyola, 2003, p. 467-468.
6
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4,
p.11-46, 2002.
7
Segundo a pesquisadora Brenda Bolton, as mudanas ocorridas a partir do sculo XI, como o aumento
populacional, o crescimento das cidades e do nmero de ofcios especializados, a formao de grupos maiores e
mais dinmicos, a difuso de uma pregao no oficial, o contato com as heresias, entre outros, traziam uma
valorizao do indivduo, o desenvolvimento da religiosidade leiga e a tentativa de retorno vita apostolica
como interpretada a partir do Novo Testamento. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies
70, 1983.
3
-4-
interior do cristo, que estaria disposto a dar a vida em nome da cristandade, caso a situao
seria a continuidade do martrio branco e morte do santo por testemunhar a sua f atravs da
defesa diante dos inimigos da cristandade, que era uma retomada do ideal do martrio de
configuraram-se de acordo com as relaes de poder estabelecidas pela e com a Santa S.8
captulos da mesma obra, com a base terica nos estudos de gnero. Ao efetivar tal proposta
nossa questo de pesquisa, no visa comparar duas obras, mas a construo de dois discursos,
exploramos uma modalidade de Histria Comparada, que rompe com a idia de que s h
Por fim, sublinhamos que como nosso interesse est nos relatos dos martrios da LA,
essa obra no foi examinada integralmente. Portanto, estabelecemos como critrio de seleo
dos relatos a ateno que reservada s descries das penas somticas, j que analisamos a
existncia de uma relao entre a nfase dada s torturas sofridas e a construo da identidade
8
Ressaltamos que, nesse trabalho, destacamos as relaes estabelecidas com os hereges, os infiis e os pagos.
4
-5-
mrtires, aqueles que, na obra, apenas citado o tipo de morte sofrida, aqueles cujo o
como tal. A partir dessa seleo, escolhemos alguns relatos sobre santos e santas, para anlise
e comparao.
distintos lugares ou funes sociais; como soldados, nobres, pregadores, papas e etc. No
enquadradas na sociedade apenas pela sua relao com personagens masculinos, possuindo os
2. Pressupostos tericos
utilizados. Como nosso interesse reside na percepo e no estudo dos processos de construo
9
Blasucci afirma que o testemunho de f que o mrtir fornecia poderia assumir trs distintas formas: diante de
tribunais ou suportando prises e maltratos por causa da f, contudo sem morrer (confessor que era o martrio
incompleto ou incoativo advindo da confisso da f atravs da palavra); atravs de uma vida crist seguida com
perfeita observncia da lei divina (martrio branco, do qual trataremos a seguir); e o testemunho selado com a
morte (martrio perfeito, ou consumado ou de sangue). Contudo afirma que em todas essas modalidades e
significaes de martrio foram acentuadas na relao entre esses personagens e Cristo, j que eles simbolizariam
a extenso do seu sacrifcio de sangue. Como trabalharemos apenas com a ltima expresso de martrio,
tomamos cuidado para no selecionarmos relatos sobre confessores, tambm presentes na LA, j que sofreram
punies somticas como os mrtires. BLASUCCI, Antonio. Martrio, imolao, sacrifcio. In: GUIMARES,
Almir Ribeiro (Org.). Dicionrio Franciscano. Petrpolis: Vozes, 1999. p.416-420.
10
Cabe sublinharmos que as pginas dos relatos referem-se as da edio brasileira realizada por Hilrio Franco
Jr. JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos. So Paulo: Companhia das Letras, 2003.
5
-6-
de santidades genderificadas, nossa base terica encontra-se nos Estudos de Gnero,11 tal
Profundamente influenciada por Michel Foucault, Scott afirma que gnero o saber a
respeito das diferenas sexuais. Scott utiliza o conceito saber aplicando-o, segundo o filsofo,
Essa produo do saber encontra-se no social, logo, consideramos que a concepo de gnero
relaes de gnero na teoria feminista,13 defende que o paradigma identificado como ps-
moderno condio sine qua non para guiar os estudos de gnero. Dessa forma, essa teoria
contesta o aspecto racional e objetivo da cincia, nega sistemas explicativos gerais, no aceita
categorias como homem, mulher, feminino, masculino nem dicotomias como, por
hegemnico construdo sobre o gnero era caracterizado por uma viso misgina. Segundo
11
Para mais informaes sobre os pressupostos dos Estudos de Gnero e as suas relaes com corpo e sexo, cf.
FLAX, Jane. Ps-modernismo e relaes de gnero na teoria feminista. In: HOLLANDA, Helosa Buarque
(Org). Ps-modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p. 217-250; GULLEY, A. Heo Man Ne Waes":
Cross-Dressing, Sex-Change, and Womanhood in Aelfric's Life of Eugenia. Mediaevalia: A Journal of Medieval
Studies, v. 22, n.1, p.113-131, 1998; LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gnero dos gregos a
Freud. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 2001; SCOTT, Joan. Gnero: uma categoria til para os estudos
histricos. Educao e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, dez. 1990; _____. Histria das mulheres.
In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da Histria. So Paulo: Unesp, 1992. p. 64-94; _____. Prefcio a Gender and
Politics of History. Cadernos Pagu, n.3, p.11-27, 1994; SILVA, Andria C. L. Frazo da. Reflexes
metodolgicas sobre a anlise do discurso em perspectiva histrica: paternidade, maternidade, santidade e
gnero. Cronos: Revista de Histria, Pedro Leopoldo, n. 6, p. 194-223, 2002; _____. Reflexes sobre o uso da
categoria gnero nos estudos de Histria Medieval no Brasil. Caderno Espao Feminino, v.11, n.14, p. 87-107,
jan./ jul. 2004.
12
SCOTT, Joan. Op.cit., p.12.
13
FLAX, Jane. Op.cit., .p. 217-250.
6
-7-
qualitativa, ou seja, quanto mais prximo do masculino, mais perfeito e perto de Deus. As
nico sexo, cujas variaes relacionavam-se a uma ordem superior, que transcendia o
biolgico. A patir desses elementos, consideramos o sexo uma construo situacional, que
apenas pode ser entendido dentro do contexto de luta sobre gnero e poder.
olhar construdo sobre o natural cultural. No estamos com isso negando a materialidade do
prtico a partir das concepes culturais construdas acerca dos corpos. Segundo Bordo,
inteligvel. E esses mesmos discursos podem funcionar como regras e regulamentos prticos,
do corpo,17 no qual argumenta que cada cultura atribui significados especficos aos
14
LAQUEUR, J. Op. Cit.
15
Para mais informaes sobre o lugar do corpo, cf. CANNING, Kathleen. The Body as Method? Reflections
on the Place of the Body in Gender History. Gender and History, v. 11, n. 3, p.499-513, nov. 1993; BORDO,
Susan e JAGGAR, Alison M. Gnero, corpo, conhecimento. Rio de Janeiro, Record: Rosa dos Tempos, 1997;
FEHER, Michelet et al. (Ed.). Fragmentos para uma historia del cuerpo humano. Madrid: Taurus, 1990;
MONTSERRAT, Dominic. Changing bodies, changing meaning. Studies on the human body in Antiquity.
London, New York: Routledge, 1998; RODRIGUES, Jos Carlos. Tabu do corpo. Rio de Janeiro: Dois Pontos,
1986; _____. O corpo na Histria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999; PORTER, Roy. Histria do corpo. In:
BURKE, Peter (Org.). A escrita da histria. Novas perspectivas. So Paulo: Editora da Universidade Estadual
Paulista, 1992. p. 291-327; LAQUEUR, Thomas. Op.cit.
16
BORDO, Susan e JAGGAR, Alison. Op. Cit.
17
RODRIGUES, Jos Carlos. Tabu do corpo... Op.Cit.
7
-8-
corporal. Por conseguinte, normas e regras sobre o corpo so apresentadas como naturais. O
historiador Roy Porter, no artigo Histria do corpo, complementa; o corpo no pode ser
tratado pelo historiador, simplesmente como biolgico, mas deve ser encarado como mediado
Assumimos para nosso estudo que no corpo e atravs dele que se inscrevem os
limites so flexveis.19
Desta forma, reafirmamos que no existe uma materialidade orgnica inteligvel fora
de uma perspectiva cultural. Mas nossa compreenso dos pressupostos dos estudos de gnero
lugares onde se travam lutas de poder genderificadas. Assim, o entendimento dos homens e
das mulheres das suas especificidades corpreas fruto de relaes de gnero pr-existentes.
Toda a construo sobre uma dada viso de gnero realizada e mantida sobre um
aspectos da experincia humana, sendo constituintes dela. A categoria gnero toca nas
relaes entre sexos diferentes, entre indivduos do mesmo sexo, na construo das
relaes sociais. Todos esses elementos esto presentes na construo dos significados,
variantes no tempo e espao, dos gneros e dos sexos. Eles estabelecem os efeitos de serem
atribudos a uma ou outra categoria dentro das prticas sociais concretas como, por exemplo,
18
PORTER, Roy. Op.Cit.
19
De acordo com o antroplogo Jos Carlos Rodrigues, no livro O corpo na Histria, j citado, cada cultura
atribui significados especficos a comportamentos e/ ou elementos relacionados materialidade orgnica, alm
de inibir ou exaltar impulsos instintivos. Dessa forma, as normas e regras sobre o corpo so apresentadas como
naturais.
20
FLAX, Jane. Op. Cit.
8
-9-
a insero nas relaes de poder. Contudo, em nossa pesquisa, utilizamos essa categoria de
compreendemos e o empregamos.
atravs da delimitao abstrata e simblica de diferenas. Para existir, uma identidade precisa
simblica o meio pelo qual damos sentido a prticas e s relaes sociais, (...). por meio
21
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferena: introduo terica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da
(Org.). Identidade e diferena: a perspectiva dos estudos culturais. Petrpolis: Vozes, 2000. p.7-72.
22
Ainda nesta questo, defendemos que, alm das mltiplas associaes simblicas nas construes de
identidade, estas so realizadas por duas perspectivas, muitas vezes conflitantes: a individual e a externa ao
indivduo, mas atribuda a ele.
23
Ibidem. p.14.
9
-10-
com os sistemas simblicos, com as relaes sociais e com as de poder imputadas nelas.
santidade.
Cristina da Silva, no artigo Reflexes sobre o uso da categoria gnero nos estudos de Histria
Medieval no Brasil (1990 2003), considerando que essa categoria seria o conjunto de
comportamentos, atitudes e qualidades que num determinado lugar e tempo so critrios para
considerar o indivduo como venervel, seja pelo reconhecimento oficial da Igreja ou no.24
Nesse sentido, tambm seria uma produo histrica, particular e dinmica, isso porque,
Vamos nos deter um pouco sobre a expresso santidades genderificadas. Esta foi
construdos, vamos pensar sobre as diferenas e as semelhanas existentes nos percursos dos
3. Discusso Bibliogrfica
seleo das obras. O primeiro diz respeito aos trabalhos que tratam do martrio, pensando-o,
24
SILVA, Andria C.L. da. Reflexes sobre o uso da categoria gnero... Op. Cit. p.101.
10
-11-
analisam os martrios da LA pela perspectiva terica dos Estudos de Gnero. Nossa discusso
centrou-se nesses materiais, contudo, apenas destacamos os objetivos centrais de cada texto,
ou seja, no faremos uma anlise exaustiva de cada um, j que nossa finalidade apresentar
Inicialmente, destacamos os textos nos quais o martrio foi trabalhado em relao com
corpo no Imprio Romano e nas descries literrias da Antigidade Tardia e da Alta Idade
sofrido pelas virgens. Fecharemos essa parte inicial com anlise dos argumentos centrais de
trs artigos que utilizaram a categoria gnero para o estudo dessa temtica.
Aps essa viso mais geral, deteremo-nos nas pesquisas que estudaram as relaes
entre a Igreja e os novos mrtires. Em seguida, focalizaremos nossa ateno em trabalhos que
analisam os corpos martirizados na LA, para, por fim, concluirmos com o nosso
posicionamento frente a tais obras e como nossa pesquisa contribuir para enriquecer o debate
os artigos de Merrall Llewelyn Price, Purifying violence: Santity and the somatic, de 2001,25 e
mdivale ds rituels, de 1997.26 Em ambos, temos a defesa de uma marcada ligao entre o
martrio e o Imprio Romano,27 com o foco no corpo condenado do mrtir, que por poder
adquirir aspectos sagrados, alteraria o significado da justia romana e das punies somticas,
25
PRICE, Merrall Llewelyn. Purifying violence: Santity and the somatic. Gender and Medieval Studies
Conference, York, January 5-7 2001. Disponvel em http://tango.lib.uiowa.edu:8003/smfs/search.taf?function=
detail&Layout_0_uid1=39336. Consulta em 20/08/2008.
26
BUC, Pilipphe. Martyre et ritualit dans lantiquit tardive. Horizons de lcriture mdivale ds rituels.
Annales. Histoire, Sciences Sociales, v.52, n.1, p. 63-92, 1997.
27
Destacamos que h outros textos que, ao trabalharem a relao entre o cristianismo e o Imprio Romano,
mencionam a questo do martrio de forma pontual, por isso no foram utilizados nessa discusso. Cf.: BENKO,
Stephen. Pagan Rome and the Early Christians. London: B. T. Batsford, 1985; BERR, Jean de. L'aventure
chrtienne. Paris: Stock, 1981; BOWERSOCK, Glen Warren. Martyrdom and Rome. Cambridge: Cambridge
University Press, 1995; SORDI, Marta. Los Cristianos y el Imperio Romano. Madrid: Encuentro, 1988; STE
CROIX, G. E. M. de. Por que fueron perseguidos los primeiros cristianos? In: FINLEY, Michael. I. (Org.).
Estudios sobre Historia Antigua. Madrid: Akal, 1981. p. 253-78.
11
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trazendo a presena de Deus diante dos que assistiam ao espetculo e dos que o comandavam.
Llewelyn ainda articula essa hiptese a uma funcionalidade especfica das obras hagiogrficas
The Suffering Self: Pain and Narrative Representation in the Early Christian, publicado em
1998,28 trata do surgimento de uma cultura do sofrimento pessoal, na Igreja Antiga, na qual
o ato de sofrer valorizado como base para uma relao mais ntima com a divindade. Nesse
violencia y dominacin del cuerpo femenino,29 de 2000, argumenta que a dor fsica sentida
pelos mrtires possua uma incidncia especial sobre o corpo das mulheres, por conta da
leis da natureza, caracterizado pela debilidade e pela passividade. Nesse sentido, Rodrgues
defende que o tratamento fornecido ao corpo nos relatos das santas mrtires, entre os sculos
II e IV d.C., permitia aos autores cristos apresent-las sob uma aparente subverso de sua
experimentada por elas como via para transgredir as estruturas de gnero da sociedade pag.
No entanto, apesar de sua comprovada capacidade para superar as limitaes de sua natureza,
seguem sendo, para pagos e cristos, essencialmente, corpos sexuados que precisam ser
controlados.
28
PERKINS, Judith. The Suffering Self: Pain and Narrative Representation in the Early Christian Era. New
York: Routledge, 1995.
29
RODRGUEZ, Mara Amparo Pedregal. Las mrtires cristianas: gnero, violencia y dominacin del cuerpo
femenino. Studia historica. Historia antigua, n.18, p. 277-294, 2000.
12
-13-
O argumento principal que os autores cristos da Antigidade Tardia e da Alta Idade Mdia
Igreja. Por fim, Montserrat distingue o tratamento dado s virgens mrtires nas obras crists.
tambm confere uma natureza sexual aos martrios das virgens. Todavia, ao contrrio de
como a celebrao da castidade e supresso das tentaes do corpo. Coyne sublinha que,
apesar destas vitrias, o martrio no fornecia um status superior para a santidade das
virgens, j que esta somente era construda e comprovada a partir de forte violncia. Por fim,
articula a flexibilidade do corpo torturado das virgens com a Igreja, sob as perseguies
pags. A virgem torturada funcionava como um artifcio cultural que no apenas preservaria a
Mrida, de 1999, Raquel Homet32 trabalha com a comparao de dois relatos sobre o martrio
Imperador, sendo assim, o foco estaria na relao entre o paganismo e o cristianismo, com o
30
MONTSERRAT, Dominic. Changing bodies, changing meaning. Studies on the human body in Antiquity.
London e New York: Routledge, 1998.
31
COYNE, Katheleen Kelly. Useful virgins in Medieval Hagiography. In: CARLSON, Cindy L. et WEISL,
Angela Jane (Ed.). Constructions of Widowhood and Virginity in the Middle Ages. New York: St. Martin's Press,
1999. p.135-164.
32
HOMET, Raquel. Significaes de los martirios de Eulalia de Mrida. In: _____. et al. Aragon en la Edad
Media XIV-XV. Zaragoza: Universidade de Zaragoza, 1999. p.759-775.
13
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cidade como um ser encarnado pelo mal. A autora defende que, nessa paixo, a fora
espiritual da virgem mrtir encontrava-se na resistncia aos tormentos sofridos pela sua f.
Assim, Homet conclui que, apesar de ambos os documentos colocarem nfase no martrio
pesquisadora Maud Burnett McInerney, no livro Eloquent virgins from Thecla to Joan of Arc,
de 2003,33 que aponta que o tratamento dado s virgens mrtires, nos documentos, variou
segundo o sexo do autor. Ela analisa textos de Ambrsio, Tertuliano, Hidelgarda, Hrotsvitha,
entre outros. A partir desse estudo, ela defende que em cada perodo histrico h duas
voyerismo, perceptvel nas descries da violncia sexual e das torturas somticas. Nestas
textos de autoras femininas, ela percebe a construo de narrativas que colocam as virgens
mrtires como ativas e inteligentes, capazes de realizarem suas prprias escolhas, e poderosas
ao lidarem com homens vis e injustos. Sendo assim, a proposta dessas obras era que, atravs
que o corpo da virgem foi descrito e percebido de modos diferenciados pelos autores
Conclumos a primeira parte de nosso debate bibliogrfico com trs textos que
33
MCINERNEY, Maud Burnett. Eloquent virgins from Thecla to Joan of Arc. New York: Palgrave Macmillan,
2003.
14
-15-
Topos in the Legends of Female Virgin Martyr Saints, de Kirsten Wolf, de 1997;34 Heo Man
Alison Gulley, de 1998;35 e no mais recente, de 1999, Gender and Martyrdom, de Evelyn
Birge Vitz.36 Apesar de trabalharem com diferentes obras hagiogrficas, as trs autoras
na absolvio da alma.
Esse segundo momento de nossa apresentao uma reflexo que foi fundamental
para nossa pesquisa, por tratar o tema martrio no mesmo recorte temporal que o nosso, alm
de focar nos santos mendicantes ao analisar as relaes entre a Igreja e os novos mrtires,
no sculo XIII. Trabalharemos com as propostas dos artigos Martyrdom, Popular veneration
dos infiis e dos pagos, com o propsito da converso, afirmando que aqueles que perdessem
Deus.39 Contudo, o autor argumenta que queles que morreram para proteger a f crist, e,
portanto, em uma situao similar aos mrtires das perseguies, no tiveram a sua santidade
34
WOLF, Kristen. The Severed Breast: A Topos in the Legends of Female Virgin Martyr Saints. Archiv fr
Nordisk Filologi, v.112, p. 97-112, 1997.
35
GULLEY, Alison. Op. Cit.
36
VITZ, Evelyn Birge. Gender and Martyrdom. Medievalia et Humanistica, n. 26, p.79-99, 1999.
37
RYAN, James. Missionary saints of High Middle Ages. Martyrdom, Popular veneration and Canonization.
The Catholic Historical Review, v. 90, n.1, p.1-28, 2004.
38
FORTES, Carolina Coelho. Os mrtires da Legenda urea: a reinveno de um tema antigo em um texto
medieval. In: LESSA, Fbio & BUSTAMANTE, Regina (Orgs.). Memria e Festa. Rio de Janeiro: Mauad,
2005, p. 375-400.
39
Ryan sublinha ainda que o Papa Inocncio III escreveu algumas cartas para as ordens dominicana e
franciscana garantindo a recompensa para as pessoas ligadas a essas ordens que morressem em nome de Cristo.
No entanto, as canonizaes s comearam a partir do sculo XIV. RYAN, James. Op. Cit. p.5.
15
-16-
vezes, eram sobre pessoas que foram renegadas pela Igreja, como os herticos e os cismticos.
Assim, passou a haver a necessidade de uma investigao sobre a santidade, trazendo essas
esferas das prticas populares para seu controle e aprovando os que eram de seu interesse.
Possuindo uma hiptese semelhante, Carolina Fortes complementa que o influxo de novos
santos foi visto como uma ameaa ao status de cultos mais antigos e tradicionais, e tambm
levantou o espectro de uma Igreja fragmentada na qual toda pequena comunidade veneraria
santos diferentes.40
O objeto central do artigo de Fortes , contudo, a retomada do tema martrio pela LA.
Antigidade Tardia e da Alta Idade Mdia, que abordavam os sculos I-IV, fez com que a
Jacopo, ao escolher mrtires que se colocavam frente aos poderes seculares que lhe eram
Por tratar das formas como esses personagens apareciam na LA e as relaes entre as
a vida terrena do santo d-se com a permanente exposio do corpo aos limites da
sobrevivncia.43 Assim, o que aconteceria ao corpo santo atestaria o destino de sua alma.
40
FORTES, Carolina Coelho. Ibidem. p.7.
41
Nesse sentido, a LA marcaria a idia que, invariavelmente, os perseguidores seriam punidos pelos seus atos.
42
SOUZA, Nri de Almeida. Op. Cit.
43
Ibidem. p.13.
16
-17-
Nesse sentido, ela afirma que esta compilao divulga um ideal de santidade que derrota a
nega a importncia do corpo para os mrtires, pelo contrrio, a obstinao dos santos em
expor a carne em si o objeto de suas preocupaes. A dor proporcionaria uma ligao entre
dois plos, o privilegiado (a alma) e o anulado e desprezado (o corpo), permitindo que o santo
existisse entre o plano terreno e o espiritual. O aspecto sexual do martrio tambm apontado
pela autora: a dor fornece prazer. Neste ponto, Pouchelle sublinha que as descries das
leis e prticas civis pelos autores Llewlyn45 e Buc,46 que percebem que a presena do corpo
autores, o sofrimento foi tratado de duas formas distintas nos documentos contemporneos s
perseguies. Perkins47 defendeu que os textos antigos valeram-se deste para afirmao da
vitria crist em relao aos seus perseguidores e no outro artigo analisado, Montserrat48
44
POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
45
LLEWLYN, Merrall. Op. Cit.
46
BUC, Pierre. Op. Cit.
47
PERKINS, Judith.Op.Cit.
48
MONTSERRAT, Dominc. Op. Cit.
17
-18-
Coyne49 defende que a conotao sexual dos relatos possuiria um marcado teor moralizante,
Por ltimo, Wolf,52 Gulley53 e Vitz54 percebem o martrio como a libertao da alma
aprisionada no corpo. Sendo assim, a partir do plano geral do debate, destacamos que o
martrio foi tratado pelos pesquisadores como smbolo do divino e da vitria do cristianismo,
comportamento ambguo em relao aos novos mrtires. Se, por um lado, os incentivava para
rumarem s terras dos infiis e pagos para convert-los, prometendo a coroa do martrio para
Fortes,56 temos como justificativa que a Igreja procurava, nesse momento, regulamentar e
somticas sofridas pelos mrtires na LA. As autoras apontam que Jacopo utiliza-se do
sofrimento para construir um tipo ideal de santidade, afirmando que o compilador colocaria a
Assim, encontramos pesquisas que trabalharam com a temtica martrio com outras
49
COYNE, Katheleen Kelly. Op.Cit.
50
HOMET, Raquel. Op.Cit.
51
MCINERNEY, Maud Burnett. Op. Cit.
52
WOLF, Kristen. Op. Cit.
53
GULLEY, Alison. Op. Cit.
54
VITZ, Evelyn Birge. Op. Cit.
55
RYAN, James. Op. Cit.
56
FORTES, Carolina Coelho. Op. Cit.
57
POUCHELLE, Marie-Chistine. Op.Cit.
58
SOUZA, Nri de Almeida. Op. Cit.
18
-19-
sentido, nosso trabalho avanar por um caminho ainda muito pouco explorado, discutindo as
portanto, que nosso estudo apresenta novas vises e possibilidades, enriquecendo o debate
pesquisadores apontam que o gnoves teria participado dos captulos de Luca, em 1288, e de
Ferrara, em 1290. Assim, ele estava imerso nos preceitos dominicanos, como tambm na
com Carolina Coelho Fortes, que, na sua dissertao Os atributos masculinos das santas na
Legenda urea. Os casos de Maria e Madalena,59 aps avaliar diferentes hipteses, situa a
trabalhar com duas edies da obra. A primeira a recente edio brasileira de 2003,
organizada por Hilrio Franco Jr., com 175 captulos. Sua base est na edio crtica de T.
59
FORTES, Carolina Coelho. Os atributos masculinos... Op.Cit.
19
-20-
Graesse,60 por sua vez, fundamentada em outras verses, a saber: a francesa do abade J.-B.
questiona quantos foram os captulos compilados diretamente por Jacopo, que variam entre
175 e 182. Esse debate figura como um dos maiores problemas em se trabalhar com a LA: as
um marco histrico, perpetuado atravs de diversas edies ao longo dos sculos. Como
sofreu acrscimos e revises ao longo dos anos, afirmamos que a compilao foi resultado de
sentido. Para tanto, trabalhamos com o levantamento de informaes dos relatos selecionados
que foram organizadas em quadros de leitura especficos aos nossos interesses.62 Estes foram
livro O Inventrio das diferenas, 63 e do historiador Jrgen Kocka que, no artigo Comparison
60
Edio impressa em 1845, reimpressa em 1890 e em 1969 com o ttulo Legenda urea, vulgo histria
lombardica dicta.
61
IACOPO DA VARAZZE. Legenda urea su CD-ROM. Texto latino delledizione critica a cura de Givanni
Paolo Maggioni. Firenze: SISMEL-Galuzzo, 1999.
62
Cf. ANEXO 1 QUADROS DE LEITURA UTILIZADOS.
63
VEYNE, Paul. O inventrio das diferenas. Histria e Sociologia. So Paulo: Brasiliense, 1983
20
-21-
and beyond,64 apresenta sua definio de comparao: Para os propsitos desse comentrio
eu quero enfatizar que comparar em Histria significa discutir dois ou mais fenmenos
Nesse trabalho, Kocka ainda afirma que os objetivos da comparao iro variar
objeto com o qual j possui familiaridade, ampliando seu espao de reflexo, evidenciando
Nossa abordagem enquadra-se nas propostas desse autor. Nesse sentido, ao comparar
hipteses que no poderiam ser percebidas de outra forma, construir explicaes histricas
comparativamente.
que nenhum objeto peculiar por natureza, ou seja, de forma absoluta. Nesse sentido, o
64
KOCKA, Jrgen. Comparison and beyong. History and Theory, v.42, p.39-44, feb. 2003.
65
Ibidem. p.39.
21
-22-
uma constante trans-histrica, com o uso de uma teoria que fornea os conceitos,
Nesse sentido, a discusso acerca dos significados do ideal de martrio, no sculo XIII,
foi fundamental para a nossa pesquisa, porque, seguindo a proposta de Veyne, acreditamos
os relatos analisados, conclumos que o elemento norteador de todos eles a ligao entre a
salvao da alma e o modo de vida cristo. Em outras palavras, seguir uma vida recheada de
boas obras, condizente com os valores cristos, era a forma de garantir a salvao da alma.
Nossa dissertao, alm dessa introduo, possui quatro captulos e a concluso, que
de Varazze e o contexto por ele vivido. Essa preocupao est em sintonia com a perspectiva
estabelecidas com/ pela Igreja e com/ pela Ordem Dominicana, duas instituies nas quais ele
esteve inserido. Optamos por esse tipo de correlao para centralizarmo-nos nos fatos com os
dominicano. A seguir, focalizamos nosso estudo na sua mais famosa obra e documento
utilizado por nossa investigao emprica: a LA. Nessa parte, iniciamos com reflexes sobre o
relaes entre a estruturao individual dos relatos, bem como a organizao geral da obra,
66
Ao utilizarmos a expresso funcionalidade prtica da santidade, estamos aludindo aos usos desta para
benefcios pessoais ou institucionais distintos como o incentivo a peregrinao ao lugar de culto de determinado
santo, o que atraa doaes e fiis.
22
-23-
com os discursos extratextuais com os quais Jacopo pde ter tido contato. Nesse sentido,
Nesse captulo, defendemos a hiptese de que Jacopo teria escolhido redigir uma
hagiografia, ou melhor, elaborar uma conpilao, por esta no ter uma rigidez dogmtica,
logo, permitia a abordagem de temas distintos. Ao colocarmos o estudo dos relatos sobre
a nossa hiptese de que Jacopo, ao compilar a LA, objetivou responder questes especficas
s relaes de poder nas quais estava inserido, como a valorizao do poder eclesistico, a
Pelgio sobre argumentando acerca das associaes entre o poder imperial e o religioso,
retomada no sculo XIII. Para tanto, exploramos essa temtica pelo desenvolvimento dos
movimentos herticos e das cruzadas, pela atuao dos missionrios mendicantes e pela
nesses fenmenos. Por fim, buscamos perceber como Jacopo abordou, na LA, o processo de
estabelecidas com a Ordem Dominicana e com a Igreja. Assim, defendemos que a promessa
23
-24-
ctaros, e o papel da Ordem Dominicana e da Igreja no combate a esse grupo religioso. Nossa
compilao. Em relatos distintos, ao longo da LA, temos o confronto de santos com hereges,
morte por um herege como meritria do martrio, o que seria um incentivo pregao dos
irmos dominicanos.
cruzadistas. Nesse sentido, pensamos no ideal norteador das cruzadas e em sua proximidade
ao da Guerra Santa, ambas ligadas noo de guerra justa. Seguindo nossa lgica,
levantamos a hiptese de que coroa do martrio fora colocada como recompensa aos que
morreram em uma Cruzada, assim como na guerra santa, por ambas serem justas.
Ressaltamos que tambm estudamos a participao dos missionrios mendicantes, que, cabe
Sobre essas questes, elaboramos como hiptese que a retomada dessa temtica foi
realizada por hagigrafos, nesse momento, como tambm pela prpria Igreja Catlica (atravs
mendicantes). Jacopo de Varazze, diante desse cenrio, selecionou relatos com os quais
24
-25-
Reservamos os dois ltimos captulos para a apresentao e o exame dos dez relatos
estudo das narrativas das mulheres e o quarto ao dos homens, seguindo a proposta de Kocka.
processo genderificao, estabelecido atravs das relaes de poder. Por fim, comparamos
esses apontamentos finais, visando a percepo das semelhanas e diferenas entre eles, tendo
as.
Aps a comparao dos relatos, defendemos que a LA no possui uma unidade de sentido,
sendo uma seqncia de topos. O elemento em comum aos captulos a defesa da vida crist para
seguidos, contudo eles so santos porque nasceram com a marca da graa divina, o que a vida
Nossa dissertao est organizada segundo as normas postuladas pelo SiBI publicadas na
pelo CEPG em 1997. Assim, ressaltamos que as referncias bibliogrficas esto de acordo com a
6023), de 2007.
67
PAULA, Elaine Baptista de Matos et al. Manual para elaborao e normalizao de Dissertaes Teses. Srie
Manuais de Procedimentos, n.5, 3 ed. Rio de Janeiro: SiBI, 2004.
25
-26-
CAPTULO 1
1. Apresentao
Para tanto relacionamos o contexto da Pennsula Itlica com alguns dados biogrficos do
dominicano para, a seguir, ponderarmos sobre a compilao. Nesta anlise, refletimos acerca
direcionamento de nosso olhar quanto s singularidades da LA, atravs da relao entre sua
sociedades acerca dos diferentes aspectos da organizao social, estando presente nas prticas,
1
Para mais informaes sobre Jacopo de Varazze e a LA cf. AIRALDI, Gabriella. Jacopo da Varagine tra santi
e mercanti. Milano: Camunia, 1988; BAUDOT, Jules. Jacques de Voragine. In: AMANN, mile; MANGENOT,
Eugne et VACANT, Alfred (dir.) Dictionnaire de thologie catholique. Paris: Librairie Letouzey et An, 1939;
DONDAINE, Antoine. Le dominicain franais Jean de Mailly et la Lgende Dore. Archives dhistoire
dominicaine, 1, 1946; BOUREAU, Alain. Les estrucutures narratives de la Legenda Aurea: de la variation au
grand chant sacre. In: DUNN-LARDEAU, Brenda (org.). Legenda Aurea: Sept Sicles de Diffusion. Actes du
Colloque international sur le Legenda Aurea: textes latin et brainches vernaculaire. Montreal-Paris: Bellarmin-
Vrin, 1986; REAMES, Sherry. The Legenda Aurea: A reexaminat of its paradoxical History. Wisconsin:
University Press, 1985; WYZEMA, Teodor de. Introduction In: La Lgende dore. Paris: Seuil, 1960. p. 18-
19.
2
FOULCAULT, Michel. A ordem do discurso. So Paulo: Loyola, 1996. p.9.
26
-27-
concordamos com Andria C. L. Frazo da Silva, que defende que nenhum discurso
Roger Chartier com Carlos Aguirre Anaya, Jess Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio
Saborit,4 estes esto estruturados nos enunciados, assim como no prprio sistema de
histrico considerando que a sua produo tambm um acontecimento que, como tal, deve
contudo nossa preocupao residir nas condies em que a Ordem Dominicana surgiu,
apontando a relao entre esta e a Igreja. Como assinalamos, a nossa proposta traar
da bibliografia e da LA.
nossa ateno esteve direcionada aos elementos extratextuais mais imediatos ao compilador,
pensando nos desafios enfrentados por essas organizaes e em como essas influenciaram na
entre os mbitos civil e religioso, aqui estudadas, aparecem na obra, defendendo a nossa
3
SILVA, Andria C. L. Frazo da: Reflexes metodolgicas sobre a anlise do discurso em perspectiva
histrica: paternidade, maternidade, santidade e gnero. Cronos: Revista de Histria, Pedro Leopoldo, n. 6, p.
194-223, 2002.
4
CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e histria: Conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre
Anaya, Jess Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre: ArTmeD, 2001.
27
-28-
desde os sculos XI e XII. Esses fenmenos teriam sido mais perceptveis na Itlia, por esta j
de homens e idias.6
A expanso das cidades italianas foi favorecida, principalmente, por uma maior e
melhor explorao dos campos somada intensificao das relaes comerciais.7 Sobre esse
5
Segundo Franco Cardini, um dos resultados dessas trocas comerciais e culturais foi o surgimento da primeira
forma de lngua verncula, comum s reas que passavam por um processo similar de urbanizao. O autor no
especifica qual teria sido esta. ____. A Itlia entre os sculos XI e XIII. MONGELLI, Lenia Marcia. (coord.):
Mudanas e rumos: o Ocidente medieval (sculos XI-XIII). Cotia: bis, 1997. p.85-107. p.87.
6
Para mais informaes sobre o contexto da Pennsula Itlica cf. ABULAFIA, David. Italy in the Central Middle
Ages: 1000-1300. Oxford: Oxford University Press, 2004; CAMMAROSANO, Paolo. Storia dell'Italia
medievale. Dal VI all'XI secolo. Roma-Bari: Laterza, 2001; DEAN, Trevor. The Towns of Italy in the Later
Middle Ages. Manchester: Manchester University Press, 2000; GENICOT, Leopold. La Europa nel siglo XIII.
Barcelona: Labor, 1976; HYDE, John Kenneth. Society and politics in medieval Italy: the evolution of the civil
life, 1000-1350. New York: St. Martin's Press. 1973.
7
Nesse processo, destacou-se o comrcio martimo realizado por Gnova, Veneza e Pisa.
8
GENICOT, Leopold. Op.Cit. p.68.
28
-29-
ca. 1105,9 defende que, no sculo XIII, a sociedade ocidental passou por um processo de
similiar, Indro Montanelli e Roberto Gervaso, no livro Itlia: os sculos decisivos, afirmam
que o mbito clerical possua duas vantagens sobre o laico. A primeira diz respeito a certo
monoplio cultural exercido pelo clero que seria o principal responsvel pelo ensino. A
segunda seria que a entrada na clerezia figuraria uma mudana do status social de
determinada pessoa, tornando mais fcil o seu acesso aos cargos militares e civis, reservados
a membros das fileiras nobilirias. Em suma, eles afirmam que o ingresso no mbito clerical
significaria que:
Ambos acabaram se tornando marcadores sociais de diferena cada vez mais visvel, sendo
vez mais habitual da escrita motivaram os burgueses a confiar aos clrigos partes da
que isso no implicou em um aumento da autoridade episcopal ou de qualquer outro tipo nas
9
MOORE, Robert Ian. La alfabetizacin y el surgimiento de la hereja, ca. 1000- ca.1105. In: GARCIA, Maria
Loring Isabel. La Edad Media a debate. Madrid: Akal, 2003, p. 552-570.
10
MONTANELLI, Indro et GERVASO, Roberto. Itlia: os sculos decisivos (Idade Mdia, ano 1000 a 1250.
O nascimento das comunas). So Paulo: IBRASA, 1968. p.29.
11
Ididem. p. 556.
12
Ressaltamos o cuidado com esse tipo de argumentao, afinal no intencionamos indicar que o processo de
alfabetizao clerical ocorreu de forma homognea para o clero inteiro. Defendemos que este estaria, ainda, mais
retrito ao alto clero.
29
-30-
cidades. Pelo contrrio, desde o sculo XII, a autoridade eclesistica sofria uma diminuio
gradual como el poder jurisdiccional ms importante de la ciudad,13 ficando cada vez mais
atrelada ao civil.
relevante nas cidades europias. No final do sculo XII e incio do XIII, foram se
e o imprio germnico.14 Segundo Cardini, apesar do poder eclesistico ter tentado construir
uma autonomia diante das potncias seculares, a cria romana no conseguiu evitar a
influncia dos poderes leigos fortes. Nessa mesma poca, a renovao da vida religiosa
comeou a ser registrada atravs de buscas por uma reforma na Igreja, para elevar seu nvel
relacionada a uma definitiva separao das hierarquias eclesisticas em relao aos poderes
laicos.16
imprio. Segundo Brenda Bolton, no livro A reforma na Idade Mdia,17 a Igreja tornara-se
negligente e mundana nas suas atividades. Reinava a simonia, isto , o abuso do trfico de
13
WALEY, Daniel. Las ciudades-repblica italianas. Madrid: Guadarrama. 1969. p.56.
14
Segundo Cardini, desde o sculo X, o papado esteve a mrce da dinastia dos tonidas que, a partir do
privilegium Othonis de 962, estabeleceu que os papas deveriam jurar fidelidade ao imperador. Alm disso, Oto I
e seus sucessores passaram a intervir mais na Igreja, fundando bispados e abadias. O autor afirma que estes
episdios deram incio a um processo denominado investidura leiga. Esta era marcada pelo controle da Igreja
pelo poder do Estado (Cesaropapismo), do qual surgiria, posteriormente, o fnomeno chamado querela das
investiduras. CARDINI, Franco. Op. Cit. p. 88.
15
Ibidem.
16
Brenda Bolton defende que, inicialmente, os ideais reformadores dos mosteiros de Cluny, Brogne e Gorze
estavam direcionados ao retorno a uma viso idealista da Igreja nos primeiros tempos, a ecclesia primitiva dos
apstolos. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1983. p.21.
17
BOLTON, Brenda. Op. Cit.
30
-31-
de dignitrios da Igreja.18
simonaco de suas funes,19 que objetivava, dentre outras coisas, uma separao definitiva
Destacamos que uma das reaes contrrias a essas medidas partiu, justamente, de famlias
A reforma pode ser dividida em dois plos com objetivos diferentes: um que propunha
um retorno a uma releitura da ecclesia primitiva dos apstolos e da pobreza de Cristo, com
uma ateno especial relevada pregao da palavra do Senhor; e o outro que pretendia
foram sentidas no fim do sculo XII, com o fortalecimento das tentativas laicas24 de retorno
pregao, o que aumentou o desejo dos leigos por aes pastorais direcionadas ao saeculum e
por uma maior participao laica na ecclesia. Os monges, tentando responder a tais
secular eram insuficientes e/ ou sem o devido preparo para a ao pastoral junto aos fiis.
18
Ibidem. p. 20.
19
importante ressaltar que no consideramos que a reforma colocou um fim definitivo a essas prticas, sendo
ainda mencionadas, quase que duzentos anos depois, no IV conclio de Latro.
20
Sobre esse processo, Cardini coloca que o imperador [refere-se a Henrique IV], amparado pelo clero alemo,
tomou posio contra a deciso papal, mas Gregrio agravou a situao proclamando em 1075 a superioridade
do pontfice sobre o imperador: ao papa cabiam as insgnias do imprio e a ele atribua-se o poder de depor o
imperador e, portanto, de liderar os sditos deste da obrigao de fidelidade. CARDINI, Franco. Op.Cit. p. 90.
21
Segundo Franco Cardini, esse processo teria iniciado no conclio lateranense de 1059, quando, com a eleio
do Papa Nicolau III, estabeleceu-se que a eleio do pontfice seria confiada a um colgio cardinalcio.
22
Idem.
23
BOLTON, Brenda. Op.Cit. p. 21
24
Cardini e Bolton, nos respectivos livros supracitados, defendem que os movimentos espirituais, j iniciados,
refletiam as inquietaes laicas em relao vida religiosa proposta pela Santa S, estando em consonncia com
as mudanas ocorridas nos meios social, econmico e poltico.
31
-32-
fim do sculo XII, de movimentos dissidentes que a Santa S considerou herticos, como os
que algumas Ordens, como a Franciscana e a Dominicana,30 sentiram pelas cidades estaria
espirituais laicas e uma atuao na defesa dos preceitos defendidos pela Santa S.
postulado mais ativo voltado ao meio urbano, caracterizado por um forte trabalho assistencial
e pela pregao calcada no estudo das Escrituras.33 Assim, Hilrio Franco Jr, na apresentao
25
Analisaremos a heresia ctara ou albigense no captulo II.
26
Em 1184, tanto os valdenses como os humiliati foram excomungados pelo decreto Ab abolendam, sob o
pretexto de pregarem ilegalmente e por possuirem pontos de vistas deturpados sobre a f e os sacramentos
cristos. De fato, ambos os movimentos procuravam viver sob a conformidade da vita apostolica, sendo que eles
se autoconsideravam em conformidade com os ideais da ortodoxia, no protestando contra a Igreja. BOLTON,
Brenda. Op. Cit. p. 63.
27
LAWRENCE, Clifford Hugh. The Friars. The impact of early mendicant movement on Western society. Nova
Iorque: Longman. 1994. p. 3.
28
Destacamos que a Ordem Dominicana figurou como uma exceo, j que foi formada por clrigos desde seus
primrdios.
29
LE GOFF, Jacques. As Ordens Mendicantes. In: BERLIOZ, Jacques. Monges e religiosos na Idade Mdia.
Lisboa: Terramar, 1994. p. 227-241.
30
O aumento quantitativo das Ordens foi tal que no Conclio de Lyon, em 1274, reconheceu apenas quatro
Instituies, trazendo-as para o seio da Santa S: a dos Frades Menores, a dos Pregadores, a dos Irmos da Bem-
Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo e a dos Eremitas de Santo Agostinho.
31
Ao colocar a expresso vaga ortodoxa fazemos aluso a atuao do clero secular e do monacato vista como
insuficiente frente s demandas espirituais especficas das cidades.
32
Ibidem. p. 228.
33
Uma das principais diferenas entre essas ordens era o fato da Ordem Dominicana ter optado pela posse de
bens materiais que os franciscanos, para auxiliar na formao intelectual dos pregadores. Portanto, segundo
32
-33-
Uma das melhores expresses desse novo quadro global tinha sido
exatamente o surgimento das Ordens Mendicantes, cuja prtica despojada
(no possuam bens materiais), humilde (viviam de esmolas), de apego
natureza (especialmente os franciscanos), de intensa pregao e represso
aos hereges (sobretudo os dominicanos), atendia melhor que as velhas
ordens monsticas s novas necessidades espirituais e sociais. 35
constituda apenas por clrigos; alm da busca pelo equilbrio entre pregao e erudio,
reconhecimento ocorreu em um momento conturbado para a Igreja que lidava com novos
desafios, como o combate aos distintos movimentos herticos, aos infiis e aos pagos; bem
como as conflituosas relaes com o poder imperial. Para compreenso acerca das contendas
entre o papado e o imprio nesse momento, cabe refletirmos sobre o cenrio poltico-religioso
Frederico II, confiando-lhe a alguns doutos da Igreja para sua formao educacional. Em
1209, aps a morte de seu pai, Henrique VI, ocorreu a coroao do imperador do Sacro
Pedro.
Pontifcio e seus limites, confirmando os direitos da Igreja sobre a Siclia. No entanto, logo
depois desse reconhecimento, o imperador desgostoso com sua recepo em Roma, permitiu
que seu exrcito espalhasse-se pelos territrios toscanos, inclusive o Reino da Siclia, que
Antonio Linage Conde, os dominicanos aceitaram terras e propriedades conventuais . Cf. ___. Las ordenes
mendicantes. Madrid: Histria 16. 1985. p.14.
34
JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos. FRANCO JR., Hilrio (trad.). So Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
35
Ibidem. p.13.
33
-34-
nesse momento, por doao, pertencia ao pontificado. Em resposta a essa traio, Inocncio o
excomunga em 1210.
O antema era mais uma arma poltica que espiritual, possuindo um forte poder
sugestivo sobre a populao. Nesse sentido, aps a excomunho, Oto ficou enfraquecido,
sendo destitudo por alguns prncipes, em Nuremberg, que coroam Federico II, com o apoio
de Inocncio III.36
Em 1211, Frederico II, que j havia reunido um exrcito com o objetivo de restaurar o
imprio a fora em 1209, ocupou Constance e recebeu a coroao oficial em Mainz em 1212.
Segundo David Abulafia, no livro Italy in the middle central ages,37 ele teria ficado oito anos
restaurando a ordem no reino germnico. Durante esse perodo, ocorreu uma segunda
cerimnia de coroao, em 1215, em Aachen, que lhe concedeu o ttulo de Rei da Germnia.
Frederico II possua o apoio do papa Inocncio III, que, em troca, exigiu do rei o
retorno do reconhecimento dos privilgios e direitos que Oto havia concedido Igreja. E,
ele foi coroado, pela terceira e ltima vez, como Imperador em Roma. Contudo, segundo
o ttulo de rei dos romanos, tornando-o seu herdeiro. Dessa forma, tomando para si a coroa.
36
GERVASO, Roberto e MONTANELLI, Indro. Op. Cit. p.186.
37
ABULAFIA, David. Op.Cit.
34
-35-
hereges, renovando o voto de tomar a cruz. Contudo, quebrou esses votos ao marchar a
Pglia, ao invs de ir Terra Santa, onde reuniu os bares e promulgou novas leis do reino.38
dos cristos na Palestina, apelou ao Imperador para que organizasse uma cruzada
prosseguisse. O papa convencido que fora trado por Frederico, o teria excomungado. Iniciou-
se, assim, uma guerra que contou com bulas papais que acusavam os Hohenstaufen de
se a juntar suas armas s dele e combater unidos os sarracenos.39 Diante disso, Frederico
conseguiu realizar acordos de paz com o Sulto Al Kamil, o que teria agradado cristos e
Segundo Roberto Gervaso e Indro Montanelli, o papa no teria ficado satisfeito, pois
acreditava que uma guerra santa s se efetivava com o extermnio dos infiis, e assim teria
instigado uma revolta contra o imperador no Sul da Itlia. Em 1227, iniciou-se o papado de
Gregrio IX (1227-1241) que foi obrigado a aceitar um acordo com Frederico aps este
invadir o Estado Papal. Nesse contexto, em 1230, nasceu Jacopo, em Varazze, local prximo
a Gnova.
Contudo, o acordo no significou o fim das disputas entre o papado e o imprio, que se
prolongaram, culminando com um novo antema, em 1239. No ano seguinte, no reino das
Duas Siclias, Frederico respondeu a esse com a destituio dos procos e dos bispos
38
GERVASO, Roberto e MONTANELLI, Indro, Op.Cit. p. 184.
.39 Ibidem, p.185.
40
Idem.
35
-36-
Montecassino.
Alm de pedir auxlio aos dominicanos para que, da mesma forma que pregavam contra os
Gnova e Pisa foram as cidades que mais se desgastaram com essas lutas, sofrendo um
Tireno, especialmente sobre Crsega e Sardenha, sendo rivais. Essa rivalidade foi acirrada
quando Pisa apoiou o Imprio nos conflitos entre Guelfos, que eram a favor do papa, e
Gibelinos, que sustentavam o imperador. Por tal razo, Frederico II teria concedido a
prosseguiram aps o papado de Gregrio IX, com Inocncio IV (1243-1254), que assumiu a
cria aps uma vaga papal e colocou seus propagandistas e agentes contra os Hohenstaufen.
Em 1244, o jovem Jacopo decidiu entrar na ordem dominicana aps ter tido contato
sendo agravado com o anncio da deposio do imperador Frederico II pelo papa em 1245,
que tambm teria convocado alguns irmos dominicanos para instigarem e pregarem uma
41
LAWRENCE, Clifford Hugh, Op.Cit. p. 186.
42
Veneza, envolvida por Gregrio IX nas contendas com o imprio, aps um perodo de crise, fortaleceu seu
comrcio com o Oriente.
43
AIRALDI, Gabriella. Jacopo da Varagine tra santi e mercanti. Milano: Camunia. 1988. p.140.
44
Alm dos problemas enfrentados com o imprio, os pequenos prncipes e oficiais locais desafiavam a
autoridade da cria ao fornecerem proteo aos hereges e, por vezes, rechaaram inquisidores e at bispos de
seus territrios. Cf. FORTES, Carolina Coelho. Os atributos masculinos das santas na Legenda urea. Os casos
de Maria e Madalena. Dissertao (Mestrado em Histria) Programa de Ps-graduao em Histria Social. Rio
de Janeiro: Universidade do Rio de Janeiro, 2003. p. 66.
45
Carolina Coelho Fortes defende que as aes adotadas por Gregrio e por Inocncio, durante o extenso
combate contra o imperador, abriram espao para que outros governantes desafiassem a autoridade da Igreja.
FORTES, Carolina Coelho. Op. Cit. p. 68.
36
-37-
Jacopo estaria estudando na Universidade de Bolonha47 nesse momento. Esta teria surgido
sua organizao foi distinta das outras grandes universidades, possuindo como disciplina
faculdade de teologia, criada apenas em 1364, foi monopolizada pelas Ordens Mendicantes.50
Em Bolonha, a lngua verncula j havia alcanado sua forma fixa, cujo contato teria
auxiliado Jacopo em suas pregaes. Devemos considerar que a pregao verncula era cada
vez mais utilizada na Itlia, nesse momento, especialmente pelos lderes dos movimentos
herticos. Richardson argumenta que, aps ter completado seus estudos, o dominicano teria
direo a Gnova, onde manteve uma produo epistolar pedindo auxlio ao clero para que
46
RICHARDSON, Ernest. Op.Cit.
47
A universidade bolonhesa, junto com a parisiense, possua uma certa notoriedade no mbito intelectual, sendo
uma das primeiras universidades estabelecidas ainda no sculo XII.
48
CARDINI, Franco. Op. Cit. p.95.
49
Em Bolonha, Jacques Verger sublinha a existncia de duas universidades: a dos italianos ou citramontanos e a
dos estrangeiros ou ultramontanos, dirigidas por reitores eleitos anualmente. No temos informaes sobre em
qual destas Jacopo estudou. VERGER, Jacques. Universidade. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-
Claude (Coord.). Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval. So Paulo: Imprensa Oficial/EDUSC, 2002. 2V,
v.2, p. 573-588.
50
Ibidem, p.578.
51
Frederico II faleceu em 1245, deixando seu filho Conrado IV como sucessor no reinado da Siclia. Este subiu
ao trono como Henrique VII e seguiu com os planos paternos de conquistar Roma, mas foi mal sucedido. Foi
exomungado em 1254. No detalharemos sua atuao como imperador, j que a LA menciona apenas o imprio
de seu pai. Para mais informaes, cf. ABULAFIA, David. Op.Cit.; WALEY, Daniel. Op.Cit.
52
Escreveu tambm o Sermo de Planctu beatae Mariae Virginis e o Sermo de passione Domini.
53
Cf. GUIDETTI, Stefania Bertini. I Sermones de Iacopo da Varazze. Firenze: SISMEL, 1998.
37
-38-
Marialis,57 produzidos a partir de 1255. Essa produo inicial estava direcionada ao auxlio de
membros da Ordem no combate aos movimentos herticos que viria a ser conhecida como
Em 1258, foi eleito prior da Gnova.58 Sua atuao indicaria que ele esteve presente
nos captulos provinciais e em muitos dos captulos Gerais. Alguns pesquisadores apontam
que Jacopo de Varazze teria participado dos captulos de Luca, em 1288, e de Ferrara, em
1290. Ele manteve-se nesse cargo at 1267,59 quando foi eleito provincial da Lombardia,
sendo reeleito algumas vezes. Cabe ressaltar que, de acordo com Fortes, a situao poltica e
religiosa estava conturbada nesse local, onde as seitas herticas dos valdenses e,
Ordem Dominicana, viajando para Florena e depois Bolonha, em 1272; para Budapeste e
Faventia, em 1273; para Lion e Milo, em 1274.60 Dois anos mais tarde, o dominicano
Inocncio V eleito papa, permanecendo apenas meses no cargo. Richardson aponta que ele e
Jacopo eram prximos, tendo convivido pelos menos nos Captulos Gerais.
A curta durao de seu pontificado teria sido uma surpresa para ordem, principalmente
devido ao fato do sucessor, Joo XXI (1276-1277), no ser muito prximo dos Mendicantes.
Richardson argumenta que essa antipatia do papa em relao aos mendicantes teria
54
Essa obra seria composta por 307 textos, podendo ser caracterizada como um santoral, cuja organizao
estaria alinhada ao calendrio litrgico dominicano estabelecido.
55
Segundo Richardson, estes totalizariam 98 sermes, quase todos dedicados Quaresma. Cf. JACOBI A
VARAGINE. Sermones quadragesimales eximii doctoris, fratris Iacobi de Voragine, ordinis paedicatorum,
quondam archiepiscopiianuensis. Ex Officina Ioannis Baptistae Somaschi, 1571.
56
Segundo Fortes, essa compilao tem sua base no missal romano quanto no dominicano, reunindo elementos
importantes da religiosidade dominicana em trs sermes: em honra Trindade, Virgem e a Domingos. Cf.
JACOBI A VORAGINE. Sermones domenicalis per totum annum. Venetiis: Ex Officina Ioannis Baptistae
Somaschi, 1586.
57
Composto em 1294, essa coletnea de 161 sermes trata das virtudes da Virgem Maria.
58
Richardson destaca que ele tambm poderia ter sido prior em Bolonha, Asti, Como ou Acqui. RICHARDSON,
Ernest. Op. Cit., v. 2. p. 36.
59
Cabe ressaltar que segundo Daniel Waley, entre 1265/1268, a causa dos Hohenstaufen marca o final de uma
fase e incio de outra, j que o guelfismo era caracterizado por um sistema de alianas voltadas a manuteno de
certa configurao de poder. WALEY, Daniel. Op. Cit. p.203.
60
RICHARDSON, Ernest. Op. Cit., v.3. p.19.
38
-39-
dominicano teria retornado ao posto em 1281. Segundo Carla Casagrande, de 1283 a 1285, il
exera les fonctions de rgent de lOrdre aprs la mort de Jean de Verceil et avant llection
dentre outros foi sugerido para substitu-lo. O papa concedeu embaixada genovesa a
escolha de um dos candidatos apresentados. Jacopo teria sido eleito por unanimidade,
No ano aps sua eleio, o dominicano comeou a escrever a Cronaca della citta di
Genova dalle origini al 1297,64 cuja temtica era a cidade e seus fundadores, abordando
questes polticas, colocando as regras para o bom governo e argumentando como ser um
sublinha que apesar da obra ter sido redigida e publicada nesse ano, ela foi editada pela
segunda vez em 1296, sendo reeditada por, aparentemente, Jacopo at sua morte.
uma certa reputao de santidade, sendo em 1816, beatificado pelo papa Pio VII.65
com o poder civil. Essas relaes de poder nutriram uma necessidade de alcanar novos fiis e
atrair as almas perdidas de volta para seu seio. Esse o pano de fundo da produo literria
61
Ibidem, p. 20.
62
De 1283 a 1285, ele exerceu as funes de regente da Ordem aps a morte de Jean de Verceil e antes da
eleio do novo Mestre Geral, Munio de Zamorra. Cf. CASAGRANDE, Carla. La vie et les oeuvres de Jacques
de Voragine, 2007. Disponvel em: http://www.sermones.net/spip.php?article4&artsuite=0#sommaire_2. Acesso
em: 17/03/2008. Traduo nossa.
63
Alm disso, destacamos que, segundo Ernest Richardson, Jacopo era conhecido como apaziguador (____.
Op. Cit. p. 62 et. Seq.). Entre outros motivos, esse reconhecimento deve-se a sua atuao na negociao de paz
entre Gnova e Pisa no fim da Batalha de Meloria, no dia 3 de abril de 1288. Neste ponto, cabe destacarmos que
a rivalidade entre essas cidades, como argumentado anteriormente, iniciou devido s pretenses de ambas em
dominar a economia martima no Tireno, tendo se agravado quando elas assumiram posies opostas no conflito
entre Guelfos e Gibelinos. A batalha iniciada em 1284 teria significado o incio da derrocada de Pisa como
potncia no comrcio martimo.
64
JACOPO DA VARAGINE. Cronaca della citta' di Genova dalle origini al 1297. Torino: ECIG, s/d.
65
REAMES, Sherry. The Legenda Aurea: A reexaminat of its paradoxical History. Wisconsin: University Press,
1985. p.15.
39
-40-
Contudo, apesar de sua extensa produo literria, cujos temas tocaram em questes
Legenda sanctorum alias Lombardica hystoria, dita Legenda urea, que foi transmitida por
mais de mil manuscritos e mais de duzentas edies e tradues, durante o primeiro sculo
aps a sua publicao. Antes de adentrarmos em questes especficas sobre essa compilao,
objetivao das obras hagiogrficas como literatura crist,67 relativa santidade, como
tambm sua valorizao, concomitante expanso do culto aos santos. No artigo Palavra de
plpito e erudio no sculo XIII. A Legenda urea de Jacopo de Varazze, Nri de Almeida
Souza68 diz:
66
Diante da sua produo literria e de sua atuao como dominicano e arcebispo, Richardson aponta que, nesse
perodo caracterizado pela celebrao do conhecimento escolstico, Jacopo destacara-se por sua erudio, sendo
conhecido como Jacopo, o telogo (Ibibem, p.3).
67
O termo hagiografia possuir razes gregas, hagios = sagrado e graphia = escrita, neste sentido envolvia
questes e temas no mbito mais amplo do sagrado, no sendo circunscrito ao cristianismo.
68
SOUZA, Nri de Almeida. Palavra de plpito e erudio no sculo XIII. A Legenda urea de Jacopo de
Varazze. Revista Brasileira de Histria, n.43, p. 68-84, 2002.
69
Ibidem, p.69.
40
-41-
que se tornaram interdependentes. Se, por um lado, o culto aos santos facilitava a
receptividade das hagiografias, por outro, estas nutriam tal prtica pela sua prpria natureza e
por seu papel didtico e carter propagandstico. Essa relao constituiu um mecanismo de
-poltico.
-se, a priori, a fixar na memria as aes dos heris da nova f.71 No entanto, concordamos
com Fortes ao afirmar que isso no significava construir um relato biogrfico, mas retratar o
Les legende dore: Le systme narratif de Jacques de Voragine (+1298),75 que argumenta que
o significado da narrativa hagiogrfica, ao contrrio dos contos tradicionais, estaria fora dela,
70
Defendemos que as relaes entre hagiografia e santidade constituram um importante elemento nas operaes
convencimento da Igreja.
71
BOESCH GAJANO, Sofia. Santidade. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. (Org.). Dicionrio...
Op. Cit. p.449-462. p.253.
72
FORTES, Carolina Coelho. Op. Cit., p. 202.
73
Delehaye enfatiza o aspecto ficcional da hagiografia. Portanto, a leitura deste gnero no deveria ser calcada
nos padres do criticismo histrico. (DELEHAYE, Hippolyte. Les legendes hagiografiques. Bruxelas: Societ
des Bollandistes, 1973. p.3).
74
VAUCHEZ, Andr. La Santit nel Medioevo. Bologna: Molino, 1989.
75
BOUREAU, Alain. Les legende dore: Le systme narratif de Jacques de Voragine (+1298). Paris: Cerf,
1984.
41
-42-
Nesta lgica, os santos eram o objeto central das obras hagiogrficas. Partindo destas
O santo marcado desde o seu nascimento pela graa divina. A sua vivncia entre os
homens serve justamente para atestar essa santidade inerente; atravs da manifestao de suas
sentido, Vauchez argumenta que ao santo era imputada uma separao radical da condio
humana.76 No entanto, defendemos que apesar dos santos serem profundamente relacionados
existncia. Neste sentido, poderiam ser evocados no combate s foras do mal ou agir como
As hagiografias, muitas vezes, retratam os santos como aqueles que abdicaram dos
presente na LA, em que h uma constante associao entre a santidade e a renncia sobre-
apenas cinco so de santos contemporneos ao compilador, ou seja, dos sculos XII e XIII, a
Canteburry e Santa Isabel da Hungria.77 Nri de Almeida Souza78 defende que o uso de
76
VAUCHEZ, Andre. Op. Cit. p. 291.
77
Sublinhamos que este relato no consta na edio brasileira de Hilrio Franco Jr.
78
SOUZA, Nri de Almeida. Idem.
42
-43-
relatos antigos possibilitaria ao dominicano ponderar algumas questes de seu tempo, mais
livremente.79
antigos, permitiram Jacopo trabalhar com personagens que venceram o corpo na vida e na
de leo, leite, sangue ou luz. Este encadeamento de fenmenos constitui um cdigo sensorial
Os santos eram aqueles que iam alm da condio humana, dessa forma, evidenciando
Jacopo de Varazze considera o corpo como meio de alcanar a santidade, atravs da subverso
dos sentidos e dos sentimentos e da exposio do corpo dor, estando em sintonia com os
79
Boureau afirma que considerando a mensagem tradicional e conservadora de Jacopo, no surpresa ele ter
selecionado, quase que totalmente, santos-heris da Igreja Primitiva, j que a sua santidade inimitvel.
Defendendo que Jacopo, assim como muito outros autores, teriam considerado os mrtires como modelos
capilares de santidade e virtuosidade. BOUREAU, Alain. Op.Cit)
80
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: Op.Cit.. p.13.
81
Ibidem.
82
POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
83
Corroborando com essa hiptese, temos que dos cento e cinqenta e trs santos biografados, pela edio de
Hilrio Franco Jr., noventa e um foram martirizados de oitenta e uma formas diferentes.
43
-44-
postular modelos de conduta,84 usando o que era exemplar. Alm disso, os hagigrafos ainda
obteve novo impulso com a atuao das ordens mendicantes. Dentre elas, destacaram-se as
ordens dos Frades Menores e a dos Dominicanos, que atravs da produo de obras em lnguas
uma obra de natureza hagiogrfica devido a sua funcionalidade e por j existir um espao de
diferentes tipos hagiogrficos ao longo da obra milagres, translao, vidas, entre outros e
temticas festas crists, a superao do corpo, o diabo, a morte, entre outros. Dessa forma,
postulou questes especficas ao seu interesse, algumas das quais sero pensadas a seguir.
provavelmente, foi redigida aps a morte do Imperador Frederico II, em 1249, pois este
44
-45-
ano da morte de Pedro Mrtir, j que ficaria implcito que desta data at a publicao da obra
Milo ficara livre da presena hertica.86 O autor defende que a estrutura da obra deveria estar
LA muito extensa, seguimos Carolina Coelho Fortes87 que, aps avaliar os trabalhos de
alguns desses pesquisadores, estabelece que a primeira redao deve ter sido realizada na
dcada de 60, do sculo XIII. De acordo com Paolo Giovanni Maggioni,88 a compilao
passou por vrias revises do prprio Jacopo, ou consentidas por ele, ao longo de sua vida.
Richardson corrobora com essa afirmao tendo em vista a extensa quantidade de manuscritos
para o catalo, no ltimo quarto do sculo XIII, e para o alemo, em 1282. Em torno de 1340,
foi elaborada a primeira traduo para o francs; em provenal na primeira metade do sculo
facilitou ainda mais a difuso dessa obra, surgindo edies do documento em latim a
primeira foi em 1470 e, crescentemente, em lnguas vernculas iniciando com uma edio
Segundo Robert Seybolt,89 entre 1470 - 1500, foram publicadas em torno de cento e
cinqenta e seis edies da LA. Entre 1500 e 1530 so encontradas menos edies: vinte e
uma em latim e vinte e oito em vernculo. Com o tempo, percebemos uma queda desse ritmo:
de 1531 a 1560 podem ser encontradas apenas treze edies; sete em latim, quatro em francs
mudanas realizadas, a quantidade de captulos compilados por Jacopo, entre outras questes.
86
FORTES, Carolina Coelho. Op.Cit., p.113.
87
Idem.
88
IACOPO DA VARAZZE. Op.Cit.
89
SEYBOLT, Robert Francis. The Legenda Aurea, Bible, and Historia scholastica. Speculum, v. 21, n.3, p. 339-
342, julho de 1946.
45
-46-
de relatos de martrios presentes na LA, optamos por utilizar duas edies da obra. A primeira
a recente edio brasileira de 2003, organizada por Hilrio Franco Jr., com 175 captulos.90
Sua base est na edio crtica de Theodor Graesse, por sua vez, baseada em outras verses, a
saber: a francesa do abade J-B. Roze, de 1967, e a inglesa de Granger Ryan e Helmet
Justificamos a opo por duas edies da LA devido s modificaes que a compilao sofreu
quantos foram os captulos compilados por Jacopo, que variam entre 175 e 182.
Dito isso, buscaremos contornar esses problemas suscitados pela produo da LA,
destinatrios com a sua prpria configurao geral e a individual de seus captulos, tendo em
A LA uma obra constituda por relatos relativamente curtos sobre santos (as) e datas
90
VARAZZE, Jacopo. Op. Cit.
91
IACOPO DA VARAZZE. Op.cit.
92
RICHARDSON, Ernest. Op. Cit. p. 42.
46
-47-
Igreja, e utilizada pelos dominicanos, das festas religiosas, relacionadas a cada corte temporal.
A obra est organizada em cinco partes: inicia com as festas do tempo da Renovao,
indo do Advento ao Natal; segue com as celebraes ocorridas nos perodos da Reconciliao
Lectura Crtica de libros94 acerca da edio da LA feita por Alessandro e Lucetta Vitale
Brovarone, defende que essa organizao das biografias era uma novidade em relao s
organizao dos captulos, ao invs de seguir uma tipologia (milagres, vidas, paixes e outros)
Alain Boureau defende que a distribuio dos relatos revelaria um propsito didtico.
Para o autor, Jacopo no buscou originalidade nos relatos nem individualizou os santos, pelo
contrrio, ele teria construdo uma narrativa com uma proposta universalizante e atemporal,
da obra, como a vida inspirada em Cristo, e nas releituras sobre a Igreja primitiva, com os
47
-48-
episdios com a valorizao do ideal de vida apostlica e no apoio nas Escrituras que seriam
guias na orientao religiosa, nos sermes e na conduo moral da vida. Dentre eles, a
converso (e no combate) dos hereges e dos infiis ou fornecendo material para os sermes
apostlicas dos pregadores ou nas doutrinrias dos professores.97 Este impasse cresceu
sociedade.98
remisso ao Evangelho, o que acreditamos que indicaria seu uso para instruo dos demais
96
Os exempla so relatos breves e de fcil memorizao, cabveis de serem destacados de seu contexto e
utilizados como instrumentos de persuaso nos sermes.
97
Se, por um lado, segundo Richardson, Jacopo vive em um perodo de valorizao da cultura escolstica e da
erudio; por outro, segundo Maria Hernndez Esteban, devido ao advento das heresias e ao crescimento de uma
espiritualidade laica associada a uma pregao popular, esse tambm fora um perodo de valorizao de uma
cultura da pregao. Esta autora completa que a Ordem Dominicana, como brao direito da Igreja, cumpriu um
papel decisivo, provavelmente, por buscar um equilbrio entre esse dois mbitos. ESTEBAN, Maria Hernandez.
Leitura crtica da edio... Op.Cit.
98
Nesse ponto, cabe ponderarmos que o discurso de Jacopo visto, por Boureau, como tradicional cuja natureza
conservadora poderia ser entendida pelo perigo dos movimentos herticos juntamente com qualquer inovao
relacionada f. A tradio seria, portanto, uma tentativa de salvaguardar uma pretensa ortodoxia BOUREAU,
Alain. Op. Cit. p.214.
48
-49-
Isaias, J e Salmos, assim como ao remeter-se a autores cristos (como, por exemplo,
autoridades doutrinrias o apoio erudito necessrio para construir um santoral cuja veracidade
seria validada.
Contudo, por outro lado, o uso recorrente dos exempla e o destaque aos feitos
santidade dos personagens. Richardson tambm destaca que as breves etimologias, que
antecedem a maioria dos relatos sobre santos, possuiriam a mesma conotao alegrica, sem
questo. Assim, o autor destaca sobre as etimologias: The purpose was, however, not
instruction in history but inspiration in religion and he chooses, arranges and treats his
apologtico: a existncia de uma recompensa em manter-se fiel ao ideal cristo, mesmo que
hereges.
este dualismo e as tenses entre pregao e ao, se nos questionarmos sobre os possveis
destinatrios da LA. Como ponto de partida, apontamos um argumento de Hilrio Franco Jr.:
99
No entanto, o propsito no foi a instruo em histria, mas inspirao religiosa e ele escolhe, organiza e trata
seu material de acordo. Idem.
49
-50-
A partir deste trecho, podemos imputar LA trs funes diretamente relacionadas aos seus
como obra de edificao e como fonte de consulta para o preparo dos irmos pregadores.
Portanto, defendemos que Jacopo de Varazze pretendia atingir dois pblicos principais
de formas distintas. O primeiro e mais imediato era formado por clrigos, especialmente, os
considerarmos que a lngua original de redao foi o latim e que parte do material abordava
doutrinais; breves ensaios sobre a histria de elementos particulares da liturgia; notas crticas
sobre os conflitos entre uma fonte e outra, entre outros poderamos circunscrever o pblico
mais direto parte do clero bem educada. O segundo seriam todos os demais cristos,
infiis e a manuteno dos fiis. Somado a isso, ainda percebemos a promoo dos preceitos
religiosos propostos pela Igreja e a colocao da lei divina acima das demais, mesmo dos
poderes imperiais.101
100
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit. p. 12.
101
Acreditamos que essa questo relacionar-se-ia a resqucios da Reforma Eclesistica ou Gregoriana e o
processo de separao das coisas eclesisticas das laicas. Essa distino visava retirar a Igreja e os clrigos do
domnio laico. Contudo, a lei divina, representada pela Igreja, no poderia ser submetida a nenhuma outra.
102
A estrutura conduz o curso da histria. BOUREAU, Alain. Op.Cit. p. 7.
50
-51-
almejado, por Domingos, equilbrio entre estudo e pregao ao compilar uma extensa obra,
cujas leituras forneceriam instruo e material suficientes para garantir a eficcia da prdica.
Em outras palavras, consideramos que se o seu uso inicial era a instruo dos clrigos, seu
objetivo final era tornar mais eficaz a disseminao e o entendimento dos pressupostos cristos
religioso
Nessa parte, refletiremos em como algumas das questes aqui estudadas aparecem na
LA,103 centralizando-nos na relao entre o poder religioso e o secular. Iniciamos, ento, com
uma reflexo mais geral acerca das disputas entre eles e, a seguir, especificaremos nas que
respectivamente.
relatos presentes na LA, de forma mais direta ou no. Encontramos constantes referncias ao
fato do poder representado pela Santa S estar acima do Imperial ou Real. No captulo sobre
Santo Ambrsio acreditamos importante ressaltar a passagem na qual Jacopo trata da relao
que Ambrsio solicitou ao Imperador que perdoasse aqueles que o ofenderam. Apesar de
seguir sua orientao e perdo-los, Teodsio foi instigado pela m ndole dos cortesos e
mandou matar muitas pessoas. To logo soube do ocorrido, o bispo proibiu a entrada do
103
Ressaltamos que as pginas especificadas para os relatos e as citaes realizadas aqui fazem referncia a
edio brasileira de Hilrio Franco Jr..
104
A primeira narrativa est na pgina 358 e a segunda, nas pginas 363-364.
51
-52-
imperador na igreja de Milo, a no ser que este fizesse penitncia para pagar pelos seus
Na segunda narrao desse mesmo episdio, percebemos uma sutil diferena. Nesta,
mais autoridade ao seu relato. Nesta verso, durante uma revolta em Tessalnica, alguns
juzes foram apedrejados pelo povo e o imperador Teodsio, revoltado, mandou matar 5 mil
pessoas, sem diferenciar culpados de inocentes. Quando foi a Milo, foi proibido de entrar na
divina.105 O dominicano caracteriza o bispo como um autntico pontfice por ele no temer
o imperador, o que, em nossa opinio, seria uma crtica aos sacerdotes que se curvavam
Rufino insiste e segue para Milo, mas no consegue alterar o jugo de Ambrsio.
Assim, o imperador decide reencontr-lo e aceitar a punio pelos seus pecados. Aps
105
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit. p. 363.
106
Ibidem, p.364.
52
-53-
sculo XII. Jacopo responde diretamente aos conflitos entre o papado e a dinastia
sculo XIII. Neste sentido, ele posiciona-se acerca do lugar do imperador em relao Igreja,
Pelgio. Assim, narrou a relao entre Oto IV (1198-1215) e Inocncio III, que se encontrava
partir do momento em que o papa pde destitu-lo do cargo. Contudo, como analisamos,
anteriormente, o antema enfraqueceu Oto, fazendo com ele perdesse apoio, sendo destitudo
por outros representantes do poder civil, mas no por Inocncio III, como narra Jacopo.
A seguir, ele continua com a narrativa da relao entre Frederico e a Igreja da seguinte
forma:
Quando Oto foi deposto, elegeu-se Frederico, filho de Henrique, que foi
coroado pelo papa Honrio. Ele promulgou timas leis para a liberdade da
Igreja e contra os herticos. Ultrapassou todos os monarcas em riqueza e
em glria, mas deixou-se enganar pelo orgulho que tinha delas. Foi, de fato,
um tirano da Igreja, pois encarcerou dois cardeais e mandou enforcar os
107
Idem, p.1024.
53
-54-
apresent-lo como um timo aliado s leis da Igreja e colocar que seus atos contra a mesma
foram posteriores, resultados de seu orgulho. Acreditamos que Jacopo no menciona a relao
entre Frederico e o papa Inocncio IV por este ainda estar vivo, durante a redao da obra.
Assim, podemos concluir que, atravs de relatos da LA, Jacopo postula respostas s
defende posies pessoais em relao ao clero e o seu envolvimento com o mbito civil, que
produto das relaes de poder, nas quais seu compilador est inserido.
3. Consideraes parciais
religiosos laicos. Em suma, a sociedade medieval passou por diversas transformaes, ligadas
enfrentava novos desafios com o surgimento dos movimentos religiosos laicos, como as
Ordens Mendicantes, as confrarias, assim como as distintas heresias, resultados de uma busca
A partir desse contexto, pensamos como as relaes estabelecidas para/ com a Igreja e
a Ordem Dominicana assim como entre essas duas instituies influenciaram a produo
108
Ibidem.
109
Veremos essa colocao em relatos contemporneos no prximo captulo com a anlise do martrio
imaginrio de Domingos de Gusmo e a relao com os hereges.
54
-55-
e hagiografia, conclumos que o compilador teria escolhido tal gnero, por este no possuir
variados.
compilao foram o de postular modelos de boa conduta para instruo dos seus irmos e o
entre os fis e a converso dos infiis e hereges. Partindo desta premissa, tambm afirmamos
que Jacopo, ao compilar a LA, posicionou-se politicamente nas relaes de poder entre a
Alm disso, defendemos que a obra representava uma tentativa de atingir o equilbrio
entre erudio e ao. Portanto, a explorao das particularidades de cada vitae que a compe
favorecia seu carter didtico e seu uso na pregao, possibilitando o vnculo entre o leigo e o
santo em questo. Em suma, Jacopo preocupou-se em afirmar que o ideal de vida crist
poderia ser seguido por qualquer um, no entanto, esta mensagem precisaria da ampla
receptividade da obra, proporcionada pela oralidade, ou seja, pela pregao. Em suma: Jacopo
110
VARAZZE, Jacopo. Op. Cit.
55
-56-
Por ltimo, conclumos que, a partir dos discursos com os quais Jacopo teve contato,
ele preocupou-se em contra atacar erros doutrinais especficos associados aos hereges de seu
tempo aparecendo em distintos relatos. Contudo, influenciado pelos conflitos entre o papa e o
poder civil, ele selecionou narrativas que forneceriam material necessrio e adequado para os
56
-57-
CAPTULO 2
da Cristandade
1. Apresentao
Como j assinalamos, a temtica do martrio foi difundida, a partir do sculo II, por
hagigrafos, devido ao advento das perseguies aos cristos, no mbito do Imprio Romano.
Ento como podemos compreender a sua retomada, no sculo XIII, estando presente em
hagiografias e em documentos papais? Essa foi uma das perguntas iniciais de nossa pesquisa.
Este estudo preliminar foi fundamental para a nossa anlise dos relatos dos mrtires, presentes
na LA, no apenas por nos fornecer uma compreenso dos significados que esses personagens
tinham nesse momento, como tambm por auxiliar na nossa interpretao do porqu Jacopo
de Varazze ter reservado a maioria dos captulos a eles, especialmente aos martrios ocorridos
Nesse captulo, exploramos duas vias que selecionamos para compreenso desse
fenmeno: os movimentos herticos e as cruzadas. Ressaltamos que elas foram tratadas tendo
em vista as relaes de poder estabelecidas entre hereges e infiis com a Igreja e com a
cristianismo.
A seguir, iremos analisar o porqu dos hereges serem vistos como um problema para a
57
-58-
heresia ctara. Desse ponto, pensamos como a questo do surgimento dos movimentos
herticos influenciou a produo da LA. Para tanto, correlacionamos as reflexes dessa parte
inicial com a anlise do relato sobre o martrio imaginrio de So Domingos (p.614/ 631).2
cruzadista. importante ressaltarmos que nossa anlise centralizou-se nas cruzadas contra os
infiis, no geral, sem nos especificarmos em uma, j que nossa preocupao reside na
hagiogrficos surgiram a partir do culto aos mrtires, se limitando quase que exclusivamente
s Actas de los mrtires, cujo exemplo mais antigo seria o martrio de So Policarpo, de
meados do sculo II. Contudo, o autor no acredita que essa tenha sido a primeira expresso
os mrtires, que narravam dos ltimos dias de suas vidas at a sua morte.5 Como assinalamos,
2
Cabe sublinharmos que as pginas dos relatos referem-se edio brasileira realizada por Hilrio Franco Jr.
JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos. FRANCO JR., Hilrio (trad.). So Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
3
BAOS VALLEJO, Fernando. La Hagiografa como Gnero Literrio em la Edad Media. Tipologia de Doce
vidas individuales castellanas. Oviedo:. Departamiento de Filologia Espaola, 1989.
4
Ibidem, p. 29.
5
Haveriam ainda outros dois tipos de produo literria sobre os mrtires, os acta ou gesta e as legendas picas
e romanescas. O primeiro grupo de textos tratavam dos interrogatrios e julgamentos, enquanto o segundo
abordava a vida do personagem, estando prximos ao gnero pico ou ao romance histrico.
58
-59-
durante as perseguies aos cristos.6 Eles so norteados por episdios incrveis, sendo
conferiram uma nova significao ao termo grego que designava, originariamente, testemunha
(martyr).
aquele que, apesar de nunca ter visto ou ouvido Cristo em vida, estaria to convencido das
verdades do cristianismo que preferia morrer a renegar sua f. Blasucci afirma que o mrtir
seria a testemunha perfeita de Cristo (imitatio Christi), j que o imitava na vida e na morte,
Cristo sobre o mal,9 sendo a extenso do seu sacrifcio de sangue, colocando-se como
Charles Altman, no artigo Two types of oppositionand the structure of saints lives,10
argumenta que as narrativas sobre os mrtires antigos possuem, necessariamente, uma forte
oposio entre esses e seus perseguidores, com um desenrolar concreto de eventos: a priso,11
o interrogatrio e o martrio.
Calavia Saz defende que as notcias sobre as perseguies aos cristos circulavam devido ao
6
Di Berardino ressalta que o culto aos mrtires comeou a ganhar contornos especficos como resultado do
prprio nascimento da literatura hagiogrfica . DI BERARDINO, Angelo et all. Martrio. In: _____. (Org.)
Dicionrio Patrstico e de Antigidades Crists. Petrpolis: Vozes, 2002. p.895-902. p. 896.
7
MORENO, Jos Garrido. La pena de muerta em la Roma Antigua: Algunas reflexiones sobre el martrio de
Emeriterio y Celedonio. Kalakorikos, n. 5, p. 47-64, 2000. p. 49.
8
BLASUCCI, Antonio. Martrio, imolao, sacrifcio. In: GUIMARAES, Almir Ribeiro (Org.). Dicionrio
Franciscano. Petrpolis: Vozes, 1999. p.416-420. p. 416.
9
Lucy Grig, no artigo Torture and truth in late antique martiryology, argumenta que os smbolos de tortura ou
morte atrelados s iconografias dos mrtires representavam a sua vitria sobre os instrumentos utilizados para
causar-lhes os suplcios. GRIG, Lucy. Torture and truth in late antique martiriology. Early Medieval Europe, v.
2, n.4, p.321-336, 2002.
10
ALTMAN, Charles. Two types of Oppositionand the structure of latin saints Lives. Medievalia et Humanistica,
n.6, p.1-11, 1975.
11
Nesse ponto, cabe ressaltarmos que a prtica do crcere foi adotada apenas no Alto e no Baixo Imprio,
figurando como parte da pena capital. MORENO, Jos Garrido. Op. Cit, p.58.
12
SAZ, Oscar Calavia. Religio e restos humanos. Cristianismo, corporalidade e violncia. Antropologia em
primeira mo, n. 55, p. 1-27, 2003. Disponvel em: http://www.antropologia.ufsc.br/55.%20oscar-
cristianismo.pdf. ltimo acesso: 17/03/2008.
59
-60-
de acepes sobre essas afirmando que Tertuliano insistiu no carter implacvel delas,
enquanto Orgenes ressaltou que Deus protegeu muitos cristos para evitar uma guerra que
acabasse com a comunidade crist. Ele conclui que os discursos culminavam no argumento de
descomunal.13
O autor tambm afirma que as fontes da poca indicariam que os relatos martiriais
eram feitos para serem lidos em voz alta para multides de peregrinos e devotos: o objetivo
era o de criar uma exaltao emotiva propcia aos fins da terapia, tratando-se de um modelo
Segundo Lucy Grig, no artigo Torture and truth in late antique martiriology,15 o
mrtir era um soldado de Cristo que confrontava a fora do mal, representada, nesse
momento, pelo estado romano. Nessa lgica, este personagem desejaria a sua morte,
exarcebando as torturas, j que, dessa forma, quanto maiores fossem os seus sofrimentos,
maior seria a demonstrao da vitria crist coroada com a sua morte. Segundo a autora, os
construo desses personagens que invertiam as relaes de poder nas torturas17 e nas
execues. Nestas, o mrtir deseja a sua morte, procurando exacerbar os suplcios recebidos,
dentro da lgica de que quanto maior forem os sofrimentos, maior ser a demonstrao da
13
Ibidem, p.9.
14
Ibidem, p.10.
15
GRIG, Lucy. Op.Cit., p. 323.
16
O autor Oscar Calavia Saz defende que a narrativa das crueldades dos suplcios serviria para construo do
culto aos santos. SAZ, Op.Cit..
17
Segundo a autora, no Imprio, todos eram submetidos ao uso da fora no interrogatrio (questio per tormenta),
j que esta seria a nica forma de garantir a verdade. GRIG, Lucy. Op.Cit., p.323.
60
-61-
(mrtir) no torturado para confessar seu crime a no adorao dos deuses , mas sim para
refut-lo.18
Aps o reconhecimento do cristianismo como religio oficial pelo Imprio, Nri de Almeida
Souza, no artigo Hipteses sobre a natureza da santidade,19 afirma que a Igreja iniciou um
processo de exaltao da vida asctica,20 contudo, mantendo laos com o ideal de martrio,
sendo identificado como branco ou espiritual. Este era caracterizado por uma intensa ascese,
com a valorizao da exposio do corpo aos limites naturais, atravs de penitncias, das
proximidade: a superao do limite fsico. Ou seja, os santos eram aqueles que iam alm da
texto The White martydom of Kateri Tekakwitha,21 ao analisar o caso desta beata do sculo
XVII, argumenta que o martrio espiritual a total oferenda da vida do santo a Deus. Nessa
modalidade, os santos morreriam para o mundo e seus prazeres, seguindo uma vida herica de
devoo ao Senhor.
Essa mudana tambm teria tido repercusses em relao ao culto aos mrtires, no
qual Angelo di Berardino destaca trs importantes alteraes. A primeira foi a gradual
eliminao de qualquer associao que poderia fazer crer que a igreja orava pelos mrtires,
afirmando que esses personagens que rezavam por todos. O culto no os tornaria iguais a
18
GRIG, Lucy. Op.Cit. p.328.
19
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4,
p.11-46, 2002.
20
Segundo Blasucci, at o final do sculo IV, somente os mrtires eram objetos de honra e cultos. Assim, com o
fim das perseguies foram encontrados equivalentes ao martrio de sangue. O autor destaca que, nesse
sentido, o ascetismo e a virgindade constituram ttulos a serem venerados pelos fiis e pela igreja. BLASUCCI,
Op.Cit..
21
LEMIRE, Paula Anne S. The White martyrdom of Kateri Tekakwitha. Disponvel em:
http://www.catholic.org/featured/headline.php?ID=980 ltimo acesso: 11/06/2007.
61
-62-
Deus, pelo contrrio, os deixaria em sua condio humana. Em segundo lugar, houve a
supresso dos banquetes fnebres em sua homenagem, substitudos por viglias de orao. Por
ltimo, a prpria liturgia especfica a esses personagens passou a ser caracterizada por leituras
nos textos, foram norteadas pela unio de quatro noes: a ecclesia, pois sem a Igreja no
haveria o martrio; o dom da vida, pelo mrtir simbolizar a doao da vida em nome de um
amor maior representado pela f; a cristologia, que seria seguir o exemplo de Cristo que deu a
vida pelos irmos; e a defesa da verdade do Evangelho, j que o mrtir no morre por si, mas
representante da Igreja, no era mais perseguido e morto por no negar sua f, mas sim devido
Nessa nova lgica do martrio sangrento, o papel do pregador ganha uma conotao
diferenciada, j que a prdica representaria uma outra forma de combate aos que eram
mais colocavam a pregao como um dos objetivos do santo, passando essa a figurar como um
interior do cristo que estaria disposto a dar a vida em nome da cristandade, caso a situao se
22
DI BERARDINO, Angelo. Op.Cit. p.897.
23
FISICHELLLA, Rino. Martrio. In: ____. ; PACOMIO, Luciano & PADOVESE, Luigi (Orgs.) LEXICON.
Dicionrio Teolgico Enciclopdico. So Paulo: Loyola, 2003, p.467- 468.
24
SOUZA, Nri de Almeida. Op.Cit. p.12.
62
-63-
morte do santo por testemunhar a sua f na defesa dos inimigos da cristandade (martrio de
em manter-se fiel ao ideal cristo, mesmo que em condies adversas. Por ltimo,
acreditamos que esta ltima modalidade estaria associada ao martrio branco, mas guardaria
Diante dessas colocaes, podemos concluir que o sculo XIII foi marcado pelo
especficos, adaptadas s associaes estabelecidas com e pela a Igreja, ao longo dos sculos,
indicando a importncia dessa temtica nas operaes de convencimento utilizadas por esta
25
Com o intuito de exemplificarmos essas modalidades, utilizamos os casos de Clara e Francisco de Assis,
citados por Blasucci. Primeiro, ele destaca que Clara se manteve no claustro colocando-se como uma oferenda
sacrifical ao longo de sua vida, na esperana de ser coroada com a palma do martrio. Em outras palavras,
acreditamos que ele esteja fazendo meno ao desejo dela em ter sua vida asctica reconhecida, ou seja, do seu
martrio branco. Alm disso, destaca que os hagigrafos de Francisco de Assis narraram seu desejo de receber o
martrio de sangue, visto as suas trs viagens s terras dos infiis em busca deste. Portanto, trabalha, justamente,
com a associao entre o martrio e a pregao como meio de alcan-lo. (Cf. BLASUCCI, Antonio. Op.Cit.
p.418). Dessa forma, ns tambm podemos pontuar que a retomada do martrio no fora um fenmeno especfico
LA.
63
-64-
Clifford Hugh Lawrence, no livro The Friars. The impact of early mendicant
movement on Western society,26 afirma que, nesse perodo, paralelo a certo renascimento
ligao entre a vocao crist e um engajamento com o mundo secular. Em resposta s novas
Segundo Lawrence, no fim do sculo XIII, aps diversas tentativas dos clrigos para
pediu auxlio aos cistercienses, que iniciaram misses em Languedoque, sob superviso de
Arnald Amaury, abade de Cteaux.27 Em 1203, junto ao bispo de Osma Diego de Azevedo,
28
que se encontrava em uma misso diplomtica, Domingos de Gusmo, na condio de
que teria lamentado, com Diego, o insucesso da investida contra os hereges. Este teria se
26
LAWRENCE, Clifford Hugh. The Friars. The impact of early mendicant movement on Western society. New
York: Longman, 1994.
27
Bolton ressalta que a misso contaria tambm com a presena e liderana de outros cistercienses: Pedro
Castelnau e Raul Frontefroide (BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1983. p.88).
28
Domingos de Gusmo era filho dos nobres Flix de Gusmo e Joana de Aza Ele nasceu em 24 de agosto de
1170, em Caleruega (Castela), falecendo no dia 6 de agosto de 1221, em Bolonha. Por volta de 1186, foi enviado
escola em Palncia, com o objetivo de ser clrigo. Em 1196, o jovem Domingos ingressou no cabido de Osma,
tendo contato com a vida monstica, sob a Regra de So Agostinho. Seus hagigrafos destacam suas aes
hericas e seu comportamento cristo mpar, seu dom como pregador, sua austeridade pessoal e suas viglias e
oraes freqentes. Contudo, procuravam sempre testemunhar sua humanidade, afastando-o de qualquer
aspecto divino. Sobre a vida de Domingos cf., entre outros: GARGANTA, Jos Maria de. Santo Domingo de
Guzmn visto por sus contemporneos. Madri: BAC, 1946; MANDONNET, Pierre. St. Dominic and His Work.
Londres: Herder Book, 1948. ASHLEY, Benedict. The Dominicans. Minnesota: Michael Glazier Book/The
Liturgical Press, 1990. HINNEBUSCH, William. The Dominicans. A Short History. Dublin: Dominican
Publications, 1985; VICAIRE, Marie-Humbert. Saint Dominic and his Times. Nova Iorque: MacGraw-Hill,
1964.
29
HINNEBUSH, William. Op. Cit. Disponvel em: http://www.op.org/domcentral/trad/shorthistory/default.htm.
Acesso em: 14/04/2007.
64
-65-
oferecido para auxiliar uma nova misso composta por alguns desses abades que seguiriam
pregando e vivendo sob pobreza involuntria. Segundo Bolton, o papa Inocncio III teria
Durante essas viagens, teria ocorrido um dos mais famosos episdios da vida de
Em 1207, Lawrence defende que o Papa teria concordado com a organizao de uma
Cruzada para confisco dos bens dos hereges, em Midi, devido aos poucos resultados
contra os hereges pelo uso da fora.30 Em 1209, sob comando de Simo de Montfort,
Inocncio comeou a organizar o movimento que seria conhecido como Cruzada Albigenseda
pastorais. Por volta deste mesmo ano,31 fundou uma casa religiosa em Proille, na diocese de
Convento de Santa Maria de Proille, onde se seguia uma forma de vida austera, dentro de uma
ganharam destaque por serem vistas como centrais para impedir que elas se desviassem,
30
LAWRENCE, Clifford Hugh. Op.Cit. p. 8.
31
Essa data motivo de debate, pois, segundo Brenda Bolton, ele teria fundado o convento em 1206. A autora
destaca que o perodo entre 1209-1214 da vida de Domingos obscuro, sendo conhecido em relatos parciais
sobre Prouille de Jordo da Saxnia, sucessor de Domingos de Gusmo.
32
MONTENEGRO, Margarita Cantanera e CANTANERA, Santiago. Las rdenes Religiosas en la Iglesia
Medieval. Siglos XIII e XV. Madrid: Acor/ Libros, S.L., 1998. (Cuardenos de Historia, 49).
65
-66-
Tolouse,33 obteve a aprovao oral da Ordem que passava a se chamar Ordem dos Irmos
Pregadores, alm de prestar conta dos rendimentos da mesma. Porm, cabe sublinharmos que,
segundo o cnone XIII,34 as novas casas religiosas eram obrigadas a adotar uma regra j
Honrio III (1216-1227), atravs da bula Religiosam vitam.36 Aps esse episdio, os
dominicanos estabeleceram-se como pregadores, cuja principal caracterstica foi a busca pelo
professores.37 Segundo Lawrence, em 1218, o papa pediu assistncia da ordem com a tarefa
da pregao no combate aos herticos. O pedido foi atendido e misses de pregadores saram
conhecimento dos preceitos cristos e a prdica, ou seja, entre contemplao e ao. Assim
33
O bispo Diego de Osma faleceu em 1208, deixando Domingos comandando a misso de Montpellier. Nesse
mesmo ano, o dominicano comeou a pregar pelo sul francs.
34
(...) quien desea fundar uma nueva casa religiosa debe recibir la regla y la institucin de alguna de las
ordenes apropadas (FOREVILLE, Raimunda. Lateranense IV. Vitria: Eset, 1973. p.170).
35
LAWRENCE, Clifford Hugh. Op.Cit. p. 71.
36
Segundo Marie-Humbert Vicaire, uma segunda bula, expedida em janeiro de 1217, reconhecia a novidade das
idias de Domingos e aprovava sua fundao como uma ordem dedicada pregao. VICAIRE, Marie-Humbert.
Saint Dominic and his Times. New York: MacGraw-Hill, 1964. p.152.
37
MANDONNET, Pierre. St. Dominic and His Work Disponvel em:
http://www.op.org/domcentral/trad/domwork/default.htm. Acesso em: 14/04/2007.
38
VICAIRE, Marie-Humbert. Freres Precheurs. Dictionnaire de Spiritualit Disponvel em:
http://www.op.org/domcentral/study/ashley/ds00intr.htm. Acesso em: 15/04/2007.
39
LEHNER, Francis C. (Trad.) The Primitive Constitutions of the Order of Friars Preachers. Disponvel em:
http://www.op.org/domcentral/trad/domdocs/default.htm. Acesso em: 14/ 04/ 2007.
40
Hilrio Franco Junior, na apresentao da edio brasileira de Legenda urea, sublinha a erudio dos
dominicanos e dos franciscanos ao apontar que eles possuam uma presena hegemnica nas Universidades.
66
-67-
teolgicos, era um critrio para os irmos que desejassem pregar. O processo de recrutamento
de novos irmos era muito importante, iniciando com a seleo dos novios, feita em grupos
homem deveria no s estar apto a pregar, mas ser maduro, discreto, bem posicionado mental,
contato com homens em variadas circunstncias e evitar agir como muitos, de forma rude e
indiscreta.42 Alm do mais, o pregador, quando requisitado por padres das parquias locais e/
ou por bispos, deveria ser atencioso o suficiente para no causar nenhum atrito com o clero
local.
Assim, durante o sculo XIII, comeou a se constituir uma proximidade entre a Ordem
centralizado.
Alm disso, eles obtiveram papel de destaque junto s cruzadas, no combate aos hereges, na
Contudo, o papel de extirpar a heresia, em especial a ctara, foi reservado, principalmente, aos irmos
pregadores. JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos ...p.13.
41
LAWRENCE, Clifford Hugh. Op.Cit. p.72.
42
RICHARDSON, Ernest. Op. Cit. p.25. Contudo, o autor no especifica nem se estes muitos seriam clrigos.
43
Gregrio IX, sucessor de Honrio III, tambm encarregou os dominicanos de estabelecerem o ensino teolgico
na Universidade de Toulouse, que se tornou uma clula de combate aos movimentos considerados herticos e
defesa da verdade postulada pela Igreja.
67
-68-
missionrios, seja no combate aos movimentos herticos. A seguir, veremos como a essa
ressaltar que nos focalizaremos nessa heresia devido a sua importncia na constituio da
Ordem Dominicana.
4. A heresia ctara
escola, tal como se dava com as escolas filosficas.45 A priori, no possua nenhuma
conotao pejorativa.
cristianismo surgiram variadas interpretaes sobre a doutrina pregada por Jesus Cristo,
contudo nenhuma fora considerada hertica. Ele defende que a construo pejorativa do termo
heresia47 foi concomitante ao processo de discusso doutrinria que buscava estabelecer certas
verdades, ntida em dois eventos emblemticos: o I (325 d.C.) e o II (787 d.C.) Conclio de
Nicia. Em nosso trabalho, utilizamos a idia proposta pelo autor: a conotao negativa
44
GROSSI, Vittorino. Heresia Hertico. In: DI BERARDINO, A. (Org.) Dicionrio Patrstico e de
Antigidades Crists. Petrpolis: Vozes, 2002, p.665-666.
45
Ibidem, p. 665.
46
MNGUEZ, Csar Gonzalz. Religon y Hereja. Clo & Crmen: Revista del Centro de Historia del Crimen
de Durango, n. 1, p. 19-21, 2004.
47
Para mais informaes acerca das heresias medievais, cf. FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. So Paulo;
Perspectiva, 1977; HERVE, Masson. Manual de herejas. Madrid: Rialp, 1989; GRANDA, Cristina et
Fernndez, Emilio Mitre. Las grandes herejas de la Europa cristiana (380- 1520). Madrid: Istmo, 1983;
RIBEIRO JR., Joo. Pequena Histria das heresias. Campinas: Papirus, 1989.
68
-69-
define herege como aquele que buscava um aperfeioamento espiritual a margem do que foi
oficialmente estabelecido. No mbito cristo, essa noo perde sua neutralidade conforme o
sido batizado, ou seja, tendo se submetido ao conjunto de dogmas e verdades aceites pela
Igreja, passa a negar ou duvidar desse conjunto ou de parte dele, interpretando-o livremente e
verdades das quais est convicto.50 Em outras palavras, a construo da identidade de herege
necessita da existncia de outra identidade, externa e diferente dela, que a qualifique como tal,
representava uma ameaa unidade crist sob o controle da Igreja por significar a perda de
fiis e o no-reconhecimento do erro, e sim a sua continuidade. Por outro lado, a Santa S
foi importante para a prpria constituio e a afirmao dos valores da Igreja, como tambm
48
FERNANDEZ, Emilio Mitre. Edad Mdia Hertica: lo real y lo instrumental. In: RUANO, E.L. (Coord.)
Tpicos y realidades de la Edad Media (III). Madrid: Real Academia de la Historia, 2004. p.135 211.
49
THOM, L.M.S., Da ortodoxia heresia: os valdenses. (1170-1215). Dissertao (Mestrado em Histria)
Programa de Ps-graduao em Histria. Curitiba: Universidade Federal do Paran, 2004.
50
Ibidem, p.20.
51
A partir do sculo XII o termo heresia passou a designar a totalidade dos movimentos dissidentes. GENICOT,
Leolpold. Europa en el siglo XIII. Barcelona: Labor, 1976.
69
-70-
Temtico do Ocidente Medieval,52 resume essa idia ao afirmar que a heresia existe onde a
Emilio Mitre Fernndez e Cristina Granda, no livro Las grandes herejas de la Europa
cristiana (380- 1520), de 1983,54 completam o argumento ao afirmarem que a heresia seria,
seguir, faz parte desses movimentos heterodoxos que, de qualquer modo, e, sobretudo
Dominicana
as reformas e os conclios que objetivavam destacar e refutar os erros. O autor ainda destaca,
dos maiores desafios cristandade, tanto pela sua abrangncia, quanto pela sua durao,
afirmando que:
52
ZERNER, Monica. Heresia. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J-C (Coord.). Op.Cit. p. 503-521.
53
Ibidem, p.521.
54
GRANDA, Cristina et Fernndez, Emilio Mitre. Op.Cit.
55
NELLI, Ren. Os ctaros. Lisboa: Edies 70, 1980. p.23.
56
Ressaltarmos que, segundo Emilio Mitre Fernndez, no texto Edad Media Hertica. Lo real y lo instrumental,
op. cit, e Robert Ian Moore, no livro La formacin de una sociedad represora. Poder y disidencia en la Europa
occidental. 950- 1250, publicado pela editora Crtica em 1989, os inimigos da cristandade eleitos pela Igreja
variaram, durante a Idade Mdia, segundo as relaes de poder estabelecidas. Nesse sentido, os autores destacam
os pagos, herticos, infiis, imperadores.
57
Para mais informaes sobre o catarismo, cf. BRENON, Anne. La verdadera historia de los ctaros. Vida y
muerte de una iglesia ejemplar. Barcelona: Martnez Roca, 1997; DALMAU, Antoni. Los ctaros. Catalunya:
UOC, 2002; DANDO, Marcel. Les origines du catharisme. Paris: Pavillon, 1967; GRIFFE, Ellie. Le Languedoc
cathare de 1140 1190. Paris: Letouzey e An, 1971; SDERBERG, Hans. La rligion des Cathares; tude
sur le gnosticisme de la basse antiquit et du Moyen ge. Sucia: Uppsala University Press, 1949.
70
-71-
O local de surgimento dos primeiros ctaros uma questo que suscita diferentes
possibilidades. Segundo Joo Ribeiro Junior, no livro Pequena Histria das heresias,59 o
movimento teria iniciado em Albi, no sul da Frana, contudo, no artigo Ctaros: Herejes o
Buenos hombres?, Martn Alvira Cabrer60 defende que teria sido na Renania, no norte da
Frana. Ren Nelli, no livro Os Ctaros61 defende que esse movimento desenvolvera-se
principalmente na regio da Occitnia62 e apresentar-se-ia como uma longa luta entre o norte
e o sul francs.
principalmente, para Languedoc.63 Cabrer defende que o catarismo teria se fixado no territrio
francs por este ser um porto de desenvolvimento cultural aberto a novas idias religiosas.
Acreditamos que o outro fator apontado pelo autor tenha sido mais importante nessa difuso:
a fragmentao poltica.
Roma, vinculada com a nobreza. Um dos pontos de oposio entre o catarismo e a Igreja
como corrompida pelas prticas do nicolasmo e simonia. Dessa forma, segundo Ren Nelli:
58
FERNNDEZ, Emilio Mitre. Op.Cit. p.167.
59
RIBEIRO Jr., Joo. Pequena Histria das heresias. Campinas/ SP: Papirus, 1985. p.72.
60
CABRER, Martn Alvira. Ctaros: Herejes o Buenos hombres? Clo: Revista de historia, n. 40, p. 20-27,
2005.
61
Op.Cit.
62
A Occitnia abrangia as regies da Provena, o Limoges, a Auvernha, a Gasconha, o Languedoc e o Delfinado
entre outras, englobando partes da Itlia, Frana, e um pequeno territrio Espanhol.
63
Languedoc foi anexado Frana em 1229, pelo Tratado de Meaux.
71
-72-
lhes apetecia, sem respeitar a Trgua de Deus; manter, para tal efeito,
bandos de homens armados que assolavam o pas; e, como no eram, de
modo algum, anti-semitas, no hesitavam em empregar judeus e em lhes
confiar postos em que tivessem autoridade sobre os cristos: atos que a
Igreja Romana proibiria se tivesse poderes.64
Ressaltamos que o catarismo comeou a se difundir pelo norte italiano; por Milo,
pela Lombardia e at mesmo por Florena. Segundo Joo Ribeiro Junior, o desenvolvimento
desse movimento ocorreu tambm por questes polticas, j que os ctaros contaram com o
apoio dos gibelinos, aliados ao Sacro Imprio Romano, e contrrios aos guelfos, favorveis ao
papado.65
O catarismo uma heresia dualista que defendia o duplo princpio eterno do bem e do
mal, tendo como texto de referncia o Evangelho de So Joo, considerado o nico escrito
Deus seria o esprito bom, e o mundo, por ele criado, seria povoado por seres
espirituais participantes da natureza divina. J o material seria fruto de uma fora puramente
maligna. Os homens seriam criaes do Deus bom, e, portanto, teriam a chance de alcanar a
esfera espiritual pela via da purificao. Para tanto, deveriam combater a carne que
como outra influncia, no acreditamos que essa possibilidade seja vivel, tendo em vista as
64
NELLI, Ren. Op.Cit. p.11.
65
RIBEIRO Jr., Op.Cit.p.74.
66
Idem. p.73
67
LAWRENCE, Clliford Hugh. Op. Cit. p.4.
72
-73-
eucaristia; opunham-se venerao aos santos, orao dos defuntos e aos sacramentos
cristos. Alm disso, no prestavam nenhum tipo de juramento, base das relaes feudais na
Eles pregavam uma vida em profunda ascese pobreza voluntria, castidade, jejum ,
contudo esta estaria ao alcance pleno de poucos, chamados de perfeitos, bons cristos ou
dualista, como tambm a instalao de uma hierarquia ctara no quadro de dioceses bem
delimitado.72 Esse arranjo estrutural figurou como mais um motivo de rivalidade com a Igreja
Romana.
68
NELLI, Rne. Op.Cit. p. 10.
69
A Igreja Ctara era formada por dois grupos distintos: pelos perfeitos ou eleitos, que seriam os escolhidos para
o encontro com o Deus bom. A profisso das idias era realizada apenas pelo grupo de ministros ctaros
(perfecti). Os crentes ou auditores participavam na qualidade de ouvintes. Havia duas cerimnias principais: o
consolamentum e o melioramentum. O primeiro era um tipo de batismo, que se destinava aos perfeitos. Aps o
recebimento deste, eles seguiriam uma vida de rigorosas penitncias, renunciando s propriedades pessoais, ao
casamento e atividade sexual; assim como realizando uma permanente abstinncia de alimentos de origem
animal, inclusive ovos e leite. O segundo era o nico rito obrigatrio para os crentes, que adoravam a presena
do Esprito Santo nos perfeitos e, ao mesmo tempo, pediam para serem aperfeioados. Alm disso, eles se
comprometiam a receber o consolamantum na hora da morte e se integrar totalmente a Igreja Ctara. NELLI,
Rne. Op.Cit..
70
Os ctaros consideravam-se os mais puros devido a seu padro de vida. A prpria palavra ctaros vem do
grego kathars, que significa puro.
71
FERNANDZ, Emilio Mitre. Op.Cit. p.166.
72
NELLI, Rne. Op.Cit. p.54.
73
-74-
Inocncio III (1198 1216) foi o primeiro papa a sistematizar um programa de luta
Toulouse, conclamou a Cruzada Albigense que objetivava, entre outras coisas, erradic-los da
Domingos de Gusmo75 e Pedro de Castelneau. Liderada pelo legado papal, Arnaldo Amauri,
a cruzada objetivava a completa derrota dos hereges que pululavam nas cidades e fortalezas
massacre de Blsiers, devido a seu teor sanguinrio. Esse fato ganhou destaque por ter
episdio, teria circulado, oralmente, uma anedota que fora apreendida pelo escritor
Dialogus Miraculorum.76 Nesta obra narrado que, antes da invaso, um dos guerreiros teria
perguntado ao legado papal Arnaldo Amauri sobre como distinguir quem era herege e quem
no era durante o ataque, recebendo a seguinte resposta: Matem todos, Deus escolher os
seus!
73
Segundo Martn Alvira Cabrer, a represso violenta teria iniciado entre 1178 e 1181 com o estabelecimento
das primeiras operaes armadas para combater esses inimigos utilizando a justificava da Guerra Santa da qual
trataremos na segunda parte deste captulo com a implementao das Cruzadas.
74
Neste ponto, ressaltamos que o Rei da Frana, Felipe Augusto, por nunca ter se considerado vassalo do papa,
manteve-se fora desse movimento. Apenas interveio, aps a derrota dos hereges, para anexar os territrios de
Raimundo VII, conde de Toulouse, e os de seus vassalos, o visconde de Blziers e o conde de Foix (RIBEIRO
JR, Joo. Op.Cit. p.76).
75
Domingos de Gusmo comeou a pregar junto cruzada tendo sua atitude copiada por outros, como o bispo
Diogo; o abade Arnaldo de Citeaux; o bispo Foulques de Toulouse. Contudo, durante o desenrolar da cruzada, o
dominicano rumou para Midi.
76
Para a traduo para o espanhol moderno dessa obra, cf. CESRIO DE HEISTERBACH. Dialogo de milagros
de Cesreo de Heisterbach. Zamora: Monte Casino, 1998.
74
-75-
utilizando o terror como arma de guerra.77 Simo morreu em 1218, aps seu retorno a
Montsgur, foi derrubado. Contudo, esse episdio no figurou como a derrota completa do
movimento, j que ainda eram encontrados vestgios de segmentos ctaros no sculo XIV.78
abalados com o catarismo.79 Essa questo aparece no cnone III do conclio de Latro (1215),
organizado quase uma dcada depois do incio dessa cruzada por Inocncio III: los catlicos
que habiendo tomado la cruz se armen para dar caza a los hereges, gozarn de la indulgncia
y del santo privilegio concedidos a los que van em ayuda de Tierra Santa.80 Assim, temos um
incentivo aos combatentes das heresias, com a promessa da indulgncia e dos mesmos
em relao s formas utilizadas pela Igreja para lidar com aqueles que eram considerados
movimento cruzadista para o combate com a fora armada, as reformas e os conclios que
objetivavam a identificao e refutao do erro. Inocncio III pode ser considerado como o
nico papa que sistematizou um projeto implementando quase todas essas formas de
combate.81
77
NELLI, Rne. Op. Cit. p.29.
78
Segundo Joo Ribeiro Junior, os albigenses se refugiaram na Itlia, contudo foram descobertos pela
Inquisio. Desde ento, espalharam-se pelos pases da Europa Ocidental e Oriental. Resistiram mais tempo nos
Alpeninos e nos Alpes da Lombardia, desaparecendo por volta de 1400. RIBEIRO JUNIOR, Op. Cit., p. 80.
79
A represso s heresias ocorreu tambm atravs dos conclios, dos quais destacamos o III Conclio de Latro
(1179) e o IV Conclio de Latro (1215), que ser tratado neste captulo.
80
FOREVILLE, Raimunda. Op.Cit. p. 160.
81
BOLTON, Brenda. Op.Cit. p.196.
75
-76-
De acordo com Bolton, o IV Conclio de Latro foi fruto de mais uma tentativa de
marcado carter normativo que visava a organizao institucional do corpo eclesistico sob a
liderana do Papa. Inclusive, a questo da heresia abordada nos trs cnones iniciais da ata
conciliar segue o mesmo ideal de centralizao de todo o corpo eclesistico tendo como
ponto central o Papa como portador da plenitude potesta, tema central destes cnones, visava
O primeiro cnone trata dos preceitos ortodoxos, defendidos pela Igreja com a
afirmao da existncia de apenas uma Igreja Universal. Neste, temos alguns elementos
contudo com a preocupao de afirmar que os ritos deveriam seguir conforme o estabelecido
pela ortodoxia.84
O terceiro85 destacou-se em nosso estudo por trs motivos. Primeiro, por tratar de
82
Ibidem ,p.130.
83
SILVA, Andria C. L. Frazo da. O IV Conclio de Latro: Heresia, Disciplina e Excluso. In: _____. e
ROEDEL, Leila.R. Semana de Estudos Medievais, 3, Rio de Janeiro, 25 a 28 de abril de 1995. Rio de Janeiro:
PEM - UFRJ, 1995. p. 95-101. Disponvel em: http://www.ifcs.ufrj.br/~pem/textos.htm. ltimo acesso:
11/06/2007. p.97.
84
Neste ponto, ainda destacamos um elemento que permeou alguns dos cnones do Conclio: a normatizao dos
costumes e das prticas eclesisticas e laicas.
85
Apesar da nossa opo em no trabalhar com o segundo cnone, cabe mencionarmos que este trata do
Joaquimismo, identificando os preceitos defendidos e refutando-os para, por fim, conden-los.
86
FOREVILLE, Raimunda. Op.Cit. p. 159.
76
-77-
A seguir, o cnone passa a determinar as penalidades aplicadas aos que forem suspeitos de
opinies herticas e no conseguirem provar a inocncia, aos condenados como hereges e aos
parte do mbito eclesistico, como essas relaes foram apreendidas por Jacopo e
influenciaram ou no a redao da LA? Para responder essa questo, iremos pensar como isso
Temtico do Ocidente Medieval,87 por volta dos sculos IV e V, teria iniciado um processo de
sacralizao do exrcito imperial, legitimado pela Igreja. Contudo, essa legitimao foi
controlada e restrita, com a constituio da noo de guerras justas por Agostinho, bispo de
Hipona: so ditas justas todas as guerras que vingam injustias, quando um povo ou Estado,
a quem a guerra deva ser feita, deixou de punir os seus ou de restituir aquilo que foi saqueado
em meio a essas injustias.88 Ele defendia que um cristo poderia tomar parte em alguns
casos especficos de combate, objetivando sempre a restaurao da paz iluminada por uma
justia autntica.89 Nesse sentido, estabelecia-se a idia de que um homem cristo era sempre
portador da paz, mesmo ao utilizar-se de armas, j que possua como finalidade o combate das
injustias.
No entanto, por volta dos sculos X e XI, a ausncia de um poder central forte
ameaava uma pretensa paz na cristandade. Em outras palavras, a Igreja perdia o controle
almejado sobre a violncia que havia permitido para a proteo dos cristos. Franco Cardini
87
CARDINI, Franco. Guerra e Cruzada. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J-C (Coords.). Dicionrio Temtico do
Ocidente Medieval. 2v., 1v. So Paulo: Imprensa Oficial/ EDUSC, 2000. p. 473-487.
88
SANTO AGOSTINHO Apud DEMURGER, Alain. Os Cavaleiros de Cristo. Templrios, teutnios,
hospitalrios e outras ordens militares na Idade Mdia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p.20.
89
CARDINI, Franco. Op. Cit., p. 475.
77
-78-
aponta que nessa questo havia o destaque do sofrimento dos pauperes, as violncias
snodos de paz. Com isso, houve o desenvolvimento de dois movimentos: o primeiro foi o
juramento conhecido como Pax Dei (Paz de Deus), que objetivava proteger pessoas
segundo foi a tentativa de impedir a prtica da violncia nas datas consideradas sagradas, com
a Tregua Dei (Trgua de Deus). Neste sentido, acreditamos que o fim central desses
processos que podem ser percebidos na utilizao crescente de membros do exrcito pelo
Cristo) em alguns textos do sculo XI. Alain Demurger destaca como a prpria utilizao da
cavalaria contra elementos do poder temporal fora enquadrada na idia de guerra justa.
guerra justa?
guerreiros franceses para rumarem para o Oriente, onde os cristos eram ameaados pelos
como o primeiro passo para a organizao e a estruturao das cruzadas.92 Cardini argumenta
90
Idem, p.477.
91
COLE, Penny J. The Preaching of the Crusades to the Holy Land, 1095-1270. Cambridge: Medieval Academy
Books, 1991.
92
Para mais informaes sobre as Cruzadas, cf. BARBER, Malcolm, Crusaders and Heretics, 12th - 14th
centuries. Aldershot: Variorum, 1995; BARKER, Ernest. The Crusades. London: Oxford University Press, 1923;
BENVINISTI, Meron. The Crusaders in the Holy Land. New York: MacMillan Publishing Company, 1972;
BILLINGS, Malcolm, The Crusades: a History. United Kingdom: Tempus Publishing, 2000; MARVIN,
Laurence E W. Thirty-nine Days and a Wake-up: the Impact of the Indulgence and Forty Days Service on the
Albigensian Crusade, 1209-1218. The Historian, v.65, n.1, p.75-94, 2002; QUESADA, Ladero et NGEL,
78
-79-
que a guerra na Terra Santa ou na Espanha, aps esse pedido do papa, chamou a ateno de
diversos cavaleiros que estavam dispostos a se sacrificarem na defesa dos santurios cristos e
dos peregrinos.93
como:
Segundo o autor, as Cruzadas teriam como antecedente a proteo dos peregrinos. Assim,
vamos nos focar em uma influncia relacional das peregrinaes com o ideal norteador da
Ramos e Demurger fazem a associao que nos parece mais interessante ao definir
cruzada como uma peregrinao armada, j que visava inicialmente libertar o Santo Sepulcro
do infiel, e no apenas orar e meditar nele. Contudo, conteria o ideal da Guerra Santa96 de
ajudar irmos cristos e recuperar o que era da cristandade por direito, mas que fora
injustamente usurpado pelos infiis. Nessa lgica, o cruzado se via como um peregrino, mas
tornava-se Miles Christi, soldado de Cristo, partindo para libertar o patrimnio do Senhor e a
Ramos destaca ainda que a cruzada possua uma perspectiva reformadora que
conduzia a guerra justa aos infiis excomungados. Contudo, ele atenta para o fato de que o
Miguel. Las Cruzadas. Barcelona: Destino, 1974; RODRGUEZ, Loste et ANTONIA, Mara. Las
Cruzadas. Madrid: Grupo Anaya, 1990; RUNCIMAN, Steven. A History of the Crusades. Cambrigde:
Cambridge University Press, 1954. 3v.
93
CARDINI, Franco. Op. Cit. p. 479.
94
RAMOS, Luis Garca-Guijarro. Papado, Cruzadas y rdenes militares, siglos XI-XIII. Madrid: Ctedra, 1995.
95
Ibidem, p.49.
96
Alain Dermurger, no supracitado livro, sublinha que a Guerra santa era entendida como a aplicao da guerra
justa a todos os adversrios da f cristo, da Igreja e do papado. Op.Cit. p. 21.
97
Idem, p. 23.
79
-80-
hereges e lderes cristos como os ministros do imprio dos Hohenstaufen, na Itlia, e contra
Penny J. Cole, no trabalho The preaching of the Crusades to the Holy Land, 1095-
1270, conclui que essa mudana no ideal e no objetivo primrios das cruzadas foi resultado de
uma srie de acontecimentos que direcionaram esse fenmeno para atender interesses
polticos. A autora percebe certo insucesso desse movimento, afirmando que este ocorreu pela
indulgncias, contudo, acreditamos que por possuir um objetivo inicial similar ao da guerra
santa, e ambas foram incentivadas e apoiadas pela Igreja, no podemos supor que haveria a
possibilidade do martrio como recompensa nos dois casos? Acreditamos que os ideais que
nortearam as cruzadas contra os infiis, assim como os da guerra santa, eram similares e que,
assim, aos que morressem haveria como recompensa a palma do martrio, especialmente no
caso de membros das ordens mendicantes, que acompanhavam as expedies. Nesse sentido,
Segundo Christoph T. Maier, no livro Preaching the Crusades: Mendicant Friars and
the cross in the Thisteenth Century,100 desde os primrdios das cruzadas, os papas
expedies. Contudo, no sculo XIII, como as Ordens Mendicantes possuam um novo estilo
98
O autor vai alm, afirmando que o autntico esprito cruzadista era o seu ntido carter antimulumano,
99
COLE, Penny. Op.Cit. p. 219.
100
MAIER, Christoph T. Preaching the Crusades: Mendicant Friars and the cross in the Thisteenth Century.
Cambridge University Press, 1949.
80
-81-
recrutamento papal. Especialmente com o papa Gregrio IX (1227- 1241) essa transformao
fica mais clara, j que ele convocou freqentemente freis, como os dominicanos Raimundo
Por fim, temos ainda que considerar que o incentivo que foi dado aos mendicantes,
dominicanos e franciscanos para que pregassem nas cruzadas foi justamente a promessa do
reconhecimento do martrio dos membros dessas ordens que falecessem. Segundo James
Ryan, no artigo Missionary saints of the high middle ages: martyrdoom, popular veneration
and canonization,102 essas ordens teriam recebido cartas do Papa Inocncio III nas quais
afirmava que os missionrios, assim como os inquisidores, que morressem em nome de Cristo
Assim, os trs casos guerra santa, cruzadas contra os infiis ou hereges e aes
armada ou da pregao. Partindo desse pressuposto, defendemos que a cruzada tambm pode
ser enquadrada no ideal de guerra justa, e, portanto, que poderia haver a recompensa do
martrio aos mortos sob essas trs condies; cruzadista, guerreiro da guerra santa ou
missionrio.104
101
Segundo Lawrence, dominicanos e franciscanos foram, constantemente, chamados por Gregrio IX para
pregar a f, com o objetivo de incitar os cruzados a se organizarem rumo a Terra Santa e aos blticos. Algumas
vezes o pedido era direcionado a pregadores individualmente e outras ao providencial da Ordem em questo com
a instruo de que fosse selecionado algum para pregar a cruz em sua regio.
102
RYAN, James. Missionary saints of High Middle Ages. Martyrdom, Popular veneration and Canonization.
The Catholic Historical Review, v. 90, no1, p.1-28, jan/ 2004.
103
Contudo, o autor coloca que Roma fazia-se hesitante em realizar novas canonizaes nesse momento. Assim,
coube aos hagigrafos dessas ordens preservarem a memria dos martirizados em vitaes e legendaes, assim
como em crnicas e oraes. RYAN, James. Op.Cit. p. 4.
104
Nos relatos sobre Domingos e sobre Francisco temos uma pequena, porm fundamental diferena. No
primeiro, h algumas menes a contatos com hereges, contudo nenhuma sobre os infiis. J no segundo
encontramos uma referncia de um encontro do mendicante com um infiel, contudo nenhuma com herege.
Compreendemos que estas escolhas estariam em sintonia com um novo ideal de martrio no sculo XIII
vinculado prdica.
81
-82-
que, durante uma viagem a Toulouse junto ao Bispo de Osma, Domingos percebeu que o seu
anfitrio estava corrompido pelo erro hertico. Dessa forma, o dominicano converteu-o a f
crist, oferecendo assim ao Senhor o primeiro feixe da futura colheita.105 Acreditamos que
Jacopo, com essa passagem, faz aluso organizao da Ordem Dominicana e ao seu sucesso
Nesse ponto, Jacopo afirma que foi o papa Inocncio III quem pedira a Domingos e a
Diego para que fossem a Montpellier pregar entre os hereges, na esperana de converterem os
ctaros ali presentes. Ao colocar o pedido feito pelo papa nominalmente, acreditamos que o
compilador estaria construindo a idia de que Domingos j era visto como um pregador,
Nesta cidade, ambos encontraram uma misso cisterciense que reclamou do malogro
diante dos hereges. Segundo esta, os ctaros gozavam de ampla simpatia entre os fiis devido
na populao. Devido ao resultado positivo que obteve, Domingos teria decido organizar uma
ordem que suprisse a Igreja com pregadores instrudos106 e preparados. Segundo Richardson,
Jacopo informa que a morte do bispo de Osma, em 1207, em Montreal, deixou apenas
Domingos e alguns outros poucos irmos no combate aos hereges, anunciando com
105
JACOPO DE VARAZZE. Op.Cit. p.615.
106
A ateno dada formao de pregadores no mrito apenas da Ordem, estando presente no seio das
preocupaes da Igreja, sendo suscitada no IV Conclio de Latro, em 1215 (FOREVILLE, Raimunda. Op.Cit.)
107
RICHARDSON, Ernest. Op.Cit. p. 25.
82
-83-
constncia a palavra do Senhor,108 sob as mais duras penas. Defendemos que a narrao de
situaes difceis nas quais o santo esteve inserido para predicar funcionaria como um forte
incentivo aos demais frades para se colocarem a merc dos hereges, com o propsito de
convert-los.
personagens, sendo todos enquadrados sob essa designao generalizante, tal como no cnone
desses episdios est qualificando-as como um erro que deveria ser combatido. Assim, no d
herticos.
ouvirem seu sermo. Nos demais, so atravs de milagres e do exemplo de sua vida que os
hereges convertem-se. Defendemos que dessa forma Jacopo ressalta a importncia em dar o
exemplo atravs de uma vida crist correta, segundo os preceitos estabelecidos pela Igreja.
Segundo Jacopo, esse evento ocorreu em Montreal, aps a morte do bispo de Osma,
deixando apenas Domingos e alguns outros poucos irmos no combate aos hereges,
anunciando com constncia a palavra do Senhor,110 sob as mais duras penas. A narrao de
situaes difceis as quais o santo esteve inserido para predicar funcionaria como um forte
incentivo aos demais frades para se colocarem a merc dos hereges, com o propsito de
convert-los.
108
JACOPO DE VARAZZE. Op.Cit. p. 616.
109
H uma sexta meno presena hertica, contudo esta no uma situao de contato direto entre o
dominicano e os hereges. No relato, Domingos quis vender-se para salvar um cristo que aderira a comunidade
hertica, contudo a misericrdia divina resolveu a situao de outra forma. A soluo no especificada na
narrativa (Idem).
110
Idem.
83
-84-
Ao longo do relato, temos o uso recorrente dos exempla e o destaque aos feitos
pedaggico e didtico.
A narrativa segue com o contato do santo com os hereges, que, quando o ameaavam
de morte, respondia: No sou digno da glria do martrio, ainda no mereo esta morte.111
Assim, o compilador, ao escolher essa frase para o relato, buscou encorajar os irmos
dominicanos afirmando que a morte pelas mos de um herege seria meritria do martrio.
sculo XIII, traduziu-se, nas obras hagiogrficas, na idia do desejo de martrio ligada
perfeio interior do cristo, que estaria disposto a dar a sua vida se necessrio. Domingos no
conseguiu ser martirizado, contudo, obteve o mrito de ter desejado o martrio, realizando, ao
recompensa em manter-se fiel ao ideal cristo, mesmo que em condies adversas. nesse
sentido que acreditamos que o relato do patriarca da Ordem serviria como exemplo aos demais
Jacopo segue o relato, destacando que o prprio santo buscava morrer pelos hereges
ao passar por lugares onde sabia que haveriam emboscadas contra ele. Defendemos que,
111
Idem.
112
Ao longo do captulo, a forma de vida crist de Domingos elogiada, tendo a pobreza, a humildade, o dom
com as palavras, o conhecimento, a benevolncia, como caractersticas destacadas em algumas passagens. Por
fim, Jacopo ressalta sua penitncia, narrando que toda noite [Domingos] recebia de suas prprias mos trs
chicotadas com uma corrente de ferro, uma por si mesmo, outra pelos pecadores que esto no mundo e a terceira
por aqueles que esto padecendo no purgatrio. JACOPO DE VARAZZE. Op.Cit. p. 625.
113
partindo desse pressuposto que compreendemos a converso das mulheres simpatizantes da heresia que o
hospedaram. Ao verem como Domingos guiava sua vida, segundo os preceitos cristos corretos, elas
converteram-se.
84
-85-
Acreditamos que nessa passagem Jacopo faz uma aluso ao relato sobre So Tiago, o
cortado, que analisamos no captulo 4. Este o nico mrtir da LA que teve os dedos, as
mos, os ps, os braos e as pernas cortados. Aps cada suplcio o santo louvava a Deus
sendo que, apenas nos ltimos, pediu pela interveno divina para faz-lo parar de sofrer.
Assim, no se rendeu macerao somtica, reafirmando a f em Deus aps ter cada membro
cortado. Pelo contrrio, respondeu as torturas com o testemunho de sua crena, para
Podemos chegar a concluso de que este relato apresenta uma profunda relao entre a
elementos, que podem ser associados ao antigo. Nesse sentido, o martrio imaginrio de
Domingos estaria enquadrado em um novo ideal de martrio sangrento, que tambm serviria
para reforar a viso do personagem como exemplo a ser seguido. Alm de ser um importante
dos demais frades, embasando tambm a prdica como meio para se alcanar o
reconhecimento como mrtir. Afinal, Jacopo qualifica a morte por um herege como meritria
da honra do martrio. Essa colocao serviria como um incentivo aos demais mendicantes que
114
JACOPO DE VARAZZE. Op.Cit. p.616.
85
-86-
7. Consideraes parciais
relacionadas s relaes de poder estabelecidas para e pela Igreja, adaptando-se a elas. Nesse
momento, ela exercia um papel diferenciado: perseguia os infiis, hereges, entre outros sob a
justificativa da guerra justa. Essa teria sido intensificada com a promessa de martrio para os
religiosos laicos, cujos frutos destacamos, analisando dois de seus exemplares: a Ordem
distintas, especialmente sob o papado de Inocncio III, com a organizao de conclios, das
Ao estudar a questo da retomada do martrio pelo vis das cruzadas, conclumos que
haveria uma similaridade nos objetivos e nas propostas que norteavam as cruzadas contra os
palavras: todas essas aes estavam sob a justificativa da guerra justa. Assim, defendemos a
possibilidade da temtica do martrio ter sido uma das estratgias da Igreja para incentivar as
presente na LA. Nesse relato, o compilador exalta valores dominicanos para vivncia crist,
86
-87-
Atravs de uma enunciao norteada por feitos maravilhosos, o martrio estaria enquadrado
no ideal da retomada da Igreja primitiva desde o sculo XII. Conclumos que ao colocar a
Nesse sentido, conclumos que Jacopo teria sido influenciado por elementos
associados a essa retomada do tema do martrio na escolha dos relatos narrados pela LA.
Contudo, procurando responder a questes do seu tempo relacionadas, entre outras coisas, aos
87
-88-
CAPTULO 3
da Legenda urea.1 Lembramos que, no total, foram escolhidas cinco narrativas de tamanhos
distintos sobre as seguintes personagens: Santa Anastcia (p.103-105); Santa gata (p.256-
260); Santa Juliana (p. 266-267); Santa Eufmia (p. 810-812); Santa Catarina (p.961-967).
Primeiro, analisaremos cada narrativa, seguindo a ordem apresentada acima. O segundo item
O relato inicia com um estudo etimolgico do nome Anastcia, que seria formado de
Ana , significando acima; e statis, que fica em p ou permanece. Jacopo argumenta que
esse sentido estaria relacionado ao fato de que ela teria se elevado e se mantido acima dos
vcios.
No incio da biografia de Anastcia, somos informados que ela era filha de Pretaxato,
romano ilustre, mas pago,3 e da crist, Fantasta. Foi de sua me e do beato Crisgono que
ela recebeu os ensinamentos cristos. Ao casar-se com Pblio, Jacopo narra que ela simulou
estar doente para abster-se das relaes conjugais, contudo no menciona se foi apenas para
1
VARAZZE, Jacopo. Legenda urea; vida de santos. Traduo: Hilrio Franco Jr. So Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
2
Destacamos que, em alguns captulos estudados, h o relato de outros martrios, inclusive de personagens
femininas. Todos foram mencionados em nosso trabalho.
3
VARAZZE, Jacopo, op. cit,, p.103.
88
-89-
Seu marido soube que, acompanhada por uma criada, usando trajes muito pobres, sua
esposa percorria as prises, onde estavam cristos, para levar-lhes as coisas de que
necessitavam.4 Ento, Pblio prendeu-a em casa, privando-a de alimentos para que ela
morresse e ele pudesse apossar-se de suas riquezas. Segundo a LA, durante esse perodo,
Anastcia correspondia-se com Crisgono, acreditando que iria morrer em breve, sendo
consolada por ele. Contudo, seu esposo faleceu e ela foi libertada.
categoria social: as das vivas virgens. Esta temtica foi problematizada no artigo The virgin
widow: a problematic social role for the early church?, de Charlotte Methuen,5 no qual,
partindo do argumento que a condio de viuvez6 fornecia s mulheres um status social mais
elevado7 ou uma certa liberdade,8 a autora define dois grandes tipos de acepes relacionadas
seguiram uma vida de devoo e conteno sexual. E nesse sentido que, segundo Methuen,
a viva recuperaria sua virgindade. A segunda estaria relacionada s virgens cujos noivos
faleceram ou que as abandonaram e que, por isso, se autodefinem como vivas. Ela destaca
que esse caso deu-se de diferentes formas durante os quatro primeiros sculos do cristianismo.
4
Ibidem.
5
METHUEN, Charlotte. The virgin widow: a problematic social role for the early church? Harvard
Theological Review, v.90, p. 285-298. Julho, 1997.
6
Ressaltamos que a autora posiciona sua anlise nos primeiros sculos da igreja crist. Apesar da obra que
analisamos ser do sculo XIII, relembramos que a Legenda urea uma compilao e o martrio da virgem
datado do segundo sculo.
7
Ela define esse status sintetisando-o nas funes que as vivas poderiam ter na sociedade, como orar para a
congregao; jejuar; instruir moralmente as moas jovens (em particular); supervisionar as mulheres durante a
adorao; e, em alguns casos, auxiliar no batismo. Ela ainda destaca que a constncia das proibies de vivas
ensinarem ou batizarem mostraria a recorrncia dessa prtica. Idem, p.289.
8
A autora no especifica que liberdade era essa, mas podemos pensar que seria o controle dos bens j que, com a
morte do marido, a viva passa a ser cabea da famlia. Cf. BELTRN, Maria Tereza. Em los mrgenes del
matrimomio: transgressores y estrategias de supervivencia em la sociedad bajomedieval castellana. In: IGLESIA
DUARTE, Jos-Igncio de la (coord.). La familia en la Edad Media. Semana de Estudios Medievales, 9, Njera,
2002. Actas... Logroo: IER, 2003. p. 349-386.
9
Ao referirmos-nos a dois grandes tipos, devemos ressaltar que durante o texto a autora discute os pormenores
envolvidos em ambos, utilizando, principalmente, Tertuliano.
89
-90-
Entretanto, a situao de Anastcia diferente de ambos os casos trabalhados pela autora por
ter se mantido virgem,10 apesar de ter sido casada de fato e ter perdido o marido.
smbolo de completa renncia ao mundano e de total adeso ao Senhor. O autor ainda defende
que a castidade (a fortiori a virgindade) possua mais valor se fosse voluntria, vivida em
matrimnio.
matrimnio por vontade dela lembrando que inventa uma doena para abster-se das relaes
sexuais , atingindo um grau superior de pureza. E, por ter sido casada de fato, aps a morte
de seu marido, segundo o relato, ela passou a possuir benefcios relacionados com a viuvez;
como o controle de suas riquezas, atraindo a cobia dos outros. Assim, alm de lutar por sua
martrio de trs irms de maravilhosa beleza,12 que estavam a servio da viva: Agapete,
Tionia e Irene. O dominicano destaca que todas eram crists e que se recusavam a obedecer
ao prefeito de Roma que estava apaixonado por elas. Ele ordenou que elas fossem presas em
um quarto onde eram guardados os utenslios de cozinha. Um dia, querendo saciar seus
desejos o prefeito foi encontr-las e, aps ser rejeitado novamente, teve um acesso de
loucura abraando panelas, caldeires e outros utenslios, que pensava serem as virgens.13
Depois de saciar-se, saiu todo sujo e esfarrapado. Seus serviais, achando que ele fora
10
Relembramos que Jacopo narra que ela simulou uma doena para no ter relaes sexuais com seu marido.
11
ROSSIAUD, Jacques. Sexualidade. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio Temtico
Medieval. Op.Cit., p. 477-483.
12
Destacamos que esse enaltecimento beleza das virgens aparece na narrativa.
13
VARAZZE, Jacopo. Idem.
90
-91-
do ocorrido, mas os guardas, vendo-o naquele estado, pensaram que ele estava possudo por
algum esprito furioso,14 bateram nele com varas e atiraram-lhe lama e poeira.
Segundo o relato, ele teria sido avisado sobre sua aparncia e pensou ter sido
enfeitiado. Assim, mandou que buscassem as virgens e ordenou-as que se despissem para
seu prazer. Com a recusa, ele mandou que elas fossem despidas a fora. Mas as roupas
aderiram a seus corpos e o prefeito caiu em sono profundo imediatamente. Algum tempo
viva foi entregue a dois prefeitos pelo imperador. Jacopo narra que o governante afirmou
para o primeiro deles que se ele convencesse a virgem a realizar sacrifcios, ele poderia casar-
se com ela. Ento o prefeito a levou para casa e ficou imediatamente cego ao tentar abra-la.
Ele foi ento implorar a cura a seus deuses, que lhe responderam: Como voc atormentou
Anastcia, padecer no Inferno a nosso lado os tormentos que sofremos.15 Ao retornar para
Alm disso, ressaltamos que, nesse episdio, Jacopo desqualifica a crena pag e
prefeito por ter atormentado Anastcia. Tambm sublinhamos dois pontos presentes nesse
da personagem pelos deuses pagos, que negam ajuda ao prefeito. Assim, acreditamos que,
Segundo o captulo, Anastcia foi entregue a outro prefeito, que ao saber de sua
riqueza, tentou convenc-la a lhe dar toda sua fortuna dizendo: Anastcia, se voc quer ser
crist faz o que seu Senhor mandou: Quem no renunciar a tudo que possui, no poder ser
meu discpulo. Ao que ela respondeu: Meu Deus disse: Vendam tudo o que tiverem e
14
Ibidem.
15
Idem, p.104.
91
-92-
dem aos pobres. Ora, como voc rico, eu estaria agindo contra o mandamento de Deus se
Depois dessa conversa, a virgem foi jogada em uma masmorra horrvel17 para
morrer de fome, contudo foi alimentada por dois meses com po celeste por Santa Teodora,18
que j sofrera as honras do martrio.19 Passado esse tempo, ela foi levada com duzentas
virgens para a ilha Palmarola, onde muitos cristos tinham sido exilados. Alguns dias depois,
Os mrtires que estavam na Ilha de Palmarola foram trazidos junto com a virgem e
pereceram sob distintos suplcios. Anastcia foi amarrada a uma estaca e queimada viva.20
Ela foi sepultada no pomar de Apolnia21 e em seu tmulo construiu-se uma igreja. Segundo
Jacopo, ela sofreu sob Diocleciano, que comeou a reinar no ano do Senhor de 287.
longo do relato, verificamos como o gnero construdo atravs do estudo etimolgico de seu
nome e do casamento casto, com a manuteno de virgindade. Ela, como viva, controlava
suas riquezas, o que atraiu a cobia de dois prefeitos que queriam casar com a virgem para
Jacopo, nesse relato, destacaria sua virgindade, mantida mesmo casada e apesar dos
prefeitos graas interveno divina. Acreditamos que essa virtude confere personagem
uma santidade especial e, por causa disso, seu captulo objetivaria o enaltecimento dessa
16
VARAZZE, Jacopo. Idem, p.104.
17
Ibidem.
18
Jacopo apresenta nenhuma informao sobre essa santa, somente que ela foi martirizada antes de Anastcia.
Na LA, h o relato sobre uma Santa Teodora, que era nobre e casada. Segundo a narrativa, o diabo, com inveja
da santidade de Teodora, fez com que um homem rico se apaixonasse e se inflasse de desejos por ela. Jacopo
relata que ele a importunava tanto que a crist at perdeu a sade. Ento, aps consecutivas rejeies, o homem
pediu a uma feiticeira para ajud-lo. Ela mentiu e enganou Teodora, que se rendeu aos desejos desse homem.
Percebendo ter sido iludida, ela se arrependeu, travestiu-se e, como Teodoro, fugiu para um mosteiro. Em uma
viagem, uma moa pediu-lhe para deitar-se com ela, mas, ao ser rejeitada, procurou outro rapaz. Contudo, ao
descobrir que estava grvida, acusou o monge Teodoro/ Teodora de ser o pai da criana. Quando o beb nasceu,
levaram-na ao abade do mosteiro que repreendeu e expulsou o monge Teodoro/ Teodora. Ele/ela, ento,
permaneceu sete anos em p em frente ao cenbio, alimentando o infante com leite dos rebanhos. Devido a sua
perseverana, o abade reconsiderou e aceitou-o/a de volta. Ele/ela faleceu dois anos depois, por volta do ano de
470. No dia de sua morte, o abade teve um sonho que lhe revelou a verdade sobre Teodora e seu filho.
19
Ibidem.
20
Idem, p.105
21
Sublinhamos que Jacopo no apresenta nenhum dado sobre essa personagem.
92
-93-
qualidade, sendo que esta no seria especfica ao homem ou mulher, mas desejvel ao
cristo, servindo como recurso para evidenciar a sua oposio ao pago: voluptuoso,
O relato de Santa gata tambm comea com um estudo etimolgico, no qual Jacopo
atribui cinco possveis significados para o seu nome. Destes, destacamos o primeiro: o nome
provm de gios, santo, e Theos, Deus significando santa de Deus. Nesse sentido, no
incio da narrativa h uma interpretao que j identifica a personagem central como santa. E
qualidades que fazem todos os santos.23 Ao enumerar quais seriam essas caractersticas, ele
faz referncia a Crisstomo que, por sua vez, afirma: a pureza no corao, a presena do
Esprito Santo e a abundncia de boas obras. Aqui, o dominicano se posiciona em relao aos
Jacopo narra que seu nome derivaria tambm de a que seria sem, geos, terra; e
Theos, Deus. Nesse sentido, seria a deusa sem terra, o que explicitaria a ausncia de
qualquer apego aos bens terrenos. Ele ainda narra outros trs possveis significados para
thaas, superior por colocar-se como escrava do Senhor, o que transparece nas suas
22
Segundo Rossiaud, o discurso vigente na Antigidade tardia defendia que os que viviam em contato com o
sagrado deveriam privar-se do sexo, que era visto como poluo suprema por afast-los do divino. ROSSIAUD,
Jacques. Op. Cit., p.479.
23
Idem, p. 256.
24
Acreditamos que esta qualidade possuiria relao com um incentivo a prpria pregao dos irmos
dominicanos.
93
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palavras que lhe so atribudas no texto; e consumao solene aga, solene; thau,
maneira, exaltando a sua expressividade com as palavras e a seu sepultamento feito por anjos,
No incio da narrativa biogrfica, Jacopo relata que gata nasceu na cidade de Catnia
e identifica-a como uma virgem de nobre estirpe e lindssima de corpo.25 Sublinhamos que
ele no apresenta, ao longo do captulo, nenhum personagem masculino que possua uma
relao com gata, convivendo com a santa como um parente, ou como um diretor religioso,
ou algo assim. Esse fato rompe com o discurso misgino caracterstico desse momento,26 que
Thomas Laqueur afirma que, de acordo com o discurso sobre o modelo do sexo nico,
havia uma ordenao social hierrquica e verticalmente estabelecida, na qual o homem era
visto como o ser mais perfeito e superior a mulher. Segundo o autor, essa percepo de
Assim caberia aos homens atuarem como seus intercessores perante o Senhor. E as mulheres,
25
Ibidem.
26
Para mais informaes sobre quais eram esses discursos e do que exatamente tratavam cf. BYNUM, C. El
cuerpo feminino y la pratica religiosa na Baja Edad Media. In: FEHER, Michelet et al.(Ed.). Fragmentos para
uma historia del cuerpo humano. Madrid: Taurus, 1990; DUBY, Georges et PERROT, Michelle. Histria de las
mujeres. La Edad Media. La mujer en la familia y en la sociedad. Argentina: Editora Taurus, 1992;
SARANYANA, J-I. La discusin medieval sobre la condicin femenina (siglos VIII al XIII). Universidad
Pontificia de Salamanca, 1997; LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gnero dos gregos a Freud.
Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 2001.
27
LAQUEUR, Thomas. Op. Cit. p.45.
94
-95-
jovem, rica e virgem, morando sozinha e sem nenhuma meno a sua famlia ou a figuras
masculinas responsveis pela sua superviso e controle, servindo como intercessores entre ela
e Deus. Tal ausncia, em nossa opinio, caracterizaria gata de forma singular, j que no
tutelada.
pelo martrio de gata. O dominicano marca tal personagem com quatro caractersticas,
construo de relatos sobre mrtires, nos quais os personagens do mrtir e do(s) responsvel
(is) por seu martrio so situados em posies diametralmente opostas.28 Jacopo narra que,
social superior ao seu, saciar-se em sua beleza, apoderar-se dos seus bens e agradar a seus
entregou para a meretriz Afrodisia e as suas nove depravadas filhas. Jacopo afirma que o
cnsul acreditava que elas poderiam convencer gata a entregar-se a ele em trinta dias, fosse
contedo de nenhum desses meios de persuaso, mas supomos que as ameaas estariam
envolvidas com a possibilidade da santa ter a sua pureza corrompida pela sexualidade e pela
depravao, j que foi colocada em uma casa de prostituio. Contudo, ela mostrou-se
resoluta em sua condio crist, afirmando que sua f estava fundamentada na certeza de
Cristo. Nesse momento narrativo, lemos que ela chorava diariamente, orando e pedindo a
palma do martrio.
28
ALTMAN, Charles. Two types of Oppositionand the structure of latin saints Lives. Medievalia et
Humanistica. Sl., n.6, p.1-11, 1975.
95
-96-
Segundo Elizabeth Alvilda Petroff, no livro Body and Soul: Essays on medieval
womem and Mysticism,29 a partir do sculo X, comeou a ser construda uma viso herica
sexual por uma pessoa virgem se render as paixes estariam na escala herica.30 Acreditamos
desviar gata de suas prticas crists. Ele mandou cham-la e questionou-lhe sobre sua
condio social, ao que ela respondeu ser livre e de famlia ilustre. Ele indagou o porqu de
seus modos servis e ela replicou dizendo ser escrava de Cristo, pois essa era a suprema
liberdade. Ele, ento, ordenou que ela escolhesse sacrificar ou suportar diferentes suplcios.
gata: Que sua futura esposa seja parecida com a deusa Vnus, que voc
cultua, e que voc mesmo seja como o deus Jpiter, que tanto venera.
Quintiano mandou esbofete-la com fora, dizendo: No ofenda seu juiz
com gracejos temerrios. gata replicou: Surpreende-me que um homem
to prudente como voc tenha chegado loucura de chamar deuses aqueles
cujos exemplos no gostaria que sua mulher ou voc mesmo seguissem, j
que considera injria meu desejo que voc viva como eles.31
Desse episdio, atentamos para a ironia de gata j que, segundo os mitos antigos,
Vnus, considerada a deusa do amor, traiu o marido com vrios amantes; e Jpiter enganava a
esposa com outras deusas e com mulheres mortais. Esse comentrio tambm reflete o seu
conhecimento sobre as crenas de Quintiano. Com essa argumentao, a virgem provou que
os deuses adorados por ele no eram dignos de tal, dando-lhe uma lio de moral ao justificar
o porqu. Diante da reao furiosa do cnsul, ela desqualificou sua crena, enquanto
29
PETROFF, Elizabeth Alvilda. Body and Soul: Essays on medieval womem and Mysticism. New York e
Oxford: Oxford University Press, 1994.
30
Ressaltamos que a autora no define essa gradao (Idem, p.94).
31
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit, p.257.
96
-97-
engrandecia a sua, finalizando sua fala dizendo: Se seus deuses so bons, desejei apenas o
bem para voc, mas se detesta parecer-se com eles, compartilhe meus sentimentos.32
ouvirem o nome de Cristo elas ficaro mansas; se empregar o fogo, os anjos derramaro do
Cu um rocio salutar sobre mim. Se me infligir chagas e torturas ver que desprezo tudo por
ter em mim o Esprito Santo.33 Desta forma, gata enaltece o poder de sua f e precipita a
possvel interveno divina, ressaltando a presena do Esprito Santo, qualidade que Jacopo
gata foi condenada ao martrio por ironizar Quintiano, ao desejar que ele e a sua
mulher fossem iguais a Jpiter e a Vnus, confundindo-o em pblico. Segundo a LA, aps
este fato, ela foi jogada na priso, para onde foi com enorme alegria, como quem ia para um
No dia seguinte, Quintiano concedeu uma nova chance para gata adorar aos deuses e
diante da constncia da recusa, ordenou que ela fosse suspensa em um cavalete e torturada.
Ela respondeu-lhe:
Nesses suplcios meu deleite o de um homem que recebe uma boa notcia,
ou v uma pessoa por muito tempo esperada, ou que descobriu grandes
tesouros. Da mesma forma que o trigo s pode ser colocado no celeiro
depois de fortemente batido para ser separado de sua casca, minha alma s
pode entrar no Paraso com a palma do martrio se meu corpo tiver sido
dilacerado com violncia pelos carrascos.34
sofrimento. gata descreve sua entrada no paraso como sendo possvel atravs da destruio
da dor nas palavras da personagem. Essa reao, diante das torturas, enquadrar-se-ia nos
32
Idem, p.257.
33
Ibidem.
34
Idem, p.258.
97
-98-
somticas, invertendo as relaes de poder. A lgica seria que quanto mais violenta fosse sua
Assim, ela demonstrou grande alegria em ser torturada, devido promessa do martrio
torturas, os carrascos e os responsveis por suas dores. Segundo o relato, com essa resposta,
Nesse sentido, acreditamos que Jacopo est reafirmando a relao oposta entre os dois
personagens, cada vez mais esteriotipados: de um lado, a virgem crist, feliz por ser
martirizada e smbolo de bondade; e, do outro, o vil pago, raivoso por no conseguir superar
a f de gata.
o tormento que se segue: Quintiano ordenou que arrancassem lentamente as mamas de gata
com tenazes.36 Frente esse suplcio, ela reagiu dizendo: mpio, cruel e horrendo tirano,
voc no tem vergonha de mutilar numa mulher o que chupou na sua me? Tenho em minha
alma mamas totalmente sadias com as quais nutro todos os meus sentidos e que desde a
infncia consagrei ao Senhor.37 Nas palavras da virgem, h uma renncia do corpo com uma
ntida definio de sua inferioridade em nome da alma; estabelecendo, assim, uma relao
hierrquica entre eles. Alm disso, a fala da virgem evidenciaria a lgica dos tormentos
hegemnico que estabelecia as funes sociais para homens e mulheres segundo uma
98
-99-
anatmicas dos corpos femininos e masculinos eram alcanadas por dois processos
concomitantes; uma anlise emprica e uma interpretao teolgica. Partindo destas reflexes,
as autoras afirmam que as leituras dos corpos estavam circunscritas idia de finalidade, ou
seja, algumas partes do corpo, por possurem fins especficos, no poderiam ser associadas ao
prazer sexual. Dentro dessa perspectiva, o seio no era visto como uma zona de prazer, mas
do sculo XVIII.41 A autora destaca que a difuso e reinterpretao dos trabalhos de Galeno
suscitaram trs grandes obstculos ao estudo da anatomia feminina. O primeiro era a analogia
absoluta autoridade.42
39
LAQUEUR, Thomas. Op. Cit.
40
THOMASSET, Claude. La naturaleza de la mujer. In: DUBY, Georges et PERROT, Michelle. Histria de las
mujeres. La Edad Media. La mujer en la familia y en la sociedad. Argentina: Editora Taurus, 1992. p.60-91.
41
Cabe ressaltarmos que uma das questes trabalhadas pela autora foram as relaes entre a renovao terica e
o discurso religioso. Para Thomasset, as teorias aristotlicas e a escola hipocrtica forneceram o fomento
necessrio para aumentar a divergncia entre os tericos, no que diz respeito ao prazer, concepo, ao corpo e
relao feminino/ masculino. Somando a isso, destaca o papel da medicina rabe, que intensificou a preocupao
da Igreja, entre os sculos XIII e XIV, em controlar e restringir os corpos com variadas normas de conduta, em
especial os femininos.
42
Nesse caso, Thomasset refere-se a autoridade da Igreja que tentou reprimir o estudo da anatomia feminina,
implantando e nutrindo o medo. Essa constante tentativa foi to intensa que, segundo a autora, uma das marcas
da literatura medieval a presena do medo (Ibidem, p. 89).
43
Idem, p.60.
99
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lugar inferior como mulher e subjug-la a sua autoridade civil e masculina. Dentro dessa
lgica, acreditamos que a reao da virgem a tal suplcio maldizendo o cnsul e questionando
em nome da f, pelo contrrio, acreditamos que a santa reagiu desta forma pelo prprio
significado que esta parte do corpo tinha para a mulher, associado lgica de funcionalidade
anteriormente.44
cumprir certas tarefas estabelecendo inclusive os papeis sociais ,45 perder a mama
significaria, na verdade, perder parte de sua funo social como mulher, j que as mulheres
prprio discurso da virgem, que atentou para a crueldade de arrancar nela o que a me de
Depois de ter as mamas arrancadas, ela foi jogada na priso, no podendo receber
nenhuma visita de mdico e nem alimentos. Contudo, em torno de meia-noite, um ancio com
uma criana, segurando uma tocha apareceu-lhe e disse-lhe: Embora aquele louco a tenha
coberto de tormentos, voc o atormentou mais ainda com suas respostas. Embora ele tenha
44
Segundo Claude Thomasset, essas concepes cientficas visavam dar validade aos modos de pensar vigente,
passando a circular. Desde a segunda metade do sculo XI, a medicina ocidental foi marcadamente influenciada
pela cincia rabe e pelos escritos filosficos da Antigidade, que ganharam mais fora aps as tradues
iniciadas por Constantino, o africano. _____. La naturaleza de la mujer... p. 63.
45
O pensamento de Isidoro de Sevilha esteve presente na construo de discursos, ao longo da Idade Mdia,
sendo disseminado nas universidades a partir do sculo XIII. Cf. VERGER, Jacques. Isidore de Sville dans ls
universits mdivales. In: FONTAINE, Jacques y PELLISTRANDI, Chistrine. (Eds.). L Europe hritiere de
lEspagne Wisigothique. Colloque international du CNRS. (Paris, 14-16, maio, 1990) Madrid: Casa de
Velzquez, 1992. p. 259-267.
46
BELTRN, Maria Tereza. Op. Cit. p.349.
100
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deformado seu seio, ele ser coberto de amargura. Eu presenciei todas as suas torturas e vi
Diante disso, gata respondeu nunca ter exibido o corpo nem para receber medicao
e que seria indecoroso faz-lo naquele momento, demonstrando o cuidado que possua para
cristo, ela retrucou que no era esse o motivo, pois seu corpo estava to horrivelmente
dilacerado que ningum poderia desej-la, e o agradeceu pela oferta. A mrtir reagiu,
modstia en los gestos, junto con la moderacin en los adornos, outro valioso baluarte en la
defesa del bien precioso de la castidad que um cuerpo exhibido em pblico podra poner em
peligro.49 Acreditamos que a reserva de gata em relao a seu corpo vincular-se-ia com a
comportamento ideal exigido das virgens. Ela, mesmo sabendo que seu aspecto fsico no
despertaria desejos alheios pela sua deformidade, a disciplina corporal que a santa impe
ferimentos. Ela respondeu ter o Senhor Jesus Cristo, que com uma s palavra cura e
restabelece todas as coisas.51 Ouvindo isso, o ancio revelou ser o Apstolo Pedro e afirmou
que ela estava certa, j que foi Deus que o enviara, curando-a por completo, restituindo-lhe as
47
VARAZZE, Jacopo. Ibidem.
48
CASAGRANDE, Carla. La mujer custodiada. In: DUBY, George et Perrot, Michelle. Op.Cit. p. 92-130.
49
Idem, p.121.
50
Joyce Salisbury argumenta que a mulher encontrava uma forma alternativa de ascetismo na virgindade e na
castidade, vivendo uma vida recheada de Esprito Santo. SALISBURY, Joyce E. Church fathers, independent
virgins. New York: Verso, 1991.
51
VARAZZE, Jacopo. Ibidem.
101
-102-
exacerbando a fora da cura divina, demonstra certo desapego pelo mundo material.
seios reafirmam a santidade de gata. Alm disso, cabe refletirmos sobre a importncia
De acordo com Eamon Duff, no livro Santos e pecadores: A histria dos papas,52
Pedro j caracterizado como lder ou, pelo menos, como porta-voz dos apstolos nos
Evangelhos e nos atos dos apstolos.53 Seguindo essa tradio, o autor apresenta alguns
episdios54 que demonstram um certo favorecimento a ele por parte de Cristo, o que
Eamon Duff ainda argumenta que, aps Mateus redigir sobre o episdio da confisso
de Pedro em Cesaria de Filipe,55 Jesus acreditaria que a f desse homem foi uma revelao
direta de Deus. Dessa forma, Ele redefiniu o nome de Simo Cefas para Pedro a pedra , e
teria afirmado sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e te darei as chaves dos Reinos dos
Cus; o que ligares na terra ser ligado aos cus.56 O autor ressalta que, devido a essas
palavras, a autoridade do apstolo perpetuou-se pela sua comunidade, inclusive nos escritos
primado de Pedro e como sua autoridade foi transmitida aos seus sucessores sobre a
sucesso apostlica.
primeira carta, que escrita por ele ou no, a verdade que a epstola o apresenta no
simplesmente como apstolo e testemunha salvadora da obra de Cristo, mas como fonte da
52
DUFF, Eamon. Santos e pecadores: A histria dos papas. So Paulo: Cosac & Naify, 1998.
53
Idem, p.3.
54
Duffy diz que Pedro foi o primeiro a reconhecer e proclamar Cristo como Messias, em Cesaria de Filipe, o
que indicaria sua f na Igreja do Senhor. Tambm destaca que ele foi o primeiro a testemunhar a transfigurao
de Cristo, entre outros episdios. Ibidem.
55
Destacamos que ele se refere ao relato supracitado na nota anterior.
56
Idem, p.4.
102
-103-
historiadores, como uma tarefa difcil, j que as igrejas eram governadas por colegiados de
bispos ou presbteros.58
apstolos Paulo e Pedro apaream ligados Igreja Romana, pouco a pouco, a partir de uma
apropriao do texto bblico por meio das tradies jurdicas romanas, Pedro ganha prioridade
e destaque frente a Paulo. Alm disso, ressaltamos que a escolha por essa primazia de Pedro
est associada relao entre ele e Cristo narrada nos Evangelhos e nos Atos dos Apstolos,
apesar dele e Paulo terem sido martirizados juntos, o martrio de Paulo celebrado apenas no
dia seguinte, enquanto o de Pedro festejado no mesmo dia de sua morte. Jacopo justifica
essa preferncia destacando que essa data foi dedicada igreja de So Pedro, que maior em
dignidade, foi o primeiro a ser convertido e tem o primado em Roma.59 No sculo XIII,
Nesse sentido, a apario do apstolo no relato de gata seria uma referncia Igreja
romana com a defesa do primado de Pedro e, dessa forma, da supremacia da igreja romana e
emanava do calabouo onde gata encontrava-se, e os guardas, vendo isso, fugiram, deixando
o crcere aberto. Algumas pessoas pediram para que ela aproveitasse a oportunidade e
57
Idem, p.5.
58
Idem, p.7.
59
VARAZZE, Jacopo, Op cit. p.512.
60
De acordo com Girolamo Arnaldi, a importncia da primazia de Pedro para a Igreja e para o enaltecimento do
bispado romano, foi argumentada por Gregrio VII na proposio XXIII dos Dictatus papae afirmando o bispo
de Roma, com a condio de ser canonicamente consagrado, torna-se indubitavelmente santificado graas ao
bem-aventurado Pedro. ARNALDI, Girolamo. Igreja e papado. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-
Claude. Dicionrio Temtico... Op.Cit., p.567-589. p. 583.
103
-104-
imolar aos deuses, sob ameaas de novos e piores suplcios. A virgem fez pouco caso do
cnsul, chamando-o de miservel sem inteligncia por querer que ela adorasse pedras e
renegasse quem a curou: Deus. Jacopo narra um curto dilogo entre eles, que termina com a
Dito isso, o cnsul ordena que joguem cacos de cermica no cho e, sobre eles, brasas,
para que o corpo nu de gata fosse arrastado por cima. Destacamos que a nudez era parte da
punio da santa, que demonstrou tamanha resistncia em revelar o seio destroado para
obteno da cura pelo ancio. Por que a necessidade de expor o seu copo nu para a tortura
final? Levantamos dois argumentos para compreenso desse episdio: o primeiro, que essa
fisicamente de uma forma que no pudesse ser curada por Deus. Em segundo, no podemos
esquecer que, segundo nossa perspectiva terica, o fsico um dos lugares de disputa de
poder genderificado. Como Rossiaud argumenta a relao carnal um ritual de poder que
est no centro da identidade masculina.62 Assim, atravs do controle sobre a nudez de gata,
Quintiano demonstra o poder que sua posio social lhe concedia sobre o corpo da virgem,
humilhando-a.
Durante o suplcio da virgem, lemos que um terrvel terremoto assolou a cidade inteira,
que ele parasse de injustamente torturar a jovem, pois era apenas esse o motivo do terremoto,
visto como sinal divino. Em outras palavras, defendemos que essa interveno divina
61
VARAZZE, Jacopo, op cit, p.259.
62
ROSSIAUD, Jacques. Op. Cit., p.488.
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No crcere, gata orou agradecendo ao Senhor por t-la preservado dos amores e das
mculas mundanas e por ter-lhe concedido as foras necessrias para que vencesse os
tormentos aos quais fora submetida; pedindo-lhe que recebesse seu esprito. Ela deu um
grande grito que poderia simbolizar a entrega final e total, e rendeu o esprito em torno de
253. Jacopo relata que quando Quintiano ia inventariar a riqueza da santa, dois de seus
cavalos soltaram-se. Um mordeu-o e o outro lhe acertou um coice que o jogou no rio e seu
Jacopo narra que, no dia do sepultamento de gata, surgiu um homem trajando belas
vestes de seda, acompanhado por cem outros belssimos rapazes, que colocou uma lpide
perto da cabea da santa e desapareceu.63 Com a divulgao de tal milagre, gentios e judeus
passaram a venerar seu tmulo. Nesse sentido, acreditamos que o dominicano buscava
incentivar o culto da virgem ao narrar a sua adorao por parte de pagos e de judeus.
Identificamos objetivo similar quando ele relata que perto do aniversrio de um ano da
morte da santa, um vulco entrou em erupo, e vomitou fogo, que descia como uma
corrente, fundia os rochedos e a terra, e vinha com mpeto sobre a cidade.64 Segundo ele,
No fechamento do captulo, lemos a exaltao dos milagres feitos por gata e o fato
dela ter sido visitada pelo apstolo Pedro como smbolo de sua glria, com a citao das
feliz e ilustre virgem que mereceu o martrio, derramando seu sangue para
a glria do Senhor! gloriosa e nobre virgem, ilustrada por uma dupla
63
Na lpide lia-se a inscrio: Alma santa, generosa honra de Deus e libertadora da Ptria VARAZZE, Jacopo,
op cit., p. 259). Jacopo ao explicar tais dizeres apenas os repete com outras palavras, ressaltando as qualidades
santas de gata. Ele relata que tal aparecimento deve-se a sua alma santa, ao fato dela ter-se oferecido
generosamente a Deus, por t-lo honrado e por ter liberto sua ptria.
64
Idem, p.259-260.
105
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glria, por ter feito toda sorte de milagres no meio dos mais cruis
tormentos e por ter merecido ser curada pela visita de um apstolo! Os cus
acolheram essa esposa de Cristo sujos restos mortais so objeto de glorioso
respeito, e cuja santidade da alma e libertao da ptria proclamada por
um coro de anjos.65
nome, no qual Jacopo argumenta quais seriam as qualidades que todo santo deveria possuir
citando Crisstomo.
gata identificada como santa duplamente gloriosa por seus milagres e por ter
recebido a visita de um apstolo. Ressaltamos que ela no morreu durante os suplcios, sendo
salva pela interveno divina, que, junto com o destaque dado aos acontecimentos
A mrtir revela grande felicidade face os suplcios, demonstrada nas falas e nas aes
sua virgindade constitui um ascetismo prprio da santa, o que tambm evidenciaria a sua
santidade.
torturas com a exposio do corpo atravs da mama arrancada lembrando a virgem de sua
cristianismo: primeiro, ele busca posicionar a crist gata em seu lugar como mulher,
reconstitudas, tortura-a nua para que ela no pudesse ser curada atravs de nenhuma
65
Idem, p.260.
66
Como os milagres relatados, a resistncia s duras maceraes, a ao da natureza na proteo dos corpos dos
santos, entre outros.
106
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marcaria uma intensa relao de poder, na qual o cnsul acredita ter sido vitorioso ao romper
com o recato da santa e impor-se sobre seu corpo, controlando-o devido a posio social
ocupada. Contudo, o terremoto que se seguiu, levando os citadinos a exigirem o fim das
torturas, evidencia que o controle sobre a personagem no abalava a fora de sua f crist, que
virgens, com a valorizao de seu recato e de sua pureza, sendo essa ltima qualidade
desejvel todos os cristos. Ela identificada como santa e a seguir como uma jovem virgem.
construo de seu gnero, pois palco de marcadas relaes de poder entre a santa e
Quintiano, reveladas claramente nos episdios em que teve a mama arrancada e no da sua
nudez forada. No primeiro relato, atravs dessa punio somtica, o cristianismo exaltado
como vitorioso aps a reconstituio do seio da personagem, feita pelo Apstolo Pedro,
segundo, a vitria ocorre devido ao da natureza, em que um sbito tremor da terra, fez
com que o povo exigisse o fim do suplcio. Conclumos que, em ambos os casos, a vitria do
Iniciando com a sua apresentao, tomamos conhecimento que, assim que se casou com
Eulgio o prefeito de Nicomdia , afirmou que s teria relaes sexuais com ele caso se
convertesse ao cristianismo.
Na narrativa, ela voltou para a morada paterna, onde seu pai mandou despi-la e surr-
la duramente. Destacamos que no h explicaes para esse retorno: se foi forado pelo
107
-108-
marido ou fruto de sua vontade. Contudo, ao considerarmos que ela foi surrada despida,
acreditamos que isso seria uma tentativa de humilh-la e relembr-la da sua condio como
O pai de Juliana a reenvia ao prefeito, que questionou o motivo de seus atos. Ela lhe
respondeu que se ele adorasse o Deus cristo seria aceito como seu senhor.68 Eulgio afirmou
que no poderia faz-lo por temer o Imperador, que poderia mandar cortar-lhe a cabea, ao
que a personagem retrucou dizendo se voc teme dessa forma um imperador mortal, como
quer que eu no tema um que imortal? Faa o que quiser, assim no me ter.69 Nesse
trecho, sublinhamos o claro uso do sexo, pela personagem, como elemento de negociao
para converter o marido ao cristianismo. Ainda que virgindade fosse o padro ideal para os
cristos, o casamento, e o sexo praticado pelo casal, no eram condenados. Alis, no sculo
XIII, era o esperado para os leigos. Logo, a negociao feita por Juliana no era considerada
ilegtima.
O martrio de Juliana, portanto, teria como causa inicial justamente o seu desprezo
pelo marido pago que, segundo o relato, mandou-lhe surrar duramente com vara e, durante
meio dia, pendur-la pelos cabelos, enquanto lhe derramavam chumbo derretido sobre a
67
Os possveis significados da nudez das santas no perodo medieval, especificamente a da santa Juliana, foram
problematizados no artigo de Peter Dendle, cf. _____. How Naked Is Juliana? Philological Quarterly, v.83, n.4,
p.355-390, 2004.
68
Essa questo aparece tambm em outro relato da LA, o da Santa Ceclia (p.941-947), contudo com um
desfecho diferenciado. Segundo o captulo, a nobre, virgem e crist Ceclia foi prometida em casamento para
Valeriano, contudo, no dia das npcias ela revelou ter um anjo de Deus como amante, que cuidava de seu corpo
com grande solicitude. Ela explicou para o marido que se o anjo percebesse que ela fora maculada, ele seria
atingido imediatamente. No entanto, se visse que o amor dele por ela era sincero, o amaria como a um cristo,
caracterizando, assim, o amor puro vinculado ao cristianismo. Segundo a narrativa, o jovem, por vontade de
Deus, falou que queria ver o anjo. A virgem o instruiu que para v-lo teria que ser batizado e rumar a cidade de
pia, onde perguntaria aos pobres sobre o velho Santo Urbano, falando ter uma mensagem secreta para
transmitir-lhe. Ao encontrar com o santo bispo, Valeriano seria purificado e veria o anjo. Ele seguiu as
instrues de Ceclia e converteu-se ao cristianismo.
69
VARAZZE, Jacopo de. Op.Cit. p. 266.
108
-109-
cabea.70 Contudo esse suplcio no a teria feito mal algum atestando a marca de sua
Na priso, um anjo foi visit-la pedindo para que sacrificasse aos deuses. Chorando,
Juliana orou pedindo ao Senhor que no lhe permitisse fraquejar e que lhe mostrasse quem
estava diante dela de verdade. A santa ouviu uma voz dizendo para agarr-lo e obrig-lo a
confessar quem era. Ela o fez e o anjo revelou ser um demnio, filho de Belzebu, que falou
nos faz cometer toda sorte de mal e nos faz aoitar rudemente cada vez que
somos vencidos por cristos que para minha desgraa aconteceu quando vim
aqui, porque no pude super-la (...). Ento Juliana amarrou-lhe as mos
atrs das costas e, jogando-o no cho, bateu duramente nele com a corrente
que servia para prend-la. O diabo dava gritos e suplicava: Minha senhora
Juliana, tenha piedade de mim.71
Nessa passagem, Juliana domina o diabo e exerce poder sobre ele, intimidando-o e
acorrentando-o. Acreditamos que a fora que a personagem revela sobre o demnio seria uma
Segundo o relato, o prefeito mandou que retirassem Juliana da priso e ela seguiu pela
praa com o diabo, que lhe suplicava piedade, porque agora ele j no poderia mais dominar
ningum preso nas correntes. Ela o arrastou por todo trajeto e o jogou em uma latrina por fim.
Levada diante do prefeito, Juliana foi amarrada a uma roda de madeira de modo to
violento que, segundo o relato, todos os seus ossos foram deslocados e a medula saiu
70
Idem, p.266.
71
Idem, p. 267.
72
Ibidem.
73
Jacopo ressalta que os que testemunharam esse acontecimento, se converteram e foram, posteriormente,
decapitados, sendo quinhentos homens e cento e trinta mulheres.
109
-110-
virgem foi jogada em uma caldeira de chumbo derretido. Contudo esse tormento virou um
uma moa que lhes ofendia e mandou decapit-la. Ressaltamos, desse trecho, a inferioridade
concedida aos deuses pagos que no conseguiam superar uma crist; inferioridade essa
gritando para no poup-la. Ao perceber que ela o olhou, ele fugiu exclamando Ai, pobre de
mim! Ainda acho que essa moa quer me prender e me acorrentar.74 H, novamente, uma
subjugao do demnio, evidenciada no temor que a santa lhe causava. Novamente, Jacopo
Aps a decapitao de Juliana, uma tempestade muito forte caiu e o prefeito, junto a
mais trinta e quatro homens, se afogou. Segundo a narrativa, seus corpos foram devorados por
animais e aves aps terem sidos vomitados pelas guas. Assim, o castigo divino enaltece, por
e do espancamento por seu pai, que a relembraria de sua condio como mulher. O seu corpo
ganha, no seu captulo, papel de destaque associado ao sexo e utilizado como elemento de
Juliana tem a sua santidade comprovava atravs dos milagres e da interveno divina,
narrativa.
74
Idem, p.267.
110
-111-
Contudo, nesse relato, acreditamos que a grande meta uma objetivao da fora da f
crist e de seu poder em relao aos outros que, nesse caso, seriam o demnio e os deuses
tentao para Juliana fraquejar e imolar aos deuses, sob disfarce angelical. A jovem, porm,
ora e pede ajuda ao Senhor para confirmao de sua viso e a verdade lhe revelada. Nesse
ocorresse, porque o poder da f seria superior, porque o do Senhor o era. Essa questo seria
reforada com a narrao sobre a fora com a qual a santa controla o demnio, fazendo-o
implorar por piedade e amedrontando-o. Se, como mulher, Juliana sofre abuso de seu pai e de
seu marido, o prefeito, tentando negociar com este, trocando a converso dele pela vida
compilador afirma que o nome Eufmia derivaria de eu, bom, e femina, mulher,
significando boa mulher. Jacopo argumenta que ela foi boa, pois o que bom possui trs
caractersticas: til, honesto e agradvel. A personagem teria sido til por sua maneira
de viver, honesta pela excelncia de seus costumes e agradvel a Deus pela contemplao das
coisas do Cu.75 Devido ao seu nome, j encontramos nesse momento narrativo a sua
identificao como mulher e um elogio ao seu modo de vida crist, caracterizando-a como um
exemplo aos demais. Acreditamos que, ao enaltecer suas virtudes, o dominicano argumenta
75
VARAZZE, Jacopo. Op. Cit. p. 810.
111
-112-
Eufmia tambm viria de eufonia, que quer dizer, segundo Jacopo, som agradvel.
O dominicano alega que este poderia ser alcanado de trs formas: com a voz, com cordas e
com o ar. A personagem teria pronunciado um som agradvel por meio da pregao, de suas
destinavam-se comunidade crist que poderia ter acesso ao relato atravs das pregaes;
dominicano.
publicamente ao juiz Prisco ser crist, aps ver as muitas torturas sofridas pelos cristos, no
tempo de Diocleciano. Na narrativa, somos informados que sua atitude teria confortado os
fila. Seu objetivo era atemorizar os demais obrigados a assistir as execues , para que, por
medo, imolassem aos deuses. Contudo, ao decapitar alguns santos na presena de Eufmia,
Alegre por crer que a demovera de sua f, Prisco questionou-lhe como a insultava.
Eufmia respondeu que, por ser de linhagem nobre, deveria ser martirizada e alcanar a glria
seguindo a perspectiva de Lucy Grig,77 Eufmia se via como um soldado de Cristo que
confrontava a fora do mal, representada, nesse momento, pelo estado romano. Nessa lgica,
o mrtir desejaria a sua morte, exacerbando as torturas, j que quanto maiores fossem os seus
sofrimentos, maior seria a demonstrao da vitria crist coroada com a sua morte. Ainda
76
Idem, Ibidem.
77
GRIG, Lucy. Torture Op.Cit. p. 322.
112
-113-
Eufmia, apesar de no exaltar suas penas, destaca a sua condio social devido ao seu forte
Prisco respondeu que havia ficado aliviado por verificar que Eufmia havia
recuperado seu bom senso e se lembrado da sua nobreza e de seu sexo,79 estabelecendo um
modo de agir e um lugar prprio para as mulheres de sua condio social no perodo. Jacopo
simplesmente narra que a santa foi aprisionada e, no dia seguinte, ao ser levada presena do
juiz sem estar amarrada como os outros, reclamou amargamente por apenas ela ter sido
dispensada dos grilhes, afirmando que isso contrariava as leis dos imperadores.80 Nesse
trecho do relato, sublinhamos a nfase dada ao conhecimento da mrtir sobre as leis romanas.
O juiz a seguiu e tentou violent-la, contudo, segundo a narrativa, ela lutou como um
homem e, por vontade divina, a mo de Prisco ficou paralisada, o que no permitiu que ele
Brown,81 para alguns pensadores cristos, atravs da virgindade a alma se uniria a Cristo,
tornando-se sabedoria e luz. Por exemplo, para Crisstomo82 e Gregrio de Nissa,83 o corpo
78
O autor Oscar Calavia Saz defende que a narrativa das crueldades dos suplcios serviria para construo do
culto aos santos. Cf. SAZ, Oscar Calavia. Religio e restos humanos. Cristianismo, corporalidade e violncia.
Antropologia em primeira mo, n.55, p.1-27, 2003. Disponvel em: http://www.antropologia.ufsc.br/
55.%20oscar-cristianismo.pdf. ltimo acesso: 17/03/2008.
79
Ibidem.
80
No h nenhuma especificao sobre qual compilao legislativa o relato se refere, contudo as leis dos
imperadores costumavam ser compndios contendo resumos das leis do imprio anterior. Cf. ALMEIDA, Jorge.
Perodos e fontes da Histria do Imprio. Disponvel em: http://www.azpmedia.com/historia/
content/view/69/28/. ltimo acesso em: 23/01/2008.
81
BROWN, Peter. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renncia sexual no incio do cristianismo. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 285.
82
Joo Crisstomo nasceu na Antioquia por volta de 344. A data de sua morte teria sido provavelmente em 405
ou 407. Teria seguido uma vida asctica e pregador. Ele figura entre os quatro grandes Padres do Oriente. Para
mais informaes sobre sua vida e trabalho, cf. HAMMAN, Adalbert-G. Para ler os Padres da Igreja. So
Paulo: Paulus, 1995.
83
Gregrio de Nissa foi um telogo e filsofo cristo nascido em Cesaria, da Capadcia, na Anatlia, sia
Menor, hoje Kayseri Turquia. Personagem da era Patrstica, ele possuiu certo renome no processo de
consagrao do pensamento cristo, sendo um dos precursores do trabalho de Santo Agostinho. Para mais
113
-114-
virgem era o veculo da ascenso da alma rumo a Deus. Em outras palavras, essa virtude era
comeou a ser construda uma viso herica vinculada virgindade. Ela defende que tal
acepo devia-se crena de que resistir s tentaes, para no se render s paixes, era
considerado um ato herico.85 Logo, acreditamos que a luta travada entre a virgem e o juiz
desse pressuposto, defendemos que a tentativa de controle sobre o fsico da jovem, por parte
do juiz, evidenciaria uma batalha de poderes, em que, apesar dele no ter conseguido demov-
la de sua f, o comando do somtico da jovem poderia ser uma forma de comandar tambm a
sua alma. No entanto, a mrtir sai vitoriosa dessa disputa. Atravs de uma comparao com a
resultado do poder da sua f , destaca-se que a santa foi auxiliada com a interveno divina
Acreditando estar sob algum feitio, Prisco ordenou que seu prepsito86 fosse at o
crcere onde se encontrava Eufmia, para tentar convenc-la a aceitar o juiz como amante. No
entanto, a sua cela no se abria com o uso das chaves e nem era quebrada a machadadas.
Somos informados que o prepsito, por fim, foi possudo por um demnio e fugiu, aos gritos,
santa, mas, nesse caso, seguida de uma justia punitiva, na qual o funcionrio do juiz,
informaes sobre sua vida e seu trabalho, Cf. CORBELLINI, Vital. A doutrina da encarnao do Verbo no
Adversus eunomium de so Gregrio de Nissa, 357-375. Revista Eclesistica brasileira. Para alm da idolatria.
v. 65, n.258, p.357-375, abril 2005.
84
PETROFF, Elizabeth Alvilda. Body and Soul: Essays on medieval womem and Mysticism. New York e
Oxford: Oxford University Press, 1994.
85
Ressaltamos que a autora no define essa gradao. Idem, p.94.
86
Prepsito ou prelado refere-se a um superior masculino. No lexus religioso cristo passou a ser o dignitrio
eclesistico.
114
-115-
endemoniado, acabou por se automutilar.87 Vale destacar que a ajuda sobrenatural, no caso de
primeira atravs de sua identificao como mulher no estudo etimolgico, feito por Jacopo,
e de sua posio social como filha de um senador. A segunda aparece na sua performance no
mbito social, pois, segundo seu relato, ela lutou como um homem ao ser agarrada pelo juiz.
Assim, acreditamos que o seu relato estaria contrrio aos discursos misginos hegemnicos
saberes construdos sobre seu gnero, aperfeioando-se. No entanto, esse processo s lhe foi
possvel por ela ser crist e, principalmente, por seguir uma vida recheada de virtudes crists
Cabe ressaltarmos que possuir uma vida recheada de valores cristos no era o aspecto
formador da santidade, mas sim a comprovaria. Segundo a viso da poca, o santo marcado
desde o seu nascimento pela graa divina e a sua vivncia entre os homens serviria para
suscitar efeitos purificadores e milagres, entre outros. Em outras palavras, Eufmia teria a
santidade inerente a ela, sendo que ao argumentar sobre as suas virtudes e qualidades,
acreditamos que Jacopo objetivou afirm-la como um exemplo a ser seguido pelos cristos.
Retornando a narrativa, aps o prepsito ter sido tomado por um demnio, Eufmia
foi colocada sobre uma roda, cujos raios estavam cheios de brasas. O plano era que um
arteso, posicionado no meio da roda, desse um sinal sonoro para que seus ajudantes
iniciassem o seu movimento, carbonizando o corpo da mrtir. No relato afirma-se que, por
vontade divina, o instrumento que retinha a roda caiu das mos do arteso e os ajudantes,
87
Essa conotao alegrica da automutilao possuiria um forte carter pedaggico e didtico, fornecendo
provas da santidade dos personagens e da fora da f crist.
115
-116-
A famlia do arteso decidiu, ento, queimar a roda com a virgem amarrada nela,
texto, para pegar Eufmia no lugar em que estava foram colocadas escadas, e quando
algum quis esticar a mos para agarr-la, no mesmo instante ficou completamente paralisado
e somente com muita dificuldade conseguiram desc-lo meio morto.89 Em seguida, lemos
que um homem chamado Sstenes subiu na escada e foi convertido imediatamente por
Eufmia, afirmando que preferia a morte a ter que tocar em uma pessoa guardada por anjos.
Ela foi descida, mas no sabemos como, pois Jacopo no revela. O juiz, ento,
mandou seu chanceler reunir todos os jovens libertinos para que se divertissem com ela at
morrerem de esgotamento. Porm, quando o primeiro entrou no local onde estava a virgem,
Alm disso, a apario de muitas outras virgens seria uma coroao de sua qualidade
A seguir, somos informados pela narrativa que ela foi suspensa pelos cabelos, mas
somticos. Foi reconduzida priso, com a proibio de receber alimentos, para que ela fosse
esmagada entre quatro pedras aps sete dias. Contudo, ela orou e as pedras foram reduzidas a
p. Assim, para salv-la h, novamente, a interveno divina, com um milagre voltado sua
Outro milagre nessa mesma linha aparece no episdio narrado aps esse, no qual o
juiz, envergonhado por ter sido vencido por uma mulher,90 decidiu jog-la em um fosso onde
88
Segundo Philippe Faure, no artigo Anjos, a manifestao Anglica uma descida do Cu terra que santifica
o homem, o tempo e o espao. A visita e a viso dos anjos parecem como signo de santidade do monge e de sua
semelhana com os habitantes do Cu. Desse trecho, destacamos a santificao de Eufmia confirmada pela
visitao de um anjo para salv-la. FAURE, Philippe. Anjos In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude.
Dicionrio Temtico...Op.Cit., p. 69-80.
89
VARAZZE, Jacopo de. Op.Cit., p.811.
90
Nesse sentido, acreditamos que ele foi vencido porque suas torturas no afetaram Eufmia, pelo contrrio, elas
acabaram por enaltecer o poder da f crist. Alm da conotao de humilhao vinculada ao fato de Prisco ter
perdido para uma mulher, deixando-o envergonhado.
116
-117-
estavam trs animais selvagens que poderiam devorar qualquer homem.91 Contudo, estes
foram at Eufmia, mansos, para acarici-la, e arrumaram as caudas juntas para servir de
Prisco quase morreu de angstia e o carrasco, para vingar a afronta feita a seu senhor,
enfiou a espada no tronco de Eufmia. Aps lutar por sua virgindade e por sua f, por fim,
Eufmia foi morta com uma espada enfiada no seu flanco pelo carrasco do juiz. Ele foi
recompensado com um traje de seda e um colar de ouro, contudo ao sair foi apanhado por
um leo que o devorou completamente (...). O juiz foi encontrado morto depois de ter
Ambos os algozes foram penalizados pelo martrio de Eufmia, sendo que o juiz se
destaque dela possuir o mrito de ter convertido a todos os judeus e pagos da regio, o que
acreditamos sublinharia as converses que foram feitas atravs do exemplo da vida e das
palavras da virgem. Jacopo termina o relato citando o prefcio da obra Sobre a virgindade de
s oraes na superao dos suplcios sofridos e viso da carne como uma priso para a
alma:
91
Idem, p.812.
92
Ibidem.
93
Idem, p.812.
117
-118-
No relato de Eufmia destacamos que os suplcios aos quais ela foi condenada foram
vencidos por interveno divina, atravs de aparies angelicais ou de punies feitas por
figura nesse captulo. Ou seja, os tormentos de Eufmia so indolores. Esse elemento pode
ser atribudo prpria virgindade da personagem. Essa virtude, enaltecida ao longo do relato,
ganharia contornos hericos com a total renncia de Eufmia aos prazeres mundanos e com a
sua luta para manuteno de sua virgindade, o que j atestaria o caminho de sua alma. Logo,
serviriam para definir qualidades desejveis nos cristos e nos irmos pregadores. Nesse
sentido, defendemos que sua biografia apresenta um caminho para salvao da alma baseado
cristos.
como tambm ao valor concedido virgindade da personagem. A luta de poder sobre o corpo
enaltecida ao longo do captulo e protegida com milagres que comprovariam a sua santidade.
Sua virgindade adquiria valor similar dor para atestar o caminho de sua alma. Essa virtude,
94
POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
95
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4,
p.11-46, 2002
118
-119-
de carter herico, possibilitou que Eufmia superasse comportamentos construdos sobre seu
gnero fragilidade, fraqueza de sua carne, entre outros , aperfeioando-se. Esse processo
s lhe foi possvel por ela ser crist e, principalmente, por seguir uma vida recheada de
Como em outros relatos, esse tambm se inicia com uma anlise etimolgica. Segundo
a obra, Catarina significaria runa universal, porque ela arruinou o edifcio do diabo com o
seu modo de vida: a soberba com a sua humildade, a concupiscncia carnal com a sua
virgindade e a cupidez mundana com seu desprezo pelas coisas materiais. Alm disso, poderia
ser correntinha advindo de catenula. De acordo com sua interpretao, ele afirma que foi
com boas obras que ela fez para si uma corrente com a qual subiu ao Cu. Cabe destacarmos
que ao escrever quais seriam os quatro degraus que formariam essa corrente, o compilador
cita o livro bblico de Salmos, quando o profeta pergunta quem subiria na montanha do
Senhor (Salmos 24, 3), ele mesmo responde: Aquele cujas mos so inocentes e o corao
puro, que no ocupou sua alma com futilidades, que no fez juramentos falsos contra o
prximo.96
convocou a todos que residiam em Alexandria para sacrificar aos deuses, ameaando punir os
que no o fizessem. Ento a personagem, que, com dezoito anos de idade, vivia em um
96
Ibidem.
97
Cabe ressaltarmos que o relato no norteado por muitos milagres ou intervenes divinas, s h quatro
episdios milagrosos. O primeiro milagre foi o envio de uma pomba pelo Senhor que alimentou a santa por doze
dias com alimento celeste. O segundo foi a destruio das rodas, que iam moer a carne da santa, que causou a
morte de quatro mil gentios. O terceiro foi a morte do imperador que, segundo Jacopo, foi castigado por esse
martrio, alm de muitos outros, e, por ltimo, consideramos tambm o sepultamento de Catarina, que foi
realizado por anjos no alto do Monte Sinai.
98
Ao final do relato, Jacopo diz haver uma dvida sobre quem teria sido o responsvel pelo martrio de Catarina:
Maxncio ou Maximiano. Provavelmente por tal razo, o compilador apenas menciona o nome do imperador
nesse momento narrativo, chamando-o de imperador ou rei ao referir-se a ele ao longo do captulo.
119
-120-
aplausos, mandou imediatamente algum verificar o que acontecia. Informada, saiu do palcio
junto com outras pessoas e protegendo-se com o sinal-da-cruz. Viu muitos cristos que,
levados pelo temor, ofereciam sacrifcios.99 Nesse trecho, destacamos a relevncia dada ao
sinal-da-cruz como meio de proteo e de ligao com o Senhor, como veremos a seguir.
procurando demov-lo de suas crenas. Jacopo afirma que esses argumentos vincular-se-iam
primeira pertenceria aos retricos e dialticos, a segunda, aos filsofos, e a terceira, aos
sofistas. Ele conclui, portanto, que ela dominava todas as formas de saber humano. Apesar de
aparecer na LA que ela recebera instruo em todas as letras liberais, lemos que o imperador
ficou estupefato pela sapincia dela, pois, alm de bela, ela expunha com sabedoria muitas
coisas sobre a encarnao do Filho.102 Destacamos dois elementos para anlise nessa
condizente com a educao que recebera, assim como pela doutrina crist, ainda que no
aparea no relato nenhuma meno de que fora instruda por um clrigo. Logo, defendemos
que o espanto causado por sua sabedoria estaria associado no ao conhecimento da "cincia
Sublinhamos que havia, no sculo XIII, uma preocupao com a difuso dos trabalhos
nossa interpretao, Jacopo utiliza esse relato para argumentar que o saber completo seria
99
Idem, p. 962.
100
Idem, p.969.
101
Ao final do relato ele discorre sobre a filosofia ou a sabedoria que estaria dividida em saberes tericos,
prticos e lgicos, dos quais Catarina possua entendimento e domnio (Ibidem).
102
Idem, p.963.
120
-121-
que, alis, Catarina detinha sem receber alguma instruo especfica, conforme o texto. Dessa
forma, acreditamos que essa personagem simbolizaria o saber no seu sentido mais completo,
seu gnero. Isto , a jovem, ainda que mulher, possua profundos saberes seculares, nem
sempre comuns ao sexo feminino, assim como aqueles inspirados pelo prprio Deus, tambm,
O relato continua com o imperador, sem saber o que responder, ordenando que a
levassem ao Palcio at os sacrifcios acabarem, que ento ele a responderia. E assim o fez.
Ele foi at Catarina e questionou quem ela era e qual era a sua origem. Ela respondeu e, ao
no perigo!.105
O rei retrucou que se o que ela falava fosse verdade, todos estariam errados, no
entanto toda afirmao deveria ser confirmada por pelo menos duas testemunhas,
acrescentando que mesmo que voc fosse um anjo ou uma potncia celeste, ningum deveria
Catarina unicamente por sua condio de mulher. Na continuao do dilogo, ela lhe pediu
citando um poeta:107 Se o esprito o governa, voc ser rei, se o corpo o governa, ser
103
Jacques Le Goff afirma que foi Toms de Aquino quem defendeu que arte seria toda atividade racional e
justa do esprito aplicada no fabrico de intrumentos, quer materiais, quer intelectuais. Dessa forma, as artes
liberais (cincia) eram chamadas de artes porque implicariam em um conhecimento que resultaria da razo
diretamente. LE GOFF, J. Os intelectuais na Idade Mdia. Lisboa: Estdio Cor, 1973. p.68-69.
104
Segundo a historiografia, Cassiodoro teria divulgado as sete artes liberais como fundamentais para a
composio da educao crist. Para mais informaes, cf. PAUL, Jacques. Historia intelectual del occidente
medieval. Madrid: Ctedra, 2003, LE GOFF, Os intelectuais ... Op. Cit., RAINHA, Rodrigo dos Santos. A
Educao no Reino Visigodo. Rio de Janeiro: HP Comunicao Editora, 2007.
105
Idem, p.964.
106
Ibidem.
107
Ressaltamos que no encontramos informaes sobre qual teria sido o poeta ou filsofo em questo.
121
-122-
pedindo-lhe para superar o fato dela ser mulher, para que seu saber obtivesse a devida ateno
e reconhecimento.
sabedoria, reuniu secretamente cinqenta oradores que superavam todos em qualquer gnero
da cincia, entre gramticos e retricos de toda Alexandria, para que confundissem Catarina.
grande imperador, voc convocou os sbios de todas as regies mais afastadas do mundo para
uma simples discusso com uma moa, quando um de nossos discpulos podia facilmente
refut-la!.109 Novamente sua condio como mulher aparece como motivo de desqualificao
De acordo com o compilador, o rei, ao fazer isso, desejava confundir Catarina em seus
argumentos e no apenas tortur-la com suplcios.110 Ele queria desqualificar a crena dela
como ela fez com a dele, enquanto enaltecia a sua. A narrativa continua e a virgem, informada
deste encontro com os oradores, recomendou-se ao Senhor. Um anjo lhe apareceu e avisou
para ela ser firme, pois ela no apenas converteria os sbios como os destinaria palma do
martrio. Em outras palavras, a sabedoria com a qual ela expunha a doutrina estava
diretamente associada sua confiana no Senhor, que mandou um anjo preveni-la para
manter-se de acordo com a f. Ao narrar isso, defendemos que Jacopo objetivava incentivar
108
Ibidem.
109
Ibidem.
110
Eu podia obrig-la pela fora a oferecer sacrifcio, ou elimin-la por meio de suplcios, mas julguei
prefervel que seja confundida pelos argumentos de vocs (Idem, p.963).
122
-123-
justo que voc oponha uma moa a cinqenta oradores aos quais promete
gratificaes pela vitria, ao passo que me fora a combater sem me
oferecer a esperana de uma recompensa? Entretanto para mim a
recompensa ser meu Senhor Jesus Cristo, que a esperana e a coroa dos
que combatem por ele.111
mulher e certo receio da prpria personagem devido a seu sexo. Contudo, ela demonstra total
coisas materiais.
estariam dispostos a converterem-se. Catarina prega. Ela faz com que pessoas convertam-se.
Sem temer o que poderia ocorrer a sua pessoa, ela age como um dominicano deveria agir: usa
serem queimados no centro da cidade. Contudo, eles lamentaram morrer sem serem batizados,
mas Catarina pediu para que nada temessem, pois o sangue que derramassem no martrio seria
entregaram-se s chamas, que no atingiram nem seus cabelos nem suas vestes. Nesse trecho,
111
Idem, p.963-964.
112
Ela diz: Plato estabelecera que Deus um crculo cortado em forma de meia-lua. Assim, quando Jacopo
apresenta um Plato cristianizado, demonstra uma pungente preocupao abertura aos filsofos pagos nas
Universidades, devido presena dos dominicanos nesses centros intelectuais.
113
Idem, p.964.
123
-124-
verificamos que apesar de toda a sabedoria da santa, o fato dela ser mulher impediu-a de
batizar os sbios. Nesse sentido, defendemos que o dominicano constri a personagem como
representao de sabedoria por interveno divina, como uma espcie de smbolo, no como
um ser real.
O rei prope para a jovem sacrificar aos deuses, poupando sua juventude e recebendo
o segundo posto mais importante no reino, depois da rainha, o que Catarina recusou. Diante
disso, Jacopo escreveu que cheio de raiva, o csar mandou despi-la e tortur-la com
escorpies e depois jog-la em uma escura priso, na qual deveria padecer de fome durante
que ela era apenas uma mulher. Alm disso, defendemos que o somtico da personagem seria
palco das relaes de poder genderificadas: como o rei no poderia controlar a alma de
Nesse meio tempo, o rei teve que se ausentar para resolver questes em outra regio e
a rainha, que se afeioara a Catarina, foi visit-la junto com o comandante militar Porfrio. No
crcere, ambos foram convertidos, alm de outros duzentos soldados. Jacopo aqui refora a
pensando, que algum lhe dera alimentos, mandou torturar seus soldados. Catarina retrucou
afirmando que ningum a alimentara, pois ela recebera alimento celeste. Nesse sentido, seu
esplendor estava relacionado sua f, que tambm a nutriu. O imperador ento lhe ordenou
escolher entre oferecer sacrifcios ou perecer, ao que ela respondeu: Quaisquer que sejam os
tormentos que voc possa imaginar, no demore em aplic-los, pois desejo oferecer minha
114
Idem, p. 965.
115
Ibidem.
124
-125-
carne e meu sangue a Cristo, como ele prprio se ofereceu por mim. Ele meu Deus, meu
serras de ferro e de pregos pontiagudos, para que essa mquina moesse Catarina em pedaos e
Contudo, a virgem rogou ao Senhor, pedindo-lhe que destrusse tal mquina pela glria de seu
nome e pela converso do povo que se encontrava ali. Ou seja, mesmo sendo uma mulher,
Catarina no temia a dor. Ao rogar para que a roda fosse destruda, o relato destaca que ela
Nessa passagem, temos no apenas a interveno divina, que salvou a virgem, como
tambm o castigo divino voltado aos gentios. E, alm disso, ao narrar que o pedido por ajuda
foi prontamente atendido, o compilador enalteceu a posio contrria de Deus em relao aos
deuses pagos, que no o auxiliavam, como disse Catarina, e enalteceu os mritos em manter-
Jacopo narra que a rainha, que assistia a tudo, foi ao encontro de seu marido e lhe
chamou a ateno por suas crueldades. Ela exortou o marido que furioso com a recusa da
decapitada.118 Nesse sentido, a f crist deu-lhe as foras necessrias para rebelar-se contra
seu esposo, sem se importar com as conseqncias desse ato.119 Catarina disse para ela no
116
Idem, p.965-966.
117
Nesse ponto, Jacopo descreve como a mquina funcionava, o que acreditamos seria uma estratgia textual
para enaltecer tanto como a coragem da virgem quanto o milagre que sucederia: Dispuseram-se duas rodas que
deviam girar numa direo, ao mesmo tempo em que duas outras seriam postas em movimento sentido contrrio,
de maneira que as de baixo deviam rasgar as carnes que as rodas de cima houvessem jogado nelas. Idem, p.
966.
118
Ibidem.
119
Acreditamos que a inteno de corta-lhe as mamas fora para lembr-la de sua condio: ela era apenas uma
mulher e como tal no poderia desafiar um homem, em especial o seu marido e rei. Ora, ao narrar esse episdio
em que a f fortaleceu a rainha, Jacopo pretendia incentivar mais ainda os irmos a no desistirem por medo das
conseqncias. Ressaltamos que o imperador acusa Catarina de ter feito a rainha morrer com a sua arte mgica,
mas coloca-se disposto a perdo-la caso ela se arrependesse e prometendo-lhe como recompensa o posto de
pessoa mais importante do palcio. A tentativa de seduzi-la com o poder novamente falha.
125
-126-
temer, pois ela iria ganhar um marido imortal.120 Aps sua morte, Profrio, o comandante
militar, revela ao imperador ter sepultado o corpo dela e de ter-se convertido f crist.
comentar o ocorrido com os soldados, eles tambm lhe revelaram estarem todos convertidos
f crist. Jacopo afirma que brio de furor, o csar ordenou ento que se cortasse a cabea
deles e de Profrio e que seus corpos fossem jogados aos ces.121 E, apesar desse estado
mental alterado, Maxncio122 no condenou a virgem, pelo contrrio, deu-lhe uma nova
chance de arrepender-se. Somente diante da nova recusa que ele a condenou decapitao.
Aps ser decapitada, Jacopo narra que do corpo de Catarina jorrou leite e no sangue e
que os anjos pegaram seu corpo e o sepultaram com honras no alto do monte Sinai. De acordo
com Thomas Laqueur, no livro Inventando o sexo. Corpo e gnero dos gregos a Freud,
da noo de economia de fluidos fungveis. Nesse sentido, todo sangue que no era
nutrio.123
chamado vasa mestrualis, Merral Llwelyn Price, no artigo Bitter milk: The Vasa Mestrualis
and the cannibal(ized) virgin,124 defende que a equivalncia entre o sangue e o leite
de Cristo na Eucaristia.
significados: ligada a ltima ceia do Senhor; codificao de preces eucarsticas, que recebeu
126
-127-
natureza histrica das fontes; e ao seu entendimento como oratio-prex seguindo a idia de
sacrifficium offerre por parte da comunidade crist.125 Nesta ltima, associa-se ao sacrifcio
individual, possuindo relao com a Igreja. A Eucaristia vista como alimento e como
engravidado, podemos supor que ao jorrar leite e no sangue de seu ferimento, Jacopo estaria
realizando um paralelo com a idia de Catarina nutrindo os seus filhos, que seriam aqueles
sacrifcio da mrtir que morre em nome da f diante de todos. Sublinhamos que Renzo
Gerard127 defende a viso de Eucaristia como sacrifcio, afirmando que a vtima imolada
bebendo o nico clice que algum se torna a oferenda viva, se assemelhada a Cristo, vtima
pascal.128
seu sacrifcio, nutre aqueles que assistiram seu martrio e os que tomaram conhecimento dele,
colocando-se na posio de oferenda Cristo. Coroada com o martrio, ela foi acolhida por
Segundo o captulo, sublinhamos um marcado incentivo ao seu culto dado por uma
passagem ao final. Jacopo argumenta que, antes de morrer Catarina orou, pedindo que todos
que se lembrassem de seu martrio e fizessem um pedido, fossem atendidos. Ela escuta como
resposta: Vem, minha querida, minha esposa, a porta do Cu est aberta para voc. A todos
125
HAMMAN, Adalbert. Eucaristia. In: DI BERARDINO, Angelo (Org.). Dicionrio Patrstico e de
Antiguidades Crists. Petrpolis: Vozes, 2002. p.527-530.
126
Justino apud HAMMAN, Adalbert. Op.Cit.. p. 527.
127
GERARD, Renzo. Eucaristia. In: FISICHELLA, Rino; PACOMIO, Luciano & PADOVESE, Luigi (Orgs.)
LEXICON. Dicionrio Teolgico Enciclopdico. So Paulo: Loyola, 2003. p. 264-265. p. 264.
128
Ibidem, p. 264.
127
-128-
os que celebrarem a memria do seu martrio com devoo, eu prometo a ajuda do Cu que
pedirem.129
Acreditamos que essa passagem visava ser um incentivo ao culto da mrtir, o que seria
fortalecido quando Jacopo narra que um monge de Ruo foi ao Monte Sinai, onde Catarina foi
sepultada e l permaneceu por sete anos a servio da mrtir, rogando-lhe por algum pedao de
seu corpo. Um dia, um de seus dedos desprendeu-se e o monge recebeu esse dom de Deus
com alegria, levando-o para seu mosteiro.130 Nesse caso, no h apenas uma argumentao
uma relquia131 em um local determinado, o que serviria para atrair fiis e doaes.
quais Catarina era admirvel: sua sabedoria, sua eloqncia; sua firmeza; sua castidade; e seus
Ao tratar sobre a sabedoria, ele afirma que Catarina reuniria todos os aspectos
desejveis da sapincia que possua trs faces: a terica, a prtica e a lgica, como
subdivises, afirmando que ela detinha saberes de cada expresso de conhecimento abordada.
Ressaltamos que, na sabedoria terica, h uma associao ao divino em duas das suas
ela possua a sabedoria natural no conhecimento de todos os seres inferiores, que usou em
129
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit., p.967.
130
Ibidem.
131
Para mais informaes sobre o papel das relquias no perodo medieval, cf. BUENACASA PEREZ, Carlos.
La instrumentalizacin econmica del culto a las reliquias: una importante fuente de ingresos para las Iglesias
tardoantiguas occidentales (ss. IV-VI). In: BOSCH JIMNEZ, Concha, VALLEJO GIRVS, Margarita,
GARCA MORENO, Luis A., GIL EGEA, Mara Elvira. (coord.). Encuentro Hispania en la Antigedad Tarda,
3, lcala de Henares, 13 a 16 de Octubre de 1998. Actas... lcala de Henares: Universidad de lcala, 2003. p.
123-140, GAJANO, Sofia Boesch. Santidade. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio
Temtico... Op.Cit., p. 449-463. p. 452.
132
A sabedoria intelectual associada ao conhecimento do divino, pois foi com ela que a santa comprovou a
existncia de um nico Deus e descartou os demais, assim, de certa forma Jacopo defenderia um tipo de
conhecimento vinculado ao teolgico. VARAZZE, Jacopo, Op. Cit., p.967.
133
Catarina possuiria o conhecimento matemtico por ter se despojado de todo bem material enaltecimento do
desapego material mendicante e a utilizou ao convencer a rainha a desprezar o mundo e amar o rei eterno.
Ibidem.
128
-129-
seu debate com o imperador,134 desqualificando-o. Alm disso, sublinhamos que ao narrar
viveu, pela sua relao honrada com a sua famlia e pelos sbios conselhos dados ao
imperador.
ato de pregar, comumente realizado por personagens masculinos na LA. Apenas Catarina de
Alexandria e Maria Madalena esto claramente associadas a este papel na compilao, o que
Latro, em 1215. O cnone 10, dedicado a essa questo, estabelece que a pregao poderia ser
designadas pelo bispo responsvel pelo local quando este no puder cumprir com essa
Em suma: nesse, lemos sobre uma santa objetivada como smbolo de uma sabedoria
completa a ser seguido pelos irmos dominicanos, mas no pelas mulheres. Defendemos que
Jacopo destaca que, para o soberano, Catarina, por ser uma mulher, era inferior aos
homens, sendo inferiorizada pelo prprio rei, pelos oradores e at por suas prprias atitudes.
Ela contorna essa viso por ser crist, por ter assumido as verdades do cristianismo e deixar
que seu Senhor falasse por ela. Nesse sentido, o dominicano defende, atravs dessa
personagem, as qualidades que os irmos pregadores deveriam ter, o que fica mais evidente
nas ltimas pginas do relato dedicadas para o compilador trabalhar com as qualidades
129
-130-
melhor, um tipo de erudio que reunia saberes variados, mais associados s universidades,
muitos se converteram. Afinal, se uma mulher podia fazer isso, imagine do que os irmos
Assim, apesar de haver uma construo de identidade de gnero atravs de uma certa
disputa de espao entre a sua condio como mulher, ressaltada constantemente, e a sua
que a essncia desse relato encontra-se na construo de uma personagem cuja sabedoria
superaria o infortnio de seu sexo e cuja vida seria coroada com o martrio.
martirizao, foram distintos. gata e Anastcia foram levadas a julgamento por causa da
ganncia de suas riquezas por terceiros. A primeira foi vtima de Quintiano, enquanto a
segunda foi alvo de dois prefeitos. Catarina e Eufmia foram at aos locais onde outros
segurana aos coraes cristos. J a santa Juliana foi condenada por negar-se a ter relaes
formulao dos sermes, visando ao entre os fis e a converso dos infiis e hereges, no
entanto cada captulo teria finalidades especficas. Nesse sentido, a obra apresenta uma
sucesso de topos sem unidade, justamente por ser uma compilao e Jacopo aproveita-se
130
-131-
relao pag e a sua superao ao demonaco, indicando a proteo fornecida pelo Senhor
A exaltao dessa qualidade tambm aparece no captulo de Catarina, quando ela teria
objetivao dessa personagem como smbolo de sabedoria, funcionando como pano de fundo
principalmente.
No relato sobre gata, o objetivo era incentivar os fiis a manterem-se retos na vida
crist, no importando a situao. Apoiamos tal hiptese na felicidade com a qual a santa
encara os suplcios o que transparece nas suas falas e nas suas aes , por acreditar no
poder de sua f e, ao mesmo tempo, desejar a vida eterna ao lado de seu Senhor. A visita
recebida do maior dos apstolos para cur-la, apenas a enaltece, pelo mrito de manter sua
retido e persistncia.
demonstrada na raiva do prefeito Quintiano, que amaldioou os seus prprios deuses. Nos
virgindades, marcando assim uma total rejeio dos prazeres carnais por parte das santas.140
137
Destacamos que todas as personagens so virgens, contudo em algumas narrativas h o destaque para tal
condio.
138
O relato de gata tambm possuiria, em menor destaque, essa argumentao sobre a sabedoria, contudo a
superao somtica para alcanar a santidade seria o principal elemento.
139
Sublinhamos que todos os relatos so norteados por milagres que evidenciavam a presena divina e
confirmavam a santidade das personagens, contudo apenas nas narrativas das santas Eufmia e Anastcia eles
voltam-se proteo da virgindade delas, como analisado anteriormente. Esse recurso narrativo relacionar-se-ia
ao objetivo de cada relato. No primeiro, temos o enaltecimento dos mritos e das virtudes em manter-se fiel f
crist, utilizando-se da narrao de eventos sobrenaturais e de episdios milagrosos; j, no segundo, como j
dissemos, o cerne do texto est na exaltao da virgindade apesar dos pesares.
140
Ressaltamos que nem todo santo da LA possui essa desvinculao com o aspecto carnal. Lembramos do
relato sobre Santa Teodora, por quem um jovem rico inflamou-se de desejo, graas ao diabo. Segundo a
narrativa, ele a atormentou de tal forma, que ela perdeu a sade e o sono e o homem foi a uma feiticeira pedindo
auxlio. A personagem havia dito que nunca cometeria um pecado to grande ela era casada aos olhos de
131
-132-
impostas s personagens com os corpos nus nos chama ateno. No caso de Santa gata, em
nossa opinio, o somtico possuiria dois grandes objetivos. Primeiro, o suplcio de ter o seio
arrancado, serviria para relembr-la de sua condio como mulher, contudo a sua restituio
tortur-la nua, o propsito seria humilh-la: Quintiano a superaria pela sua condio social,
mas perde pela f da personagem relembramos que ele foi atacado pelos seus prprios
Relatos sobre torturas com as personagens nuas, tambm ocorrem nos captulos de
Juliana, h duas apresentaes de usos do seu corpo dentro de relaes de poder. A primeira
seria o uso do sexo como mecanismo de convencimento do marido, para que ele se
convertesse. A segunda seria a surra que levou do pai, que representaria a sua humilhao e
demonstrao do controle que ele possua sobre seu corpo. No caso de Catarina, a nudez
corpo virgem est presente em todos os relatos, no entanto participaria de modo direto na
Jacopo pontua durante a narrativa que Catarina uma mulher e inferior aos homens,
atravs de passagens narrativas em que ela dialoga com o rei, os oradores e at consigo
mesma. Ela contorna qualquer viso sobre ela, por ser mulher, ser inferior com o uso de sua
Deus que tudo v ento a feiticeira a convenceu que o que acontece depois do cair do Sol no era visvel pelo
Senhor. Assim, ela cedeu volpia do rapaz, mas se arrependeu ao perceber o que tinha feito, travestiu-se e
retirou-se para um cenbio sob o nome de Teodoro.
141
No captulo sobre Catarina, h outra narrativa com o relato do seio ter sido arrancado: a rainha que foi
condenada ao martrio. Contudo, apenas h a meno desse castigo, antes dela ser decapitada, logo acreditamos
que, nesse caso, o objetivo era apenas coloc-la em seu lugar social como mulher.
132
-133-
espao entre a sua sapincia e seu sexo biolgico. Nesse caso, a nudez da personagem
entregue ao ltimo prefeito, ela exilada na Ilha de Palmarola junto com outros cristos. Eles
so buscados e martirizados.
Nos relatos sobre os corpos torturados, salientamos que todas as mrtires so salvas
por eventos milagrosos, dos suplcios ou no sentem o tormento, com exceo de gata. Na
sua narrativa lemos sobre milagres que a curam, o que estaria vinculado ao enaltecimento do
objetivado como palco de relaes de poder sofridas associadas s passagens de nudez, por
Assim, conclumos que Jacopo compilou esses relatos visando atender certas questes
133
-134-
CAPTULO 4
relativos aos personagens masculinos da Legenda urea.1 Lembramos que, no total, foram
1. So Vicente, o vitorioso
O relato segue uma narrativa linear, sendo iniciado por um rpido estudo etimolgico.
Segundo a interpretao de Jacopo, no captulo sobre So Vicente, este nome significaria trs
coisas: queimando o vcio (vitium incendens), aquele que vence os incndios (vincens
1
VARAZZE, Jacopo. VARAZZE, Jacopo. Legenda urea; vida de santos. So Paulo: Companhia das Letras,
2003.
2
Sublinhamos que, em alguns captulos estudados, h o relato de outros martrios, inclusive de personagens
femininas. Todos foram mencionados em nosso trabalho.
134
-135-
foi devido sua sabedoria, pureza3 e constncia que ele venceu os trs flagelos do mundo: as
Destacamos que o santo marcado por vitrias durante todo o relato, sendo colocado
face aos carrascos, a Daciano responsvel pelo seu martrio -, aos instrumentos de tortura e
Aps essas reflexes sobre o nome Vicente, Jacopo cita Agostinho,5 informando que
segundo esse autor os martrios dos santos foram e continuam sendo exemplos para vencer o
mundo com todos os seus erros, amores e temores.6 Desta forma, o dominicano j identifica,
no incio do captulo, a santidade de Vicente vinculada ao martrio e ainda aponta para o valor
nascimento e mais nobre por sua f e sua religio.7 Na LA, lemos que ele era dicono do
bispo Valrio, que lhe confiou pregao pela sua facilidade em exprimir-se, enquanto o
reforaria o ideal proposto por Domingos acerca do equilbrio necessrio entre pregao e
3
Ressaltamos que, no relato, no h informaes sobre Vincente ser casto ou virgem, apenas essa colocao
sobre sua pureza e sua abstinncia dos amores imundos. Contudo, se relembrarmos o argumento do supracitado
Jacques Rossiaud, que defende que aquele vinculado ao sagrado deveria abster-se do sexo, visto como a poluo
suprema por afast-lo do divino; podemos supor que o personagem era virgine. ROSSIAUD, Jacques.
Sexualidade. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio Temtico Medieval. So Paulo/
Bauru: Imprensa oficial do Estado/ EDUSC, 2002, 2v, V.2, p. 477-483.
4
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit., p.188.
5
Jacopo destaca que alguns defendem que foi Agostinho quem descreveu o martrio de Vicente, posteriormente
versificado por Prudncio, o que demonstra a sua preocupao em apresentar as fontes utilizadas.
6
Ibidem
7
Ibidem.
8
Ressaltamos que Daciano s quis v-los por achar que eles estariam mortos de fome, contudo encontrou-os
sadios e alegres.
135
-136-
seguirem outra religio, o bispo respondeu em voz baixa e Vicente chamou-lhe a ateno,
pedindo que soltasse a voz e falasse com liberdade, oferecendo-se para faz-lo em seu lugar.
Valrio aceitou a oferta, afirmando que h muito tempo j havia nomeado o dicono para falar
por ambos.
Ento, Vicente respondeu a Daciano que eles no sacrificavam aos deuses, porque
para os cristos uma blasfmia recusar-se a prestar Divindade a homenagem que lhe
devida.9 Dessa forma, ele desqualificou os deuses pagos afirmando que eles no eram
divinos. Por causa disso, o dicono foi considerado um jovem presunoso e arrogante e foi
Aps ter seu corpo todo desconjuntado no potro,11 Daciano perguntou-lhe: Que tal
est agora seu miservel corpo, Vicente? Este, sorrindo, respondeu: Como sempre desejei.12
Wolf,13 de Alison Gulley14 e de Evelyn Birge Vitz,15 que defendem que o mrtir construdo
o com todo tipo de tormentos se ele no renegasse suas idias, ao que ele respondeu:
como estou feliz! Ao fazer o que pensa que me fere, voc faz o maior
benefcio. Anda miservel, lana mo de todos os recursos maldosos e ver
que quando sou torturado tenho, com a ajuda de Deus, mais fora do que
quem me tortura.16
9
Idem, p.189.
10
O dominicano sublinha que Daciano intencionava fazer desse castigo um exemplo para os outros cristos.
11
Hilrio Franco Jr., na edio da LA aqui utilizada, descreve, em nota, esse instrumento de tortura romano
como sendo constitudo por uma armao de madeira, cujo formato era semelhante a um pequeno cavalo e, por
causa disso, o nome potro equuleum. Ibidem.
12
VARAZZE, Jacopo. Ibidem, p.189.
13
WOLF, Kristen. The Severed Breast: A Topos in the Legends of Female Virgin Martyr Saints. Archiv fr
Nordisk Filologi, v.112, p. 97-112, 1997.
14
GULLEY, Alison. Heo Man Ne Waes": Cross-Dressing, Sex-Change, and Womanhood in Aelfric's Life of
Eugenia. Mediaevalia: A Journal of Medieval Studies, v. 22, n.1, p.113-131, 1998.
15
VITZ, Evelyn Birge. Gender and Martyrdom. Medievalia et Humanistica, New Series, v. 26, p.79-99, 1999.
16
VARAZZE, Jacopo. Ibidem.
136
-137-
Nesse sentido, h o destaque para a superao dos limites somticos e o desejo do mrtir pelo
Segundo a LA, Daciano, descontrolado, chicoteou seus carrascos, afirmando que eles,
que haviam superado parricidas e adlteros, foram vencidos por Vicente, que ironiza tal
enfiaram pentes de ferro at o fundo das costelas, mostrando as entranhas de Vicente. Ento,
Daciano pediu para que o santo apieda-se de sua juventude, ao que ele retrucou:
Jacopo narra que, durante as torturas, Vicente manteve-se com os olhos voltados ao
Cu, orando:
17
GRIG, Lucy. Torture and truth in late antique martiriology. Early Medieval Europe. V.2, n.4, p.321-336, 2002.
18
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit., p.189.
19
Idem, p.189-190.
20
GRIG, Lucy. Op. Cit., p.324.
21
Essas associaes esto presentes tambm no fechamento do captulo, que composto com citaes de
Prudncio, que, como assinalamos anteriormente, teria colocado em versos a vida de Vicente, afirmando que
Vicente falou para Daciano: Tormentos, prises, garfos, lminas crepitantes de fogo, e, enfim, a morte, que a
ltima das penas, tudo isso brincadeira para os cristos. VARAZZE, Jacopo, Op.Cit., p.191.
137
-138-
era que quanto maior a dor sofrida, maior era a possibilidade da vitria do cristianismo e da
Segundo Lucy Grig, a inverso tambm ocorreria pelas relaes traadas durante o
julgamento, porque o criminoso seria torturado para confessar o crime, enquanto o cristo
teria que neg-lo. A confisso seria a reafirmao de sua f.22 Alm disso, ressaltamos que so
os suplcios que colocam o mrtir na sua posio original de testemunha: ele no morre por si,
Daciano, ao saber do ocorrido, disse aos carrascos que Vicente pode superar as
torturas que vocs lhe infligem,24 reconheceu-se vencido como desejava o dicono. J
destacamos que a marca da vitria e da superao do santo norteia toda construo do relato e,
com isso, Jacopo elabora uma relao de oposio, quase que caricata, entre o cristo vitorioso
Ento, Daciano ordenou que o colocassem em uma masmorra escura, deitado no cho
coberto por cacos de vidro pontiagudos e com os ps pregados em uma estaca, pedindo que o
avisassem quando ele morresse. Aps terem feito isso, os carrascos foram at a masmorra,
onde observaram entre as frestas da parede que as penas haviam virado glrias:25 a escurido
ele ordenou que levassem Vicente para repousar em uma cama macia, sobre as almofadas
mais confortveis do reino para que ele se recuperasse. Segundo o relato, to logo foi
carregado e colocado em uma cama macia morreu por volta de 287. Segundo Jacopo, o
22
GRIG, Lucy. Idem, p. 328.
23
Como, por exemplo, atravs das citaes de Prudncio, que informa que, durante as torturas, Vicente,
deliciando-se com as mos ensangentadas, ria dos carrascos que no conseguirem enfiar mais fundo os garfos
de ferro em suas costelas.VARAZZE, Jacopo, Idem. p.189.
24
Ibidem.
25
Idem, p.190.
26
Para mais informaes sobre a importncia da apario anglica, Cf. FAURE, Philippe. Op.Cit..
138
-139-
presidente do tribunal imperial afirma que fazia isso porque se o mrtir morresse em meio aos
suplcios, ele seria mais glorioso. Ao apresentar esse reconhecimento por parte do presidente
temeroso das repercusses da morte de Vicente, ou seja, de seu martrio. nesse sentido que
as relaes de poder esto invertidas: quanto mais violentas fossem as penas somticas, maior
pelo martrio, a outra f. Alm disso, acreditamos que dessa forma o papel simblico do
mrtir enaltecido.
O relato continua com o presidente do tribunal imperial afirmando que queria vingar-
se em Vicente depois de sua morte, destruindo seu corpo, pois, ao menos assim, ele venceria o
mrtir. Logo, ordenou que colocassem o corpo do santo em um campo, exposto s criaturas
selvagens, mas ele foi guardado por anjos e por um corvo, ave voraz por natureza.27 Ao
saber disso, Daciano reconheceu que no superaria o santo nem na morte, ento ordenou que
ele fosse jogado ao mar para ser devorado por criaturas e nunca ser encontrado. Contudo, a
correnteza arrastou-o at a margem, onde seu corpo foi encontrado por uma senhora e alguns
cristos que tiveram uma revelao a esse respeito. Eles o sepultaram honrosamente.
natureza, j que os animais selvagens protegeram o santo e a correnteza levou seu corpo para
a margem, para que ele fosse encontrado e sepultado honradamente por um grupo de cristos.
27
Ibidem.
139
-140-
alcanou o mrito do martrio ao resistir aos suplcios em nome da f. Tal questo reforada
com uma citao de Ambrsio que resume as torturas sofridas pelo santo, afirmando:
Vicente foi torturado, espancado, flagelado, queimado, mas no vencido em sua coragem de
tortura, e celebra a cada um desses episdios. E ele vence vivo e vence morto, neste ltimo
caso com a interveno divina que orquestra a natureza e os animais para proteo do corpo
santo e com a apario angelical para guard-lo e proteg-lo. Assim, ele simboliza
com uma forte e marcada associao do somtico em prol da salvao da alma. Assim, estaria
28
Idem, p.191.
29
Ibidem.
140
-141-
transformao de suplcios em deleites.30 Em suma, ele aquele que vence todas as torturas
fortalecido pelas torturas, triunfando sobre os seus carrascos e perseguidor, zombando das
torturas somticas que lhe eram infringidas e do prprio Daciano. Os seus triunfos so uma
Segundo o estudo etimolgico feito por Jacopo, o nome Jorge viria de geos,
que o dominicano associa com a sua carne. Citando Agostinho, no livro Sobre a Trindade, a
boa terra pode estar no alto das montanhas, o que convm ao pasto, nas encostas temperadas
das colinas, para as vinhas; ou nas plancies, para os cereais. A partir desse apoio em uma
autoridade eclesistica, lemos o argumento de que o beato foi como a terra alta por desprezar
as coisas baixas e exaltar as puras, foi como a terra temperada devido descrio com o vinho
da eterna alegria, foi como a terra plana pela humildade eu produz frutos de boas obras.31
Segundo o relato, Jorge tambm poderia advir de gerar, sagrado, e de gyon, areia,
sendo areia sagrada pelo peso de seus costumes, miudeza na sua humildade e secura na sua
volpia carnal. Um terceiro sentido viria de gerar, sagrado, e gyon luta, representando
30
POUCHELLE, Marie-Christine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
31
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit., p. 365.
141
-142-
lutador sagrado e associando a sua batalha com o drago e com o carrasco. Nesse sentido,
O ltimo significado de Jorge resultaria de gero que seria peregrino, gir, cortado,
e ys, conselheiro, porque ele foi peregrino em seu desprezo pelo mundo, cortado em seu
para seu desapego ao mundo, uma identificao do beato como mrtir e a sua atuao como
pregador. Acreditamos que essa nfase visava exortar os irmos da Ordem dos Irmos
Pregadores
desse santo foi considerada como apcrifa pelo conclio de Nicia. Essa afirmao evidencia a
eclesistica e destacando seu carter de verdade. Essa atitude vincular-se-ia ao contato que ele
algumas certificam que Jorge sofreu o martrio sob os imperadores Diocleciano e Maximiano,
outras j defendem que foi sob o imperador persa Diocleciano e na presena de oitenta
generais, e, por fim, h uns autores que alegam que foi sob o governador Daciano, sob o
imprio de Diocleciano e Maximiano, enquanto o calendrio de BEDA diz que ele foi
existentes, sem posicionar-se frente a elas nesse momento narrativo, fazendo isso ao fim do
32
Ibidem.
33
Ibidem.
142
-143-
Segundo a LA, Jorge tinha ido a Silena, cidade da provncia da Lbia, onde habitava,
nas redondezas, um drago feroz que afugentava aqueles que tentavam derrot-lo. Para
habitante, de qualquer sexo, escolhido por sorteio.34 Depois de um tempo, foi sorteada a nica
filha do rei. Este, desesperado, pediu que os citadinos pegassem todo seu ouro, prata e metade
Diante dessa proposta, os citadinos reclamaram que seus filhos haviam sido
sacrificados devido ao edito do rei, logo, ou a sua filha era levada para ser devorada pelo
drago ou ele perdia seu povo. Diante disso, o rei pediu oito dias para lamentar o destino dela.
Ao final desse tempo, somos informados que a populao foi ao castelo exigir que a promessa
fosse cumprida e o soberano lamentou no ter a chance de ter netos de estirpe real. Segundo o
Jacopo narra que o beato Jorge, que passava pela regio, ao v-la chorar, perguntou o
porqu das lgrimas. Ela pediu para que ele montasse em seu cavalo e fugisse para no morrer
com ela. Pedindo calma, ele indagou a jovem sobre o que toda aquela gente esperava ver.35
Ento, a moa explicou toda a situao e, quando o drago apareceu, suplicou ao tribuno para
ir embora depressa.
atacou o monstro que caiu ferido. Ele falou para a moa colocar o seu cinto no pescoo deste.
Ela o fez e o drago a seguiu feito um cozinho muito manso.36 Ao chegarem cidade, o
povo entrou em desespero, contudo o beato os acalmou avisando que se todos aceitassem o
34
Na verdade, a Legenda destaca que, inicialmente, davam duas ovelhas, contudo foi por falta delas que os
cidados comearam os sorteios para escolher um citadino.
35
Os sacrifcios ocorriam fora aos muros da cidade, onde se encontrava o drago. Na LA, no aparecem
informaes sobre quem Jorge referia-se.
36
Idem, p.367.
143
-144-
batismo, ele mataria a criatura. E nesse dia, 20 mil homens foram batizados, sem contar
gnero de Jorge, pois relaciona a fora fsica e militar do personagem como poder da f crist.
Segundo Juan Antonio Ruiz Dominguez,38 dentre as funes possivelmente atreladas ao sinal-
Ressaltamos que nas obras de Gonzalo de Berceo, estudadas pelo autor, no figura a
associao entre o sinal e a proteo divina, ao contrrio da LA. Essa construo aparece em
muitos relatos, como o de Jorge, enaltecendo a cruz como signo de esperana, proteo e
Aps a sua vitria sobre o drago, para homenagear a bem-aventurada Maria, o beato
Jorge mandou construrem uma igreja, onde sob o seu altar surgiu uma fonte de gua curativa
para os enfermos. Nesse momento narrativo, defendemos que a presena do divino serviria
para atrair fiis para o templo em questo, j que a localizao da cidade colocada no relato.
Aps esse episdio, o rei ofereceu a Jorge uma enorme quantidade de dinheiro, mas
ele no aceitou e mandou que ela fosse doada aos pobres, o que destaca, na narrativa, a sua
caridade e o seu desapego das coisas materiais. Antes de partir, o beato deu quatro conselhos
ao soberano: escutar o santo ofcio, cuidar das igrejas, honrar os padres e lembrar-se dos
37
Ibidem.
38
O autor trabalha com o papel das mentalidades na devoo crist e a construo das funes da cruz e do sinal-
da-cruz nas obras de Gonzalo de Berceo, mas faz consideraes gerais sobre a questo. DOMINGUEZ, Juan
Antonio Ruiz. La devocion a la cruz en la obra de Gonzalo de Berceo. (em prensa) In: CONGRESO MUNDIAL
DE HERMANDADES DE LA VERA CRUZ, 1. Sevilla: Ceira, 1995. p.1-12.
39
Para mais informaes, cf. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1983;
RAMOS, Luis Garca-Guijarro. Reforma eclesistica y rdenes Militares (ss. XI-XIII). In: BENITO, Ricardo
Izquierdo e GMEZ, Francisco Ruiz (coords.). Las Ordenes Militares en la Pennsula Ibrica. Cuenca:
Universidad Castilla-la-Mancha, 2000. V. 1, p.1005-1017; MITRE FERNNDEZ, Emilio. La implantacin del
cristianismo en una Europa en transicin (c. 380-c. 843). In: SEMANA DE ESTDIOS MEDIEVALES, 7,
1996, Njera. Actas... Logroo: Instituto de Estudios Riojanos, 1997, p. 197-215.
144
-145-
contudo centrando-se no martrio sofrido pelo santo. Este recheado de milagres, apoiado nas
Aps relatar uma segunda verso mais curta da histria do drago, Jacopo coloca que
dezessete mil. Na narrativa, somos informados de que muitos dos cristos fraquejaram e
Emocionado com tal fato, Jorge doou tudo que possua aos menos afortunados, trocou
as roupas militares pelas dos cristos, foi viver entre eles, e passou a chamar os deuses gentios
de demnios, pois o Deus cristo fizera os cus. Nesse trecho, acreditamos que Jacopo
pelas ordens mendicantes. Alm disso, ao mencionar a troca das vestes, acreditamos que ele
estaria, metaforicamente, referindo-se ao fato dele deixar de servir um pago e passar a servir
questionou sobre quem ele era e de onde, o que o cristo respondeu. Ele ainda complementou
sua resposta dizendo que, com o auxlio de Cristo, ele se submeteu Palestina, contudo largou
tudo para servir ao Deus do Cu. Daciano40 percebendo que no conseguia demov-lo,
mandou suspend-lo no potro e dilacerar cada um de seus membros com garfos de ferro.
Mandou queim-lo com tochas e esfregar sal em suas feridas e em suas entranhas.41
40
No relato, Jacopo refere-se a Daciano ora como juiz, ora como prefeito.
41
Idem, p. 368.
145
-146-
viso, Jorge fortaleceu-se tanto que os suplcios sofridos pareciam no ter acontecido.
imolar aos deuses atravs de torturas, chamou um mgico para demov-lo de sua f atravs da
magia. Assim, o mgico invocou os seus deuses e misturou vinho com veneno, depois deu
para Jorge, que fez o sinal-da-cruz, bebeu e nada aconteceu. Diante disso, uma dose mais
potente foi feita e, novamente, aps fazer o sinal-da-cruz, o santo tomou o lquido e nada
aconteceu.
a inferiorizao da crena pag, j que os deuses tambm foram invocados, contudo foram
No dia seguinte, Daciano teria mandado colocar Jorge numa roda com espadas de dois
gumes ao seu redor, contudo ela se quebrou e ele saiu ileso. Ento, ele foi condenado a ser
jogado em um caldeiro de chumbo fervente, que aps o santo fazer o sinal-da-cruz e pela
Sublinhamos que o relato no menciona que Jorge teria feito o sinal-da-cruz antes de
ser colocado na roda, e apesar disso ele foi igualmente salvo. Acreditamos que Jacopo estaria
Daciano, vendo que no poderia vencer o santo com suplcios, mudou o seu modo de
persuaso, tratando-o com suavidade e gentileza. Ele afirmou para Jorge que os seus deuses
eram calmos e que o perdoaria, caso abandonasse a f crist. Jorge riu e disse Por que voc
42
Ibidem.
43
Ressaltamos que a no-meno ao sinal-da-cruz tambm pode ser devida grande variedade de fontes
utilizadas pelo compilador ou as diferentes edies realizadas a posteriori.
146
-147-
no falou assim antes de me torturar? Estou pronto a fazer aquilo que me exorta.44 Segundo
o captulo, com essa fala, o mrtir iludiu o juiz, e, dessa forma, h um destaque para o uso da
Jorge foi levado para o templo, onde Daciano convidou a cidade inteira para ver o
cristo rebelde imolar aos deuses, demonstrando satisfao em t-lo subjugado. No entanto,
diante de todos, o mrtir pediu ao Senhor para destruir o templo e as imagens dos dolos por
completo. No mesmo instante, caiu o fogo do Cu sobre o templo, queimando-o com seus
deuses e seus sacerdotes. A terra entreabriu-se e tragou tudo o que restara.45 Nessa passagem,
representado pelo mrtir, sai vitorioso, j que, com apenas um pedido, o cristo foi abenoado
Objetivando conferir um tom de veracidade ao relato, Jacopo cita Ambrsio, que teria
dito que, aps tomar conhecimento desse evento, Daciano ordenou que levassem Jorge a sua
presena e o questionou sobre qual foi o tipo de magia que ele usou para cometer tal crime.
Dizendo no crer nisso, o beato tentou enganar o juiz novamente, pedindo que ele o seguisse,
pois ele imolaria aos deuses. Contudo, Daciano no o fez por temer que o beato fizesse a terra
Inicia-se, no texto, um debate entre os dois. Durante o embate, o juiz virou-se para sua
esposa, Alexandrina, e confessou ter perdido para o beato e temer a morte. Ela chamou a sua
ateno ofensivamente, por ele perseguir os cristos, pois eram protegidos por Deus. Dito
Alexandrina foi condenada a ser surrada duramente, pendurada pelos cabelos. Ela
lamentou com Jorge o fato de no ter sido batizada, demonstrando sua preocupao por no
44
Idem, p.369.
45
Ibidem.
147
-148-
ter sido regenerada pela gua do batismo.46 O beato respondeu-lhe que o seu sangue seria
Segundo o relato, no dia seguinte morte de Alexandrina, Jorge foi condenado a ser
arrastado pela cidade. Ele orou ao Senhor pedindo que atendesse a todos os que implorassem
seu socorro, e ouviu-se a voz divina concedendo-lhe o pedido. Terminada a orao, seu
martrio foi consumado e sua cabea cortada48 Nesse trecho, h um forte incentivo ao culto
do santo.
O beato, segundo Jacopo, foi martirizado em 287, sob o prefeito Daciano, durante o
suplcio de Jorge para seu palcio, fogo vindo dos Cus consumiu a ele e a seus soldados.
Jacopo afirma que Gregrio de Tours teria contado que, um dia, um grupo de pessoas s
conseguiu sair de um oratrio onde estavam hospedadas aps deixar algumas das relquias de
So Jorge. Depois, o dominicano faz aluso a Histria de Antioquia. Ele cita que um
conjunto de cristos, rumo a Jerusalm, foi abordado por um belssimo rapaz que lhes disse
que eles estariam protegidos, caso levassem alguma relquia do mrtir. H uma marcada
46
Idem, p.370.
47
Destacamos tambm a importncia dada ao batismo, um dos sacramentos cristos, como veculo de
purificao. Ao todo so sete sacramentos, a saber: Batismo, Confirmao, Sagrada Comunho (Eucaristia),
Matrimnio, Penitncia, Ordem Sacerdotal e Extrema-Uno.
48
Ibidem.
49
Ibidem.
148
-149-
narrados ao citar as suas fontes para conceder-lhes um teor de verdade e valorizar o aspecto
Segundo James B. MacGregor,50 por volta de 1184, Alan de Lille fez um sermo
direcionado aos cavaleiros, defendendo que eles deveriam portar armas espirituais, assim
como as temporais, alm de condenar a violncia para com a Igreja e com os pobres. Em sua
piedade cavaleiras.51 Assim, ao narrar a apario de Jorge em uma Cruzada, acreditamos que
etimolgico feito por Jacopo, em que o ltimo significado do nome do personagem aponta
para a sua identificao como mrtir. O seu gnero construdo atravs da exaltao de sua
pregao, da sua funo social como tribuno, da nfase dada eloqncia do personagem , de
sua caracterizao como santo-guerreiro, protetor dos inofensivos, cuja virilidade ainda
Destacamos que, por ofender os deuses pagos, Jorge foi condenado pelo governador,
sendo que todos os seus suplcios foram desfeitos ou transformados em delcias no caso do
50
MACGREGOR, James B. Negotiating Knithly Piety: The cult of the warrior-saints inthe west, ca. 1070- ca.
1200. Church History. v.73, n.4, jun - 2004.
51
Ibidem, p.320.
149
-150-
tipo de cavaleiro apto para receber a proteo do mrtir. Finalizado com sua decapitao, o
dogmas religiosos.
3. So Marcelino, o papa
romana por nove anos e quatro meses. De acordo com a LA, ele foi capturado por ordem de
Diocleciano e Maximiano. O papa teria se negado a imolar aos deuses, contudo foi ameaado
a sofrer uma srie de suplcios no especificados pelo dominicano e, por medo, ele
ofereceu dois gros de incensos aos deuses pagos. Isso causou grande alegria aos infiis e
Ressaltamos que mesmo no havendo nenhum relato sobre os suplcios sofridos pelo
papa, Jacopo narra que aps estar curado, ele foi levado a julgamento, mas os bispos presentes
disseram-lhe o sumo pontfice no pode ser julgado por ningum, voc mesmo que deve
Segundo o relato, Marcelino, arrependido, deixou o cargo, contudo foi reeleito pelo
povo. Os csares, ao tomarem conhecimento desse fato, o aprisionaram pela segunda vez.
Contudo, o papa, dessa vez, negou-se a realizar sacrifcios e com isso, foi condenado a ser
decapitado.
52
Idem, p.378.
53
Ibidem.
150
-151-
anatematizando previamente aqueles que o fizessem. Seu corpo, segundo a LA, ficou trinta e
cinco dias insepulto. Nessa passagem narrativa, cremos que Jacopo busca destacar a
autoridade e o poder do sumo pontfice, pois, mesmo aps sua morte, sua ordem honrada.54
Ainda segundo a LA, Decorrido esse tempo, o apstolo Pedro apareceu para Marcelo,
papa perguntou-lhe se ele j no havia sido sepultado, ao que Pedro respondeu considerar-se
O papa Marcelo falou que Marcelino havia excomungado todo aquele que o sepultasse
e Pedro perguntou-lhe: Voc no sabe que est escrito Quem se humilha ser exaltado?.56
Dito isso, ele ordenou que Marcelino fosse enterrado aos seus ps, o que foi imediatamente
cumprido. Acreditamos que o objetivo desse curto relato seria o enaltecimento de uma
constri a sua santidade com a visita de Pedro e o comando para que sepultassem Marcelino a
seus ps. A santidade de Marcelino est ligada ao cargo que ocupou e a sucesso de Pedro.
nossa ateno. Se considerarmos o captulo do papa Urbano (p. 462-463), cuja biografia,
que h uma preocupao textual em no explicitar as partes do corpo afetadas nem os tipos de
tortura recebidos pelo papa,57 comparado aos demais relatos. Defendemos que essa estaria
associada a sua prpria funo social e posto hierrquico alcanado dentro da Igreja.
54
Jacopo relata que com o furor hostil reaceso, no ms seguinte foram mortos 17 mil cristos. Destacando a ira
causada pelo arrependimento de Marcelino. Ibidem.
55
Ibidem.
56
Idem, 379.
57
O mesmo cuidado aparece na narrativa sobre Santo Urbano, que foi aprisionado junto a seus irmos. No
captulo, h apenas o relato de um suplcio, que os quatro cristos foram aoitados com chicotes com ponta de
chumbo, enquanto isso papa passou a clamar pelo Senhor.
151
-152-
firme advindo de petros. Dito isso, ele afirma que possvel entendermos as trs
Nessa passagem, podemos destacar a exaltao da pregao unida erudio um dos pilares
da Ordem Dominicana , o enaltecimento de sua virgindade ser completa com corpo e mente
A biografia do personagem inicia nos informando que Pedro era o novo mrtir da
Ordem dos Pregadores,59 natural de Verona. Nascido em uma famlia hertica e infiel,
conforme aparece no relato, Jacopo diz que ele conservou-se isento de seus erros. Aos sete
anos, um tio o questionou sobre o que havia aprendido na escola ao que ele respondeu
rezando o credo.
O tio o repreendeu afirmando que quem criou o cu e a terra foi o diabo e no Deus,60
e os dois iniciaram um debate sobre tal tema. A narrativa esclarece que o menino estava cheio
de Esprito Santo e rebateu os argumentos dados pelo tio que havia recorrido a diferentes
58
Idem, p.387.
59
Destacamos que Jacopo no apresenta nenhuma data relacionada ao martrio do personagem. Somente no fim
do relato, ele narra que, em 1259, em Compostela, um homem chamado Bento foi curado ao rogar por Pedro no
convento dos frades Pregadores. Dessa forma, incentivaria o culto do personagem e atrairia doaes e fiis para
os conventos da Ordem existentes nesse local.
60
Essa concepo estaria associada com a doutrina ctara, que defendia que o homem criado por Deus -
prisioneiro da matria, que est retida no mundo criado por sat. RIBEIRO JR., Joo. Pequena Histria das
heresias. Campinas: Papirus, 1985. p.73.
152
-153-
autoridades. Ao narrar que, ainda criana, Pedro falava com o tio cheio do Esprito Santo,61
marcado pela presena de Deus que, por dirigir tudo, evitou que o menino fosse retirado da
escola como era vontade de seu tio. Em suma, acreditamos que a marca de sua santidade
encontrar-se-ia evidenciada nos muitos milagres cometidos em vida e em morte, com uma
presena divina, colocando seu conhecimento como superior educao de seu tio, que pede
para o pai de Pedro retir-lo da escola, pois temia que o menino seguisse a prostituda Igreja
No relato, h a meno de que, como tudo dirigido pela mo de Deus, o pai de Pedro
Sublinhamos o destaque dado interveno divina, que teria orquestrado para que o jovem
permanecesse na escola.
No somos informados quando, apenas tomamos conhecimento que, aps tal episdio,
Pedro no se sentia seguro morando com a famlia e, por tal razo, juntou-se a Ordem dos
narrativa, h o destaque para ele ter ficado trinta anos na Ordem e alcanado a honra de ser a
pedra de Cristo.
Dito isso, lemos uma listagem das virtudes do personagem com enaltecimento do seu
afastamento das coisas terrenas e da ociosidade; dos seus estudos, viglia e leitura; da sua
61
Acreditamos que Jacopo, ao colocar o debate travado entre o infante Pedro e seu tio, realiza um paralelo com o
episdio da vida de Jesus no qual ele debateu, no templo, com os sbios com grande eloqncia ainda quando
criana, cf. Lc II, 22-52. BBLIA SAGRADA. Pe. Antnio Pereira de Figueiredo (trad.). So Paulo: DCL, 2006.
62
Jacopo se refere ao tio de Pedro como sendo outro caifs, afirmando que ele teria predito o que iria
acontecer. Acreditamos que ele estaria fazendo aluso ao papel de inquisidor de Pedro e traando outro parelo
entre o santo e Jesus. Segundo o livro de Joo II, 49-52, Caifs era um sumo sacerdote que profetizou que Jesus
iria ser morto pelo povo, assim como Pedro, atacado por um herege enquanto exercia a funo de inquisidor.
63
No captulo, Jacopo relata esse acontecimento citando uma passagem de uma carta do Papa Inocncio: O
bem-aventurado Pedro ainda na adolescncia abandonou o mundo para evitar os perigos e entrou na Ordem do
Frades Pregadores. Idem, p.388.
153
-154-
a refutar os dogmas envenenados por alguma doutrina hertica. A seguir, h mais uma nova
relao de qualidades e de elogios ao santo. Acreditamos que essa exaltao, seguida das
virtudes do personagem, estaria vinculado ao fato dele ser um dominicano, assim seria uma
exaltao da ordem. Jacopo ressalta o desejo do personagem em morrer por sua f como
mrtir e orava todas as noites pedindo tal beno e que seu desejo no foi frustrado.65
Jacopo afirma que a biografia de Pedro foi recheada por numerosos episdios
milagrosos,66 dentre os quais destacamos alguns ocorridos em vida, no qual h encontros com
hereges. O primeiro foi um encontro com um bispo hertico67 que havia sido preso pelos fiis.
Nesse relato, o personagem desafiado pelo bispo a conseguir fazer aparecer uma nuvem para
proteg-los do Sol com a fora de sua f. Ele responde que se o heresiarca prometesse abraar
a f catlica, ele o faria. Aps orar por uma hora e fazer o sinal-da-cruz, uma nuvem no
formato de uma borboleta cobriu os cus, cobrindo o seu povo do Sol. Ressaltamos que, nesse
Em outro episdio, lemos sobre uma peste hertica que contaminava a Lombardia e
outras regies. Assim, diversos inquisidores dominicanos foram enviados para combat-la.
Ao relatar que o sumo pontfice encaminhou Pedro para l com plenos poderes para combater
a heresia como inquisidor, Jacopo argumenta o que torna um pregador virtuoso, defendendo o
equilbrio entre prdica e erudio. Ele afirma que o mrtir foi escolhido:
64
Ibidem.
65
Idem, p.390.
66
No captulo sobre Pedro so narrados cinco milagres em vida sendo um relacionado aos hereges e quatro a
curas.
67
Ressaltamos que o dominicano no especifica qual a heresia. Podemos supor, porm, que se tratava dos
ctaros, por serem os principais rivais da ordem no perodo. Relembramos que somente aps Domingos
converter um ctaro ao cristianismo que ele teria decidido fundar uma organizao que suprisse a Igreja com
pregadores qualificados. Alm disso, a organizao da hierarquia ctara semelhante eclesistica, rivalizando
nesse ponto tambm.
154
-155-
Ressaltamos que a narrativa continua com o mesmo objetivo elogioso de exaltar o tipo de
perseguio deste ao afirmar que os hereges no resistiam sua sabedoria e ao Esprito San-
uma citao de uma carta Inocncio.70 Segundo a narrativa, ao sair da cidade de Como,71 o
prior Pedro direcionou-se a Milo para atuar contra os herticos. A seguir, lemos que
conforme o mrtir havia professado, durante uma pregao,72 ele foi atacado por um herege
cruel contra o manso, o mpio contra o piedoso, o furioso contra o calmo, o desregrado contra
o modesto, o profano contra o santo.73 Nesse trecho, Jacopo elabora discursivamente dois
personagens diametralmente opostos: de um lado o santo com todas as suas virtudes que so
recebe golpes terrveis com a espada na cabea. A espada fica molhada do sangue daquele
68
Idem, p.390.
69
Nenhum deles podia resistir sua sabedoria e ao Esprito Santo que falava por sua boca (Ibidem).
70
Destacamos que Jacopo no especifica qual o documento.
71
Como uma provncia da Lombardia.
72
Na parte final do captulo, reservada aos milagres do santo, esse episdio narrado: No domingo de ramos,
Pedro pregava em Milo diante da enorme multido de pessoas dos dois sexos, quando disse publicamente em
voz alta: Sei com certeza que os hereges tramam minha morte e que at dinheiro foi dado para isso, mas faam
o que faam, eu os perseguirei mais estando morto do que vivo (Idem, p.399). E aps seu martrio, de fato,
Jacopo relata acontecimentos milagrosos contra hereges procurando conceder credibilidade s palavras do mrtir
e reserva um extenso pargrafo recheado de comparaes que buscam reafirmar que ele fora mais voraz ainda
depois de morto.
73
Idem, p.391.
155
-156-
homem venervel, que no procura evitar o inimigo, ao contrrio, oferece-se como vtima que
encaixar-se-ia no argumento da autora Lucy Grig,75 j citada, que defende a exacerbao das
torturas, por parte dos mrtires, como forma de enaltecer a demonstrao da vitria crist.
Durante todo esse suplcio, Jacopo narra que Pedro no se queixa, no murmura,
suporta tudo com pacincia, encomendando-se: Senhor, entrego meu esprito em suas
mos.76 Acreditamos que ao narrar que o inquisidor mantm sua tranqilidade, Jacopo
destaca o desejo pelo martrio do personagem que no se desespera diante das maceraes,
pelo contrrio. Alm disso, essa passagem tambm serviria de incentivo aos irmos
inquisidores.
Por fim, o beato do Senhor recitou o smbolo de f antes do carrasco enfiar um punhal
em seu flanco.77 Segundo a LA, o responsvel pelo martrio de Pedro foi capturado por fiis.
Jacopo narra que, no dia de seu martrio, Pedro foi confessor, profeta, doutor e mrtir,
explicando cada um desses aspectos. Segundo ele, foi confessor, porque no meio dos
tormentos proclamou sua f constante em Cristo, e porque naquele mesmo dia tinha, como o
forma, ele ressalta o papel do beato como pregador o que, de certa forma, valoriza a Ordem
personagem tambm aparece na explicitao do seu papel como doutor, porque enquanto
estava sendo atacado ensinou a doutrina verdadeira recitando em voz alta o smbolo da f.79
74
Ibidem.
75
GRIG, Lucy. Op. Cit.
76
VARAZZE, Jacopo. Ibidem.
77
A seguir, somos informados que o beato estava acompanhado por um frade dominicano que tambm foi
atacado e morto.
78
Ibidem.
79
Ibidem.
156
-157-
Ele foi mrtir por ter derramado o seu sangue para defender a sua f, o que indica a
concepo de martrio de sangue de Jacopo. Alm disso, foi profeta pelo episdio em que
seus companheiros afirmaram no ter como chegar a Milo naquele dia referindo-se ao dia
do martrio e Pedro disse que eles ficariam em So Simpliciano. Aps o seu martrio, a
multido que fora velar seu corpo no permitiu que ele fosse levado ao convento e o beato foi
Destacamos que, na LA, aps essa passagem, h uma analogia entre o martrio de
Ressaltamos que Pedro Mrtir faleceu em 1252, sendo canonizado no ano seguinte. Segundo
James Ryan,81 no sculo XIII havia uma certa resistncia da Igreja em canonizar os novos
mrtires por no endossar seus cultos, afirmando que the Roman Church not only insited on
close scrunity before endorsing the cults of those killed while trying to convert infidels; it also
Dessa forma, o autor argumenta que apesar da Igreja ter endossado poucas
para servir de incentivo aos inquisidores que poderiam estar sob ameaas.83
Segundo o texto, a incluso do beato Pedro no catlogo dos santos foi celebrada com
um captulo em Milo pela Ordem Dominicana. Os irmos queriam realocar o corpo do santo
cheiro, mesmo aps um ano enterrado. Ele foi posicionado em um alto plpito para que os
Desse momento narrativo at o final so descritos trinta milagres, alguns pelo sumo
pontfice e outros por pessoas que os testemunharam; destes, treze so relativos cura
80
Jacopo analisa, comparativamente, os motivos destes, os carrascos, o momento temporal em que cada um
ocorreu, o que cada um teria dito, o preo pago pela morte de ambos e a conseqncia dela. Sendo que a de
Pedro teria sido a converso de milhares de herticos.
81
RYAN, James. Missionary saints of High Middle Ages. Martyrdom, Popular veneration and Canonization.
The Catholic Historical Review, v. 90, no1, p.1-28, jan./ 2004.
82
A Igreja Romana no s insistiu em atentos exames antes de aprovar cultos daqueles que morreram tentando
converter infiis; ela tambm se recusou a abrir processos que poderiam levar a canonizao. Ibidem, p.2.
83
Idem, p.4.
157
-158-
destacamos que duas dessas foram alcanadas graas s suas relquias, o que seria um forte
incentivo para seu culto. Inclusive, um evento milagroso foi contra trs moas que falavam
mal do culto, j os outros se subdividem em: dois relacionados com ressurreio; quatro com
hereges; cinco ligados ao combate contra demnios; a prpria viso de Pedro sobre sua morte;
incio do sculo XIII, certos milagres continuavam indispensveis para que um servidor de
Deus pudesse ser proclamado santo pelo papa;85 destacando que os telogos desse perodo
passaram a considerar aqueles com interveno direta de Deus como sendo verdadeiros.
aproximamos mais da argumentao de Sofia Boesch Gajano,86 que afirma que, a partir do
sculo XI:
84
VAUCHEZ, Andr. Milagre. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio Temtico
Medieval. So Paulo/ Bauru: Imprensa oficial do Estado/ EDUSC, 2002, 2V, v.2, p. 197-211.
85
Idem, p.208.
86
GAJANO, Sophia Boesh. Uso y abuso de los milagros em la cultura de la Alta Edad Media. Little, L.L.,
ROSENWEIN, B. (eds.). La Edad Media a debate. Madrid: Akal, 2003. p.506-520.
87
Ibidem, p.512.
158
-159-
cristianismo.88
Alm disso, cabe destacarmos que o relato de distintos milagres do santo estaria
vinculado ao fato dele ser um dominicano e um dos poucos mrtires canonizados no sculo
Nesse ponto, defendemos que a exaltao de suas qualidades e os elogios feito por
E devido a tais virtudes e sua sabedoria que ele foi atacado por um herege
contratado. O curto relato de seu martrio apenas evidenciaria o desejo do beato por esse,
negativa do herege oposta a de Pedro ; e, serviria para novos elogios a suas virtudes e
qualidades.
santidade, pois ele foi um dos poucos santos canonizados nesse perodo. No relato, Pedro
identificado como mrtir desde a interpretao aos significados de seu nome, mas o que se
Ordem dos Dominicanos, como inquisidor. Para essas aes, Pedro atuou com eloqncia,
firmeza e coragem.
88
Idem, p.209.
159
-160-
santidade de Pedro por ele ter sido o primeiro mrtir dominicano a ser canonizado, ainda mais
Essa argumentao no apenas valeria como apoio aos sermos dos irmos pregadores
tambm o estmulo ao culto do novo santo da Ordem Dos Irmos Pregadores atravs dos
5. So Tiago, o cortado
O captulo sobre So Tiago no inicia com um estudo etimolgico, mas sim com a sua
nomeao como mrtir. No comeo, aprendemos que ele era natural do pas dos persas,
oriundo da cidade de Epale, era de origem nobre, e ainda mais nobre por sua f.89 Segundo o
relato, ele possua pais e esposa muito cristos, no entanto ele deixou-se seduzir por amor ao
sua submisso a um mortal, desobedecendo assim o juiz dos vivos e dos mortos.90 Elas
tambm o informaram que se tornaram como estranhas e no mais morariam com ele. Aps
ler tais palavras, Jacopo nos conta que Tiago teria refletido que se sua famlia o via de tal
forma, como seu Deus o veria? Ento, arrependido e aflito por seu erro,91 mandou um
89
Idem, p.974.
90
Ibidem.
91
Ibidem.
160
-161-
esposa do santo, como tambm o fato de ter sido, justamente, atravs da repreenso feita por
elas, que Tiago percebeu seu equvoco. Nesse sentido, essas duas personagens, aparentemente
secundrias no relato, possuem um papel fundamental no martrio sofrido por ele, narrado
argumenta sobre o uso de smbolos femininos por personagens masculinos, fenmeno que
Nesse sentido, quando o santo foi repreendido pela sua me e sua esposa, ele foi
perodo, as mulheres que deveriam ser controladas e chamadas ateno devido a sua
inerente fraqueza. Com isso, defendemos que o mrtir humilhado e inferiorizado. Tiago
O prncipe convocou Tiago e questionou-o se era nazareno,93 o que ele confirmou sob
a ameaa de distintas e mltiplas torturas. Nesse momento, ele defende a existncia da vida
eterna, afirmando que ns [nazarenos] no tememos a morte, pois esperamos passar da morte
vida.94 Diante de tal resposta, o prncipe, aconselhado por amigos, condenou Tiago a ser
Ao ver que muitas pessoas choravam por ele, Tiago pediu-lhes para que no
chorassem j que ele ia para vida,95 mas que lamentassem por eles prprios, que
92
BYNUM, Caroline W. La utilizacin masculina de los smbolos femeninos. In: LITTLE, Lester K. e
ROSENWEIN, Brbara H. (eds). La Edad media a debate. Madrid: Akal, 2003. p. 431-449.
93
O termo nazareno costumava ser utilizado para se referir aos seguidores de Cristo, pois ele havia habitado em
Nazar, na Galilia.
94
Jacopo de Varazze. Op.cit.
95
Idem, p. 975.
161
-162-
O captulo sobre Tiago peculiar por ele narrar a biografia de um personagem que por
adorao ao Prncipe dos Persas, imolou aos deuses. Contudo, aps ter sido repreendido por
sua me e esposa, percebeu o erro cometido e enviou uma mensagem afirmando ser cristo e,
Ao ter o primeiro dedo de sua mo decepado, o carrasco pediu para Tiago obedecer ao
Prncipe, que ele lhe daria medicamentos e o pouparia. Ele retrucou com uma analogia aos
ramos da videira, afirmando que estes, conforme cortados, produzem novos galhos. O santo
concluiu afirmando que o cristo fiel est enxertado na verdadeira vinha que Cristo.
Conforme o carrasco cortava-lhe os dedos, ele os oferecia ao Senhor; e, na vez do quinto, ele
destino sagrado.
Aps esse suplcio, os carrascos novamente pediram para que Tiago poupasse sua vida
e nem se entristecesse em ter perdido uma mo, pois muitos nessa condio possuam muitas
riquezas. Ele respondeu traando uma metfora com a ovelha. Primeiro, afirmou que o animal
tosquiado por inteiro e no apenas em uma metade. Completando, disse que se este ser
irracional quer ser tosquiada por inteiro, ento ele, ser racional, no poderia desdenhar ser
Durante seu suplcio, Tiago evidencia e exalta sua f, reafirmando saberes teolgicos.
Como no oitavo dia foi circuncidado Jesus, como no oitavo dia circuncidam-
se os hebreus a fim de admiti-los nas cerimnias legais, ento faa, Senhor,
com que o esprito de seu escravo se separe desses incircuncidados que
conservam sua mcula, a fim de que eu v at voc e veja sua face, Senhor.97
96
Ibidem.
97
Idem, p.976.
162
-163-
Ele faz o mesmo quando lhe decepam o nono e o dcimo dedos,98 dizendo:
ele, quando cortaram o polegar do seu p direito, falando que o p de Cristo foi perfurado e
dele saiu sangue. A sua martirizao nos apresentada como fonte de jbilo do personagem
que afirma categoricamente que esse era um grande dia, pois iria se encontrar com Deus.
Tiago disse: Por que est triste, alma minha, por que se perturba? Tenho esperana em Deus,
confio Nele, que meu Salvado e meu Deus.101 Ao narrar o dilogo do mrtir com a alma,
acreditamos que Jacopo objetivaria discorrer sobre a superao inerente aos santos dos limites
Jacopo constri uma acepo somtica inferior a alma. Este pressuposto pode ser
que ele falou: Destruam esta velha casa, pois me preparam uma mais esplndida.102
A cada corte de um pedao de seu corpo, o santo oferece-o a Deus e o percebe como
uma beno e, por vezes, ri das torturas e enaltece o poder de sua f. Contudo, depois, passa a
suplicar por ajuda para ter a alma liberta da priso, referindo-se ao seu corpo semimorto. Essa
98
Aps ter os dedos das duas mos cortados, os que assistiam aos suplcios pediram para que Tiago falasse o que
o cnsul desejasse, pois existiriam mdicos capazes de trat-lo. Ele respondeu que aquele que pe a mo no
arado e olha para trs no est qualificado ao reino de Deus. Jacopo descreve que, nesse momento, os carrascos,
irritados, comearam a cortar os dedos dos ps.
99
Jota tambm a dcima letra do alfabeto.
100
Ibidem.
101
Ibidem.
102
Ibidem.
163
-164-
A partir dessa passagem, supomos que as mudanas das reaes do personagem em relao
suplcios a partir dos argumentos de George Duby, no livro Idade Mdia, idade dos homens:
do amor a outros ensaios.104 O autor levanta duas compreenses medievais relacionadas com
a dor. Primeiro, ele ressalta que o aconselhvel para o homem seria no demonstrar a dor
fsica para no ser rebaixado condio feminina. Em segundo, ele destaca que o sofrimento
possuiria, justamente, por essa degradao, um valor positivo, visto como um sinal de
correo.
103
Idem, p.977.
104
DUBY, George. Idade Mdia, idade dos homens: do amor a outros ensaios. Jnatas Batista Neto (trad.).So
Paulo: Cia. das Letras, 1989.
105
POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
106
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4,
p.11-46, 2002
164
-165-
humana da corporalidade, logo h uma valorizao dos mrtires e dos ascetas. Nesse sentido,
defendemos que atravs dos suplcios que a santidade de Tiago estabelecida e confirmada.
Retornando ao relato, aps Tiago fazer o supracitado pedido de auxlio a seu Senhor,
peculiar, rompendo com o modelo hegemnico de masculino cristo. Na narrativa, ele fraco,
adora os deuses pagos por um amor mundano por um prncipe pago. Depois, ele
repreendido por duas figuras femininas que o fazem recobrar o juzo e arrepender-se do
pecado cometido.
Em outras palavras, suas aes estariam mais vinculadas s caractersticas vistas como
auto-controle, dominado por sentimentos e desejos. a sua dor que atesta a salvao de sua
Os seus carrascos e aqueles que viam seus tormentos suplicaram para que ele fizesse o
lhe era pedido para ser poupado, afirmando que mdicos poderiam trat-lo e que muitos com
apenas uma mo eram cheios de riquezas apelando assim para o aspecto mundano. As suas
reafirmando saberes teolgicos, como quando lhe cortaram o oitavo, nono e dcimo dedos.
107
Lembramos que por amor ao Prncipe, ele imolou um incenso aos deuses.
165
-166-
Alm disso, seu relato possui uma especfica relao com o sofrimento somtico para
ratificar o destino de sua alma, como quando lhe deceparam o quarto e quinto dedos do p
direito. O mesmo pode ser percebido ao cortarem o segundo dedo do seu p esquerdo, ao que
ele pediu para que destrussem sua velha casa, pois uma morada mais esplendorosa o
aguardava. Assim, o corpo apenas um receptculo da alma, ou ainda, uma priso desta,
Nesse sentido, Tiago, diferente dos outros mrtires, no age com a razo, fraco e
possuem o processo de genderificao marcado pela funo social exercida, seja dicono,
tribuno, inquisidor dominicano e papa. A nica exceo Tiago, cujo relato no faz aluso a
nenhum cargo ocupado, apenas informa que ele era nobre e possua uma esposa.
onde foi condenado a ser atirado, foi transformado em um banho agradvel. No captulo
apstolo Pedro, que serve para comprovar a sua santidade e destacar a apostolicidade e o
166
-167-
relacionados cura, sendo que em dois episdios as suas relquias funcionaram como veculo
para realizao desses; dois, com ressurreio; cinco, com hereges; cinco ligados ao combate
de demnios; a viso de Pedro sobre sua morte e trs sobre temas distintos. O relato sobre
Tiago o nico, dentre os analisados, que no menciona nenhum tipo de interveno divina e
comprovada e evidenciada atravs da dor infligida nas suas torturas. atravs do sofrimento
que ele purificado e consegue expiar o erro cometido. A punio somtica o reaproximaria
na narrativa de Vicente, em que, mesmo morto, o santo foi cercado de milagres. Quando
Daciano mandou que seu corpo falecido fosse abandonado em um campo para ser comido por
animais, ou quando ordenou que amarrassem uma enorme pedra no defunto para que, jogado
no mar, afundasse. Contudo, no primeiro, ele foi guardado por anjos e protegido por um corvo
e, no segundo, o mrtir foi levado praia, onde foi encontrado por alguns cristos que o
sepultaram.
destes. Sendo que o captulo desse ltimo tambm apresentaria um marcado incentivo s
O captulo de So Vicente teria como finalidade a sua construo como smbolo de vitria,
representando a igreja triunfante. Seu corpo serviria como veculo dessas vitrias,
comprovando-as atravs da sua superao dos carrascos, das torturas e dos instrumentos
167
-168-
crist, e, por conseqncia, da Igreja triunfante, marcadamente viril, forte, mscula face aos
evidenciado na orao final, em que o santo pede ao Senhor para atender a quem implorasse
sua pregao, da sua funo social e da virilidade demonstrada nos relatos sobre seu encontro
com um drago.
papa, por medo, imola aos deuses. Levado a julgamento, os bispos argumentam que ele quem
deveria julgar seus prprios pecados, logo a ausncia de descries acerca das punies
construo de sua identidade de gnero, assim como o de Jorge, feito atravs do destaque
dado a prdica e do seu papel social como inquisidor. Sendo que este concomitante ao de
de sua sabedoria atrelada a sua prdica e utilizadas na perseguio dos hereges de sua ao
contra os hereges, o que exaltaria a Ordem Dominicana. Alm disso, tambm evidenciaria
Afinal, sublinhamos que So Tiago, o cortado, tambm sacrificou aos deuses por
amor ao prncipe no por temor s maceraes e a retaliao de seu erro ocorreu atravs de
168
-169-
um detalhado relato sobre sua punio, com um destaque para seu sofrimento, sem nenhuma
interveno divina.
veculo de sofrimento, diante do qual, ele engrandeceu sua f, louvou o poder de seu Senhor e
cada decepao de um membro de seu corpo, o personagem purificado pela dor, corrige o
erro cometido e comprova sua f e sua santidade. Em uma perspectiva diametralmente oposta,
o fsico, no captulo sobre Vicente, aparece como uma forma de ratificar as vitrias do
personagem, sendo que ele no salvo das torturas, contudo no sofre nada com elas. O nico
milagre que transforma seu suplcio em delcia ocorre quando o santo foi preso, com os ps
pregados.
ao poder advindo destas, atestadas atravs das torturas desfeitas. Enquanto o primeiro sofre,
mas goza das torturas, o segundo salvo de, praticamente, todos os suplcios atravs de
milagres. Destacamos que nas narrativas de Marcelino e de Pedro Mrtir o aspecto fsico no
Conclumos que cada captulo atende a um objetivo de Jacopo, sendo que as relaes
169
-170-
condenando-as e estabelecendo um modelo ideal de pregador para seu combate, que deveria
ser seguido pelos irmos dominicanos. Alm disso, narra episdios milagrosos vinculados s
cruzadas, estabelecendo que a proteo divina ocorreu por causa do cavaleiro: cristo e
protetor dos pobres; da mesma forma, assume um posicionamento frente s contendas entre os
Por fim, ressaltamos o captulo de So Pedro Mrtir, que seria o personagem mais
contemporneo a Jacopo. Por ele tambm ser da Ordem Dominicana, o compilador evidencia
especialmente aos hereges. Alm disso, o motivo de sua morte diferente dos demais, porque
ele no foi perseguido porque a sua religio era a oficial do Imprio, pelo contrrio, Pedro
foi caado por ser Inquisidor, por um herege que o temia. Assim, ele enquadrado na nova
170
CONCLUSO
e da santidade. Para tanto, cumprimos outros objetivos secundrios fundamentais para nossa
pesquisa.
informaes biogrficas sobre seu compilador. Segundo a historiografia, a partir do sculo XI,
uma srie de mudanas ocorreu na Pennsula Itlica incentivando, entre outras coisas, a
vida crist.
movimentos religiosos laicos, frutos de uma busca da vita apostlica, calcada em releituras da
Igreja Primitiva. Assim houve o desenvolvimento das chamadas Ordens Mendicantes e das
A partir de nosso recorte do sculo XIII, estudamos como a LA foi marcada pelas
relaes estabelecidas para/ com a Igreja e a Ordem Dominicana assim como entre essas
Nossa hiptese foi que a escolha desse gnero literrio deveu-se flexibilidade dogmtica
variados.
-172-
ele, dentre os quais, sublinhamos a tenso religiosa em Gnova, no sculo XIII, os discursos
evidenciamos nossa hiptese atravs da anlise dos captulos sobre Santo Ambrsio
poltica, em que Jacopo selecionou relatos e fontes que lhe permitiram argumentar mais
de boa conduta para instruo dos religiosos e leigos e ser uma fonte teologicamente correta
no auxlio na formulao dos sermes para a manuteno dos fis e a converso dos infiis e
hereges.
Acreditamos que Jacopo argumentaria nos relatos o tipo de pregador mais eficaz,
exaltando uma combinao equilibrada entre erudio e ao. Portanto, em nossa opinio, a
LA se caracteriza como uma sequncia de topos sem uma unidade lgica unificadora, ou seja,
cada relato formado por elementos narrativos que no aparecem necessariamente em outro
da mesma forma. E so essas particularidades dos captulos que favorecem o carter didtico
nossa dissertao tratamos de alguns dos discursos com os quais Jacopo poderia ter tido
contato. Defendemos que o dominicano teve como preocupao afirmar valores e posturas
polticas dentro de das relaes de poder das quais participou. Em muito dos relatos da obra, o
172
-173-
equilbrio entre erudio e pregao. De modo similar, ele escolheu narrativas que lhe
oferecessem a abertura para abordar os conflitos entre o papa e o poder civil, buscando
batalhas polticas.
Munidos dessas reflexes sobre Jacopo, o contexto vivido pelo dominicano e a LA,
pesquisamos algumas acepes do tema do martrio. Nosso objetivo foi encontrar caminhos
que nos auxiliassem a compreender a sua retomada no sculo XIII, considerando como ele se
eclesistica como os infiis, hereges, entre outros sob a justificativa de guerra justa, a
promessa de martrio foi um til mecanismo de incentivo aos que morressem em nome de
Deus.
missionrios mendicantes e a guerra santa, sob o ideal de guerra justa, tinham como objetivo a
173
-174-
identificao do cavaleiro cristo, que protegido e auxiliado por Deus. Nos captulos sobre
relato sobre Domingos de Gusmo, visava incentivar aos irmos dominicanos no combate s
exaltao e incentivo das cruzadas com a objetivao do tipo de cavaleiro que seria auxiliado
Assim, Jacopo teria sido influenciado por elementos associados com a retomada do
entre outras coisas, aos inimigos da cristandade como os herticos e os infiis servindo de
qualidade, caracteriza-se como uma seqncia de topos sem unidade homogenizante. Logo,
sendo que a funo/ lugar social o elemento principal de diferena entre o grupo de
notrio que enquanto os homens exercem funes sociais em relao sociedade com os
1
De modo semelhante, no captulo sobre Francisco de Assis, no qual o compilador ressalta a busca pelo martrio
do personagem ao visitar as terras dos infiis.
174
-175-
relao aos homens, sejam pais, maridos ou autoridades. A exceo desse caso Tiago, o
cortado, que identificado apenas como nobre e, num certo sentido, tutelado por
Tambm destacamos o uso dos captulos para desvalorizar as crenas pags, contudo
de formas diferenciadas, seja atravs da apresentao de castigos possveis aos infiis, hereges
aparece na construo narrativa dos personagens nas biografias: mrtires e algozes (sejam
o/a cristo/ como puro/a, racional, correto/a, e o outro, que dominado pela luxria, a
lascvia e o pecado.
Nos relatos das mulheres essa questo evidenciada em uma perspectiva sexual, em
que os corpos femininos so palcos fundamentais das relaes de poder e, em muitos casos,
meritrias do martrio. Hegemonicamente, nos relatos dos homens, o corpo figura como
elemento fundamental nas relaes de poder, mas sendo objetivado como smbolo das vitrias
triunfante.
uma forma totalmente diferente dos demais, por este ser o nico personagem masculino em
que o fsico o caminho para comprovao de sua santidade e para torn-lo meritrio da
coroa do martrio, como nas biografias das mulheres. Outra exceo o caso do papa Urbano.
Nessa narrativa, o corpo no possui nenhum tipo de destaque, o que, acreditamos, deve-se ao
175
-176-
desvantagens de seu sexo, apresentando-se como fortes, sem medos dos suplcios, virginais
e eloqentes. Elas recebem e exercem poder e dominao nos captulos em intensas relaes
de poder.
associao entre o seguimento dos valores da vida crist e a salvao da alma. Acreditamos
que Jacopo defende que apenas ser cristo no garante o caminho da alma para o reino dos
cus. Seguir a f correta era o primeiro passo, complementado com a retido de uma vida
Contudo, isso no significava que possuir esse modo de vida garantia a santidade, porque
ressaltamos novamente que o santo j nasceria com a marca da santidade. Nesse sentido, os
constituintes dela. Flax destaca que a categoria gnero no apenas relacional, mas toca as
relaes entre sexos diferentes, entre indivduos do mesmo sexo, a construo das identidades
Nesse sentido, os discursos construdos acerca dos gneros e das santidades dos personagens
2
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176
-177-
dominicano no combate ao outro : os herticos, infiis ou pagos. Por fim, sublinhamos que
a ao dominicana era direcionada tambm aos fiis, logo, a objetivao dos santos como
modelos de comportamento voltado aos demais cristos marca a LA, em que o discurso
predominante a defesa de uma vida recheada de valores cristos para alcanar a salvao.
177
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186
-1-
INTRODUO
1. Apresentao
Os relatos de Santo Ambrsio e de Santa Eugnia. Ambos foram realizados sob a orientao
desses processos em dois relatos presentes na compilao conhecida como Legenda urea1 a
mbito social por percursos diferentes. Nesse sentido, tanto a afirmao da qualidade divina
Ressaltamos que a importncia dessa etapa na graduao foi dupla para nossa
formao. Alm de aprofundarmos as nossas reflexes acerca dos Estudos de Gnero, tivemos
um maior contato com a obra LA do sculo XIII, compilada pelo dominicano Jacopo de
Varazze. E foi durante as nossas leituras que percebemos a constante e detalhada descrio
Portanto, comeamos a questionar o porqu deste destaque. Seria este parte da retrica
1
-2-
serviam aos interesses da Igreja, no sculo XIII? Como as relaes de poder institudas no
mbito religioso aparecem nos relatos de martrios antigos? Qual o papel das maceraes
somticas dos santos nas construes de uma santidade genderificada? Essas so as principais
questes que permearam nossa pesquisa para as quais elaboramos algumas hipteses
A partir dessas questes iniciais, desenvolvemos nossa pesquisa, cujo objetivo central
foi examinar as estratgias narrativas utilizadas nos relatos sobre os mrtires selecionados
considerando elementos como a posio social ocupada pelo cristo martirizado e o motivo
A temtica martrio foi difundida por obras hagiogrficas, a partir do sculo II,
devido s perseguies aos cristos, o que conferiu outra significao a esse termo grego que
a ser aquele que, apesar de nunca ter visto ou ouvido Cristo em vida, estaria to convencido
Segundo Lucy Grig, no artigo Torture and truth in late antique martiriology,4 o mrtir
era um soldado de Cristo que confrontava a fora do mal, representada, nesse momento, pelo
estado romano. Este personagem desejaria a sua morte, exacerbando as torturas, j que, dessa
forma, quanto maiores fossem os seus sofrimentos, maior seria a demonstrao da vitria
crist coroada com a sua morte. Segundo a autora, os mrtires se tornaram os heris da Igreja
3
Sublinhamos o motivo real do martrio, pois, mesmo nos relatos sobre personagens contemporneos s
perseguies aos cristos, a defesa da f nem sempre era a verdadeira motivao para a execuo.
4
GRIG, Lucy. Torture and truth in late antique martiriology. Early Medieval Europe. v.2, n.4, p.321-336, 2002.
p. 322.
2
-3-
hagigrafos, foram norteados pela unio de quatro noes: a ecclesia, j que sem a Igreja no
haveria o martrio; o dom da vida, pelo mrtir simbolizar a doao da vida em nome de um
amor maior representado pela f; a cristologia, pois deixar-se morrer era seguir o exemplo de
Cristo, que deu a vida pelos irmos; e a defesa da verdade do Evangelho, j que o mrtir no
morre por si, mas para testemunhar sua f diante de seu perseguidor.
destaca Nri de Almeida Souza no artigo Hipteses sobre a natureza da santidade,6 a Igreja
crist caracterizava-se por uma intensa ascese, com a valorizao da exposio do corpo alm
dos limites biolgicos, atravs de penitncias, das maceraes, da abstinncia sexual, dos
jejuns, entre outros, sendo identificada como martrio branco ou espiritual. Ou seja, a vida
asctica mantinha uma proximidade com o martrio de sangue: a superao da dor fsica.
Assim, nos anos iniciais do medievo, os santos eram aqueles que iam alm da condio
desejo por um novo ideal de vida religiosa, acompanhado por uma diferente percepo da
santidade, que dentre outros aspectos, encontramos a retomada do desejo pelo martrio
sangrento, contudo, com uma marcada releitura. O mrtir no era mais o perseguido pela sua
f, mas sim aquele que morria na defesa da cristandade, contra os inimigos da Igreja e da
justia.
5
FISICHELLA, Rino. Martrio. IN: _____. PACOMIO, Luciano & PADOVESE, Luigi (Orgs.) Lexicon.
Dicionrio Teolgico Enciclopdico. So Paulo: Loyola, 2003, p. 467-468.
6
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4,
p.11-46, 2002.
7
Segundo a pesquisadora Brenda Bolton, as mudanas ocorridas a partir do sculo XI, como o aumento
populacional, o crescimento das cidades e do nmero de ofcios especializados, a formao de grupos maiores e
mais dinmicos, a difuso de uma pregao no oficial, o contato com as heresias, entre outros, traziam uma
valorizao do indivduo, o desenvolvimento da religiosidade leiga e a tentativa de retorno vita apostolica
como interpretada a partir do Novo Testamento. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies
70, 1983.
3
-4-
interior do cristo, que estaria disposto a dar a vida em nome da cristandade, caso a situao
seria a continuidade do martrio branco e morte do santo por testemunhar a sua f atravs da
defesa diante dos inimigos da cristandade, que era uma retomada do ideal do martrio de
configuraram-se de acordo com as relaes de poder estabelecidas pela e com a Santa S.8
captulos da mesma obra, com a base terica nos estudos de gnero. Ao efetivar tal proposta
nossa questo de pesquisa, no visa comparar duas obras, mas a construo de dois discursos,
exploramos uma modalidade de Histria Comparada, que rompe com a idia de que s h
Por fim, sublinhamos que como nosso interesse est nos relatos dos martrios da LA,
essa obra no foi examinada integralmente. Portanto, estabelecemos como critrio de seleo
dos relatos a ateno que reservada s descries das penas somticas, j que analisamos a
existncia de uma relao entre a nfase dada s torturas sofridas e a construo da identidade
8
Ressaltamos que, nesse trabalho, destacamos as relaes estabelecidas com os hereges, os infiis e os pagos.
4
-5-
mrtires, aqueles que, na obra, apenas citado o tipo de morte sofrida, aqueles cujo o
como tal. A partir dessa seleo, escolhemos alguns relatos sobre santos e santas, para anlise
e comparao.
distintos lugares ou funes sociais; como soldados, nobres, pregadores, papas e etc. No
enquadradas na sociedade apenas pela sua relao com personagens masculinos, possuindo os
2. Pressupostos tericos
utilizados. Como nosso interesse reside na percepo e no estudo dos processos de construo
9
Blasucci afirma que o testemunho de f que o mrtir fornecia poderia assumir trs distintas formas: diante de
tribunais ou suportando prises e maltratos por causa da f, contudo sem morrer (confessor que era o martrio
incompleto ou incoativo advindo da confisso da f atravs da palavra); atravs de uma vida crist seguida com
perfeita observncia da lei divina (martrio branco, do qual trataremos a seguir); e o testemunho selado com a
morte (martrio perfeito, ou consumado ou de sangue). Contudo afirma que em todas essas modalidades e
significaes de martrio foram acentuadas na relao entre esses personagens e Cristo, j que eles simbolizariam
a extenso do seu sacrifcio de sangue. Como trabalharemos apenas com a ltima expresso de martrio,
tomamos cuidado para no selecionarmos relatos sobre confessores, tambm presentes na LA, j que sofreram
punies somticas como os mrtires. BLASUCCI, Antonio. Martrio, imolao, sacrifcio. In: GUIMARES,
Almir Ribeiro (Org.). Dicionrio Franciscano. Petrpolis: Vozes, 1999. p.416-420.
10
Cabe sublinharmos que as pginas dos relatos referem-se as da edio brasileira realizada por Hilrio Franco
Jr. JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos. So Paulo: Companhia das Letras, 2003.
5
-6-
de santidades genderificadas, nossa base terica encontra-se nos Estudos de Gnero,11 tal
Profundamente influenciada por Michel Foucault, Scott afirma que gnero o saber a
respeito das diferenas sexuais. Scott utiliza o conceito saber aplicando-o, segundo o filsofo,
Essa produo do saber encontra-se no social, logo, consideramos que a concepo de gnero
relaes de gnero na teoria feminista,13 defende que o paradigma identificado como ps-
moderno condio sine qua non para guiar os estudos de gnero. Dessa forma, essa teoria
contesta o aspecto racional e objetivo da cincia, nega sistemas explicativos gerais, no aceita
categorias como homem, mulher, feminino, masculino nem dicotomias como, por
hegemnico construdo sobre o gnero era caracterizado por uma viso misgina. Segundo
11
Para mais informaes sobre os pressupostos dos Estudos de Gnero e as suas relaes com corpo e sexo, cf.
FLAX, Jane. Ps-modernismo e relaes de gnero na teoria feminista. In: HOLLANDA, Helosa Buarque
(Org). Ps-modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p. 217-250; GULLEY, A. Heo Man Ne Waes":
Cross-Dressing, Sex-Change, and Womanhood in Aelfric's Life of Eugenia. Mediaevalia: A Journal of Medieval
Studies, v. 22, n.1, p.113-131, 1998; LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gnero dos gregos a
Freud. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 2001; SCOTT, Joan. Gnero: uma categoria til para os estudos
histricos. Educao e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, dez. 1990; _____. Histria das mulheres.
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metodolgicas sobre a anlise do discurso em perspectiva histrica: paternidade, maternidade, santidade e
gnero. Cronos: Revista de Histria, Pedro Leopoldo, n. 6, p. 194-223, 2002; _____. Reflexes sobre o uso da
categoria gnero nos estudos de Histria Medieval no Brasil. Caderno Espao Feminino, v.11, n.14, p. 87-107,
jan./ jul. 2004.
12
SCOTT, Joan. Op.cit., p.12.
13
FLAX, Jane. Op.cit., .p. 217-250.
6
-7-
qualitativa, ou seja, quanto mais prximo do masculino, mais perfeito e perto de Deus. As
nico sexo, cujas variaes relacionavam-se a uma ordem superior, que transcendia o
biolgico. A patir desses elementos, consideramos o sexo uma construo situacional, que
apenas pode ser entendido dentro do contexto de luta sobre gnero e poder.
olhar construdo sobre o natural cultural. No estamos com isso negando a materialidade do
prtico a partir das concepes culturais construdas acerca dos corpos. Segundo Bordo,
inteligvel. E esses mesmos discursos podem funcionar como regras e regulamentos prticos,
do corpo,17 no qual argumenta que cada cultura atribui significados especficos aos
14
LAQUEUR, J. Op. Cit.
15
Para mais informaes sobre o lugar do corpo, cf. CANNING, Kathleen. The Body as Method? Reflections
on the Place of the Body in Gender History. Gender and History, v. 11, n. 3, p.499-513, nov. 1993; BORDO,
Susan e JAGGAR, Alison M. Gnero, corpo, conhecimento. Rio de Janeiro, Record: Rosa dos Tempos, 1997;
FEHER, Michelet et al. (Ed.). Fragmentos para uma historia del cuerpo humano. Madrid: Taurus, 1990;
MONTSERRAT, Dominic. Changing bodies, changing meaning. Studies on the human body in Antiquity.
London, New York: Routledge, 1998; RODRIGUES, Jos Carlos. Tabu do corpo. Rio de Janeiro: Dois Pontos,
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BURKE, Peter (Org.). A escrita da histria. Novas perspectivas. So Paulo: Editora da Universidade Estadual
Paulista, 1992. p. 291-327; LAQUEUR, Thomas. Op.cit.
16
BORDO, Susan e JAGGAR, Alison. Op. Cit.
17
RODRIGUES, Jos Carlos. Tabu do corpo... Op.Cit.
7
-8-
corporal. Por conseguinte, normas e regras sobre o corpo so apresentadas como naturais. O
historiador Roy Porter, no artigo Histria do corpo, complementa; o corpo no pode ser
tratado pelo historiador, simplesmente como biolgico, mas deve ser encarado como mediado
Assumimos para nosso estudo que no corpo e atravs dele que se inscrevem os
limites so flexveis.19
Desta forma, reafirmamos que no existe uma materialidade orgnica inteligvel fora
de uma perspectiva cultural. Mas nossa compreenso dos pressupostos dos estudos de gnero
lugares onde se travam lutas de poder genderificadas. Assim, o entendimento dos homens e
das mulheres das suas especificidades corpreas fruto de relaes de gnero pr-existentes.
Toda a construo sobre uma dada viso de gnero realizada e mantida sobre um
aspectos da experincia humana, sendo constituintes dela. A categoria gnero toca nas
relaes entre sexos diferentes, entre indivduos do mesmo sexo, na construo das
relaes sociais. Todos esses elementos esto presentes na construo dos significados,
variantes no tempo e espao, dos gneros e dos sexos. Eles estabelecem os efeitos de serem
atribudos a uma ou outra categoria dentro das prticas sociais concretas como, por exemplo,
18
PORTER, Roy. Op.Cit.
19
De acordo com o antroplogo Jos Carlos Rodrigues, no livro O corpo na Histria, j citado, cada cultura
atribui significados especficos a comportamentos e/ ou elementos relacionados materialidade orgnica, alm
de inibir ou exaltar impulsos instintivos. Dessa forma, as normas e regras sobre o corpo so apresentadas como
naturais.
20
FLAX, Jane. Op. Cit.
8
-9-
a insero nas relaes de poder. Contudo, em nossa pesquisa, utilizamos essa categoria de
compreendemos e o empregamos.
atravs da delimitao abstrata e simblica de diferenas. Para existir, uma identidade precisa
simblica o meio pelo qual damos sentido a prticas e s relaes sociais, (...). por meio
21
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferena: introduo terica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da
(Org.). Identidade e diferena: a perspectiva dos estudos culturais. Petrpolis: Vozes, 2000. p.7-72.
22
Ainda nesta questo, defendemos que, alm das mltiplas associaes simblicas nas construes de
identidade, estas so realizadas por duas perspectivas, muitas vezes conflitantes: a individual e a externa ao
indivduo, mas atribuda a ele.
23
Ibidem. p.14.
9
-10-
com os sistemas simblicos, com as relaes sociais e com as de poder imputadas nelas.
santidade.
Cristina da Silva, no artigo Reflexes sobre o uso da categoria gnero nos estudos de Histria
Medieval no Brasil (1990 2003), considerando que essa categoria seria o conjunto de
comportamentos, atitudes e qualidades que num determinado lugar e tempo so critrios para
considerar o indivduo como venervel, seja pelo reconhecimento oficial da Igreja ou no.24
Nesse sentido, tambm seria uma produo histrica, particular e dinmica, isso porque,
Vamos nos deter um pouco sobre a expresso santidades genderificadas. Esta foi
construdos, vamos pensar sobre as diferenas e as semelhanas existentes nos percursos dos
3. Discusso Bibliogrfica
seleo das obras. O primeiro diz respeito aos trabalhos que tratam do martrio, pensando-o,
24
SILVA, Andria C.L. da. Reflexes sobre o uso da categoria gnero... Op. Cit. p.101.
10
-11-
analisam os martrios da LA pela perspectiva terica dos Estudos de Gnero. Nossa discusso
centrou-se nesses materiais, contudo, apenas destacamos os objetivos centrais de cada texto,
ou seja, no faremos uma anlise exaustiva de cada um, j que nossa finalidade apresentar
Inicialmente, destacamos os textos nos quais o martrio foi trabalhado em relao com
corpo no Imprio Romano e nas descries literrias da Antigidade Tardia e da Alta Idade
sofrido pelas virgens. Fecharemos essa parte inicial com anlise dos argumentos centrais de
trs artigos que utilizaram a categoria gnero para o estudo dessa temtica.
Aps essa viso mais geral, deteremo-nos nas pesquisas que estudaram as relaes
entre a Igreja e os novos mrtires. Em seguida, focalizaremos nossa ateno em trabalhos que
analisam os corpos martirizados na LA, para, por fim, concluirmos com o nosso
posicionamento frente a tais obras e como nossa pesquisa contribuir para enriquecer o debate
os artigos de Merrall Llewelyn Price, Purifying violence: Santity and the somatic, de 2001,25 e
mdivale ds rituels, de 1997.26 Em ambos, temos a defesa de uma marcada ligao entre o
martrio e o Imprio Romano,27 com o foco no corpo condenado do mrtir, que por poder
adquirir aspectos sagrados, alteraria o significado da justia romana e das punies somticas,
25
PRICE, Merrall Llewelyn. Purifying violence: Santity and the somatic. Gender and Medieval Studies
Conference, York, January 5-7 2001. Disponvel em http://tango.lib.uiowa.edu:8003/smfs/search.taf?function=
detail&Layout_0_uid1=39336. Consulta em 20/08/2008.
26
BUC, Pilipphe. Martyre et ritualit dans lantiquit tardive. Horizons de lcriture mdivale ds rituels.
Annales. Histoire, Sciences Sociales, v.52, n.1, p. 63-92, 1997.
27
Destacamos que h outros textos que, ao trabalharem a relao entre o cristianismo e o Imprio Romano,
mencionam a questo do martrio de forma pontual, por isso no foram utilizados nessa discusso. Cf.: BENKO,
Stephen. Pagan Rome and the Early Christians. London: B. T. Batsford, 1985; BERR, Jean de. L'aventure
chrtienne. Paris: Stock, 1981; BOWERSOCK, Glen Warren. Martyrdom and Rome. Cambridge: Cambridge
University Press, 1995; SORDI, Marta. Los Cristianos y el Imperio Romano. Madrid: Encuentro, 1988; STE
CROIX, G. E. M. de. Por que fueron perseguidos los primeiros cristianos? In: FINLEY, Michael. I. (Org.).
Estudios sobre Historia Antigua. Madrid: Akal, 1981. p. 253-78.
11
-12-
trazendo a presena de Deus diante dos que assistiam ao espetculo e dos que o comandavam.
Llewelyn ainda articula essa hiptese a uma funcionalidade especfica das obras hagiogrficas
The Suffering Self: Pain and Narrative Representation in the Early Christian, publicado em
1998,28 trata do surgimento de uma cultura do sofrimento pessoal, na Igreja Antiga, na qual
o ato de sofrer valorizado como base para uma relao mais ntima com a divindade. Nesse
violencia y dominacin del cuerpo femenino,29 de 2000, argumenta que a dor fsica sentida
pelos mrtires possua uma incidncia especial sobre o corpo das mulheres, por conta da
leis da natureza, caracterizado pela debilidade e pela passividade. Nesse sentido, Rodrgues
defende que o tratamento fornecido ao corpo nos relatos das santas mrtires, entre os sculos
II e IV d.C., permitia aos autores cristos apresent-las sob uma aparente subverso de sua
experimentada por elas como via para transgredir as estruturas de gnero da sociedade pag.
No entanto, apesar de sua comprovada capacidade para superar as limitaes de sua natureza,
seguem sendo, para pagos e cristos, essencialmente, corpos sexuados que precisam ser
controlados.
28
PERKINS, Judith. The Suffering Self: Pain and Narrative Representation in the Early Christian Era. New
York: Routledge, 1995.
29
RODRGUEZ, Mara Amparo Pedregal. Las mrtires cristianas: gnero, violencia y dominacin del cuerpo
femenino. Studia historica. Historia antigua, n.18, p. 277-294, 2000.
12
-13-
O argumento principal que os autores cristos da Antigidade Tardia e da Alta Idade Mdia
Igreja. Por fim, Montserrat distingue o tratamento dado s virgens mrtires nas obras crists.
tambm confere uma natureza sexual aos martrios das virgens. Todavia, ao contrrio de
como a celebrao da castidade e supresso das tentaes do corpo. Coyne sublinha que,
apesar destas vitrias, o martrio no fornecia um status superior para a santidade das
virgens, j que esta somente era construda e comprovada a partir de forte violncia. Por fim,
articula a flexibilidade do corpo torturado das virgens com a Igreja, sob as perseguies
pags. A virgem torturada funcionava como um artifcio cultural que no apenas preservaria a
Mrida, de 1999, Raquel Homet32 trabalha com a comparao de dois relatos sobre o martrio
Imperador, sendo assim, o foco estaria na relao entre o paganismo e o cristianismo, com o
30
MONTSERRAT, Dominic. Changing bodies, changing meaning. Studies on the human body in Antiquity.
London e New York: Routledge, 1998.
31
COYNE, Katheleen Kelly. Useful virgins in Medieval Hagiography. In: CARLSON, Cindy L. et WEISL,
Angela Jane (Ed.). Constructions of Widowhood and Virginity in the Middle Ages. New York: St. Martin's Press,
1999. p.135-164.
32
HOMET, Raquel. Significaes de los martirios de Eulalia de Mrida. In: _____. et al. Aragon en la Edad
Media XIV-XV. Zaragoza: Universidade de Zaragoza, 1999. p.759-775.
13
-14-
cidade como um ser encarnado pelo mal. A autora defende que, nessa paixo, a fora
espiritual da virgem mrtir encontrava-se na resistncia aos tormentos sofridos pela sua f.
Assim, Homet conclui que, apesar de ambos os documentos colocarem nfase no martrio
pesquisadora Maud Burnett McInerney, no livro Eloquent virgins from Thecla to Joan of Arc,
de 2003,33 que aponta que o tratamento dado s virgens mrtires, nos documentos, variou
segundo o sexo do autor. Ela analisa textos de Ambrsio, Tertuliano, Hidelgarda, Hrotsvitha,
entre outros. A partir desse estudo, ela defende que em cada perodo histrico h duas
voyerismo, perceptvel nas descries da violncia sexual e das torturas somticas. Nestas
textos de autoras femininas, ela percebe a construo de narrativas que colocam as virgens
mrtires como ativas e inteligentes, capazes de realizarem suas prprias escolhas, e poderosas
ao lidarem com homens vis e injustos. Sendo assim, a proposta dessas obras era que, atravs
que o corpo da virgem foi descrito e percebido de modos diferenciados pelos autores
Conclumos a primeira parte de nosso debate bibliogrfico com trs textos que
33
MCINERNEY, Maud Burnett. Eloquent virgins from Thecla to Joan of Arc. New York: Palgrave Macmillan,
2003.
14
-15-
Topos in the Legends of Female Virgin Martyr Saints, de Kirsten Wolf, de 1997;34 Heo Man
Alison Gulley, de 1998;35 e no mais recente, de 1999, Gender and Martyrdom, de Evelyn
Birge Vitz.36 Apesar de trabalharem com diferentes obras hagiogrficas, as trs autoras
na absolvio da alma.
Esse segundo momento de nossa apresentao uma reflexo que foi fundamental
para nossa pesquisa, por tratar o tema martrio no mesmo recorte temporal que o nosso, alm
de focar nos santos mendicantes ao analisar as relaes entre a Igreja e os novos mrtires,
no sculo XIII. Trabalharemos com as propostas dos artigos Martyrdom, Popular veneration
dos infiis e dos pagos, com o propsito da converso, afirmando que aqueles que perdessem
Deus.39 Contudo, o autor argumenta que queles que morreram para proteger a f crist, e,
portanto, em uma situao similar aos mrtires das perseguies, no tiveram a sua santidade
34
WOLF, Kristen. The Severed Breast: A Topos in the Legends of Female Virgin Martyr Saints. Archiv fr
Nordisk Filologi, v.112, p. 97-112, 1997.
35
GULLEY, Alison. Op. Cit.
36
VITZ, Evelyn Birge. Gender and Martyrdom. Medievalia et Humanistica, n. 26, p.79-99, 1999.
37
RYAN, James. Missionary saints of High Middle Ages. Martyrdom, Popular veneration and Canonization.
The Catholic Historical Review, v. 90, n.1, p.1-28, 2004.
38
FORTES, Carolina Coelho. Os mrtires da Legenda urea: a reinveno de um tema antigo em um texto
medieval. In: LESSA, Fbio & BUSTAMANTE, Regina (Orgs.). Memria e Festa. Rio de Janeiro: Mauad,
2005, p. 375-400.
39
Ryan sublinha ainda que o Papa Inocncio III escreveu algumas cartas para as ordens dominicana e
franciscana garantindo a recompensa para as pessoas ligadas a essas ordens que morressem em nome de Cristo.
No entanto, as canonizaes s comearam a partir do sculo XIV. RYAN, James. Op. Cit. p.5.
15
-16-
vezes, eram sobre pessoas que foram renegadas pela Igreja, como os herticos e os cismticos.
Assim, passou a haver a necessidade de uma investigao sobre a santidade, trazendo essas
esferas das prticas populares para seu controle e aprovando os que eram de seu interesse.
Possuindo uma hiptese semelhante, Carolina Fortes complementa que o influxo de novos
santos foi visto como uma ameaa ao status de cultos mais antigos e tradicionais, e tambm
levantou o espectro de uma Igreja fragmentada na qual toda pequena comunidade veneraria
santos diferentes.40
O objeto central do artigo de Fortes , contudo, a retomada do tema martrio pela LA.
Antigidade Tardia e da Alta Idade Mdia, que abordavam os sculos I-IV, fez com que a
Jacopo, ao escolher mrtires que se colocavam frente aos poderes seculares que lhe eram
Por tratar das formas como esses personagens apareciam na LA e as relaes entre as
a vida terrena do santo d-se com a permanente exposio do corpo aos limites da
sobrevivncia.43 Assim, o que aconteceria ao corpo santo atestaria o destino de sua alma.
40
FORTES, Carolina Coelho. Ibidem. p.7.
41
Nesse sentido, a LA marcaria a idia que, invariavelmente, os perseguidores seriam punidos pelos seus atos.
42
SOUZA, Nri de Almeida. Op. Cit.
43
Ibidem. p.13.
16
-17-
Nesse sentido, ela afirma que esta compilao divulga um ideal de santidade que derrota a
nega a importncia do corpo para os mrtires, pelo contrrio, a obstinao dos santos em
expor a carne em si o objeto de suas preocupaes. A dor proporcionaria uma ligao entre
dois plos, o privilegiado (a alma) e o anulado e desprezado (o corpo), permitindo que o santo
existisse entre o plano terreno e o espiritual. O aspecto sexual do martrio tambm apontado
pela autora: a dor fornece prazer. Neste ponto, Pouchelle sublinha que as descries das
leis e prticas civis pelos autores Llewlyn45 e Buc,46 que percebem que a presena do corpo
autores, o sofrimento foi tratado de duas formas distintas nos documentos contemporneos s
perseguies. Perkins47 defendeu que os textos antigos valeram-se deste para afirmao da
vitria crist em relao aos seus perseguidores e no outro artigo analisado, Montserrat48
44
POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
45
LLEWLYN, Merrall. Op. Cit.
46
BUC, Pierre. Op. Cit.
47
PERKINS, Judith.Op.Cit.
48
MONTSERRAT, Dominc. Op. Cit.
17
-18-
Coyne49 defende que a conotao sexual dos relatos possuiria um marcado teor moralizante,
Por ltimo, Wolf,52 Gulley53 e Vitz54 percebem o martrio como a libertao da alma
aprisionada no corpo. Sendo assim, a partir do plano geral do debate, destacamos que o
martrio foi tratado pelos pesquisadores como smbolo do divino e da vitria do cristianismo,
comportamento ambguo em relao aos novos mrtires. Se, por um lado, os incentivava para
rumarem s terras dos infiis e pagos para convert-los, prometendo a coroa do martrio para
Fortes,56 temos como justificativa que a Igreja procurava, nesse momento, regulamentar e
somticas sofridas pelos mrtires na LA. As autoras apontam que Jacopo utiliza-se do
sofrimento para construir um tipo ideal de santidade, afirmando que o compilador colocaria a
Assim, encontramos pesquisas que trabalharam com a temtica martrio com outras
49
COYNE, Katheleen Kelly. Op.Cit.
50
HOMET, Raquel. Op.Cit.
51
MCINERNEY, Maud Burnett. Op. Cit.
52
WOLF, Kristen. Op. Cit.
53
GULLEY, Alison. Op. Cit.
54
VITZ, Evelyn Birge. Op. Cit.
55
RYAN, James. Op. Cit.
56
FORTES, Carolina Coelho. Op. Cit.
57
POUCHELLE, Marie-Chistine. Op.Cit.
58
SOUZA, Nri de Almeida. Op. Cit.
18
-19-
sentido, nosso trabalho avanar por um caminho ainda muito pouco explorado, discutindo as
portanto, que nosso estudo apresenta novas vises e possibilidades, enriquecendo o debate
pesquisadores apontam que o gnoves teria participado dos captulos de Luca, em 1288, e de
Ferrara, em 1290. Assim, ele estava imerso nos preceitos dominicanos, como tambm na
com Carolina Coelho Fortes, que, na sua dissertao Os atributos masculinos das santas na
Legenda urea. Os casos de Maria e Madalena,59 aps avaliar diferentes hipteses, situa a
trabalhar com duas edies da obra. A primeira a recente edio brasileira de 2003,
organizada por Hilrio Franco Jr., com 175 captulos. Sua base est na edio crtica de T.
59
FORTES, Carolina Coelho. Os atributos masculinos... Op.Cit.
19
-20-
Graesse,60 por sua vez, fundamentada em outras verses, a saber: a francesa do abade J.-B.
questiona quantos foram os captulos compilados diretamente por Jacopo, que variam entre
175 e 182. Esse debate figura como um dos maiores problemas em se trabalhar com a LA: as
um marco histrico, perpetuado atravs de diversas edies ao longo dos sculos. Como
sofreu acrscimos e revises ao longo dos anos, afirmamos que a compilao foi resultado de
sentido. Para tanto, trabalhamos com o levantamento de informaes dos relatos selecionados
que foram organizadas em quadros de leitura especficos aos nossos interesses.62 Estes foram
livro O Inventrio das diferenas, 63 e do historiador Jrgen Kocka que, no artigo Comparison
60
Edio impressa em 1845, reimpressa em 1890 e em 1969 com o ttulo Legenda urea, vulgo histria
lombardica dicta.
61
IACOPO DA VARAZZE. Legenda urea su CD-ROM. Texto latino delledizione critica a cura de Givanni
Paolo Maggioni. Firenze: SISMEL-Galuzzo, 1999.
62
Cf. ANEXO 1 QUADROS DE LEITURA UTILIZADOS.
63
VEYNE, Paul. O inventrio das diferenas. Histria e Sociologia. So Paulo: Brasiliense, 1983
20
-21-
and beyond,64 apresenta sua definio de comparao: Para os propsitos desse comentrio
eu quero enfatizar que comparar em Histria significa discutir dois ou mais fenmenos
Nesse trabalho, Kocka ainda afirma que os objetivos da comparao iro variar
objeto com o qual j possui familiaridade, ampliando seu espao de reflexo, evidenciando
Nossa abordagem enquadra-se nas propostas desse autor. Nesse sentido, ao comparar
hipteses que no poderiam ser percebidas de outra forma, construir explicaes histricas
comparativamente.
que nenhum objeto peculiar por natureza, ou seja, de forma absoluta. Nesse sentido, o
64
KOCKA, Jrgen. Comparison and beyong. History and Theory, v.42, p.39-44, feb. 2003.
65
Ibidem. p.39.
21
-22-
uma constante trans-histrica, com o uso de uma teoria que fornea os conceitos,
Nesse sentido, a discusso acerca dos significados do ideal de martrio, no sculo XIII,
foi fundamental para a nossa pesquisa, porque, seguindo a proposta de Veyne, acreditamos
os relatos analisados, conclumos que o elemento norteador de todos eles a ligao entre a
salvao da alma e o modo de vida cristo. Em outras palavras, seguir uma vida recheada de
boas obras, condizente com os valores cristos, era a forma de garantir a salvao da alma.
Nossa dissertao, alm dessa introduo, possui quatro captulos e a concluso, que
de Varazze e o contexto por ele vivido. Essa preocupao est em sintonia com a perspectiva
estabelecidas com/ pela Igreja e com/ pela Ordem Dominicana, duas instituies nas quais ele
esteve inserido. Optamos por esse tipo de correlao para centralizarmo-nos nos fatos com os
dominicano. A seguir, focalizamos nosso estudo na sua mais famosa obra e documento
utilizado por nossa investigao emprica: a LA. Nessa parte, iniciamos com reflexes sobre o
relaes entre a estruturao individual dos relatos, bem como a organizao geral da obra,
66
Ao utilizarmos a expresso funcionalidade prtica da santidade, estamos aludindo aos usos desta para
benefcios pessoais ou institucionais distintos como o incentivo a peregrinao ao lugar de culto de determinado
santo, o que atraa doaes e fiis.
22
-23-
com os discursos extratextuais com os quais Jacopo pde ter tido contato. Nesse sentido,
Nesse captulo, defendemos a hiptese de que Jacopo teria escolhido redigir uma
hagiografia, ou melhor, elaborar uma conpilao, por esta no ter uma rigidez dogmtica,
logo, permitia a abordagem de temas distintos. Ao colocarmos o estudo dos relatos sobre
a nossa hiptese de que Jacopo, ao compilar a LA, objetivou responder questes especficas
s relaes de poder nas quais estava inserido, como a valorizao do poder eclesistico, a
Pelgio sobre argumentando acerca das associaes entre o poder imperial e o religioso,
retomada no sculo XIII. Para tanto, exploramos essa temtica pelo desenvolvimento dos
movimentos herticos e das cruzadas, pela atuao dos missionrios mendicantes e pela
nesses fenmenos. Por fim, buscamos perceber como Jacopo abordou, na LA, o processo de
estabelecidas com a Ordem Dominicana e com a Igreja. Assim, defendemos que a promessa
23
-24-
ctaros, e o papel da Ordem Dominicana e da Igreja no combate a esse grupo religioso. Nossa
compilao. Em relatos distintos, ao longo da LA, temos o confronto de santos com hereges,
morte por um herege como meritria do martrio, o que seria um incentivo pregao dos
irmos dominicanos.
cruzadistas. Nesse sentido, pensamos no ideal norteador das cruzadas e em sua proximidade
ao da Guerra Santa, ambas ligadas noo de guerra justa. Seguindo nossa lgica,
levantamos a hiptese de que coroa do martrio fora colocada como recompensa aos que
morreram em uma Cruzada, assim como na guerra santa, por ambas serem justas.
Ressaltamos que tambm estudamos a participao dos missionrios mendicantes, que, cabe
Sobre essas questes, elaboramos como hiptese que a retomada dessa temtica foi
realizada por hagigrafos, nesse momento, como tambm pela prpria Igreja Catlica (atravs
mendicantes). Jacopo de Varazze, diante desse cenrio, selecionou relatos com os quais
24
-25-
Reservamos os dois ltimos captulos para a apresentao e o exame dos dez relatos
estudo das narrativas das mulheres e o quarto ao dos homens, seguindo a proposta de Kocka.
processo genderificao, estabelecido atravs das relaes de poder. Por fim, comparamos
esses apontamentos finais, visando a percepo das semelhanas e diferenas entre eles, tendo
as.
Aps a comparao dos relatos, defendemos que a LA no possui uma unidade de sentido,
sendo uma seqncia de topos. O elemento em comum aos captulos a defesa da vida crist para
seguidos, contudo eles so santos porque nasceram com a marca da graa divina, o que a vida
Nossa dissertao est organizada segundo as normas postuladas pelo SiBI publicadas na
pelo CEPG em 1997. Assim, ressaltamos que as referncias bibliogrficas esto de acordo com a
6023), de 2007.
67
PAULA, Elaine Baptista de Matos et al. Manual para elaborao e normalizao de Dissertaes Teses. Srie
Manuais de Procedimentos, n.5, 3 ed. Rio de Janeiro: SiBI, 2004.
25
-26-
CAPTULO 1
1. Apresentao
Para tanto relacionamos o contexto da Pennsula Itlica com alguns dados biogrficos do
dominicano para, a seguir, ponderarmos sobre a compilao. Nesta anlise, refletimos acerca
direcionamento de nosso olhar quanto s singularidades da LA, atravs da relao entre sua
sociedades acerca dos diferentes aspectos da organizao social, estando presente nas prticas,
1
Para mais informaes sobre Jacopo de Varazze e a LA cf. AIRALDI, Gabriella. Jacopo da Varagine tra santi
e mercanti. Milano: Camunia, 1988; BAUDOT, Jules. Jacques de Voragine. In: AMANN, mile; MANGENOT,
Eugne et VACANT, Alfred (dir.) Dictionnaire de thologie catholique. Paris: Librairie Letouzey et An, 1939;
DONDAINE, Antoine. Le dominicain franais Jean de Mailly et la Lgende Dore. Archives dhistoire
dominicaine, 1, 1946; BOUREAU, Alain. Les estrucutures narratives de la Legenda Aurea: de la variation au
grand chant sacre. In: DUNN-LARDEAU, Brenda (org.). Legenda Aurea: Sept Sicles de Diffusion. Actes du
Colloque international sur le Legenda Aurea: textes latin et brainches vernaculaire. Montreal-Paris: Bellarmin-
Vrin, 1986; REAMES, Sherry. The Legenda Aurea: A reexaminat of its paradoxical History. Wisconsin:
University Press, 1985; WYZEMA, Teodor de. Introduction In: La Lgende dore. Paris: Seuil, 1960. p. 18-
19.
2
FOULCAULT, Michel. A ordem do discurso. So Paulo: Loyola, 1996. p.9.
26
-27-
concordamos com Andria C. L. Frazo da Silva, que defende que nenhum discurso
Roger Chartier com Carlos Aguirre Anaya, Jess Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio
Saborit,4 estes esto estruturados nos enunciados, assim como no prprio sistema de
histrico considerando que a sua produo tambm um acontecimento que, como tal, deve
contudo nossa preocupao residir nas condies em que a Ordem Dominicana surgiu,
apontando a relao entre esta e a Igreja. Como assinalamos, a nossa proposta traar
da bibliografia e da LA.
nossa ateno esteve direcionada aos elementos extratextuais mais imediatos ao compilador,
pensando nos desafios enfrentados por essas organizaes e em como essas influenciaram na
entre os mbitos civil e religioso, aqui estudadas, aparecem na obra, defendendo a nossa
3
SILVA, Andria C. L. Frazo da: Reflexes metodolgicas sobre a anlise do discurso em perspectiva
histrica: paternidade, maternidade, santidade e gnero. Cronos: Revista de Histria, Pedro Leopoldo, n. 6, p.
194-223, 2002.
4
CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e histria: Conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre
Anaya, Jess Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre: ArTmeD, 2001.
27
-28-
desde os sculos XI e XII. Esses fenmenos teriam sido mais perceptveis na Itlia, por esta j
de homens e idias.6
A expanso das cidades italianas foi favorecida, principalmente, por uma maior e
melhor explorao dos campos somada intensificao das relaes comerciais.7 Sobre esse
5
Segundo Franco Cardini, um dos resultados dessas trocas comerciais e culturais foi o surgimento da primeira
forma de lngua verncula, comum s reas que passavam por um processo similar de urbanizao. O autor no
especifica qual teria sido esta. ____. A Itlia entre os sculos XI e XIII. MONGELLI, Lenia Marcia. (coord.):
Mudanas e rumos: o Ocidente medieval (sculos XI-XIII). Cotia: bis, 1997. p.85-107. p.87.
6
Para mais informaes sobre o contexto da Pennsula Itlica cf. ABULAFIA, David. Italy in the Central Middle
Ages: 1000-1300. Oxford: Oxford University Press, 2004; CAMMAROSANO, Paolo. Storia dell'Italia
medievale. Dal VI all'XI secolo. Roma-Bari: Laterza, 2001; DEAN, Trevor. The Towns of Italy in the Later
Middle Ages. Manchester: Manchester University Press, 2000; GENICOT, Leopold. La Europa nel siglo XIII.
Barcelona: Labor, 1976; HYDE, John Kenneth. Society and politics in medieval Italy: the evolution of the civil
life, 1000-1350. New York: St. Martin's Press. 1973.
7
Nesse processo, destacou-se o comrcio martimo realizado por Gnova, Veneza e Pisa.
8
GENICOT, Leopold. Op.Cit. p.68.
28
-29-
ca. 1105,9 defende que, no sculo XIII, a sociedade ocidental passou por um processo de
similiar, Indro Montanelli e Roberto Gervaso, no livro Itlia: os sculos decisivos, afirmam
que o mbito clerical possua duas vantagens sobre o laico. A primeira diz respeito a certo
monoplio cultural exercido pelo clero que seria o principal responsvel pelo ensino. A
segunda seria que a entrada na clerezia figuraria uma mudana do status social de
determinada pessoa, tornando mais fcil o seu acesso aos cargos militares e civis, reservados
a membros das fileiras nobilirias. Em suma, eles afirmam que o ingresso no mbito clerical
significaria que:
Ambos acabaram se tornando marcadores sociais de diferena cada vez mais visvel, sendo
vez mais habitual da escrita motivaram os burgueses a confiar aos clrigos partes da
que isso no implicou em um aumento da autoridade episcopal ou de qualquer outro tipo nas
9
MOORE, Robert Ian. La alfabetizacin y el surgimiento de la hereja, ca. 1000- ca.1105. In: GARCIA, Maria
Loring Isabel. La Edad Media a debate. Madrid: Akal, 2003, p. 552-570.
10
MONTANELLI, Indro et GERVASO, Roberto. Itlia: os sculos decisivos (Idade Mdia, ano 1000 a 1250.
O nascimento das comunas). So Paulo: IBRASA, 1968. p.29.
11
Ididem. p. 556.
12
Ressaltamos o cuidado com esse tipo de argumentao, afinal no intencionamos indicar que o processo de
alfabetizao clerical ocorreu de forma homognea para o clero inteiro. Defendemos que este estaria, ainda, mais
retrito ao alto clero.
29
-30-
cidades. Pelo contrrio, desde o sculo XII, a autoridade eclesistica sofria uma diminuio
gradual como el poder jurisdiccional ms importante de la ciudad,13 ficando cada vez mais
atrelada ao civil.
relevante nas cidades europias. No final do sculo XII e incio do XIII, foram se
e o imprio germnico.14 Segundo Cardini, apesar do poder eclesistico ter tentado construir
uma autonomia diante das potncias seculares, a cria romana no conseguiu evitar a
influncia dos poderes leigos fortes. Nessa mesma poca, a renovao da vida religiosa
comeou a ser registrada atravs de buscas por uma reforma na Igreja, para elevar seu nvel
relacionada a uma definitiva separao das hierarquias eclesisticas em relao aos poderes
laicos.16
imprio. Segundo Brenda Bolton, no livro A reforma na Idade Mdia,17 a Igreja tornara-se
negligente e mundana nas suas atividades. Reinava a simonia, isto , o abuso do trfico de
13
WALEY, Daniel. Las ciudades-repblica italianas. Madrid: Guadarrama. 1969. p.56.
14
Segundo Cardini, desde o sculo X, o papado esteve a mrce da dinastia dos tonidas que, a partir do
privilegium Othonis de 962, estabeleceu que os papas deveriam jurar fidelidade ao imperador. Alm disso, Oto I
e seus sucessores passaram a intervir mais na Igreja, fundando bispados e abadias. O autor afirma que estes
episdios deram incio a um processo denominado investidura leiga. Esta era marcada pelo controle da Igreja
pelo poder do Estado (Cesaropapismo), do qual surgiria, posteriormente, o fnomeno chamado querela das
investiduras. CARDINI, Franco. Op. Cit. p. 88.
15
Ibidem.
16
Brenda Bolton defende que, inicialmente, os ideais reformadores dos mosteiros de Cluny, Brogne e Gorze
estavam direcionados ao retorno a uma viso idealista da Igreja nos primeiros tempos, a ecclesia primitiva dos
apstolos. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1983. p.21.
17
BOLTON, Brenda. Op. Cit.
30
-31-
de dignitrios da Igreja.18
simonaco de suas funes,19 que objetivava, dentre outras coisas, uma separao definitiva
Destacamos que uma das reaes contrrias a essas medidas partiu, justamente, de famlias
A reforma pode ser dividida em dois plos com objetivos diferentes: um que propunha
um retorno a uma releitura da ecclesia primitiva dos apstolos e da pobreza de Cristo, com
uma ateno especial relevada pregao da palavra do Senhor; e o outro que pretendia
foram sentidas no fim do sculo XII, com o fortalecimento das tentativas laicas24 de retorno
pregao, o que aumentou o desejo dos leigos por aes pastorais direcionadas ao saeculum e
por uma maior participao laica na ecclesia. Os monges, tentando responder a tais
secular eram insuficientes e/ ou sem o devido preparo para a ao pastoral junto aos fiis.
18
Ibidem. p. 20.
19
importante ressaltar que no consideramos que a reforma colocou um fim definitivo a essas prticas, sendo
ainda mencionadas, quase que duzentos anos depois, no IV conclio de Latro.
20
Sobre esse processo, Cardini coloca que o imperador [refere-se a Henrique IV], amparado pelo clero alemo,
tomou posio contra a deciso papal, mas Gregrio agravou a situao proclamando em 1075 a superioridade
do pontfice sobre o imperador: ao papa cabiam as insgnias do imprio e a ele atribua-se o poder de depor o
imperador e, portanto, de liderar os sditos deste da obrigao de fidelidade. CARDINI, Franco. Op.Cit. p. 90.
21
Segundo Franco Cardini, esse processo teria iniciado no conclio lateranense de 1059, quando, com a eleio
do Papa Nicolau III, estabeleceu-se que a eleio do pontfice seria confiada a um colgio cardinalcio.
22
Idem.
23
BOLTON, Brenda. Op.Cit. p. 21
24
Cardini e Bolton, nos respectivos livros supracitados, defendem que os movimentos espirituais, j iniciados,
refletiam as inquietaes laicas em relao vida religiosa proposta pela Santa S, estando em consonncia com
as mudanas ocorridas nos meios social, econmico e poltico.
31
-32-
fim do sculo XII, de movimentos dissidentes que a Santa S considerou herticos, como os
que algumas Ordens, como a Franciscana e a Dominicana,30 sentiram pelas cidades estaria
espirituais laicas e uma atuao na defesa dos preceitos defendidos pela Santa S.
postulado mais ativo voltado ao meio urbano, caracterizado por um forte trabalho assistencial
e pela pregao calcada no estudo das Escrituras.33 Assim, Hilrio Franco Jr, na apresentao
25
Analisaremos a heresia ctara ou albigense no captulo II.
26
Em 1184, tanto os valdenses como os humiliati foram excomungados pelo decreto Ab abolendam, sob o
pretexto de pregarem ilegalmente e por possuirem pontos de vistas deturpados sobre a f e os sacramentos
cristos. De fato, ambos os movimentos procuravam viver sob a conformidade da vita apostolica, sendo que eles
se autoconsideravam em conformidade com os ideais da ortodoxia, no protestando contra a Igreja. BOLTON,
Brenda. Op. Cit. p. 63.
27
LAWRENCE, Clifford Hugh. The Friars. The impact of early mendicant movement on Western society. Nova
Iorque: Longman. 1994. p. 3.
28
Destacamos que a Ordem Dominicana figurou como uma exceo, j que foi formada por clrigos desde seus
primrdios.
29
LE GOFF, Jacques. As Ordens Mendicantes. In: BERLIOZ, Jacques. Monges e religiosos na Idade Mdia.
Lisboa: Terramar, 1994. p. 227-241.
30
O aumento quantitativo das Ordens foi tal que no Conclio de Lyon, em 1274, reconheceu apenas quatro
Instituies, trazendo-as para o seio da Santa S: a dos Frades Menores, a dos Pregadores, a dos Irmos da Bem-
Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo e a dos Eremitas de Santo Agostinho.
31
Ao colocar a expresso vaga ortodoxa fazemos aluso a atuao do clero secular e do monacato vista como
insuficiente frente s demandas espirituais especficas das cidades.
32
Ibidem. p. 228.
33
Uma das principais diferenas entre essas ordens era o fato da Ordem Dominicana ter optado pela posse de
bens materiais que os franciscanos, para auxiliar na formao intelectual dos pregadores. Portanto, segundo
32
-33-
Uma das melhores expresses desse novo quadro global tinha sido
exatamente o surgimento das Ordens Mendicantes, cuja prtica despojada
(no possuam bens materiais), humilde (viviam de esmolas), de apego
natureza (especialmente os franciscanos), de intensa pregao e represso
aos hereges (sobretudo os dominicanos), atendia melhor que as velhas
ordens monsticas s novas necessidades espirituais e sociais. 35
constituda apenas por clrigos; alm da busca pelo equilbrio entre pregao e erudio,
reconhecimento ocorreu em um momento conturbado para a Igreja que lidava com novos
desafios, como o combate aos distintos movimentos herticos, aos infiis e aos pagos; bem
como as conflituosas relaes com o poder imperial. Para compreenso acerca das contendas
entre o papado e o imprio nesse momento, cabe refletirmos sobre o cenrio poltico-religioso
Frederico II, confiando-lhe a alguns doutos da Igreja para sua formao educacional. Em
1209, aps a morte de seu pai, Henrique VI, ocorreu a coroao do imperador do Sacro
Pedro.
Pontifcio e seus limites, confirmando os direitos da Igreja sobre a Siclia. No entanto, logo
depois desse reconhecimento, o imperador desgostoso com sua recepo em Roma, permitiu
que seu exrcito espalhasse-se pelos territrios toscanos, inclusive o Reino da Siclia, que
Antonio Linage Conde, os dominicanos aceitaram terras e propriedades conventuais . Cf. ___. Las ordenes
mendicantes. Madrid: Histria 16. 1985. p.14.
34
JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos. FRANCO JR., Hilrio (trad.). So Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
35
Ibidem. p.13.
33
-34-
nesse momento, por doao, pertencia ao pontificado. Em resposta a essa traio, Inocncio o
excomunga em 1210.
O antema era mais uma arma poltica que espiritual, possuindo um forte poder
sugestivo sobre a populao. Nesse sentido, aps a excomunho, Oto ficou enfraquecido,
sendo destitudo por alguns prncipes, em Nuremberg, que coroam Federico II, com o apoio
de Inocncio III.36
Em 1211, Frederico II, que j havia reunido um exrcito com o objetivo de restaurar o
imprio a fora em 1209, ocupou Constance e recebeu a coroao oficial em Mainz em 1212.
Segundo David Abulafia, no livro Italy in the middle central ages,37 ele teria ficado oito anos
restaurando a ordem no reino germnico. Durante esse perodo, ocorreu uma segunda
cerimnia de coroao, em 1215, em Aachen, que lhe concedeu o ttulo de Rei da Germnia.
Frederico II possua o apoio do papa Inocncio III, que, em troca, exigiu do rei o
retorno do reconhecimento dos privilgios e direitos que Oto havia concedido Igreja. E,
ele foi coroado, pela terceira e ltima vez, como Imperador em Roma. Contudo, segundo
o ttulo de rei dos romanos, tornando-o seu herdeiro. Dessa forma, tomando para si a coroa.
36
GERVASO, Roberto e MONTANELLI, Indro. Op. Cit. p.186.
37
ABULAFIA, David. Op.Cit.
34
-35-
hereges, renovando o voto de tomar a cruz. Contudo, quebrou esses votos ao marchar a
Pglia, ao invs de ir Terra Santa, onde reuniu os bares e promulgou novas leis do reino.38
dos cristos na Palestina, apelou ao Imperador para que organizasse uma cruzada
prosseguisse. O papa convencido que fora trado por Frederico, o teria excomungado. Iniciou-
se, assim, uma guerra que contou com bulas papais que acusavam os Hohenstaufen de
se a juntar suas armas s dele e combater unidos os sarracenos.39 Diante disso, Frederico
conseguiu realizar acordos de paz com o Sulto Al Kamil, o que teria agradado cristos e
Segundo Roberto Gervaso e Indro Montanelli, o papa no teria ficado satisfeito, pois
acreditava que uma guerra santa s se efetivava com o extermnio dos infiis, e assim teria
instigado uma revolta contra o imperador no Sul da Itlia. Em 1227, iniciou-se o papado de
Gregrio IX (1227-1241) que foi obrigado a aceitar um acordo com Frederico aps este
invadir o Estado Papal. Nesse contexto, em 1230, nasceu Jacopo, em Varazze, local prximo
a Gnova.
Contudo, o acordo no significou o fim das disputas entre o papado e o imprio, que se
prolongaram, culminando com um novo antema, em 1239. No ano seguinte, no reino das
Duas Siclias, Frederico respondeu a esse com a destituio dos procos e dos bispos
38
GERVASO, Roberto e MONTANELLI, Indro, Op.Cit. p. 184.
.39 Ibidem, p.185.
40
Idem.
35
-36-
Montecassino.
Alm de pedir auxlio aos dominicanos para que, da mesma forma que pregavam contra os
Gnova e Pisa foram as cidades que mais se desgastaram com essas lutas, sofrendo um
Tireno, especialmente sobre Crsega e Sardenha, sendo rivais. Essa rivalidade foi acirrada
quando Pisa apoiou o Imprio nos conflitos entre Guelfos, que eram a favor do papa, e
Gibelinos, que sustentavam o imperador. Por tal razo, Frederico II teria concedido a
prosseguiram aps o papado de Gregrio IX, com Inocncio IV (1243-1254), que assumiu a
cria aps uma vaga papal e colocou seus propagandistas e agentes contra os Hohenstaufen.
Em 1244, o jovem Jacopo decidiu entrar na ordem dominicana aps ter tido contato
sendo agravado com o anncio da deposio do imperador Frederico II pelo papa em 1245,
que tambm teria convocado alguns irmos dominicanos para instigarem e pregarem uma
41
LAWRENCE, Clifford Hugh, Op.Cit. p. 186.
42
Veneza, envolvida por Gregrio IX nas contendas com o imprio, aps um perodo de crise, fortaleceu seu
comrcio com o Oriente.
43
AIRALDI, Gabriella. Jacopo da Varagine tra santi e mercanti. Milano: Camunia. 1988. p.140.
44
Alm dos problemas enfrentados com o imprio, os pequenos prncipes e oficiais locais desafiavam a
autoridade da cria ao fornecerem proteo aos hereges e, por vezes, rechaaram inquisidores e at bispos de
seus territrios. Cf. FORTES, Carolina Coelho. Os atributos masculinos das santas na Legenda urea. Os casos
de Maria e Madalena. Dissertao (Mestrado em Histria) Programa de Ps-graduao em Histria Social. Rio
de Janeiro: Universidade do Rio de Janeiro, 2003. p. 66.
45
Carolina Coelho Fortes defende que as aes adotadas por Gregrio e por Inocncio, durante o extenso
combate contra o imperador, abriram espao para que outros governantes desafiassem a autoridade da Igreja.
FORTES, Carolina Coelho. Op. Cit. p. 68.
36
-37-
Jacopo estaria estudando na Universidade de Bolonha47 nesse momento. Esta teria surgido
sua organizao foi distinta das outras grandes universidades, possuindo como disciplina
faculdade de teologia, criada apenas em 1364, foi monopolizada pelas Ordens Mendicantes.50
Em Bolonha, a lngua verncula j havia alcanado sua forma fixa, cujo contato teria
auxiliado Jacopo em suas pregaes. Devemos considerar que a pregao verncula era cada
vez mais utilizada na Itlia, nesse momento, especialmente pelos lderes dos movimentos
herticos. Richardson argumenta que, aps ter completado seus estudos, o dominicano teria
direo a Gnova, onde manteve uma produo epistolar pedindo auxlio ao clero para que
46
RICHARDSON, Ernest. Op.Cit.
47
A universidade bolonhesa, junto com a parisiense, possua uma certa notoriedade no mbito intelectual, sendo
uma das primeiras universidades estabelecidas ainda no sculo XII.
48
CARDINI, Franco. Op. Cit. p.95.
49
Em Bolonha, Jacques Verger sublinha a existncia de duas universidades: a dos italianos ou citramontanos e a
dos estrangeiros ou ultramontanos, dirigidas por reitores eleitos anualmente. No temos informaes sobre em
qual destas Jacopo estudou. VERGER, Jacques. Universidade. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-
Claude (Coord.). Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval. So Paulo: Imprensa Oficial/EDUSC, 2002. 2V,
v.2, p. 573-588.
50
Ibidem, p.578.
51
Frederico II faleceu em 1245, deixando seu filho Conrado IV como sucessor no reinado da Siclia. Este subiu
ao trono como Henrique VII e seguiu com os planos paternos de conquistar Roma, mas foi mal sucedido. Foi
exomungado em 1254. No detalharemos sua atuao como imperador, j que a LA menciona apenas o imprio
de seu pai. Para mais informaes, cf. ABULAFIA, David. Op.Cit.; WALEY, Daniel. Op.Cit.
52
Escreveu tambm o Sermo de Planctu beatae Mariae Virginis e o Sermo de passione Domini.
53
Cf. GUIDETTI, Stefania Bertini. I Sermones de Iacopo da Varazze. Firenze: SISMEL, 1998.
37
-38-
Marialis,57 produzidos a partir de 1255. Essa produo inicial estava direcionada ao auxlio de
membros da Ordem no combate aos movimentos herticos que viria a ser conhecida como
Em 1258, foi eleito prior da Gnova.58 Sua atuao indicaria que ele esteve presente
nos captulos provinciais e em muitos dos captulos Gerais. Alguns pesquisadores apontam
que Jacopo de Varazze teria participado dos captulos de Luca, em 1288, e de Ferrara, em
1290. Ele manteve-se nesse cargo at 1267,59 quando foi eleito provincial da Lombardia,
sendo reeleito algumas vezes. Cabe ressaltar que, de acordo com Fortes, a situao poltica e
religiosa estava conturbada nesse local, onde as seitas herticas dos valdenses e,
Ordem Dominicana, viajando para Florena e depois Bolonha, em 1272; para Budapeste e
Faventia, em 1273; para Lion e Milo, em 1274.60 Dois anos mais tarde, o dominicano
Inocncio V eleito papa, permanecendo apenas meses no cargo. Richardson aponta que ele e
Jacopo eram prximos, tendo convivido pelos menos nos Captulos Gerais.
A curta durao de seu pontificado teria sido uma surpresa para ordem, principalmente
devido ao fato do sucessor, Joo XXI (1276-1277), no ser muito prximo dos Mendicantes.
Richardson argumenta que essa antipatia do papa em relao aos mendicantes teria
54
Essa obra seria composta por 307 textos, podendo ser caracterizada como um santoral, cuja organizao
estaria alinhada ao calendrio litrgico dominicano estabelecido.
55
Segundo Richardson, estes totalizariam 98 sermes, quase todos dedicados Quaresma. Cf. JACOBI A
VARAGINE. Sermones quadragesimales eximii doctoris, fratris Iacobi de Voragine, ordinis paedicatorum,
quondam archiepiscopiianuensis. Ex Officina Ioannis Baptistae Somaschi, 1571.
56
Segundo Fortes, essa compilao tem sua base no missal romano quanto no dominicano, reunindo elementos
importantes da religiosidade dominicana em trs sermes: em honra Trindade, Virgem e a Domingos. Cf.
JACOBI A VORAGINE. Sermones domenicalis per totum annum. Venetiis: Ex Officina Ioannis Baptistae
Somaschi, 1586.
57
Composto em 1294, essa coletnea de 161 sermes trata das virtudes da Virgem Maria.
58
Richardson destaca que ele tambm poderia ter sido prior em Bolonha, Asti, Como ou Acqui. RICHARDSON,
Ernest. Op. Cit., v. 2. p. 36.
59
Cabe ressaltar que segundo Daniel Waley, entre 1265/1268, a causa dos Hohenstaufen marca o final de uma
fase e incio de outra, j que o guelfismo era caracterizado por um sistema de alianas voltadas a manuteno de
certa configurao de poder. WALEY, Daniel. Op. Cit. p.203.
60
RICHARDSON, Ernest. Op. Cit., v.3. p.19.
38
-39-
dominicano teria retornado ao posto em 1281. Segundo Carla Casagrande, de 1283 a 1285, il
exera les fonctions de rgent de lOrdre aprs la mort de Jean de Verceil et avant llection
dentre outros foi sugerido para substitu-lo. O papa concedeu embaixada genovesa a
escolha de um dos candidatos apresentados. Jacopo teria sido eleito por unanimidade,
No ano aps sua eleio, o dominicano comeou a escrever a Cronaca della citta di
Genova dalle origini al 1297,64 cuja temtica era a cidade e seus fundadores, abordando
questes polticas, colocando as regras para o bom governo e argumentando como ser um
sublinha que apesar da obra ter sido redigida e publicada nesse ano, ela foi editada pela
segunda vez em 1296, sendo reeditada por, aparentemente, Jacopo at sua morte.
uma certa reputao de santidade, sendo em 1816, beatificado pelo papa Pio VII.65
com o poder civil. Essas relaes de poder nutriram uma necessidade de alcanar novos fiis e
atrair as almas perdidas de volta para seu seio. Esse o pano de fundo da produo literria
61
Ibidem, p. 20.
62
De 1283 a 1285, ele exerceu as funes de regente da Ordem aps a morte de Jean de Verceil e antes da
eleio do novo Mestre Geral, Munio de Zamorra. Cf. CASAGRANDE, Carla. La vie et les oeuvres de Jacques
de Voragine, 2007. Disponvel em: http://www.sermones.net/spip.php?article4&artsuite=0#sommaire_2. Acesso
em: 17/03/2008. Traduo nossa.
63
Alm disso, destacamos que, segundo Ernest Richardson, Jacopo era conhecido como apaziguador (____.
Op. Cit. p. 62 et. Seq.). Entre outros motivos, esse reconhecimento deve-se a sua atuao na negociao de paz
entre Gnova e Pisa no fim da Batalha de Meloria, no dia 3 de abril de 1288. Neste ponto, cabe destacarmos que
a rivalidade entre essas cidades, como argumentado anteriormente, iniciou devido s pretenses de ambas em
dominar a economia martima no Tireno, tendo se agravado quando elas assumiram posies opostas no conflito
entre Guelfos e Gibelinos. A batalha iniciada em 1284 teria significado o incio da derrocada de Pisa como
potncia no comrcio martimo.
64
JACOPO DA VARAGINE. Cronaca della citta' di Genova dalle origini al 1297. Torino: ECIG, s/d.
65
REAMES, Sherry. The Legenda Aurea: A reexaminat of its paradoxical History. Wisconsin: University Press,
1985. p.15.
39
-40-
Contudo, apesar de sua extensa produo literria, cujos temas tocaram em questes
Legenda sanctorum alias Lombardica hystoria, dita Legenda urea, que foi transmitida por
mais de mil manuscritos e mais de duzentas edies e tradues, durante o primeiro sculo
aps a sua publicao. Antes de adentrarmos em questes especficas sobre essa compilao,
objetivao das obras hagiogrficas como literatura crist,67 relativa santidade, como
tambm sua valorizao, concomitante expanso do culto aos santos. No artigo Palavra de
plpito e erudio no sculo XIII. A Legenda urea de Jacopo de Varazze, Nri de Almeida
Souza68 diz:
66
Diante da sua produo literria e de sua atuao como dominicano e arcebispo, Richardson aponta que, nesse
perodo caracterizado pela celebrao do conhecimento escolstico, Jacopo destacara-se por sua erudio, sendo
conhecido como Jacopo, o telogo (Ibibem, p.3).
67
O termo hagiografia possuir razes gregas, hagios = sagrado e graphia = escrita, neste sentido envolvia
questes e temas no mbito mais amplo do sagrado, no sendo circunscrito ao cristianismo.
68
SOUZA, Nri de Almeida. Palavra de plpito e erudio no sculo XIII. A Legenda urea de Jacopo de
Varazze. Revista Brasileira de Histria, n.43, p. 68-84, 2002.
69
Ibidem, p.69.
40
-41-
que se tornaram interdependentes. Se, por um lado, o culto aos santos facilitava a
receptividade das hagiografias, por outro, estas nutriam tal prtica pela sua prpria natureza e
por seu papel didtico e carter propagandstico. Essa relao constituiu um mecanismo de
-poltico.
-se, a priori, a fixar na memria as aes dos heris da nova f.71 No entanto, concordamos
com Fortes ao afirmar que isso no significava construir um relato biogrfico, mas retratar o
Les legende dore: Le systme narratif de Jacques de Voragine (+1298),75 que argumenta que
o significado da narrativa hagiogrfica, ao contrrio dos contos tradicionais, estaria fora dela,
70
Defendemos que as relaes entre hagiografia e santidade constituram um importante elemento nas operaes
convencimento da Igreja.
71
BOESCH GAJANO, Sofia. Santidade. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. (Org.). Dicionrio...
Op. Cit. p.449-462. p.253.
72
FORTES, Carolina Coelho. Op. Cit., p. 202.
73
Delehaye enfatiza o aspecto ficcional da hagiografia. Portanto, a leitura deste gnero no deveria ser calcada
nos padres do criticismo histrico. (DELEHAYE, Hippolyte. Les legendes hagiografiques. Bruxelas: Societ
des Bollandistes, 1973. p.3).
74
VAUCHEZ, Andr. La Santit nel Medioevo. Bologna: Molino, 1989.
75
BOUREAU, Alain. Les legende dore: Le systme narratif de Jacques de Voragine (+1298). Paris: Cerf,
1984.
41
-42-
Nesta lgica, os santos eram o objeto central das obras hagiogrficas. Partindo destas
O santo marcado desde o seu nascimento pela graa divina. A sua vivncia entre os
homens serve justamente para atestar essa santidade inerente; atravs da manifestao de suas
sentido, Vauchez argumenta que ao santo era imputada uma separao radical da condio
humana.76 No entanto, defendemos que apesar dos santos serem profundamente relacionados
existncia. Neste sentido, poderiam ser evocados no combate s foras do mal ou agir como
As hagiografias, muitas vezes, retratam os santos como aqueles que abdicaram dos
presente na LA, em que h uma constante associao entre a santidade e a renncia sobre-
apenas cinco so de santos contemporneos ao compilador, ou seja, dos sculos XII e XIII, a
Canteburry e Santa Isabel da Hungria.77 Nri de Almeida Souza78 defende que o uso de
76
VAUCHEZ, Andre. Op. Cit. p. 291.
77
Sublinhamos que este relato no consta na edio brasileira de Hilrio Franco Jr.
78
SOUZA, Nri de Almeida. Idem.
42
-43-
relatos antigos possibilitaria ao dominicano ponderar algumas questes de seu tempo, mais
livremente.79
antigos, permitiram Jacopo trabalhar com personagens que venceram o corpo na vida e na
de leo, leite, sangue ou luz. Este encadeamento de fenmenos constitui um cdigo sensorial
Os santos eram aqueles que iam alm da condio humana, dessa forma, evidenciando
Jacopo de Varazze considera o corpo como meio de alcanar a santidade, atravs da subverso
dos sentidos e dos sentimentos e da exposio do corpo dor, estando em sintonia com os
79
Boureau afirma que considerando a mensagem tradicional e conservadora de Jacopo, no surpresa ele ter
selecionado, quase que totalmente, santos-heris da Igreja Primitiva, j que a sua santidade inimitvel.
Defendendo que Jacopo, assim como muito outros autores, teriam considerado os mrtires como modelos
capilares de santidade e virtuosidade. BOUREAU, Alain. Op.Cit)
80
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: Op.Cit.. p.13.
81
Ibidem.
82
POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
83
Corroborando com essa hiptese, temos que dos cento e cinqenta e trs santos biografados, pela edio de
Hilrio Franco Jr., noventa e um foram martirizados de oitenta e uma formas diferentes.
43
-44-
postular modelos de conduta,84 usando o que era exemplar. Alm disso, os hagigrafos ainda
obteve novo impulso com a atuao das ordens mendicantes. Dentre elas, destacaram-se as
ordens dos Frades Menores e a dos Dominicanos, que atravs da produo de obras em lnguas
uma obra de natureza hagiogrfica devido a sua funcionalidade e por j existir um espao de
diferentes tipos hagiogrficos ao longo da obra milagres, translao, vidas, entre outros e
temticas festas crists, a superao do corpo, o diabo, a morte, entre outros. Dessa forma,
postulou questes especficas ao seu interesse, algumas das quais sero pensadas a seguir.
provavelmente, foi redigida aps a morte do Imperador Frederico II, em 1249, pois este
44
-45-
ano da morte de Pedro Mrtir, j que ficaria implcito que desta data at a publicao da obra
Milo ficara livre da presena hertica.86 O autor defende que a estrutura da obra deveria estar
LA muito extensa, seguimos Carolina Coelho Fortes87 que, aps avaliar os trabalhos de
alguns desses pesquisadores, estabelece que a primeira redao deve ter sido realizada na
dcada de 60, do sculo XIII. De acordo com Paolo Giovanni Maggioni,88 a compilao
passou por vrias revises do prprio Jacopo, ou consentidas por ele, ao longo de sua vida.
Richardson corrobora com essa afirmao tendo em vista a extensa quantidade de manuscritos
para o catalo, no ltimo quarto do sculo XIII, e para o alemo, em 1282. Em torno de 1340,
foi elaborada a primeira traduo para o francs; em provenal na primeira metade do sculo
facilitou ainda mais a difuso dessa obra, surgindo edies do documento em latim a
primeira foi em 1470 e, crescentemente, em lnguas vernculas iniciando com uma edio
Segundo Robert Seybolt,89 entre 1470 - 1500, foram publicadas em torno de cento e
cinqenta e seis edies da LA. Entre 1500 e 1530 so encontradas menos edies: vinte e
uma em latim e vinte e oito em vernculo. Com o tempo, percebemos uma queda desse ritmo:
de 1531 a 1560 podem ser encontradas apenas treze edies; sete em latim, quatro em francs
mudanas realizadas, a quantidade de captulos compilados por Jacopo, entre outras questes.
86
FORTES, Carolina Coelho. Op.Cit., p.113.
87
Idem.
88
IACOPO DA VARAZZE. Op.Cit.
89
SEYBOLT, Robert Francis. The Legenda Aurea, Bible, and Historia scholastica. Speculum, v. 21, n.3, p. 339-
342, julho de 1946.
45
-46-
de relatos de martrios presentes na LA, optamos por utilizar duas edies da obra. A primeira
a recente edio brasileira de 2003, organizada por Hilrio Franco Jr., com 175 captulos.90
Sua base est na edio crtica de Theodor Graesse, por sua vez, baseada em outras verses, a
saber: a francesa do abade J-B. Roze, de 1967, e a inglesa de Granger Ryan e Helmet
Justificamos a opo por duas edies da LA devido s modificaes que a compilao sofreu
quantos foram os captulos compilados por Jacopo, que variam entre 175 e 182.
Dito isso, buscaremos contornar esses problemas suscitados pela produo da LA,
destinatrios com a sua prpria configurao geral e a individual de seus captulos, tendo em
A LA uma obra constituda por relatos relativamente curtos sobre santos (as) e datas
90
VARAZZE, Jacopo. Op. Cit.
91
IACOPO DA VARAZZE. Op.cit.
92
RICHARDSON, Ernest. Op. Cit. p. 42.
46
-47-
Igreja, e utilizada pelos dominicanos, das festas religiosas, relacionadas a cada corte temporal.
A obra est organizada em cinco partes: inicia com as festas do tempo da Renovao,
indo do Advento ao Natal; segue com as celebraes ocorridas nos perodos da Reconciliao
Lectura Crtica de libros94 acerca da edio da LA feita por Alessandro e Lucetta Vitale
Brovarone, defende que essa organizao das biografias era uma novidade em relao s
organizao dos captulos, ao invs de seguir uma tipologia (milagres, vidas, paixes e outros)
Alain Boureau defende que a distribuio dos relatos revelaria um propsito didtico.
Para o autor, Jacopo no buscou originalidade nos relatos nem individualizou os santos, pelo
contrrio, ele teria construdo uma narrativa com uma proposta universalizante e atemporal,
da obra, como a vida inspirada em Cristo, e nas releituras sobre a Igreja primitiva, com os
47
-48-
episdios com a valorizao do ideal de vida apostlica e no apoio nas Escrituras que seriam
guias na orientao religiosa, nos sermes e na conduo moral da vida. Dentre eles, a
converso (e no combate) dos hereges e dos infiis ou fornecendo material para os sermes
apostlicas dos pregadores ou nas doutrinrias dos professores.97 Este impasse cresceu
sociedade.98
remisso ao Evangelho, o que acreditamos que indicaria seu uso para instruo dos demais
96
Os exempla so relatos breves e de fcil memorizao, cabveis de serem destacados de seu contexto e
utilizados como instrumentos de persuaso nos sermes.
97
Se, por um lado, segundo Richardson, Jacopo vive em um perodo de valorizao da cultura escolstica e da
erudio; por outro, segundo Maria Hernndez Esteban, devido ao advento das heresias e ao crescimento de uma
espiritualidade laica associada a uma pregao popular, esse tambm fora um perodo de valorizao de uma
cultura da pregao. Esta autora completa que a Ordem Dominicana, como brao direito da Igreja, cumpriu um
papel decisivo, provavelmente, por buscar um equilbrio entre esse dois mbitos. ESTEBAN, Maria Hernandez.
Leitura crtica da edio... Op.Cit.
98
Nesse ponto, cabe ponderarmos que o discurso de Jacopo visto, por Boureau, como tradicional cuja natureza
conservadora poderia ser entendida pelo perigo dos movimentos herticos juntamente com qualquer inovao
relacionada f. A tradio seria, portanto, uma tentativa de salvaguardar uma pretensa ortodoxia BOUREAU,
Alain. Op. Cit. p.214.
48
-49-
Isaias, J e Salmos, assim como ao remeter-se a autores cristos (como, por exemplo,
autoridades doutrinrias o apoio erudito necessrio para construir um santoral cuja veracidade
seria validada.
Contudo, por outro lado, o uso recorrente dos exempla e o destaque aos feitos
santidade dos personagens. Richardson tambm destaca que as breves etimologias, que
antecedem a maioria dos relatos sobre santos, possuiriam a mesma conotao alegrica, sem
questo. Assim, o autor destaca sobre as etimologias: The purpose was, however, not
instruction in history but inspiration in religion and he chooses, arranges and treats his
apologtico: a existncia de uma recompensa em manter-se fiel ao ideal cristo, mesmo que
hereges.
este dualismo e as tenses entre pregao e ao, se nos questionarmos sobre os possveis
destinatrios da LA. Como ponto de partida, apontamos um argumento de Hilrio Franco Jr.:
99
No entanto, o propsito no foi a instruo em histria, mas inspirao religiosa e ele escolhe, organiza e trata
seu material de acordo. Idem.
49
-50-
A partir deste trecho, podemos imputar LA trs funes diretamente relacionadas aos seus
como obra de edificao e como fonte de consulta para o preparo dos irmos pregadores.
Portanto, defendemos que Jacopo de Varazze pretendia atingir dois pblicos principais
de formas distintas. O primeiro e mais imediato era formado por clrigos, especialmente, os
considerarmos que a lngua original de redao foi o latim e que parte do material abordava
doutrinais; breves ensaios sobre a histria de elementos particulares da liturgia; notas crticas
sobre os conflitos entre uma fonte e outra, entre outros poderamos circunscrever o pblico
mais direto parte do clero bem educada. O segundo seriam todos os demais cristos,
infiis e a manuteno dos fiis. Somado a isso, ainda percebemos a promoo dos preceitos
religiosos propostos pela Igreja e a colocao da lei divina acima das demais, mesmo dos
poderes imperiais.101
100
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit. p. 12.
101
Acreditamos que essa questo relacionar-se-ia a resqucios da Reforma Eclesistica ou Gregoriana e o
processo de separao das coisas eclesisticas das laicas. Essa distino visava retirar a Igreja e os clrigos do
domnio laico. Contudo, a lei divina, representada pela Igreja, no poderia ser submetida a nenhuma outra.
102
A estrutura conduz o curso da histria. BOUREAU, Alain. Op.Cit. p. 7.
50
-51-
almejado, por Domingos, equilbrio entre estudo e pregao ao compilar uma extensa obra,
cujas leituras forneceriam instruo e material suficientes para garantir a eficcia da prdica.
Em outras palavras, consideramos que se o seu uso inicial era a instruo dos clrigos, seu
objetivo final era tornar mais eficaz a disseminao e o entendimento dos pressupostos cristos
religioso
Nessa parte, refletiremos em como algumas das questes aqui estudadas aparecem na
LA,103 centralizando-nos na relao entre o poder religioso e o secular. Iniciamos, ento, com
uma reflexo mais geral acerca das disputas entre eles e, a seguir, especificaremos nas que
respectivamente.
relatos presentes na LA, de forma mais direta ou no. Encontramos constantes referncias ao
fato do poder representado pela Santa S estar acima do Imperial ou Real. No captulo sobre
Santo Ambrsio acreditamos importante ressaltar a passagem na qual Jacopo trata da relao
que Ambrsio solicitou ao Imperador que perdoasse aqueles que o ofenderam. Apesar de
seguir sua orientao e perdo-los, Teodsio foi instigado pela m ndole dos cortesos e
mandou matar muitas pessoas. To logo soube do ocorrido, o bispo proibiu a entrada do
103
Ressaltamos que as pginas especificadas para os relatos e as citaes realizadas aqui fazem referncia a
edio brasileira de Hilrio Franco Jr..
104
A primeira narrativa est na pgina 358 e a segunda, nas pginas 363-364.
51
-52-
imperador na igreja de Milo, a no ser que este fizesse penitncia para pagar pelos seus
Na segunda narrao desse mesmo episdio, percebemos uma sutil diferena. Nesta,
mais autoridade ao seu relato. Nesta verso, durante uma revolta em Tessalnica, alguns
juzes foram apedrejados pelo povo e o imperador Teodsio, revoltado, mandou matar 5 mil
pessoas, sem diferenciar culpados de inocentes. Quando foi a Milo, foi proibido de entrar na
divina.105 O dominicano caracteriza o bispo como um autntico pontfice por ele no temer
o imperador, o que, em nossa opinio, seria uma crtica aos sacerdotes que se curvavam
Rufino insiste e segue para Milo, mas no consegue alterar o jugo de Ambrsio.
Assim, o imperador decide reencontr-lo e aceitar a punio pelos seus pecados. Aps
105
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit. p. 363.
106
Ibidem, p.364.
52
-53-
sculo XII. Jacopo responde diretamente aos conflitos entre o papado e a dinastia
sculo XIII. Neste sentido, ele posiciona-se acerca do lugar do imperador em relao Igreja,
Pelgio. Assim, narrou a relao entre Oto IV (1198-1215) e Inocncio III, que se encontrava
partir do momento em que o papa pde destitu-lo do cargo. Contudo, como analisamos,
anteriormente, o antema enfraqueceu Oto, fazendo com ele perdesse apoio, sendo destitudo
por outros representantes do poder civil, mas no por Inocncio III, como narra Jacopo.
A seguir, ele continua com a narrativa da relao entre Frederico e a Igreja da seguinte
forma:
Quando Oto foi deposto, elegeu-se Frederico, filho de Henrique, que foi
coroado pelo papa Honrio. Ele promulgou timas leis para a liberdade da
Igreja e contra os herticos. Ultrapassou todos os monarcas em riqueza e
em glria, mas deixou-se enganar pelo orgulho que tinha delas. Foi, de fato,
um tirano da Igreja, pois encarcerou dois cardeais e mandou enforcar os
107
Idem, p.1024.
53
-54-
apresent-lo como um timo aliado s leis da Igreja e colocar que seus atos contra a mesma
foram posteriores, resultados de seu orgulho. Acreditamos que Jacopo no menciona a relao
entre Frederico e o papa Inocncio IV por este ainda estar vivo, durante a redao da obra.
Assim, podemos concluir que, atravs de relatos da LA, Jacopo postula respostas s
defende posies pessoais em relao ao clero e o seu envolvimento com o mbito civil, que
produto das relaes de poder, nas quais seu compilador est inserido.
3. Consideraes parciais
religiosos laicos. Em suma, a sociedade medieval passou por diversas transformaes, ligadas
enfrentava novos desafios com o surgimento dos movimentos religiosos laicos, como as
Ordens Mendicantes, as confrarias, assim como as distintas heresias, resultados de uma busca
A partir desse contexto, pensamos como as relaes estabelecidas para/ com a Igreja e
a Ordem Dominicana assim como entre essas duas instituies influenciaram a produo
108
Ibidem.
109
Veremos essa colocao em relatos contemporneos no prximo captulo com a anlise do martrio
imaginrio de Domingos de Gusmo e a relao com os hereges.
54
-55-
e hagiografia, conclumos que o compilador teria escolhido tal gnero, por este no possuir
variados.
compilao foram o de postular modelos de boa conduta para instruo dos seus irmos e o
entre os fis e a converso dos infiis e hereges. Partindo desta premissa, tambm afirmamos
que Jacopo, ao compilar a LA, posicionou-se politicamente nas relaes de poder entre a
Alm disso, defendemos que a obra representava uma tentativa de atingir o equilbrio
entre erudio e ao. Portanto, a explorao das particularidades de cada vitae que a compe
favorecia seu carter didtico e seu uso na pregao, possibilitando o vnculo entre o leigo e o
santo em questo. Em suma, Jacopo preocupou-se em afirmar que o ideal de vida crist
poderia ser seguido por qualquer um, no entanto, esta mensagem precisaria da ampla
receptividade da obra, proporcionada pela oralidade, ou seja, pela pregao. Em suma: Jacopo
110
VARAZZE, Jacopo. Op. Cit.
55
-56-
Por ltimo, conclumos que, a partir dos discursos com os quais Jacopo teve contato,
ele preocupou-se em contra atacar erros doutrinais especficos associados aos hereges de seu
tempo aparecendo em distintos relatos. Contudo, influenciado pelos conflitos entre o papa e o
poder civil, ele selecionou narrativas que forneceriam material necessrio e adequado para os
56
-57-
CAPTULO 2
da Cristandade
1. Apresentao
Como j assinalamos, a temtica do martrio foi difundida, a partir do sculo II, por
hagigrafos, devido ao advento das perseguies aos cristos, no mbito do Imprio Romano.
Ento como podemos compreender a sua retomada, no sculo XIII, estando presente em
hagiografias e em documentos papais? Essa foi uma das perguntas iniciais de nossa pesquisa.
Este estudo preliminar foi fundamental para a nossa anlise dos relatos dos mrtires, presentes
na LA, no apenas por nos fornecer uma compreenso dos significados que esses personagens
tinham nesse momento, como tambm por auxiliar na nossa interpretao do porqu Jacopo
de Varazze ter reservado a maioria dos captulos a eles, especialmente aos martrios ocorridos
Nesse captulo, exploramos duas vias que selecionamos para compreenso desse
fenmeno: os movimentos herticos e as cruzadas. Ressaltamos que elas foram tratadas tendo
em vista as relaes de poder estabelecidas entre hereges e infiis com a Igreja e com a
cristianismo.
A seguir, iremos analisar o porqu dos hereges serem vistos como um problema para a
57
-58-
heresia ctara. Desse ponto, pensamos como a questo do surgimento dos movimentos
herticos influenciou a produo da LA. Para tanto, correlacionamos as reflexes dessa parte
inicial com a anlise do relato sobre o martrio imaginrio de So Domingos (p.614/ 631).2
cruzadista. importante ressaltarmos que nossa anlise centralizou-se nas cruzadas contra os
infiis, no geral, sem nos especificarmos em uma, j que nossa preocupao reside na
hagiogrficos surgiram a partir do culto aos mrtires, se limitando quase que exclusivamente
s Actas de los mrtires, cujo exemplo mais antigo seria o martrio de So Policarpo, de
meados do sculo II. Contudo, o autor no acredita que essa tenha sido a primeira expresso
os mrtires, que narravam dos ltimos dias de suas vidas at a sua morte.5 Como assinalamos,
2
Cabe sublinharmos que as pginas dos relatos referem-se edio brasileira realizada por Hilrio Franco Jr.
JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos. FRANCO JR., Hilrio (trad.). So Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
3
BAOS VALLEJO, Fernando. La Hagiografa como Gnero Literrio em la Edad Media. Tipologia de Doce
vidas individuales castellanas. Oviedo:. Departamiento de Filologia Espaola, 1989.
4
Ibidem, p. 29.
5
Haveriam ainda outros dois tipos de produo literria sobre os mrtires, os acta ou gesta e as legendas picas
e romanescas. O primeiro grupo de textos tratavam dos interrogatrios e julgamentos, enquanto o segundo
abordava a vida do personagem, estando prximos ao gnero pico ou ao romance histrico.
58
-59-
durante as perseguies aos cristos.6 Eles so norteados por episdios incrveis, sendo
conferiram uma nova significao ao termo grego que designava, originariamente, testemunha
(martyr).
aquele que, apesar de nunca ter visto ou ouvido Cristo em vida, estaria to convencido das
verdades do cristianismo que preferia morrer a renegar sua f. Blasucci afirma que o mrtir
seria a testemunha perfeita de Cristo (imitatio Christi), j que o imitava na vida e na morte,
Cristo sobre o mal,9 sendo a extenso do seu sacrifcio de sangue, colocando-se como
Charles Altman, no artigo Two types of oppositionand the structure of saints lives,10
argumenta que as narrativas sobre os mrtires antigos possuem, necessariamente, uma forte
oposio entre esses e seus perseguidores, com um desenrolar concreto de eventos: a priso,11
o interrogatrio e o martrio.
Calavia Saz defende que as notcias sobre as perseguies aos cristos circulavam devido ao
6
Di Berardino ressalta que o culto aos mrtires comeou a ganhar contornos especficos como resultado do
prprio nascimento da literatura hagiogrfica . DI BERARDINO, Angelo et all. Martrio. In: _____. (Org.)
Dicionrio Patrstico e de Antigidades Crists. Petrpolis: Vozes, 2002. p.895-902. p. 896.
7
MORENO, Jos Garrido. La pena de muerta em la Roma Antigua: Algunas reflexiones sobre el martrio de
Emeriterio y Celedonio. Kalakorikos, n. 5, p. 47-64, 2000. p. 49.
8
BLASUCCI, Antonio. Martrio, imolao, sacrifcio. In: GUIMARAES, Almir Ribeiro (Org.). Dicionrio
Franciscano. Petrpolis: Vozes, 1999. p.416-420. p. 416.
9
Lucy Grig, no artigo Torture and truth in late antique martiryology, argumenta que os smbolos de tortura ou
morte atrelados s iconografias dos mrtires representavam a sua vitria sobre os instrumentos utilizados para
causar-lhes os suplcios. GRIG, Lucy. Torture and truth in late antique martiriology. Early Medieval Europe, v.
2, n.4, p.321-336, 2002.
10
ALTMAN, Charles. Two types of Oppositionand the structure of latin saints Lives. Medievalia et Humanistica,
n.6, p.1-11, 1975.
11
Nesse ponto, cabe ressaltarmos que a prtica do crcere foi adotada apenas no Alto e no Baixo Imprio,
figurando como parte da pena capital. MORENO, Jos Garrido. Op. Cit, p.58.
12
SAZ, Oscar Calavia. Religio e restos humanos. Cristianismo, corporalidade e violncia. Antropologia em
primeira mo, n. 55, p. 1-27, 2003. Disponvel em: http://www.antropologia.ufsc.br/55.%20oscar-
cristianismo.pdf. ltimo acesso: 17/03/2008.
59
-60-
de acepes sobre essas afirmando que Tertuliano insistiu no carter implacvel delas,
enquanto Orgenes ressaltou que Deus protegeu muitos cristos para evitar uma guerra que
acabasse com a comunidade crist. Ele conclui que os discursos culminavam no argumento de
descomunal.13
O autor tambm afirma que as fontes da poca indicariam que os relatos martiriais
eram feitos para serem lidos em voz alta para multides de peregrinos e devotos: o objetivo
era o de criar uma exaltao emotiva propcia aos fins da terapia, tratando-se de um modelo
Segundo Lucy Grig, no artigo Torture and truth in late antique martiriology,15 o
mrtir era um soldado de Cristo que confrontava a fora do mal, representada, nesse
momento, pelo estado romano. Nessa lgica, este personagem desejaria a sua morte,
exarcebando as torturas, j que, dessa forma, quanto maiores fossem os seus sofrimentos,
maior seria a demonstrao da vitria crist coroada com a sua morte. Segundo a autora, os
construo desses personagens que invertiam as relaes de poder nas torturas17 e nas
execues. Nestas, o mrtir deseja a sua morte, procurando exacerbar os suplcios recebidos,
dentro da lgica de que quanto maior forem os sofrimentos, maior ser a demonstrao da
13
Ibidem, p.9.
14
Ibidem, p.10.
15
GRIG, Lucy. Op.Cit., p. 323.
16
O autor Oscar Calavia Saz defende que a narrativa das crueldades dos suplcios serviria para construo do
culto aos santos. SAZ, Op.Cit..
17
Segundo a autora, no Imprio, todos eram submetidos ao uso da fora no interrogatrio (questio per tormenta),
j que esta seria a nica forma de garantir a verdade. GRIG, Lucy. Op.Cit., p.323.
60
-61-
(mrtir) no torturado para confessar seu crime a no adorao dos deuses , mas sim para
refut-lo.18
Aps o reconhecimento do cristianismo como religio oficial pelo Imprio, Nri de Almeida
Souza, no artigo Hipteses sobre a natureza da santidade,19 afirma que a Igreja iniciou um
processo de exaltao da vida asctica,20 contudo, mantendo laos com o ideal de martrio,
sendo identificado como branco ou espiritual. Este era caracterizado por uma intensa ascese,
com a valorizao da exposio do corpo aos limites naturais, atravs de penitncias, das
proximidade: a superao do limite fsico. Ou seja, os santos eram aqueles que iam alm da
texto The White martydom of Kateri Tekakwitha,21 ao analisar o caso desta beata do sculo
XVII, argumenta que o martrio espiritual a total oferenda da vida do santo a Deus. Nessa
modalidade, os santos morreriam para o mundo e seus prazeres, seguindo uma vida herica de
devoo ao Senhor.
Essa mudana tambm teria tido repercusses em relao ao culto aos mrtires, no
qual Angelo di Berardino destaca trs importantes alteraes. A primeira foi a gradual
eliminao de qualquer associao que poderia fazer crer que a igreja orava pelos mrtires,
afirmando que esses personagens que rezavam por todos. O culto no os tornaria iguais a
18
GRIG, Lucy. Op.Cit. p.328.
19
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4,
p.11-46, 2002.
20
Segundo Blasucci, at o final do sculo IV, somente os mrtires eram objetos de honra e cultos. Assim, com o
fim das perseguies foram encontrados equivalentes ao martrio de sangue. O autor destaca que, nesse
sentido, o ascetismo e a virgindade constituram ttulos a serem venerados pelos fiis e pela igreja. BLASUCCI,
Op.Cit..
21
LEMIRE, Paula Anne S. The White martyrdom of Kateri Tekakwitha. Disponvel em:
http://www.catholic.org/featured/headline.php?ID=980 ltimo acesso: 11/06/2007.
61
-62-
Deus, pelo contrrio, os deixaria em sua condio humana. Em segundo lugar, houve a
supresso dos banquetes fnebres em sua homenagem, substitudos por viglias de orao. Por
ltimo, a prpria liturgia especfica a esses personagens passou a ser caracterizada por leituras
nos textos, foram norteadas pela unio de quatro noes: a ecclesia, pois sem a Igreja no
haveria o martrio; o dom da vida, pelo mrtir simbolizar a doao da vida em nome de um
amor maior representado pela f; a cristologia, que seria seguir o exemplo de Cristo que deu a
vida pelos irmos; e a defesa da verdade do Evangelho, j que o mrtir no morre por si, mas
representante da Igreja, no era mais perseguido e morto por no negar sua f, mas sim devido
Nessa nova lgica do martrio sangrento, o papel do pregador ganha uma conotao
diferenciada, j que a prdica representaria uma outra forma de combate aos que eram
mais colocavam a pregao como um dos objetivos do santo, passando essa a figurar como um
interior do cristo que estaria disposto a dar a vida em nome da cristandade, caso a situao se
22
DI BERARDINO, Angelo. Op.Cit. p.897.
23
FISICHELLLA, Rino. Martrio. In: ____. ; PACOMIO, Luciano & PADOVESE, Luigi (Orgs.) LEXICON.
Dicionrio Teolgico Enciclopdico. So Paulo: Loyola, 2003, p.467- 468.
24
SOUZA, Nri de Almeida. Op.Cit. p.12.
62
-63-
morte do santo por testemunhar a sua f na defesa dos inimigos da cristandade (martrio de
em manter-se fiel ao ideal cristo, mesmo que em condies adversas. Por ltimo,
acreditamos que esta ltima modalidade estaria associada ao martrio branco, mas guardaria
Diante dessas colocaes, podemos concluir que o sculo XIII foi marcado pelo
especficos, adaptadas s associaes estabelecidas com e pela a Igreja, ao longo dos sculos,
indicando a importncia dessa temtica nas operaes de convencimento utilizadas por esta
25
Com o intuito de exemplificarmos essas modalidades, utilizamos os casos de Clara e Francisco de Assis,
citados por Blasucci. Primeiro, ele destaca que Clara se manteve no claustro colocando-se como uma oferenda
sacrifical ao longo de sua vida, na esperana de ser coroada com a palma do martrio. Em outras palavras,
acreditamos que ele esteja fazendo meno ao desejo dela em ter sua vida asctica reconhecida, ou seja, do seu
martrio branco. Alm disso, destaca que os hagigrafos de Francisco de Assis narraram seu desejo de receber o
martrio de sangue, visto as suas trs viagens s terras dos infiis em busca deste. Portanto, trabalha, justamente,
com a associao entre o martrio e a pregao como meio de alcan-lo. (Cf. BLASUCCI, Antonio. Op.Cit.
p.418). Dessa forma, ns tambm podemos pontuar que a retomada do martrio no fora um fenmeno especfico
LA.
63
-64-
Clifford Hugh Lawrence, no livro The Friars. The impact of early mendicant
movement on Western society,26 afirma que, nesse perodo, paralelo a certo renascimento
ligao entre a vocao crist e um engajamento com o mundo secular. Em resposta s novas
Segundo Lawrence, no fim do sculo XIII, aps diversas tentativas dos clrigos para
pediu auxlio aos cistercienses, que iniciaram misses em Languedoque, sob superviso de
Arnald Amaury, abade de Cteaux.27 Em 1203, junto ao bispo de Osma Diego de Azevedo,
28
que se encontrava em uma misso diplomtica, Domingos de Gusmo, na condio de
que teria lamentado, com Diego, o insucesso da investida contra os hereges. Este teria se
26
LAWRENCE, Clifford Hugh. The Friars. The impact of early mendicant movement on Western society. New
York: Longman, 1994.
27
Bolton ressalta que a misso contaria tambm com a presena e liderana de outros cistercienses: Pedro
Castelnau e Raul Frontefroide (BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1983. p.88).
28
Domingos de Gusmo era filho dos nobres Flix de Gusmo e Joana de Aza Ele nasceu em 24 de agosto de
1170, em Caleruega (Castela), falecendo no dia 6 de agosto de 1221, em Bolonha. Por volta de 1186, foi enviado
escola em Palncia, com o objetivo de ser clrigo. Em 1196, o jovem Domingos ingressou no cabido de Osma,
tendo contato com a vida monstica, sob a Regra de So Agostinho. Seus hagigrafos destacam suas aes
hericas e seu comportamento cristo mpar, seu dom como pregador, sua austeridade pessoal e suas viglias e
oraes freqentes. Contudo, procuravam sempre testemunhar sua humanidade, afastando-o de qualquer
aspecto divino. Sobre a vida de Domingos cf., entre outros: GARGANTA, Jos Maria de. Santo Domingo de
Guzmn visto por sus contemporneos. Madri: BAC, 1946; MANDONNET, Pierre. St. Dominic and His Work.
Londres: Herder Book, 1948. ASHLEY, Benedict. The Dominicans. Minnesota: Michael Glazier Book/The
Liturgical Press, 1990. HINNEBUSCH, William. The Dominicans. A Short History. Dublin: Dominican
Publications, 1985; VICAIRE, Marie-Humbert. Saint Dominic and his Times. Nova Iorque: MacGraw-Hill,
1964.
29
HINNEBUSH, William. Op. Cit. Disponvel em: http://www.op.org/domcentral/trad/shorthistory/default.htm.
Acesso em: 14/04/2007.
64
-65-
oferecido para auxiliar uma nova misso composta por alguns desses abades que seguiriam
pregando e vivendo sob pobreza involuntria. Segundo Bolton, o papa Inocncio III teria
Durante essas viagens, teria ocorrido um dos mais famosos episdios da vida de
Em 1207, Lawrence defende que o Papa teria concordado com a organizao de uma
Cruzada para confisco dos bens dos hereges, em Midi, devido aos poucos resultados
contra os hereges pelo uso da fora.30 Em 1209, sob comando de Simo de Montfort,
Inocncio comeou a organizar o movimento que seria conhecido como Cruzada Albigenseda
pastorais. Por volta deste mesmo ano,31 fundou uma casa religiosa em Proille, na diocese de
Convento de Santa Maria de Proille, onde se seguia uma forma de vida austera, dentro de uma
ganharam destaque por serem vistas como centrais para impedir que elas se desviassem,
30
LAWRENCE, Clifford Hugh. Op.Cit. p. 8.
31
Essa data motivo de debate, pois, segundo Brenda Bolton, ele teria fundado o convento em 1206. A autora
destaca que o perodo entre 1209-1214 da vida de Domingos obscuro, sendo conhecido em relatos parciais
sobre Prouille de Jordo da Saxnia, sucessor de Domingos de Gusmo.
32
MONTENEGRO, Margarita Cantanera e CANTANERA, Santiago. Las rdenes Religiosas en la Iglesia
Medieval. Siglos XIII e XV. Madrid: Acor/ Libros, S.L., 1998. (Cuardenos de Historia, 49).
65
-66-
Tolouse,33 obteve a aprovao oral da Ordem que passava a se chamar Ordem dos Irmos
Pregadores, alm de prestar conta dos rendimentos da mesma. Porm, cabe sublinharmos que,
segundo o cnone XIII,34 as novas casas religiosas eram obrigadas a adotar uma regra j
Honrio III (1216-1227), atravs da bula Religiosam vitam.36 Aps esse episdio, os
dominicanos estabeleceram-se como pregadores, cuja principal caracterstica foi a busca pelo
professores.37 Segundo Lawrence, em 1218, o papa pediu assistncia da ordem com a tarefa
da pregao no combate aos herticos. O pedido foi atendido e misses de pregadores saram
conhecimento dos preceitos cristos e a prdica, ou seja, entre contemplao e ao. Assim
33
O bispo Diego de Osma faleceu em 1208, deixando Domingos comandando a misso de Montpellier. Nesse
mesmo ano, o dominicano comeou a pregar pelo sul francs.
34
(...) quien desea fundar uma nueva casa religiosa debe recibir la regla y la institucin de alguna de las
ordenes apropadas (FOREVILLE, Raimunda. Lateranense IV. Vitria: Eset, 1973. p.170).
35
LAWRENCE, Clifford Hugh. Op.Cit. p. 71.
36
Segundo Marie-Humbert Vicaire, uma segunda bula, expedida em janeiro de 1217, reconhecia a novidade das
idias de Domingos e aprovava sua fundao como uma ordem dedicada pregao. VICAIRE, Marie-Humbert.
Saint Dominic and his Times. New York: MacGraw-Hill, 1964. p.152.
37
MANDONNET, Pierre. St. Dominic and His Work Disponvel em:
http://www.op.org/domcentral/trad/domwork/default.htm. Acesso em: 14/04/2007.
38
VICAIRE, Marie-Humbert. Freres Precheurs. Dictionnaire de Spiritualit Disponvel em:
http://www.op.org/domcentral/study/ashley/ds00intr.htm. Acesso em: 15/04/2007.
39
LEHNER, Francis C. (Trad.) The Primitive Constitutions of the Order of Friars Preachers. Disponvel em:
http://www.op.org/domcentral/trad/domdocs/default.htm. Acesso em: 14/ 04/ 2007.
40
Hilrio Franco Junior, na apresentao da edio brasileira de Legenda urea, sublinha a erudio dos
dominicanos e dos franciscanos ao apontar que eles possuam uma presena hegemnica nas Universidades.
66
-67-
teolgicos, era um critrio para os irmos que desejassem pregar. O processo de recrutamento
de novos irmos era muito importante, iniciando com a seleo dos novios, feita em grupos
homem deveria no s estar apto a pregar, mas ser maduro, discreto, bem posicionado mental,
contato com homens em variadas circunstncias e evitar agir como muitos, de forma rude e
indiscreta.42 Alm do mais, o pregador, quando requisitado por padres das parquias locais e/
ou por bispos, deveria ser atencioso o suficiente para no causar nenhum atrito com o clero
local.
Assim, durante o sculo XIII, comeou a se constituir uma proximidade entre a Ordem
centralizado.
Alm disso, eles obtiveram papel de destaque junto s cruzadas, no combate aos hereges, na
Contudo, o papel de extirpar a heresia, em especial a ctara, foi reservado, principalmente, aos irmos
pregadores. JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos ...p.13.
41
LAWRENCE, Clifford Hugh. Op.Cit. p.72.
42
RICHARDSON, Ernest. Op. Cit. p.25. Contudo, o autor no especifica nem se estes muitos seriam clrigos.
43
Gregrio IX, sucessor de Honrio III, tambm encarregou os dominicanos de estabelecerem o ensino teolgico
na Universidade de Toulouse, que se tornou uma clula de combate aos movimentos considerados herticos e
defesa da verdade postulada pela Igreja.
67
-68-
missionrios, seja no combate aos movimentos herticos. A seguir, veremos como a essa
ressaltar que nos focalizaremos nessa heresia devido a sua importncia na constituio da
Ordem Dominicana.
4. A heresia ctara
escola, tal como se dava com as escolas filosficas.45 A priori, no possua nenhuma
conotao pejorativa.
cristianismo surgiram variadas interpretaes sobre a doutrina pregada por Jesus Cristo,
contudo nenhuma fora considerada hertica. Ele defende que a construo pejorativa do termo
heresia47 foi concomitante ao processo de discusso doutrinria que buscava estabelecer certas
verdades, ntida em dois eventos emblemticos: o I (325 d.C.) e o II (787 d.C.) Conclio de
Nicia. Em nosso trabalho, utilizamos a idia proposta pelo autor: a conotao negativa
44
GROSSI, Vittorino. Heresia Hertico. In: DI BERARDINO, A. (Org.) Dicionrio Patrstico e de
Antigidades Crists. Petrpolis: Vozes, 2002, p.665-666.
45
Ibidem, p. 665.
46
MNGUEZ, Csar Gonzalz. Religon y Hereja. Clo & Crmen: Revista del Centro de Historia del Crimen
de Durango, n. 1, p. 19-21, 2004.
47
Para mais informaes acerca das heresias medievais, cf. FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. So Paulo;
Perspectiva, 1977; HERVE, Masson. Manual de herejas. Madrid: Rialp, 1989; GRANDA, Cristina et
Fernndez, Emilio Mitre. Las grandes herejas de la Europa cristiana (380- 1520). Madrid: Istmo, 1983;
RIBEIRO JR., Joo. Pequena Histria das heresias. Campinas: Papirus, 1989.
68
-69-
define herege como aquele que buscava um aperfeioamento espiritual a margem do que foi
oficialmente estabelecido. No mbito cristo, essa noo perde sua neutralidade conforme o
sido batizado, ou seja, tendo se submetido ao conjunto de dogmas e verdades aceites pela
Igreja, passa a negar ou duvidar desse conjunto ou de parte dele, interpretando-o livremente e
verdades das quais est convicto.50 Em outras palavras, a construo da identidade de herege
necessita da existncia de outra identidade, externa e diferente dela, que a qualifique como tal,
representava uma ameaa unidade crist sob o controle da Igreja por significar a perda de
fiis e o no-reconhecimento do erro, e sim a sua continuidade. Por outro lado, a Santa S
foi importante para a prpria constituio e a afirmao dos valores da Igreja, como tambm
48
FERNANDEZ, Emilio Mitre. Edad Mdia Hertica: lo real y lo instrumental. In: RUANO, E.L. (Coord.)
Tpicos y realidades de la Edad Media (III). Madrid: Real Academia de la Historia, 2004. p.135 211.
49
THOM, L.M.S., Da ortodoxia heresia: os valdenses. (1170-1215). Dissertao (Mestrado em Histria)
Programa de Ps-graduao em Histria. Curitiba: Universidade Federal do Paran, 2004.
50
Ibidem, p.20.
51
A partir do sculo XII o termo heresia passou a designar a totalidade dos movimentos dissidentes. GENICOT,
Leolpold. Europa en el siglo XIII. Barcelona: Labor, 1976.
69
-70-
Temtico do Ocidente Medieval,52 resume essa idia ao afirmar que a heresia existe onde a
Emilio Mitre Fernndez e Cristina Granda, no livro Las grandes herejas de la Europa
cristiana (380- 1520), de 1983,54 completam o argumento ao afirmarem que a heresia seria,
seguir, faz parte desses movimentos heterodoxos que, de qualquer modo, e, sobretudo
Dominicana
as reformas e os conclios que objetivavam destacar e refutar os erros. O autor ainda destaca,
dos maiores desafios cristandade, tanto pela sua abrangncia, quanto pela sua durao,
afirmando que:
52
ZERNER, Monica. Heresia. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J-C (Coord.). Op.Cit. p. 503-521.
53
Ibidem, p.521.
54
GRANDA, Cristina et Fernndez, Emilio Mitre. Op.Cit.
55
NELLI, Ren. Os ctaros. Lisboa: Edies 70, 1980. p.23.
56
Ressaltarmos que, segundo Emilio Mitre Fernndez, no texto Edad Media Hertica. Lo real y lo instrumental,
op. cit, e Robert Ian Moore, no livro La formacin de una sociedad represora. Poder y disidencia en la Europa
occidental. 950- 1250, publicado pela editora Crtica em 1989, os inimigos da cristandade eleitos pela Igreja
variaram, durante a Idade Mdia, segundo as relaes de poder estabelecidas. Nesse sentido, os autores destacam
os pagos, herticos, infiis, imperadores.
57
Para mais informaes sobre o catarismo, cf. BRENON, Anne. La verdadera historia de los ctaros. Vida y
muerte de una iglesia ejemplar. Barcelona: Martnez Roca, 1997; DALMAU, Antoni. Los ctaros. Catalunya:
UOC, 2002; DANDO, Marcel. Les origines du catharisme. Paris: Pavillon, 1967; GRIFFE, Ellie. Le Languedoc
cathare de 1140 1190. Paris: Letouzey e An, 1971; SDERBERG, Hans. La rligion des Cathares; tude
sur le gnosticisme de la basse antiquit et du Moyen ge. Sucia: Uppsala University Press, 1949.
70
-71-
O local de surgimento dos primeiros ctaros uma questo que suscita diferentes
possibilidades. Segundo Joo Ribeiro Junior, no livro Pequena Histria das heresias,59 o
movimento teria iniciado em Albi, no sul da Frana, contudo, no artigo Ctaros: Herejes o
Buenos hombres?, Martn Alvira Cabrer60 defende que teria sido na Renania, no norte da
Frana. Ren Nelli, no livro Os Ctaros61 defende que esse movimento desenvolvera-se
principalmente na regio da Occitnia62 e apresentar-se-ia como uma longa luta entre o norte
e o sul francs.
principalmente, para Languedoc.63 Cabrer defende que o catarismo teria se fixado no territrio
francs por este ser um porto de desenvolvimento cultural aberto a novas idias religiosas.
Acreditamos que o outro fator apontado pelo autor tenha sido mais importante nessa difuso:
a fragmentao poltica.
Roma, vinculada com a nobreza. Um dos pontos de oposio entre o catarismo e a Igreja
como corrompida pelas prticas do nicolasmo e simonia. Dessa forma, segundo Ren Nelli:
58
FERNNDEZ, Emilio Mitre. Op.Cit. p.167.
59
RIBEIRO Jr., Joo. Pequena Histria das heresias. Campinas/ SP: Papirus, 1985. p.72.
60
CABRER, Martn Alvira. Ctaros: Herejes o Buenos hombres? Clo: Revista de historia, n. 40, p. 20-27,
2005.
61
Op.Cit.
62
A Occitnia abrangia as regies da Provena, o Limoges, a Auvernha, a Gasconha, o Languedoc e o Delfinado
entre outras, englobando partes da Itlia, Frana, e um pequeno territrio Espanhol.
63
Languedoc foi anexado Frana em 1229, pelo Tratado de Meaux.
71
-72-
lhes apetecia, sem respeitar a Trgua de Deus; manter, para tal efeito,
bandos de homens armados que assolavam o pas; e, como no eram, de
modo algum, anti-semitas, no hesitavam em empregar judeus e em lhes
confiar postos em que tivessem autoridade sobre os cristos: atos que a
Igreja Romana proibiria se tivesse poderes.64
Ressaltamos que o catarismo comeou a se difundir pelo norte italiano; por Milo,
pela Lombardia e at mesmo por Florena. Segundo Joo Ribeiro Junior, o desenvolvimento
desse movimento ocorreu tambm por questes polticas, j que os ctaros contaram com o
apoio dos gibelinos, aliados ao Sacro Imprio Romano, e contrrios aos guelfos, favorveis ao
papado.65
O catarismo uma heresia dualista que defendia o duplo princpio eterno do bem e do
mal, tendo como texto de referncia o Evangelho de So Joo, considerado o nico escrito
Deus seria o esprito bom, e o mundo, por ele criado, seria povoado por seres
espirituais participantes da natureza divina. J o material seria fruto de uma fora puramente
maligna. Os homens seriam criaes do Deus bom, e, portanto, teriam a chance de alcanar a
esfera espiritual pela via da purificao. Para tanto, deveriam combater a carne que
como outra influncia, no acreditamos que essa possibilidade seja vivel, tendo em vista as
64
NELLI, Ren. Op.Cit. p.11.
65
RIBEIRO Jr., Op.Cit.p.74.
66
Idem. p.73
67
LAWRENCE, Clliford Hugh. Op. Cit. p.4.
72
-73-
eucaristia; opunham-se venerao aos santos, orao dos defuntos e aos sacramentos
cristos. Alm disso, no prestavam nenhum tipo de juramento, base das relaes feudais na
Eles pregavam uma vida em profunda ascese pobreza voluntria, castidade, jejum ,
contudo esta estaria ao alcance pleno de poucos, chamados de perfeitos, bons cristos ou
dualista, como tambm a instalao de uma hierarquia ctara no quadro de dioceses bem
delimitado.72 Esse arranjo estrutural figurou como mais um motivo de rivalidade com a Igreja
Romana.
68
NELLI, Rne. Op.Cit. p. 10.
69
A Igreja Ctara era formada por dois grupos distintos: pelos perfeitos ou eleitos, que seriam os escolhidos para
o encontro com o Deus bom. A profisso das idias era realizada apenas pelo grupo de ministros ctaros
(perfecti). Os crentes ou auditores participavam na qualidade de ouvintes. Havia duas cerimnias principais: o
consolamentum e o melioramentum. O primeiro era um tipo de batismo, que se destinava aos perfeitos. Aps o
recebimento deste, eles seguiriam uma vida de rigorosas penitncias, renunciando s propriedades pessoais, ao
casamento e atividade sexual; assim como realizando uma permanente abstinncia de alimentos de origem
animal, inclusive ovos e leite. O segundo era o nico rito obrigatrio para os crentes, que adoravam a presena
do Esprito Santo nos perfeitos e, ao mesmo tempo, pediam para serem aperfeioados. Alm disso, eles se
comprometiam a receber o consolamantum na hora da morte e se integrar totalmente a Igreja Ctara. NELLI,
Rne. Op.Cit..
70
Os ctaros consideravam-se os mais puros devido a seu padro de vida. A prpria palavra ctaros vem do
grego kathars, que significa puro.
71
FERNANDZ, Emilio Mitre. Op.Cit. p.166.
72
NELLI, Rne. Op.Cit. p.54.
73
-74-
Inocncio III (1198 1216) foi o primeiro papa a sistematizar um programa de luta
Toulouse, conclamou a Cruzada Albigense que objetivava, entre outras coisas, erradic-los da
Domingos de Gusmo75 e Pedro de Castelneau. Liderada pelo legado papal, Arnaldo Amauri,
a cruzada objetivava a completa derrota dos hereges que pululavam nas cidades e fortalezas
massacre de Blsiers, devido a seu teor sanguinrio. Esse fato ganhou destaque por ter
episdio, teria circulado, oralmente, uma anedota que fora apreendida pelo escritor
Dialogus Miraculorum.76 Nesta obra narrado que, antes da invaso, um dos guerreiros teria
perguntado ao legado papal Arnaldo Amauri sobre como distinguir quem era herege e quem
no era durante o ataque, recebendo a seguinte resposta: Matem todos, Deus escolher os
seus!
73
Segundo Martn Alvira Cabrer, a represso violenta teria iniciado entre 1178 e 1181 com o estabelecimento
das primeiras operaes armadas para combater esses inimigos utilizando a justificava da Guerra Santa da qual
trataremos na segunda parte deste captulo com a implementao das Cruzadas.
74
Neste ponto, ressaltamos que o Rei da Frana, Felipe Augusto, por nunca ter se considerado vassalo do papa,
manteve-se fora desse movimento. Apenas interveio, aps a derrota dos hereges, para anexar os territrios de
Raimundo VII, conde de Toulouse, e os de seus vassalos, o visconde de Blziers e o conde de Foix (RIBEIRO
JR, Joo. Op.Cit. p.76).
75
Domingos de Gusmo comeou a pregar junto cruzada tendo sua atitude copiada por outros, como o bispo
Diogo; o abade Arnaldo de Citeaux; o bispo Foulques de Toulouse. Contudo, durante o desenrolar da cruzada, o
dominicano rumou para Midi.
76
Para a traduo para o espanhol moderno dessa obra, cf. CESRIO DE HEISTERBACH. Dialogo de milagros
de Cesreo de Heisterbach. Zamora: Monte Casino, 1998.
74
-75-
utilizando o terror como arma de guerra.77 Simo morreu em 1218, aps seu retorno a
Montsgur, foi derrubado. Contudo, esse episdio no figurou como a derrota completa do
movimento, j que ainda eram encontrados vestgios de segmentos ctaros no sculo XIV.78
abalados com o catarismo.79 Essa questo aparece no cnone III do conclio de Latro (1215),
organizado quase uma dcada depois do incio dessa cruzada por Inocncio III: los catlicos
que habiendo tomado la cruz se armen para dar caza a los hereges, gozarn de la indulgncia
y del santo privilegio concedidos a los que van em ayuda de Tierra Santa.80 Assim, temos um
incentivo aos combatentes das heresias, com a promessa da indulgncia e dos mesmos
em relao s formas utilizadas pela Igreja para lidar com aqueles que eram considerados
movimento cruzadista para o combate com a fora armada, as reformas e os conclios que
objetivavam a identificao e refutao do erro. Inocncio III pode ser considerado como o
nico papa que sistematizou um projeto implementando quase todas essas formas de
combate.81
77
NELLI, Rne. Op. Cit. p.29.
78
Segundo Joo Ribeiro Junior, os albigenses se refugiaram na Itlia, contudo foram descobertos pela
Inquisio. Desde ento, espalharam-se pelos pases da Europa Ocidental e Oriental. Resistiram mais tempo nos
Alpeninos e nos Alpes da Lombardia, desaparecendo por volta de 1400. RIBEIRO JUNIOR, Op. Cit., p. 80.
79
A represso s heresias ocorreu tambm atravs dos conclios, dos quais destacamos o III Conclio de Latro
(1179) e o IV Conclio de Latro (1215), que ser tratado neste captulo.
80
FOREVILLE, Raimunda. Op.Cit. p. 160.
81
BOLTON, Brenda. Op.Cit. p.196.
75
-76-
De acordo com Bolton, o IV Conclio de Latro foi fruto de mais uma tentativa de
marcado carter normativo que visava a organizao institucional do corpo eclesistico sob a
liderana do Papa. Inclusive, a questo da heresia abordada nos trs cnones iniciais da ata
conciliar segue o mesmo ideal de centralizao de todo o corpo eclesistico tendo como
ponto central o Papa como portador da plenitude potesta, tema central destes cnones, visava
O primeiro cnone trata dos preceitos ortodoxos, defendidos pela Igreja com a
afirmao da existncia de apenas uma Igreja Universal. Neste, temos alguns elementos
contudo com a preocupao de afirmar que os ritos deveriam seguir conforme o estabelecido
pela ortodoxia.84
O terceiro85 destacou-se em nosso estudo por trs motivos. Primeiro, por tratar de
82
Ibidem ,p.130.
83
SILVA, Andria C. L. Frazo da. O IV Conclio de Latro: Heresia, Disciplina e Excluso. In: _____. e
ROEDEL, Leila.R. Semana de Estudos Medievais, 3, Rio de Janeiro, 25 a 28 de abril de 1995. Rio de Janeiro:
PEM - UFRJ, 1995. p. 95-101. Disponvel em: http://www.ifcs.ufrj.br/~pem/textos.htm. ltimo acesso:
11/06/2007. p.97.
84
Neste ponto, ainda destacamos um elemento que permeou alguns dos cnones do Conclio: a normatizao dos
costumes e das prticas eclesisticas e laicas.
85
Apesar da nossa opo em no trabalhar com o segundo cnone, cabe mencionarmos que este trata do
Joaquimismo, identificando os preceitos defendidos e refutando-os para, por fim, conden-los.
86
FOREVILLE, Raimunda. Op.Cit. p. 159.
76
-77-
A seguir, o cnone passa a determinar as penalidades aplicadas aos que forem suspeitos de
opinies herticas e no conseguirem provar a inocncia, aos condenados como hereges e aos
parte do mbito eclesistico, como essas relaes foram apreendidas por Jacopo e
influenciaram ou no a redao da LA? Para responder essa questo, iremos pensar como isso
Temtico do Ocidente Medieval,87 por volta dos sculos IV e V, teria iniciado um processo de
sacralizao do exrcito imperial, legitimado pela Igreja. Contudo, essa legitimao foi
controlada e restrita, com a constituio da noo de guerras justas por Agostinho, bispo de
Hipona: so ditas justas todas as guerras que vingam injustias, quando um povo ou Estado,
a quem a guerra deva ser feita, deixou de punir os seus ou de restituir aquilo que foi saqueado
em meio a essas injustias.88 Ele defendia que um cristo poderia tomar parte em alguns
casos especficos de combate, objetivando sempre a restaurao da paz iluminada por uma
justia autntica.89 Nesse sentido, estabelecia-se a idia de que um homem cristo era sempre
portador da paz, mesmo ao utilizar-se de armas, j que possua como finalidade o combate das
injustias.
No entanto, por volta dos sculos X e XI, a ausncia de um poder central forte
ameaava uma pretensa paz na cristandade. Em outras palavras, a Igreja perdia o controle
almejado sobre a violncia que havia permitido para a proteo dos cristos. Franco Cardini
87
CARDINI, Franco. Guerra e Cruzada. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J-C (Coords.). Dicionrio Temtico do
Ocidente Medieval. 2v., 1v. So Paulo: Imprensa Oficial/ EDUSC, 2000. p. 473-487.
88
SANTO AGOSTINHO Apud DEMURGER, Alain. Os Cavaleiros de Cristo. Templrios, teutnios,
hospitalrios e outras ordens militares na Idade Mdia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p.20.
89
CARDINI, Franco. Op. Cit., p. 475.
77
-78-
aponta que nessa questo havia o destaque do sofrimento dos pauperes, as violncias
snodos de paz. Com isso, houve o desenvolvimento de dois movimentos: o primeiro foi o
juramento conhecido como Pax Dei (Paz de Deus), que objetivava proteger pessoas
segundo foi a tentativa de impedir a prtica da violncia nas datas consideradas sagradas, com
a Tregua Dei (Trgua de Deus). Neste sentido, acreditamos que o fim central desses
processos que podem ser percebidos na utilizao crescente de membros do exrcito pelo
Cristo) em alguns textos do sculo XI. Alain Demurger destaca como a prpria utilizao da
cavalaria contra elementos do poder temporal fora enquadrada na idia de guerra justa.
guerra justa?
guerreiros franceses para rumarem para o Oriente, onde os cristos eram ameaados pelos
como o primeiro passo para a organizao e a estruturao das cruzadas.92 Cardini argumenta
90
Idem, p.477.
91
COLE, Penny J. The Preaching of the Crusades to the Holy Land, 1095-1270. Cambridge: Medieval Academy
Books, 1991.
92
Para mais informaes sobre as Cruzadas, cf. BARBER, Malcolm, Crusaders and Heretics, 12th - 14th
centuries. Aldershot: Variorum, 1995; BARKER, Ernest. The Crusades. London: Oxford University Press, 1923;
BENVINISTI, Meron. The Crusaders in the Holy Land. New York: MacMillan Publishing Company, 1972;
BILLINGS, Malcolm, The Crusades: a History. United Kingdom: Tempus Publishing, 2000; MARVIN,
Laurence E W. Thirty-nine Days and a Wake-up: the Impact of the Indulgence and Forty Days Service on the
Albigensian Crusade, 1209-1218. The Historian, v.65, n.1, p.75-94, 2002; QUESADA, Ladero et NGEL,
78
-79-
que a guerra na Terra Santa ou na Espanha, aps esse pedido do papa, chamou a ateno de
diversos cavaleiros que estavam dispostos a se sacrificarem na defesa dos santurios cristos e
dos peregrinos.93
como:
Segundo o autor, as Cruzadas teriam como antecedente a proteo dos peregrinos. Assim,
vamos nos focar em uma influncia relacional das peregrinaes com o ideal norteador da
Ramos e Demurger fazem a associao que nos parece mais interessante ao definir
cruzada como uma peregrinao armada, j que visava inicialmente libertar o Santo Sepulcro
do infiel, e no apenas orar e meditar nele. Contudo, conteria o ideal da Guerra Santa96 de
ajudar irmos cristos e recuperar o que era da cristandade por direito, mas que fora
injustamente usurpado pelos infiis. Nessa lgica, o cruzado se via como um peregrino, mas
tornava-se Miles Christi, soldado de Cristo, partindo para libertar o patrimnio do Senhor e a
Ramos destaca ainda que a cruzada possua uma perspectiva reformadora que
conduzia a guerra justa aos infiis excomungados. Contudo, ele atenta para o fato de que o
Miguel. Las Cruzadas. Barcelona: Destino, 1974; RODRGUEZ, Loste et ANTONIA, Mara. Las
Cruzadas. Madrid: Grupo Anaya, 1990; RUNCIMAN, Steven. A History of the Crusades. Cambrigde:
Cambridge University Press, 1954. 3v.
93
CARDINI, Franco. Op. Cit. p. 479.
94
RAMOS, Luis Garca-Guijarro. Papado, Cruzadas y rdenes militares, siglos XI-XIII. Madrid: Ctedra, 1995.
95
Ibidem, p.49.
96
Alain Dermurger, no supracitado livro, sublinha que a Guerra santa era entendida como a aplicao da guerra
justa a todos os adversrios da f cristo, da Igreja e do papado. Op.Cit. p. 21.
97
Idem, p. 23.
79
-80-
hereges e lderes cristos como os ministros do imprio dos Hohenstaufen, na Itlia, e contra
Penny J. Cole, no trabalho The preaching of the Crusades to the Holy Land, 1095-
1270, conclui que essa mudana no ideal e no objetivo primrios das cruzadas foi resultado de
uma srie de acontecimentos que direcionaram esse fenmeno para atender interesses
polticos. A autora percebe certo insucesso desse movimento, afirmando que este ocorreu pela
indulgncias, contudo, acreditamos que por possuir um objetivo inicial similar ao da guerra
santa, e ambas foram incentivadas e apoiadas pela Igreja, no podemos supor que haveria a
possibilidade do martrio como recompensa nos dois casos? Acreditamos que os ideais que
nortearam as cruzadas contra os infiis, assim como os da guerra santa, eram similares e que,
assim, aos que morressem haveria como recompensa a palma do martrio, especialmente no
caso de membros das ordens mendicantes, que acompanhavam as expedies. Nesse sentido,
Segundo Christoph T. Maier, no livro Preaching the Crusades: Mendicant Friars and
the cross in the Thisteenth Century,100 desde os primrdios das cruzadas, os papas
expedies. Contudo, no sculo XIII, como as Ordens Mendicantes possuam um novo estilo
98
O autor vai alm, afirmando que o autntico esprito cruzadista era o seu ntido carter antimulumano,
99
COLE, Penny. Op.Cit. p. 219.
100
MAIER, Christoph T. Preaching the Crusades: Mendicant Friars and the cross in the Thisteenth Century.
Cambridge University Press, 1949.
80
-81-
recrutamento papal. Especialmente com o papa Gregrio IX (1227- 1241) essa transformao
fica mais clara, j que ele convocou freqentemente freis, como os dominicanos Raimundo
Por fim, temos ainda que considerar que o incentivo que foi dado aos mendicantes,
dominicanos e franciscanos para que pregassem nas cruzadas foi justamente a promessa do
reconhecimento do martrio dos membros dessas ordens que falecessem. Segundo James
Ryan, no artigo Missionary saints of the high middle ages: martyrdoom, popular veneration
and canonization,102 essas ordens teriam recebido cartas do Papa Inocncio III nas quais
afirmava que os missionrios, assim como os inquisidores, que morressem em nome de Cristo
Assim, os trs casos guerra santa, cruzadas contra os infiis ou hereges e aes
armada ou da pregao. Partindo desse pressuposto, defendemos que a cruzada tambm pode
ser enquadrada no ideal de guerra justa, e, portanto, que poderia haver a recompensa do
martrio aos mortos sob essas trs condies; cruzadista, guerreiro da guerra santa ou
missionrio.104
101
Segundo Lawrence, dominicanos e franciscanos foram, constantemente, chamados por Gregrio IX para
pregar a f, com o objetivo de incitar os cruzados a se organizarem rumo a Terra Santa e aos blticos. Algumas
vezes o pedido era direcionado a pregadores individualmente e outras ao providencial da Ordem em questo com
a instruo de que fosse selecionado algum para pregar a cruz em sua regio.
102
RYAN, James. Missionary saints of High Middle Ages. Martyrdom, Popular veneration and Canonization.
The Catholic Historical Review, v. 90, no1, p.1-28, jan/ 2004.
103
Contudo, o autor coloca que Roma fazia-se hesitante em realizar novas canonizaes nesse momento. Assim,
coube aos hagigrafos dessas ordens preservarem a memria dos martirizados em vitaes e legendaes, assim
como em crnicas e oraes. RYAN, James. Op.Cit. p. 4.
104
Nos relatos sobre Domingos e sobre Francisco temos uma pequena, porm fundamental diferena. No
primeiro, h algumas menes a contatos com hereges, contudo nenhuma sobre os infiis. J no segundo
encontramos uma referncia de um encontro do mendicante com um infiel, contudo nenhuma com herege.
Compreendemos que estas escolhas estariam em sintonia com um novo ideal de martrio no sculo XIII
vinculado prdica.
81
-82-
que, durante uma viagem a Toulouse junto ao Bispo de Osma, Domingos percebeu que o seu
anfitrio estava corrompido pelo erro hertico. Dessa forma, o dominicano converteu-o a f
crist, oferecendo assim ao Senhor o primeiro feixe da futura colheita.105 Acreditamos que
Jacopo, com essa passagem, faz aluso organizao da Ordem Dominicana e ao seu sucesso
Nesse ponto, Jacopo afirma que foi o papa Inocncio III quem pedira a Domingos e a
Diego para que fossem a Montpellier pregar entre os hereges, na esperana de converterem os
ctaros ali presentes. Ao colocar o pedido feito pelo papa nominalmente, acreditamos que o
compilador estaria construindo a idia de que Domingos j era visto como um pregador,
Nesta cidade, ambos encontraram uma misso cisterciense que reclamou do malogro
diante dos hereges. Segundo esta, os ctaros gozavam de ampla simpatia entre os fiis devido
na populao. Devido ao resultado positivo que obteve, Domingos teria decido organizar uma
ordem que suprisse a Igreja com pregadores instrudos106 e preparados. Segundo Richardson,
Jacopo informa que a morte do bispo de Osma, em 1207, em Montreal, deixou apenas
Domingos e alguns outros poucos irmos no combate aos hereges, anunciando com
105
JACOPO DE VARAZZE. Op.Cit. p.615.
106
A ateno dada formao de pregadores no mrito apenas da Ordem, estando presente no seio das
preocupaes da Igreja, sendo suscitada no IV Conclio de Latro, em 1215 (FOREVILLE, Raimunda. Op.Cit.)
107
RICHARDSON, Ernest. Op.Cit. p. 25.
82
-83-
constncia a palavra do Senhor,108 sob as mais duras penas. Defendemos que a narrao de
situaes difceis nas quais o santo esteve inserido para predicar funcionaria como um forte
incentivo aos demais frades para se colocarem a merc dos hereges, com o propsito de
convert-los.
personagens, sendo todos enquadrados sob essa designao generalizante, tal como no cnone
desses episdios est qualificando-as como um erro que deveria ser combatido. Assim, no d
herticos.
ouvirem seu sermo. Nos demais, so atravs de milagres e do exemplo de sua vida que os
hereges convertem-se. Defendemos que dessa forma Jacopo ressalta a importncia em dar o
exemplo atravs de uma vida crist correta, segundo os preceitos estabelecidos pela Igreja.
Segundo Jacopo, esse evento ocorreu em Montreal, aps a morte do bispo de Osma,
deixando apenas Domingos e alguns outros poucos irmos no combate aos hereges,
anunciando com constncia a palavra do Senhor,110 sob as mais duras penas. A narrao de
situaes difceis as quais o santo esteve inserido para predicar funcionaria como um forte
incentivo aos demais frades para se colocarem a merc dos hereges, com o propsito de
convert-los.
108
JACOPO DE VARAZZE. Op.Cit. p. 616.
109
H uma sexta meno presena hertica, contudo esta no uma situao de contato direto entre o
dominicano e os hereges. No relato, Domingos quis vender-se para salvar um cristo que aderira a comunidade
hertica, contudo a misericrdia divina resolveu a situao de outra forma. A soluo no especificada na
narrativa (Idem).
110
Idem.
83
-84-
Ao longo do relato, temos o uso recorrente dos exempla e o destaque aos feitos
pedaggico e didtico.
A narrativa segue com o contato do santo com os hereges, que, quando o ameaavam
de morte, respondia: No sou digno da glria do martrio, ainda no mereo esta morte.111
Assim, o compilador, ao escolher essa frase para o relato, buscou encorajar os irmos
dominicanos afirmando que a morte pelas mos de um herege seria meritria do martrio.
sculo XIII, traduziu-se, nas obras hagiogrficas, na idia do desejo de martrio ligada
perfeio interior do cristo, que estaria disposto a dar a sua vida se necessrio. Domingos no
conseguiu ser martirizado, contudo, obteve o mrito de ter desejado o martrio, realizando, ao
recompensa em manter-se fiel ao ideal cristo, mesmo que em condies adversas. nesse
sentido que acreditamos que o relato do patriarca da Ordem serviria como exemplo aos demais
Jacopo segue o relato, destacando que o prprio santo buscava morrer pelos hereges
ao passar por lugares onde sabia que haveriam emboscadas contra ele. Defendemos que,
111
Idem.
112
Ao longo do captulo, a forma de vida crist de Domingos elogiada, tendo a pobreza, a humildade, o dom
com as palavras, o conhecimento, a benevolncia, como caractersticas destacadas em algumas passagens. Por
fim, Jacopo ressalta sua penitncia, narrando que toda noite [Domingos] recebia de suas prprias mos trs
chicotadas com uma corrente de ferro, uma por si mesmo, outra pelos pecadores que esto no mundo e a terceira
por aqueles que esto padecendo no purgatrio. JACOPO DE VARAZZE. Op.Cit. p. 625.
113
partindo desse pressuposto que compreendemos a converso das mulheres simpatizantes da heresia que o
hospedaram. Ao verem como Domingos guiava sua vida, segundo os preceitos cristos corretos, elas
converteram-se.
84
-85-
Acreditamos que nessa passagem Jacopo faz uma aluso ao relato sobre So Tiago, o
cortado, que analisamos no captulo 4. Este o nico mrtir da LA que teve os dedos, as
mos, os ps, os braos e as pernas cortados. Aps cada suplcio o santo louvava a Deus
sendo que, apenas nos ltimos, pediu pela interveno divina para faz-lo parar de sofrer.
Assim, no se rendeu macerao somtica, reafirmando a f em Deus aps ter cada membro
cortado. Pelo contrrio, respondeu as torturas com o testemunho de sua crena, para
Podemos chegar a concluso de que este relato apresenta uma profunda relao entre a
elementos, que podem ser associados ao antigo. Nesse sentido, o martrio imaginrio de
Domingos estaria enquadrado em um novo ideal de martrio sangrento, que tambm serviria
para reforar a viso do personagem como exemplo a ser seguido. Alm de ser um importante
dos demais frades, embasando tambm a prdica como meio para se alcanar o
reconhecimento como mrtir. Afinal, Jacopo qualifica a morte por um herege como meritria
da honra do martrio. Essa colocao serviria como um incentivo aos demais mendicantes que
114
JACOPO DE VARAZZE. Op.Cit. p.616.
85
-86-
7. Consideraes parciais
relacionadas s relaes de poder estabelecidas para e pela Igreja, adaptando-se a elas. Nesse
momento, ela exercia um papel diferenciado: perseguia os infiis, hereges, entre outros sob a
justificativa da guerra justa. Essa teria sido intensificada com a promessa de martrio para os
religiosos laicos, cujos frutos destacamos, analisando dois de seus exemplares: a Ordem
distintas, especialmente sob o papado de Inocncio III, com a organizao de conclios, das
Ao estudar a questo da retomada do martrio pelo vis das cruzadas, conclumos que
haveria uma similaridade nos objetivos e nas propostas que norteavam as cruzadas contra os
palavras: todas essas aes estavam sob a justificativa da guerra justa. Assim, defendemos a
possibilidade da temtica do martrio ter sido uma das estratgias da Igreja para incentivar as
presente na LA. Nesse relato, o compilador exalta valores dominicanos para vivncia crist,
86
-87-
Atravs de uma enunciao norteada por feitos maravilhosos, o martrio estaria enquadrado
no ideal da retomada da Igreja primitiva desde o sculo XII. Conclumos que ao colocar a
Nesse sentido, conclumos que Jacopo teria sido influenciado por elementos
associados a essa retomada do tema do martrio na escolha dos relatos narrados pela LA.
Contudo, procurando responder a questes do seu tempo relacionadas, entre outras coisas, aos
87
-88-
CAPTULO 3
da Legenda urea.1 Lembramos que, no total, foram escolhidas cinco narrativas de tamanhos
distintos sobre as seguintes personagens: Santa Anastcia (p.103-105); Santa gata (p.256-
260); Santa Juliana (p. 266-267); Santa Eufmia (p. 810-812); Santa Catarina (p.961-967).
Primeiro, analisaremos cada narrativa, seguindo a ordem apresentada acima. O segundo item
O relato inicia com um estudo etimolgico do nome Anastcia, que seria formado de
Ana , significando acima; e statis, que fica em p ou permanece. Jacopo argumenta que
esse sentido estaria relacionado ao fato de que ela teria se elevado e se mantido acima dos
vcios.
No incio da biografia de Anastcia, somos informados que ela era filha de Pretaxato,
romano ilustre, mas pago,3 e da crist, Fantasta. Foi de sua me e do beato Crisgono que
ela recebeu os ensinamentos cristos. Ao casar-se com Pblio, Jacopo narra que ela simulou
estar doente para abster-se das relaes conjugais, contudo no menciona se foi apenas para
1
VARAZZE, Jacopo. Legenda urea; vida de santos. Traduo: Hilrio Franco Jr. So Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
2
Destacamos que, em alguns captulos estudados, h o relato de outros martrios, inclusive de personagens
femininas. Todos foram mencionados em nosso trabalho.
3
VARAZZE, Jacopo, op. cit,, p.103.
88
-89-
Seu marido soube que, acompanhada por uma criada, usando trajes muito pobres, sua
esposa percorria as prises, onde estavam cristos, para levar-lhes as coisas de que
necessitavam.4 Ento, Pblio prendeu-a em casa, privando-a de alimentos para que ela
morresse e ele pudesse apossar-se de suas riquezas. Segundo a LA, durante esse perodo,
Anastcia correspondia-se com Crisgono, acreditando que iria morrer em breve, sendo
consolada por ele. Contudo, seu esposo faleceu e ela foi libertada.
categoria social: as das vivas virgens. Esta temtica foi problematizada no artigo The virgin
widow: a problematic social role for the early church?, de Charlotte Methuen,5 no qual,
partindo do argumento que a condio de viuvez6 fornecia s mulheres um status social mais
elevado7 ou uma certa liberdade,8 a autora define dois grandes tipos de acepes relacionadas
seguiram uma vida de devoo e conteno sexual. E nesse sentido que, segundo Methuen,
a viva recuperaria sua virgindade. A segunda estaria relacionada s virgens cujos noivos
faleceram ou que as abandonaram e que, por isso, se autodefinem como vivas. Ela destaca
que esse caso deu-se de diferentes formas durante os quatro primeiros sculos do cristianismo.
4
Ibidem.
5
METHUEN, Charlotte. The virgin widow: a problematic social role for the early church? Harvard
Theological Review, v.90, p. 285-298. Julho, 1997.
6
Ressaltamos que a autora posiciona sua anlise nos primeiros sculos da igreja crist. Apesar da obra que
analisamos ser do sculo XIII, relembramos que a Legenda urea uma compilao e o martrio da virgem
datado do segundo sculo.
7
Ela define esse status sintetisando-o nas funes que as vivas poderiam ter na sociedade, como orar para a
congregao; jejuar; instruir moralmente as moas jovens (em particular); supervisionar as mulheres durante a
adorao; e, em alguns casos, auxiliar no batismo. Ela ainda destaca que a constncia das proibies de vivas
ensinarem ou batizarem mostraria a recorrncia dessa prtica. Idem, p.289.
8
A autora no especifica que liberdade era essa, mas podemos pensar que seria o controle dos bens j que, com a
morte do marido, a viva passa a ser cabea da famlia. Cf. BELTRN, Maria Tereza. Em los mrgenes del
matrimomio: transgressores y estrategias de supervivencia em la sociedad bajomedieval castellana. In: IGLESIA
DUARTE, Jos-Igncio de la (coord.). La familia en la Edad Media. Semana de Estudios Medievales, 9, Njera,
2002. Actas... Logroo: IER, 2003. p. 349-386.
9
Ao referirmos-nos a dois grandes tipos, devemos ressaltar que durante o texto a autora discute os pormenores
envolvidos em ambos, utilizando, principalmente, Tertuliano.
89
-90-
Entretanto, a situao de Anastcia diferente de ambos os casos trabalhados pela autora por
ter se mantido virgem,10 apesar de ter sido casada de fato e ter perdido o marido.
smbolo de completa renncia ao mundano e de total adeso ao Senhor. O autor ainda defende
que a castidade (a fortiori a virgindade) possua mais valor se fosse voluntria, vivida em
matrimnio.
matrimnio por vontade dela lembrando que inventa uma doena para abster-se das relaes
sexuais , atingindo um grau superior de pureza. E, por ter sido casada de fato, aps a morte
de seu marido, segundo o relato, ela passou a possuir benefcios relacionados com a viuvez;
como o controle de suas riquezas, atraindo a cobia dos outros. Assim, alm de lutar por sua
martrio de trs irms de maravilhosa beleza,12 que estavam a servio da viva: Agapete,
Tionia e Irene. O dominicano destaca que todas eram crists e que se recusavam a obedecer
ao prefeito de Roma que estava apaixonado por elas. Ele ordenou que elas fossem presas em
um quarto onde eram guardados os utenslios de cozinha. Um dia, querendo saciar seus
desejos o prefeito foi encontr-las e, aps ser rejeitado novamente, teve um acesso de
loucura abraando panelas, caldeires e outros utenslios, que pensava serem as virgens.13
Depois de saciar-se, saiu todo sujo e esfarrapado. Seus serviais, achando que ele fora
10
Relembramos que Jacopo narra que ela simulou uma doena para no ter relaes sexuais com seu marido.
11
ROSSIAUD, Jacques. Sexualidade. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio Temtico
Medieval. Op.Cit., p. 477-483.
12
Destacamos que esse enaltecimento beleza das virgens aparece na narrativa.
13
VARAZZE, Jacopo. Idem.
90
-91-
do ocorrido, mas os guardas, vendo-o naquele estado, pensaram que ele estava possudo por
algum esprito furioso,14 bateram nele com varas e atiraram-lhe lama e poeira.
Segundo o relato, ele teria sido avisado sobre sua aparncia e pensou ter sido
enfeitiado. Assim, mandou que buscassem as virgens e ordenou-as que se despissem para
seu prazer. Com a recusa, ele mandou que elas fossem despidas a fora. Mas as roupas
aderiram a seus corpos e o prefeito caiu em sono profundo imediatamente. Algum tempo
viva foi entregue a dois prefeitos pelo imperador. Jacopo narra que o governante afirmou
para o primeiro deles que se ele convencesse a virgem a realizar sacrifcios, ele poderia casar-
se com ela. Ento o prefeito a levou para casa e ficou imediatamente cego ao tentar abra-la.
Ele foi ento implorar a cura a seus deuses, que lhe responderam: Como voc atormentou
Anastcia, padecer no Inferno a nosso lado os tormentos que sofremos.15 Ao retornar para
Alm disso, ressaltamos que, nesse episdio, Jacopo desqualifica a crena pag e
prefeito por ter atormentado Anastcia. Tambm sublinhamos dois pontos presentes nesse
da personagem pelos deuses pagos, que negam ajuda ao prefeito. Assim, acreditamos que,
Segundo o captulo, Anastcia foi entregue a outro prefeito, que ao saber de sua
riqueza, tentou convenc-la a lhe dar toda sua fortuna dizendo: Anastcia, se voc quer ser
crist faz o que seu Senhor mandou: Quem no renunciar a tudo que possui, no poder ser
meu discpulo. Ao que ela respondeu: Meu Deus disse: Vendam tudo o que tiverem e
14
Ibidem.
15
Idem, p.104.
91
-92-
dem aos pobres. Ora, como voc rico, eu estaria agindo contra o mandamento de Deus se
Depois dessa conversa, a virgem foi jogada em uma masmorra horrvel17 para
morrer de fome, contudo foi alimentada por dois meses com po celeste por Santa Teodora,18
que j sofrera as honras do martrio.19 Passado esse tempo, ela foi levada com duzentas
virgens para a ilha Palmarola, onde muitos cristos tinham sido exilados. Alguns dias depois,
Os mrtires que estavam na Ilha de Palmarola foram trazidos junto com a virgem e
pereceram sob distintos suplcios. Anastcia foi amarrada a uma estaca e queimada viva.20
Ela foi sepultada no pomar de Apolnia21 e em seu tmulo construiu-se uma igreja. Segundo
Jacopo, ela sofreu sob Diocleciano, que comeou a reinar no ano do Senhor de 287.
longo do relato, verificamos como o gnero construdo atravs do estudo etimolgico de seu
nome e do casamento casto, com a manuteno de virgindade. Ela, como viva, controlava
suas riquezas, o que atraiu a cobia de dois prefeitos que queriam casar com a virgem para
Jacopo, nesse relato, destacaria sua virgindade, mantida mesmo casada e apesar dos
prefeitos graas interveno divina. Acreditamos que essa virtude confere personagem
uma santidade especial e, por causa disso, seu captulo objetivaria o enaltecimento dessa
16
VARAZZE, Jacopo. Idem, p.104.
17
Ibidem.
18
Jacopo apresenta nenhuma informao sobre essa santa, somente que ela foi martirizada antes de Anastcia.
Na LA, h o relato sobre uma Santa Teodora, que era nobre e casada. Segundo a narrativa, o diabo, com inveja
da santidade de Teodora, fez com que um homem rico se apaixonasse e se inflasse de desejos por ela. Jacopo
relata que ele a importunava tanto que a crist at perdeu a sade. Ento, aps consecutivas rejeies, o homem
pediu a uma feiticeira para ajud-lo. Ela mentiu e enganou Teodora, que se rendeu aos desejos desse homem.
Percebendo ter sido iludida, ela se arrependeu, travestiu-se e, como Teodoro, fugiu para um mosteiro. Em uma
viagem, uma moa pediu-lhe para deitar-se com ela, mas, ao ser rejeitada, procurou outro rapaz. Contudo, ao
descobrir que estava grvida, acusou o monge Teodoro/ Teodora de ser o pai da criana. Quando o beb nasceu,
levaram-na ao abade do mosteiro que repreendeu e expulsou o monge Teodoro/ Teodora. Ele/ela, ento,
permaneceu sete anos em p em frente ao cenbio, alimentando o infante com leite dos rebanhos. Devido a sua
perseverana, o abade reconsiderou e aceitou-o/a de volta. Ele/ela faleceu dois anos depois, por volta do ano de
470. No dia de sua morte, o abade teve um sonho que lhe revelou a verdade sobre Teodora e seu filho.
19
Ibidem.
20
Idem, p.105
21
Sublinhamos que Jacopo no apresenta nenhum dado sobre essa personagem.
92
-93-
qualidade, sendo que esta no seria especfica ao homem ou mulher, mas desejvel ao
cristo, servindo como recurso para evidenciar a sua oposio ao pago: voluptuoso,
O relato de Santa gata tambm comea com um estudo etimolgico, no qual Jacopo
atribui cinco possveis significados para o seu nome. Destes, destacamos o primeiro: o nome
provm de gios, santo, e Theos, Deus significando santa de Deus. Nesse sentido, no
incio da narrativa h uma interpretao que j identifica a personagem central como santa. E
qualidades que fazem todos os santos.23 Ao enumerar quais seriam essas caractersticas, ele
faz referncia a Crisstomo que, por sua vez, afirma: a pureza no corao, a presena do
Esprito Santo e a abundncia de boas obras. Aqui, o dominicano se posiciona em relao aos
Jacopo narra que seu nome derivaria tambm de a que seria sem, geos, terra; e
Theos, Deus. Nesse sentido, seria a deusa sem terra, o que explicitaria a ausncia de
qualquer apego aos bens terrenos. Ele ainda narra outros trs possveis significados para
thaas, superior por colocar-se como escrava do Senhor, o que transparece nas suas
22
Segundo Rossiaud, o discurso vigente na Antigidade tardia defendia que os que viviam em contato com o
sagrado deveriam privar-se do sexo, que era visto como poluo suprema por afast-los do divino. ROSSIAUD,
Jacques. Op. Cit., p.479.
23
Idem, p. 256.
24
Acreditamos que esta qualidade possuiria relao com um incentivo a prpria pregao dos irmos
dominicanos.
93
-94-
palavras que lhe so atribudas no texto; e consumao solene aga, solene; thau,
maneira, exaltando a sua expressividade com as palavras e a seu sepultamento feito por anjos,
No incio da narrativa biogrfica, Jacopo relata que gata nasceu na cidade de Catnia
e identifica-a como uma virgem de nobre estirpe e lindssima de corpo.25 Sublinhamos que
ele no apresenta, ao longo do captulo, nenhum personagem masculino que possua uma
relao com gata, convivendo com a santa como um parente, ou como um diretor religioso,
ou algo assim. Esse fato rompe com o discurso misgino caracterstico desse momento,26 que
Thomas Laqueur afirma que, de acordo com o discurso sobre o modelo do sexo nico,
havia uma ordenao social hierrquica e verticalmente estabelecida, na qual o homem era
visto como o ser mais perfeito e superior a mulher. Segundo o autor, essa percepo de
Assim caberia aos homens atuarem como seus intercessores perante o Senhor. E as mulheres,
25
Ibidem.
26
Para mais informaes sobre quais eram esses discursos e do que exatamente tratavam cf. BYNUM, C. El
cuerpo feminino y la pratica religiosa na Baja Edad Media. In: FEHER, Michelet et al.(Ed.). Fragmentos para
uma historia del cuerpo humano. Madrid: Taurus, 1990; DUBY, Georges et PERROT, Michelle. Histria de las
mujeres. La Edad Media. La mujer en la familia y en la sociedad. Argentina: Editora Taurus, 1992;
SARANYANA, J-I. La discusin medieval sobre la condicin femenina (siglos VIII al XIII). Universidad
Pontificia de Salamanca, 1997; LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gnero dos gregos a Freud.
Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 2001.
27
LAQUEUR, Thomas. Op. Cit. p.45.
94
-95-
jovem, rica e virgem, morando sozinha e sem nenhuma meno a sua famlia ou a figuras
masculinas responsveis pela sua superviso e controle, servindo como intercessores entre ela
e Deus. Tal ausncia, em nossa opinio, caracterizaria gata de forma singular, j que no
tutelada.
pelo martrio de gata. O dominicano marca tal personagem com quatro caractersticas,
construo de relatos sobre mrtires, nos quais os personagens do mrtir e do(s) responsvel
(is) por seu martrio so situados em posies diametralmente opostas.28 Jacopo narra que,
social superior ao seu, saciar-se em sua beleza, apoderar-se dos seus bens e agradar a seus
entregou para a meretriz Afrodisia e as suas nove depravadas filhas. Jacopo afirma que o
cnsul acreditava que elas poderiam convencer gata a entregar-se a ele em trinta dias, fosse
contedo de nenhum desses meios de persuaso, mas supomos que as ameaas estariam
envolvidas com a possibilidade da santa ter a sua pureza corrompida pela sexualidade e pela
depravao, j que foi colocada em uma casa de prostituio. Contudo, ela mostrou-se
resoluta em sua condio crist, afirmando que sua f estava fundamentada na certeza de
Cristo. Nesse momento narrativo, lemos que ela chorava diariamente, orando e pedindo a
palma do martrio.
28
ALTMAN, Charles. Two types of Oppositionand the structure of latin saints Lives. Medievalia et
Humanistica. Sl., n.6, p.1-11, 1975.
95
-96-
Segundo Elizabeth Alvilda Petroff, no livro Body and Soul: Essays on medieval
womem and Mysticism,29 a partir do sculo X, comeou a ser construda uma viso herica
sexual por uma pessoa virgem se render as paixes estariam na escala herica.30 Acreditamos
desviar gata de suas prticas crists. Ele mandou cham-la e questionou-lhe sobre sua
condio social, ao que ela respondeu ser livre e de famlia ilustre. Ele indagou o porqu de
seus modos servis e ela replicou dizendo ser escrava de Cristo, pois essa era a suprema
liberdade. Ele, ento, ordenou que ela escolhesse sacrificar ou suportar diferentes suplcios.
gata: Que sua futura esposa seja parecida com a deusa Vnus, que voc
cultua, e que voc mesmo seja como o deus Jpiter, que tanto venera.
Quintiano mandou esbofete-la com fora, dizendo: No ofenda seu juiz
com gracejos temerrios. gata replicou: Surpreende-me que um homem
to prudente como voc tenha chegado loucura de chamar deuses aqueles
cujos exemplos no gostaria que sua mulher ou voc mesmo seguissem, j
que considera injria meu desejo que voc viva como eles.31
Desse episdio, atentamos para a ironia de gata j que, segundo os mitos antigos,
Vnus, considerada a deusa do amor, traiu o marido com vrios amantes; e Jpiter enganava a
esposa com outras deusas e com mulheres mortais. Esse comentrio tambm reflete o seu
conhecimento sobre as crenas de Quintiano. Com essa argumentao, a virgem provou que
os deuses adorados por ele no eram dignos de tal, dando-lhe uma lio de moral ao justificar
o porqu. Diante da reao furiosa do cnsul, ela desqualificou sua crena, enquanto
29
PETROFF, Elizabeth Alvilda. Body and Soul: Essays on medieval womem and Mysticism. New York e
Oxford: Oxford University Press, 1994.
30
Ressaltamos que a autora no define essa gradao (Idem, p.94).
31
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit, p.257.
96
-97-
engrandecia a sua, finalizando sua fala dizendo: Se seus deuses so bons, desejei apenas o
bem para voc, mas se detesta parecer-se com eles, compartilhe meus sentimentos.32
ouvirem o nome de Cristo elas ficaro mansas; se empregar o fogo, os anjos derramaro do
Cu um rocio salutar sobre mim. Se me infligir chagas e torturas ver que desprezo tudo por
ter em mim o Esprito Santo.33 Desta forma, gata enaltece o poder de sua f e precipita a
possvel interveno divina, ressaltando a presena do Esprito Santo, qualidade que Jacopo
gata foi condenada ao martrio por ironizar Quintiano, ao desejar que ele e a sua
mulher fossem iguais a Jpiter e a Vnus, confundindo-o em pblico. Segundo a LA, aps
este fato, ela foi jogada na priso, para onde foi com enorme alegria, como quem ia para um
No dia seguinte, Quintiano concedeu uma nova chance para gata adorar aos deuses e
diante da constncia da recusa, ordenou que ela fosse suspensa em um cavalete e torturada.
Ela respondeu-lhe:
Nesses suplcios meu deleite o de um homem que recebe uma boa notcia,
ou v uma pessoa por muito tempo esperada, ou que descobriu grandes
tesouros. Da mesma forma que o trigo s pode ser colocado no celeiro
depois de fortemente batido para ser separado de sua casca, minha alma s
pode entrar no Paraso com a palma do martrio se meu corpo tiver sido
dilacerado com violncia pelos carrascos.34
sofrimento. gata descreve sua entrada no paraso como sendo possvel atravs da destruio
da dor nas palavras da personagem. Essa reao, diante das torturas, enquadrar-se-ia nos
32
Idem, p.257.
33
Ibidem.
34
Idem, p.258.
97
-98-
somticas, invertendo as relaes de poder. A lgica seria que quanto mais violenta fosse sua
Assim, ela demonstrou grande alegria em ser torturada, devido promessa do martrio
torturas, os carrascos e os responsveis por suas dores. Segundo o relato, com essa resposta,
Nesse sentido, acreditamos que Jacopo est reafirmando a relao oposta entre os dois
personagens, cada vez mais esteriotipados: de um lado, a virgem crist, feliz por ser
martirizada e smbolo de bondade; e, do outro, o vil pago, raivoso por no conseguir superar
a f de gata.
o tormento que se segue: Quintiano ordenou que arrancassem lentamente as mamas de gata
com tenazes.36 Frente esse suplcio, ela reagiu dizendo: mpio, cruel e horrendo tirano,
voc no tem vergonha de mutilar numa mulher o que chupou na sua me? Tenho em minha
alma mamas totalmente sadias com as quais nutro todos os meus sentidos e que desde a
infncia consagrei ao Senhor.37 Nas palavras da virgem, h uma renncia do corpo com uma
ntida definio de sua inferioridade em nome da alma; estabelecendo, assim, uma relao
hierrquica entre eles. Alm disso, a fala da virgem evidenciaria a lgica dos tormentos
hegemnico que estabelecia as funes sociais para homens e mulheres segundo uma
98
-99-
anatmicas dos corpos femininos e masculinos eram alcanadas por dois processos
concomitantes; uma anlise emprica e uma interpretao teolgica. Partindo destas reflexes,
as autoras afirmam que as leituras dos corpos estavam circunscritas idia de finalidade, ou
seja, algumas partes do corpo, por possurem fins especficos, no poderiam ser associadas ao
prazer sexual. Dentro dessa perspectiva, o seio no era visto como uma zona de prazer, mas
do sculo XVIII.41 A autora destaca que a difuso e reinterpretao dos trabalhos de Galeno
suscitaram trs grandes obstculos ao estudo da anatomia feminina. O primeiro era a analogia
absoluta autoridade.42
39
LAQUEUR, Thomas. Op. Cit.
40
THOMASSET, Claude. La naturaleza de la mujer. In: DUBY, Georges et PERROT, Michelle. Histria de las
mujeres. La Edad Media. La mujer en la familia y en la sociedad. Argentina: Editora Taurus, 1992. p.60-91.
41
Cabe ressaltarmos que uma das questes trabalhadas pela autora foram as relaes entre a renovao terica e
o discurso religioso. Para Thomasset, as teorias aristotlicas e a escola hipocrtica forneceram o fomento
necessrio para aumentar a divergncia entre os tericos, no que diz respeito ao prazer, concepo, ao corpo e
relao feminino/ masculino. Somando a isso, destaca o papel da medicina rabe, que intensificou a preocupao
da Igreja, entre os sculos XIII e XIV, em controlar e restringir os corpos com variadas normas de conduta, em
especial os femininos.
42
Nesse caso, Thomasset refere-se a autoridade da Igreja que tentou reprimir o estudo da anatomia feminina,
implantando e nutrindo o medo. Essa constante tentativa foi to intensa que, segundo a autora, uma das marcas
da literatura medieval a presena do medo (Ibidem, p. 89).
43
Idem, p.60.
99
-100-
lugar inferior como mulher e subjug-la a sua autoridade civil e masculina. Dentro dessa
lgica, acreditamos que a reao da virgem a tal suplcio maldizendo o cnsul e questionando
em nome da f, pelo contrrio, acreditamos que a santa reagiu desta forma pelo prprio
significado que esta parte do corpo tinha para a mulher, associado lgica de funcionalidade
anteriormente.44
cumprir certas tarefas estabelecendo inclusive os papeis sociais ,45 perder a mama
significaria, na verdade, perder parte de sua funo social como mulher, j que as mulheres
prprio discurso da virgem, que atentou para a crueldade de arrancar nela o que a me de
Depois de ter as mamas arrancadas, ela foi jogada na priso, no podendo receber
nenhuma visita de mdico e nem alimentos. Contudo, em torno de meia-noite, um ancio com
uma criana, segurando uma tocha apareceu-lhe e disse-lhe: Embora aquele louco a tenha
coberto de tormentos, voc o atormentou mais ainda com suas respostas. Embora ele tenha
44
Segundo Claude Thomasset, essas concepes cientficas visavam dar validade aos modos de pensar vigente,
passando a circular. Desde a segunda metade do sculo XI, a medicina ocidental foi marcadamente influenciada
pela cincia rabe e pelos escritos filosficos da Antigidade, que ganharam mais fora aps as tradues
iniciadas por Constantino, o africano. _____. La naturaleza de la mujer... p. 63.
45
O pensamento de Isidoro de Sevilha esteve presente na construo de discursos, ao longo da Idade Mdia,
sendo disseminado nas universidades a partir do sculo XIII. Cf. VERGER, Jacques. Isidore de Sville dans ls
universits mdivales. In: FONTAINE, Jacques y PELLISTRANDI, Chistrine. (Eds.). L Europe hritiere de
lEspagne Wisigothique. Colloque international du CNRS. (Paris, 14-16, maio, 1990) Madrid: Casa de
Velzquez, 1992. p. 259-267.
46
BELTRN, Maria Tereza. Op. Cit. p.349.
100
-101-
deformado seu seio, ele ser coberto de amargura. Eu presenciei todas as suas torturas e vi
Diante disso, gata respondeu nunca ter exibido o corpo nem para receber medicao
e que seria indecoroso faz-lo naquele momento, demonstrando o cuidado que possua para
cristo, ela retrucou que no era esse o motivo, pois seu corpo estava to horrivelmente
dilacerado que ningum poderia desej-la, e o agradeceu pela oferta. A mrtir reagiu,
modstia en los gestos, junto con la moderacin en los adornos, outro valioso baluarte en la
defesa del bien precioso de la castidad que um cuerpo exhibido em pblico podra poner em
peligro.49 Acreditamos que a reserva de gata em relao a seu corpo vincular-se-ia com a
comportamento ideal exigido das virgens. Ela, mesmo sabendo que seu aspecto fsico no
despertaria desejos alheios pela sua deformidade, a disciplina corporal que a santa impe
ferimentos. Ela respondeu ter o Senhor Jesus Cristo, que com uma s palavra cura e
restabelece todas as coisas.51 Ouvindo isso, o ancio revelou ser o Apstolo Pedro e afirmou
que ela estava certa, j que foi Deus que o enviara, curando-a por completo, restituindo-lhe as
47
VARAZZE, Jacopo. Ibidem.
48
CASAGRANDE, Carla. La mujer custodiada. In: DUBY, George et Perrot, Michelle. Op.Cit. p. 92-130.
49
Idem, p.121.
50
Joyce Salisbury argumenta que a mulher encontrava uma forma alternativa de ascetismo na virgindade e na
castidade, vivendo uma vida recheada de Esprito Santo. SALISBURY, Joyce E. Church fathers, independent
virgins. New York: Verso, 1991.
51
VARAZZE, Jacopo. Ibidem.
101
-102-
exacerbando a fora da cura divina, demonstra certo desapego pelo mundo material.
seios reafirmam a santidade de gata. Alm disso, cabe refletirmos sobre a importncia
De acordo com Eamon Duff, no livro Santos e pecadores: A histria dos papas,52
Pedro j caracterizado como lder ou, pelo menos, como porta-voz dos apstolos nos
Evangelhos e nos atos dos apstolos.53 Seguindo essa tradio, o autor apresenta alguns
episdios54 que demonstram um certo favorecimento a ele por parte de Cristo, o que
Eamon Duff ainda argumenta que, aps Mateus redigir sobre o episdio da confisso
de Pedro em Cesaria de Filipe,55 Jesus acreditaria que a f desse homem foi uma revelao
direta de Deus. Dessa forma, Ele redefiniu o nome de Simo Cefas para Pedro a pedra , e
teria afirmado sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e te darei as chaves dos Reinos dos
Cus; o que ligares na terra ser ligado aos cus.56 O autor ressalta que, devido a essas
palavras, a autoridade do apstolo perpetuou-se pela sua comunidade, inclusive nos escritos
primado de Pedro e como sua autoridade foi transmitida aos seus sucessores sobre a
sucesso apostlica.
primeira carta, que escrita por ele ou no, a verdade que a epstola o apresenta no
simplesmente como apstolo e testemunha salvadora da obra de Cristo, mas como fonte da
52
DUFF, Eamon. Santos e pecadores: A histria dos papas. So Paulo: Cosac & Naify, 1998.
53
Idem, p.3.
54
Duffy diz que Pedro foi o primeiro a reconhecer e proclamar Cristo como Messias, em Cesaria de Filipe, o
que indicaria sua f na Igreja do Senhor. Tambm destaca que ele foi o primeiro a testemunhar a transfigurao
de Cristo, entre outros episdios. Ibidem.
55
Destacamos que ele se refere ao relato supracitado na nota anterior.
56
Idem, p.4.
102
-103-
historiadores, como uma tarefa difcil, j que as igrejas eram governadas por colegiados de
bispos ou presbteros.58
apstolos Paulo e Pedro apaream ligados Igreja Romana, pouco a pouco, a partir de uma
apropriao do texto bblico por meio das tradies jurdicas romanas, Pedro ganha prioridade
e destaque frente a Paulo. Alm disso, ressaltamos que a escolha por essa primazia de Pedro
est associada relao entre ele e Cristo narrada nos Evangelhos e nos Atos dos Apstolos,
apesar dele e Paulo terem sido martirizados juntos, o martrio de Paulo celebrado apenas no
dia seguinte, enquanto o de Pedro festejado no mesmo dia de sua morte. Jacopo justifica
essa preferncia destacando que essa data foi dedicada igreja de So Pedro, que maior em
dignidade, foi o primeiro a ser convertido e tem o primado em Roma.59 No sculo XIII,
Nesse sentido, a apario do apstolo no relato de gata seria uma referncia Igreja
romana com a defesa do primado de Pedro e, dessa forma, da supremacia da igreja romana e
emanava do calabouo onde gata encontrava-se, e os guardas, vendo isso, fugiram, deixando
o crcere aberto. Algumas pessoas pediram para que ela aproveitasse a oportunidade e
57
Idem, p.5.
58
Idem, p.7.
59
VARAZZE, Jacopo, Op cit. p.512.
60
De acordo com Girolamo Arnaldi, a importncia da primazia de Pedro para a Igreja e para o enaltecimento do
bispado romano, foi argumentada por Gregrio VII na proposio XXIII dos Dictatus papae afirmando o bispo
de Roma, com a condio de ser canonicamente consagrado, torna-se indubitavelmente santificado graas ao
bem-aventurado Pedro. ARNALDI, Girolamo. Igreja e papado. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-
Claude. Dicionrio Temtico... Op.Cit., p.567-589. p. 583.
103
-104-
imolar aos deuses, sob ameaas de novos e piores suplcios. A virgem fez pouco caso do
cnsul, chamando-o de miservel sem inteligncia por querer que ela adorasse pedras e
renegasse quem a curou: Deus. Jacopo narra um curto dilogo entre eles, que termina com a
Dito isso, o cnsul ordena que joguem cacos de cermica no cho e, sobre eles, brasas,
para que o corpo nu de gata fosse arrastado por cima. Destacamos que a nudez era parte da
punio da santa, que demonstrou tamanha resistncia em revelar o seio destroado para
obteno da cura pelo ancio. Por que a necessidade de expor o seu copo nu para a tortura
final? Levantamos dois argumentos para compreenso desse episdio: o primeiro, que essa
fisicamente de uma forma que no pudesse ser curada por Deus. Em segundo, no podemos
esquecer que, segundo nossa perspectiva terica, o fsico um dos lugares de disputa de
poder genderificado. Como Rossiaud argumenta a relao carnal um ritual de poder que
est no centro da identidade masculina.62 Assim, atravs do controle sobre a nudez de gata,
Quintiano demonstra o poder que sua posio social lhe concedia sobre o corpo da virgem,
humilhando-a.
Durante o suplcio da virgem, lemos que um terrvel terremoto assolou a cidade inteira,
que ele parasse de injustamente torturar a jovem, pois era apenas esse o motivo do terremoto,
visto como sinal divino. Em outras palavras, defendemos que essa interveno divina
61
VARAZZE, Jacopo, op cit, p.259.
62
ROSSIAUD, Jacques. Op. Cit., p.488.
104
-105-
No crcere, gata orou agradecendo ao Senhor por t-la preservado dos amores e das
mculas mundanas e por ter-lhe concedido as foras necessrias para que vencesse os
tormentos aos quais fora submetida; pedindo-lhe que recebesse seu esprito. Ela deu um
grande grito que poderia simbolizar a entrega final e total, e rendeu o esprito em torno de
253. Jacopo relata que quando Quintiano ia inventariar a riqueza da santa, dois de seus
cavalos soltaram-se. Um mordeu-o e o outro lhe acertou um coice que o jogou no rio e seu
Jacopo narra que, no dia do sepultamento de gata, surgiu um homem trajando belas
vestes de seda, acompanhado por cem outros belssimos rapazes, que colocou uma lpide
perto da cabea da santa e desapareceu.63 Com a divulgao de tal milagre, gentios e judeus
passaram a venerar seu tmulo. Nesse sentido, acreditamos que o dominicano buscava
incentivar o culto da virgem ao narrar a sua adorao por parte de pagos e de judeus.
Identificamos objetivo similar quando ele relata que perto do aniversrio de um ano da
morte da santa, um vulco entrou em erupo, e vomitou fogo, que descia como uma
corrente, fundia os rochedos e a terra, e vinha com mpeto sobre a cidade.64 Segundo ele,
No fechamento do captulo, lemos a exaltao dos milagres feitos por gata e o fato
dela ter sido visitada pelo apstolo Pedro como smbolo de sua glria, com a citao das
feliz e ilustre virgem que mereceu o martrio, derramando seu sangue para
a glria do Senhor! gloriosa e nobre virgem, ilustrada por uma dupla
63
Na lpide lia-se a inscrio: Alma santa, generosa honra de Deus e libertadora da Ptria VARAZZE, Jacopo,
op cit., p. 259). Jacopo ao explicar tais dizeres apenas os repete com outras palavras, ressaltando as qualidades
santas de gata. Ele relata que tal aparecimento deve-se a sua alma santa, ao fato dela ter-se oferecido
generosamente a Deus, por t-lo honrado e por ter liberto sua ptria.
64
Idem, p.259-260.
105
-106-
glria, por ter feito toda sorte de milagres no meio dos mais cruis
tormentos e por ter merecido ser curada pela visita de um apstolo! Os cus
acolheram essa esposa de Cristo sujos restos mortais so objeto de glorioso
respeito, e cuja santidade da alma e libertao da ptria proclamada por
um coro de anjos.65
nome, no qual Jacopo argumenta quais seriam as qualidades que todo santo deveria possuir
citando Crisstomo.
gata identificada como santa duplamente gloriosa por seus milagres e por ter
recebido a visita de um apstolo. Ressaltamos que ela no morreu durante os suplcios, sendo
salva pela interveno divina, que, junto com o destaque dado aos acontecimentos
A mrtir revela grande felicidade face os suplcios, demonstrada nas falas e nas aes
sua virgindade constitui um ascetismo prprio da santa, o que tambm evidenciaria a sua
santidade.
torturas com a exposio do corpo atravs da mama arrancada lembrando a virgem de sua
cristianismo: primeiro, ele busca posicionar a crist gata em seu lugar como mulher,
reconstitudas, tortura-a nua para que ela no pudesse ser curada atravs de nenhuma
65
Idem, p.260.
66
Como os milagres relatados, a resistncia s duras maceraes, a ao da natureza na proteo dos corpos dos
santos, entre outros.
106
-107-
marcaria uma intensa relao de poder, na qual o cnsul acredita ter sido vitorioso ao romper
com o recato da santa e impor-se sobre seu corpo, controlando-o devido a posio social
ocupada. Contudo, o terremoto que se seguiu, levando os citadinos a exigirem o fim das
torturas, evidencia que o controle sobre a personagem no abalava a fora de sua f crist, que
virgens, com a valorizao de seu recato e de sua pureza, sendo essa ltima qualidade
desejvel todos os cristos. Ela identificada como santa e a seguir como uma jovem virgem.
construo de seu gnero, pois palco de marcadas relaes de poder entre a santa e
Quintiano, reveladas claramente nos episdios em que teve a mama arrancada e no da sua
nudez forada. No primeiro relato, atravs dessa punio somtica, o cristianismo exaltado
como vitorioso aps a reconstituio do seio da personagem, feita pelo Apstolo Pedro,
segundo, a vitria ocorre devido ao da natureza, em que um sbito tremor da terra, fez
com que o povo exigisse o fim do suplcio. Conclumos que, em ambos os casos, a vitria do
Iniciando com a sua apresentao, tomamos conhecimento que, assim que se casou com
Eulgio o prefeito de Nicomdia , afirmou que s teria relaes sexuais com ele caso se
convertesse ao cristianismo.
Na narrativa, ela voltou para a morada paterna, onde seu pai mandou despi-la e surr-
la duramente. Destacamos que no h explicaes para esse retorno: se foi forado pelo
107
-108-
marido ou fruto de sua vontade. Contudo, ao considerarmos que ela foi surrada despida,
acreditamos que isso seria uma tentativa de humilh-la e relembr-la da sua condio como
O pai de Juliana a reenvia ao prefeito, que questionou o motivo de seus atos. Ela lhe
respondeu que se ele adorasse o Deus cristo seria aceito como seu senhor.68 Eulgio afirmou
que no poderia faz-lo por temer o Imperador, que poderia mandar cortar-lhe a cabea, ao
que a personagem retrucou dizendo se voc teme dessa forma um imperador mortal, como
quer que eu no tema um que imortal? Faa o que quiser, assim no me ter.69 Nesse
trecho, sublinhamos o claro uso do sexo, pela personagem, como elemento de negociao
para converter o marido ao cristianismo. Ainda que virgindade fosse o padro ideal para os
cristos, o casamento, e o sexo praticado pelo casal, no eram condenados. Alis, no sculo
XIII, era o esperado para os leigos. Logo, a negociao feita por Juliana no era considerada
ilegtima.
O martrio de Juliana, portanto, teria como causa inicial justamente o seu desprezo
pelo marido pago que, segundo o relato, mandou-lhe surrar duramente com vara e, durante
meio dia, pendur-la pelos cabelos, enquanto lhe derramavam chumbo derretido sobre a
67
Os possveis significados da nudez das santas no perodo medieval, especificamente a da santa Juliana, foram
problematizados no artigo de Peter Dendle, cf. _____. How Naked Is Juliana? Philological Quarterly, v.83, n.4,
p.355-390, 2004.
68
Essa questo aparece tambm em outro relato da LA, o da Santa Ceclia (p.941-947), contudo com um
desfecho diferenciado. Segundo o captulo, a nobre, virgem e crist Ceclia foi prometida em casamento para
Valeriano, contudo, no dia das npcias ela revelou ter um anjo de Deus como amante, que cuidava de seu corpo
com grande solicitude. Ela explicou para o marido que se o anjo percebesse que ela fora maculada, ele seria
atingido imediatamente. No entanto, se visse que o amor dele por ela era sincero, o amaria como a um cristo,
caracterizando, assim, o amor puro vinculado ao cristianismo. Segundo a narrativa, o jovem, por vontade de
Deus, falou que queria ver o anjo. A virgem o instruiu que para v-lo teria que ser batizado e rumar a cidade de
pia, onde perguntaria aos pobres sobre o velho Santo Urbano, falando ter uma mensagem secreta para
transmitir-lhe. Ao encontrar com o santo bispo, Valeriano seria purificado e veria o anjo. Ele seguiu as
instrues de Ceclia e converteu-se ao cristianismo.
69
VARAZZE, Jacopo de. Op.Cit. p. 266.
108
-109-
cabea.70 Contudo esse suplcio no a teria feito mal algum atestando a marca de sua
Na priso, um anjo foi visit-la pedindo para que sacrificasse aos deuses. Chorando,
Juliana orou pedindo ao Senhor que no lhe permitisse fraquejar e que lhe mostrasse quem
estava diante dela de verdade. A santa ouviu uma voz dizendo para agarr-lo e obrig-lo a
confessar quem era. Ela o fez e o anjo revelou ser um demnio, filho de Belzebu, que falou
nos faz cometer toda sorte de mal e nos faz aoitar rudemente cada vez que
somos vencidos por cristos que para minha desgraa aconteceu quando vim
aqui, porque no pude super-la (...). Ento Juliana amarrou-lhe as mos
atrs das costas e, jogando-o no cho, bateu duramente nele com a corrente
que servia para prend-la. O diabo dava gritos e suplicava: Minha senhora
Juliana, tenha piedade de mim.71
Nessa passagem, Juliana domina o diabo e exerce poder sobre ele, intimidando-o e
acorrentando-o. Acreditamos que a fora que a personagem revela sobre o demnio seria uma
Segundo o relato, o prefeito mandou que retirassem Juliana da priso e ela seguiu pela
praa com o diabo, que lhe suplicava piedade, porque agora ele j no poderia mais dominar
ningum preso nas correntes. Ela o arrastou por todo trajeto e o jogou em uma latrina por fim.
Levada diante do prefeito, Juliana foi amarrada a uma roda de madeira de modo to
violento que, segundo o relato, todos os seus ossos foram deslocados e a medula saiu
70
Idem, p.266.
71
Idem, p. 267.
72
Ibidem.
73
Jacopo ressalta que os que testemunharam esse acontecimento, se converteram e foram, posteriormente,
decapitados, sendo quinhentos homens e cento e trinta mulheres.
109
-110-
virgem foi jogada em uma caldeira de chumbo derretido. Contudo esse tormento virou um
uma moa que lhes ofendia e mandou decapit-la. Ressaltamos, desse trecho, a inferioridade
concedida aos deuses pagos que no conseguiam superar uma crist; inferioridade essa
gritando para no poup-la. Ao perceber que ela o olhou, ele fugiu exclamando Ai, pobre de
mim! Ainda acho que essa moa quer me prender e me acorrentar.74 H, novamente, uma
subjugao do demnio, evidenciada no temor que a santa lhe causava. Novamente, Jacopo
Aps a decapitao de Juliana, uma tempestade muito forte caiu e o prefeito, junto a
mais trinta e quatro homens, se afogou. Segundo a narrativa, seus corpos foram devorados por
animais e aves aps terem sidos vomitados pelas guas. Assim, o castigo divino enaltece, por
e do espancamento por seu pai, que a relembraria de sua condio como mulher. O seu corpo
ganha, no seu captulo, papel de destaque associado ao sexo e utilizado como elemento de
Juliana tem a sua santidade comprovava atravs dos milagres e da interveno divina,
narrativa.
74
Idem, p.267.
110
-111-
Contudo, nesse relato, acreditamos que a grande meta uma objetivao da fora da f
crist e de seu poder em relao aos outros que, nesse caso, seriam o demnio e os deuses
tentao para Juliana fraquejar e imolar aos deuses, sob disfarce angelical. A jovem, porm,
ora e pede ajuda ao Senhor para confirmao de sua viso e a verdade lhe revelada. Nesse
ocorresse, porque o poder da f seria superior, porque o do Senhor o era. Essa questo seria
reforada com a narrao sobre a fora com a qual a santa controla o demnio, fazendo-o
implorar por piedade e amedrontando-o. Se, como mulher, Juliana sofre abuso de seu pai e de
seu marido, o prefeito, tentando negociar com este, trocando a converso dele pela vida
compilador afirma que o nome Eufmia derivaria de eu, bom, e femina, mulher,
significando boa mulher. Jacopo argumenta que ela foi boa, pois o que bom possui trs
caractersticas: til, honesto e agradvel. A personagem teria sido til por sua maneira
de viver, honesta pela excelncia de seus costumes e agradvel a Deus pela contemplao das
coisas do Cu.75 Devido ao seu nome, j encontramos nesse momento narrativo a sua
identificao como mulher e um elogio ao seu modo de vida crist, caracterizando-a como um
exemplo aos demais. Acreditamos que, ao enaltecer suas virtudes, o dominicano argumenta
75
VARAZZE, Jacopo. Op. Cit. p. 810.
111
-112-
Eufmia tambm viria de eufonia, que quer dizer, segundo Jacopo, som agradvel.
O dominicano alega que este poderia ser alcanado de trs formas: com a voz, com cordas e
com o ar. A personagem teria pronunciado um som agradvel por meio da pregao, de suas
destinavam-se comunidade crist que poderia ter acesso ao relato atravs das pregaes;
dominicano.
publicamente ao juiz Prisco ser crist, aps ver as muitas torturas sofridas pelos cristos, no
tempo de Diocleciano. Na narrativa, somos informados que sua atitude teria confortado os
fila. Seu objetivo era atemorizar os demais obrigados a assistir as execues , para que, por
medo, imolassem aos deuses. Contudo, ao decapitar alguns santos na presena de Eufmia,
Alegre por crer que a demovera de sua f, Prisco questionou-lhe como a insultava.
Eufmia respondeu que, por ser de linhagem nobre, deveria ser martirizada e alcanar a glria
seguindo a perspectiva de Lucy Grig,77 Eufmia se via como um soldado de Cristo que
confrontava a fora do mal, representada, nesse momento, pelo estado romano. Nessa lgica,
o mrtir desejaria a sua morte, exacerbando as torturas, j que quanto maiores fossem os seus
sofrimentos, maior seria a demonstrao da vitria crist coroada com a sua morte. Ainda
76
Idem, Ibidem.
77
GRIG, Lucy. Torture Op.Cit. p. 322.
112
-113-
Eufmia, apesar de no exaltar suas penas, destaca a sua condio social devido ao seu forte
Prisco respondeu que havia ficado aliviado por verificar que Eufmia havia
recuperado seu bom senso e se lembrado da sua nobreza e de seu sexo,79 estabelecendo um
modo de agir e um lugar prprio para as mulheres de sua condio social no perodo. Jacopo
simplesmente narra que a santa foi aprisionada e, no dia seguinte, ao ser levada presena do
juiz sem estar amarrada como os outros, reclamou amargamente por apenas ela ter sido
dispensada dos grilhes, afirmando que isso contrariava as leis dos imperadores.80 Nesse
trecho do relato, sublinhamos a nfase dada ao conhecimento da mrtir sobre as leis romanas.
O juiz a seguiu e tentou violent-la, contudo, segundo a narrativa, ela lutou como um
homem e, por vontade divina, a mo de Prisco ficou paralisada, o que no permitiu que ele
Brown,81 para alguns pensadores cristos, atravs da virgindade a alma se uniria a Cristo,
tornando-se sabedoria e luz. Por exemplo, para Crisstomo82 e Gregrio de Nissa,83 o corpo
78
O autor Oscar Calavia Saz defende que a narrativa das crueldades dos suplcios serviria para construo do
culto aos santos. Cf. SAZ, Oscar Calavia. Religio e restos humanos. Cristianismo, corporalidade e violncia.
Antropologia em primeira mo, n.55, p.1-27, 2003. Disponvel em: http://www.antropologia.ufsc.br/
55.%20oscar-cristianismo.pdf. ltimo acesso: 17/03/2008.
79
Ibidem.
80
No h nenhuma especificao sobre qual compilao legislativa o relato se refere, contudo as leis dos
imperadores costumavam ser compndios contendo resumos das leis do imprio anterior. Cf. ALMEIDA, Jorge.
Perodos e fontes da Histria do Imprio. Disponvel em: http://www.azpmedia.com/historia/
content/view/69/28/. ltimo acesso em: 23/01/2008.
81
BROWN, Peter. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renncia sexual no incio do cristianismo. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 285.
82
Joo Crisstomo nasceu na Antioquia por volta de 344. A data de sua morte teria sido provavelmente em 405
ou 407. Teria seguido uma vida asctica e pregador. Ele figura entre os quatro grandes Padres do Oriente. Para
mais informaes sobre sua vida e trabalho, cf. HAMMAN, Adalbert-G. Para ler os Padres da Igreja. So
Paulo: Paulus, 1995.
83
Gregrio de Nissa foi um telogo e filsofo cristo nascido em Cesaria, da Capadcia, na Anatlia, sia
Menor, hoje Kayseri Turquia. Personagem da era Patrstica, ele possuiu certo renome no processo de
consagrao do pensamento cristo, sendo um dos precursores do trabalho de Santo Agostinho. Para mais
113
-114-
virgem era o veculo da ascenso da alma rumo a Deus. Em outras palavras, essa virtude era
comeou a ser construda uma viso herica vinculada virgindade. Ela defende que tal
acepo devia-se crena de que resistir s tentaes, para no se render s paixes, era
considerado um ato herico.85 Logo, acreditamos que a luta travada entre a virgem e o juiz
desse pressuposto, defendemos que a tentativa de controle sobre o fsico da jovem, por parte
do juiz, evidenciaria uma batalha de poderes, em que, apesar dele no ter conseguido demov-
la de sua f, o comando do somtico da jovem poderia ser uma forma de comandar tambm a
sua alma. No entanto, a mrtir sai vitoriosa dessa disputa. Atravs de uma comparao com a
resultado do poder da sua f , destaca-se que a santa foi auxiliada com a interveno divina
Acreditando estar sob algum feitio, Prisco ordenou que seu prepsito86 fosse at o
crcere onde se encontrava Eufmia, para tentar convenc-la a aceitar o juiz como amante. No
entanto, a sua cela no se abria com o uso das chaves e nem era quebrada a machadadas.
Somos informados que o prepsito, por fim, foi possudo por um demnio e fugiu, aos gritos,
santa, mas, nesse caso, seguida de uma justia punitiva, na qual o funcionrio do juiz,
informaes sobre sua vida e seu trabalho, Cf. CORBELLINI, Vital. A doutrina da encarnao do Verbo no
Adversus eunomium de so Gregrio de Nissa, 357-375. Revista Eclesistica brasileira. Para alm da idolatria.
v. 65, n.258, p.357-375, abril 2005.
84
PETROFF, Elizabeth Alvilda. Body and Soul: Essays on medieval womem and Mysticism. New York e
Oxford: Oxford University Press, 1994.
85
Ressaltamos que a autora no define essa gradao. Idem, p.94.
86
Prepsito ou prelado refere-se a um superior masculino. No lexus religioso cristo passou a ser o dignitrio
eclesistico.
114
-115-
endemoniado, acabou por se automutilar.87 Vale destacar que a ajuda sobrenatural, no caso de
primeira atravs de sua identificao como mulher no estudo etimolgico, feito por Jacopo,
e de sua posio social como filha de um senador. A segunda aparece na sua performance no
mbito social, pois, segundo seu relato, ela lutou como um homem ao ser agarrada pelo juiz.
Assim, acreditamos que o seu relato estaria contrrio aos discursos misginos hegemnicos
saberes construdos sobre seu gnero, aperfeioando-se. No entanto, esse processo s lhe foi
possvel por ela ser crist e, principalmente, por seguir uma vida recheada de virtudes crists
Cabe ressaltarmos que possuir uma vida recheada de valores cristos no era o aspecto
formador da santidade, mas sim a comprovaria. Segundo a viso da poca, o santo marcado
desde o seu nascimento pela graa divina e a sua vivncia entre os homens serviria para
suscitar efeitos purificadores e milagres, entre outros. Em outras palavras, Eufmia teria a
santidade inerente a ela, sendo que ao argumentar sobre as suas virtudes e qualidades,
acreditamos que Jacopo objetivou afirm-la como um exemplo a ser seguido pelos cristos.
Retornando a narrativa, aps o prepsito ter sido tomado por um demnio, Eufmia
foi colocada sobre uma roda, cujos raios estavam cheios de brasas. O plano era que um
arteso, posicionado no meio da roda, desse um sinal sonoro para que seus ajudantes
iniciassem o seu movimento, carbonizando o corpo da mrtir. No relato afirma-se que, por
vontade divina, o instrumento que retinha a roda caiu das mos do arteso e os ajudantes,
87
Essa conotao alegrica da automutilao possuiria um forte carter pedaggico e didtico, fornecendo
provas da santidade dos personagens e da fora da f crist.
115
-116-
A famlia do arteso decidiu, ento, queimar a roda com a virgem amarrada nela,
texto, para pegar Eufmia no lugar em que estava foram colocadas escadas, e quando
algum quis esticar a mos para agarr-la, no mesmo instante ficou completamente paralisado
e somente com muita dificuldade conseguiram desc-lo meio morto.89 Em seguida, lemos
que um homem chamado Sstenes subiu na escada e foi convertido imediatamente por
Eufmia, afirmando que preferia a morte a ter que tocar em uma pessoa guardada por anjos.
Ela foi descida, mas no sabemos como, pois Jacopo no revela. O juiz, ento,
mandou seu chanceler reunir todos os jovens libertinos para que se divertissem com ela at
morrerem de esgotamento. Porm, quando o primeiro entrou no local onde estava a virgem,
Alm disso, a apario de muitas outras virgens seria uma coroao de sua qualidade
A seguir, somos informados pela narrativa que ela foi suspensa pelos cabelos, mas
somticos. Foi reconduzida priso, com a proibio de receber alimentos, para que ela fosse
esmagada entre quatro pedras aps sete dias. Contudo, ela orou e as pedras foram reduzidas a
p. Assim, para salv-la h, novamente, a interveno divina, com um milagre voltado sua
Outro milagre nessa mesma linha aparece no episdio narrado aps esse, no qual o
juiz, envergonhado por ter sido vencido por uma mulher,90 decidiu jog-la em um fosso onde
88
Segundo Philippe Faure, no artigo Anjos, a manifestao Anglica uma descida do Cu terra que santifica
o homem, o tempo e o espao. A visita e a viso dos anjos parecem como signo de santidade do monge e de sua
semelhana com os habitantes do Cu. Desse trecho, destacamos a santificao de Eufmia confirmada pela
visitao de um anjo para salv-la. FAURE, Philippe. Anjos In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude.
Dicionrio Temtico...Op.Cit., p. 69-80.
89
VARAZZE, Jacopo de. Op.Cit., p.811.
90
Nesse sentido, acreditamos que ele foi vencido porque suas torturas no afetaram Eufmia, pelo contrrio, elas
acabaram por enaltecer o poder da f crist. Alm da conotao de humilhao vinculada ao fato de Prisco ter
perdido para uma mulher, deixando-o envergonhado.
116
-117-
estavam trs animais selvagens que poderiam devorar qualquer homem.91 Contudo, estes
foram at Eufmia, mansos, para acarici-la, e arrumaram as caudas juntas para servir de
Prisco quase morreu de angstia e o carrasco, para vingar a afronta feita a seu senhor,
enfiou a espada no tronco de Eufmia. Aps lutar por sua virgindade e por sua f, por fim,
Eufmia foi morta com uma espada enfiada no seu flanco pelo carrasco do juiz. Ele foi
recompensado com um traje de seda e um colar de ouro, contudo ao sair foi apanhado por
um leo que o devorou completamente (...). O juiz foi encontrado morto depois de ter
Ambos os algozes foram penalizados pelo martrio de Eufmia, sendo que o juiz se
destaque dela possuir o mrito de ter convertido a todos os judeus e pagos da regio, o que
acreditamos sublinharia as converses que foram feitas atravs do exemplo da vida e das
palavras da virgem. Jacopo termina o relato citando o prefcio da obra Sobre a virgindade de
s oraes na superao dos suplcios sofridos e viso da carne como uma priso para a
alma:
91
Idem, p.812.
92
Ibidem.
93
Idem, p.812.
117
-118-
No relato de Eufmia destacamos que os suplcios aos quais ela foi condenada foram
vencidos por interveno divina, atravs de aparies angelicais ou de punies feitas por
figura nesse captulo. Ou seja, os tormentos de Eufmia so indolores. Esse elemento pode
ser atribudo prpria virgindade da personagem. Essa virtude, enaltecida ao longo do relato,
ganharia contornos hericos com a total renncia de Eufmia aos prazeres mundanos e com a
sua luta para manuteno de sua virgindade, o que j atestaria o caminho de sua alma. Logo,
serviriam para definir qualidades desejveis nos cristos e nos irmos pregadores. Nesse
sentido, defendemos que sua biografia apresenta um caminho para salvao da alma baseado
cristos.
como tambm ao valor concedido virgindade da personagem. A luta de poder sobre o corpo
enaltecida ao longo do captulo e protegida com milagres que comprovariam a sua santidade.
Sua virgindade adquiria valor similar dor para atestar o caminho de sua alma. Essa virtude,
94
POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
95
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4,
p.11-46, 2002
118
-119-
de carter herico, possibilitou que Eufmia superasse comportamentos construdos sobre seu
gnero fragilidade, fraqueza de sua carne, entre outros , aperfeioando-se. Esse processo
s lhe foi possvel por ela ser crist e, principalmente, por seguir uma vida recheada de
Como em outros relatos, esse tambm se inicia com uma anlise etimolgica. Segundo
a obra, Catarina significaria runa universal, porque ela arruinou o edifcio do diabo com o
seu modo de vida: a soberba com a sua humildade, a concupiscncia carnal com a sua
virgindade e a cupidez mundana com seu desprezo pelas coisas materiais. Alm disso, poderia
ser correntinha advindo de catenula. De acordo com sua interpretao, ele afirma que foi
com boas obras que ela fez para si uma corrente com a qual subiu ao Cu. Cabe destacarmos
que ao escrever quais seriam os quatro degraus que formariam essa corrente, o compilador
cita o livro bblico de Salmos, quando o profeta pergunta quem subiria na montanha do
Senhor (Salmos 24, 3), ele mesmo responde: Aquele cujas mos so inocentes e o corao
puro, que no ocupou sua alma com futilidades, que no fez juramentos falsos contra o
prximo.96
convocou a todos que residiam em Alexandria para sacrificar aos deuses, ameaando punir os
que no o fizessem. Ento a personagem, que, com dezoito anos de idade, vivia em um
96
Ibidem.
97
Cabe ressaltarmos que o relato no norteado por muitos milagres ou intervenes divinas, s h quatro
episdios milagrosos. O primeiro milagre foi o envio de uma pomba pelo Senhor que alimentou a santa por doze
dias com alimento celeste. O segundo foi a destruio das rodas, que iam moer a carne da santa, que causou a
morte de quatro mil gentios. O terceiro foi a morte do imperador que, segundo Jacopo, foi castigado por esse
martrio, alm de muitos outros, e, por ltimo, consideramos tambm o sepultamento de Catarina, que foi
realizado por anjos no alto do Monte Sinai.
98
Ao final do relato, Jacopo diz haver uma dvida sobre quem teria sido o responsvel pelo martrio de Catarina:
Maxncio ou Maximiano. Provavelmente por tal razo, o compilador apenas menciona o nome do imperador
nesse momento narrativo, chamando-o de imperador ou rei ao referir-se a ele ao longo do captulo.
119
-120-
aplausos, mandou imediatamente algum verificar o que acontecia. Informada, saiu do palcio
junto com outras pessoas e protegendo-se com o sinal-da-cruz. Viu muitos cristos que,
levados pelo temor, ofereciam sacrifcios.99 Nesse trecho, destacamos a relevncia dada ao
sinal-da-cruz como meio de proteo e de ligao com o Senhor, como veremos a seguir.
procurando demov-lo de suas crenas. Jacopo afirma que esses argumentos vincular-se-iam
primeira pertenceria aos retricos e dialticos, a segunda, aos filsofos, e a terceira, aos
sofistas. Ele conclui, portanto, que ela dominava todas as formas de saber humano. Apesar de
aparecer na LA que ela recebera instruo em todas as letras liberais, lemos que o imperador
ficou estupefato pela sapincia dela, pois, alm de bela, ela expunha com sabedoria muitas
coisas sobre a encarnao do Filho.102 Destacamos dois elementos para anlise nessa
condizente com a educao que recebera, assim como pela doutrina crist, ainda que no
aparea no relato nenhuma meno de que fora instruda por um clrigo. Logo, defendemos
que o espanto causado por sua sabedoria estaria associado no ao conhecimento da "cincia
Sublinhamos que havia, no sculo XIII, uma preocupao com a difuso dos trabalhos
nossa interpretao, Jacopo utiliza esse relato para argumentar que o saber completo seria
99
Idem, p. 962.
100
Idem, p.969.
101
Ao final do relato ele discorre sobre a filosofia ou a sabedoria que estaria dividida em saberes tericos,
prticos e lgicos, dos quais Catarina possua entendimento e domnio (Ibidem).
102
Idem, p.963.
120
-121-
que, alis, Catarina detinha sem receber alguma instruo especfica, conforme o texto. Dessa
forma, acreditamos que essa personagem simbolizaria o saber no seu sentido mais completo,
seu gnero. Isto , a jovem, ainda que mulher, possua profundos saberes seculares, nem
sempre comuns ao sexo feminino, assim como aqueles inspirados pelo prprio Deus, tambm,
O relato continua com o imperador, sem saber o que responder, ordenando que a
levassem ao Palcio at os sacrifcios acabarem, que ento ele a responderia. E assim o fez.
Ele foi at Catarina e questionou quem ela era e qual era a sua origem. Ela respondeu e, ao
no perigo!.105
O rei retrucou que se o que ela falava fosse verdade, todos estariam errados, no
entanto toda afirmao deveria ser confirmada por pelo menos duas testemunhas,
acrescentando que mesmo que voc fosse um anjo ou uma potncia celeste, ningum deveria
Catarina unicamente por sua condio de mulher. Na continuao do dilogo, ela lhe pediu
citando um poeta:107 Se o esprito o governa, voc ser rei, se o corpo o governa, ser
103
Jacques Le Goff afirma que foi Toms de Aquino quem defendeu que arte seria toda atividade racional e
justa do esprito aplicada no fabrico de intrumentos, quer materiais, quer intelectuais. Dessa forma, as artes
liberais (cincia) eram chamadas de artes porque implicariam em um conhecimento que resultaria da razo
diretamente. LE GOFF, J. Os intelectuais na Idade Mdia. Lisboa: Estdio Cor, 1973. p.68-69.
104
Segundo a historiografia, Cassiodoro teria divulgado as sete artes liberais como fundamentais para a
composio da educao crist. Para mais informaes, cf. PAUL, Jacques. Historia intelectual del occidente
medieval. Madrid: Ctedra, 2003, LE GOFF, Os intelectuais ... Op. Cit., RAINHA, Rodrigo dos Santos. A
Educao no Reino Visigodo. Rio de Janeiro: HP Comunicao Editora, 2007.
105
Idem, p.964.
106
Ibidem.
107
Ressaltamos que no encontramos informaes sobre qual teria sido o poeta ou filsofo em questo.
121
-122-
pedindo-lhe para superar o fato dela ser mulher, para que seu saber obtivesse a devida ateno
e reconhecimento.
sabedoria, reuniu secretamente cinqenta oradores que superavam todos em qualquer gnero
da cincia, entre gramticos e retricos de toda Alexandria, para que confundissem Catarina.
grande imperador, voc convocou os sbios de todas as regies mais afastadas do mundo para
uma simples discusso com uma moa, quando um de nossos discpulos podia facilmente
refut-la!.109 Novamente sua condio como mulher aparece como motivo de desqualificao
De acordo com o compilador, o rei, ao fazer isso, desejava confundir Catarina em seus
argumentos e no apenas tortur-la com suplcios.110 Ele queria desqualificar a crena dela
como ela fez com a dele, enquanto enaltecia a sua. A narrativa continua e a virgem, informada
deste encontro com os oradores, recomendou-se ao Senhor. Um anjo lhe apareceu e avisou
para ela ser firme, pois ela no apenas converteria os sbios como os destinaria palma do
martrio. Em outras palavras, a sabedoria com a qual ela expunha a doutrina estava
diretamente associada sua confiana no Senhor, que mandou um anjo preveni-la para
manter-se de acordo com a f. Ao narrar isso, defendemos que Jacopo objetivava incentivar
108
Ibidem.
109
Ibidem.
110
Eu podia obrig-la pela fora a oferecer sacrifcio, ou elimin-la por meio de suplcios, mas julguei
prefervel que seja confundida pelos argumentos de vocs (Idem, p.963).
122
-123-
justo que voc oponha uma moa a cinqenta oradores aos quais promete
gratificaes pela vitria, ao passo que me fora a combater sem me
oferecer a esperana de uma recompensa? Entretanto para mim a
recompensa ser meu Senhor Jesus Cristo, que a esperana e a coroa dos
que combatem por ele.111
mulher e certo receio da prpria personagem devido a seu sexo. Contudo, ela demonstra total
coisas materiais.
estariam dispostos a converterem-se. Catarina prega. Ela faz com que pessoas convertam-se.
Sem temer o que poderia ocorrer a sua pessoa, ela age como um dominicano deveria agir: usa
serem queimados no centro da cidade. Contudo, eles lamentaram morrer sem serem batizados,
mas Catarina pediu para que nada temessem, pois o sangue que derramassem no martrio seria
entregaram-se s chamas, que no atingiram nem seus cabelos nem suas vestes. Nesse trecho,
111
Idem, p.963-964.
112
Ela diz: Plato estabelecera que Deus um crculo cortado em forma de meia-lua. Assim, quando Jacopo
apresenta um Plato cristianizado, demonstra uma pungente preocupao abertura aos filsofos pagos nas
Universidades, devido presena dos dominicanos nesses centros intelectuais.
113
Idem, p.964.
123
-124-
verificamos que apesar de toda a sabedoria da santa, o fato dela ser mulher impediu-a de
batizar os sbios. Nesse sentido, defendemos que o dominicano constri a personagem como
representao de sabedoria por interveno divina, como uma espcie de smbolo, no como
um ser real.
O rei prope para a jovem sacrificar aos deuses, poupando sua juventude e recebendo
o segundo posto mais importante no reino, depois da rainha, o que Catarina recusou. Diante
disso, Jacopo escreveu que cheio de raiva, o csar mandou despi-la e tortur-la com
escorpies e depois jog-la em uma escura priso, na qual deveria padecer de fome durante
que ela era apenas uma mulher. Alm disso, defendemos que o somtico da personagem seria
palco das relaes de poder genderificadas: como o rei no poderia controlar a alma de
Nesse meio tempo, o rei teve que se ausentar para resolver questes em outra regio e
a rainha, que se afeioara a Catarina, foi visit-la junto com o comandante militar Porfrio. No
crcere, ambos foram convertidos, alm de outros duzentos soldados. Jacopo aqui refora a
pensando, que algum lhe dera alimentos, mandou torturar seus soldados. Catarina retrucou
afirmando que ningum a alimentara, pois ela recebera alimento celeste. Nesse sentido, seu
esplendor estava relacionado sua f, que tambm a nutriu. O imperador ento lhe ordenou
escolher entre oferecer sacrifcios ou perecer, ao que ela respondeu: Quaisquer que sejam os
tormentos que voc possa imaginar, no demore em aplic-los, pois desejo oferecer minha
114
Idem, p. 965.
115
Ibidem.
124
-125-
carne e meu sangue a Cristo, como ele prprio se ofereceu por mim. Ele meu Deus, meu
serras de ferro e de pregos pontiagudos, para que essa mquina moesse Catarina em pedaos e
Contudo, a virgem rogou ao Senhor, pedindo-lhe que destrusse tal mquina pela glria de seu
nome e pela converso do povo que se encontrava ali. Ou seja, mesmo sendo uma mulher,
Catarina no temia a dor. Ao rogar para que a roda fosse destruda, o relato destaca que ela
Nessa passagem, temos no apenas a interveno divina, que salvou a virgem, como
tambm o castigo divino voltado aos gentios. E, alm disso, ao narrar que o pedido por ajuda
foi prontamente atendido, o compilador enalteceu a posio contrria de Deus em relao aos
deuses pagos, que no o auxiliavam, como disse Catarina, e enalteceu os mritos em manter-
Jacopo narra que a rainha, que assistia a tudo, foi ao encontro de seu marido e lhe
chamou a ateno por suas crueldades. Ela exortou o marido que furioso com a recusa da
decapitada.118 Nesse sentido, a f crist deu-lhe as foras necessrias para rebelar-se contra
seu esposo, sem se importar com as conseqncias desse ato.119 Catarina disse para ela no
116
Idem, p.965-966.
117
Nesse ponto, Jacopo descreve como a mquina funcionava, o que acreditamos seria uma estratgia textual
para enaltecer tanto como a coragem da virgem quanto o milagre que sucederia: Dispuseram-se duas rodas que
deviam girar numa direo, ao mesmo tempo em que duas outras seriam postas em movimento sentido contrrio,
de maneira que as de baixo deviam rasgar as carnes que as rodas de cima houvessem jogado nelas. Idem, p.
966.
118
Ibidem.
119
Acreditamos que a inteno de corta-lhe as mamas fora para lembr-la de sua condio: ela era apenas uma
mulher e como tal no poderia desafiar um homem, em especial o seu marido e rei. Ora, ao narrar esse episdio
em que a f fortaleceu a rainha, Jacopo pretendia incentivar mais ainda os irmos a no desistirem por medo das
conseqncias. Ressaltamos que o imperador acusa Catarina de ter feito a rainha morrer com a sua arte mgica,
mas coloca-se disposto a perdo-la caso ela se arrependesse e prometendo-lhe como recompensa o posto de
pessoa mais importante do palcio. A tentativa de seduzi-la com o poder novamente falha.
125
-126-
temer, pois ela iria ganhar um marido imortal.120 Aps sua morte, Profrio, o comandante
militar, revela ao imperador ter sepultado o corpo dela e de ter-se convertido f crist.
comentar o ocorrido com os soldados, eles tambm lhe revelaram estarem todos convertidos
f crist. Jacopo afirma que brio de furor, o csar ordenou ento que se cortasse a cabea
deles e de Profrio e que seus corpos fossem jogados aos ces.121 E, apesar desse estado
mental alterado, Maxncio122 no condenou a virgem, pelo contrrio, deu-lhe uma nova
chance de arrepender-se. Somente diante da nova recusa que ele a condenou decapitao.
Aps ser decapitada, Jacopo narra que do corpo de Catarina jorrou leite e no sangue e
que os anjos pegaram seu corpo e o sepultaram com honras no alto do monte Sinai. De acordo
com Thomas Laqueur, no livro Inventando o sexo. Corpo e gnero dos gregos a Freud,
da noo de economia de fluidos fungveis. Nesse sentido, todo sangue que no era
nutrio.123
chamado vasa mestrualis, Merral Llwelyn Price, no artigo Bitter milk: The Vasa Mestrualis
and the cannibal(ized) virgin,124 defende que a equivalncia entre o sangue e o leite
de Cristo na Eucaristia.
significados: ligada a ltima ceia do Senhor; codificao de preces eucarsticas, que recebeu
126
-127-
natureza histrica das fontes; e ao seu entendimento como oratio-prex seguindo a idia de
sacrifficium offerre por parte da comunidade crist.125 Nesta ltima, associa-se ao sacrifcio
individual, possuindo relao com a Igreja. A Eucaristia vista como alimento e como
engravidado, podemos supor que ao jorrar leite e no sangue de seu ferimento, Jacopo estaria
realizando um paralelo com a idia de Catarina nutrindo os seus filhos, que seriam aqueles
sacrifcio da mrtir que morre em nome da f diante de todos. Sublinhamos que Renzo
Gerard127 defende a viso de Eucaristia como sacrifcio, afirmando que a vtima imolada
bebendo o nico clice que algum se torna a oferenda viva, se assemelhada a Cristo, vtima
pascal.128
seu sacrifcio, nutre aqueles que assistiram seu martrio e os que tomaram conhecimento dele,
colocando-se na posio de oferenda Cristo. Coroada com o martrio, ela foi acolhida por
Segundo o captulo, sublinhamos um marcado incentivo ao seu culto dado por uma
passagem ao final. Jacopo argumenta que, antes de morrer Catarina orou, pedindo que todos
que se lembrassem de seu martrio e fizessem um pedido, fossem atendidos. Ela escuta como
resposta: Vem, minha querida, minha esposa, a porta do Cu est aberta para voc. A todos
125
HAMMAN, Adalbert. Eucaristia. In: DI BERARDINO, Angelo (Org.). Dicionrio Patrstico e de
Antiguidades Crists. Petrpolis: Vozes, 2002. p.527-530.
126
Justino apud HAMMAN, Adalbert. Op.Cit.. p. 527.
127
GERARD, Renzo. Eucaristia. In: FISICHELLA, Rino; PACOMIO, Luciano & PADOVESE, Luigi (Orgs.)
LEXICON. Dicionrio Teolgico Enciclopdico. So Paulo: Loyola, 2003. p. 264-265. p. 264.
128
Ibidem, p. 264.
127
-128-
os que celebrarem a memria do seu martrio com devoo, eu prometo a ajuda do Cu que
pedirem.129
Acreditamos que essa passagem visava ser um incentivo ao culto da mrtir, o que seria
fortalecido quando Jacopo narra que um monge de Ruo foi ao Monte Sinai, onde Catarina foi
sepultada e l permaneceu por sete anos a servio da mrtir, rogando-lhe por algum pedao de
seu corpo. Um dia, um de seus dedos desprendeu-se e o monge recebeu esse dom de Deus
com alegria, levando-o para seu mosteiro.130 Nesse caso, no h apenas uma argumentao
uma relquia131 em um local determinado, o que serviria para atrair fiis e doaes.
quais Catarina era admirvel: sua sabedoria, sua eloqncia; sua firmeza; sua castidade; e seus
Ao tratar sobre a sabedoria, ele afirma que Catarina reuniria todos os aspectos
desejveis da sapincia que possua trs faces: a terica, a prtica e a lgica, como
subdivises, afirmando que ela detinha saberes de cada expresso de conhecimento abordada.
Ressaltamos que, na sabedoria terica, h uma associao ao divino em duas das suas
ela possua a sabedoria natural no conhecimento de todos os seres inferiores, que usou em
129
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit., p.967.
130
Ibidem.
131
Para mais informaes sobre o papel das relquias no perodo medieval, cf. BUENACASA PEREZ, Carlos.
La instrumentalizacin econmica del culto a las reliquias: una importante fuente de ingresos para las Iglesias
tardoantiguas occidentales (ss. IV-VI). In: BOSCH JIMNEZ, Concha, VALLEJO GIRVS, Margarita,
GARCA MORENO, Luis A., GIL EGEA, Mara Elvira. (coord.). Encuentro Hispania en la Antigedad Tarda,
3, lcala de Henares, 13 a 16 de Octubre de 1998. Actas... lcala de Henares: Universidad de lcala, 2003. p.
123-140, GAJANO, Sofia Boesch. Santidade. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio
Temtico... Op.Cit., p. 449-463. p. 452.
132
A sabedoria intelectual associada ao conhecimento do divino, pois foi com ela que a santa comprovou a
existncia de um nico Deus e descartou os demais, assim, de certa forma Jacopo defenderia um tipo de
conhecimento vinculado ao teolgico. VARAZZE, Jacopo, Op. Cit., p.967.
133
Catarina possuiria o conhecimento matemtico por ter se despojado de todo bem material enaltecimento do
desapego material mendicante e a utilizou ao convencer a rainha a desprezar o mundo e amar o rei eterno.
Ibidem.
128
-129-
seu debate com o imperador,134 desqualificando-o. Alm disso, sublinhamos que ao narrar
viveu, pela sua relao honrada com a sua famlia e pelos sbios conselhos dados ao
imperador.
ato de pregar, comumente realizado por personagens masculinos na LA. Apenas Catarina de
Alexandria e Maria Madalena esto claramente associadas a este papel na compilao, o que
Latro, em 1215. O cnone 10, dedicado a essa questo, estabelece que a pregao poderia ser
designadas pelo bispo responsvel pelo local quando este no puder cumprir com essa
Em suma: nesse, lemos sobre uma santa objetivada como smbolo de uma sabedoria
completa a ser seguido pelos irmos dominicanos, mas no pelas mulheres. Defendemos que
Jacopo destaca que, para o soberano, Catarina, por ser uma mulher, era inferior aos
homens, sendo inferiorizada pelo prprio rei, pelos oradores e at por suas prprias atitudes.
Ela contorna essa viso por ser crist, por ter assumido as verdades do cristianismo e deixar
que seu Senhor falasse por ela. Nesse sentido, o dominicano defende, atravs dessa
personagem, as qualidades que os irmos pregadores deveriam ter, o que fica mais evidente
nas ltimas pginas do relato dedicadas para o compilador trabalhar com as qualidades
129
-130-
melhor, um tipo de erudio que reunia saberes variados, mais associados s universidades,
muitos se converteram. Afinal, se uma mulher podia fazer isso, imagine do que os irmos
Assim, apesar de haver uma construo de identidade de gnero atravs de uma certa
disputa de espao entre a sua condio como mulher, ressaltada constantemente, e a sua
que a essncia desse relato encontra-se na construo de uma personagem cuja sabedoria
superaria o infortnio de seu sexo e cuja vida seria coroada com o martrio.
martirizao, foram distintos. gata e Anastcia foram levadas a julgamento por causa da
ganncia de suas riquezas por terceiros. A primeira foi vtima de Quintiano, enquanto a
segunda foi alvo de dois prefeitos. Catarina e Eufmia foram at aos locais onde outros
segurana aos coraes cristos. J a santa Juliana foi condenada por negar-se a ter relaes
formulao dos sermes, visando ao entre os fis e a converso dos infiis e hereges, no
entanto cada captulo teria finalidades especficas. Nesse sentido, a obra apresenta uma
sucesso de topos sem unidade, justamente por ser uma compilao e Jacopo aproveita-se
130
-131-
relao pag e a sua superao ao demonaco, indicando a proteo fornecida pelo Senhor
A exaltao dessa qualidade tambm aparece no captulo de Catarina, quando ela teria
objetivao dessa personagem como smbolo de sabedoria, funcionando como pano de fundo
principalmente.
No relato sobre gata, o objetivo era incentivar os fiis a manterem-se retos na vida
crist, no importando a situao. Apoiamos tal hiptese na felicidade com a qual a santa
encara os suplcios o que transparece nas suas falas e nas suas aes , por acreditar no
poder de sua f e, ao mesmo tempo, desejar a vida eterna ao lado de seu Senhor. A visita
recebida do maior dos apstolos para cur-la, apenas a enaltece, pelo mrito de manter sua
retido e persistncia.
demonstrada na raiva do prefeito Quintiano, que amaldioou os seus prprios deuses. Nos
virgindades, marcando assim uma total rejeio dos prazeres carnais por parte das santas.140
137
Destacamos que todas as personagens so virgens, contudo em algumas narrativas h o destaque para tal
condio.
138
O relato de gata tambm possuiria, em menor destaque, essa argumentao sobre a sabedoria, contudo a
superao somtica para alcanar a santidade seria o principal elemento.
139
Sublinhamos que todos os relatos so norteados por milagres que evidenciavam a presena divina e
confirmavam a santidade das personagens, contudo apenas nas narrativas das santas Eufmia e Anastcia eles
voltam-se proteo da virgindade delas, como analisado anteriormente. Esse recurso narrativo relacionar-se-ia
ao objetivo de cada relato. No primeiro, temos o enaltecimento dos mritos e das virtudes em manter-se fiel f
crist, utilizando-se da narrao de eventos sobrenaturais e de episdios milagrosos; j, no segundo, como j
dissemos, o cerne do texto est na exaltao da virgindade apesar dos pesares.
140
Ressaltamos que nem todo santo da LA possui essa desvinculao com o aspecto carnal. Lembramos do
relato sobre Santa Teodora, por quem um jovem rico inflamou-se de desejo, graas ao diabo. Segundo a
narrativa, ele a atormentou de tal forma, que ela perdeu a sade e o sono e o homem foi a uma feiticeira pedindo
auxlio. A personagem havia dito que nunca cometeria um pecado to grande ela era casada aos olhos de
131
-132-
impostas s personagens com os corpos nus nos chama ateno. No caso de Santa gata, em
nossa opinio, o somtico possuiria dois grandes objetivos. Primeiro, o suplcio de ter o seio
arrancado, serviria para relembr-la de sua condio como mulher, contudo a sua restituio
tortur-la nua, o propsito seria humilh-la: Quintiano a superaria pela sua condio social,
mas perde pela f da personagem relembramos que ele foi atacado pelos seus prprios
Relatos sobre torturas com as personagens nuas, tambm ocorrem nos captulos de
Juliana, h duas apresentaes de usos do seu corpo dentro de relaes de poder. A primeira
seria o uso do sexo como mecanismo de convencimento do marido, para que ele se
convertesse. A segunda seria a surra que levou do pai, que representaria a sua humilhao e
demonstrao do controle que ele possua sobre seu corpo. No caso de Catarina, a nudez
corpo virgem est presente em todos os relatos, no entanto participaria de modo direto na
Jacopo pontua durante a narrativa que Catarina uma mulher e inferior aos homens,
atravs de passagens narrativas em que ela dialoga com o rei, os oradores e at consigo
mesma. Ela contorna qualquer viso sobre ela, por ser mulher, ser inferior com o uso de sua
Deus que tudo v ento a feiticeira a convenceu que o que acontece depois do cair do Sol no era visvel pelo
Senhor. Assim, ela cedeu volpia do rapaz, mas se arrependeu ao perceber o que tinha feito, travestiu-se e
retirou-se para um cenbio sob o nome de Teodoro.
141
No captulo sobre Catarina, h outra narrativa com o relato do seio ter sido arrancado: a rainha que foi
condenada ao martrio. Contudo, apenas h a meno desse castigo, antes dela ser decapitada, logo acreditamos
que, nesse caso, o objetivo era apenas coloc-la em seu lugar social como mulher.
132
-133-
espao entre a sua sapincia e seu sexo biolgico. Nesse caso, a nudez da personagem
entregue ao ltimo prefeito, ela exilada na Ilha de Palmarola junto com outros cristos. Eles
so buscados e martirizados.
Nos relatos sobre os corpos torturados, salientamos que todas as mrtires so salvas
por eventos milagrosos, dos suplcios ou no sentem o tormento, com exceo de gata. Na
sua narrativa lemos sobre milagres que a curam, o que estaria vinculado ao enaltecimento do
objetivado como palco de relaes de poder sofridas associadas s passagens de nudez, por
Assim, conclumos que Jacopo compilou esses relatos visando atender certas questes
133
-134-
CAPTULO 4
relativos aos personagens masculinos da Legenda urea.1 Lembramos que, no total, foram
1. So Vicente, o vitorioso
O relato segue uma narrativa linear, sendo iniciado por um rpido estudo etimolgico.
Segundo a interpretao de Jacopo, no captulo sobre So Vicente, este nome significaria trs
coisas: queimando o vcio (vitium incendens), aquele que vence os incndios (vincens
1
VARAZZE, Jacopo. VARAZZE, Jacopo. Legenda urea; vida de santos. So Paulo: Companhia das Letras,
2003.
2
Sublinhamos que, em alguns captulos estudados, h o relato de outros martrios, inclusive de personagens
femininas. Todos foram mencionados em nosso trabalho.
134
-135-
foi devido sua sabedoria, pureza3 e constncia que ele venceu os trs flagelos do mundo: as
Destacamos que o santo marcado por vitrias durante todo o relato, sendo colocado
face aos carrascos, a Daciano responsvel pelo seu martrio -, aos instrumentos de tortura e
Aps essas reflexes sobre o nome Vicente, Jacopo cita Agostinho,5 informando que
segundo esse autor os martrios dos santos foram e continuam sendo exemplos para vencer o
mundo com todos os seus erros, amores e temores.6 Desta forma, o dominicano j identifica,
no incio do captulo, a santidade de Vicente vinculada ao martrio e ainda aponta para o valor
nascimento e mais nobre por sua f e sua religio.7 Na LA, lemos que ele era dicono do
bispo Valrio, que lhe confiou pregao pela sua facilidade em exprimir-se, enquanto o
reforaria o ideal proposto por Domingos acerca do equilbrio necessrio entre pregao e
3
Ressaltamos que, no relato, no h informaes sobre Vincente ser casto ou virgem, apenas essa colocao
sobre sua pureza e sua abstinncia dos amores imundos. Contudo, se relembrarmos o argumento do supracitado
Jacques Rossiaud, que defende que aquele vinculado ao sagrado deveria abster-se do sexo, visto como a poluo
suprema por afast-lo do divino; podemos supor que o personagem era virgine. ROSSIAUD, Jacques.
Sexualidade. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio Temtico Medieval. So Paulo/
Bauru: Imprensa oficial do Estado/ EDUSC, 2002, 2v, V.2, p. 477-483.
4
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit., p.188.
5
Jacopo destaca que alguns defendem que foi Agostinho quem descreveu o martrio de Vicente, posteriormente
versificado por Prudncio, o que demonstra a sua preocupao em apresentar as fontes utilizadas.
6
Ibidem
7
Ibidem.
8
Ressaltamos que Daciano s quis v-los por achar que eles estariam mortos de fome, contudo encontrou-os
sadios e alegres.
135
-136-
seguirem outra religio, o bispo respondeu em voz baixa e Vicente chamou-lhe a ateno,
pedindo que soltasse a voz e falasse com liberdade, oferecendo-se para faz-lo em seu lugar.
Valrio aceitou a oferta, afirmando que h muito tempo j havia nomeado o dicono para falar
por ambos.
Ento, Vicente respondeu a Daciano que eles no sacrificavam aos deuses, porque
para os cristos uma blasfmia recusar-se a prestar Divindade a homenagem que lhe
devida.9 Dessa forma, ele desqualificou os deuses pagos afirmando que eles no eram
divinos. Por causa disso, o dicono foi considerado um jovem presunoso e arrogante e foi
Aps ter seu corpo todo desconjuntado no potro,11 Daciano perguntou-lhe: Que tal
est agora seu miservel corpo, Vicente? Este, sorrindo, respondeu: Como sempre desejei.12
Wolf,13 de Alison Gulley14 e de Evelyn Birge Vitz,15 que defendem que o mrtir construdo
o com todo tipo de tormentos se ele no renegasse suas idias, ao que ele respondeu:
como estou feliz! Ao fazer o que pensa que me fere, voc faz o maior
benefcio. Anda miservel, lana mo de todos os recursos maldosos e ver
que quando sou torturado tenho, com a ajuda de Deus, mais fora do que
quem me tortura.16
9
Idem, p.189.
10
O dominicano sublinha que Daciano intencionava fazer desse castigo um exemplo para os outros cristos.
11
Hilrio Franco Jr., na edio da LA aqui utilizada, descreve, em nota, esse instrumento de tortura romano
como sendo constitudo por uma armao de madeira, cujo formato era semelhante a um pequeno cavalo e, por
causa disso, o nome potro equuleum. Ibidem.
12
VARAZZE, Jacopo. Ibidem, p.189.
13
WOLF, Kristen. The Severed Breast: A Topos in the Legends of Female Virgin Martyr Saints. Archiv fr
Nordisk Filologi, v.112, p. 97-112, 1997.
14
GULLEY, Alison. Heo Man Ne Waes": Cross-Dressing, Sex-Change, and Womanhood in Aelfric's Life of
Eugenia. Mediaevalia: A Journal of Medieval Studies, v. 22, n.1, p.113-131, 1998.
15
VITZ, Evelyn Birge. Gender and Martyrdom. Medievalia et Humanistica, New Series, v. 26, p.79-99, 1999.
16
VARAZZE, Jacopo. Ibidem.
136
-137-
Nesse sentido, h o destaque para a superao dos limites somticos e o desejo do mrtir pelo
Segundo a LA, Daciano, descontrolado, chicoteou seus carrascos, afirmando que eles,
que haviam superado parricidas e adlteros, foram vencidos por Vicente, que ironiza tal
enfiaram pentes de ferro at o fundo das costelas, mostrando as entranhas de Vicente. Ento,
Daciano pediu para que o santo apieda-se de sua juventude, ao que ele retrucou:
Jacopo narra que, durante as torturas, Vicente manteve-se com os olhos voltados ao
Cu, orando:
17
GRIG, Lucy. Torture and truth in late antique martiriology. Early Medieval Europe. V.2, n.4, p.321-336, 2002.
18
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit., p.189.
19
Idem, p.189-190.
20
GRIG, Lucy. Op. Cit., p.324.
21
Essas associaes esto presentes tambm no fechamento do captulo, que composto com citaes de
Prudncio, que, como assinalamos anteriormente, teria colocado em versos a vida de Vicente, afirmando que
Vicente falou para Daciano: Tormentos, prises, garfos, lminas crepitantes de fogo, e, enfim, a morte, que a
ltima das penas, tudo isso brincadeira para os cristos. VARAZZE, Jacopo, Op.Cit., p.191.
137
-138-
era que quanto maior a dor sofrida, maior era a possibilidade da vitria do cristianismo e da
Segundo Lucy Grig, a inverso tambm ocorreria pelas relaes traadas durante o
julgamento, porque o criminoso seria torturado para confessar o crime, enquanto o cristo
teria que neg-lo. A confisso seria a reafirmao de sua f.22 Alm disso, ressaltamos que so
os suplcios que colocam o mrtir na sua posio original de testemunha: ele no morre por si,
Daciano, ao saber do ocorrido, disse aos carrascos que Vicente pode superar as
torturas que vocs lhe infligem,24 reconheceu-se vencido como desejava o dicono. J
destacamos que a marca da vitria e da superao do santo norteia toda construo do relato e,
com isso, Jacopo elabora uma relao de oposio, quase que caricata, entre o cristo vitorioso
Ento, Daciano ordenou que o colocassem em uma masmorra escura, deitado no cho
coberto por cacos de vidro pontiagudos e com os ps pregados em uma estaca, pedindo que o
avisassem quando ele morresse. Aps terem feito isso, os carrascos foram at a masmorra,
onde observaram entre as frestas da parede que as penas haviam virado glrias:25 a escurido
ele ordenou que levassem Vicente para repousar em uma cama macia, sobre as almofadas
mais confortveis do reino para que ele se recuperasse. Segundo o relato, to logo foi
carregado e colocado em uma cama macia morreu por volta de 287. Segundo Jacopo, o
22
GRIG, Lucy. Idem, p. 328.
23
Como, por exemplo, atravs das citaes de Prudncio, que informa que, durante as torturas, Vicente,
deliciando-se com as mos ensangentadas, ria dos carrascos que no conseguirem enfiar mais fundo os garfos
de ferro em suas costelas.VARAZZE, Jacopo, Idem. p.189.
24
Ibidem.
25
Idem, p.190.
26
Para mais informaes sobre a importncia da apario anglica, Cf. FAURE, Philippe. Op.Cit..
138
-139-
presidente do tribunal imperial afirma que fazia isso porque se o mrtir morresse em meio aos
suplcios, ele seria mais glorioso. Ao apresentar esse reconhecimento por parte do presidente
temeroso das repercusses da morte de Vicente, ou seja, de seu martrio. nesse sentido que
as relaes de poder esto invertidas: quanto mais violentas fossem as penas somticas, maior
pelo martrio, a outra f. Alm disso, acreditamos que dessa forma o papel simblico do
mrtir enaltecido.
O relato continua com o presidente do tribunal imperial afirmando que queria vingar-
se em Vicente depois de sua morte, destruindo seu corpo, pois, ao menos assim, ele venceria o
mrtir. Logo, ordenou que colocassem o corpo do santo em um campo, exposto s criaturas
selvagens, mas ele foi guardado por anjos e por um corvo, ave voraz por natureza.27 Ao
saber disso, Daciano reconheceu que no superaria o santo nem na morte, ento ordenou que
ele fosse jogado ao mar para ser devorado por criaturas e nunca ser encontrado. Contudo, a
correnteza arrastou-o at a margem, onde seu corpo foi encontrado por uma senhora e alguns
cristos que tiveram uma revelao a esse respeito. Eles o sepultaram honrosamente.
natureza, j que os animais selvagens protegeram o santo e a correnteza levou seu corpo para
a margem, para que ele fosse encontrado e sepultado honradamente por um grupo de cristos.
27
Ibidem.
139
-140-
alcanou o mrito do martrio ao resistir aos suplcios em nome da f. Tal questo reforada
com uma citao de Ambrsio que resume as torturas sofridas pelo santo, afirmando:
Vicente foi torturado, espancado, flagelado, queimado, mas no vencido em sua coragem de
tortura, e celebra a cada um desses episdios. E ele vence vivo e vence morto, neste ltimo
caso com a interveno divina que orquestra a natureza e os animais para proteo do corpo
santo e com a apario angelical para guard-lo e proteg-lo. Assim, ele simboliza
com uma forte e marcada associao do somtico em prol da salvao da alma. Assim, estaria
28
Idem, p.191.
29
Ibidem.
140
-141-
transformao de suplcios em deleites.30 Em suma, ele aquele que vence todas as torturas
fortalecido pelas torturas, triunfando sobre os seus carrascos e perseguidor, zombando das
torturas somticas que lhe eram infringidas e do prprio Daciano. Os seus triunfos so uma
Segundo o estudo etimolgico feito por Jacopo, o nome Jorge viria de geos,
que o dominicano associa com a sua carne. Citando Agostinho, no livro Sobre a Trindade, a
boa terra pode estar no alto das montanhas, o que convm ao pasto, nas encostas temperadas
das colinas, para as vinhas; ou nas plancies, para os cereais. A partir desse apoio em uma
autoridade eclesistica, lemos o argumento de que o beato foi como a terra alta por desprezar
as coisas baixas e exaltar as puras, foi como a terra temperada devido descrio com o vinho
da eterna alegria, foi como a terra plana pela humildade eu produz frutos de boas obras.31
Segundo o relato, Jorge tambm poderia advir de gerar, sagrado, e de gyon, areia,
sendo areia sagrada pelo peso de seus costumes, miudeza na sua humildade e secura na sua
volpia carnal. Um terceiro sentido viria de gerar, sagrado, e gyon luta, representando
30
POUCHELLE, Marie-Christine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
31
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit., p. 365.
141
-142-
lutador sagrado e associando a sua batalha com o drago e com o carrasco. Nesse sentido,
O ltimo significado de Jorge resultaria de gero que seria peregrino, gir, cortado,
e ys, conselheiro, porque ele foi peregrino em seu desprezo pelo mundo, cortado em seu
para seu desapego ao mundo, uma identificao do beato como mrtir e a sua atuao como
pregador. Acreditamos que essa nfase visava exortar os irmos da Ordem dos Irmos
Pregadores
desse santo foi considerada como apcrifa pelo conclio de Nicia. Essa afirmao evidencia a
eclesistica e destacando seu carter de verdade. Essa atitude vincular-se-ia ao contato que ele
algumas certificam que Jorge sofreu o martrio sob os imperadores Diocleciano e Maximiano,
outras j defendem que foi sob o imperador persa Diocleciano e na presena de oitenta
generais, e, por fim, h uns autores que alegam que foi sob o governador Daciano, sob o
imprio de Diocleciano e Maximiano, enquanto o calendrio de BEDA diz que ele foi
existentes, sem posicionar-se frente a elas nesse momento narrativo, fazendo isso ao fim do
32
Ibidem.
33
Ibidem.
142
-143-
Segundo a LA, Jorge tinha ido a Silena, cidade da provncia da Lbia, onde habitava,
nas redondezas, um drago feroz que afugentava aqueles que tentavam derrot-lo. Para
habitante, de qualquer sexo, escolhido por sorteio.34 Depois de um tempo, foi sorteada a nica
filha do rei. Este, desesperado, pediu que os citadinos pegassem todo seu ouro, prata e metade
Diante dessa proposta, os citadinos reclamaram que seus filhos haviam sido
sacrificados devido ao edito do rei, logo, ou a sua filha era levada para ser devorada pelo
drago ou ele perdia seu povo. Diante disso, o rei pediu oito dias para lamentar o destino dela.
Ao final desse tempo, somos informados que a populao foi ao castelo exigir que a promessa
fosse cumprida e o soberano lamentou no ter a chance de ter netos de estirpe real. Segundo o
Jacopo narra que o beato Jorge, que passava pela regio, ao v-la chorar, perguntou o
porqu das lgrimas. Ela pediu para que ele montasse em seu cavalo e fugisse para no morrer
com ela. Pedindo calma, ele indagou a jovem sobre o que toda aquela gente esperava ver.35
Ento, a moa explicou toda a situao e, quando o drago apareceu, suplicou ao tribuno para
ir embora depressa.
atacou o monstro que caiu ferido. Ele falou para a moa colocar o seu cinto no pescoo deste.
Ela o fez e o drago a seguiu feito um cozinho muito manso.36 Ao chegarem cidade, o
povo entrou em desespero, contudo o beato os acalmou avisando que se todos aceitassem o
34
Na verdade, a Legenda destaca que, inicialmente, davam duas ovelhas, contudo foi por falta delas que os
cidados comearam os sorteios para escolher um citadino.
35
Os sacrifcios ocorriam fora aos muros da cidade, onde se encontrava o drago. Na LA, no aparecem
informaes sobre quem Jorge referia-se.
36
Idem, p.367.
143
-144-
batismo, ele mataria a criatura. E nesse dia, 20 mil homens foram batizados, sem contar
gnero de Jorge, pois relaciona a fora fsica e militar do personagem como poder da f crist.
Segundo Juan Antonio Ruiz Dominguez,38 dentre as funes possivelmente atreladas ao sinal-
Ressaltamos que nas obras de Gonzalo de Berceo, estudadas pelo autor, no figura a
associao entre o sinal e a proteo divina, ao contrrio da LA. Essa construo aparece em
muitos relatos, como o de Jorge, enaltecendo a cruz como signo de esperana, proteo e
Aps a sua vitria sobre o drago, para homenagear a bem-aventurada Maria, o beato
Jorge mandou construrem uma igreja, onde sob o seu altar surgiu uma fonte de gua curativa
para os enfermos. Nesse momento narrativo, defendemos que a presena do divino serviria
para atrair fiis para o templo em questo, j que a localizao da cidade colocada no relato.
Aps esse episdio, o rei ofereceu a Jorge uma enorme quantidade de dinheiro, mas
ele no aceitou e mandou que ela fosse doada aos pobres, o que destaca, na narrativa, a sua
caridade e o seu desapego das coisas materiais. Antes de partir, o beato deu quatro conselhos
ao soberano: escutar o santo ofcio, cuidar das igrejas, honrar os padres e lembrar-se dos
37
Ibidem.
38
O autor trabalha com o papel das mentalidades na devoo crist e a construo das funes da cruz e do sinal-
da-cruz nas obras de Gonzalo de Berceo, mas faz consideraes gerais sobre a questo. DOMINGUEZ, Juan
Antonio Ruiz. La devocion a la cruz en la obra de Gonzalo de Berceo. (em prensa) In: CONGRESO MUNDIAL
DE HERMANDADES DE LA VERA CRUZ, 1. Sevilla: Ceira, 1995. p.1-12.
39
Para mais informaes, cf. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1983;
RAMOS, Luis Garca-Guijarro. Reforma eclesistica y rdenes Militares (ss. XI-XIII). In: BENITO, Ricardo
Izquierdo e GMEZ, Francisco Ruiz (coords.). Las Ordenes Militares en la Pennsula Ibrica. Cuenca:
Universidad Castilla-la-Mancha, 2000. V. 1, p.1005-1017; MITRE FERNNDEZ, Emilio. La implantacin del
cristianismo en una Europa en transicin (c. 380-c. 843). In: SEMANA DE ESTDIOS MEDIEVALES, 7,
1996, Njera. Actas... Logroo: Instituto de Estudios Riojanos, 1997, p. 197-215.
144
-145-
contudo centrando-se no martrio sofrido pelo santo. Este recheado de milagres, apoiado nas
Aps relatar uma segunda verso mais curta da histria do drago, Jacopo coloca que
dezessete mil. Na narrativa, somos informados de que muitos dos cristos fraquejaram e
Emocionado com tal fato, Jorge doou tudo que possua aos menos afortunados, trocou
as roupas militares pelas dos cristos, foi viver entre eles, e passou a chamar os deuses gentios
de demnios, pois o Deus cristo fizera os cus. Nesse trecho, acreditamos que Jacopo
pelas ordens mendicantes. Alm disso, ao mencionar a troca das vestes, acreditamos que ele
estaria, metaforicamente, referindo-se ao fato dele deixar de servir um pago e passar a servir
questionou sobre quem ele era e de onde, o que o cristo respondeu. Ele ainda complementou
sua resposta dizendo que, com o auxlio de Cristo, ele se submeteu Palestina, contudo largou
tudo para servir ao Deus do Cu. Daciano40 percebendo que no conseguia demov-lo,
mandou suspend-lo no potro e dilacerar cada um de seus membros com garfos de ferro.
Mandou queim-lo com tochas e esfregar sal em suas feridas e em suas entranhas.41
40
No relato, Jacopo refere-se a Daciano ora como juiz, ora como prefeito.
41
Idem, p. 368.
145
-146-
viso, Jorge fortaleceu-se tanto que os suplcios sofridos pareciam no ter acontecido.
imolar aos deuses atravs de torturas, chamou um mgico para demov-lo de sua f atravs da
magia. Assim, o mgico invocou os seus deuses e misturou vinho com veneno, depois deu
para Jorge, que fez o sinal-da-cruz, bebeu e nada aconteceu. Diante disso, uma dose mais
potente foi feita e, novamente, aps fazer o sinal-da-cruz, o santo tomou o lquido e nada
aconteceu.
a inferiorizao da crena pag, j que os deuses tambm foram invocados, contudo foram
No dia seguinte, Daciano teria mandado colocar Jorge numa roda com espadas de dois
gumes ao seu redor, contudo ela se quebrou e ele saiu ileso. Ento, ele foi condenado a ser
jogado em um caldeiro de chumbo fervente, que aps o santo fazer o sinal-da-cruz e pela
Sublinhamos que o relato no menciona que Jorge teria feito o sinal-da-cruz antes de
ser colocado na roda, e apesar disso ele foi igualmente salvo. Acreditamos que Jacopo estaria
Daciano, vendo que no poderia vencer o santo com suplcios, mudou o seu modo de
persuaso, tratando-o com suavidade e gentileza. Ele afirmou para Jorge que os seus deuses
eram calmos e que o perdoaria, caso abandonasse a f crist. Jorge riu e disse Por que voc
42
Ibidem.
43
Ressaltamos que a no-meno ao sinal-da-cruz tambm pode ser devida grande variedade de fontes
utilizadas pelo compilador ou as diferentes edies realizadas a posteriori.
146
-147-
no falou assim antes de me torturar? Estou pronto a fazer aquilo que me exorta.44 Segundo
o captulo, com essa fala, o mrtir iludiu o juiz, e, dessa forma, h um destaque para o uso da
Jorge foi levado para o templo, onde Daciano convidou a cidade inteira para ver o
cristo rebelde imolar aos deuses, demonstrando satisfao em t-lo subjugado. No entanto,
diante de todos, o mrtir pediu ao Senhor para destruir o templo e as imagens dos dolos por
completo. No mesmo instante, caiu o fogo do Cu sobre o templo, queimando-o com seus
deuses e seus sacerdotes. A terra entreabriu-se e tragou tudo o que restara.45 Nessa passagem,
representado pelo mrtir, sai vitorioso, j que, com apenas um pedido, o cristo foi abenoado
Objetivando conferir um tom de veracidade ao relato, Jacopo cita Ambrsio, que teria
dito que, aps tomar conhecimento desse evento, Daciano ordenou que levassem Jorge a sua
presena e o questionou sobre qual foi o tipo de magia que ele usou para cometer tal crime.
Dizendo no crer nisso, o beato tentou enganar o juiz novamente, pedindo que ele o seguisse,
pois ele imolaria aos deuses. Contudo, Daciano no o fez por temer que o beato fizesse a terra
Inicia-se, no texto, um debate entre os dois. Durante o embate, o juiz virou-se para sua
esposa, Alexandrina, e confessou ter perdido para o beato e temer a morte. Ela chamou a sua
ateno ofensivamente, por ele perseguir os cristos, pois eram protegidos por Deus. Dito
Alexandrina foi condenada a ser surrada duramente, pendurada pelos cabelos. Ela
lamentou com Jorge o fato de no ter sido batizada, demonstrando sua preocupao por no
44
Idem, p.369.
45
Ibidem.
147
-148-
ter sido regenerada pela gua do batismo.46 O beato respondeu-lhe que o seu sangue seria
Segundo o relato, no dia seguinte morte de Alexandrina, Jorge foi condenado a ser
arrastado pela cidade. Ele orou ao Senhor pedindo que atendesse a todos os que implorassem
seu socorro, e ouviu-se a voz divina concedendo-lhe o pedido. Terminada a orao, seu
martrio foi consumado e sua cabea cortada48 Nesse trecho, h um forte incentivo ao culto
do santo.
O beato, segundo Jacopo, foi martirizado em 287, sob o prefeito Daciano, durante o
suplcio de Jorge para seu palcio, fogo vindo dos Cus consumiu a ele e a seus soldados.
Jacopo afirma que Gregrio de Tours teria contado que, um dia, um grupo de pessoas s
conseguiu sair de um oratrio onde estavam hospedadas aps deixar algumas das relquias de
So Jorge. Depois, o dominicano faz aluso a Histria de Antioquia. Ele cita que um
conjunto de cristos, rumo a Jerusalm, foi abordado por um belssimo rapaz que lhes disse
que eles estariam protegidos, caso levassem alguma relquia do mrtir. H uma marcada
46
Idem, p.370.
47
Destacamos tambm a importncia dada ao batismo, um dos sacramentos cristos, como veculo de
purificao. Ao todo so sete sacramentos, a saber: Batismo, Confirmao, Sagrada Comunho (Eucaristia),
Matrimnio, Penitncia, Ordem Sacerdotal e Extrema-Uno.
48
Ibidem.
49
Ibidem.
148
-149-
narrados ao citar as suas fontes para conceder-lhes um teor de verdade e valorizar o aspecto
Segundo James B. MacGregor,50 por volta de 1184, Alan de Lille fez um sermo
direcionado aos cavaleiros, defendendo que eles deveriam portar armas espirituais, assim
como as temporais, alm de condenar a violncia para com a Igreja e com os pobres. Em sua
piedade cavaleiras.51 Assim, ao narrar a apario de Jorge em uma Cruzada, acreditamos que
etimolgico feito por Jacopo, em que o ltimo significado do nome do personagem aponta
para a sua identificao como mrtir. O seu gnero construdo atravs da exaltao de sua
pregao, da sua funo social como tribuno, da nfase dada eloqncia do personagem , de
sua caracterizao como santo-guerreiro, protetor dos inofensivos, cuja virilidade ainda
Destacamos que, por ofender os deuses pagos, Jorge foi condenado pelo governador,
sendo que todos os seus suplcios foram desfeitos ou transformados em delcias no caso do
50
MACGREGOR, James B. Negotiating Knithly Piety: The cult of the warrior-saints inthe west, ca. 1070- ca.
1200. Church History. v.73, n.4, jun - 2004.
51
Ibidem, p.320.
149
-150-
tipo de cavaleiro apto para receber a proteo do mrtir. Finalizado com sua decapitao, o
dogmas religiosos.
3. So Marcelino, o papa
romana por nove anos e quatro meses. De acordo com a LA, ele foi capturado por ordem de
Diocleciano e Maximiano. O papa teria se negado a imolar aos deuses, contudo foi ameaado
a sofrer uma srie de suplcios no especificados pelo dominicano e, por medo, ele
ofereceu dois gros de incensos aos deuses pagos. Isso causou grande alegria aos infiis e
Ressaltamos que mesmo no havendo nenhum relato sobre os suplcios sofridos pelo
papa, Jacopo narra que aps estar curado, ele foi levado a julgamento, mas os bispos presentes
disseram-lhe o sumo pontfice no pode ser julgado por ningum, voc mesmo que deve
Segundo o relato, Marcelino, arrependido, deixou o cargo, contudo foi reeleito pelo
povo. Os csares, ao tomarem conhecimento desse fato, o aprisionaram pela segunda vez.
Contudo, o papa, dessa vez, negou-se a realizar sacrifcios e com isso, foi condenado a ser
decapitado.
52
Idem, p.378.
53
Ibidem.
150
-151-
anatematizando previamente aqueles que o fizessem. Seu corpo, segundo a LA, ficou trinta e
cinco dias insepulto. Nessa passagem narrativa, cremos que Jacopo busca destacar a
autoridade e o poder do sumo pontfice, pois, mesmo aps sua morte, sua ordem honrada.54
Ainda segundo a LA, Decorrido esse tempo, o apstolo Pedro apareceu para Marcelo,
papa perguntou-lhe se ele j no havia sido sepultado, ao que Pedro respondeu considerar-se
O papa Marcelo falou que Marcelino havia excomungado todo aquele que o sepultasse
e Pedro perguntou-lhe: Voc no sabe que est escrito Quem se humilha ser exaltado?.56
Dito isso, ele ordenou que Marcelino fosse enterrado aos seus ps, o que foi imediatamente
cumprido. Acreditamos que o objetivo desse curto relato seria o enaltecimento de uma
constri a sua santidade com a visita de Pedro e o comando para que sepultassem Marcelino a
seus ps. A santidade de Marcelino est ligada ao cargo que ocupou e a sucesso de Pedro.
nossa ateno. Se considerarmos o captulo do papa Urbano (p. 462-463), cuja biografia,
que h uma preocupao textual em no explicitar as partes do corpo afetadas nem os tipos de
tortura recebidos pelo papa,57 comparado aos demais relatos. Defendemos que essa estaria
associada a sua prpria funo social e posto hierrquico alcanado dentro da Igreja.
54
Jacopo relata que com o furor hostil reaceso, no ms seguinte foram mortos 17 mil cristos. Destacando a ira
causada pelo arrependimento de Marcelino. Ibidem.
55
Ibidem.
56
Idem, 379.
57
O mesmo cuidado aparece na narrativa sobre Santo Urbano, que foi aprisionado junto a seus irmos. No
captulo, h apenas o relato de um suplcio, que os quatro cristos foram aoitados com chicotes com ponta de
chumbo, enquanto isso papa passou a clamar pelo Senhor.
151
-152-
firme advindo de petros. Dito isso, ele afirma que possvel entendermos as trs
Nessa passagem, podemos destacar a exaltao da pregao unida erudio um dos pilares
da Ordem Dominicana , o enaltecimento de sua virgindade ser completa com corpo e mente
A biografia do personagem inicia nos informando que Pedro era o novo mrtir da
Ordem dos Pregadores,59 natural de Verona. Nascido em uma famlia hertica e infiel,
conforme aparece no relato, Jacopo diz que ele conservou-se isento de seus erros. Aos sete
anos, um tio o questionou sobre o que havia aprendido na escola ao que ele respondeu
rezando o credo.
O tio o repreendeu afirmando que quem criou o cu e a terra foi o diabo e no Deus,60
e os dois iniciaram um debate sobre tal tema. A narrativa esclarece que o menino estava cheio
de Esprito Santo e rebateu os argumentos dados pelo tio que havia recorrido a diferentes
58
Idem, p.387.
59
Destacamos que Jacopo no apresenta nenhuma data relacionada ao martrio do personagem. Somente no fim
do relato, ele narra que, em 1259, em Compostela, um homem chamado Bento foi curado ao rogar por Pedro no
convento dos frades Pregadores. Dessa forma, incentivaria o culto do personagem e atrairia doaes e fiis para
os conventos da Ordem existentes nesse local.
60
Essa concepo estaria associada com a doutrina ctara, que defendia que o homem criado por Deus -
prisioneiro da matria, que est retida no mundo criado por sat. RIBEIRO JR., Joo. Pequena Histria das
heresias. Campinas: Papirus, 1985. p.73.
152
-153-
autoridades. Ao narrar que, ainda criana, Pedro falava com o tio cheio do Esprito Santo,61
marcado pela presena de Deus que, por dirigir tudo, evitou que o menino fosse retirado da
escola como era vontade de seu tio. Em suma, acreditamos que a marca de sua santidade
encontrar-se-ia evidenciada nos muitos milagres cometidos em vida e em morte, com uma
presena divina, colocando seu conhecimento como superior educao de seu tio, que pede
para o pai de Pedro retir-lo da escola, pois temia que o menino seguisse a prostituda Igreja
No relato, h a meno de que, como tudo dirigido pela mo de Deus, o pai de Pedro
Sublinhamos o destaque dado interveno divina, que teria orquestrado para que o jovem
permanecesse na escola.
No somos informados quando, apenas tomamos conhecimento que, aps tal episdio,
Pedro no se sentia seguro morando com a famlia e, por tal razo, juntou-se a Ordem dos
narrativa, h o destaque para ele ter ficado trinta anos na Ordem e alcanado a honra de ser a
pedra de Cristo.
Dito isso, lemos uma listagem das virtudes do personagem com enaltecimento do seu
afastamento das coisas terrenas e da ociosidade; dos seus estudos, viglia e leitura; da sua
61
Acreditamos que Jacopo, ao colocar o debate travado entre o infante Pedro e seu tio, realiza um paralelo com o
episdio da vida de Jesus no qual ele debateu, no templo, com os sbios com grande eloqncia ainda quando
criana, cf. Lc II, 22-52. BBLIA SAGRADA. Pe. Antnio Pereira de Figueiredo (trad.). So Paulo: DCL, 2006.
62
Jacopo se refere ao tio de Pedro como sendo outro caifs, afirmando que ele teria predito o que iria
acontecer. Acreditamos que ele estaria fazendo aluso ao papel de inquisidor de Pedro e traando outro parelo
entre o santo e Jesus. Segundo o livro de Joo II, 49-52, Caifs era um sumo sacerdote que profetizou que Jesus
iria ser morto pelo povo, assim como Pedro, atacado por um herege enquanto exercia a funo de inquisidor.
63
No captulo, Jacopo relata esse acontecimento citando uma passagem de uma carta do Papa Inocncio: O
bem-aventurado Pedro ainda na adolescncia abandonou o mundo para evitar os perigos e entrou na Ordem do
Frades Pregadores. Idem, p.388.
153
-154-
a refutar os dogmas envenenados por alguma doutrina hertica. A seguir, h mais uma nova
relao de qualidades e de elogios ao santo. Acreditamos que essa exaltao, seguida das
virtudes do personagem, estaria vinculado ao fato dele ser um dominicano, assim seria uma
exaltao da ordem. Jacopo ressalta o desejo do personagem em morrer por sua f como
mrtir e orava todas as noites pedindo tal beno e que seu desejo no foi frustrado.65
Jacopo afirma que a biografia de Pedro foi recheada por numerosos episdios
milagrosos,66 dentre os quais destacamos alguns ocorridos em vida, no qual h encontros com
hereges. O primeiro foi um encontro com um bispo hertico67 que havia sido preso pelos fiis.
Nesse relato, o personagem desafiado pelo bispo a conseguir fazer aparecer uma nuvem para
proteg-los do Sol com a fora de sua f. Ele responde que se o heresiarca prometesse abraar
a f catlica, ele o faria. Aps orar por uma hora e fazer o sinal-da-cruz, uma nuvem no
formato de uma borboleta cobriu os cus, cobrindo o seu povo do Sol. Ressaltamos que, nesse
Em outro episdio, lemos sobre uma peste hertica que contaminava a Lombardia e
outras regies. Assim, diversos inquisidores dominicanos foram enviados para combat-la.
Ao relatar que o sumo pontfice encaminhou Pedro para l com plenos poderes para combater
a heresia como inquisidor, Jacopo argumenta o que torna um pregador virtuoso, defendendo o
equilbrio entre prdica e erudio. Ele afirma que o mrtir foi escolhido:
64
Ibidem.
65
Idem, p.390.
66
No captulo sobre Pedro so narrados cinco milagres em vida sendo um relacionado aos hereges e quatro a
curas.
67
Ressaltamos que o dominicano no especifica qual a heresia. Podemos supor, porm, que se tratava dos
ctaros, por serem os principais rivais da ordem no perodo. Relembramos que somente aps Domingos
converter um ctaro ao cristianismo que ele teria decidido fundar uma organizao que suprisse a Igreja com
pregadores qualificados. Alm disso, a organizao da hierarquia ctara semelhante eclesistica, rivalizando
nesse ponto tambm.
154
-155-
Ressaltamos que a narrativa continua com o mesmo objetivo elogioso de exaltar o tipo de
perseguio deste ao afirmar que os hereges no resistiam sua sabedoria e ao Esprito San-
uma citao de uma carta Inocncio.70 Segundo a narrativa, ao sair da cidade de Como,71 o
prior Pedro direcionou-se a Milo para atuar contra os herticos. A seguir, lemos que
conforme o mrtir havia professado, durante uma pregao,72 ele foi atacado por um herege
cruel contra o manso, o mpio contra o piedoso, o furioso contra o calmo, o desregrado contra
o modesto, o profano contra o santo.73 Nesse trecho, Jacopo elabora discursivamente dois
personagens diametralmente opostos: de um lado o santo com todas as suas virtudes que so
recebe golpes terrveis com a espada na cabea. A espada fica molhada do sangue daquele
68
Idem, p.390.
69
Nenhum deles podia resistir sua sabedoria e ao Esprito Santo que falava por sua boca (Ibidem).
70
Destacamos que Jacopo no especifica qual o documento.
71
Como uma provncia da Lombardia.
72
Na parte final do captulo, reservada aos milagres do santo, esse episdio narrado: No domingo de ramos,
Pedro pregava em Milo diante da enorme multido de pessoas dos dois sexos, quando disse publicamente em
voz alta: Sei com certeza que os hereges tramam minha morte e que at dinheiro foi dado para isso, mas faam
o que faam, eu os perseguirei mais estando morto do que vivo (Idem, p.399). E aps seu martrio, de fato,
Jacopo relata acontecimentos milagrosos contra hereges procurando conceder credibilidade s palavras do mrtir
e reserva um extenso pargrafo recheado de comparaes que buscam reafirmar que ele fora mais voraz ainda
depois de morto.
73
Idem, p.391.
155
-156-
homem venervel, que no procura evitar o inimigo, ao contrrio, oferece-se como vtima que
encaixar-se-ia no argumento da autora Lucy Grig,75 j citada, que defende a exacerbao das
torturas, por parte dos mrtires, como forma de enaltecer a demonstrao da vitria crist.
Durante todo esse suplcio, Jacopo narra que Pedro no se queixa, no murmura,
suporta tudo com pacincia, encomendando-se: Senhor, entrego meu esprito em suas
mos.76 Acreditamos que ao narrar que o inquisidor mantm sua tranqilidade, Jacopo
destaca o desejo pelo martrio do personagem que no se desespera diante das maceraes,
pelo contrrio. Alm disso, essa passagem tambm serviria de incentivo aos irmos
inquisidores.
Por fim, o beato do Senhor recitou o smbolo de f antes do carrasco enfiar um punhal
em seu flanco.77 Segundo a LA, o responsvel pelo martrio de Pedro foi capturado por fiis.
Jacopo narra que, no dia de seu martrio, Pedro foi confessor, profeta, doutor e mrtir,
explicando cada um desses aspectos. Segundo ele, foi confessor, porque no meio dos
tormentos proclamou sua f constante em Cristo, e porque naquele mesmo dia tinha, como o
forma, ele ressalta o papel do beato como pregador o que, de certa forma, valoriza a Ordem
personagem tambm aparece na explicitao do seu papel como doutor, porque enquanto
estava sendo atacado ensinou a doutrina verdadeira recitando em voz alta o smbolo da f.79
74
Ibidem.
75
GRIG, Lucy. Op. Cit.
76
VARAZZE, Jacopo. Ibidem.
77
A seguir, somos informados que o beato estava acompanhado por um frade dominicano que tambm foi
atacado e morto.
78
Ibidem.
79
Ibidem.
156
-157-
Ele foi mrtir por ter derramado o seu sangue para defender a sua f, o que indica a
concepo de martrio de sangue de Jacopo. Alm disso, foi profeta pelo episdio em que
seus companheiros afirmaram no ter como chegar a Milo naquele dia referindo-se ao dia
do martrio e Pedro disse que eles ficariam em So Simpliciano. Aps o seu martrio, a
multido que fora velar seu corpo no permitiu que ele fosse levado ao convento e o beato foi
Destacamos que, na LA, aps essa passagem, h uma analogia entre o martrio de
Ressaltamos que Pedro Mrtir faleceu em 1252, sendo canonizado no ano seguinte. Segundo
James Ryan,81 no sculo XIII havia uma certa resistncia da Igreja em canonizar os novos
mrtires por no endossar seus cultos, afirmando que the Roman Church not only insited on
close scrunity before endorsing the cults of those killed while trying to convert infidels; it also
Dessa forma, o autor argumenta que apesar da Igreja ter endossado poucas
para servir de incentivo aos inquisidores que poderiam estar sob ameaas.83
Segundo o texto, a incluso do beato Pedro no catlogo dos santos foi celebrada com
um captulo em Milo pela Ordem Dominicana. Os irmos queriam realocar o corpo do santo
cheiro, mesmo aps um ano enterrado. Ele foi posicionado em um alto plpito para que os
Desse momento narrativo at o final so descritos trinta milagres, alguns pelo sumo
pontfice e outros por pessoas que os testemunharam; destes, treze so relativos cura
80
Jacopo analisa, comparativamente, os motivos destes, os carrascos, o momento temporal em que cada um
ocorreu, o que cada um teria dito, o preo pago pela morte de ambos e a conseqncia dela. Sendo que a de
Pedro teria sido a converso de milhares de herticos.
81
RYAN, James. Missionary saints of High Middle Ages. Martyrdom, Popular veneration and Canonization.
The Catholic Historical Review, v. 90, no1, p.1-28, jan./ 2004.
82
A Igreja Romana no s insistiu em atentos exames antes de aprovar cultos daqueles que morreram tentando
converter infiis; ela tambm se recusou a abrir processos que poderiam levar a canonizao. Ibidem, p.2.
83
Idem, p.4.
157
-158-
destacamos que duas dessas foram alcanadas graas s suas relquias, o que seria um forte
incentivo para seu culto. Inclusive, um evento milagroso foi contra trs moas que falavam
mal do culto, j os outros se subdividem em: dois relacionados com ressurreio; quatro com
hereges; cinco ligados ao combate contra demnios; a prpria viso de Pedro sobre sua morte;
incio do sculo XIII, certos milagres continuavam indispensveis para que um servidor de
Deus pudesse ser proclamado santo pelo papa;85 destacando que os telogos desse perodo
passaram a considerar aqueles com interveno direta de Deus como sendo verdadeiros.
aproximamos mais da argumentao de Sofia Boesch Gajano,86 que afirma que, a partir do
sculo XI:
84
VAUCHEZ, Andr. Milagre. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio Temtico
Medieval. So Paulo/ Bauru: Imprensa oficial do Estado/ EDUSC, 2002, 2V, v.2, p. 197-211.
85
Idem, p.208.
86
GAJANO, Sophia Boesh. Uso y abuso de los milagros em la cultura de la Alta Edad Media. Little, L.L.,
ROSENWEIN, B. (eds.). La Edad Media a debate. Madrid: Akal, 2003. p.506-520.
87
Ibidem, p.512.
158
-159-
cristianismo.88
Alm disso, cabe destacarmos que o relato de distintos milagres do santo estaria
vinculado ao fato dele ser um dominicano e um dos poucos mrtires canonizados no sculo
Nesse ponto, defendemos que a exaltao de suas qualidades e os elogios feito por
E devido a tais virtudes e sua sabedoria que ele foi atacado por um herege
contratado. O curto relato de seu martrio apenas evidenciaria o desejo do beato por esse,
negativa do herege oposta a de Pedro ; e, serviria para novos elogios a suas virtudes e
qualidades.
santidade, pois ele foi um dos poucos santos canonizados nesse perodo. No relato, Pedro
identificado como mrtir desde a interpretao aos significados de seu nome, mas o que se
Ordem dos Dominicanos, como inquisidor. Para essas aes, Pedro atuou com eloqncia,
firmeza e coragem.
88
Idem, p.209.
159
-160-
santidade de Pedro por ele ter sido o primeiro mrtir dominicano a ser canonizado, ainda mais
Essa argumentao no apenas valeria como apoio aos sermos dos irmos pregadores
tambm o estmulo ao culto do novo santo da Ordem Dos Irmos Pregadores atravs dos
5. So Tiago, o cortado
O captulo sobre So Tiago no inicia com um estudo etimolgico, mas sim com a sua
nomeao como mrtir. No comeo, aprendemos que ele era natural do pas dos persas,
oriundo da cidade de Epale, era de origem nobre, e ainda mais nobre por sua f.89 Segundo o
relato, ele possua pais e esposa muito cristos, no entanto ele deixou-se seduzir por amor ao
sua submisso a um mortal, desobedecendo assim o juiz dos vivos e dos mortos.90 Elas
tambm o informaram que se tornaram como estranhas e no mais morariam com ele. Aps
ler tais palavras, Jacopo nos conta que Tiago teria refletido que se sua famlia o via de tal
forma, como seu Deus o veria? Ento, arrependido e aflito por seu erro,91 mandou um
89
Idem, p.974.
90
Ibidem.
91
Ibidem.
160
-161-
esposa do santo, como tambm o fato de ter sido, justamente, atravs da repreenso feita por
elas, que Tiago percebeu seu equvoco. Nesse sentido, essas duas personagens, aparentemente
secundrias no relato, possuem um papel fundamental no martrio sofrido por ele, narrado
argumenta sobre o uso de smbolos femininos por personagens masculinos, fenmeno que
Nesse sentido, quando o santo foi repreendido pela sua me e sua esposa, ele foi
perodo, as mulheres que deveriam ser controladas e chamadas ateno devido a sua
inerente fraqueza. Com isso, defendemos que o mrtir humilhado e inferiorizado. Tiago
O prncipe convocou Tiago e questionou-o se era nazareno,93 o que ele confirmou sob
a ameaa de distintas e mltiplas torturas. Nesse momento, ele defende a existncia da vida
eterna, afirmando que ns [nazarenos] no tememos a morte, pois esperamos passar da morte
vida.94 Diante de tal resposta, o prncipe, aconselhado por amigos, condenou Tiago a ser
Ao ver que muitas pessoas choravam por ele, Tiago pediu-lhes para que no
chorassem j que ele ia para vida,95 mas que lamentassem por eles prprios, que
92
BYNUM, Caroline W. La utilizacin masculina de los smbolos femeninos. In: LITTLE, Lester K. e
ROSENWEIN, Brbara H. (eds). La Edad media a debate. Madrid: Akal, 2003. p. 431-449.
93
O termo nazareno costumava ser utilizado para se referir aos seguidores de Cristo, pois ele havia habitado em
Nazar, na Galilia.
94
Jacopo de Varazze. Op.cit.
95
Idem, p. 975.
161
-162-
O captulo sobre Tiago peculiar por ele narrar a biografia de um personagem que por
adorao ao Prncipe dos Persas, imolou aos deuses. Contudo, aps ter sido repreendido por
sua me e esposa, percebeu o erro cometido e enviou uma mensagem afirmando ser cristo e,
Ao ter o primeiro dedo de sua mo decepado, o carrasco pediu para Tiago obedecer ao
Prncipe, que ele lhe daria medicamentos e o pouparia. Ele retrucou com uma analogia aos
ramos da videira, afirmando que estes, conforme cortados, produzem novos galhos. O santo
concluiu afirmando que o cristo fiel est enxertado na verdadeira vinha que Cristo.
Conforme o carrasco cortava-lhe os dedos, ele os oferecia ao Senhor; e, na vez do quinto, ele
destino sagrado.
Aps esse suplcio, os carrascos novamente pediram para que Tiago poupasse sua vida
e nem se entristecesse em ter perdido uma mo, pois muitos nessa condio possuam muitas
riquezas. Ele respondeu traando uma metfora com a ovelha. Primeiro, afirmou que o animal
tosquiado por inteiro e no apenas em uma metade. Completando, disse que se este ser
irracional quer ser tosquiada por inteiro, ento ele, ser racional, no poderia desdenhar ser
Durante seu suplcio, Tiago evidencia e exalta sua f, reafirmando saberes teolgicos.
Como no oitavo dia foi circuncidado Jesus, como no oitavo dia circuncidam-
se os hebreus a fim de admiti-los nas cerimnias legais, ento faa, Senhor,
com que o esprito de seu escravo se separe desses incircuncidados que
conservam sua mcula, a fim de que eu v at voc e veja sua face, Senhor.97
96
Ibidem.
97
Idem, p.976.
162
-163-
Ele faz o mesmo quando lhe decepam o nono e o dcimo dedos,98 dizendo:
ele, quando cortaram o polegar do seu p direito, falando que o p de Cristo foi perfurado e
dele saiu sangue. A sua martirizao nos apresentada como fonte de jbilo do personagem
que afirma categoricamente que esse era um grande dia, pois iria se encontrar com Deus.
Tiago disse: Por que est triste, alma minha, por que se perturba? Tenho esperana em Deus,
confio Nele, que meu Salvado e meu Deus.101 Ao narrar o dilogo do mrtir com a alma,
acreditamos que Jacopo objetivaria discorrer sobre a superao inerente aos santos dos limites
Jacopo constri uma acepo somtica inferior a alma. Este pressuposto pode ser
que ele falou: Destruam esta velha casa, pois me preparam uma mais esplndida.102
A cada corte de um pedao de seu corpo, o santo oferece-o a Deus e o percebe como
uma beno e, por vezes, ri das torturas e enaltece o poder de sua f. Contudo, depois, passa a
suplicar por ajuda para ter a alma liberta da priso, referindo-se ao seu corpo semimorto. Essa
98
Aps ter os dedos das duas mos cortados, os que assistiam aos suplcios pediram para que Tiago falasse o que
o cnsul desejasse, pois existiriam mdicos capazes de trat-lo. Ele respondeu que aquele que pe a mo no
arado e olha para trs no est qualificado ao reino de Deus. Jacopo descreve que, nesse momento, os carrascos,
irritados, comearam a cortar os dedos dos ps.
99
Jota tambm a dcima letra do alfabeto.
100
Ibidem.
101
Ibidem.
102
Ibidem.
163
-164-
A partir dessa passagem, supomos que as mudanas das reaes do personagem em relao
suplcios a partir dos argumentos de George Duby, no livro Idade Mdia, idade dos homens:
do amor a outros ensaios.104 O autor levanta duas compreenses medievais relacionadas com
a dor. Primeiro, ele ressalta que o aconselhvel para o homem seria no demonstrar a dor
fsica para no ser rebaixado condio feminina. Em segundo, ele destaca que o sofrimento
possuiria, justamente, por essa degradao, um valor positivo, visto como um sinal de
correo.
103
Idem, p.977.
104
DUBY, George. Idade Mdia, idade dos homens: do amor a outros ensaios. Jnatas Batista Neto (trad.).So
Paulo: Cia. das Letras, 1989.
105
POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
106
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4,
p.11-46, 2002
164
-165-
humana da corporalidade, logo h uma valorizao dos mrtires e dos ascetas. Nesse sentido,
defendemos que atravs dos suplcios que a santidade de Tiago estabelecida e confirmada.
Retornando ao relato, aps Tiago fazer o supracitado pedido de auxlio a seu Senhor,
peculiar, rompendo com o modelo hegemnico de masculino cristo. Na narrativa, ele fraco,
adora os deuses pagos por um amor mundano por um prncipe pago. Depois, ele
repreendido por duas figuras femininas que o fazem recobrar o juzo e arrepender-se do
pecado cometido.
Em outras palavras, suas aes estariam mais vinculadas s caractersticas vistas como
auto-controle, dominado por sentimentos e desejos. a sua dor que atesta a salvao de sua
Os seus carrascos e aqueles que viam seus tormentos suplicaram para que ele fizesse o
lhe era pedido para ser poupado, afirmando que mdicos poderiam trat-lo e que muitos com
apenas uma mo eram cheios de riquezas apelando assim para o aspecto mundano. As suas
reafirmando saberes teolgicos, como quando lhe cortaram o oitavo, nono e dcimo dedos.
107
Lembramos que por amor ao Prncipe, ele imolou um incenso aos deuses.
165
-166-
Alm disso, seu relato possui uma especfica relao com o sofrimento somtico para
ratificar o destino de sua alma, como quando lhe deceparam o quarto e quinto dedos do p
direito. O mesmo pode ser percebido ao cortarem o segundo dedo do seu p esquerdo, ao que
ele pediu para que destrussem sua velha casa, pois uma morada mais esplendorosa o
aguardava. Assim, o corpo apenas um receptculo da alma, ou ainda, uma priso desta,
Nesse sentido, Tiago, diferente dos outros mrtires, no age com a razo, fraco e
possuem o processo de genderificao marcado pela funo social exercida, seja dicono,
tribuno, inquisidor dominicano e papa. A nica exceo Tiago, cujo relato no faz aluso a
nenhum cargo ocupado, apenas informa que ele era nobre e possua uma esposa.
onde foi condenado a ser atirado, foi transformado em um banho agradvel. No captulo
apstolo Pedro, que serve para comprovar a sua santidade e destacar a apostolicidade e o
166
-167-
relacionados cura, sendo que em dois episdios as suas relquias funcionaram como veculo
para realizao desses; dois, com ressurreio; cinco, com hereges; cinco ligados ao combate
de demnios; a viso de Pedro sobre sua morte e trs sobre temas distintos. O relato sobre
Tiago o nico, dentre os analisados, que no menciona nenhum tipo de interveno divina e
comprovada e evidenciada atravs da dor infligida nas suas torturas. atravs do sofrimento
que ele purificado e consegue expiar o erro cometido. A punio somtica o reaproximaria
na narrativa de Vicente, em que, mesmo morto, o santo foi cercado de milagres. Quando
Daciano mandou que seu corpo falecido fosse abandonado em um campo para ser comido por
animais, ou quando ordenou que amarrassem uma enorme pedra no defunto para que, jogado
no mar, afundasse. Contudo, no primeiro, ele foi guardado por anjos e protegido por um corvo
e, no segundo, o mrtir foi levado praia, onde foi encontrado por alguns cristos que o
sepultaram.
destes. Sendo que o captulo desse ltimo tambm apresentaria um marcado incentivo s
O captulo de So Vicente teria como finalidade a sua construo como smbolo de vitria,
representando a igreja triunfante. Seu corpo serviria como veculo dessas vitrias,
comprovando-as atravs da sua superao dos carrascos, das torturas e dos instrumentos
167
-168-
crist, e, por conseqncia, da Igreja triunfante, marcadamente viril, forte, mscula face aos
evidenciado na orao final, em que o santo pede ao Senhor para atender a quem implorasse
sua pregao, da sua funo social e da virilidade demonstrada nos relatos sobre seu encontro
com um drago.
papa, por medo, imola aos deuses. Levado a julgamento, os bispos argumentam que ele quem
deveria julgar seus prprios pecados, logo a ausncia de descries acerca das punies
construo de sua identidade de gnero, assim como o de Jorge, feito atravs do destaque
dado a prdica e do seu papel social como inquisidor. Sendo que este concomitante ao de
de sua sabedoria atrelada a sua prdica e utilizadas na perseguio dos hereges de sua ao
contra os hereges, o que exaltaria a Ordem Dominicana. Alm disso, tambm evidenciaria
Afinal, sublinhamos que So Tiago, o cortado, tambm sacrificou aos deuses por
amor ao prncipe no por temor s maceraes e a retaliao de seu erro ocorreu atravs de
168
-169-
um detalhado relato sobre sua punio, com um destaque para seu sofrimento, sem nenhuma
interveno divina.
veculo de sofrimento, diante do qual, ele engrandeceu sua f, louvou o poder de seu Senhor e
cada decepao de um membro de seu corpo, o personagem purificado pela dor, corrige o
erro cometido e comprova sua f e sua santidade. Em uma perspectiva diametralmente oposta,
o fsico, no captulo sobre Vicente, aparece como uma forma de ratificar as vitrias do
personagem, sendo que ele no salvo das torturas, contudo no sofre nada com elas. O nico
milagre que transforma seu suplcio em delcia ocorre quando o santo foi preso, com os ps
pregados.
ao poder advindo destas, atestadas atravs das torturas desfeitas. Enquanto o primeiro sofre,
mas goza das torturas, o segundo salvo de, praticamente, todos os suplcios atravs de
milagres. Destacamos que nas narrativas de Marcelino e de Pedro Mrtir o aspecto fsico no
Conclumos que cada captulo atende a um objetivo de Jacopo, sendo que as relaes
169
-170-
condenando-as e estabelecendo um modelo ideal de pregador para seu combate, que deveria
ser seguido pelos irmos dominicanos. Alm disso, narra episdios milagrosos vinculados s
cruzadas, estabelecendo que a proteo divina ocorreu por causa do cavaleiro: cristo e
protetor dos pobres; da mesma forma, assume um posicionamento frente s contendas entre os
Por fim, ressaltamos o captulo de So Pedro Mrtir, que seria o personagem mais
contemporneo a Jacopo. Por ele tambm ser da Ordem Dominicana, o compilador evidencia
especialmente aos hereges. Alm disso, o motivo de sua morte diferente dos demais, porque
ele no foi perseguido porque a sua religio era a oficial do Imprio, pelo contrrio, Pedro
foi caado por ser Inquisidor, por um herege que o temia. Assim, ele enquadrado na nova
170
CONCLUSO
e da santidade. Para tanto, cumprimos outros objetivos secundrios fundamentais para nossa
pesquisa.
informaes biogrficas sobre seu compilador. Segundo a historiografia, a partir do sculo XI,
uma srie de mudanas ocorreu na Pennsula Itlica incentivando, entre outras coisas, a
vida crist.
movimentos religiosos laicos, frutos de uma busca da vita apostlica, calcada em releituras da
Igreja Primitiva. Assim houve o desenvolvimento das chamadas Ordens Mendicantes e das
A partir de nosso recorte do sculo XIII, estudamos como a LA foi marcada pelas
relaes estabelecidas para/ com a Igreja e a Ordem Dominicana assim como entre essas
Nossa hiptese foi que a escolha desse gnero literrio deveu-se flexibilidade dogmtica
variados.
-172-
ele, dentre os quais, sublinhamos a tenso religiosa em Gnova, no sculo XIII, os discursos
evidenciamos nossa hiptese atravs da anlise dos captulos sobre Santo Ambrsio
poltica, em que Jacopo selecionou relatos e fontes que lhe permitiram argumentar mais
de boa conduta para instruo dos religiosos e leigos e ser uma fonte teologicamente correta
no auxlio na formulao dos sermes para a manuteno dos fis e a converso dos infiis e
hereges.
Acreditamos que Jacopo argumentaria nos relatos o tipo de pregador mais eficaz,
exaltando uma combinao equilibrada entre erudio e ao. Portanto, em nossa opinio, a
LA se caracteriza como uma sequncia de topos sem uma unidade lgica unificadora, ou seja,
cada relato formado por elementos narrativos que no aparecem necessariamente em outro
da mesma forma. E so essas particularidades dos captulos que favorecem o carter didtico
nossa dissertao tratamos de alguns dos discursos com os quais Jacopo poderia ter tido
contato. Defendemos que o dominicano teve como preocupao afirmar valores e posturas
polticas dentro de das relaes de poder das quais participou. Em muito dos relatos da obra, o
172
-173-
equilbrio entre erudio e pregao. De modo similar, ele escolheu narrativas que lhe
oferecessem a abertura para abordar os conflitos entre o papa e o poder civil, buscando
batalhas polticas.
Munidos dessas reflexes sobre Jacopo, o contexto vivido pelo dominicano e a LA,
pesquisamos algumas acepes do tema do martrio. Nosso objetivo foi encontrar caminhos
que nos auxiliassem a compreender a sua retomada no sculo XIII, considerando como ele se
eclesistica como os infiis, hereges, entre outros sob a justificativa de guerra justa, a
promessa de martrio foi um til mecanismo de incentivo aos que morressem em nome de
Deus.
missionrios mendicantes e a guerra santa, sob o ideal de guerra justa, tinham como objetivo a
173
-174-
identificao do cavaleiro cristo, que protegido e auxiliado por Deus. Nos captulos sobre
relato sobre Domingos de Gusmo, visava incentivar aos irmos dominicanos no combate s
exaltao e incentivo das cruzadas com a objetivao do tipo de cavaleiro que seria auxiliado
Assim, Jacopo teria sido influenciado por elementos associados com a retomada do
entre outras coisas, aos inimigos da cristandade como os herticos e os infiis servindo de
qualidade, caracteriza-se como uma seqncia de topos sem unidade homogenizante. Logo,
sendo que a funo/ lugar social o elemento principal de diferena entre o grupo de
notrio que enquanto os homens exercem funes sociais em relao sociedade com os
1
De modo semelhante, no captulo sobre Francisco de Assis, no qual o compilador ressalta a busca pelo martrio
do personagem ao visitar as terras dos infiis.
174
-175-
relao aos homens, sejam pais, maridos ou autoridades. A exceo desse caso Tiago, o
cortado, que identificado apenas como nobre e, num certo sentido, tutelado por
Tambm destacamos o uso dos captulos para desvalorizar as crenas pags, contudo
de formas diferenciadas, seja atravs da apresentao de castigos possveis aos infiis, hereges
aparece na construo narrativa dos personagens nas biografias: mrtires e algozes (sejam
o/a cristo/ como puro/a, racional, correto/a, e o outro, que dominado pela luxria, a
lascvia e o pecado.
Nos relatos das mulheres essa questo evidenciada em uma perspectiva sexual, em
que os corpos femininos so palcos fundamentais das relaes de poder e, em muitos casos,
meritrias do martrio. Hegemonicamente, nos relatos dos homens, o corpo figura como
elemento fundamental nas relaes de poder, mas sendo objetivado como smbolo das vitrias
triunfante.
uma forma totalmente diferente dos demais, por este ser o nico personagem masculino em
que o fsico o caminho para comprovao de sua santidade e para torn-lo meritrio da
coroa do martrio, como nas biografias das mulheres. Outra exceo o caso do papa Urbano.
Nessa narrativa, o corpo no possui nenhum tipo de destaque, o que, acreditamos, deve-se ao
175
-176-
desvantagens de seu sexo, apresentando-se como fortes, sem medos dos suplcios, virginais
e eloqentes. Elas recebem e exercem poder e dominao nos captulos em intensas relaes
de poder.
associao entre o seguimento dos valores da vida crist e a salvao da alma. Acreditamos
que Jacopo defende que apenas ser cristo no garante o caminho da alma para o reino dos
cus. Seguir a f correta era o primeiro passo, complementado com a retido de uma vida
Contudo, isso no significava que possuir esse modo de vida garantia a santidade, porque
ressaltamos novamente que o santo j nasceria com a marca da santidade. Nesse sentido, os
constituintes dela. Flax destaca que a categoria gnero no apenas relacional, mas toca as
relaes entre sexos diferentes, entre indivduos do mesmo sexo, a construo das identidades
Nesse sentido, os discursos construdos acerca dos gneros e das santidades dos personagens
2
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176
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dominicano no combate ao outro : os herticos, infiis ou pagos. Por fim, sublinhamos que
a ao dominicana era direcionada tambm aos fiis, logo, a objetivao dos santos como
modelos de comportamento voltado aos demais cristos marca a LA, em que o discurso
predominante a defesa de uma vida recheada de valores cristos para alcanar a salvao.
177
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186
-1-
INTRODUO
1. Apresentao
Os relatos de Santo Ambrsio e de Santa Eugnia. Ambos foram realizados sob a orientao
desses processos em dois relatos presentes na compilao conhecida como Legenda urea1 a
mbito social por percursos diferentes. Nesse sentido, tanto a afirmao da qualidade divina
Ressaltamos que a importncia dessa etapa na graduao foi dupla para nossa
formao. Alm de aprofundarmos as nossas reflexes acerca dos Estudos de Gnero, tivemos
um maior contato com a obra LA do sculo XIII, compilada pelo dominicano Jacopo de
Varazze. E foi durante as nossas leituras que percebemos a constante e detalhada descrio
Portanto, comeamos a questionar o porqu deste destaque. Seria este parte da retrica
1
-2-
serviam aos interesses da Igreja, no sculo XIII? Como as relaes de poder institudas no
mbito religioso aparecem nos relatos de martrios antigos? Qual o papel das maceraes
somticas dos santos nas construes de uma santidade genderificada? Essas so as principais
questes que permearam nossa pesquisa para as quais elaboramos algumas hipteses
A partir dessas questes iniciais, desenvolvemos nossa pesquisa, cujo objetivo central
foi examinar as estratgias narrativas utilizadas nos relatos sobre os mrtires selecionados
considerando elementos como a posio social ocupada pelo cristo martirizado e o motivo
A temtica martrio foi difundida por obras hagiogrficas, a partir do sculo II,
devido s perseguies aos cristos, o que conferiu outra significao a esse termo grego que
a ser aquele que, apesar de nunca ter visto ou ouvido Cristo em vida, estaria to convencido
Segundo Lucy Grig, no artigo Torture and truth in late antique martiriology,4 o mrtir
era um soldado de Cristo que confrontava a fora do mal, representada, nesse momento, pelo
estado romano. Este personagem desejaria a sua morte, exacerbando as torturas, j que, dessa
forma, quanto maiores fossem os seus sofrimentos, maior seria a demonstrao da vitria
crist coroada com a sua morte. Segundo a autora, os mrtires se tornaram os heris da Igreja
3
Sublinhamos o motivo real do martrio, pois, mesmo nos relatos sobre personagens contemporneos s
perseguies aos cristos, a defesa da f nem sempre era a verdadeira motivao para a execuo.
4
GRIG, Lucy. Torture and truth in late antique martiriology. Early Medieval Europe. v.2, n.4, p.321-336, 2002.
p. 322.
2
-3-
hagigrafos, foram norteados pela unio de quatro noes: a ecclesia, j que sem a Igreja no
haveria o martrio; o dom da vida, pelo mrtir simbolizar a doao da vida em nome de um
amor maior representado pela f; a cristologia, pois deixar-se morrer era seguir o exemplo de
Cristo, que deu a vida pelos irmos; e a defesa da verdade do Evangelho, j que o mrtir no
morre por si, mas para testemunhar sua f diante de seu perseguidor.
destaca Nri de Almeida Souza no artigo Hipteses sobre a natureza da santidade,6 a Igreja
crist caracterizava-se por uma intensa ascese, com a valorizao da exposio do corpo alm
dos limites biolgicos, atravs de penitncias, das maceraes, da abstinncia sexual, dos
jejuns, entre outros, sendo identificada como martrio branco ou espiritual. Ou seja, a vida
asctica mantinha uma proximidade com o martrio de sangue: a superao da dor fsica.
Assim, nos anos iniciais do medievo, os santos eram aqueles que iam alm da condio
desejo por um novo ideal de vida religiosa, acompanhado por uma diferente percepo da
santidade, que dentre outros aspectos, encontramos a retomada do desejo pelo martrio
sangrento, contudo, com uma marcada releitura. O mrtir no era mais o perseguido pela sua
f, mas sim aquele que morria na defesa da cristandade, contra os inimigos da Igreja e da
justia.
5
FISICHELLA, Rino. Martrio. IN: _____. PACOMIO, Luciano & PADOVESE, Luigi (Orgs.) Lexicon.
Dicionrio Teolgico Enciclopdico. So Paulo: Loyola, 2003, p. 467-468.
6
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4,
p.11-46, 2002.
7
Segundo a pesquisadora Brenda Bolton, as mudanas ocorridas a partir do sculo XI, como o aumento
populacional, o crescimento das cidades e do nmero de ofcios especializados, a formao de grupos maiores e
mais dinmicos, a difuso de uma pregao no oficial, o contato com as heresias, entre outros, traziam uma
valorizao do indivduo, o desenvolvimento da religiosidade leiga e a tentativa de retorno vita apostolica
como interpretada a partir do Novo Testamento. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies
70, 1983.
3
-4-
interior do cristo, que estaria disposto a dar a vida em nome da cristandade, caso a situao
seria a continuidade do martrio branco e morte do santo por testemunhar a sua f atravs da
defesa diante dos inimigos da cristandade, que era uma retomada do ideal do martrio de
configuraram-se de acordo com as relaes de poder estabelecidas pela e com a Santa S.8
captulos da mesma obra, com a base terica nos estudos de gnero. Ao efetivar tal proposta
nossa questo de pesquisa, no visa comparar duas obras, mas a construo de dois discursos,
exploramos uma modalidade de Histria Comparada, que rompe com a idia de que s h
Por fim, sublinhamos que como nosso interesse est nos relatos dos martrios da LA,
essa obra no foi examinada integralmente. Portanto, estabelecemos como critrio de seleo
dos relatos a ateno que reservada s descries das penas somticas, j que analisamos a
existncia de uma relao entre a nfase dada s torturas sofridas e a construo da identidade
8
Ressaltamos que, nesse trabalho, destacamos as relaes estabelecidas com os hereges, os infiis e os pagos.
4
-5-
mrtires, aqueles que, na obra, apenas citado o tipo de morte sofrida, aqueles cujo o
como tal. A partir dessa seleo, escolhemos alguns relatos sobre santos e santas, para anlise
e comparao.
distintos lugares ou funes sociais; como soldados, nobres, pregadores, papas e etc. No
enquadradas na sociedade apenas pela sua relao com personagens masculinos, possuindo os
2. Pressupostos tericos
utilizados. Como nosso interesse reside na percepo e no estudo dos processos de construo
9
Blasucci afirma que o testemunho de f que o mrtir fornecia poderia assumir trs distintas formas: diante de
tribunais ou suportando prises e maltratos por causa da f, contudo sem morrer (confessor que era o martrio
incompleto ou incoativo advindo da confisso da f atravs da palavra); atravs de uma vida crist seguida com
perfeita observncia da lei divina (martrio branco, do qual trataremos a seguir); e o testemunho selado com a
morte (martrio perfeito, ou consumado ou de sangue). Contudo afirma que em todas essas modalidades e
significaes de martrio foram acentuadas na relao entre esses personagens e Cristo, j que eles simbolizariam
a extenso do seu sacrifcio de sangue. Como trabalharemos apenas com a ltima expresso de martrio,
tomamos cuidado para no selecionarmos relatos sobre confessores, tambm presentes na LA, j que sofreram
punies somticas como os mrtires. BLASUCCI, Antonio. Martrio, imolao, sacrifcio. In: GUIMARES,
Almir Ribeiro (Org.). Dicionrio Franciscano. Petrpolis: Vozes, 1999. p.416-420.
10
Cabe sublinharmos que as pginas dos relatos referem-se as da edio brasileira realizada por Hilrio Franco
Jr. JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos. So Paulo: Companhia das Letras, 2003.
5
-6-
de santidades genderificadas, nossa base terica encontra-se nos Estudos de Gnero,11 tal
Profundamente influenciada por Michel Foucault, Scott afirma que gnero o saber a
respeito das diferenas sexuais. Scott utiliza o conceito saber aplicando-o, segundo o filsofo,
Essa produo do saber encontra-se no social, logo, consideramos que a concepo de gnero
relaes de gnero na teoria feminista,13 defende que o paradigma identificado como ps-
moderno condio sine qua non para guiar os estudos de gnero. Dessa forma, essa teoria
contesta o aspecto racional e objetivo da cincia, nega sistemas explicativos gerais, no aceita
categorias como homem, mulher, feminino, masculino nem dicotomias como, por
hegemnico construdo sobre o gnero era caracterizado por uma viso misgina. Segundo
11
Para mais informaes sobre os pressupostos dos Estudos de Gnero e as suas relaes com corpo e sexo, cf.
FLAX, Jane. Ps-modernismo e relaes de gnero na teoria feminista. In: HOLLANDA, Helosa Buarque
(Org). Ps-modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p. 217-250; GULLEY, A. Heo Man Ne Waes":
Cross-Dressing, Sex-Change, and Womanhood in Aelfric's Life of Eugenia. Mediaevalia: A Journal of Medieval
Studies, v. 22, n.1, p.113-131, 1998; LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gnero dos gregos a
Freud. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 2001; SCOTT, Joan. Gnero: uma categoria til para os estudos
histricos. Educao e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, dez. 1990; _____. Histria das mulheres.
In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da Histria. So Paulo: Unesp, 1992. p. 64-94; _____. Prefcio a Gender and
Politics of History. Cadernos Pagu, n.3, p.11-27, 1994; SILVA, Andria C. L. Frazo da. Reflexes
metodolgicas sobre a anlise do discurso em perspectiva histrica: paternidade, maternidade, santidade e
gnero. Cronos: Revista de Histria, Pedro Leopoldo, n. 6, p. 194-223, 2002; _____. Reflexes sobre o uso da
categoria gnero nos estudos de Histria Medieval no Brasil. Caderno Espao Feminino, v.11, n.14, p. 87-107,
jan./ jul. 2004.
12
SCOTT, Joan. Op.cit., p.12.
13
FLAX, Jane. Op.cit., .p. 217-250.
6
-7-
qualitativa, ou seja, quanto mais prximo do masculino, mais perfeito e perto de Deus. As
nico sexo, cujas variaes relacionavam-se a uma ordem superior, que transcendia o
biolgico. A patir desses elementos, consideramos o sexo uma construo situacional, que
apenas pode ser entendido dentro do contexto de luta sobre gnero e poder.
olhar construdo sobre o natural cultural. No estamos com isso negando a materialidade do
prtico a partir das concepes culturais construdas acerca dos corpos. Segundo Bordo,
inteligvel. E esses mesmos discursos podem funcionar como regras e regulamentos prticos,
do corpo,17 no qual argumenta que cada cultura atribui significados especficos aos
14
LAQUEUR, J. Op. Cit.
15
Para mais informaes sobre o lugar do corpo, cf. CANNING, Kathleen. The Body as Method? Reflections
on the Place of the Body in Gender History. Gender and History, v. 11, n. 3, p.499-513, nov. 1993; BORDO,
Susan e JAGGAR, Alison M. Gnero, corpo, conhecimento. Rio de Janeiro, Record: Rosa dos Tempos, 1997;
FEHER, Michelet et al. (Ed.). Fragmentos para uma historia del cuerpo humano. Madrid: Taurus, 1990;
MONTSERRAT, Dominic. Changing bodies, changing meaning. Studies on the human body in Antiquity.
London, New York: Routledge, 1998; RODRIGUES, Jos Carlos. Tabu do corpo. Rio de Janeiro: Dois Pontos,
1986; _____. O corpo na Histria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999; PORTER, Roy. Histria do corpo. In:
BURKE, Peter (Org.). A escrita da histria. Novas perspectivas. So Paulo: Editora da Universidade Estadual
Paulista, 1992. p. 291-327; LAQUEUR, Thomas. Op.cit.
16
BORDO, Susan e JAGGAR, Alison. Op. Cit.
17
RODRIGUES, Jos Carlos. Tabu do corpo... Op.Cit.
7
-8-
corporal. Por conseguinte, normas e regras sobre o corpo so apresentadas como naturais. O
historiador Roy Porter, no artigo Histria do corpo, complementa; o corpo no pode ser
tratado pelo historiador, simplesmente como biolgico, mas deve ser encarado como mediado
Assumimos para nosso estudo que no corpo e atravs dele que se inscrevem os
limites so flexveis.19
Desta forma, reafirmamos que no existe uma materialidade orgnica inteligvel fora
de uma perspectiva cultural. Mas nossa compreenso dos pressupostos dos estudos de gnero
lugares onde se travam lutas de poder genderificadas. Assim, o entendimento dos homens e
das mulheres das suas especificidades corpreas fruto de relaes de gnero pr-existentes.
Toda a construo sobre uma dada viso de gnero realizada e mantida sobre um
aspectos da experincia humana, sendo constituintes dela. A categoria gnero toca nas
relaes entre sexos diferentes, entre indivduos do mesmo sexo, na construo das
relaes sociais. Todos esses elementos esto presentes na construo dos significados,
variantes no tempo e espao, dos gneros e dos sexos. Eles estabelecem os efeitos de serem
atribudos a uma ou outra categoria dentro das prticas sociais concretas como, por exemplo,
18
PORTER, Roy. Op.Cit.
19
De acordo com o antroplogo Jos Carlos Rodrigues, no livro O corpo na Histria, j citado, cada cultura
atribui significados especficos a comportamentos e/ ou elementos relacionados materialidade orgnica, alm
de inibir ou exaltar impulsos instintivos. Dessa forma, as normas e regras sobre o corpo so apresentadas como
naturais.
20
FLAX, Jane. Op. Cit.
8
-9-
a insero nas relaes de poder. Contudo, em nossa pesquisa, utilizamos essa categoria de
compreendemos e o empregamos.
atravs da delimitao abstrata e simblica de diferenas. Para existir, uma identidade precisa
simblica o meio pelo qual damos sentido a prticas e s relaes sociais, (...). por meio
21
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferena: introduo terica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da
(Org.). Identidade e diferena: a perspectiva dos estudos culturais. Petrpolis: Vozes, 2000. p.7-72.
22
Ainda nesta questo, defendemos que, alm das mltiplas associaes simblicas nas construes de
identidade, estas so realizadas por duas perspectivas, muitas vezes conflitantes: a individual e a externa ao
indivduo, mas atribuda a ele.
23
Ibidem. p.14.
9
-10-
com os sistemas simblicos, com as relaes sociais e com as de poder imputadas nelas.
santidade.
Cristina da Silva, no artigo Reflexes sobre o uso da categoria gnero nos estudos de Histria
Medieval no Brasil (1990 2003), considerando que essa categoria seria o conjunto de
comportamentos, atitudes e qualidades que num determinado lugar e tempo so critrios para
considerar o indivduo como venervel, seja pelo reconhecimento oficial da Igreja ou no.24
Nesse sentido, tambm seria uma produo histrica, particular e dinmica, isso porque,
Vamos nos deter um pouco sobre a expresso santidades genderificadas. Esta foi
construdos, vamos pensar sobre as diferenas e as semelhanas existentes nos percursos dos
3. Discusso Bibliogrfica
seleo das obras. O primeiro diz respeito aos trabalhos que tratam do martrio, pensando-o,
24
SILVA, Andria C.L. da. Reflexes sobre o uso da categoria gnero... Op. Cit. p.101.
10
-11-
analisam os martrios da LA pela perspectiva terica dos Estudos de Gnero. Nossa discusso
centrou-se nesses materiais, contudo, apenas destacamos os objetivos centrais de cada texto,
ou seja, no faremos uma anlise exaustiva de cada um, j que nossa finalidade apresentar
Inicialmente, destacamos os textos nos quais o martrio foi trabalhado em relao com
corpo no Imprio Romano e nas descries literrias da Antigidade Tardia e da Alta Idade
sofrido pelas virgens. Fecharemos essa parte inicial com anlise dos argumentos centrais de
trs artigos que utilizaram a categoria gnero para o estudo dessa temtica.
Aps essa viso mais geral, deteremo-nos nas pesquisas que estudaram as relaes
entre a Igreja e os novos mrtires. Em seguida, focalizaremos nossa ateno em trabalhos que
analisam os corpos martirizados na LA, para, por fim, concluirmos com o nosso
posicionamento frente a tais obras e como nossa pesquisa contribuir para enriquecer o debate
os artigos de Merrall Llewelyn Price, Purifying violence: Santity and the somatic, de 2001,25 e
mdivale ds rituels, de 1997.26 Em ambos, temos a defesa de uma marcada ligao entre o
martrio e o Imprio Romano,27 com o foco no corpo condenado do mrtir, que por poder
adquirir aspectos sagrados, alteraria o significado da justia romana e das punies somticas,
25
PRICE, Merrall Llewelyn. Purifying violence: Santity and the somatic. Gender and Medieval Studies
Conference, York, January 5-7 2001. Disponvel em http://tango.lib.uiowa.edu:8003/smfs/search.taf?function=
detail&Layout_0_uid1=39336. Consulta em 20/08/2008.
26
BUC, Pilipphe. Martyre et ritualit dans lantiquit tardive. Horizons de lcriture mdivale ds rituels.
Annales. Histoire, Sciences Sociales, v.52, n.1, p. 63-92, 1997.
27
Destacamos que h outros textos que, ao trabalharem a relao entre o cristianismo e o Imprio Romano,
mencionam a questo do martrio de forma pontual, por isso no foram utilizados nessa discusso. Cf.: BENKO,
Stephen. Pagan Rome and the Early Christians. London: B. T. Batsford, 1985; BERR, Jean de. L'aventure
chrtienne. Paris: Stock, 1981; BOWERSOCK, Glen Warren. Martyrdom and Rome. Cambridge: Cambridge
University Press, 1995; SORDI, Marta. Los Cristianos y el Imperio Romano. Madrid: Encuentro, 1988; STE
CROIX, G. E. M. de. Por que fueron perseguidos los primeiros cristianos? In: FINLEY, Michael. I. (Org.).
Estudios sobre Historia Antigua. Madrid: Akal, 1981. p. 253-78.
11
-12-
trazendo a presena de Deus diante dos que assistiam ao espetculo e dos que o comandavam.
Llewelyn ainda articula essa hiptese a uma funcionalidade especfica das obras hagiogrficas
The Suffering Self: Pain and Narrative Representation in the Early Christian, publicado em
1998,28 trata do surgimento de uma cultura do sofrimento pessoal, na Igreja Antiga, na qual
o ato de sofrer valorizado como base para uma relao mais ntima com a divindade. Nesse
violencia y dominacin del cuerpo femenino,29 de 2000, argumenta que a dor fsica sentida
pelos mrtires possua uma incidncia especial sobre o corpo das mulheres, por conta da
leis da natureza, caracterizado pela debilidade e pela passividade. Nesse sentido, Rodrgues
defende que o tratamento fornecido ao corpo nos relatos das santas mrtires, entre os sculos
II e IV d.C., permitia aos autores cristos apresent-las sob uma aparente subverso de sua
experimentada por elas como via para transgredir as estruturas de gnero da sociedade pag.
No entanto, apesar de sua comprovada capacidade para superar as limitaes de sua natureza,
seguem sendo, para pagos e cristos, essencialmente, corpos sexuados que precisam ser
controlados.
28
PERKINS, Judith. The Suffering Self: Pain and Narrative Representation in the Early Christian Era. New
York: Routledge, 1995.
29
RODRGUEZ, Mara Amparo Pedregal. Las mrtires cristianas: gnero, violencia y dominacin del cuerpo
femenino. Studia historica. Historia antigua, n.18, p. 277-294, 2000.
12
-13-
O argumento principal que os autores cristos da Antigidade Tardia e da Alta Idade Mdia
Igreja. Por fim, Montserrat distingue o tratamento dado s virgens mrtires nas obras crists.
tambm confere uma natureza sexual aos martrios das virgens. Todavia, ao contrrio de
como a celebrao da castidade e supresso das tentaes do corpo. Coyne sublinha que,
apesar destas vitrias, o martrio no fornecia um status superior para a santidade das
virgens, j que esta somente era construda e comprovada a partir de forte violncia. Por fim,
articula a flexibilidade do corpo torturado das virgens com a Igreja, sob as perseguies
pags. A virgem torturada funcionava como um artifcio cultural que no apenas preservaria a
Mrida, de 1999, Raquel Homet32 trabalha com a comparao de dois relatos sobre o martrio
Imperador, sendo assim, o foco estaria na relao entre o paganismo e o cristianismo, com o
30
MONTSERRAT, Dominic. Changing bodies, changing meaning. Studies on the human body in Antiquity.
London e New York: Routledge, 1998.
31
COYNE, Katheleen Kelly. Useful virgins in Medieval Hagiography. In: CARLSON, Cindy L. et WEISL,
Angela Jane (Ed.). Constructions of Widowhood and Virginity in the Middle Ages. New York: St. Martin's Press,
1999. p.135-164.
32
HOMET, Raquel. Significaes de los martirios de Eulalia de Mrida. In: _____. et al. Aragon en la Edad
Media XIV-XV. Zaragoza: Universidade de Zaragoza, 1999. p.759-775.
13
-14-
cidade como um ser encarnado pelo mal. A autora defende que, nessa paixo, a fora
espiritual da virgem mrtir encontrava-se na resistncia aos tormentos sofridos pela sua f.
Assim, Homet conclui que, apesar de ambos os documentos colocarem nfase no martrio
pesquisadora Maud Burnett McInerney, no livro Eloquent virgins from Thecla to Joan of Arc,
de 2003,33 que aponta que o tratamento dado s virgens mrtires, nos documentos, variou
segundo o sexo do autor. Ela analisa textos de Ambrsio, Tertuliano, Hidelgarda, Hrotsvitha,
entre outros. A partir desse estudo, ela defende que em cada perodo histrico h duas
voyerismo, perceptvel nas descries da violncia sexual e das torturas somticas. Nestas
textos de autoras femininas, ela percebe a construo de narrativas que colocam as virgens
mrtires como ativas e inteligentes, capazes de realizarem suas prprias escolhas, e poderosas
ao lidarem com homens vis e injustos. Sendo assim, a proposta dessas obras era que, atravs
que o corpo da virgem foi descrito e percebido de modos diferenciados pelos autores
Conclumos a primeira parte de nosso debate bibliogrfico com trs textos que
33
MCINERNEY, Maud Burnett. Eloquent virgins from Thecla to Joan of Arc. New York: Palgrave Macmillan,
2003.
14
-15-
Topos in the Legends of Female Virgin Martyr Saints, de Kirsten Wolf, de 1997;34 Heo Man
Alison Gulley, de 1998;35 e no mais recente, de 1999, Gender and Martyrdom, de Evelyn
Birge Vitz.36 Apesar de trabalharem com diferentes obras hagiogrficas, as trs autoras
na absolvio da alma.
Esse segundo momento de nossa apresentao uma reflexo que foi fundamental
para nossa pesquisa, por tratar o tema martrio no mesmo recorte temporal que o nosso, alm
de focar nos santos mendicantes ao analisar as relaes entre a Igreja e os novos mrtires,
no sculo XIII. Trabalharemos com as propostas dos artigos Martyrdom, Popular veneration
dos infiis e dos pagos, com o propsito da converso, afirmando que aqueles que perdessem
Deus.39 Contudo, o autor argumenta que queles que morreram para proteger a f crist, e,
portanto, em uma situao similar aos mrtires das perseguies, no tiveram a sua santidade
34
WOLF, Kristen. The Severed Breast: A Topos in the Legends of Female Virgin Martyr Saints. Archiv fr
Nordisk Filologi, v.112, p. 97-112, 1997.
35
GULLEY, Alison. Op. Cit.
36
VITZ, Evelyn Birge. Gender and Martyrdom. Medievalia et Humanistica, n. 26, p.79-99, 1999.
37
RYAN, James. Missionary saints of High Middle Ages. Martyrdom, Popular veneration and Canonization.
The Catholic Historical Review, v. 90, n.1, p.1-28, 2004.
38
FORTES, Carolina Coelho. Os mrtires da Legenda urea: a reinveno de um tema antigo em um texto
medieval. In: LESSA, Fbio & BUSTAMANTE, Regina (Orgs.). Memria e Festa. Rio de Janeiro: Mauad,
2005, p. 375-400.
39
Ryan sublinha ainda que o Papa Inocncio III escreveu algumas cartas para as ordens dominicana e
franciscana garantindo a recompensa para as pessoas ligadas a essas ordens que morressem em nome de Cristo.
No entanto, as canonizaes s comearam a partir do sculo XIV. RYAN, James. Op. Cit. p.5.
15
-16-
vezes, eram sobre pessoas que foram renegadas pela Igreja, como os herticos e os cismticos.
Assim, passou a haver a necessidade de uma investigao sobre a santidade, trazendo essas
esferas das prticas populares para seu controle e aprovando os que eram de seu interesse.
Possuindo uma hiptese semelhante, Carolina Fortes complementa que o influxo de novos
santos foi visto como uma ameaa ao status de cultos mais antigos e tradicionais, e tambm
levantou o espectro de uma Igreja fragmentada na qual toda pequena comunidade veneraria
santos diferentes.40
O objeto central do artigo de Fortes , contudo, a retomada do tema martrio pela LA.
Antigidade Tardia e da Alta Idade Mdia, que abordavam os sculos I-IV, fez com que a
Jacopo, ao escolher mrtires que se colocavam frente aos poderes seculares que lhe eram
Por tratar das formas como esses personagens apareciam na LA e as relaes entre as
a vida terrena do santo d-se com a permanente exposio do corpo aos limites da
sobrevivncia.43 Assim, o que aconteceria ao corpo santo atestaria o destino de sua alma.
40
FORTES, Carolina Coelho. Ibidem. p.7.
41
Nesse sentido, a LA marcaria a idia que, invariavelmente, os perseguidores seriam punidos pelos seus atos.
42
SOUZA, Nri de Almeida. Op. Cit.
43
Ibidem. p.13.
16
-17-
Nesse sentido, ela afirma que esta compilao divulga um ideal de santidade que derrota a
nega a importncia do corpo para os mrtires, pelo contrrio, a obstinao dos santos em
expor a carne em si o objeto de suas preocupaes. A dor proporcionaria uma ligao entre
dois plos, o privilegiado (a alma) e o anulado e desprezado (o corpo), permitindo que o santo
existisse entre o plano terreno e o espiritual. O aspecto sexual do martrio tambm apontado
pela autora: a dor fornece prazer. Neste ponto, Pouchelle sublinha que as descries das
leis e prticas civis pelos autores Llewlyn45 e Buc,46 que percebem que a presena do corpo
autores, o sofrimento foi tratado de duas formas distintas nos documentos contemporneos s
perseguies. Perkins47 defendeu que os textos antigos valeram-se deste para afirmao da
vitria crist em relao aos seus perseguidores e no outro artigo analisado, Montserrat48
44
POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
45
LLEWLYN, Merrall. Op. Cit.
46
BUC, Pierre. Op. Cit.
47
PERKINS, Judith.Op.Cit.
48
MONTSERRAT, Dominc. Op. Cit.
17
-18-
Coyne49 defende que a conotao sexual dos relatos possuiria um marcado teor moralizante,
Por ltimo, Wolf,52 Gulley53 e Vitz54 percebem o martrio como a libertao da alma
aprisionada no corpo. Sendo assim, a partir do plano geral do debate, destacamos que o
martrio foi tratado pelos pesquisadores como smbolo do divino e da vitria do cristianismo,
comportamento ambguo em relao aos novos mrtires. Se, por um lado, os incentivava para
rumarem s terras dos infiis e pagos para convert-los, prometendo a coroa do martrio para
Fortes,56 temos como justificativa que a Igreja procurava, nesse momento, regulamentar e
somticas sofridas pelos mrtires na LA. As autoras apontam que Jacopo utiliza-se do
sofrimento para construir um tipo ideal de santidade, afirmando que o compilador colocaria a
Assim, encontramos pesquisas que trabalharam com a temtica martrio com outras
49
COYNE, Katheleen Kelly. Op.Cit.
50
HOMET, Raquel. Op.Cit.
51
MCINERNEY, Maud Burnett. Op. Cit.
52
WOLF, Kristen. Op. Cit.
53
GULLEY, Alison. Op. Cit.
54
VITZ, Evelyn Birge. Op. Cit.
55
RYAN, James. Op. Cit.
56
FORTES, Carolina Coelho. Op. Cit.
57
POUCHELLE, Marie-Chistine. Op.Cit.
58
SOUZA, Nri de Almeida. Op. Cit.
18
-19-
sentido, nosso trabalho avanar por um caminho ainda muito pouco explorado, discutindo as
portanto, que nosso estudo apresenta novas vises e possibilidades, enriquecendo o debate
pesquisadores apontam que o gnoves teria participado dos captulos de Luca, em 1288, e de
Ferrara, em 1290. Assim, ele estava imerso nos preceitos dominicanos, como tambm na
com Carolina Coelho Fortes, que, na sua dissertao Os atributos masculinos das santas na
Legenda urea. Os casos de Maria e Madalena,59 aps avaliar diferentes hipteses, situa a
trabalhar com duas edies da obra. A primeira a recente edio brasileira de 2003,
organizada por Hilrio Franco Jr., com 175 captulos. Sua base est na edio crtica de T.
59
FORTES, Carolina Coelho. Os atributos masculinos... Op.Cit.
19
-20-
Graesse,60 por sua vez, fundamentada em outras verses, a saber: a francesa do abade J.-B.
questiona quantos foram os captulos compilados diretamente por Jacopo, que variam entre
175 e 182. Esse debate figura como um dos maiores problemas em se trabalhar com a LA: as
um marco histrico, perpetuado atravs de diversas edies ao longo dos sculos. Como
sofreu acrscimos e revises ao longo dos anos, afirmamos que a compilao foi resultado de
sentido. Para tanto, trabalhamos com o levantamento de informaes dos relatos selecionados
que foram organizadas em quadros de leitura especficos aos nossos interesses.62 Estes foram
livro O Inventrio das diferenas, 63 e do historiador Jrgen Kocka que, no artigo Comparison
60
Edio impressa em 1845, reimpressa em 1890 e em 1969 com o ttulo Legenda urea, vulgo histria
lombardica dicta.
61
IACOPO DA VARAZZE. Legenda urea su CD-ROM. Texto latino delledizione critica a cura de Givanni
Paolo Maggioni. Firenze: SISMEL-Galuzzo, 1999.
62
Cf. ANEXO 1 QUADROS DE LEITURA UTILIZADOS.
63
VEYNE, Paul. O inventrio das diferenas. Histria e Sociologia. So Paulo: Brasiliense, 1983
20
-21-
and beyond,64 apresenta sua definio de comparao: Para os propsitos desse comentrio
eu quero enfatizar que comparar em Histria significa discutir dois ou mais fenmenos
Nesse trabalho, Kocka ainda afirma que os objetivos da comparao iro variar
objeto com o qual j possui familiaridade, ampliando seu espao de reflexo, evidenciando
Nossa abordagem enquadra-se nas propostas desse autor. Nesse sentido, ao comparar
hipteses que no poderiam ser percebidas de outra forma, construir explicaes histricas
comparativamente.
que nenhum objeto peculiar por natureza, ou seja, de forma absoluta. Nesse sentido, o
64
KOCKA, Jrgen. Comparison and beyong. History and Theory, v.42, p.39-44, feb. 2003.
65
Ibidem. p.39.
21
-22-
uma constante trans-histrica, com o uso de uma teoria que fornea os conceitos,
Nesse sentido, a discusso acerca dos significados do ideal de martrio, no sculo XIII,
foi fundamental para a nossa pesquisa, porque, seguindo a proposta de Veyne, acreditamos
os relatos analisados, conclumos que o elemento norteador de todos eles a ligao entre a
salvao da alma e o modo de vida cristo. Em outras palavras, seguir uma vida recheada de
boas obras, condizente com os valores cristos, era a forma de garantir a salvao da alma.
Nossa dissertao, alm dessa introduo, possui quatro captulos e a concluso, que
de Varazze e o contexto por ele vivido. Essa preocupao est em sintonia com a perspectiva
estabelecidas com/ pela Igreja e com/ pela Ordem Dominicana, duas instituies nas quais ele
esteve inserido. Optamos por esse tipo de correlao para centralizarmo-nos nos fatos com os
dominicano. A seguir, focalizamos nosso estudo na sua mais famosa obra e documento
utilizado por nossa investigao emprica: a LA. Nessa parte, iniciamos com reflexes sobre o
relaes entre a estruturao individual dos relatos, bem como a organizao geral da obra,
66
Ao utilizarmos a expresso funcionalidade prtica da santidade, estamos aludindo aos usos desta para
benefcios pessoais ou institucionais distintos como o incentivo a peregrinao ao lugar de culto de determinado
santo, o que atraa doaes e fiis.
22
-23-
com os discursos extratextuais com os quais Jacopo pde ter tido contato. Nesse sentido,
Nesse captulo, defendemos a hiptese de que Jacopo teria escolhido redigir uma
hagiografia, ou melhor, elaborar uma conpilao, por esta no ter uma rigidez dogmtica,
logo, permitia a abordagem de temas distintos. Ao colocarmos o estudo dos relatos sobre
a nossa hiptese de que Jacopo, ao compilar a LA, objetivou responder questes especficas
s relaes de poder nas quais estava inserido, como a valorizao do poder eclesistico, a
Pelgio sobre argumentando acerca das associaes entre o poder imperial e o religioso,
retomada no sculo XIII. Para tanto, exploramos essa temtica pelo desenvolvimento dos
movimentos herticos e das cruzadas, pela atuao dos missionrios mendicantes e pela
nesses fenmenos. Por fim, buscamos perceber como Jacopo abordou, na LA, o processo de
estabelecidas com a Ordem Dominicana e com a Igreja. Assim, defendemos que a promessa
23
-24-
ctaros, e o papel da Ordem Dominicana e da Igreja no combate a esse grupo religioso. Nossa
compilao. Em relatos distintos, ao longo da LA, temos o confronto de santos com hereges,
morte por um herege como meritria do martrio, o que seria um incentivo pregao dos
irmos dominicanos.
cruzadistas. Nesse sentido, pensamos no ideal norteador das cruzadas e em sua proximidade
ao da Guerra Santa, ambas ligadas noo de guerra justa. Seguindo nossa lgica,
levantamos a hiptese de que coroa do martrio fora colocada como recompensa aos que
morreram em uma Cruzada, assim como na guerra santa, por ambas serem justas.
Ressaltamos que tambm estudamos a participao dos missionrios mendicantes, que, cabe
Sobre essas questes, elaboramos como hiptese que a retomada dessa temtica foi
realizada por hagigrafos, nesse momento, como tambm pela prpria Igreja Catlica (atravs
mendicantes). Jacopo de Varazze, diante desse cenrio, selecionou relatos com os quais
24
-25-
Reservamos os dois ltimos captulos para a apresentao e o exame dos dez relatos
estudo das narrativas das mulheres e o quarto ao dos homens, seguindo a proposta de Kocka.
processo genderificao, estabelecido atravs das relaes de poder. Por fim, comparamos
esses apontamentos finais, visando a percepo das semelhanas e diferenas entre eles, tendo
as.
Aps a comparao dos relatos, defendemos que a LA no possui uma unidade de sentido,
sendo uma seqncia de topos. O elemento em comum aos captulos a defesa da vida crist para
seguidos, contudo eles so santos porque nasceram com a marca da graa divina, o que a vida
Nossa dissertao est organizada segundo as normas postuladas pelo SiBI publicadas na
pelo CEPG em 1997. Assim, ressaltamos que as referncias bibliogrficas esto de acordo com a
6023), de 2007.
67
PAULA, Elaine Baptista de Matos et al. Manual para elaborao e normalizao de Dissertaes Teses. Srie
Manuais de Procedimentos, n.5, 3 ed. Rio de Janeiro: SiBI, 2004.
25
-26-
CAPTULO 1
1. Apresentao
Para tanto relacionamos o contexto da Pennsula Itlica com alguns dados biogrficos do
dominicano para, a seguir, ponderarmos sobre a compilao. Nesta anlise, refletimos acerca
direcionamento de nosso olhar quanto s singularidades da LA, atravs da relao entre sua
sociedades acerca dos diferentes aspectos da organizao social, estando presente nas prticas,
1
Para mais informaes sobre Jacopo de Varazze e a LA cf. AIRALDI, Gabriella. Jacopo da Varagine tra santi
e mercanti. Milano: Camunia, 1988; BAUDOT, Jules. Jacques de Voragine. In: AMANN, mile; MANGENOT,
Eugne et VACANT, Alfred (dir.) Dictionnaire de thologie catholique. Paris: Librairie Letouzey et An, 1939;
DONDAINE, Antoine. Le dominicain franais Jean de Mailly et la Lgende Dore. Archives dhistoire
dominicaine, 1, 1946; BOUREAU, Alain. Les estrucutures narratives de la Legenda Aurea: de la variation au
grand chant sacre. In: DUNN-LARDEAU, Brenda (org.). Legenda Aurea: Sept Sicles de Diffusion. Actes du
Colloque international sur le Legenda Aurea: textes latin et brainches vernaculaire. Montreal-Paris: Bellarmin-
Vrin, 1986; REAMES, Sherry. The Legenda Aurea: A reexaminat of its paradoxical History. Wisconsin:
University Press, 1985; WYZEMA, Teodor de. Introduction In: La Lgende dore. Paris: Seuil, 1960. p. 18-
19.
2
FOULCAULT, Michel. A ordem do discurso. So Paulo: Loyola, 1996. p.9.
26
-27-
concordamos com Andria C. L. Frazo da Silva, que defende que nenhum discurso
Roger Chartier com Carlos Aguirre Anaya, Jess Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio
Saborit,4 estes esto estruturados nos enunciados, assim como no prprio sistema de
histrico considerando que a sua produo tambm um acontecimento que, como tal, deve
contudo nossa preocupao residir nas condies em que a Ordem Dominicana surgiu,
apontando a relao entre esta e a Igreja. Como assinalamos, a nossa proposta traar
da bibliografia e da LA.
nossa ateno esteve direcionada aos elementos extratextuais mais imediatos ao compilador,
pensando nos desafios enfrentados por essas organizaes e em como essas influenciaram na
entre os mbitos civil e religioso, aqui estudadas, aparecem na obra, defendendo a nossa
3
SILVA, Andria C. L. Frazo da: Reflexes metodolgicas sobre a anlise do discurso em perspectiva
histrica: paternidade, maternidade, santidade e gnero. Cronos: Revista de Histria, Pedro Leopoldo, n. 6, p.
194-223, 2002.
4
CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e histria: Conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre
Anaya, Jess Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre: ArTmeD, 2001.
27
-28-
desde os sculos XI e XII. Esses fenmenos teriam sido mais perceptveis na Itlia, por esta j
de homens e idias.6
A expanso das cidades italianas foi favorecida, principalmente, por uma maior e
melhor explorao dos campos somada intensificao das relaes comerciais.7 Sobre esse
5
Segundo Franco Cardini, um dos resultados dessas trocas comerciais e culturais foi o surgimento da primeira
forma de lngua verncula, comum s reas que passavam por um processo similar de urbanizao. O autor no
especifica qual teria sido esta. ____. A Itlia entre os sculos XI e XIII. MONGELLI, Lenia Marcia. (coord.):
Mudanas e rumos: o Ocidente medieval (sculos XI-XIII). Cotia: bis, 1997. p.85-107. p.87.
6
Para mais informaes sobre o contexto da Pennsula Itlica cf. ABULAFIA, David. Italy in the Central Middle
Ages: 1000-1300. Oxford: Oxford University Press, 2004; CAMMAROSANO, Paolo. Storia dell'Italia
medievale. Dal VI all'XI secolo. Roma-Bari: Laterza, 2001; DEAN, Trevor. The Towns of Italy in the Later
Middle Ages. Manchester: Manchester University Press, 2000; GENICOT, Leopold. La Europa nel siglo XIII.
Barcelona: Labor, 1976; HYDE, John Kenneth. Society and politics in medieval Italy: the evolution of the civil
life, 1000-1350. New York: St. Martin's Press. 1973.
7
Nesse processo, destacou-se o comrcio martimo realizado por Gnova, Veneza e Pisa.
8
GENICOT, Leopold. Op.Cit. p.68.
28
-29-
ca. 1105,9 defende que, no sculo XIII, a sociedade ocidental passou por um processo de
similiar, Indro Montanelli e Roberto Gervaso, no livro Itlia: os sculos decisivos, afirmam
que o mbito clerical possua duas vantagens sobre o laico. A primeira diz respeito a certo
monoplio cultural exercido pelo clero que seria o principal responsvel pelo ensino. A
segunda seria que a entrada na clerezia figuraria uma mudana do status social de
determinada pessoa, tornando mais fcil o seu acesso aos cargos militares e civis, reservados
a membros das fileiras nobilirias. Em suma, eles afirmam que o ingresso no mbito clerical
significaria que:
Ambos acabaram se tornando marcadores sociais de diferena cada vez mais visvel, sendo
vez mais habitual da escrita motivaram os burgueses a confiar aos clrigos partes da
que isso no implicou em um aumento da autoridade episcopal ou de qualquer outro tipo nas
9
MOORE, Robert Ian. La alfabetizacin y el surgimiento de la hereja, ca. 1000- ca.1105. In: GARCIA, Maria
Loring Isabel. La Edad Media a debate. Madrid: Akal, 2003, p. 552-570.
10
MONTANELLI, Indro et GERVASO, Roberto. Itlia: os sculos decisivos (Idade Mdia, ano 1000 a 1250.
O nascimento das comunas). So Paulo: IBRASA, 1968. p.29.
11
Ididem. p. 556.
12
Ressaltamos o cuidado com esse tipo de argumentao, afinal no intencionamos indicar que o processo de
alfabetizao clerical ocorreu de forma homognea para o clero inteiro. Defendemos que este estaria, ainda, mais
retrito ao alto clero.
29
-30-
cidades. Pelo contrrio, desde o sculo XII, a autoridade eclesistica sofria uma diminuio
gradual como el poder jurisdiccional ms importante de la ciudad,13 ficando cada vez mais
atrelada ao civil.
relevante nas cidades europias. No final do sculo XII e incio do XIII, foram se
e o imprio germnico.14 Segundo Cardini, apesar do poder eclesistico ter tentado construir
uma autonomia diante das potncias seculares, a cria romana no conseguiu evitar a
influncia dos poderes leigos fortes. Nessa mesma poca, a renovao da vida religiosa
comeou a ser registrada atravs de buscas por uma reforma na Igreja, para elevar seu nvel
relacionada a uma definitiva separao das hierarquias eclesisticas em relao aos poderes
laicos.16
imprio. Segundo Brenda Bolton, no livro A reforma na Idade Mdia,17 a Igreja tornara-se
negligente e mundana nas suas atividades. Reinava a simonia, isto , o abuso do trfico de
13
WALEY, Daniel. Las ciudades-repblica italianas. Madrid: Guadarrama. 1969. p.56.
14
Segundo Cardini, desde o sculo X, o papado esteve a mrce da dinastia dos tonidas que, a partir do
privilegium Othonis de 962, estabeleceu que os papas deveriam jurar fidelidade ao imperador. Alm disso, Oto I
e seus sucessores passaram a intervir mais na Igreja, fundando bispados e abadias. O autor afirma que estes
episdios deram incio a um processo denominado investidura leiga. Esta era marcada pelo controle da Igreja
pelo poder do Estado (Cesaropapismo), do qual surgiria, posteriormente, o fnomeno chamado querela das
investiduras. CARDINI, Franco. Op. Cit. p. 88.
15
Ibidem.
16
Brenda Bolton defende que, inicialmente, os ideais reformadores dos mosteiros de Cluny, Brogne e Gorze
estavam direcionados ao retorno a uma viso idealista da Igreja nos primeiros tempos, a ecclesia primitiva dos
apstolos. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1983. p.21.
17
BOLTON, Brenda. Op. Cit.
30
-31-
de dignitrios da Igreja.18
simonaco de suas funes,19 que objetivava, dentre outras coisas, uma separao definitiva
Destacamos que uma das reaes contrrias a essas medidas partiu, justamente, de famlias
A reforma pode ser dividida em dois plos com objetivos diferentes: um que propunha
um retorno a uma releitura da ecclesia primitiva dos apstolos e da pobreza de Cristo, com
uma ateno especial relevada pregao da palavra do Senhor; e o outro que pretendia
foram sentidas no fim do sculo XII, com o fortalecimento das tentativas laicas24 de retorno
pregao, o que aumentou o desejo dos leigos por aes pastorais direcionadas ao saeculum e
por uma maior participao laica na ecclesia. Os monges, tentando responder a tais
secular eram insuficientes e/ ou sem o devido preparo para a ao pastoral junto aos fiis.
18
Ibidem. p. 20.
19
importante ressaltar que no consideramos que a reforma colocou um fim definitivo a essas prticas, sendo
ainda mencionadas, quase que duzentos anos depois, no IV conclio de Latro.
20
Sobre esse processo, Cardini coloca que o imperador [refere-se a Henrique IV], amparado pelo clero alemo,
tomou posio contra a deciso papal, mas Gregrio agravou a situao proclamando em 1075 a superioridade
do pontfice sobre o imperador: ao papa cabiam as insgnias do imprio e a ele atribua-se o poder de depor o
imperador e, portanto, de liderar os sditos deste da obrigao de fidelidade. CARDINI, Franco. Op.Cit. p. 90.
21
Segundo Franco Cardini, esse processo teria iniciado no conclio lateranense de 1059, quando, com a eleio
do Papa Nicolau III, estabeleceu-se que a eleio do pontfice seria confiada a um colgio cardinalcio.
22
Idem.
23
BOLTON, Brenda. Op.Cit. p. 21
24
Cardini e Bolton, nos respectivos livros supracitados, defendem que os movimentos espirituais, j iniciados,
refletiam as inquietaes laicas em relao vida religiosa proposta pela Santa S, estando em consonncia com
as mudanas ocorridas nos meios social, econmico e poltico.
31
-32-
fim do sculo XII, de movimentos dissidentes que a Santa S considerou herticos, como os
que algumas Ordens, como a Franciscana e a Dominicana,30 sentiram pelas cidades estaria
espirituais laicas e uma atuao na defesa dos preceitos defendidos pela Santa S.
postulado mais ativo voltado ao meio urbano, caracterizado por um forte trabalho assistencial
e pela pregao calcada no estudo das Escrituras.33 Assim, Hilrio Franco Jr, na apresentao
25
Analisaremos a heresia ctara ou albigense no captulo II.
26
Em 1184, tanto os valdenses como os humiliati foram excomungados pelo decreto Ab abolendam, sob o
pretexto de pregarem ilegalmente e por possuirem pontos de vistas deturpados sobre a f e os sacramentos
cristos. De fato, ambos os movimentos procuravam viver sob a conformidade da vita apostolica, sendo que eles
se autoconsideravam em conformidade com os ideais da ortodoxia, no protestando contra a Igreja. BOLTON,
Brenda. Op. Cit. p. 63.
27
LAWRENCE, Clifford Hugh. The Friars. The impact of early mendicant movement on Western society. Nova
Iorque: Longman. 1994. p. 3.
28
Destacamos que a Ordem Dominicana figurou como uma exceo, j que foi formada por clrigos desde seus
primrdios.
29
LE GOFF, Jacques. As Ordens Mendicantes. In: BERLIOZ, Jacques. Monges e religiosos na Idade Mdia.
Lisboa: Terramar, 1994. p. 227-241.
30
O aumento quantitativo das Ordens foi tal que no Conclio de Lyon, em 1274, reconheceu apenas quatro
Instituies, trazendo-as para o seio da Santa S: a dos Frades Menores, a dos Pregadores, a dos Irmos da Bem-
Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo e a dos Eremitas de Santo Agostinho.
31
Ao colocar a expresso vaga ortodoxa fazemos aluso a atuao do clero secular e do monacato vista como
insuficiente frente s demandas espirituais especficas das cidades.
32
Ibidem. p. 228.
33
Uma das principais diferenas entre essas ordens era o fato da Ordem Dominicana ter optado pela posse de
bens materiais que os franciscanos, para auxiliar na formao intelectual dos pregadores. Portanto, segundo
32
-33-
Uma das melhores expresses desse novo quadro global tinha sido
exatamente o surgimento das Ordens Mendicantes, cuja prtica despojada
(no possuam bens materiais), humilde (viviam de esmolas), de apego
natureza (especialmente os franciscanos), de intensa pregao e represso
aos hereges (sobretudo os dominicanos), atendia melhor que as velhas
ordens monsticas s novas necessidades espirituais e sociais. 35
constituda apenas por clrigos; alm da busca pelo equilbrio entre pregao e erudio,
reconhecimento ocorreu em um momento conturbado para a Igreja que lidava com novos
desafios, como o combate aos distintos movimentos herticos, aos infiis e aos pagos; bem
como as conflituosas relaes com o poder imperial. Para compreenso acerca das contendas
entre o papado e o imprio nesse momento, cabe refletirmos sobre o cenrio poltico-religioso
Frederico II, confiando-lhe a alguns doutos da Igreja para sua formao educacional. Em
1209, aps a morte de seu pai, Henrique VI, ocorreu a coroao do imperador do Sacro
Pedro.
Pontifcio e seus limites, confirmando os direitos da Igreja sobre a Siclia. No entanto, logo
depois desse reconhecimento, o imperador desgostoso com sua recepo em Roma, permitiu
que seu exrcito espalhasse-se pelos territrios toscanos, inclusive o Reino da Siclia, que
Antonio Linage Conde, os dominicanos aceitaram terras e propriedades conventuais . Cf. ___. Las ordenes
mendicantes. Madrid: Histria 16. 1985. p.14.
34
JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos. FRANCO JR., Hilrio (trad.). So Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
35
Ibidem. p.13.
33
-34-
nesse momento, por doao, pertencia ao pontificado. Em resposta a essa traio, Inocncio o
excomunga em 1210.
O antema era mais uma arma poltica que espiritual, possuindo um forte poder
sugestivo sobre a populao. Nesse sentido, aps a excomunho, Oto ficou enfraquecido,
sendo destitudo por alguns prncipes, em Nuremberg, que coroam Federico II, com o apoio
de Inocncio III.36
Em 1211, Frederico II, que j havia reunido um exrcito com o objetivo de restaurar o
imprio a fora em 1209, ocupou Constance e recebeu a coroao oficial em Mainz em 1212.
Segundo David Abulafia, no livro Italy in the middle central ages,37 ele teria ficado oito anos
restaurando a ordem no reino germnico. Durante esse perodo, ocorreu uma segunda
cerimnia de coroao, em 1215, em Aachen, que lhe concedeu o ttulo de Rei da Germnia.
Frederico II possua o apoio do papa Inocncio III, que, em troca, exigiu do rei o
retorno do reconhecimento dos privilgios e direitos que Oto havia concedido Igreja. E,
ele foi coroado, pela terceira e ltima vez, como Imperador em Roma. Contudo, segundo
o ttulo de rei dos romanos, tornando-o seu herdeiro. Dessa forma, tomando para si a coroa.
36
GERVASO, Roberto e MONTANELLI, Indro. Op. Cit. p.186.
37
ABULAFIA, David. Op.Cit.
34
-35-
hereges, renovando o voto de tomar a cruz. Contudo, quebrou esses votos ao marchar a
Pglia, ao invs de ir Terra Santa, onde reuniu os bares e promulgou novas leis do reino.38
dos cristos na Palestina, apelou ao Imperador para que organizasse uma cruzada
prosseguisse. O papa convencido que fora trado por Frederico, o teria excomungado. Iniciou-
se, assim, uma guerra que contou com bulas papais que acusavam os Hohenstaufen de
se a juntar suas armas s dele e combater unidos os sarracenos.39 Diante disso, Frederico
conseguiu realizar acordos de paz com o Sulto Al Kamil, o que teria agradado cristos e
Segundo Roberto Gervaso e Indro Montanelli, o papa no teria ficado satisfeito, pois
acreditava que uma guerra santa s se efetivava com o extermnio dos infiis, e assim teria
instigado uma revolta contra o imperador no Sul da Itlia. Em 1227, iniciou-se o papado de
Gregrio IX (1227-1241) que foi obrigado a aceitar um acordo com Frederico aps este
invadir o Estado Papal. Nesse contexto, em 1230, nasceu Jacopo, em Varazze, local prximo
a Gnova.
Contudo, o acordo no significou o fim das disputas entre o papado e o imprio, que se
prolongaram, culminando com um novo antema, em 1239. No ano seguinte, no reino das
Duas Siclias, Frederico respondeu a esse com a destituio dos procos e dos bispos
38
GERVASO, Roberto e MONTANELLI, Indro, Op.Cit. p. 184.
.39 Ibidem, p.185.
40
Idem.
35
-36-
Montecassino.
Alm de pedir auxlio aos dominicanos para que, da mesma forma que pregavam contra os
Gnova e Pisa foram as cidades que mais se desgastaram com essas lutas, sofrendo um
Tireno, especialmente sobre Crsega e Sardenha, sendo rivais. Essa rivalidade foi acirrada
quando Pisa apoiou o Imprio nos conflitos entre Guelfos, que eram a favor do papa, e
Gibelinos, que sustentavam o imperador. Por tal razo, Frederico II teria concedido a
prosseguiram aps o papado de Gregrio IX, com Inocncio IV (1243-1254), que assumiu a
cria aps uma vaga papal e colocou seus propagandistas e agentes contra os Hohenstaufen.
Em 1244, o jovem Jacopo decidiu entrar na ordem dominicana aps ter tido contato
sendo agravado com o anncio da deposio do imperador Frederico II pelo papa em 1245,
que tambm teria convocado alguns irmos dominicanos para instigarem e pregarem uma
41
LAWRENCE, Clifford Hugh, Op.Cit. p. 186.
42
Veneza, envolvida por Gregrio IX nas contendas com o imprio, aps um perodo de crise, fortaleceu seu
comrcio com o Oriente.
43
AIRALDI, Gabriella. Jacopo da Varagine tra santi e mercanti. Milano: Camunia. 1988. p.140.
44
Alm dos problemas enfrentados com o imprio, os pequenos prncipes e oficiais locais desafiavam a
autoridade da cria ao fornecerem proteo aos hereges e, por vezes, rechaaram inquisidores e at bispos de
seus territrios. Cf. FORTES, Carolina Coelho. Os atributos masculinos das santas na Legenda urea. Os casos
de Maria e Madalena. Dissertao (Mestrado em Histria) Programa de Ps-graduao em Histria Social. Rio
de Janeiro: Universidade do Rio de Janeiro, 2003. p. 66.
45
Carolina Coelho Fortes defende que as aes adotadas por Gregrio e por Inocncio, durante o extenso
combate contra o imperador, abriram espao para que outros governantes desafiassem a autoridade da Igreja.
FORTES, Carolina Coelho. Op. Cit. p. 68.
36
-37-
Jacopo estaria estudando na Universidade de Bolonha47 nesse momento. Esta teria surgido
sua organizao foi distinta das outras grandes universidades, possuindo como disciplina
faculdade de teologia, criada apenas em 1364, foi monopolizada pelas Ordens Mendicantes.50
Em Bolonha, a lngua verncula j havia alcanado sua forma fixa, cujo contato teria
auxiliado Jacopo em suas pregaes. Devemos considerar que a pregao verncula era cada
vez mais utilizada na Itlia, nesse momento, especialmente pelos lderes dos movimentos
herticos. Richardson argumenta que, aps ter completado seus estudos, o dominicano teria
direo a Gnova, onde manteve uma produo epistolar pedindo auxlio ao clero para que
46
RICHARDSON, Ernest. Op.Cit.
47
A universidade bolonhesa, junto com a parisiense, possua uma certa notoriedade no mbito intelectual, sendo
uma das primeiras universidades estabelecidas ainda no sculo XII.
48
CARDINI, Franco. Op. Cit. p.95.
49
Em Bolonha, Jacques Verger sublinha a existncia de duas universidades: a dos italianos ou citramontanos e a
dos estrangeiros ou ultramontanos, dirigidas por reitores eleitos anualmente. No temos informaes sobre em
qual destas Jacopo estudou. VERGER, Jacques. Universidade. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-
Claude (Coord.). Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval. So Paulo: Imprensa Oficial/EDUSC, 2002. 2V,
v.2, p. 573-588.
50
Ibidem, p.578.
51
Frederico II faleceu em 1245, deixando seu filho Conrado IV como sucessor no reinado da Siclia. Este subiu
ao trono como Henrique VII e seguiu com os planos paternos de conquistar Roma, mas foi mal sucedido. Foi
exomungado em 1254. No detalharemos sua atuao como imperador, j que a LA menciona apenas o imprio
de seu pai. Para mais informaes, cf. ABULAFIA, David. Op.Cit.; WALEY, Daniel. Op.Cit.
52
Escreveu tambm o Sermo de Planctu beatae Mariae Virginis e o Sermo de passione Domini.
53
Cf. GUIDETTI, Stefania Bertini. I Sermones de Iacopo da Varazze. Firenze: SISMEL, 1998.
37
-38-
Marialis,57 produzidos a partir de 1255. Essa produo inicial estava direcionada ao auxlio de
membros da Ordem no combate aos movimentos herticos que viria a ser conhecida como
Em 1258, foi eleito prior da Gnova.58 Sua atuao indicaria que ele esteve presente
nos captulos provinciais e em muitos dos captulos Gerais. Alguns pesquisadores apontam
que Jacopo de Varazze teria participado dos captulos de Luca, em 1288, e de Ferrara, em
1290. Ele manteve-se nesse cargo at 1267,59 quando foi eleito provincial da Lombardia,
sendo reeleito algumas vezes. Cabe ressaltar que, de acordo com Fortes, a situao poltica e
religiosa estava conturbada nesse local, onde as seitas herticas dos valdenses e,
Ordem Dominicana, viajando para Florena e depois Bolonha, em 1272; para Budapeste e
Faventia, em 1273; para Lion e Milo, em 1274.60 Dois anos mais tarde, o dominicano
Inocncio V eleito papa, permanecendo apenas meses no cargo. Richardson aponta que ele e
Jacopo eram prximos, tendo convivido pelos menos nos Captulos Gerais.
A curta durao de seu pontificado teria sido uma surpresa para ordem, principalmente
devido ao fato do sucessor, Joo XXI (1276-1277), no ser muito prximo dos Mendicantes.
Richardson argumenta que essa antipatia do papa em relao aos mendicantes teria
54
Essa obra seria composta por 307 textos, podendo ser caracterizada como um santoral, cuja organizao
estaria alinhada ao calendrio litrgico dominicano estabelecido.
55
Segundo Richardson, estes totalizariam 98 sermes, quase todos dedicados Quaresma. Cf. JACOBI A
VARAGINE. Sermones quadragesimales eximii doctoris, fratris Iacobi de Voragine, ordinis paedicatorum,
quondam archiepiscopiianuensis. Ex Officina Ioannis Baptistae Somaschi, 1571.
56
Segundo Fortes, essa compilao tem sua base no missal romano quanto no dominicano, reunindo elementos
importantes da religiosidade dominicana em trs sermes: em honra Trindade, Virgem e a Domingos. Cf.
JACOBI A VORAGINE. Sermones domenicalis per totum annum. Venetiis: Ex Officina Ioannis Baptistae
Somaschi, 1586.
57
Composto em 1294, essa coletnea de 161 sermes trata das virtudes da Virgem Maria.
58
Richardson destaca que ele tambm poderia ter sido prior em Bolonha, Asti, Como ou Acqui. RICHARDSON,
Ernest. Op. Cit., v. 2. p. 36.
59
Cabe ressaltar que segundo Daniel Waley, entre 1265/1268, a causa dos Hohenstaufen marca o final de uma
fase e incio de outra, j que o guelfismo era caracterizado por um sistema de alianas voltadas a manuteno de
certa configurao de poder. WALEY, Daniel. Op. Cit. p.203.
60
RICHARDSON, Ernest. Op. Cit., v.3. p.19.
38
-39-
dominicano teria retornado ao posto em 1281. Segundo Carla Casagrande, de 1283 a 1285, il
exera les fonctions de rgent de lOrdre aprs la mort de Jean de Verceil et avant llection
dentre outros foi sugerido para substitu-lo. O papa concedeu embaixada genovesa a
escolha de um dos candidatos apresentados. Jacopo teria sido eleito por unanimidade,
No ano aps sua eleio, o dominicano comeou a escrever a Cronaca della citta di
Genova dalle origini al 1297,64 cuja temtica era a cidade e seus fundadores, abordando
questes polticas, colocando as regras para o bom governo e argumentando como ser um
sublinha que apesar da obra ter sido redigida e publicada nesse ano, ela foi editada pela
segunda vez em 1296, sendo reeditada por, aparentemente, Jacopo at sua morte.
uma certa reputao de santidade, sendo em 1816, beatificado pelo papa Pio VII.65
com o poder civil. Essas relaes de poder nutriram uma necessidade de alcanar novos fiis e
atrair as almas perdidas de volta para seu seio. Esse o pano de fundo da produo literria
61
Ibidem, p. 20.
62
De 1283 a 1285, ele exerceu as funes de regente da Ordem aps a morte de Jean de Verceil e antes da
eleio do novo Mestre Geral, Munio de Zamorra. Cf. CASAGRANDE, Carla. La vie et les oeuvres de Jacques
de Voragine, 2007. Disponvel em: http://www.sermones.net/spip.php?article4&artsuite=0#sommaire_2. Acesso
em: 17/03/2008. Traduo nossa.
63
Alm disso, destacamos que, segundo Ernest Richardson, Jacopo era conhecido como apaziguador (____.
Op. Cit. p. 62 et. Seq.). Entre outros motivos, esse reconhecimento deve-se a sua atuao na negociao de paz
entre Gnova e Pisa no fim da Batalha de Meloria, no dia 3 de abril de 1288. Neste ponto, cabe destacarmos que
a rivalidade entre essas cidades, como argumentado anteriormente, iniciou devido s pretenses de ambas em
dominar a economia martima no Tireno, tendo se agravado quando elas assumiram posies opostas no conflito
entre Guelfos e Gibelinos. A batalha iniciada em 1284 teria significado o incio da derrocada de Pisa como
potncia no comrcio martimo.
64
JACOPO DA VARAGINE. Cronaca della citta' di Genova dalle origini al 1297. Torino: ECIG, s/d.
65
REAMES, Sherry. The Legenda Aurea: A reexaminat of its paradoxical History. Wisconsin: University Press,
1985. p.15.
39
-40-
Contudo, apesar de sua extensa produo literria, cujos temas tocaram em questes
Legenda sanctorum alias Lombardica hystoria, dita Legenda urea, que foi transmitida por
mais de mil manuscritos e mais de duzentas edies e tradues, durante o primeiro sculo
aps a sua publicao. Antes de adentrarmos em questes especficas sobre essa compilao,
objetivao das obras hagiogrficas como literatura crist,67 relativa santidade, como
tambm sua valorizao, concomitante expanso do culto aos santos. No artigo Palavra de
plpito e erudio no sculo XIII. A Legenda urea de Jacopo de Varazze, Nri de Almeida
Souza68 diz:
66
Diante da sua produo literria e de sua atuao como dominicano e arcebispo, Richardson aponta que, nesse
perodo caracterizado pela celebrao do conhecimento escolstico, Jacopo destacara-se por sua erudio, sendo
conhecido como Jacopo, o telogo (Ibibem, p.3).
67
O termo hagiografia possuir razes gregas, hagios = sagrado e graphia = escrita, neste sentido envolvia
questes e temas no mbito mais amplo do sagrado, no sendo circunscrito ao cristianismo.
68
SOUZA, Nri de Almeida. Palavra de plpito e erudio no sculo XIII. A Legenda urea de Jacopo de
Varazze. Revista Brasileira de Histria, n.43, p. 68-84, 2002.
69
Ibidem, p.69.
40
-41-
que se tornaram interdependentes. Se, por um lado, o culto aos santos facilitava a
receptividade das hagiografias, por outro, estas nutriam tal prtica pela sua prpria natureza e
por seu papel didtico e carter propagandstico. Essa relao constituiu um mecanismo de
-poltico.
-se, a priori, a fixar na memria as aes dos heris da nova f.71 No entanto, concordamos
com Fortes ao afirmar que isso no significava construir um relato biogrfico, mas retratar o
Les legende dore: Le systme narratif de Jacques de Voragine (+1298),75 que argumenta que
o significado da narrativa hagiogrfica, ao contrrio dos contos tradicionais, estaria fora dela,
70
Defendemos que as relaes entre hagiografia e santidade constituram um importante elemento nas operaes
convencimento da Igreja.
71
BOESCH GAJANO, Sofia. Santidade. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. (Org.). Dicionrio...
Op. Cit. p.449-462. p.253.
72
FORTES, Carolina Coelho. Op. Cit., p. 202.
73
Delehaye enfatiza o aspecto ficcional da hagiografia. Portanto, a leitura deste gnero no deveria ser calcada
nos padres do criticismo histrico. (DELEHAYE, Hippolyte. Les legendes hagiografiques. Bruxelas: Societ
des Bollandistes, 1973. p.3).
74
VAUCHEZ, Andr. La Santit nel Medioevo. Bologna: Molino, 1989.
75
BOUREAU, Alain. Les legende dore: Le systme narratif de Jacques de Voragine (+1298). Paris: Cerf,
1984.
41
-42-
Nesta lgica, os santos eram o objeto central das obras hagiogrficas. Partindo destas
O santo marcado desde o seu nascimento pela graa divina. A sua vivncia entre os
homens serve justamente para atestar essa santidade inerente; atravs da manifestao de suas
sentido, Vauchez argumenta que ao santo era imputada uma separao radical da condio
humana.76 No entanto, defendemos que apesar dos santos serem profundamente relacionados
existncia. Neste sentido, poderiam ser evocados no combate s foras do mal ou agir como
As hagiografias, muitas vezes, retratam os santos como aqueles que abdicaram dos
presente na LA, em que h uma constante associao entre a santidade e a renncia sobre-
apenas cinco so de santos contemporneos ao compilador, ou seja, dos sculos XII e XIII, a
Canteburry e Santa Isabel da Hungria.77 Nri de Almeida Souza78 defende que o uso de
76
VAUCHEZ, Andre. Op. Cit. p. 291.
77
Sublinhamos que este relato no consta na edio brasileira de Hilrio Franco Jr.
78
SOUZA, Nri de Almeida. Idem.
42
-43-
relatos antigos possibilitaria ao dominicano ponderar algumas questes de seu tempo, mais
livremente.79
antigos, permitiram Jacopo trabalhar com personagens que venceram o corpo na vida e na
de leo, leite, sangue ou luz. Este encadeamento de fenmenos constitui um cdigo sensorial
Os santos eram aqueles que iam alm da condio humana, dessa forma, evidenciando
Jacopo de Varazze considera o corpo como meio de alcanar a santidade, atravs da subverso
dos sentidos e dos sentimentos e da exposio do corpo dor, estando em sintonia com os
79
Boureau afirma que considerando a mensagem tradicional e conservadora de Jacopo, no surpresa ele ter
selecionado, quase que totalmente, santos-heris da Igreja Primitiva, j que a sua santidade inimitvel.
Defendendo que Jacopo, assim como muito outros autores, teriam considerado os mrtires como modelos
capilares de santidade e virtuosidade. BOUREAU, Alain. Op.Cit)
80
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: Op.Cit.. p.13.
81
Ibidem.
82
POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
83
Corroborando com essa hiptese, temos que dos cento e cinqenta e trs santos biografados, pela edio de
Hilrio Franco Jr., noventa e um foram martirizados de oitenta e uma formas diferentes.
43
-44-
postular modelos de conduta,84 usando o que era exemplar. Alm disso, os hagigrafos ainda
obteve novo impulso com a atuao das ordens mendicantes. Dentre elas, destacaram-se as
ordens dos Frades Menores e a dos Dominicanos, que atravs da produo de obras em lnguas
uma obra de natureza hagiogrfica devido a sua funcionalidade e por j existir um espao de
diferentes tipos hagiogrficos ao longo da obra milagres, translao, vidas, entre outros e
temticas festas crists, a superao do corpo, o diabo, a morte, entre outros. Dessa forma,
postulou questes especficas ao seu interesse, algumas das quais sero pensadas a seguir.
provavelmente, foi redigida aps a morte do Imperador Frederico II, em 1249, pois este
44
-45-
ano da morte de Pedro Mrtir, j que ficaria implcito que desta data at a publicao da obra
Milo ficara livre da presena hertica.86 O autor defende que a estrutura da obra deveria estar
LA muito extensa, seguimos Carolina Coelho Fortes87 que, aps avaliar os trabalhos de
alguns desses pesquisadores, estabelece que a primeira redao deve ter sido realizada na
dcada de 60, do sculo XIII. De acordo com Paolo Giovanni Maggioni,88 a compilao
passou por vrias revises do prprio Jacopo, ou consentidas por ele, ao longo de sua vida.
Richardson corrobora com essa afirmao tendo em vista a extensa quantidade de manuscritos
para o catalo, no ltimo quarto do sculo XIII, e para o alemo, em 1282. Em torno de 1340,
foi elaborada a primeira traduo para o francs; em provenal na primeira metade do sculo
facilitou ainda mais a difuso dessa obra, surgindo edies do documento em latim a
primeira foi em 1470 e, crescentemente, em lnguas vernculas iniciando com uma edio
Segundo Robert Seybolt,89 entre 1470 - 1500, foram publicadas em torno de cento e
cinqenta e seis edies da LA. Entre 1500 e 1530 so encontradas menos edies: vinte e
uma em latim e vinte e oito em vernculo. Com o tempo, percebemos uma queda desse ritmo:
de 1531 a 1560 podem ser encontradas apenas treze edies; sete em latim, quatro em francs
mudanas realizadas, a quantidade de captulos compilados por Jacopo, entre outras questes.
86
FORTES, Carolina Coelho. Op.Cit., p.113.
87
Idem.
88
IACOPO DA VARAZZE. Op.Cit.
89
SEYBOLT, Robert Francis. The Legenda Aurea, Bible, and Historia scholastica. Speculum, v. 21, n.3, p. 339-
342, julho de 1946.
45
-46-
de relatos de martrios presentes na LA, optamos por utilizar duas edies da obra. A primeira
a recente edio brasileira de 2003, organizada por Hilrio Franco Jr., com 175 captulos.90
Sua base est na edio crtica de Theodor Graesse, por sua vez, baseada em outras verses, a
saber: a francesa do abade J-B. Roze, de 1967, e a inglesa de Granger Ryan e Helmet
Justificamos a opo por duas edies da LA devido s modificaes que a compilao sofreu
quantos foram os captulos compilados por Jacopo, que variam entre 175 e 182.
Dito isso, buscaremos contornar esses problemas suscitados pela produo da LA,
destinatrios com a sua prpria configurao geral e a individual de seus captulos, tendo em
A LA uma obra constituda por relatos relativamente curtos sobre santos (as) e datas
90
VARAZZE, Jacopo. Op. Cit.
91
IACOPO DA VARAZZE. Op.cit.
92
RICHARDSON, Ernest. Op. Cit. p. 42.
46
-47-
Igreja, e utilizada pelos dominicanos, das festas religiosas, relacionadas a cada corte temporal.
A obra est organizada em cinco partes: inicia com as festas do tempo da Renovao,
indo do Advento ao Natal; segue com as celebraes ocorridas nos perodos da Reconciliao
Lectura Crtica de libros94 acerca da edio da LA feita por Alessandro e Lucetta Vitale
Brovarone, defende que essa organizao das biografias era uma novidade em relao s
organizao dos captulos, ao invs de seguir uma tipologia (milagres, vidas, paixes e outros)
Alain Boureau defende que a distribuio dos relatos revelaria um propsito didtico.
Para o autor, Jacopo no buscou originalidade nos relatos nem individualizou os santos, pelo
contrrio, ele teria construdo uma narrativa com uma proposta universalizante e atemporal,
da obra, como a vida inspirada em Cristo, e nas releituras sobre a Igreja primitiva, com os
47
-48-
episdios com a valorizao do ideal de vida apostlica e no apoio nas Escrituras que seriam
guias na orientao religiosa, nos sermes e na conduo moral da vida. Dentre eles, a
converso (e no combate) dos hereges e dos infiis ou fornecendo material para os sermes
apostlicas dos pregadores ou nas doutrinrias dos professores.97 Este impasse cresceu
sociedade.98
remisso ao Evangelho, o que acreditamos que indicaria seu uso para instruo dos demais
96
Os exempla so relatos breves e de fcil memorizao, cabveis de serem destacados de seu contexto e
utilizados como instrumentos de persuaso nos sermes.
97
Se, por um lado, segundo Richardson, Jacopo vive em um perodo de valorizao da cultura escolstica e da
erudio; por outro, segundo Maria Hernndez Esteban, devido ao advento das heresias e ao crescimento de uma
espiritualidade laica associada a uma pregao popular, esse tambm fora um perodo de valorizao de uma
cultura da pregao. Esta autora completa que a Ordem Dominicana, como brao direito da Igreja, cumpriu um
papel decisivo, provavelmente, por buscar um equilbrio entre esse dois mbitos. ESTEBAN, Maria Hernandez.
Leitura crtica da edio... Op.Cit.
98
Nesse ponto, cabe ponderarmos que o discurso de Jacopo visto, por Boureau, como tradicional cuja natureza
conservadora poderia ser entendida pelo perigo dos movimentos herticos juntamente com qualquer inovao
relacionada f. A tradio seria, portanto, uma tentativa de salvaguardar uma pretensa ortodoxia BOUREAU,
Alain. Op. Cit. p.214.
48
-49-
Isaias, J e Salmos, assim como ao remeter-se a autores cristos (como, por exemplo,
autoridades doutrinrias o apoio erudito necessrio para construir um santoral cuja veracidade
seria validada.
Contudo, por outro lado, o uso recorrente dos exempla e o destaque aos feitos
santidade dos personagens. Richardson tambm destaca que as breves etimologias, que
antecedem a maioria dos relatos sobre santos, possuiriam a mesma conotao alegrica, sem
questo. Assim, o autor destaca sobre as etimologias: The purpose was, however, not
instruction in history but inspiration in religion and he chooses, arranges and treats his
apologtico: a existncia de uma recompensa em manter-se fiel ao ideal cristo, mesmo que
hereges.
este dualismo e as tenses entre pregao e ao, se nos questionarmos sobre os possveis
destinatrios da LA. Como ponto de partida, apontamos um argumento de Hilrio Franco Jr.:
99
No entanto, o propsito no foi a instruo em histria, mas inspirao religiosa e ele escolhe, organiza e trata
seu material de acordo. Idem.
49
-50-
A partir deste trecho, podemos imputar LA trs funes diretamente relacionadas aos seus
como obra de edificao e como fonte de consulta para o preparo dos irmos pregadores.
Portanto, defendemos que Jacopo de Varazze pretendia atingir dois pblicos principais
de formas distintas. O primeiro e mais imediato era formado por clrigos, especialmente, os
considerarmos que a lngua original de redao foi o latim e que parte do material abordava
doutrinais; breves ensaios sobre a histria de elementos particulares da liturgia; notas crticas
sobre os conflitos entre uma fonte e outra, entre outros poderamos circunscrever o pblico
mais direto parte do clero bem educada. O segundo seriam todos os demais cristos,
infiis e a manuteno dos fiis. Somado a isso, ainda percebemos a promoo dos preceitos
religiosos propostos pela Igreja e a colocao da lei divina acima das demais, mesmo dos
poderes imperiais.101
100
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit. p. 12.
101
Acreditamos que essa questo relacionar-se-ia a resqucios da Reforma Eclesistica ou Gregoriana e o
processo de separao das coisas eclesisticas das laicas. Essa distino visava retirar a Igreja e os clrigos do
domnio laico. Contudo, a lei divina, representada pela Igreja, no poderia ser submetida a nenhuma outra.
102
A estrutura conduz o curso da histria. BOUREAU, Alain. Op.Cit. p. 7.
50
-51-
almejado, por Domingos, equilbrio entre estudo e pregao ao compilar uma extensa obra,
cujas leituras forneceriam instruo e material suficientes para garantir a eficcia da prdica.
Em outras palavras, consideramos que se o seu uso inicial era a instruo dos clrigos, seu
objetivo final era tornar mais eficaz a disseminao e o entendimento dos pressupostos cristos
religioso
Nessa parte, refletiremos em como algumas das questes aqui estudadas aparecem na
LA,103 centralizando-nos na relao entre o poder religioso e o secular. Iniciamos, ento, com
uma reflexo mais geral acerca das disputas entre eles e, a seguir, especificaremos nas que
respectivamente.
relatos presentes na LA, de forma mais direta ou no. Encontramos constantes referncias ao
fato do poder representado pela Santa S estar acima do Imperial ou Real. No captulo sobre
Santo Ambrsio acreditamos importante ressaltar a passagem na qual Jacopo trata da relao
que Ambrsio solicitou ao Imperador que perdoasse aqueles que o ofenderam. Apesar de
seguir sua orientao e perdo-los, Teodsio foi instigado pela m ndole dos cortesos e
mandou matar muitas pessoas. To logo soube do ocorrido, o bispo proibiu a entrada do
103
Ressaltamos que as pginas especificadas para os relatos e as citaes realizadas aqui fazem referncia a
edio brasileira de Hilrio Franco Jr..
104
A primeira narrativa est na pgina 358 e a segunda, nas pginas 363-364.
51
-52-
imperador na igreja de Milo, a no ser que este fizesse penitncia para pagar pelos seus
Na segunda narrao desse mesmo episdio, percebemos uma sutil diferena. Nesta,
mais autoridade ao seu relato. Nesta verso, durante uma revolta em Tessalnica, alguns
juzes foram apedrejados pelo povo e o imperador Teodsio, revoltado, mandou matar 5 mil
pessoas, sem diferenciar culpados de inocentes. Quando foi a Milo, foi proibido de entrar na
divina.105 O dominicano caracteriza o bispo como um autntico pontfice por ele no temer
o imperador, o que, em nossa opinio, seria uma crtica aos sacerdotes que se curvavam
Rufino insiste e segue para Milo, mas no consegue alterar o jugo de Ambrsio.
Assim, o imperador decide reencontr-lo e aceitar a punio pelos seus pecados. Aps
105
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit. p. 363.
106
Ibidem, p.364.
52
-53-
sculo XII. Jacopo responde diretamente aos conflitos entre o papado e a dinastia
sculo XIII. Neste sentido, ele posiciona-se acerca do lugar do imperador em relao Igreja,
Pelgio. Assim, narrou a relao entre Oto IV (1198-1215) e Inocncio III, que se encontrava
partir do momento em que o papa pde destitu-lo do cargo. Contudo, como analisamos,
anteriormente, o antema enfraqueceu Oto, fazendo com ele perdesse apoio, sendo destitudo
por outros representantes do poder civil, mas no por Inocncio III, como narra Jacopo.
A seguir, ele continua com a narrativa da relao entre Frederico e a Igreja da seguinte
forma:
Quando Oto foi deposto, elegeu-se Frederico, filho de Henrique, que foi
coroado pelo papa Honrio. Ele promulgou timas leis para a liberdade da
Igreja e contra os herticos. Ultrapassou todos os monarcas em riqueza e
em glria, mas deixou-se enganar pelo orgulho que tinha delas. Foi, de fato,
um tirano da Igreja, pois encarcerou dois cardeais e mandou enforcar os
107
Idem, p.1024.
53
-54-
apresent-lo como um timo aliado s leis da Igreja e colocar que seus atos contra a mesma
foram posteriores, resultados de seu orgulho. Acreditamos que Jacopo no menciona a relao
entre Frederico e o papa Inocncio IV por este ainda estar vivo, durante a redao da obra.
Assim, podemos concluir que, atravs de relatos da LA, Jacopo postula respostas s
defende posies pessoais em relao ao clero e o seu envolvimento com o mbito civil, que
produto das relaes de poder, nas quais seu compilador est inserido.
3. Consideraes parciais
religiosos laicos. Em suma, a sociedade medieval passou por diversas transformaes, ligadas
enfrentava novos desafios com o surgimento dos movimentos religiosos laicos, como as
Ordens Mendicantes, as confrarias, assim como as distintas heresias, resultados de uma busca
A partir desse contexto, pensamos como as relaes estabelecidas para/ com a Igreja e
a Ordem Dominicana assim como entre essas duas instituies influenciaram a produo
108
Ibidem.
109
Veremos essa colocao em relatos contemporneos no prximo captulo com a anlise do martrio
imaginrio de Domingos de Gusmo e a relao com os hereges.
54
-55-
e hagiografia, conclumos que o compilador teria escolhido tal gnero, por este no possuir
variados.
compilao foram o de postular modelos de boa conduta para instruo dos seus irmos e o
entre os fis e a converso dos infiis e hereges. Partindo desta premissa, tambm afirmamos
que Jacopo, ao compilar a LA, posicionou-se politicamente nas relaes de poder entre a
Alm disso, defendemos que a obra representava uma tentativa de atingir o equilbrio
entre erudio e ao. Portanto, a explorao das particularidades de cada vitae que a compe
favorecia seu carter didtico e seu uso na pregao, possibilitando o vnculo entre o leigo e o
santo em questo. Em suma, Jacopo preocupou-se em afirmar que o ideal de vida crist
poderia ser seguido por qualquer um, no entanto, esta mensagem precisaria da ampla
receptividade da obra, proporcionada pela oralidade, ou seja, pela pregao. Em suma: Jacopo
110
VARAZZE, Jacopo. Op. Cit.
55
-56-
Por ltimo, conclumos que, a partir dos discursos com os quais Jacopo teve contato,
ele preocupou-se em contra atacar erros doutrinais especficos associados aos hereges de seu
tempo aparecendo em distintos relatos. Contudo, influenciado pelos conflitos entre o papa e o
poder civil, ele selecionou narrativas que forneceriam material necessrio e adequado para os
56
-57-
CAPTULO 2
da Cristandade
1. Apresentao
Como j assinalamos, a temtica do martrio foi difundida, a partir do sculo II, por
hagigrafos, devido ao advento das perseguies aos cristos, no mbito do Imprio Romano.
Ento como podemos compreender a sua retomada, no sculo XIII, estando presente em
hagiografias e em documentos papais? Essa foi uma das perguntas iniciais de nossa pesquisa.
Este estudo preliminar foi fundamental para a nossa anlise dos relatos dos mrtires, presentes
na LA, no apenas por nos fornecer uma compreenso dos significados que esses personagens
tinham nesse momento, como tambm por auxiliar na nossa interpretao do porqu Jacopo
de Varazze ter reservado a maioria dos captulos a eles, especialmente aos martrios ocorridos
Nesse captulo, exploramos duas vias que selecionamos para compreenso desse
fenmeno: os movimentos herticos e as cruzadas. Ressaltamos que elas foram tratadas tendo
em vista as relaes de poder estabelecidas entre hereges e infiis com a Igreja e com a
cristianismo.
A seguir, iremos analisar o porqu dos hereges serem vistos como um problema para a
57
-58-
heresia ctara. Desse ponto, pensamos como a questo do surgimento dos movimentos
herticos influenciou a produo da LA. Para tanto, correlacionamos as reflexes dessa parte
inicial com a anlise do relato sobre o martrio imaginrio de So Domingos (p.614/ 631).2
cruzadista. importante ressaltarmos que nossa anlise centralizou-se nas cruzadas contra os
infiis, no geral, sem nos especificarmos em uma, j que nossa preocupao reside na
hagiogrficos surgiram a partir do culto aos mrtires, se limitando quase que exclusivamente
s Actas de los mrtires, cujo exemplo mais antigo seria o martrio de So Policarpo, de
meados do sculo II. Contudo, o autor no acredita que essa tenha sido a primeira expresso
os mrtires, que narravam dos ltimos dias de suas vidas at a sua morte.5 Como assinalamos,
2
Cabe sublinharmos que as pginas dos relatos referem-se edio brasileira realizada por Hilrio Franco Jr.
JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos. FRANCO JR., Hilrio (trad.). So Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
3
BAOS VALLEJO, Fernando. La Hagiografa como Gnero Literrio em la Edad Media. Tipologia de Doce
vidas individuales castellanas. Oviedo:. Departamiento de Filologia Espaola, 1989.
4
Ibidem, p. 29.
5
Haveriam ainda outros dois tipos de produo literria sobre os mrtires, os acta ou gesta e as legendas picas
e romanescas. O primeiro grupo de textos tratavam dos interrogatrios e julgamentos, enquanto o segundo
abordava a vida do personagem, estando prximos ao gnero pico ou ao romance histrico.
58
-59-
durante as perseguies aos cristos.6 Eles so norteados por episdios incrveis, sendo
conferiram uma nova significao ao termo grego que designava, originariamente, testemunha
(martyr).
aquele que, apesar de nunca ter visto ou ouvido Cristo em vida, estaria to convencido das
verdades do cristianismo que preferia morrer a renegar sua f. Blasucci afirma que o mrtir
seria a testemunha perfeita de Cristo (imitatio Christi), j que o imitava na vida e na morte,
Cristo sobre o mal,9 sendo a extenso do seu sacrifcio de sangue, colocando-se como
Charles Altman, no artigo Two types of oppositionand the structure of saints lives,10
argumenta que as narrativas sobre os mrtires antigos possuem, necessariamente, uma forte
oposio entre esses e seus perseguidores, com um desenrolar concreto de eventos: a priso,11
o interrogatrio e o martrio.
Calavia Saz defende que as notcias sobre as perseguies aos cristos circulavam devido ao
6
Di Berardino ressalta que o culto aos mrtires comeou a ganhar contornos especficos como resultado do
prprio nascimento da literatura hagiogrfica . DI BERARDINO, Angelo et all. Martrio. In: _____. (Org.)
Dicionrio Patrstico e de Antigidades Crists. Petrpolis: Vozes, 2002. p.895-902. p. 896.
7
MORENO, Jos Garrido. La pena de muerta em la Roma Antigua: Algunas reflexiones sobre el martrio de
Emeriterio y Celedonio. Kalakorikos, n. 5, p. 47-64, 2000. p. 49.
8
BLASUCCI, Antonio. Martrio, imolao, sacrifcio. In: GUIMARAES, Almir Ribeiro (Org.). Dicionrio
Franciscano. Petrpolis: Vozes, 1999. p.416-420. p. 416.
9
Lucy Grig, no artigo Torture and truth in late antique martiryology, argumenta que os smbolos de tortura ou
morte atrelados s iconografias dos mrtires representavam a sua vitria sobre os instrumentos utilizados para
causar-lhes os suplcios. GRIG, Lucy. Torture and truth in late antique martiriology. Early Medieval Europe, v.
2, n.4, p.321-336, 2002.
10
ALTMAN, Charles. Two types of Oppositionand the structure of latin saints Lives. Medievalia et Humanistica,
n.6, p.1-11, 1975.
11
Nesse ponto, cabe ressaltarmos que a prtica do crcere foi adotada apenas no Alto e no Baixo Imprio,
figurando como parte da pena capital. MORENO, Jos Garrido. Op. Cit, p.58.
12
SAZ, Oscar Calavia. Religio e restos humanos. Cristianismo, corporalidade e violncia. Antropologia em
primeira mo, n. 55, p. 1-27, 2003. Disponvel em: http://www.antropologia.ufsc.br/55.%20oscar-
cristianismo.pdf. ltimo acesso: 17/03/2008.
59
-60-
de acepes sobre essas afirmando que Tertuliano insistiu no carter implacvel delas,
enquanto Orgenes ressaltou que Deus protegeu muitos cristos para evitar uma guerra que
acabasse com a comunidade crist. Ele conclui que os discursos culminavam no argumento de
descomunal.13
O autor tambm afirma que as fontes da poca indicariam que os relatos martiriais
eram feitos para serem lidos em voz alta para multides de peregrinos e devotos: o objetivo
era o de criar uma exaltao emotiva propcia aos fins da terapia, tratando-se de um modelo
Segundo Lucy Grig, no artigo Torture and truth in late antique martiriology,15 o
mrtir era um soldado de Cristo que confrontava a fora do mal, representada, nesse
momento, pelo estado romano. Nessa lgica, este personagem desejaria a sua morte,
exarcebando as torturas, j que, dessa forma, quanto maiores fossem os seus sofrimentos,
maior seria a demonstrao da vitria crist coroada com a sua morte. Segundo a autora, os
construo desses personagens que invertiam as relaes de poder nas torturas17 e nas
execues. Nestas, o mrtir deseja a sua morte, procurando exacerbar os suplcios recebidos,
dentro da lgica de que quanto maior forem os sofrimentos, maior ser a demonstrao da
13
Ibidem, p.9.
14
Ibidem, p.10.
15
GRIG, Lucy. Op.Cit., p. 323.
16
O autor Oscar Calavia Saz defende que a narrativa das crueldades dos suplcios serviria para construo do
culto aos santos. SAZ, Op.Cit..
17
Segundo a autora, no Imprio, todos eram submetidos ao uso da fora no interrogatrio (questio per tormenta),
j que esta seria a nica forma de garantir a verdade. GRIG, Lucy. Op.Cit., p.323.
60
-61-
(mrtir) no torturado para confessar seu crime a no adorao dos deuses , mas sim para
refut-lo.18
Aps o reconhecimento do cristianismo como religio oficial pelo Imprio, Nri de Almeida
Souza, no artigo Hipteses sobre a natureza da santidade,19 afirma que a Igreja iniciou um
processo de exaltao da vida asctica,20 contudo, mantendo laos com o ideal de martrio,
sendo identificado como branco ou espiritual. Este era caracterizado por uma intensa ascese,
com a valorizao da exposio do corpo aos limites naturais, atravs de penitncias, das
proximidade: a superao do limite fsico. Ou seja, os santos eram aqueles que iam alm da
texto The White martydom of Kateri Tekakwitha,21 ao analisar o caso desta beata do sculo
XVII, argumenta que o martrio espiritual a total oferenda da vida do santo a Deus. Nessa
modalidade, os santos morreriam para o mundo e seus prazeres, seguindo uma vida herica de
devoo ao Senhor.
Essa mudana tambm teria tido repercusses em relao ao culto aos mrtires, no
qual Angelo di Berardino destaca trs importantes alteraes. A primeira foi a gradual
eliminao de qualquer associao que poderia fazer crer que a igreja orava pelos mrtires,
afirmando que esses personagens que rezavam por todos. O culto no os tornaria iguais a
18
GRIG, Lucy. Op.Cit. p.328.
19
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4,
p.11-46, 2002.
20
Segundo Blasucci, at o final do sculo IV, somente os mrtires eram objetos de honra e cultos. Assim, com o
fim das perseguies foram encontrados equivalentes ao martrio de sangue. O autor destaca que, nesse
sentido, o ascetismo e a virgindade constituram ttulos a serem venerados pelos fiis e pela igreja. BLASUCCI,
Op.Cit..
21
LEMIRE, Paula Anne S. The White martyrdom of Kateri Tekakwitha. Disponvel em:
http://www.catholic.org/featured/headline.php?ID=980 ltimo acesso: 11/06/2007.
61
-62-
Deus, pelo contrrio, os deixaria em sua condio humana. Em segundo lugar, houve a
supresso dos banquetes fnebres em sua homenagem, substitudos por viglias de orao. Por
ltimo, a prpria liturgia especfica a esses personagens passou a ser caracterizada por leituras
nos textos, foram norteadas pela unio de quatro noes: a ecclesia, pois sem a Igreja no
haveria o martrio; o dom da vida, pelo mrtir simbolizar a doao da vida em nome de um
amor maior representado pela f; a cristologia, que seria seguir o exemplo de Cristo que deu a
vida pelos irmos; e a defesa da verdade do Evangelho, j que o mrtir no morre por si, mas
representante da Igreja, no era mais perseguido e morto por no negar sua f, mas sim devido
Nessa nova lgica do martrio sangrento, o papel do pregador ganha uma conotao
diferenciada, j que a prdica representaria uma outra forma de combate aos que eram
mais colocavam a pregao como um dos objetivos do santo, passando essa a figurar como um
interior do cristo que estaria disposto a dar a vida em nome da cristandade, caso a situao se
22
DI BERARDINO, Angelo. Op.Cit. p.897.
23
FISICHELLLA, Rino. Martrio. In: ____. ; PACOMIO, Luciano & PADOVESE, Luigi (Orgs.) LEXICON.
Dicionrio Teolgico Enciclopdico. So Paulo: Loyola, 2003, p.467- 468.
24
SOUZA, Nri de Almeida. Op.Cit. p.12.
62
-63-
morte do santo por testemunhar a sua f na defesa dos inimigos da cristandade (martrio de
em manter-se fiel ao ideal cristo, mesmo que em condies adversas. Por ltimo,
acreditamos que esta ltima modalidade estaria associada ao martrio branco, mas guardaria
Diante dessas colocaes, podemos concluir que o sculo XIII foi marcado pelo
especficos, adaptadas s associaes estabelecidas com e pela a Igreja, ao longo dos sculos,
indicando a importncia dessa temtica nas operaes de convencimento utilizadas por esta
25
Com o intuito de exemplificarmos essas modalidades, utilizamos os casos de Clara e Francisco de Assis,
citados por Blasucci. Primeiro, ele destaca que Clara se manteve no claustro colocando-se como uma oferenda
sacrifical ao longo de sua vida, na esperana de ser coroada com a palma do martrio. Em outras palavras,
acreditamos que ele esteja fazendo meno ao desejo dela em ter sua vida asctica reconhecida, ou seja, do seu
martrio branco. Alm disso, destaca que os hagigrafos de Francisco de Assis narraram seu desejo de receber o
martrio de sangue, visto as suas trs viagens s terras dos infiis em busca deste. Portanto, trabalha, justamente,
com a associao entre o martrio e a pregao como meio de alcan-lo. (Cf. BLASUCCI, Antonio. Op.Cit.
p.418). Dessa forma, ns tambm podemos pontuar que a retomada do martrio no fora um fenmeno especfico
LA.
63
-64-
Clifford Hugh Lawrence, no livro The Friars. The impact of early mendicant
movement on Western society,26 afirma que, nesse perodo, paralelo a certo renascimento
ligao entre a vocao crist e um engajamento com o mundo secular. Em resposta s novas
Segundo Lawrence, no fim do sculo XIII, aps diversas tentativas dos clrigos para
pediu auxlio aos cistercienses, que iniciaram misses em Languedoque, sob superviso de
Arnald Amaury, abade de Cteaux.27 Em 1203, junto ao bispo de Osma Diego de Azevedo,
28
que se encontrava em uma misso diplomtica, Domingos de Gusmo, na condio de
que teria lamentado, com Diego, o insucesso da investida contra os hereges. Este teria se
26
LAWRENCE, Clifford Hugh. The Friars. The impact of early mendicant movement on Western society. New
York: Longman, 1994.
27
Bolton ressalta que a misso contaria tambm com a presena e liderana de outros cistercienses: Pedro
Castelnau e Raul Frontefroide (BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1983. p.88).
28
Domingos de Gusmo era filho dos nobres Flix de Gusmo e Joana de Aza Ele nasceu em 24 de agosto de
1170, em Caleruega (Castela), falecendo no dia 6 de agosto de 1221, em Bolonha. Por volta de 1186, foi enviado
escola em Palncia, com o objetivo de ser clrigo. Em 1196, o jovem Domingos ingressou no cabido de Osma,
tendo contato com a vida monstica, sob a Regra de So Agostinho. Seus hagigrafos destacam suas aes
hericas e seu comportamento cristo mpar, seu dom como pregador, sua austeridade pessoal e suas viglias e
oraes freqentes. Contudo, procuravam sempre testemunhar sua humanidade, afastando-o de qualquer
aspecto divino. Sobre a vida de Domingos cf., entre outros: GARGANTA, Jos Maria de. Santo Domingo de
Guzmn visto por sus contemporneos. Madri: BAC, 1946; MANDONNET, Pierre. St. Dominic and His Work.
Londres: Herder Book, 1948. ASHLEY, Benedict. The Dominicans. Minnesota: Michael Glazier Book/The
Liturgical Press, 1990. HINNEBUSCH, William. The Dominicans. A Short History. Dublin: Dominican
Publications, 1985; VICAIRE, Marie-Humbert. Saint Dominic and his Times. Nova Iorque: MacGraw-Hill,
1964.
29
HINNEBUSH, William. Op. Cit. Disponvel em: http://www.op.org/domcentral/trad/shorthistory/default.htm.
Acesso em: 14/04/2007.
64
-65-
oferecido para auxiliar uma nova misso composta por alguns desses abades que seguiriam
pregando e vivendo sob pobreza involuntria. Segundo Bolton, o papa Inocncio III teria
Durante essas viagens, teria ocorrido um dos mais famosos episdios da vida de
Em 1207, Lawrence defende que o Papa teria concordado com a organizao de uma
Cruzada para confisco dos bens dos hereges, em Midi, devido aos poucos resultados
contra os hereges pelo uso da fora.30 Em 1209, sob comando de Simo de Montfort,
Inocncio comeou a organizar o movimento que seria conhecido como Cruzada Albigenseda
pastorais. Por volta deste mesmo ano,31 fundou uma casa religiosa em Proille, na diocese de
Convento de Santa Maria de Proille, onde se seguia uma forma de vida austera, dentro de uma
ganharam destaque por serem vistas como centrais para impedir que elas se desviassem,
30
LAWRENCE, Clifford Hugh. Op.Cit. p. 8.
31
Essa data motivo de debate, pois, segundo Brenda Bolton, ele teria fundado o convento em 1206. A autora
destaca que o perodo entre 1209-1214 da vida de Domingos obscuro, sendo conhecido em relatos parciais
sobre Prouille de Jordo da Saxnia, sucessor de Domingos de Gusmo.
32
MONTENEGRO, Margarita Cantanera e CANTANERA, Santiago. Las rdenes Religiosas en la Iglesia
Medieval. Siglos XIII e XV. Madrid: Acor/ Libros, S.L., 1998. (Cuardenos de Historia, 49).
65
-66-
Tolouse,33 obteve a aprovao oral da Ordem que passava a se chamar Ordem dos Irmos
Pregadores, alm de prestar conta dos rendimentos da mesma. Porm, cabe sublinharmos que,
segundo o cnone XIII,34 as novas casas religiosas eram obrigadas a adotar uma regra j
Honrio III (1216-1227), atravs da bula Religiosam vitam.36 Aps esse episdio, os
dominicanos estabeleceram-se como pregadores, cuja principal caracterstica foi a busca pelo
professores.37 Segundo Lawrence, em 1218, o papa pediu assistncia da ordem com a tarefa
da pregao no combate aos herticos. O pedido foi atendido e misses de pregadores saram
conhecimento dos preceitos cristos e a prdica, ou seja, entre contemplao e ao. Assim
33
O bispo Diego de Osma faleceu em 1208, deixando Domingos comandando a misso de Montpellier. Nesse
mesmo ano, o dominicano comeou a pregar pelo sul francs.
34
(...) quien desea fundar uma nueva casa religiosa debe recibir la regla y la institucin de alguna de las
ordenes apropadas (FOREVILLE, Raimunda. Lateranense IV. Vitria: Eset, 1973. p.170).
35
LAWRENCE, Clifford Hugh. Op.Cit. p. 71.
36
Segundo Marie-Humbert Vicaire, uma segunda bula, expedida em janeiro de 1217, reconhecia a novidade das
idias de Domingos e aprovava sua fundao como uma ordem dedicada pregao. VICAIRE, Marie-Humbert.
Saint Dominic and his Times. New York: MacGraw-Hill, 1964. p.152.
37
MANDONNET, Pierre. St. Dominic and His Work Disponvel em:
http://www.op.org/domcentral/trad/domwork/default.htm. Acesso em: 14/04/2007.
38
VICAIRE, Marie-Humbert. Freres Precheurs. Dictionnaire de Spiritualit Disponvel em:
http://www.op.org/domcentral/study/ashley/ds00intr.htm. Acesso em: 15/04/2007.
39
LEHNER, Francis C. (Trad.) The Primitive Constitutions of the Order of Friars Preachers. Disponvel em:
http://www.op.org/domcentral/trad/domdocs/default.htm. Acesso em: 14/ 04/ 2007.
40
Hilrio Franco Junior, na apresentao da edio brasileira de Legenda urea, sublinha a erudio dos
dominicanos e dos franciscanos ao apontar que eles possuam uma presena hegemnica nas Universidades.
66
-67-
teolgicos, era um critrio para os irmos que desejassem pregar. O processo de recrutamento
de novos irmos era muito importante, iniciando com a seleo dos novios, feita em grupos
homem deveria no s estar apto a pregar, mas ser maduro, discreto, bem posicionado mental,
contato com homens em variadas circunstncias e evitar agir como muitos, de forma rude e
indiscreta.42 Alm do mais, o pregador, quando requisitado por padres das parquias locais e/
ou por bispos, deveria ser atencioso o suficiente para no causar nenhum atrito com o clero
local.
Assim, durante o sculo XIII, comeou a se constituir uma proximidade entre a Ordem
centralizado.
Alm disso, eles obtiveram papel de destaque junto s cruzadas, no combate aos hereges, na
Contudo, o papel de extirpar a heresia, em especial a ctara, foi reservado, principalmente, aos irmos
pregadores. JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos ...p.13.
41
LAWRENCE, Clifford Hugh. Op.Cit. p.72.
42
RICHARDSON, Ernest. Op. Cit. p.25. Contudo, o autor no especifica nem se estes muitos seriam clrigos.
43
Gregrio IX, sucessor de Honrio III, tambm encarregou os dominicanos de estabelecerem o ensino teolgico
na Universidade de Toulouse, que se tornou uma clula de combate aos movimentos considerados herticos e
defesa da verdade postulada pela Igreja.
67
-68-
missionrios, seja no combate aos movimentos herticos. A seguir, veremos como a essa
ressaltar que nos focalizaremos nessa heresia devido a sua importncia na constituio da
Ordem Dominicana.
4. A heresia ctara
escola, tal como se dava com as escolas filosficas.45 A priori, no possua nenhuma
conotao pejorativa.
cristianismo surgiram variadas interpretaes sobre a doutrina pregada por Jesus Cristo,
contudo nenhuma fora considerada hertica. Ele defende que a construo pejorativa do termo
heresia47 foi concomitante ao processo de discusso doutrinria que buscava estabelecer certas
verdades, ntida em dois eventos emblemticos: o I (325 d.C.) e o II (787 d.C.) Conclio de
Nicia. Em nosso trabalho, utilizamos a idia proposta pelo autor: a conotao negativa
44
GROSSI, Vittorino. Heresia Hertico. In: DI BERARDINO, A. (Org.) Dicionrio Patrstico e de
Antigidades Crists. Petrpolis: Vozes, 2002, p.665-666.
45
Ibidem, p. 665.
46
MNGUEZ, Csar Gonzalz. Religon y Hereja. Clo & Crmen: Revista del Centro de Historia del Crimen
de Durango, n. 1, p. 19-21, 2004.
47
Para mais informaes acerca das heresias medievais, cf. FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. So Paulo;
Perspectiva, 1977; HERVE, Masson. Manual de herejas. Madrid: Rialp, 1989; GRANDA, Cristina et
Fernndez, Emilio Mitre. Las grandes herejas de la Europa cristiana (380- 1520). Madrid: Istmo, 1983;
RIBEIRO JR., Joo. Pequena Histria das heresias. Campinas: Papirus, 1989.
68
-69-
define herege como aquele que buscava um aperfeioamento espiritual a margem do que foi
oficialmente estabelecido. No mbito cristo, essa noo perde sua neutralidade conforme o
sido batizado, ou seja, tendo se submetido ao conjunto de dogmas e verdades aceites pela
Igreja, passa a negar ou duvidar desse conjunto ou de parte dele, interpretando-o livremente e
verdades das quais est convicto.50 Em outras palavras, a construo da identidade de herege
necessita da existncia de outra identidade, externa e diferente dela, que a qualifique como tal,
representava uma ameaa unidade crist sob o controle da Igreja por significar a perda de
fiis e o no-reconhecimento do erro, e sim a sua continuidade. Por outro lado, a Santa S
foi importante para a prpria constituio e a afirmao dos valores da Igreja, como tambm
48
FERNANDEZ, Emilio Mitre. Edad Mdia Hertica: lo real y lo instrumental. In: RUANO, E.L. (Coord.)
Tpicos y realidades de la Edad Media (III). Madrid: Real Academia de la Historia, 2004. p.135 211.
49
THOM, L.M.S., Da ortodoxia heresia: os valdenses. (1170-1215). Dissertao (Mestrado em Histria)
Programa de Ps-graduao em Histria. Curitiba: Universidade Federal do Paran, 2004.
50
Ibidem, p.20.
51
A partir do sculo XII o termo heresia passou a designar a totalidade dos movimentos dissidentes. GENICOT,
Leolpold. Europa en el siglo XIII. Barcelona: Labor, 1976.
69
-70-
Temtico do Ocidente Medieval,52 resume essa idia ao afirmar que a heresia existe onde a
Emilio Mitre Fernndez e Cristina Granda, no livro Las grandes herejas de la Europa
cristiana (380- 1520), de 1983,54 completam o argumento ao afirmarem que a heresia seria,
seguir, faz parte desses movimentos heterodoxos que, de qualquer modo, e, sobretudo
Dominicana
as reformas e os conclios que objetivavam destacar e refutar os erros. O autor ainda destaca,
dos maiores desafios cristandade, tanto pela sua abrangncia, quanto pela sua durao,
afirmando que:
52
ZERNER, Monica. Heresia. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J-C (Coord.). Op.Cit. p. 503-521.
53
Ibidem, p.521.
54
GRANDA, Cristina et Fernndez, Emilio Mitre. Op.Cit.
55
NELLI, Ren. Os ctaros. Lisboa: Edies 70, 1980. p.23.
56
Ressaltarmos que, segundo Emilio Mitre Fernndez, no texto Edad Media Hertica. Lo real y lo instrumental,
op. cit, e Robert Ian Moore, no livro La formacin de una sociedad represora. Poder y disidencia en la Europa
occidental. 950- 1250, publicado pela editora Crtica em 1989, os inimigos da cristandade eleitos pela Igreja
variaram, durante a Idade Mdia, segundo as relaes de poder estabelecidas. Nesse sentido, os autores destacam
os pagos, herticos, infiis, imperadores.
57
Para mais informaes sobre o catarismo, cf. BRENON, Anne. La verdadera historia de los ctaros. Vida y
muerte de una iglesia ejemplar. Barcelona: Martnez Roca, 1997; DALMAU, Antoni. Los ctaros. Catalunya:
UOC, 2002; DANDO, Marcel. Les origines du catharisme. Paris: Pavillon, 1967; GRIFFE, Ellie. Le Languedoc
cathare de 1140 1190. Paris: Letouzey e An, 1971; SDERBERG, Hans. La rligion des Cathares; tude
sur le gnosticisme de la basse antiquit et du Moyen ge. Sucia: Uppsala University Press, 1949.
70
-71-
O local de surgimento dos primeiros ctaros uma questo que suscita diferentes
possibilidades. Segundo Joo Ribeiro Junior, no livro Pequena Histria das heresias,59 o
movimento teria iniciado em Albi, no sul da Frana, contudo, no artigo Ctaros: Herejes o
Buenos hombres?, Martn Alvira Cabrer60 defende que teria sido na Renania, no norte da
Frana. Ren Nelli, no livro Os Ctaros61 defende que esse movimento desenvolvera-se
principalmente na regio da Occitnia62 e apresentar-se-ia como uma longa luta entre o norte
e o sul francs.
principalmente, para Languedoc.63 Cabrer defende que o catarismo teria se fixado no territrio
francs por este ser um porto de desenvolvimento cultural aberto a novas idias religiosas.
Acreditamos que o outro fator apontado pelo autor tenha sido mais importante nessa difuso:
a fragmentao poltica.
Roma, vinculada com a nobreza. Um dos pontos de oposio entre o catarismo e a Igreja
como corrompida pelas prticas do nicolasmo e simonia. Dessa forma, segundo Ren Nelli:
58
FERNNDEZ, Emilio Mitre. Op.Cit. p.167.
59
RIBEIRO Jr., Joo. Pequena Histria das heresias. Campinas/ SP: Papirus, 1985. p.72.
60
CABRER, Martn Alvira. Ctaros: Herejes o Buenos hombres? Clo: Revista de historia, n. 40, p. 20-27,
2005.
61
Op.Cit.
62
A Occitnia abrangia as regies da Provena, o Limoges, a Auvernha, a Gasconha, o Languedoc e o Delfinado
entre outras, englobando partes da Itlia, Frana, e um pequeno territrio Espanhol.
63
Languedoc foi anexado Frana em 1229, pelo Tratado de Meaux.
71
-72-
lhes apetecia, sem respeitar a Trgua de Deus; manter, para tal efeito,
bandos de homens armados que assolavam o pas; e, como no eram, de
modo algum, anti-semitas, no hesitavam em empregar judeus e em lhes
confiar postos em que tivessem autoridade sobre os cristos: atos que a
Igreja Romana proibiria se tivesse poderes.64
Ressaltamos que o catarismo comeou a se difundir pelo norte italiano; por Milo,
pela Lombardia e at mesmo por Florena. Segundo Joo Ribeiro Junior, o desenvolvimento
desse movimento ocorreu tambm por questes polticas, j que os ctaros contaram com o
apoio dos gibelinos, aliados ao Sacro Imprio Romano, e contrrios aos guelfos, favorveis ao
papado.65
O catarismo uma heresia dualista que defendia o duplo princpio eterno do bem e do
mal, tendo como texto de referncia o Evangelho de So Joo, considerado o nico escrito
Deus seria o esprito bom, e o mundo, por ele criado, seria povoado por seres
espirituais participantes da natureza divina. J o material seria fruto de uma fora puramente
maligna. Os homens seriam criaes do Deus bom, e, portanto, teriam a chance de alcanar a
esfera espiritual pela via da purificao. Para tanto, deveriam combater a carne que
como outra influncia, no acreditamos que essa possibilidade seja vivel, tendo em vista as
64
NELLI, Ren. Op.Cit. p.11.
65
RIBEIRO Jr., Op.Cit.p.74.
66
Idem. p.73
67
LAWRENCE, Clliford Hugh. Op. Cit. p.4.
72
-73-
eucaristia; opunham-se venerao aos santos, orao dos defuntos e aos sacramentos
cristos. Alm disso, no prestavam nenhum tipo de juramento, base das relaes feudais na
Eles pregavam uma vida em profunda ascese pobreza voluntria, castidade, jejum ,
contudo esta estaria ao alcance pleno de poucos, chamados de perfeitos, bons cristos ou
dualista, como tambm a instalao de uma hierarquia ctara no quadro de dioceses bem
delimitado.72 Esse arranjo estrutural figurou como mais um motivo de rivalidade com a Igreja
Romana.
68
NELLI, Rne. Op.Cit. p. 10.
69
A Igreja Ctara era formada por dois grupos distintos: pelos perfeitos ou eleitos, que seriam os escolhidos para
o encontro com o Deus bom. A profisso das idias era realizada apenas pelo grupo de ministros ctaros
(perfecti). Os crentes ou auditores participavam na qualidade de ouvintes. Havia duas cerimnias principais: o
consolamentum e o melioramentum. O primeiro era um tipo de batismo, que se destinava aos perfeitos. Aps o
recebimento deste, eles seguiriam uma vida de rigorosas penitncias, renunciando s propriedades pessoais, ao
casamento e atividade sexual; assim como realizando uma permanente abstinncia de alimentos de origem
animal, inclusive ovos e leite. O segundo era o nico rito obrigatrio para os crentes, que adoravam a presena
do Esprito Santo nos perfeitos e, ao mesmo tempo, pediam para serem aperfeioados. Alm disso, eles se
comprometiam a receber o consolamantum na hora da morte e se integrar totalmente a Igreja Ctara. NELLI,
Rne. Op.Cit..
70
Os ctaros consideravam-se os mais puros devido a seu padro de vida. A prpria palavra ctaros vem do
grego kathars, que significa puro.
71
FERNANDZ, Emilio Mitre. Op.Cit. p.166.
72
NELLI, Rne. Op.Cit. p.54.
73
-74-
Inocncio III (1198 1216) foi o primeiro papa a sistematizar um programa de luta
Toulouse, conclamou a Cruzada Albigense que objetivava, entre outras coisas, erradic-los da
Domingos de Gusmo75 e Pedro de Castelneau. Liderada pelo legado papal, Arnaldo Amauri,
a cruzada objetivava a completa derrota dos hereges que pululavam nas cidades e fortalezas
massacre de Blsiers, devido a seu teor sanguinrio. Esse fato ganhou destaque por ter
episdio, teria circulado, oralmente, uma anedota que fora apreendida pelo escritor
Dialogus Miraculorum.76 Nesta obra narrado que, antes da invaso, um dos guerreiros teria
perguntado ao legado papal Arnaldo Amauri sobre como distinguir quem era herege e quem
no era durante o ataque, recebendo a seguinte resposta: Matem todos, Deus escolher os
seus!
73
Segundo Martn Alvira Cabrer, a represso violenta teria iniciado entre 1178 e 1181 com o estabelecimento
das primeiras operaes armadas para combater esses inimigos utilizando a justificava da Guerra Santa da qual
trataremos na segunda parte deste captulo com a implementao das Cruzadas.
74
Neste ponto, ressaltamos que o Rei da Frana, Felipe Augusto, por nunca ter se considerado vassalo do papa,
manteve-se fora desse movimento. Apenas interveio, aps a derrota dos hereges, para anexar os territrios de
Raimundo VII, conde de Toulouse, e os de seus vassalos, o visconde de Blziers e o conde de Foix (RIBEIRO
JR, Joo. Op.Cit. p.76).
75
Domingos de Gusmo comeou a pregar junto cruzada tendo sua atitude copiada por outros, como o bispo
Diogo; o abade Arnaldo de Citeaux; o bispo Foulques de Toulouse. Contudo, durante o desenrolar da cruzada, o
dominicano rumou para Midi.
76
Para a traduo para o espanhol moderno dessa obra, cf. CESRIO DE HEISTERBACH. Dialogo de milagros
de Cesreo de Heisterbach. Zamora: Monte Casino, 1998.
74
-75-
utilizando o terror como arma de guerra.77 Simo morreu em 1218, aps seu retorno a
Montsgur, foi derrubado. Contudo, esse episdio no figurou como a derrota completa do
movimento, j que ainda eram encontrados vestgios de segmentos ctaros no sculo XIV.78
abalados com o catarismo.79 Essa questo aparece no cnone III do conclio de Latro (1215),
organizado quase uma dcada depois do incio dessa cruzada por Inocncio III: los catlicos
que habiendo tomado la cruz se armen para dar caza a los hereges, gozarn de la indulgncia
y del santo privilegio concedidos a los que van em ayuda de Tierra Santa.80 Assim, temos um
incentivo aos combatentes das heresias, com a promessa da indulgncia e dos mesmos
em relao s formas utilizadas pela Igreja para lidar com aqueles que eram considerados
movimento cruzadista para o combate com a fora armada, as reformas e os conclios que
objetivavam a identificao e refutao do erro. Inocncio III pode ser considerado como o
nico papa que sistematizou um projeto implementando quase todas essas formas de
combate.81
77
NELLI, Rne. Op. Cit. p.29.
78
Segundo Joo Ribeiro Junior, os albigenses se refugiaram na Itlia, contudo foram descobertos pela
Inquisio. Desde ento, espalharam-se pelos pases da Europa Ocidental e Oriental. Resistiram mais tempo nos
Alpeninos e nos Alpes da Lombardia, desaparecendo por volta de 1400. RIBEIRO JUNIOR, Op. Cit., p. 80.
79
A represso s heresias ocorreu tambm atravs dos conclios, dos quais destacamos o III Conclio de Latro
(1179) e o IV Conclio de Latro (1215), que ser tratado neste captulo.
80
FOREVILLE, Raimunda. Op.Cit. p. 160.
81
BOLTON, Brenda. Op.Cit. p.196.
75
-76-
De acordo com Bolton, o IV Conclio de Latro foi fruto de mais uma tentativa de
marcado carter normativo que visava a organizao institucional do corpo eclesistico sob a
liderana do Papa. Inclusive, a questo da heresia abordada nos trs cnones iniciais da ata
conciliar segue o mesmo ideal de centralizao de todo o corpo eclesistico tendo como
ponto central o Papa como portador da plenitude potesta, tema central destes cnones, visava
O primeiro cnone trata dos preceitos ortodoxos, defendidos pela Igreja com a
afirmao da existncia de apenas uma Igreja Universal. Neste, temos alguns elementos
contudo com a preocupao de afirmar que os ritos deveriam seguir conforme o estabelecido
pela ortodoxia.84
O terceiro85 destacou-se em nosso estudo por trs motivos. Primeiro, por tratar de
82
Ibidem ,p.130.
83
SILVA, Andria C. L. Frazo da. O IV Conclio de Latro: Heresia, Disciplina e Excluso. In: _____. e
ROEDEL, Leila.R. Semana de Estudos Medievais, 3, Rio de Janeiro, 25 a 28 de abril de 1995. Rio de Janeiro:
PEM - UFRJ, 1995. p. 95-101. Disponvel em: http://www.ifcs.ufrj.br/~pem/textos.htm. ltimo acesso:
11/06/2007. p.97.
84
Neste ponto, ainda destacamos um elemento que permeou alguns dos cnones do Conclio: a normatizao dos
costumes e das prticas eclesisticas e laicas.
85
Apesar da nossa opo em no trabalhar com o segundo cnone, cabe mencionarmos que este trata do
Joaquimismo, identificando os preceitos defendidos e refutando-os para, por fim, conden-los.
86
FOREVILLE, Raimunda. Op.Cit. p. 159.
76
-77-
A seguir, o cnone passa a determinar as penalidades aplicadas aos que forem suspeitos de
opinies herticas e no conseguirem provar a inocncia, aos condenados como hereges e aos
parte do mbito eclesistico, como essas relaes foram apreendidas por Jacopo e
influenciaram ou no a redao da LA? Para responder essa questo, iremos pensar como isso
Temtico do Ocidente Medieval,87 por volta dos sculos IV e V, teria iniciado um processo de
sacralizao do exrcito imperial, legitimado pela Igreja. Contudo, essa legitimao foi
controlada e restrita, com a constituio da noo de guerras justas por Agostinho, bispo de
Hipona: so ditas justas todas as guerras que vingam injustias, quando um povo ou Estado,
a quem a guerra deva ser feita, deixou de punir os seus ou de restituir aquilo que foi saqueado
em meio a essas injustias.88 Ele defendia que um cristo poderia tomar parte em alguns
casos especficos de combate, objetivando sempre a restaurao da paz iluminada por uma
justia autntica.89 Nesse sentido, estabelecia-se a idia de que um homem cristo era sempre
portador da paz, mesmo ao utilizar-se de armas, j que possua como finalidade o combate das
injustias.
No entanto, por volta dos sculos X e XI, a ausncia de um poder central forte
ameaava uma pretensa paz na cristandade. Em outras palavras, a Igreja perdia o controle
almejado sobre a violncia que havia permitido para a proteo dos cristos. Franco Cardini
87
CARDINI, Franco. Guerra e Cruzada. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J-C (Coords.). Dicionrio Temtico do
Ocidente Medieval. 2v., 1v. So Paulo: Imprensa Oficial/ EDUSC, 2000. p. 473-487.
88
SANTO AGOSTINHO Apud DEMURGER, Alain. Os Cavaleiros de Cristo. Templrios, teutnios,
hospitalrios e outras ordens militares na Idade Mdia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p.20.
89
CARDINI, Franco. Op. Cit., p. 475.
77
-78-
aponta que nessa questo havia o destaque do sofrimento dos pauperes, as violncias
snodos de paz. Com isso, houve o desenvolvimento de dois movimentos: o primeiro foi o
juramento conhecido como Pax Dei (Paz de Deus), que objetivava proteger pessoas
segundo foi a tentativa de impedir a prtica da violncia nas datas consideradas sagradas, com
a Tregua Dei (Trgua de Deus). Neste sentido, acreditamos que o fim central desses
processos que podem ser percebidos na utilizao crescente de membros do exrcito pelo
Cristo) em alguns textos do sculo XI. Alain Demurger destaca como a prpria utilizao da
cavalaria contra elementos do poder temporal fora enquadrada na idia de guerra justa.
guerra justa?
guerreiros franceses para rumarem para o Oriente, onde os cristos eram ameaados pelos
como o primeiro passo para a organizao e a estruturao das cruzadas.92 Cardini argumenta
90
Idem, p.477.
91
COLE, Penny J. The Preaching of the Crusades to the Holy Land, 1095-1270. Cambridge: Medieval Academy
Books, 1991.
92
Para mais informaes sobre as Cruzadas, cf. BARBER, Malcolm, Crusaders and Heretics, 12th - 14th
centuries. Aldershot: Variorum, 1995; BARKER, Ernest. The Crusades. London: Oxford University Press, 1923;
BENVINISTI, Meron. The Crusaders in the Holy Land. New York: MacMillan Publishing Company, 1972;
BILLINGS, Malcolm, The Crusades: a History. United Kingdom: Tempus Publishing, 2000; MARVIN,
Laurence E W. Thirty-nine Days and a Wake-up: the Impact of the Indulgence and Forty Days Service on the
Albigensian Crusade, 1209-1218. The Historian, v.65, n.1, p.75-94, 2002; QUESADA, Ladero et NGEL,
78
-79-
que a guerra na Terra Santa ou na Espanha, aps esse pedido do papa, chamou a ateno de
diversos cavaleiros que estavam dispostos a se sacrificarem na defesa dos santurios cristos e
dos peregrinos.93
como:
Segundo o autor, as Cruzadas teriam como antecedente a proteo dos peregrinos. Assim,
vamos nos focar em uma influncia relacional das peregrinaes com o ideal norteador da
Ramos e Demurger fazem a associao que nos parece mais interessante ao definir
cruzada como uma peregrinao armada, j que visava inicialmente libertar o Santo Sepulcro
do infiel, e no apenas orar e meditar nele. Contudo, conteria o ideal da Guerra Santa96 de
ajudar irmos cristos e recuperar o que era da cristandade por direito, mas que fora
injustamente usurpado pelos infiis. Nessa lgica, o cruzado se via como um peregrino, mas
tornava-se Miles Christi, soldado de Cristo, partindo para libertar o patrimnio do Senhor e a
Ramos destaca ainda que a cruzada possua uma perspectiva reformadora que
conduzia a guerra justa aos infiis excomungados. Contudo, ele atenta para o fato de que o
Miguel. Las Cruzadas. Barcelona: Destino, 1974; RODRGUEZ, Loste et ANTONIA, Mara. Las
Cruzadas. Madrid: Grupo Anaya, 1990; RUNCIMAN, Steven. A History of the Crusades. Cambrigde:
Cambridge University Press, 1954. 3v.
93
CARDINI, Franco. Op. Cit. p. 479.
94
RAMOS, Luis Garca-Guijarro. Papado, Cruzadas y rdenes militares, siglos XI-XIII. Madrid: Ctedra, 1995.
95
Ibidem, p.49.
96
Alain Dermurger, no supracitado livro, sublinha que a Guerra santa era entendida como a aplicao da guerra
justa a todos os adversrios da f cristo, da Igreja e do papado. Op.Cit. p. 21.
97
Idem, p. 23.
79
-80-
hereges e lderes cristos como os ministros do imprio dos Hohenstaufen, na Itlia, e contra
Penny J. Cole, no trabalho The preaching of the Crusades to the Holy Land, 1095-
1270, conclui que essa mudana no ideal e no objetivo primrios das cruzadas foi resultado de
uma srie de acontecimentos que direcionaram esse fenmeno para atender interesses
polticos. A autora percebe certo insucesso desse movimento, afirmando que este ocorreu pela
indulgncias, contudo, acreditamos que por possuir um objetivo inicial similar ao da guerra
santa, e ambas foram incentivadas e apoiadas pela Igreja, no podemos supor que haveria a
possibilidade do martrio como recompensa nos dois casos? Acreditamos que os ideais que
nortearam as cruzadas contra os infiis, assim como os da guerra santa, eram similares e que,
assim, aos que morressem haveria como recompensa a palma do martrio, especialmente no
caso de membros das ordens mendicantes, que acompanhavam as expedies. Nesse sentido,
Segundo Christoph T. Maier, no livro Preaching the Crusades: Mendicant Friars and
the cross in the Thisteenth Century,100 desde os primrdios das cruzadas, os papas
expedies. Contudo, no sculo XIII, como as Ordens Mendicantes possuam um novo estilo
98
O autor vai alm, afirmando que o autntico esprito cruzadista era o seu ntido carter antimulumano,
99
COLE, Penny. Op.Cit. p. 219.
100
MAIER, Christoph T. Preaching the Crusades: Mendicant Friars and the cross in the Thisteenth Century.
Cambridge University Press, 1949.
80
-81-
recrutamento papal. Especialmente com o papa Gregrio IX (1227- 1241) essa transformao
fica mais clara, j que ele convocou freqentemente freis, como os dominicanos Raimundo
Por fim, temos ainda que considerar que o incentivo que foi dado aos mendicantes,
dominicanos e franciscanos para que pregassem nas cruzadas foi justamente a promessa do
reconhecimento do martrio dos membros dessas ordens que falecessem. Segundo James
Ryan, no artigo Missionary saints of the high middle ages: martyrdoom, popular veneration
and canonization,102 essas ordens teriam recebido cartas do Papa Inocncio III nas quais
afirmava que os missionrios, assim como os inquisidores, que morressem em nome de Cristo
Assim, os trs casos guerra santa, cruzadas contra os infiis ou hereges e aes
armada ou da pregao. Partindo desse pressuposto, defendemos que a cruzada tambm pode
ser enquadrada no ideal de guerra justa, e, portanto, que poderia haver a recompensa do
martrio aos mortos sob essas trs condies; cruzadista, guerreiro da guerra santa ou
missionrio.104
101
Segundo Lawrence, dominicanos e franciscanos foram, constantemente, chamados por Gregrio IX para
pregar a f, com o objetivo de incitar os cruzados a se organizarem rumo a Terra Santa e aos blticos. Algumas
vezes o pedido era direcionado a pregadores individualmente e outras ao providencial da Ordem em questo com
a instruo de que fosse selecionado algum para pregar a cruz em sua regio.
102
RYAN, James. Missionary saints of High Middle Ages. Martyrdom, Popular veneration and Canonization.
The Catholic Historical Review, v. 90, no1, p.1-28, jan/ 2004.
103
Contudo, o autor coloca que Roma fazia-se hesitante em realizar novas canonizaes nesse momento. Assim,
coube aos hagigrafos dessas ordens preservarem a memria dos martirizados em vitaes e legendaes, assim
como em crnicas e oraes. RYAN, James. Op.Cit. p. 4.
104
Nos relatos sobre Domingos e sobre Francisco temos uma pequena, porm fundamental diferena. No
primeiro, h algumas menes a contatos com hereges, contudo nenhuma sobre os infiis. J no segundo
encontramos uma referncia de um encontro do mendicante com um infiel, contudo nenhuma com herege.
Compreendemos que estas escolhas estariam em sintonia com um novo ideal de martrio no sculo XIII
vinculado prdica.
81
-82-
que, durante uma viagem a Toulouse junto ao Bispo de Osma, Domingos percebeu que o seu
anfitrio estava corrompido pelo erro hertico. Dessa forma, o dominicano converteu-o a f
crist, oferecendo assim ao Senhor o primeiro feixe da futura colheita.105 Acreditamos que
Jacopo, com essa passagem, faz aluso organizao da Ordem Dominicana e ao seu sucesso
Nesse ponto, Jacopo afirma que foi o papa Inocncio III quem pedira a Domingos e a
Diego para que fossem a Montpellier pregar entre os hereges, na esperana de converterem os
ctaros ali presentes. Ao colocar o pedido feito pelo papa nominalmente, acreditamos que o
compilador estaria construindo a idia de que Domingos j era visto como um pregador,
Nesta cidade, ambos encontraram uma misso cisterciense que reclamou do malogro
diante dos hereges. Segundo esta, os ctaros gozavam de ampla simpatia entre os fiis devido
na populao. Devido ao resultado positivo que obteve, Domingos teria decido organizar uma
ordem que suprisse a Igreja com pregadores instrudos106 e preparados. Segundo Richardson,
Jacopo informa que a morte do bispo de Osma, em 1207, em Montreal, deixou apenas
Domingos e alguns outros poucos irmos no combate aos hereges, anunciando com
105
JACOPO DE VARAZZE. Op.Cit. p.615.
106
A ateno dada formao de pregadores no mrito apenas da Ordem, estando presente no seio das
preocupaes da Igreja, sendo suscitada no IV Conclio de Latro, em 1215 (FOREVILLE, Raimunda. Op.Cit.)
107
RICHARDSON, Ernest. Op.Cit. p. 25.
82
-83-
constncia a palavra do Senhor,108 sob as mais duras penas. Defendemos que a narrao de
situaes difceis nas quais o santo esteve inserido para predicar funcionaria como um forte
incentivo aos demais frades para se colocarem a merc dos hereges, com o propsito de
convert-los.
personagens, sendo todos enquadrados sob essa designao generalizante, tal como no cnone
desses episdios est qualificando-as como um erro que deveria ser combatido. Assim, no d
herticos.
ouvirem seu sermo. Nos demais, so atravs de milagres e do exemplo de sua vida que os
hereges convertem-se. Defendemos que dessa forma Jacopo ressalta a importncia em dar o
exemplo atravs de uma vida crist correta, segundo os preceitos estabelecidos pela Igreja.
Segundo Jacopo, esse evento ocorreu em Montreal, aps a morte do bispo de Osma,
deixando apenas Domingos e alguns outros poucos irmos no combate aos hereges,
anunciando com constncia a palavra do Senhor,110 sob as mais duras penas. A narrao de
situaes difceis as quais o santo esteve inserido para predicar funcionaria como um forte
incentivo aos demais frades para se colocarem a merc dos hereges, com o propsito de
convert-los.
108
JACOPO DE VARAZZE. Op.Cit. p. 616.
109
H uma sexta meno presena hertica, contudo esta no uma situao de contato direto entre o
dominicano e os hereges. No relato, Domingos quis vender-se para salvar um cristo que aderira a comunidade
hertica, contudo a misericrdia divina resolveu a situao de outra forma. A soluo no especificada na
narrativa (Idem).
110
Idem.
83
-84-
Ao longo do relato, temos o uso recorrente dos exempla e o destaque aos feitos
pedaggico e didtico.
A narrativa segue com o contato do santo com os hereges, que, quando o ameaavam
de morte, respondia: No sou digno da glria do martrio, ainda no mereo esta morte.111
Assim, o compilador, ao escolher essa frase para o relato, buscou encorajar os irmos
dominicanos afirmando que a morte pelas mos de um herege seria meritria do martrio.
sculo XIII, traduziu-se, nas obras hagiogrficas, na idia do desejo de martrio ligada
perfeio interior do cristo, que estaria disposto a dar a sua vida se necessrio. Domingos no
conseguiu ser martirizado, contudo, obteve o mrito de ter desejado o martrio, realizando, ao
recompensa em manter-se fiel ao ideal cristo, mesmo que em condies adversas. nesse
sentido que acreditamos que o relato do patriarca da Ordem serviria como exemplo aos demais
Jacopo segue o relato, destacando que o prprio santo buscava morrer pelos hereges
ao passar por lugares onde sabia que haveriam emboscadas contra ele. Defendemos que,
111
Idem.
112
Ao longo do captulo, a forma de vida crist de Domingos elogiada, tendo a pobreza, a humildade, o dom
com as palavras, o conhecimento, a benevolncia, como caractersticas destacadas em algumas passagens. Por
fim, Jacopo ressalta sua penitncia, narrando que toda noite [Domingos] recebia de suas prprias mos trs
chicotadas com uma corrente de ferro, uma por si mesmo, outra pelos pecadores que esto no mundo e a terceira
por aqueles que esto padecendo no purgatrio. JACOPO DE VARAZZE. Op.Cit. p. 625.
113
partindo desse pressuposto que compreendemos a converso das mulheres simpatizantes da heresia que o
hospedaram. Ao verem como Domingos guiava sua vida, segundo os preceitos cristos corretos, elas
converteram-se.
84
-85-
Acreditamos que nessa passagem Jacopo faz uma aluso ao relato sobre So Tiago, o
cortado, que analisamos no captulo 4. Este o nico mrtir da LA que teve os dedos, as
mos, os ps, os braos e as pernas cortados. Aps cada suplcio o santo louvava a Deus
sendo que, apenas nos ltimos, pediu pela interveno divina para faz-lo parar de sofrer.
Assim, no se rendeu macerao somtica, reafirmando a f em Deus aps ter cada membro
cortado. Pelo contrrio, respondeu as torturas com o testemunho de sua crena, para
Podemos chegar a concluso de que este relato apresenta uma profunda relao entre a
elementos, que podem ser associados ao antigo. Nesse sentido, o martrio imaginrio de
Domingos estaria enquadrado em um novo ideal de martrio sangrento, que tambm serviria
para reforar a viso do personagem como exemplo a ser seguido. Alm de ser um importante
dos demais frades, embasando tambm a prdica como meio para se alcanar o
reconhecimento como mrtir. Afinal, Jacopo qualifica a morte por um herege como meritria
da honra do martrio. Essa colocao serviria como um incentivo aos demais mendicantes que
114
JACOPO DE VARAZZE. Op.Cit. p.616.
85
-86-
7. Consideraes parciais
relacionadas s relaes de poder estabelecidas para e pela Igreja, adaptando-se a elas. Nesse
momento, ela exercia um papel diferenciado: perseguia os infiis, hereges, entre outros sob a
justificativa da guerra justa. Essa teria sido intensificada com a promessa de martrio para os
religiosos laicos, cujos frutos destacamos, analisando dois de seus exemplares: a Ordem
distintas, especialmente sob o papado de Inocncio III, com a organizao de conclios, das
Ao estudar a questo da retomada do martrio pelo vis das cruzadas, conclumos que
haveria uma similaridade nos objetivos e nas propostas que norteavam as cruzadas contra os
palavras: todas essas aes estavam sob a justificativa da guerra justa. Assim, defendemos a
possibilidade da temtica do martrio ter sido uma das estratgias da Igreja para incentivar as
presente na LA. Nesse relato, o compilador exalta valores dominicanos para vivncia crist,
86
-87-
Atravs de uma enunciao norteada por feitos maravilhosos, o martrio estaria enquadrado
no ideal da retomada da Igreja primitiva desde o sculo XII. Conclumos que ao colocar a
Nesse sentido, conclumos que Jacopo teria sido influenciado por elementos
associados a essa retomada do tema do martrio na escolha dos relatos narrados pela LA.
Contudo, procurando responder a questes do seu tempo relacionadas, entre outras coisas, aos
87
-88-
CAPTULO 3
da Legenda urea.1 Lembramos que, no total, foram escolhidas cinco narrativas de tamanhos
distintos sobre as seguintes personagens: Santa Anastcia (p.103-105); Santa gata (p.256-
260); Santa Juliana (p. 266-267); Santa Eufmia (p. 810-812); Santa Catarina (p.961-967).
Primeiro, analisaremos cada narrativa, seguindo a ordem apresentada acima. O segundo item
O relato inicia com um estudo etimolgico do nome Anastcia, que seria formado de
Ana , significando acima; e statis, que fica em p ou permanece. Jacopo argumenta que
esse sentido estaria relacionado ao fato de que ela teria se elevado e se mantido acima dos
vcios.
No incio da biografia de Anastcia, somos informados que ela era filha de Pretaxato,
romano ilustre, mas pago,3 e da crist, Fantasta. Foi de sua me e do beato Crisgono que
ela recebeu os ensinamentos cristos. Ao casar-se com Pblio, Jacopo narra que ela simulou
estar doente para abster-se das relaes conjugais, contudo no menciona se foi apenas para
1
VARAZZE, Jacopo. Legenda urea; vida de santos. Traduo: Hilrio Franco Jr. So Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
2
Destacamos que, em alguns captulos estudados, h o relato de outros martrios, inclusive de personagens
femininas. Todos foram mencionados em nosso trabalho.
3
VARAZZE, Jacopo, op. cit,, p.103.
88
-89-
Seu marido soube que, acompanhada por uma criada, usando trajes muito pobres, sua
esposa percorria as prises, onde estavam cristos, para levar-lhes as coisas de que
necessitavam.4 Ento, Pblio prendeu-a em casa, privando-a de alimentos para que ela
morresse e ele pudesse apossar-se de suas riquezas. Segundo a LA, durante esse perodo,
Anastcia correspondia-se com Crisgono, acreditando que iria morrer em breve, sendo
consolada por ele. Contudo, seu esposo faleceu e ela foi libertada.
categoria social: as das vivas virgens. Esta temtica foi problematizada no artigo The virgin
widow: a problematic social role for the early church?, de Charlotte Methuen,5 no qual,
partindo do argumento que a condio de viuvez6 fornecia s mulheres um status social mais
elevado7 ou uma certa liberdade,8 a autora define dois grandes tipos de acepes relacionadas
seguiram uma vida de devoo e conteno sexual. E nesse sentido que, segundo Methuen,
a viva recuperaria sua virgindade. A segunda estaria relacionada s virgens cujos noivos
faleceram ou que as abandonaram e que, por isso, se autodefinem como vivas. Ela destaca
que esse caso deu-se de diferentes formas durante os quatro primeiros sculos do cristianismo.
4
Ibidem.
5
METHUEN, Charlotte. The virgin widow: a problematic social role for the early church? Harvard
Theological Review, v.90, p. 285-298. Julho, 1997.
6
Ressaltamos que a autora posiciona sua anlise nos primeiros sculos da igreja crist. Apesar da obra que
analisamos ser do sculo XIII, relembramos que a Legenda urea uma compilao e o martrio da virgem
datado do segundo sculo.
7
Ela define esse status sintetisando-o nas funes que as vivas poderiam ter na sociedade, como orar para a
congregao; jejuar; instruir moralmente as moas jovens (em particular); supervisionar as mulheres durante a
adorao; e, em alguns casos, auxiliar no batismo. Ela ainda destaca que a constncia das proibies de vivas
ensinarem ou batizarem mostraria a recorrncia dessa prtica. Idem, p.289.
8
A autora no especifica que liberdade era essa, mas podemos pensar que seria o controle dos bens j que, com a
morte do marido, a viva passa a ser cabea da famlia. Cf. BELTRN, Maria Tereza. Em los mrgenes del
matrimomio: transgressores y estrategias de supervivencia em la sociedad bajomedieval castellana. In: IGLESIA
DUARTE, Jos-Igncio de la (coord.). La familia en la Edad Media. Semana de Estudios Medievales, 9, Njera,
2002. Actas... Logroo: IER, 2003. p. 349-386.
9
Ao referirmos-nos a dois grandes tipos, devemos ressaltar que durante o texto a autora discute os pormenores
envolvidos em ambos, utilizando, principalmente, Tertuliano.
89
-90-
Entretanto, a situao de Anastcia diferente de ambos os casos trabalhados pela autora por
ter se mantido virgem,10 apesar de ter sido casada de fato e ter perdido o marido.
smbolo de completa renncia ao mundano e de total adeso ao Senhor. O autor ainda defende
que a castidade (a fortiori a virgindade) possua mais valor se fosse voluntria, vivida em
matrimnio.
matrimnio por vontade dela lembrando que inventa uma doena para abster-se das relaes
sexuais , atingindo um grau superior de pureza. E, por ter sido casada de fato, aps a morte
de seu marido, segundo o relato, ela passou a possuir benefcios relacionados com a viuvez;
como o controle de suas riquezas, atraindo a cobia dos outros. Assim, alm de lutar por sua
martrio de trs irms de maravilhosa beleza,12 que estavam a servio da viva: Agapete,
Tionia e Irene. O dominicano destaca que todas eram crists e que se recusavam a obedecer
ao prefeito de Roma que estava apaixonado por elas. Ele ordenou que elas fossem presas em
um quarto onde eram guardados os utenslios de cozinha. Um dia, querendo saciar seus
desejos o prefeito foi encontr-las e, aps ser rejeitado novamente, teve um acesso de
loucura abraando panelas, caldeires e outros utenslios, que pensava serem as virgens.13
Depois de saciar-se, saiu todo sujo e esfarrapado. Seus serviais, achando que ele fora
10
Relembramos que Jacopo narra que ela simulou uma doena para no ter relaes sexuais com seu marido.
11
ROSSIAUD, Jacques. Sexualidade. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio Temtico
Medieval. Op.Cit., p. 477-483.
12
Destacamos que esse enaltecimento beleza das virgens aparece na narrativa.
13
VARAZZE, Jacopo. Idem.
90
-91-
do ocorrido, mas os guardas, vendo-o naquele estado, pensaram que ele estava possudo por
algum esprito furioso,14 bateram nele com varas e atiraram-lhe lama e poeira.
Segundo o relato, ele teria sido avisado sobre sua aparncia e pensou ter sido
enfeitiado. Assim, mandou que buscassem as virgens e ordenou-as que se despissem para
seu prazer. Com a recusa, ele mandou que elas fossem despidas a fora. Mas as roupas
aderiram a seus corpos e o prefeito caiu em sono profundo imediatamente. Algum tempo
viva foi entregue a dois prefeitos pelo imperador. Jacopo narra que o governante afirmou
para o primeiro deles que se ele convencesse a virgem a realizar sacrifcios, ele poderia casar-
se com ela. Ento o prefeito a levou para casa e ficou imediatamente cego ao tentar abra-la.
Ele foi ento implorar a cura a seus deuses, que lhe responderam: Como voc atormentou
Anastcia, padecer no Inferno a nosso lado os tormentos que sofremos.15 Ao retornar para
Alm disso, ressaltamos que, nesse episdio, Jacopo desqualifica a crena pag e
prefeito por ter atormentado Anastcia. Tambm sublinhamos dois pontos presentes nesse
da personagem pelos deuses pagos, que negam ajuda ao prefeito. Assim, acreditamos que,
Segundo o captulo, Anastcia foi entregue a outro prefeito, que ao saber de sua
riqueza, tentou convenc-la a lhe dar toda sua fortuna dizendo: Anastcia, se voc quer ser
crist faz o que seu Senhor mandou: Quem no renunciar a tudo que possui, no poder ser
meu discpulo. Ao que ela respondeu: Meu Deus disse: Vendam tudo o que tiverem e
14
Ibidem.
15
Idem, p.104.
91
-92-
dem aos pobres. Ora, como voc rico, eu estaria agindo contra o mandamento de Deus se
Depois dessa conversa, a virgem foi jogada em uma masmorra horrvel17 para
morrer de fome, contudo foi alimentada por dois meses com po celeste por Santa Teodora,18
que j sofrera as honras do martrio.19 Passado esse tempo, ela foi levada com duzentas
virgens para a ilha Palmarola, onde muitos cristos tinham sido exilados. Alguns dias depois,
Os mrtires que estavam na Ilha de Palmarola foram trazidos junto com a virgem e
pereceram sob distintos suplcios. Anastcia foi amarrada a uma estaca e queimada viva.20
Ela foi sepultada no pomar de Apolnia21 e em seu tmulo construiu-se uma igreja. Segundo
Jacopo, ela sofreu sob Diocleciano, que comeou a reinar no ano do Senhor de 287.
longo do relato, verificamos como o gnero construdo atravs do estudo etimolgico de seu
nome e do casamento casto, com a manuteno de virgindade. Ela, como viva, controlava
suas riquezas, o que atraiu a cobia de dois prefeitos que queriam casar com a virgem para
Jacopo, nesse relato, destacaria sua virgindade, mantida mesmo casada e apesar dos
prefeitos graas interveno divina. Acreditamos que essa virtude confere personagem
uma santidade especial e, por causa disso, seu captulo objetivaria o enaltecimento dessa
16
VARAZZE, Jacopo. Idem, p.104.
17
Ibidem.
18
Jacopo apresenta nenhuma informao sobre essa santa, somente que ela foi martirizada antes de Anastcia.
Na LA, h o relato sobre uma Santa Teodora, que era nobre e casada. Segundo a narrativa, o diabo, com inveja
da santidade de Teodora, fez com que um homem rico se apaixonasse e se inflasse de desejos por ela. Jacopo
relata que ele a importunava tanto que a crist at perdeu a sade. Ento, aps consecutivas rejeies, o homem
pediu a uma feiticeira para ajud-lo. Ela mentiu e enganou Teodora, que se rendeu aos desejos desse homem.
Percebendo ter sido iludida, ela se arrependeu, travestiu-se e, como Teodoro, fugiu para um mosteiro. Em uma
viagem, uma moa pediu-lhe para deitar-se com ela, mas, ao ser rejeitada, procurou outro rapaz. Contudo, ao
descobrir que estava grvida, acusou o monge Teodoro/ Teodora de ser o pai da criana. Quando o beb nasceu,
levaram-na ao abade do mosteiro que repreendeu e expulsou o monge Teodoro/ Teodora. Ele/ela, ento,
permaneceu sete anos em p em frente ao cenbio, alimentando o infante com leite dos rebanhos. Devido a sua
perseverana, o abade reconsiderou e aceitou-o/a de volta. Ele/ela faleceu dois anos depois, por volta do ano de
470. No dia de sua morte, o abade teve um sonho que lhe revelou a verdade sobre Teodora e seu filho.
19
Ibidem.
20
Idem, p.105
21
Sublinhamos que Jacopo no apresenta nenhum dado sobre essa personagem.
92
-93-
qualidade, sendo que esta no seria especfica ao homem ou mulher, mas desejvel ao
cristo, servindo como recurso para evidenciar a sua oposio ao pago: voluptuoso,
O relato de Santa gata tambm comea com um estudo etimolgico, no qual Jacopo
atribui cinco possveis significados para o seu nome. Destes, destacamos o primeiro: o nome
provm de gios, santo, e Theos, Deus significando santa de Deus. Nesse sentido, no
incio da narrativa h uma interpretao que j identifica a personagem central como santa. E
qualidades que fazem todos os santos.23 Ao enumerar quais seriam essas caractersticas, ele
faz referncia a Crisstomo que, por sua vez, afirma: a pureza no corao, a presena do
Esprito Santo e a abundncia de boas obras. Aqui, o dominicano se posiciona em relao aos
Jacopo narra que seu nome derivaria tambm de a que seria sem, geos, terra; e
Theos, Deus. Nesse sentido, seria a deusa sem terra, o que explicitaria a ausncia de
qualquer apego aos bens terrenos. Ele ainda narra outros trs possveis significados para
thaas, superior por colocar-se como escrava do Senhor, o que transparece nas suas
22
Segundo Rossiaud, o discurso vigente na Antigidade tardia defendia que os que viviam em contato com o
sagrado deveriam privar-se do sexo, que era visto como poluo suprema por afast-los do divino. ROSSIAUD,
Jacques. Op. Cit., p.479.
23
Idem, p. 256.
24
Acreditamos que esta qualidade possuiria relao com um incentivo a prpria pregao dos irmos
dominicanos.
93
-94-
palavras que lhe so atribudas no texto; e consumao solene aga, solene; thau,
maneira, exaltando a sua expressividade com as palavras e a seu sepultamento feito por anjos,
No incio da narrativa biogrfica, Jacopo relata que gata nasceu na cidade de Catnia
e identifica-a como uma virgem de nobre estirpe e lindssima de corpo.25 Sublinhamos que
ele no apresenta, ao longo do captulo, nenhum personagem masculino que possua uma
relao com gata, convivendo com a santa como um parente, ou como um diretor religioso,
ou algo assim. Esse fato rompe com o discurso misgino caracterstico desse momento,26 que
Thomas Laqueur afirma que, de acordo com o discurso sobre o modelo do sexo nico,
havia uma ordenao social hierrquica e verticalmente estabelecida, na qual o homem era
visto como o ser mais perfeito e superior a mulher. Segundo o autor, essa percepo de
Assim caberia aos homens atuarem como seus intercessores perante o Senhor. E as mulheres,
25
Ibidem.
26
Para mais informaes sobre quais eram esses discursos e do que exatamente tratavam cf. BYNUM, C. El
cuerpo feminino y la pratica religiosa na Baja Edad Media. In: FEHER, Michelet et al.(Ed.). Fragmentos para
uma historia del cuerpo humano. Madrid: Taurus, 1990; DUBY, Georges et PERROT, Michelle. Histria de las
mujeres. La Edad Media. La mujer en la familia y en la sociedad. Argentina: Editora Taurus, 1992;
SARANYANA, J-I. La discusin medieval sobre la condicin femenina (siglos VIII al XIII). Universidad
Pontificia de Salamanca, 1997; LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gnero dos gregos a Freud.
Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 2001.
27
LAQUEUR, Thomas. Op. Cit. p.45.
94
-95-
jovem, rica e virgem, morando sozinha e sem nenhuma meno a sua famlia ou a figuras
masculinas responsveis pela sua superviso e controle, servindo como intercessores entre ela
e Deus. Tal ausncia, em nossa opinio, caracterizaria gata de forma singular, j que no
tutelada.
pelo martrio de gata. O dominicano marca tal personagem com quatro caractersticas,
construo de relatos sobre mrtires, nos quais os personagens do mrtir e do(s) responsvel
(is) por seu martrio so situados em posies diametralmente opostas.28 Jacopo narra que,
social superior ao seu, saciar-se em sua beleza, apoderar-se dos seus bens e agradar a seus
entregou para a meretriz Afrodisia e as suas nove depravadas filhas. Jacopo afirma que o
cnsul acreditava que elas poderiam convencer gata a entregar-se a ele em trinta dias, fosse
contedo de nenhum desses meios de persuaso, mas supomos que as ameaas estariam
envolvidas com a possibilidade da santa ter a sua pureza corrompida pela sexualidade e pela
depravao, j que foi colocada em uma casa de prostituio. Contudo, ela mostrou-se
resoluta em sua condio crist, afirmando que sua f estava fundamentada na certeza de
Cristo. Nesse momento narrativo, lemos que ela chorava diariamente, orando e pedindo a
palma do martrio.
28
ALTMAN, Charles. Two types of Oppositionand the structure of latin saints Lives. Medievalia et
Humanistica. Sl., n.6, p.1-11, 1975.
95
-96-
Segundo Elizabeth Alvilda Petroff, no livro Body and Soul: Essays on medieval
womem and Mysticism,29 a partir do sculo X, comeou a ser construda uma viso herica
sexual por uma pessoa virgem se render as paixes estariam na escala herica.30 Acreditamos
desviar gata de suas prticas crists. Ele mandou cham-la e questionou-lhe sobre sua
condio social, ao que ela respondeu ser livre e de famlia ilustre. Ele indagou o porqu de
seus modos servis e ela replicou dizendo ser escrava de Cristo, pois essa era a suprema
liberdade. Ele, ento, ordenou que ela escolhesse sacrificar ou suportar diferentes suplcios.
gata: Que sua futura esposa seja parecida com a deusa Vnus, que voc
cultua, e que voc mesmo seja como o deus Jpiter, que tanto venera.
Quintiano mandou esbofete-la com fora, dizendo: No ofenda seu juiz
com gracejos temerrios. gata replicou: Surpreende-me que um homem
to prudente como voc tenha chegado loucura de chamar deuses aqueles
cujos exemplos no gostaria que sua mulher ou voc mesmo seguissem, j
que considera injria meu desejo que voc viva como eles.31
Desse episdio, atentamos para a ironia de gata j que, segundo os mitos antigos,
Vnus, considerada a deusa do amor, traiu o marido com vrios amantes; e Jpiter enganava a
esposa com outras deusas e com mulheres mortais. Esse comentrio tambm reflete o seu
conhecimento sobre as crenas de Quintiano. Com essa argumentao, a virgem provou que
os deuses adorados por ele no eram dignos de tal, dando-lhe uma lio de moral ao justificar
o porqu. Diante da reao furiosa do cnsul, ela desqualificou sua crena, enquanto
29
PETROFF, Elizabeth Alvilda. Body and Soul: Essays on medieval womem and Mysticism. New York e
Oxford: Oxford University Press, 1994.
30
Ressaltamos que a autora no define essa gradao (Idem, p.94).
31
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit, p.257.
96
-97-
engrandecia a sua, finalizando sua fala dizendo: Se seus deuses so bons, desejei apenas o
bem para voc, mas se detesta parecer-se com eles, compartilhe meus sentimentos.32
ouvirem o nome de Cristo elas ficaro mansas; se empregar o fogo, os anjos derramaro do
Cu um rocio salutar sobre mim. Se me infligir chagas e torturas ver que desprezo tudo por
ter em mim o Esprito Santo.33 Desta forma, gata enaltece o poder de sua f e precipita a
possvel interveno divina, ressaltando a presena do Esprito Santo, qualidade que Jacopo
gata foi condenada ao martrio por ironizar Quintiano, ao desejar que ele e a sua
mulher fossem iguais a Jpiter e a Vnus, confundindo-o em pblico. Segundo a LA, aps
este fato, ela foi jogada na priso, para onde foi com enorme alegria, como quem ia para um
No dia seguinte, Quintiano concedeu uma nova chance para gata adorar aos deuses e
diante da constncia da recusa, ordenou que ela fosse suspensa em um cavalete e torturada.
Ela respondeu-lhe:
Nesses suplcios meu deleite o de um homem que recebe uma boa notcia,
ou v uma pessoa por muito tempo esperada, ou que descobriu grandes
tesouros. Da mesma forma que o trigo s pode ser colocado no celeiro
depois de fortemente batido para ser separado de sua casca, minha alma s
pode entrar no Paraso com a palma do martrio se meu corpo tiver sido
dilacerado com violncia pelos carrascos.34
sofrimento. gata descreve sua entrada no paraso como sendo possvel atravs da destruio
da dor nas palavras da personagem. Essa reao, diante das torturas, enquadrar-se-ia nos
32
Idem, p.257.
33
Ibidem.
34
Idem, p.258.
97
-98-
somticas, invertendo as relaes de poder. A lgica seria que quanto mais violenta fosse sua
Assim, ela demonstrou grande alegria em ser torturada, devido promessa do martrio
torturas, os carrascos e os responsveis por suas dores. Segundo o relato, com essa resposta,
Nesse sentido, acreditamos que Jacopo est reafirmando a relao oposta entre os dois
personagens, cada vez mais esteriotipados: de um lado, a virgem crist, feliz por ser
martirizada e smbolo de bondade; e, do outro, o vil pago, raivoso por no conseguir superar
a f de gata.
o tormento que se segue: Quintiano ordenou que arrancassem lentamente as mamas de gata
com tenazes.36 Frente esse suplcio, ela reagiu dizendo: mpio, cruel e horrendo tirano,
voc no tem vergonha de mutilar numa mulher o que chupou na sua me? Tenho em minha
alma mamas totalmente sadias com as quais nutro todos os meus sentidos e que desde a
infncia consagrei ao Senhor.37 Nas palavras da virgem, h uma renncia do corpo com uma
ntida definio de sua inferioridade em nome da alma; estabelecendo, assim, uma relao
hierrquica entre eles. Alm disso, a fala da virgem evidenciaria a lgica dos tormentos
hegemnico que estabelecia as funes sociais para homens e mulheres segundo uma
98
-99-
anatmicas dos corpos femininos e masculinos eram alcanadas por dois processos
concomitantes; uma anlise emprica e uma interpretao teolgica. Partindo destas reflexes,
as autoras afirmam que as leituras dos corpos estavam circunscritas idia de finalidade, ou
seja, algumas partes do corpo, por possurem fins especficos, no poderiam ser associadas ao
prazer sexual. Dentro dessa perspectiva, o seio no era visto como uma zona de prazer, mas
do sculo XVIII.41 A autora destaca que a difuso e reinterpretao dos trabalhos de Galeno
suscitaram trs grandes obstculos ao estudo da anatomia feminina. O primeiro era a analogia
absoluta autoridade.42
39
LAQUEUR, Thomas. Op. Cit.
40
THOMASSET, Claude. La naturaleza de la mujer. In: DUBY, Georges et PERROT, Michelle. Histria de las
mujeres. La Edad Media. La mujer en la familia y en la sociedad. Argentina: Editora Taurus, 1992. p.60-91.
41
Cabe ressaltarmos que uma das questes trabalhadas pela autora foram as relaes entre a renovao terica e
o discurso religioso. Para Thomasset, as teorias aristotlicas e a escola hipocrtica forneceram o fomento
necessrio para aumentar a divergncia entre os tericos, no que diz respeito ao prazer, concepo, ao corpo e
relao feminino/ masculino. Somando a isso, destaca o papel da medicina rabe, que intensificou a preocupao
da Igreja, entre os sculos XIII e XIV, em controlar e restringir os corpos com variadas normas de conduta, em
especial os femininos.
42
Nesse caso, Thomasset refere-se a autoridade da Igreja que tentou reprimir o estudo da anatomia feminina,
implantando e nutrindo o medo. Essa constante tentativa foi to intensa que, segundo a autora, uma das marcas
da literatura medieval a presena do medo (Ibidem, p. 89).
43
Idem, p.60.
99
-100-
lugar inferior como mulher e subjug-la a sua autoridade civil e masculina. Dentro dessa
lgica, acreditamos que a reao da virgem a tal suplcio maldizendo o cnsul e questionando
em nome da f, pelo contrrio, acreditamos que a santa reagiu desta forma pelo prprio
significado que esta parte do corpo tinha para a mulher, associado lgica de funcionalidade
anteriormente.44
cumprir certas tarefas estabelecendo inclusive os papeis sociais ,45 perder a mama
significaria, na verdade, perder parte de sua funo social como mulher, j que as mulheres
prprio discurso da virgem, que atentou para a crueldade de arrancar nela o que a me de
Depois de ter as mamas arrancadas, ela foi jogada na priso, no podendo receber
nenhuma visita de mdico e nem alimentos. Contudo, em torno de meia-noite, um ancio com
uma criana, segurando uma tocha apareceu-lhe e disse-lhe: Embora aquele louco a tenha
coberto de tormentos, voc o atormentou mais ainda com suas respostas. Embora ele tenha
44
Segundo Claude Thomasset, essas concepes cientficas visavam dar validade aos modos de pensar vigente,
passando a circular. Desde a segunda metade do sculo XI, a medicina ocidental foi marcadamente influenciada
pela cincia rabe e pelos escritos filosficos da Antigidade, que ganharam mais fora aps as tradues
iniciadas por Constantino, o africano. _____. La naturaleza de la mujer... p. 63.
45
O pensamento de Isidoro de Sevilha esteve presente na construo de discursos, ao longo da Idade Mdia,
sendo disseminado nas universidades a partir do sculo XIII. Cf. VERGER, Jacques. Isidore de Sville dans ls
universits mdivales. In: FONTAINE, Jacques y PELLISTRANDI, Chistrine. (Eds.). L Europe hritiere de
lEspagne Wisigothique. Colloque international du CNRS. (Paris, 14-16, maio, 1990) Madrid: Casa de
Velzquez, 1992. p. 259-267.
46
BELTRN, Maria Tereza. Op. Cit. p.349.
100
-101-
deformado seu seio, ele ser coberto de amargura. Eu presenciei todas as suas torturas e vi
Diante disso, gata respondeu nunca ter exibido o corpo nem para receber medicao
e que seria indecoroso faz-lo naquele momento, demonstrando o cuidado que possua para
cristo, ela retrucou que no era esse o motivo, pois seu corpo estava to horrivelmente
dilacerado que ningum poderia desej-la, e o agradeceu pela oferta. A mrtir reagiu,
modstia en los gestos, junto con la moderacin en los adornos, outro valioso baluarte en la
defesa del bien precioso de la castidad que um cuerpo exhibido em pblico podra poner em
peligro.49 Acreditamos que a reserva de gata em relao a seu corpo vincular-se-ia com a
comportamento ideal exigido das virgens. Ela, mesmo sabendo que seu aspecto fsico no
despertaria desejos alheios pela sua deformidade, a disciplina corporal que a santa impe
ferimentos. Ela respondeu ter o Senhor Jesus Cristo, que com uma s palavra cura e
restabelece todas as coisas.51 Ouvindo isso, o ancio revelou ser o Apstolo Pedro e afirmou
que ela estava certa, j que foi Deus que o enviara, curando-a por completo, restituindo-lhe as
47
VARAZZE, Jacopo. Ibidem.
48
CASAGRANDE, Carla. La mujer custodiada. In: DUBY, George et Perrot, Michelle. Op.Cit. p. 92-130.
49
Idem, p.121.
50
Joyce Salisbury argumenta que a mulher encontrava uma forma alternativa de ascetismo na virgindade e na
castidade, vivendo uma vida recheada de Esprito Santo. SALISBURY, Joyce E. Church fathers, independent
virgins. New York: Verso, 1991.
51
VARAZZE, Jacopo. Ibidem.
101
-102-
exacerbando a fora da cura divina, demonstra certo desapego pelo mundo material.
seios reafirmam a santidade de gata. Alm disso, cabe refletirmos sobre a importncia
De acordo com Eamon Duff, no livro Santos e pecadores: A histria dos papas,52
Pedro j caracterizado como lder ou, pelo menos, como porta-voz dos apstolos nos
Evangelhos e nos atos dos apstolos.53 Seguindo essa tradio, o autor apresenta alguns
episdios54 que demonstram um certo favorecimento a ele por parte de Cristo, o que
Eamon Duff ainda argumenta que, aps Mateus redigir sobre o episdio da confisso
de Pedro em Cesaria de Filipe,55 Jesus acreditaria que a f desse homem foi uma revelao
direta de Deus. Dessa forma, Ele redefiniu o nome de Simo Cefas para Pedro a pedra , e
teria afirmado sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e te darei as chaves dos Reinos dos
Cus; o que ligares na terra ser ligado aos cus.56 O autor ressalta que, devido a essas
palavras, a autoridade do apstolo perpetuou-se pela sua comunidade, inclusive nos escritos
primado de Pedro e como sua autoridade foi transmitida aos seus sucessores sobre a
sucesso apostlica.
primeira carta, que escrita por ele ou no, a verdade que a epstola o apresenta no
simplesmente como apstolo e testemunha salvadora da obra de Cristo, mas como fonte da
52
DUFF, Eamon. Santos e pecadores: A histria dos papas. So Paulo: Cosac & Naify, 1998.
53
Idem, p.3.
54
Duffy diz que Pedro foi o primeiro a reconhecer e proclamar Cristo como Messias, em Cesaria de Filipe, o
que indicaria sua f na Igreja do Senhor. Tambm destaca que ele foi o primeiro a testemunhar a transfigurao
de Cristo, entre outros episdios. Ibidem.
55
Destacamos que ele se refere ao relato supracitado na nota anterior.
56
Idem, p.4.
102
-103-
historiadores, como uma tarefa difcil, j que as igrejas eram governadas por colegiados de
bispos ou presbteros.58
apstolos Paulo e Pedro apaream ligados Igreja Romana, pouco a pouco, a partir de uma
apropriao do texto bblico por meio das tradies jurdicas romanas, Pedro ganha prioridade
e destaque frente a Paulo. Alm disso, ressaltamos que a escolha por essa primazia de Pedro
est associada relao entre ele e Cristo narrada nos Evangelhos e nos Atos dos Apstolos,
apesar dele e Paulo terem sido martirizados juntos, o martrio de Paulo celebrado apenas no
dia seguinte, enquanto o de Pedro festejado no mesmo dia de sua morte. Jacopo justifica
essa preferncia destacando que essa data foi dedicada igreja de So Pedro, que maior em
dignidade, foi o primeiro a ser convertido e tem o primado em Roma.59 No sculo XIII,
Nesse sentido, a apario do apstolo no relato de gata seria uma referncia Igreja
romana com a defesa do primado de Pedro e, dessa forma, da supremacia da igreja romana e
emanava do calabouo onde gata encontrava-se, e os guardas, vendo isso, fugiram, deixando
o crcere aberto. Algumas pessoas pediram para que ela aproveitasse a oportunidade e
57
Idem, p.5.
58
Idem, p.7.
59
VARAZZE, Jacopo, Op cit. p.512.
60
De acordo com Girolamo Arnaldi, a importncia da primazia de Pedro para a Igreja e para o enaltecimento do
bispado romano, foi argumentada por Gregrio VII na proposio XXIII dos Dictatus papae afirmando o bispo
de Roma, com a condio de ser canonicamente consagrado, torna-se indubitavelmente santificado graas ao
bem-aventurado Pedro. ARNALDI, Girolamo. Igreja e papado. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-
Claude. Dicionrio Temtico... Op.Cit., p.567-589. p. 583.
103
-104-
imolar aos deuses, sob ameaas de novos e piores suplcios. A virgem fez pouco caso do
cnsul, chamando-o de miservel sem inteligncia por querer que ela adorasse pedras e
renegasse quem a curou: Deus. Jacopo narra um curto dilogo entre eles, que termina com a
Dito isso, o cnsul ordena que joguem cacos de cermica no cho e, sobre eles, brasas,
para que o corpo nu de gata fosse arrastado por cima. Destacamos que a nudez era parte da
punio da santa, que demonstrou tamanha resistncia em revelar o seio destroado para
obteno da cura pelo ancio. Por que a necessidade de expor o seu copo nu para a tortura
final? Levantamos dois argumentos para compreenso desse episdio: o primeiro, que essa
fisicamente de uma forma que no pudesse ser curada por Deus. Em segundo, no podemos
esquecer que, segundo nossa perspectiva terica, o fsico um dos lugares de disputa de
poder genderificado. Como Rossiaud argumenta a relao carnal um ritual de poder que
est no centro da identidade masculina.62 Assim, atravs do controle sobre a nudez de gata,
Quintiano demonstra o poder que sua posio social lhe concedia sobre o corpo da virgem,
humilhando-a.
Durante o suplcio da virgem, lemos que um terrvel terremoto assolou a cidade inteira,
que ele parasse de injustamente torturar a jovem, pois era apenas esse o motivo do terremoto,
visto como sinal divino. Em outras palavras, defendemos que essa interveno divina
61
VARAZZE, Jacopo, op cit, p.259.
62
ROSSIAUD, Jacques. Op. Cit., p.488.
104
-105-
No crcere, gata orou agradecendo ao Senhor por t-la preservado dos amores e das
mculas mundanas e por ter-lhe concedido as foras necessrias para que vencesse os
tormentos aos quais fora submetida; pedindo-lhe que recebesse seu esprito. Ela deu um
grande grito que poderia simbolizar a entrega final e total, e rendeu o esprito em torno de
253. Jacopo relata que quando Quintiano ia inventariar a riqueza da santa, dois de seus
cavalos soltaram-se. Um mordeu-o e o outro lhe acertou um coice que o jogou no rio e seu
Jacopo narra que, no dia do sepultamento de gata, surgiu um homem trajando belas
vestes de seda, acompanhado por cem outros belssimos rapazes, que colocou uma lpide
perto da cabea da santa e desapareceu.63 Com a divulgao de tal milagre, gentios e judeus
passaram a venerar seu tmulo. Nesse sentido, acreditamos que o dominicano buscava
incentivar o culto da virgem ao narrar a sua adorao por parte de pagos e de judeus.
Identificamos objetivo similar quando ele relata que perto do aniversrio de um ano da
morte da santa, um vulco entrou em erupo, e vomitou fogo, que descia como uma
corrente, fundia os rochedos e a terra, e vinha com mpeto sobre a cidade.64 Segundo ele,
No fechamento do captulo, lemos a exaltao dos milagres feitos por gata e o fato
dela ter sido visitada pelo apstolo Pedro como smbolo de sua glria, com a citao das
feliz e ilustre virgem que mereceu o martrio, derramando seu sangue para
a glria do Senhor! gloriosa e nobre virgem, ilustrada por uma dupla
63
Na lpide lia-se a inscrio: Alma santa, generosa honra de Deus e libertadora da Ptria VARAZZE, Jacopo,
op cit., p. 259). Jacopo ao explicar tais dizeres apenas os repete com outras palavras, ressaltando as qualidades
santas de gata. Ele relata que tal aparecimento deve-se a sua alma santa, ao fato dela ter-se oferecido
generosamente a Deus, por t-lo honrado e por ter liberto sua ptria.
64
Idem, p.259-260.
105
-106-
glria, por ter feito toda sorte de milagres no meio dos mais cruis
tormentos e por ter merecido ser curada pela visita de um apstolo! Os cus
acolheram essa esposa de Cristo sujos restos mortais so objeto de glorioso
respeito, e cuja santidade da alma e libertao da ptria proclamada por
um coro de anjos.65
nome, no qual Jacopo argumenta quais seriam as qualidades que todo santo deveria possuir
citando Crisstomo.
gata identificada como santa duplamente gloriosa por seus milagres e por ter
recebido a visita de um apstolo. Ressaltamos que ela no morreu durante os suplcios, sendo
salva pela interveno divina, que, junto com o destaque dado aos acontecimentos
A mrtir revela grande felicidade face os suplcios, demonstrada nas falas e nas aes
sua virgindade constitui um ascetismo prprio da santa, o que tambm evidenciaria a sua
santidade.
torturas com a exposio do corpo atravs da mama arrancada lembrando a virgem de sua
cristianismo: primeiro, ele busca posicionar a crist gata em seu lugar como mulher,
reconstitudas, tortura-a nua para que ela no pudesse ser curada atravs de nenhuma
65
Idem, p.260.
66
Como os milagres relatados, a resistncia s duras maceraes, a ao da natureza na proteo dos corpos dos
santos, entre outros.
106
-107-
marcaria uma intensa relao de poder, na qual o cnsul acredita ter sido vitorioso ao romper
com o recato da santa e impor-se sobre seu corpo, controlando-o devido a posio social
ocupada. Contudo, o terremoto que se seguiu, levando os citadinos a exigirem o fim das
torturas, evidencia que o controle sobre a personagem no abalava a fora de sua f crist, que
virgens, com a valorizao de seu recato e de sua pureza, sendo essa ltima qualidade
desejvel todos os cristos. Ela identificada como santa e a seguir como uma jovem virgem.
construo de seu gnero, pois palco de marcadas relaes de poder entre a santa e
Quintiano, reveladas claramente nos episdios em que teve a mama arrancada e no da sua
nudez forada. No primeiro relato, atravs dessa punio somtica, o cristianismo exaltado
como vitorioso aps a reconstituio do seio da personagem, feita pelo Apstolo Pedro,
segundo, a vitria ocorre devido ao da natureza, em que um sbito tremor da terra, fez
com que o povo exigisse o fim do suplcio. Conclumos que, em ambos os casos, a vitria do
Iniciando com a sua apresentao, tomamos conhecimento que, assim que se casou com
Eulgio o prefeito de Nicomdia , afirmou que s teria relaes sexuais com ele caso se
convertesse ao cristianismo.
Na narrativa, ela voltou para a morada paterna, onde seu pai mandou despi-la e surr-
la duramente. Destacamos que no h explicaes para esse retorno: se foi forado pelo
107
-108-
marido ou fruto de sua vontade. Contudo, ao considerarmos que ela foi surrada despida,
acreditamos que isso seria uma tentativa de humilh-la e relembr-la da sua condio como
O pai de Juliana a reenvia ao prefeito, que questionou o motivo de seus atos. Ela lhe
respondeu que se ele adorasse o Deus cristo seria aceito como seu senhor.68 Eulgio afirmou
que no poderia faz-lo por temer o Imperador, que poderia mandar cortar-lhe a cabea, ao
que a personagem retrucou dizendo se voc teme dessa forma um imperador mortal, como
quer que eu no tema um que imortal? Faa o que quiser, assim no me ter.69 Nesse
trecho, sublinhamos o claro uso do sexo, pela personagem, como elemento de negociao
para converter o marido ao cristianismo. Ainda que virgindade fosse o padro ideal para os
cristos, o casamento, e o sexo praticado pelo casal, no eram condenados. Alis, no sculo
XIII, era o esperado para os leigos. Logo, a negociao feita por Juliana no era considerada
ilegtima.
O martrio de Juliana, portanto, teria como causa inicial justamente o seu desprezo
pelo marido pago que, segundo o relato, mandou-lhe surrar duramente com vara e, durante
meio dia, pendur-la pelos cabelos, enquanto lhe derramavam chumbo derretido sobre a
67
Os possveis significados da nudez das santas no perodo medieval, especificamente a da santa Juliana, foram
problematizados no artigo de Peter Dendle, cf. _____. How Naked Is Juliana? Philological Quarterly, v.83, n.4,
p.355-390, 2004.
68
Essa questo aparece tambm em outro relato da LA, o da Santa Ceclia (p.941-947), contudo com um
desfecho diferenciado. Segundo o captulo, a nobre, virgem e crist Ceclia foi prometida em casamento para
Valeriano, contudo, no dia das npcias ela revelou ter um anjo de Deus como amante, que cuidava de seu corpo
com grande solicitude. Ela explicou para o marido que se o anjo percebesse que ela fora maculada, ele seria
atingido imediatamente. No entanto, se visse que o amor dele por ela era sincero, o amaria como a um cristo,
caracterizando, assim, o amor puro vinculado ao cristianismo. Segundo a narrativa, o jovem, por vontade de
Deus, falou que queria ver o anjo. A virgem o instruiu que para v-lo teria que ser batizado e rumar a cidade de
pia, onde perguntaria aos pobres sobre o velho Santo Urbano, falando ter uma mensagem secreta para
transmitir-lhe. Ao encontrar com o santo bispo, Valeriano seria purificado e veria o anjo. Ele seguiu as
instrues de Ceclia e converteu-se ao cristianismo.
69
VARAZZE, Jacopo de. Op.Cit. p. 266.
108
-109-
cabea.70 Contudo esse suplcio no a teria feito mal algum atestando a marca de sua
Na priso, um anjo foi visit-la pedindo para que sacrificasse aos deuses. Chorando,
Juliana orou pedindo ao Senhor que no lhe permitisse fraquejar e que lhe mostrasse quem
estava diante dela de verdade. A santa ouviu uma voz dizendo para agarr-lo e obrig-lo a
confessar quem era. Ela o fez e o anjo revelou ser um demnio, filho de Belzebu, que falou
nos faz cometer toda sorte de mal e nos faz aoitar rudemente cada vez que
somos vencidos por cristos que para minha desgraa aconteceu quando vim
aqui, porque no pude super-la (...). Ento Juliana amarrou-lhe as mos
atrs das costas e, jogando-o no cho, bateu duramente nele com a corrente
que servia para prend-la. O diabo dava gritos e suplicava: Minha senhora
Juliana, tenha piedade de mim.71
Nessa passagem, Juliana domina o diabo e exerce poder sobre ele, intimidando-o e
acorrentando-o. Acreditamos que a fora que a personagem revela sobre o demnio seria uma
Segundo o relato, o prefeito mandou que retirassem Juliana da priso e ela seguiu pela
praa com o diabo, que lhe suplicava piedade, porque agora ele j no poderia mais dominar
ningum preso nas correntes. Ela o arrastou por todo trajeto e o jogou em uma latrina por fim.
Levada diante do prefeito, Juliana foi amarrada a uma roda de madeira de modo to
violento que, segundo o relato, todos os seus ossos foram deslocados e a medula saiu
70
Idem, p.266.
71
Idem, p. 267.
72
Ibidem.
73
Jacopo ressalta que os que testemunharam esse acontecimento, se converteram e foram, posteriormente,
decapitados, sendo quinhentos homens e cento e trinta mulheres.
109
-110-
virgem foi jogada em uma caldeira de chumbo derretido. Contudo esse tormento virou um
uma moa que lhes ofendia e mandou decapit-la. Ressaltamos, desse trecho, a inferioridade
concedida aos deuses pagos que no conseguiam superar uma crist; inferioridade essa
gritando para no poup-la. Ao perceber que ela o olhou, ele fugiu exclamando Ai, pobre de
mim! Ainda acho que essa moa quer me prender e me acorrentar.74 H, novamente, uma
subjugao do demnio, evidenciada no temor que a santa lhe causava. Novamente, Jacopo
Aps a decapitao de Juliana, uma tempestade muito forte caiu e o prefeito, junto a
mais trinta e quatro homens, se afogou. Segundo a narrativa, seus corpos foram devorados por
animais e aves aps terem sidos vomitados pelas guas. Assim, o castigo divino enaltece, por
e do espancamento por seu pai, que a relembraria de sua condio como mulher. O seu corpo
ganha, no seu captulo, papel de destaque associado ao sexo e utilizado como elemento de
Juliana tem a sua santidade comprovava atravs dos milagres e da interveno divina,
narrativa.
74
Idem, p.267.
110
-111-
Contudo, nesse relato, acreditamos que a grande meta uma objetivao da fora da f
crist e de seu poder em relao aos outros que, nesse caso, seriam o demnio e os deuses
tentao para Juliana fraquejar e imolar aos deuses, sob disfarce angelical. A jovem, porm,
ora e pede ajuda ao Senhor para confirmao de sua viso e a verdade lhe revelada. Nesse
ocorresse, porque o poder da f seria superior, porque o do Senhor o era. Essa questo seria
reforada com a narrao sobre a fora com a qual a santa controla o demnio, fazendo-o
implorar por piedade e amedrontando-o. Se, como mulher, Juliana sofre abuso de seu pai e de
seu marido, o prefeito, tentando negociar com este, trocando a converso dele pela vida
compilador afirma que o nome Eufmia derivaria de eu, bom, e femina, mulher,
significando boa mulher. Jacopo argumenta que ela foi boa, pois o que bom possui trs
caractersticas: til, honesto e agradvel. A personagem teria sido til por sua maneira
de viver, honesta pela excelncia de seus costumes e agradvel a Deus pela contemplao das
coisas do Cu.75 Devido ao seu nome, j encontramos nesse momento narrativo a sua
identificao como mulher e um elogio ao seu modo de vida crist, caracterizando-a como um
exemplo aos demais. Acreditamos que, ao enaltecer suas virtudes, o dominicano argumenta
75
VARAZZE, Jacopo. Op. Cit. p. 810.
111
-112-
Eufmia tambm viria de eufonia, que quer dizer, segundo Jacopo, som agradvel.
O dominicano alega que este poderia ser alcanado de trs formas: com a voz, com cordas e
com o ar. A personagem teria pronunciado um som agradvel por meio da pregao, de suas
destinavam-se comunidade crist que poderia ter acesso ao relato atravs das pregaes;
dominicano.
publicamente ao juiz Prisco ser crist, aps ver as muitas torturas sofridas pelos cristos, no
tempo de Diocleciano. Na narrativa, somos informados que sua atitude teria confortado os
fila. Seu objetivo era atemorizar os demais obrigados a assistir as execues , para que, por
medo, imolassem aos deuses. Contudo, ao decapitar alguns santos na presena de Eufmia,
Alegre por crer que a demovera de sua f, Prisco questionou-lhe como a insultava.
Eufmia respondeu que, por ser de linhagem nobre, deveria ser martirizada e alcanar a glria
seguindo a perspectiva de Lucy Grig,77 Eufmia se via como um soldado de Cristo que
confrontava a fora do mal, representada, nesse momento, pelo estado romano. Nessa lgica,
o mrtir desejaria a sua morte, exacerbando as torturas, j que quanto maiores fossem os seus
sofrimentos, maior seria a demonstrao da vitria crist coroada com a sua morte. Ainda
76
Idem, Ibidem.
77
GRIG, Lucy. Torture Op.Cit. p. 322.
112
-113-
Eufmia, apesar de no exaltar suas penas, destaca a sua condio social devido ao seu forte
Prisco respondeu que havia ficado aliviado por verificar que Eufmia havia
recuperado seu bom senso e se lembrado da sua nobreza e de seu sexo,79 estabelecendo um
modo de agir e um lugar prprio para as mulheres de sua condio social no perodo. Jacopo
simplesmente narra que a santa foi aprisionada e, no dia seguinte, ao ser levada presena do
juiz sem estar amarrada como os outros, reclamou amargamente por apenas ela ter sido
dispensada dos grilhes, afirmando que isso contrariava as leis dos imperadores.80 Nesse
trecho do relato, sublinhamos a nfase dada ao conhecimento da mrtir sobre as leis romanas.
O juiz a seguiu e tentou violent-la, contudo, segundo a narrativa, ela lutou como um
homem e, por vontade divina, a mo de Prisco ficou paralisada, o que no permitiu que ele
Brown,81 para alguns pensadores cristos, atravs da virgindade a alma se uniria a Cristo,
tornando-se sabedoria e luz. Por exemplo, para Crisstomo82 e Gregrio de Nissa,83 o corpo
78
O autor Oscar Calavia Saz defende que a narrativa das crueldades dos suplcios serviria para construo do
culto aos santos. Cf. SAZ, Oscar Calavia. Religio e restos humanos. Cristianismo, corporalidade e violncia.
Antropologia em primeira mo, n.55, p.1-27, 2003. Disponvel em: http://www.antropologia.ufsc.br/
55.%20oscar-cristianismo.pdf. ltimo acesso: 17/03/2008.
79
Ibidem.
80
No h nenhuma especificao sobre qual compilao legislativa o relato se refere, contudo as leis dos
imperadores costumavam ser compndios contendo resumos das leis do imprio anterior. Cf. ALMEIDA, Jorge.
Perodos e fontes da Histria do Imprio. Disponvel em: http://www.azpmedia.com/historia/
content/view/69/28/. ltimo acesso em: 23/01/2008.
81
BROWN, Peter. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renncia sexual no incio do cristianismo. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 285.
82
Joo Crisstomo nasceu na Antioquia por volta de 344. A data de sua morte teria sido provavelmente em 405
ou 407. Teria seguido uma vida asctica e pregador. Ele figura entre os quatro grandes Padres do Oriente. Para
mais informaes sobre sua vida e trabalho, cf. HAMMAN, Adalbert-G. Para ler os Padres da Igreja. So
Paulo: Paulus, 1995.
83
Gregrio de Nissa foi um telogo e filsofo cristo nascido em Cesaria, da Capadcia, na Anatlia, sia
Menor, hoje Kayseri Turquia. Personagem da era Patrstica, ele possuiu certo renome no processo de
consagrao do pensamento cristo, sendo um dos precursores do trabalho de Santo Agostinho. Para mais
113
-114-
virgem era o veculo da ascenso da alma rumo a Deus. Em outras palavras, essa virtude era
comeou a ser construda uma viso herica vinculada virgindade. Ela defende que tal
acepo devia-se crena de que resistir s tentaes, para no se render s paixes, era
considerado um ato herico.85 Logo, acreditamos que a luta travada entre a virgem e o juiz
desse pressuposto, defendemos que a tentativa de controle sobre o fsico da jovem, por parte
do juiz, evidenciaria uma batalha de poderes, em que, apesar dele no ter conseguido demov-
la de sua f, o comando do somtico da jovem poderia ser uma forma de comandar tambm a
sua alma. No entanto, a mrtir sai vitoriosa dessa disputa. Atravs de uma comparao com a
resultado do poder da sua f , destaca-se que a santa foi auxiliada com a interveno divina
Acreditando estar sob algum feitio, Prisco ordenou que seu prepsito86 fosse at o
crcere onde se encontrava Eufmia, para tentar convenc-la a aceitar o juiz como amante. No
entanto, a sua cela no se abria com o uso das chaves e nem era quebrada a machadadas.
Somos informados que o prepsito, por fim, foi possudo por um demnio e fugiu, aos gritos,
santa, mas, nesse caso, seguida de uma justia punitiva, na qual o funcionrio do juiz,
informaes sobre sua vida e seu trabalho, Cf. CORBELLINI, Vital. A doutrina da encarnao do Verbo no
Adversus eunomium de so Gregrio de Nissa, 357-375. Revista Eclesistica brasileira. Para alm da idolatria.
v. 65, n.258, p.357-375, abril 2005.
84
PETROFF, Elizabeth Alvilda. Body and Soul: Essays on medieval womem and Mysticism. New York e
Oxford: Oxford University Press, 1994.
85
Ressaltamos que a autora no define essa gradao. Idem, p.94.
86
Prepsito ou prelado refere-se a um superior masculino. No lexus religioso cristo passou a ser o dignitrio
eclesistico.
114
-115-
endemoniado, acabou por se automutilar.87 Vale destacar que a ajuda sobrenatural, no caso de
primeira atravs de sua identificao como mulher no estudo etimolgico, feito por Jacopo,
e de sua posio social como filha de um senador. A segunda aparece na sua performance no
mbito social, pois, segundo seu relato, ela lutou como um homem ao ser agarrada pelo juiz.
Assim, acreditamos que o seu relato estaria contrrio aos discursos misginos hegemnicos
saberes construdos sobre seu gnero, aperfeioando-se. No entanto, esse processo s lhe foi
possvel por ela ser crist e, principalmente, por seguir uma vida recheada de virtudes crists
Cabe ressaltarmos que possuir uma vida recheada de valores cristos no era o aspecto
formador da santidade, mas sim a comprovaria. Segundo a viso da poca, o santo marcado
desde o seu nascimento pela graa divina e a sua vivncia entre os homens serviria para
suscitar efeitos purificadores e milagres, entre outros. Em outras palavras, Eufmia teria a
santidade inerente a ela, sendo que ao argumentar sobre as suas virtudes e qualidades,
acreditamos que Jacopo objetivou afirm-la como um exemplo a ser seguido pelos cristos.
Retornando a narrativa, aps o prepsito ter sido tomado por um demnio, Eufmia
foi colocada sobre uma roda, cujos raios estavam cheios de brasas. O plano era que um
arteso, posicionado no meio da roda, desse um sinal sonoro para que seus ajudantes
iniciassem o seu movimento, carbonizando o corpo da mrtir. No relato afirma-se que, por
vontade divina, o instrumento que retinha a roda caiu das mos do arteso e os ajudantes,
87
Essa conotao alegrica da automutilao possuiria um forte carter pedaggico e didtico, fornecendo
provas da santidade dos personagens e da fora da f crist.
115
-116-
A famlia do arteso decidiu, ento, queimar a roda com a virgem amarrada nela,
texto, para pegar Eufmia no lugar em que estava foram colocadas escadas, e quando
algum quis esticar a mos para agarr-la, no mesmo instante ficou completamente paralisado
e somente com muita dificuldade conseguiram desc-lo meio morto.89 Em seguida, lemos
que um homem chamado Sstenes subiu na escada e foi convertido imediatamente por
Eufmia, afirmando que preferia a morte a ter que tocar em uma pessoa guardada por anjos.
Ela foi descida, mas no sabemos como, pois Jacopo no revela. O juiz, ento,
mandou seu chanceler reunir todos os jovens libertinos para que se divertissem com ela at
morrerem de esgotamento. Porm, quando o primeiro entrou no local onde estava a virgem,
Alm disso, a apario de muitas outras virgens seria uma coroao de sua qualidade
A seguir, somos informados pela narrativa que ela foi suspensa pelos cabelos, mas
somticos. Foi reconduzida priso, com a proibio de receber alimentos, para que ela fosse
esmagada entre quatro pedras aps sete dias. Contudo, ela orou e as pedras foram reduzidas a
p. Assim, para salv-la h, novamente, a interveno divina, com um milagre voltado sua
Outro milagre nessa mesma linha aparece no episdio narrado aps esse, no qual o
juiz, envergonhado por ter sido vencido por uma mulher,90 decidiu jog-la em um fosso onde
88
Segundo Philippe Faure, no artigo Anjos, a manifestao Anglica uma descida do Cu terra que santifica
o homem, o tempo e o espao. A visita e a viso dos anjos parecem como signo de santidade do monge e de sua
semelhana com os habitantes do Cu. Desse trecho, destacamos a santificao de Eufmia confirmada pela
visitao de um anjo para salv-la. FAURE, Philippe. Anjos In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude.
Dicionrio Temtico...Op.Cit., p. 69-80.
89
VARAZZE, Jacopo de. Op.Cit., p.811.
90
Nesse sentido, acreditamos que ele foi vencido porque suas torturas no afetaram Eufmia, pelo contrrio, elas
acabaram por enaltecer o poder da f crist. Alm da conotao de humilhao vinculada ao fato de Prisco ter
perdido para uma mulher, deixando-o envergonhado.
116
-117-
estavam trs animais selvagens que poderiam devorar qualquer homem.91 Contudo, estes
foram at Eufmia, mansos, para acarici-la, e arrumaram as caudas juntas para servir de
Prisco quase morreu de angstia e o carrasco, para vingar a afronta feita a seu senhor,
enfiou a espada no tronco de Eufmia. Aps lutar por sua virgindade e por sua f, por fim,
Eufmia foi morta com uma espada enfiada no seu flanco pelo carrasco do juiz. Ele foi
recompensado com um traje de seda e um colar de ouro, contudo ao sair foi apanhado por
um leo que o devorou completamente (...). O juiz foi encontrado morto depois de ter
Ambos os algozes foram penalizados pelo martrio de Eufmia, sendo que o juiz se
destaque dela possuir o mrito de ter convertido a todos os judeus e pagos da regio, o que
acreditamos sublinharia as converses que foram feitas atravs do exemplo da vida e das
palavras da virgem. Jacopo termina o relato citando o prefcio da obra Sobre a virgindade de
s oraes na superao dos suplcios sofridos e viso da carne como uma priso para a
alma:
91
Idem, p.812.
92
Ibidem.
93
Idem, p.812.
117
-118-
No relato de Eufmia destacamos que os suplcios aos quais ela foi condenada foram
vencidos por interveno divina, atravs de aparies angelicais ou de punies feitas por
figura nesse captulo. Ou seja, os tormentos de Eufmia so indolores. Esse elemento pode
ser atribudo prpria virgindade da personagem. Essa virtude, enaltecida ao longo do relato,
ganharia contornos hericos com a total renncia de Eufmia aos prazeres mundanos e com a
sua luta para manuteno de sua virgindade, o que j atestaria o caminho de sua alma. Logo,
serviriam para definir qualidades desejveis nos cristos e nos irmos pregadores. Nesse
sentido, defendemos que sua biografia apresenta um caminho para salvao da alma baseado
cristos.
como tambm ao valor concedido virgindade da personagem. A luta de poder sobre o corpo
enaltecida ao longo do captulo e protegida com milagres que comprovariam a sua santidade.
Sua virgindade adquiria valor similar dor para atestar o caminho de sua alma. Essa virtude,
94
POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
95
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4,
p.11-46, 2002
118
-119-
de carter herico, possibilitou que Eufmia superasse comportamentos construdos sobre seu
gnero fragilidade, fraqueza de sua carne, entre outros , aperfeioando-se. Esse processo
s lhe foi possvel por ela ser crist e, principalmente, por seguir uma vida recheada de
Como em outros relatos, esse tambm se inicia com uma anlise etimolgica. Segundo
a obra, Catarina significaria runa universal, porque ela arruinou o edifcio do diabo com o
seu modo de vida: a soberba com a sua humildade, a concupiscncia carnal com a sua
virgindade e a cupidez mundana com seu desprezo pelas coisas materiais. Alm disso, poderia
ser correntinha advindo de catenula. De acordo com sua interpretao, ele afirma que foi
com boas obras que ela fez para si uma corrente com a qual subiu ao Cu. Cabe destacarmos
que ao escrever quais seriam os quatro degraus que formariam essa corrente, o compilador
cita o livro bblico de Salmos, quando o profeta pergunta quem subiria na montanha do
Senhor (Salmos 24, 3), ele mesmo responde: Aquele cujas mos so inocentes e o corao
puro, que no ocupou sua alma com futilidades, que no fez juramentos falsos contra o
prximo.96
convocou a todos que residiam em Alexandria para sacrificar aos deuses, ameaando punir os
que no o fizessem. Ento a personagem, que, com dezoito anos de idade, vivia em um
96
Ibidem.
97
Cabe ressaltarmos que o relato no norteado por muitos milagres ou intervenes divinas, s h quatro
episdios milagrosos. O primeiro milagre foi o envio de uma pomba pelo Senhor que alimentou a santa por doze
dias com alimento celeste. O segundo foi a destruio das rodas, que iam moer a carne da santa, que causou a
morte de quatro mil gentios. O terceiro foi a morte do imperador que, segundo Jacopo, foi castigado por esse
martrio, alm de muitos outros, e, por ltimo, consideramos tambm o sepultamento de Catarina, que foi
realizado por anjos no alto do Monte Sinai.
98
Ao final do relato, Jacopo diz haver uma dvida sobre quem teria sido o responsvel pelo martrio de Catarina:
Maxncio ou Maximiano. Provavelmente por tal razo, o compilador apenas menciona o nome do imperador
nesse momento narrativo, chamando-o de imperador ou rei ao referir-se a ele ao longo do captulo.
119
-120-
aplausos, mandou imediatamente algum verificar o que acontecia. Informada, saiu do palcio
junto com outras pessoas e protegendo-se com o sinal-da-cruz. Viu muitos cristos que,
levados pelo temor, ofereciam sacrifcios.99 Nesse trecho, destacamos a relevncia dada ao
sinal-da-cruz como meio de proteo e de ligao com o Senhor, como veremos a seguir.
procurando demov-lo de suas crenas. Jacopo afirma que esses argumentos vincular-se-iam
primeira pertenceria aos retricos e dialticos, a segunda, aos filsofos, e a terceira, aos
sofistas. Ele conclui, portanto, que ela dominava todas as formas de saber humano. Apesar de
aparecer na LA que ela recebera instruo em todas as letras liberais, lemos que o imperador
ficou estupefato pela sapincia dela, pois, alm de bela, ela expunha com sabedoria muitas
coisas sobre a encarnao do Filho.102 Destacamos dois elementos para anlise nessa
condizente com a educao que recebera, assim como pela doutrina crist, ainda que no
aparea no relato nenhuma meno de que fora instruda por um clrigo. Logo, defendemos
que o espanto causado por sua sabedoria estaria associado no ao conhecimento da "cincia
Sublinhamos que havia, no sculo XIII, uma preocupao com a difuso dos trabalhos
nossa interpretao, Jacopo utiliza esse relato para argumentar que o saber completo seria
99
Idem, p. 962.
100
Idem, p.969.
101
Ao final do relato ele discorre sobre a filosofia ou a sabedoria que estaria dividida em saberes tericos,
prticos e lgicos, dos quais Catarina possua entendimento e domnio (Ibidem).
102
Idem, p.963.
120
-121-
que, alis, Catarina detinha sem receber alguma instruo especfica, conforme o texto. Dessa
forma, acreditamos que essa personagem simbolizaria o saber no seu sentido mais completo,
seu gnero. Isto , a jovem, ainda que mulher, possua profundos saberes seculares, nem
sempre comuns ao sexo feminino, assim como aqueles inspirados pelo prprio Deus, tambm,
O relato continua com o imperador, sem saber o que responder, ordenando que a
levassem ao Palcio at os sacrifcios acabarem, que ento ele a responderia. E assim o fez.
Ele foi at Catarina e questionou quem ela era e qual era a sua origem. Ela respondeu e, ao
no perigo!.105
O rei retrucou que se o que ela falava fosse verdade, todos estariam errados, no
entanto toda afirmao deveria ser confirmada por pelo menos duas testemunhas,
acrescentando que mesmo que voc fosse um anjo ou uma potncia celeste, ningum deveria
Catarina unicamente por sua condio de mulher. Na continuao do dilogo, ela lhe pediu
citando um poeta:107 Se o esprito o governa, voc ser rei, se o corpo o governa, ser
103
Jacques Le Goff afirma que foi Toms de Aquino quem defendeu que arte seria toda atividade racional e
justa do esprito aplicada no fabrico de intrumentos, quer materiais, quer intelectuais. Dessa forma, as artes
liberais (cincia) eram chamadas de artes porque implicariam em um conhecimento que resultaria da razo
diretamente. LE GOFF, J. Os intelectuais na Idade Mdia. Lisboa: Estdio Cor, 1973. p.68-69.
104
Segundo a historiografia, Cassiodoro teria divulgado as sete artes liberais como fundamentais para a
composio da educao crist. Para mais informaes, cf. PAUL, Jacques. Historia intelectual del occidente
medieval. Madrid: Ctedra, 2003, LE GOFF, Os intelectuais ... Op. Cit., RAINHA, Rodrigo dos Santos. A
Educao no Reino Visigodo. Rio de Janeiro: HP Comunicao Editora, 2007.
105
Idem, p.964.
106
Ibidem.
107
Ressaltamos que no encontramos informaes sobre qual teria sido o poeta ou filsofo em questo.
121
-122-
pedindo-lhe para superar o fato dela ser mulher, para que seu saber obtivesse a devida ateno
e reconhecimento.
sabedoria, reuniu secretamente cinqenta oradores que superavam todos em qualquer gnero
da cincia, entre gramticos e retricos de toda Alexandria, para que confundissem Catarina.
grande imperador, voc convocou os sbios de todas as regies mais afastadas do mundo para
uma simples discusso com uma moa, quando um de nossos discpulos podia facilmente
refut-la!.109 Novamente sua condio como mulher aparece como motivo de desqualificao
De acordo com o compilador, o rei, ao fazer isso, desejava confundir Catarina em seus
argumentos e no apenas tortur-la com suplcios.110 Ele queria desqualificar a crena dela
como ela fez com a dele, enquanto enaltecia a sua. A narrativa continua e a virgem, informada
deste encontro com os oradores, recomendou-se ao Senhor. Um anjo lhe apareceu e avisou
para ela ser firme, pois ela no apenas converteria os sbios como os destinaria palma do
martrio. Em outras palavras, a sabedoria com a qual ela expunha a doutrina estava
diretamente associada sua confiana no Senhor, que mandou um anjo preveni-la para
manter-se de acordo com a f. Ao narrar isso, defendemos que Jacopo objetivava incentivar
108
Ibidem.
109
Ibidem.
110
Eu podia obrig-la pela fora a oferecer sacrifcio, ou elimin-la por meio de suplcios, mas julguei
prefervel que seja confundida pelos argumentos de vocs (Idem, p.963).
122
-123-
justo que voc oponha uma moa a cinqenta oradores aos quais promete
gratificaes pela vitria, ao passo que me fora a combater sem me
oferecer a esperana de uma recompensa? Entretanto para mim a
recompensa ser meu Senhor Jesus Cristo, que a esperana e a coroa dos
que combatem por ele.111
mulher e certo receio da prpria personagem devido a seu sexo. Contudo, ela demonstra total
coisas materiais.
estariam dispostos a converterem-se. Catarina prega. Ela faz com que pessoas convertam-se.
Sem temer o que poderia ocorrer a sua pessoa, ela age como um dominicano deveria agir: usa
serem queimados no centro da cidade. Contudo, eles lamentaram morrer sem serem batizados,
mas Catarina pediu para que nada temessem, pois o sangue que derramassem no martrio seria
entregaram-se s chamas, que no atingiram nem seus cabelos nem suas vestes. Nesse trecho,
111
Idem, p.963-964.
112
Ela diz: Plato estabelecera que Deus um crculo cortado em forma de meia-lua. Assim, quando Jacopo
apresenta um Plato cristianizado, demonstra uma pungente preocupao abertura aos filsofos pagos nas
Universidades, devido presena dos dominicanos nesses centros intelectuais.
113
Idem, p.964.
123
-124-
verificamos que apesar de toda a sabedoria da santa, o fato dela ser mulher impediu-a de
batizar os sbios. Nesse sentido, defendemos que o dominicano constri a personagem como
representao de sabedoria por interveno divina, como uma espcie de smbolo, no como
um ser real.
O rei prope para a jovem sacrificar aos deuses, poupando sua juventude e recebendo
o segundo posto mais importante no reino, depois da rainha, o que Catarina recusou. Diante
disso, Jacopo escreveu que cheio de raiva, o csar mandou despi-la e tortur-la com
escorpies e depois jog-la em uma escura priso, na qual deveria padecer de fome durante
que ela era apenas uma mulher. Alm disso, defendemos que o somtico da personagem seria
palco das relaes de poder genderificadas: como o rei no poderia controlar a alma de
Nesse meio tempo, o rei teve que se ausentar para resolver questes em outra regio e
a rainha, que se afeioara a Catarina, foi visit-la junto com o comandante militar Porfrio. No
crcere, ambos foram convertidos, alm de outros duzentos soldados. Jacopo aqui refora a
pensando, que algum lhe dera alimentos, mandou torturar seus soldados. Catarina retrucou
afirmando que ningum a alimentara, pois ela recebera alimento celeste. Nesse sentido, seu
esplendor estava relacionado sua f, que tambm a nutriu. O imperador ento lhe ordenou
escolher entre oferecer sacrifcios ou perecer, ao que ela respondeu: Quaisquer que sejam os
tormentos que voc possa imaginar, no demore em aplic-los, pois desejo oferecer minha
114
Idem, p. 965.
115
Ibidem.
124
-125-
carne e meu sangue a Cristo, como ele prprio se ofereceu por mim. Ele meu Deus, meu
serras de ferro e de pregos pontiagudos, para que essa mquina moesse Catarina em pedaos e
Contudo, a virgem rogou ao Senhor, pedindo-lhe que destrusse tal mquina pela glria de seu
nome e pela converso do povo que se encontrava ali. Ou seja, mesmo sendo uma mulher,
Catarina no temia a dor. Ao rogar para que a roda fosse destruda, o relato destaca que ela
Nessa passagem, temos no apenas a interveno divina, que salvou a virgem, como
tambm o castigo divino voltado aos gentios. E, alm disso, ao narrar que o pedido por ajuda
foi prontamente atendido, o compilador enalteceu a posio contrria de Deus em relao aos
deuses pagos, que no o auxiliavam, como disse Catarina, e enalteceu os mritos em manter-
Jacopo narra que a rainha, que assistia a tudo, foi ao encontro de seu marido e lhe
chamou a ateno por suas crueldades. Ela exortou o marido que furioso com a recusa da
decapitada.118 Nesse sentido, a f crist deu-lhe as foras necessrias para rebelar-se contra
seu esposo, sem se importar com as conseqncias desse ato.119 Catarina disse para ela no
116
Idem, p.965-966.
117
Nesse ponto, Jacopo descreve como a mquina funcionava, o que acreditamos seria uma estratgia textual
para enaltecer tanto como a coragem da virgem quanto o milagre que sucederia: Dispuseram-se duas rodas que
deviam girar numa direo, ao mesmo tempo em que duas outras seriam postas em movimento sentido contrrio,
de maneira que as de baixo deviam rasgar as carnes que as rodas de cima houvessem jogado nelas. Idem, p.
966.
118
Ibidem.
119
Acreditamos que a inteno de corta-lhe as mamas fora para lembr-la de sua condio: ela era apenas uma
mulher e como tal no poderia desafiar um homem, em especial o seu marido e rei. Ora, ao narrar esse episdio
em que a f fortaleceu a rainha, Jacopo pretendia incentivar mais ainda os irmos a no desistirem por medo das
conseqncias. Ressaltamos que o imperador acusa Catarina de ter feito a rainha morrer com a sua arte mgica,
mas coloca-se disposto a perdo-la caso ela se arrependesse e prometendo-lhe como recompensa o posto de
pessoa mais importante do palcio. A tentativa de seduzi-la com o poder novamente falha.
125
-126-
temer, pois ela iria ganhar um marido imortal.120 Aps sua morte, Profrio, o comandante
militar, revela ao imperador ter sepultado o corpo dela e de ter-se convertido f crist.
comentar o ocorrido com os soldados, eles tambm lhe revelaram estarem todos convertidos
f crist. Jacopo afirma que brio de furor, o csar ordenou ento que se cortasse a cabea
deles e de Profrio e que seus corpos fossem jogados aos ces.121 E, apesar desse estado
mental alterado, Maxncio122 no condenou a virgem, pelo contrrio, deu-lhe uma nova
chance de arrepender-se. Somente diante da nova recusa que ele a condenou decapitao.
Aps ser decapitada, Jacopo narra que do corpo de Catarina jorrou leite e no sangue e
que os anjos pegaram seu corpo e o sepultaram com honras no alto do monte Sinai. De acordo
com Thomas Laqueur, no livro Inventando o sexo. Corpo e gnero dos gregos a Freud,
da noo de economia de fluidos fungveis. Nesse sentido, todo sangue que no era
nutrio.123
chamado vasa mestrualis, Merral Llwelyn Price, no artigo Bitter milk: The Vasa Mestrualis
and the cannibal(ized) virgin,124 defende que a equivalncia entre o sangue e o leite
de Cristo na Eucaristia.
significados: ligada a ltima ceia do Senhor; codificao de preces eucarsticas, que recebeu
126
-127-
natureza histrica das fontes; e ao seu entendimento como oratio-prex seguindo a idia de
sacrifficium offerre por parte da comunidade crist.125 Nesta ltima, associa-se ao sacrifcio
individual, possuindo relao com a Igreja. A Eucaristia vista como alimento e como
engravidado, podemos supor que ao jorrar leite e no sangue de seu ferimento, Jacopo estaria
realizando um paralelo com a idia de Catarina nutrindo os seus filhos, que seriam aqueles
sacrifcio da mrtir que morre em nome da f diante de todos. Sublinhamos que Renzo
Gerard127 defende a viso de Eucaristia como sacrifcio, afirmando que a vtima imolada
bebendo o nico clice que algum se torna a oferenda viva, se assemelhada a Cristo, vtima
pascal.128
seu sacrifcio, nutre aqueles que assistiram seu martrio e os que tomaram conhecimento dele,
colocando-se na posio de oferenda Cristo. Coroada com o martrio, ela foi acolhida por
Segundo o captulo, sublinhamos um marcado incentivo ao seu culto dado por uma
passagem ao final. Jacopo argumenta que, antes de morrer Catarina orou, pedindo que todos
que se lembrassem de seu martrio e fizessem um pedido, fossem atendidos. Ela escuta como
resposta: Vem, minha querida, minha esposa, a porta do Cu est aberta para voc. A todos
125
HAMMAN, Adalbert. Eucaristia. In: DI BERARDINO, Angelo (Org.). Dicionrio Patrstico e de
Antiguidades Crists. Petrpolis: Vozes, 2002. p.527-530.
126
Justino apud HAMMAN, Adalbert. Op.Cit.. p. 527.
127
GERARD, Renzo. Eucaristia. In: FISICHELLA, Rino; PACOMIO, Luciano & PADOVESE, Luigi (Orgs.)
LEXICON. Dicionrio Teolgico Enciclopdico. So Paulo: Loyola, 2003. p. 264-265. p. 264.
128
Ibidem, p. 264.
127
-128-
os que celebrarem a memria do seu martrio com devoo, eu prometo a ajuda do Cu que
pedirem.129
Acreditamos que essa passagem visava ser um incentivo ao culto da mrtir, o que seria
fortalecido quando Jacopo narra que um monge de Ruo foi ao Monte Sinai, onde Catarina foi
sepultada e l permaneceu por sete anos a servio da mrtir, rogando-lhe por algum pedao de
seu corpo. Um dia, um de seus dedos desprendeu-se e o monge recebeu esse dom de Deus
com alegria, levando-o para seu mosteiro.130 Nesse caso, no h apenas uma argumentao
uma relquia131 em um local determinado, o que serviria para atrair fiis e doaes.
quais Catarina era admirvel: sua sabedoria, sua eloqncia; sua firmeza; sua castidade; e seus
Ao tratar sobre a sabedoria, ele afirma que Catarina reuniria todos os aspectos
desejveis da sapincia que possua trs faces: a terica, a prtica e a lgica, como
subdivises, afirmando que ela detinha saberes de cada expresso de conhecimento abordada.
Ressaltamos que, na sabedoria terica, h uma associao ao divino em duas das suas
ela possua a sabedoria natural no conhecimento de todos os seres inferiores, que usou em
129
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit., p.967.
130
Ibidem.
131
Para mais informaes sobre o papel das relquias no perodo medieval, cf. BUENACASA PEREZ, Carlos.
La instrumentalizacin econmica del culto a las reliquias: una importante fuente de ingresos para las Iglesias
tardoantiguas occidentales (ss. IV-VI). In: BOSCH JIMNEZ, Concha, VALLEJO GIRVS, Margarita,
GARCA MORENO, Luis A., GIL EGEA, Mara Elvira. (coord.). Encuentro Hispania en la Antigedad Tarda,
3, lcala de Henares, 13 a 16 de Octubre de 1998. Actas... lcala de Henares: Universidad de lcala, 2003. p.
123-140, GAJANO, Sofia Boesch. Santidade. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio
Temtico... Op.Cit., p. 449-463. p. 452.
132
A sabedoria intelectual associada ao conhecimento do divino, pois foi com ela que a santa comprovou a
existncia de um nico Deus e descartou os demais, assim, de certa forma Jacopo defenderia um tipo de
conhecimento vinculado ao teolgico. VARAZZE, Jacopo, Op. Cit., p.967.
133
Catarina possuiria o conhecimento matemtico por ter se despojado de todo bem material enaltecimento do
desapego material mendicante e a utilizou ao convencer a rainha a desprezar o mundo e amar o rei eterno.
Ibidem.
128
-129-
seu debate com o imperador,134 desqualificando-o. Alm disso, sublinhamos que ao narrar
viveu, pela sua relao honrada com a sua famlia e pelos sbios conselhos dados ao
imperador.
ato de pregar, comumente realizado por personagens masculinos na LA. Apenas Catarina de
Alexandria e Maria Madalena esto claramente associadas a este papel na compilao, o que
Latro, em 1215. O cnone 10, dedicado a essa questo, estabelece que a pregao poderia ser
designadas pelo bispo responsvel pelo local quando este no puder cumprir com essa
Em suma: nesse, lemos sobre uma santa objetivada como smbolo de uma sabedoria
completa a ser seguido pelos irmos dominicanos, mas no pelas mulheres. Defendemos que
Jacopo destaca que, para o soberano, Catarina, por ser uma mulher, era inferior aos
homens, sendo inferiorizada pelo prprio rei, pelos oradores e at por suas prprias atitudes.
Ela contorna essa viso por ser crist, por ter assumido as verdades do cristianismo e deixar
que seu Senhor falasse por ela. Nesse sentido, o dominicano defende, atravs dessa
personagem, as qualidades que os irmos pregadores deveriam ter, o que fica mais evidente
nas ltimas pginas do relato dedicadas para o compilador trabalhar com as qualidades
129
-130-
melhor, um tipo de erudio que reunia saberes variados, mais associados s universidades,
muitos se converteram. Afinal, se uma mulher podia fazer isso, imagine do que os irmos
Assim, apesar de haver uma construo de identidade de gnero atravs de uma certa
disputa de espao entre a sua condio como mulher, ressaltada constantemente, e a sua
que a essncia desse relato encontra-se na construo de uma personagem cuja sabedoria
superaria o infortnio de seu sexo e cuja vida seria coroada com o martrio.
martirizao, foram distintos. gata e Anastcia foram levadas a julgamento por causa da
ganncia de suas riquezas por terceiros. A primeira foi vtima de Quintiano, enquanto a
segunda foi alvo de dois prefeitos. Catarina e Eufmia foram at aos locais onde outros
segurana aos coraes cristos. J a santa Juliana foi condenada por negar-se a ter relaes
formulao dos sermes, visando ao entre os fis e a converso dos infiis e hereges, no
entanto cada captulo teria finalidades especficas. Nesse sentido, a obra apresenta uma
sucesso de topos sem unidade, justamente por ser uma compilao e Jacopo aproveita-se
130
-131-
relao pag e a sua superao ao demonaco, indicando a proteo fornecida pelo Senhor
A exaltao dessa qualidade tambm aparece no captulo de Catarina, quando ela teria
objetivao dessa personagem como smbolo de sabedoria, funcionando como pano de fundo
principalmente.
No relato sobre gata, o objetivo era incentivar os fiis a manterem-se retos na vida
crist, no importando a situao. Apoiamos tal hiptese na felicidade com a qual a santa
encara os suplcios o que transparece nas suas falas e nas suas aes , por acreditar no
poder de sua f e, ao mesmo tempo, desejar a vida eterna ao lado de seu Senhor. A visita
recebida do maior dos apstolos para cur-la, apenas a enaltece, pelo mrito de manter sua
retido e persistncia.
demonstrada na raiva do prefeito Quintiano, que amaldioou os seus prprios deuses. Nos
virgindades, marcando assim uma total rejeio dos prazeres carnais por parte das santas.140
137
Destacamos que todas as personagens so virgens, contudo em algumas narrativas h o destaque para tal
condio.
138
O relato de gata tambm possuiria, em menor destaque, essa argumentao sobre a sabedoria, contudo a
superao somtica para alcanar a santidade seria o principal elemento.
139
Sublinhamos que todos os relatos so norteados por milagres que evidenciavam a presena divina e
confirmavam a santidade das personagens, contudo apenas nas narrativas das santas Eufmia e Anastcia eles
voltam-se proteo da virgindade delas, como analisado anteriormente. Esse recurso narrativo relacionar-se-ia
ao objetivo de cada relato. No primeiro, temos o enaltecimento dos mritos e das virtudes em manter-se fiel f
crist, utilizando-se da narrao de eventos sobrenaturais e de episdios milagrosos; j, no segundo, como j
dissemos, o cerne do texto est na exaltao da virgindade apesar dos pesares.
140
Ressaltamos que nem todo santo da LA possui essa desvinculao com o aspecto carnal. Lembramos do
relato sobre Santa Teodora, por quem um jovem rico inflamou-se de desejo, graas ao diabo. Segundo a
narrativa, ele a atormentou de tal forma, que ela perdeu a sade e o sono e o homem foi a uma feiticeira pedindo
auxlio. A personagem havia dito que nunca cometeria um pecado to grande ela era casada aos olhos de
131
-132-
impostas s personagens com os corpos nus nos chama ateno. No caso de Santa gata, em
nossa opinio, o somtico possuiria dois grandes objetivos. Primeiro, o suplcio de ter o seio
arrancado, serviria para relembr-la de sua condio como mulher, contudo a sua restituio
tortur-la nua, o propsito seria humilh-la: Quintiano a superaria pela sua condio social,
mas perde pela f da personagem relembramos que ele foi atacado pelos seus prprios
Relatos sobre torturas com as personagens nuas, tambm ocorrem nos captulos de
Juliana, h duas apresentaes de usos do seu corpo dentro de relaes de poder. A primeira
seria o uso do sexo como mecanismo de convencimento do marido, para que ele se
convertesse. A segunda seria a surra que levou do pai, que representaria a sua humilhao e
demonstrao do controle que ele possua sobre seu corpo. No caso de Catarina, a nudez
corpo virgem est presente em todos os relatos, no entanto participaria de modo direto na
Jacopo pontua durante a narrativa que Catarina uma mulher e inferior aos homens,
atravs de passagens narrativas em que ela dialoga com o rei, os oradores e at consigo
mesma. Ela contorna qualquer viso sobre ela, por ser mulher, ser inferior com o uso de sua
Deus que tudo v ento a feiticeira a convenceu que o que acontece depois do cair do Sol no era visvel pelo
Senhor. Assim, ela cedeu volpia do rapaz, mas se arrependeu ao perceber o que tinha feito, travestiu-se e
retirou-se para um cenbio sob o nome de Teodoro.
141
No captulo sobre Catarina, h outra narrativa com o relato do seio ter sido arrancado: a rainha que foi
condenada ao martrio. Contudo, apenas h a meno desse castigo, antes dela ser decapitada, logo acreditamos
que, nesse caso, o objetivo era apenas coloc-la em seu lugar social como mulher.
132
-133-
espao entre a sua sapincia e seu sexo biolgico. Nesse caso, a nudez da personagem
entregue ao ltimo prefeito, ela exilada na Ilha de Palmarola junto com outros cristos. Eles
so buscados e martirizados.
Nos relatos sobre os corpos torturados, salientamos que todas as mrtires so salvas
por eventos milagrosos, dos suplcios ou no sentem o tormento, com exceo de gata. Na
sua narrativa lemos sobre milagres que a curam, o que estaria vinculado ao enaltecimento do
objetivado como palco de relaes de poder sofridas associadas s passagens de nudez, por
Assim, conclumos que Jacopo compilou esses relatos visando atender certas questes
133
-134-
CAPTULO 4
relativos aos personagens masculinos da Legenda urea.1 Lembramos que, no total, foram
1. So Vicente, o vitorioso
O relato segue uma narrativa linear, sendo iniciado por um rpido estudo etimolgico.
Segundo a interpretao de Jacopo, no captulo sobre So Vicente, este nome significaria trs
coisas: queimando o vcio (vitium incendens), aquele que vence os incndios (vincens
1
VARAZZE, Jacopo. VARAZZE, Jacopo. Legenda urea; vida de santos. So Paulo: Companhia das Letras,
2003.
2
Sublinhamos que, em alguns captulos estudados, h o relato de outros martrios, inclusive de personagens
femininas. Todos foram mencionados em nosso trabalho.
134
-135-
foi devido sua sabedoria, pureza3 e constncia que ele venceu os trs flagelos do mundo: as
Destacamos que o santo marcado por vitrias durante todo o relato, sendo colocado
face aos carrascos, a Daciano responsvel pelo seu martrio -, aos instrumentos de tortura e
Aps essas reflexes sobre o nome Vicente, Jacopo cita Agostinho,5 informando que
segundo esse autor os martrios dos santos foram e continuam sendo exemplos para vencer o
mundo com todos os seus erros, amores e temores.6 Desta forma, o dominicano j identifica,
no incio do captulo, a santidade de Vicente vinculada ao martrio e ainda aponta para o valor
nascimento e mais nobre por sua f e sua religio.7 Na LA, lemos que ele era dicono do
bispo Valrio, que lhe confiou pregao pela sua facilidade em exprimir-se, enquanto o
reforaria o ideal proposto por Domingos acerca do equilbrio necessrio entre pregao e
3
Ressaltamos que, no relato, no h informaes sobre Vincente ser casto ou virgem, apenas essa colocao
sobre sua pureza e sua abstinncia dos amores imundos. Contudo, se relembrarmos o argumento do supracitado
Jacques Rossiaud, que defende que aquele vinculado ao sagrado deveria abster-se do sexo, visto como a poluo
suprema por afast-lo do divino; podemos supor que o personagem era virgine. ROSSIAUD, Jacques.
Sexualidade. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio Temtico Medieval. So Paulo/
Bauru: Imprensa oficial do Estado/ EDUSC, 2002, 2v, V.2, p. 477-483.
4
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit., p.188.
5
Jacopo destaca que alguns defendem que foi Agostinho quem descreveu o martrio de Vicente, posteriormente
versificado por Prudncio, o que demonstra a sua preocupao em apresentar as fontes utilizadas.
6
Ibidem
7
Ibidem.
8
Ressaltamos que Daciano s quis v-los por achar que eles estariam mortos de fome, contudo encontrou-os
sadios e alegres.
135
-136-
seguirem outra religio, o bispo respondeu em voz baixa e Vicente chamou-lhe a ateno,
pedindo que soltasse a voz e falasse com liberdade, oferecendo-se para faz-lo em seu lugar.
Valrio aceitou a oferta, afirmando que h muito tempo j havia nomeado o dicono para falar
por ambos.
Ento, Vicente respondeu a Daciano que eles no sacrificavam aos deuses, porque
para os cristos uma blasfmia recusar-se a prestar Divindade a homenagem que lhe
devida.9 Dessa forma, ele desqualificou os deuses pagos afirmando que eles no eram
divinos. Por causa disso, o dicono foi considerado um jovem presunoso e arrogante e foi
Aps ter seu corpo todo desconjuntado no potro,11 Daciano perguntou-lhe: Que tal
est agora seu miservel corpo, Vicente? Este, sorrindo, respondeu: Como sempre desejei.12
Wolf,13 de Alison Gulley14 e de Evelyn Birge Vitz,15 que defendem que o mrtir construdo
o com todo tipo de tormentos se ele no renegasse suas idias, ao que ele respondeu:
como estou feliz! Ao fazer o que pensa que me fere, voc faz o maior
benefcio. Anda miservel, lana mo de todos os recursos maldosos e ver
que quando sou torturado tenho, com a ajuda de Deus, mais fora do que
quem me tortura.16
9
Idem, p.189.
10
O dominicano sublinha que Daciano intencionava fazer desse castigo um exemplo para os outros cristos.
11
Hilrio Franco Jr., na edio da LA aqui utilizada, descreve, em nota, esse instrumento de tortura romano
como sendo constitudo por uma armao de madeira, cujo formato era semelhante a um pequeno cavalo e, por
causa disso, o nome potro equuleum. Ibidem.
12
VARAZZE, Jacopo. Ibidem, p.189.
13
WOLF, Kristen. The Severed Breast: A Topos in the Legends of Female Virgin Martyr Saints. Archiv fr
Nordisk Filologi, v.112, p. 97-112, 1997.
14
GULLEY, Alison. Heo Man Ne Waes": Cross-Dressing, Sex-Change, and Womanhood in Aelfric's Life of
Eugenia. Mediaevalia: A Journal of Medieval Studies, v. 22, n.1, p.113-131, 1998.
15
VITZ, Evelyn Birge. Gender and Martyrdom. Medievalia et Humanistica, New Series, v. 26, p.79-99, 1999.
16
VARAZZE, Jacopo. Ibidem.
136
-137-
Nesse sentido, h o destaque para a superao dos limites somticos e o desejo do mrtir pelo
Segundo a LA, Daciano, descontrolado, chicoteou seus carrascos, afirmando que eles,
que haviam superado parricidas e adlteros, foram vencidos por Vicente, que ironiza tal
enfiaram pentes de ferro at o fundo das costelas, mostrando as entranhas de Vicente. Ento,
Daciano pediu para que o santo apieda-se de sua juventude, ao que ele retrucou:
Jacopo narra que, durante as torturas, Vicente manteve-se com os olhos voltados ao
Cu, orando:
17
GRIG, Lucy. Torture and truth in late antique martiriology. Early Medieval Europe. V.2, n.4, p.321-336, 2002.
18
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit., p.189.
19
Idem, p.189-190.
20
GRIG, Lucy. Op. Cit., p.324.
21
Essas associaes esto presentes tambm no fechamento do captulo, que composto com citaes de
Prudncio, que, como assinalamos anteriormente, teria colocado em versos a vida de Vicente, afirmando que
Vicente falou para Daciano: Tormentos, prises, garfos, lminas crepitantes de fogo, e, enfim, a morte, que a
ltima das penas, tudo isso brincadeira para os cristos. VARAZZE, Jacopo, Op.Cit., p.191.
137
-138-
era que quanto maior a dor sofrida, maior era a possibilidade da vitria do cristianismo e da
Segundo Lucy Grig, a inverso tambm ocorreria pelas relaes traadas durante o
julgamento, porque o criminoso seria torturado para confessar o crime, enquanto o cristo
teria que neg-lo. A confisso seria a reafirmao de sua f.22 Alm disso, ressaltamos que so
os suplcios que colocam o mrtir na sua posio original de testemunha: ele no morre por si,
Daciano, ao saber do ocorrido, disse aos carrascos que Vicente pode superar as
torturas que vocs lhe infligem,24 reconheceu-se vencido como desejava o dicono. J
destacamos que a marca da vitria e da superao do santo norteia toda construo do relato e,
com isso, Jacopo elabora uma relao de oposio, quase que caricata, entre o cristo vitorioso
Ento, Daciano ordenou que o colocassem em uma masmorra escura, deitado no cho
coberto por cacos de vidro pontiagudos e com os ps pregados em uma estaca, pedindo que o
avisassem quando ele morresse. Aps terem feito isso, os carrascos foram at a masmorra,
onde observaram entre as frestas da parede que as penas haviam virado glrias:25 a escurido
ele ordenou que levassem Vicente para repousar em uma cama macia, sobre as almofadas
mais confortveis do reino para que ele se recuperasse. Segundo o relato, to logo foi
carregado e colocado em uma cama macia morreu por volta de 287. Segundo Jacopo, o
22
GRIG, Lucy. Idem, p. 328.
23
Como, por exemplo, atravs das citaes de Prudncio, que informa que, durante as torturas, Vicente,
deliciando-se com as mos ensangentadas, ria dos carrascos que no conseguirem enfiar mais fundo os garfos
de ferro em suas costelas.VARAZZE, Jacopo, Idem. p.189.
24
Ibidem.
25
Idem, p.190.
26
Para mais informaes sobre a importncia da apario anglica, Cf. FAURE, Philippe. Op.Cit..
138
-139-
presidente do tribunal imperial afirma que fazia isso porque se o mrtir morresse em meio aos
suplcios, ele seria mais glorioso. Ao apresentar esse reconhecimento por parte do presidente
temeroso das repercusses da morte de Vicente, ou seja, de seu martrio. nesse sentido que
as relaes de poder esto invertidas: quanto mais violentas fossem as penas somticas, maior
pelo martrio, a outra f. Alm disso, acreditamos que dessa forma o papel simblico do
mrtir enaltecido.
O relato continua com o presidente do tribunal imperial afirmando que queria vingar-
se em Vicente depois de sua morte, destruindo seu corpo, pois, ao menos assim, ele venceria o
mrtir. Logo, ordenou que colocassem o corpo do santo em um campo, exposto s criaturas
selvagens, mas ele foi guardado por anjos e por um corvo, ave voraz por natureza.27 Ao
saber disso, Daciano reconheceu que no superaria o santo nem na morte, ento ordenou que
ele fosse jogado ao mar para ser devorado por criaturas e nunca ser encontrado. Contudo, a
correnteza arrastou-o at a margem, onde seu corpo foi encontrado por uma senhora e alguns
cristos que tiveram uma revelao a esse respeito. Eles o sepultaram honrosamente.
natureza, j que os animais selvagens protegeram o santo e a correnteza levou seu corpo para
a margem, para que ele fosse encontrado e sepultado honradamente por um grupo de cristos.
27
Ibidem.
139
-140-
alcanou o mrito do martrio ao resistir aos suplcios em nome da f. Tal questo reforada
com uma citao de Ambrsio que resume as torturas sofridas pelo santo, afirmando:
Vicente foi torturado, espancado, flagelado, queimado, mas no vencido em sua coragem de
tortura, e celebra a cada um desses episdios. E ele vence vivo e vence morto, neste ltimo
caso com a interveno divina que orquestra a natureza e os animais para proteo do corpo
santo e com a apario angelical para guard-lo e proteg-lo. Assim, ele simboliza
com uma forte e marcada associao do somtico em prol da salvao da alma. Assim, estaria
28
Idem, p.191.
29
Ibidem.
140
-141-
transformao de suplcios em deleites.30 Em suma, ele aquele que vence todas as torturas
fortalecido pelas torturas, triunfando sobre os seus carrascos e perseguidor, zombando das
torturas somticas que lhe eram infringidas e do prprio Daciano. Os seus triunfos so uma
Segundo o estudo etimolgico feito por Jacopo, o nome Jorge viria de geos,
que o dominicano associa com a sua carne. Citando Agostinho, no livro Sobre a Trindade, a
boa terra pode estar no alto das montanhas, o que convm ao pasto, nas encostas temperadas
das colinas, para as vinhas; ou nas plancies, para os cereais. A partir desse apoio em uma
autoridade eclesistica, lemos o argumento de que o beato foi como a terra alta por desprezar
as coisas baixas e exaltar as puras, foi como a terra temperada devido descrio com o vinho
da eterna alegria, foi como a terra plana pela humildade eu produz frutos de boas obras.31
Segundo o relato, Jorge tambm poderia advir de gerar, sagrado, e de gyon, areia,
sendo areia sagrada pelo peso de seus costumes, miudeza na sua humildade e secura na sua
volpia carnal. Um terceiro sentido viria de gerar, sagrado, e gyon luta, representando
30
POUCHELLE, Marie-Christine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
31
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit., p. 365.
141
-142-
lutador sagrado e associando a sua batalha com o drago e com o carrasco. Nesse sentido,
O ltimo significado de Jorge resultaria de gero que seria peregrino, gir, cortado,
e ys, conselheiro, porque ele foi peregrino em seu desprezo pelo mundo, cortado em seu
para seu desapego ao mundo, uma identificao do beato como mrtir e a sua atuao como
pregador. Acreditamos que essa nfase visava exortar os irmos da Ordem dos Irmos
Pregadores
desse santo foi considerada como apcrifa pelo conclio de Nicia. Essa afirmao evidencia a
eclesistica e destacando seu carter de verdade. Essa atitude vincular-se-ia ao contato que ele
algumas certificam que Jorge sofreu o martrio sob os imperadores Diocleciano e Maximiano,
outras j defendem que foi sob o imperador persa Diocleciano e na presena de oitenta
generais, e, por fim, h uns autores que alegam que foi sob o governador Daciano, sob o
imprio de Diocleciano e Maximiano, enquanto o calendrio de BEDA diz que ele foi
existentes, sem posicionar-se frente a elas nesse momento narrativo, fazendo isso ao fim do
32
Ibidem.
33
Ibidem.
142
-143-
Segundo a LA, Jorge tinha ido a Silena, cidade da provncia da Lbia, onde habitava,
nas redondezas, um drago feroz que afugentava aqueles que tentavam derrot-lo. Para
habitante, de qualquer sexo, escolhido por sorteio.34 Depois de um tempo, foi sorteada a nica
filha do rei. Este, desesperado, pediu que os citadinos pegassem todo seu ouro, prata e metade
Diante dessa proposta, os citadinos reclamaram que seus filhos haviam sido
sacrificados devido ao edito do rei, logo, ou a sua filha era levada para ser devorada pelo
drago ou ele perdia seu povo. Diante disso, o rei pediu oito dias para lamentar o destino dela.
Ao final desse tempo, somos informados que a populao foi ao castelo exigir que a promessa
fosse cumprida e o soberano lamentou no ter a chance de ter netos de estirpe real. Segundo o
Jacopo narra que o beato Jorge, que passava pela regio, ao v-la chorar, perguntou o
porqu das lgrimas. Ela pediu para que ele montasse em seu cavalo e fugisse para no morrer
com ela. Pedindo calma, ele indagou a jovem sobre o que toda aquela gente esperava ver.35
Ento, a moa explicou toda a situao e, quando o drago apareceu, suplicou ao tribuno para
ir embora depressa.
atacou o monstro que caiu ferido. Ele falou para a moa colocar o seu cinto no pescoo deste.
Ela o fez e o drago a seguiu feito um cozinho muito manso.36 Ao chegarem cidade, o
povo entrou em desespero, contudo o beato os acalmou avisando que se todos aceitassem o
34
Na verdade, a Legenda destaca que, inicialmente, davam duas ovelhas, contudo foi por falta delas que os
cidados comearam os sorteios para escolher um citadino.
35
Os sacrifcios ocorriam fora aos muros da cidade, onde se encontrava o drago. Na LA, no aparecem
informaes sobre quem Jorge referia-se.
36
Idem, p.367.
143
-144-
batismo, ele mataria a criatura. E nesse dia, 20 mil homens foram batizados, sem contar
gnero de Jorge, pois relaciona a fora fsica e militar do personagem como poder da f crist.
Segundo Juan Antonio Ruiz Dominguez,38 dentre as funes possivelmente atreladas ao sinal-
Ressaltamos que nas obras de Gonzalo de Berceo, estudadas pelo autor, no figura a
associao entre o sinal e a proteo divina, ao contrrio da LA. Essa construo aparece em
muitos relatos, como o de Jorge, enaltecendo a cruz como signo de esperana, proteo e
Aps a sua vitria sobre o drago, para homenagear a bem-aventurada Maria, o beato
Jorge mandou construrem uma igreja, onde sob o seu altar surgiu uma fonte de gua curativa
para os enfermos. Nesse momento narrativo, defendemos que a presena do divino serviria
para atrair fiis para o templo em questo, j que a localizao da cidade colocada no relato.
Aps esse episdio, o rei ofereceu a Jorge uma enorme quantidade de dinheiro, mas
ele no aceitou e mandou que ela fosse doada aos pobres, o que destaca, na narrativa, a sua
caridade e o seu desapego das coisas materiais. Antes de partir, o beato deu quatro conselhos
ao soberano: escutar o santo ofcio, cuidar das igrejas, honrar os padres e lembrar-se dos
37
Ibidem.
38
O autor trabalha com o papel das mentalidades na devoo crist e a construo das funes da cruz e do sinal-
da-cruz nas obras de Gonzalo de Berceo, mas faz consideraes gerais sobre a questo. DOMINGUEZ, Juan
Antonio Ruiz. La devocion a la cruz en la obra de Gonzalo de Berceo. (em prensa) In: CONGRESO MUNDIAL
DE HERMANDADES DE LA VERA CRUZ, 1. Sevilla: Ceira, 1995. p.1-12.
39
Para mais informaes, cf. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1983;
RAMOS, Luis Garca-Guijarro. Reforma eclesistica y rdenes Militares (ss. XI-XIII). In: BENITO, Ricardo
Izquierdo e GMEZ, Francisco Ruiz (coords.). Las Ordenes Militares en la Pennsula Ibrica. Cuenca:
Universidad Castilla-la-Mancha, 2000. V. 1, p.1005-1017; MITRE FERNNDEZ, Emilio. La implantacin del
cristianismo en una Europa en transicin (c. 380-c. 843). In: SEMANA DE ESTDIOS MEDIEVALES, 7,
1996, Njera. Actas... Logroo: Instituto de Estudios Riojanos, 1997, p. 197-215.
144
-145-
contudo centrando-se no martrio sofrido pelo santo. Este recheado de milagres, apoiado nas
Aps relatar uma segunda verso mais curta da histria do drago, Jacopo coloca que
dezessete mil. Na narrativa, somos informados de que muitos dos cristos fraquejaram e
Emocionado com tal fato, Jorge doou tudo que possua aos menos afortunados, trocou
as roupas militares pelas dos cristos, foi viver entre eles, e passou a chamar os deuses gentios
de demnios, pois o Deus cristo fizera os cus. Nesse trecho, acreditamos que Jacopo
pelas ordens mendicantes. Alm disso, ao mencionar a troca das vestes, acreditamos que ele
estaria, metaforicamente, referindo-se ao fato dele deixar de servir um pago e passar a servir
questionou sobre quem ele era e de onde, o que o cristo respondeu. Ele ainda complementou
sua resposta dizendo que, com o auxlio de Cristo, ele se submeteu Palestina, contudo largou
tudo para servir ao Deus do Cu. Daciano40 percebendo que no conseguia demov-lo,
mandou suspend-lo no potro e dilacerar cada um de seus membros com garfos de ferro.
Mandou queim-lo com tochas e esfregar sal em suas feridas e em suas entranhas.41
40
No relato, Jacopo refere-se a Daciano ora como juiz, ora como prefeito.
41
Idem, p. 368.
145
-146-
viso, Jorge fortaleceu-se tanto que os suplcios sofridos pareciam no ter acontecido.
imolar aos deuses atravs de torturas, chamou um mgico para demov-lo de sua f atravs da
magia. Assim, o mgico invocou os seus deuses e misturou vinho com veneno, depois deu
para Jorge, que fez o sinal-da-cruz, bebeu e nada aconteceu. Diante disso, uma dose mais
potente foi feita e, novamente, aps fazer o sinal-da-cruz, o santo tomou o lquido e nada
aconteceu.
a inferiorizao da crena pag, j que os deuses tambm foram invocados, contudo foram
No dia seguinte, Daciano teria mandado colocar Jorge numa roda com espadas de dois
gumes ao seu redor, contudo ela se quebrou e ele saiu ileso. Ento, ele foi condenado a ser
jogado em um caldeiro de chumbo fervente, que aps o santo fazer o sinal-da-cruz e pela
Sublinhamos que o relato no menciona que Jorge teria feito o sinal-da-cruz antes de
ser colocado na roda, e apesar disso ele foi igualmente salvo. Acreditamos que Jacopo estaria
Daciano, vendo que no poderia vencer o santo com suplcios, mudou o seu modo de
persuaso, tratando-o com suavidade e gentileza. Ele afirmou para Jorge que os seus deuses
eram calmos e que o perdoaria, caso abandonasse a f crist. Jorge riu e disse Por que voc
42
Ibidem.
43
Ressaltamos que a no-meno ao sinal-da-cruz tambm pode ser devida grande variedade de fontes
utilizadas pelo compilador ou as diferentes edies realizadas a posteriori.
146
-147-
no falou assim antes de me torturar? Estou pronto a fazer aquilo que me exorta.44 Segundo
o captulo, com essa fala, o mrtir iludiu o juiz, e, dessa forma, h um destaque para o uso da
Jorge foi levado para o templo, onde Daciano convidou a cidade inteira para ver o
cristo rebelde imolar aos deuses, demonstrando satisfao em t-lo subjugado. No entanto,
diante de todos, o mrtir pediu ao Senhor para destruir o templo e as imagens dos dolos por
completo. No mesmo instante, caiu o fogo do Cu sobre o templo, queimando-o com seus
deuses e seus sacerdotes. A terra entreabriu-se e tragou tudo o que restara.45 Nessa passagem,
representado pelo mrtir, sai vitorioso, j que, com apenas um pedido, o cristo foi abenoado
Objetivando conferir um tom de veracidade ao relato, Jacopo cita Ambrsio, que teria
dito que, aps tomar conhecimento desse evento, Daciano ordenou que levassem Jorge a sua
presena e o questionou sobre qual foi o tipo de magia que ele usou para cometer tal crime.
Dizendo no crer nisso, o beato tentou enganar o juiz novamente, pedindo que ele o seguisse,
pois ele imolaria aos deuses. Contudo, Daciano no o fez por temer que o beato fizesse a terra
Inicia-se, no texto, um debate entre os dois. Durante o embate, o juiz virou-se para sua
esposa, Alexandrina, e confessou ter perdido para o beato e temer a morte. Ela chamou a sua
ateno ofensivamente, por ele perseguir os cristos, pois eram protegidos por Deus. Dito
Alexandrina foi condenada a ser surrada duramente, pendurada pelos cabelos. Ela
lamentou com Jorge o fato de no ter sido batizada, demonstrando sua preocupao por no
44
Idem, p.369.
45
Ibidem.
147
-148-
ter sido regenerada pela gua do batismo.46 O beato respondeu-lhe que o seu sangue seria
Segundo o relato, no dia seguinte morte de Alexandrina, Jorge foi condenado a ser
arrastado pela cidade. Ele orou ao Senhor pedindo que atendesse a todos os que implorassem
seu socorro, e ouviu-se a voz divina concedendo-lhe o pedido. Terminada a orao, seu
martrio foi consumado e sua cabea cortada48 Nesse trecho, h um forte incentivo ao culto
do santo.
O beato, segundo Jacopo, foi martirizado em 287, sob o prefeito Daciano, durante o
suplcio de Jorge para seu palcio, fogo vindo dos Cus consumiu a ele e a seus soldados.
Jacopo afirma que Gregrio de Tours teria contado que, um dia, um grupo de pessoas s
conseguiu sair de um oratrio onde estavam hospedadas aps deixar algumas das relquias de
So Jorge. Depois, o dominicano faz aluso a Histria de Antioquia. Ele cita que um
conjunto de cristos, rumo a Jerusalm, foi abordado por um belssimo rapaz que lhes disse
que eles estariam protegidos, caso levassem alguma relquia do mrtir. H uma marcada
46
Idem, p.370.
47
Destacamos tambm a importncia dada ao batismo, um dos sacramentos cristos, como veculo de
purificao. Ao todo so sete sacramentos, a saber: Batismo, Confirmao, Sagrada Comunho (Eucaristia),
Matrimnio, Penitncia, Ordem Sacerdotal e Extrema-Uno.
48
Ibidem.
49
Ibidem.
148
-149-
narrados ao citar as suas fontes para conceder-lhes um teor de verdade e valorizar o aspecto
Segundo James B. MacGregor,50 por volta de 1184, Alan de Lille fez um sermo
direcionado aos cavaleiros, defendendo que eles deveriam portar armas espirituais, assim
como as temporais, alm de condenar a violncia para com a Igreja e com os pobres. Em sua
piedade cavaleiras.51 Assim, ao narrar a apario de Jorge em uma Cruzada, acreditamos que
etimolgico feito por Jacopo, em que o ltimo significado do nome do personagem aponta
para a sua identificao como mrtir. O seu gnero construdo atravs da exaltao de sua
pregao, da sua funo social como tribuno, da nfase dada eloqncia do personagem , de
sua caracterizao como santo-guerreiro, protetor dos inofensivos, cuja virilidade ainda
Destacamos que, por ofender os deuses pagos, Jorge foi condenado pelo governador,
sendo que todos os seus suplcios foram desfeitos ou transformados em delcias no caso do
50
MACGREGOR, James B. Negotiating Knithly Piety: The cult of the warrior-saints inthe west, ca. 1070- ca.
1200. Church History. v.73, n.4, jun - 2004.
51
Ibidem, p.320.
149
-150-
tipo de cavaleiro apto para receber a proteo do mrtir. Finalizado com sua decapitao, o
dogmas religiosos.
3. So Marcelino, o papa
romana por nove anos e quatro meses. De acordo com a LA, ele foi capturado por ordem de
Diocleciano e Maximiano. O papa teria se negado a imolar aos deuses, contudo foi ameaado
a sofrer uma srie de suplcios no especificados pelo dominicano e, por medo, ele
ofereceu dois gros de incensos aos deuses pagos. Isso causou grande alegria aos infiis e
Ressaltamos que mesmo no havendo nenhum relato sobre os suplcios sofridos pelo
papa, Jacopo narra que aps estar curado, ele foi levado a julgamento, mas os bispos presentes
disseram-lhe o sumo pontfice no pode ser julgado por ningum, voc mesmo que deve
Segundo o relato, Marcelino, arrependido, deixou o cargo, contudo foi reeleito pelo
povo. Os csares, ao tomarem conhecimento desse fato, o aprisionaram pela segunda vez.
Contudo, o papa, dessa vez, negou-se a realizar sacrifcios e com isso, foi condenado a ser
decapitado.
52
Idem, p.378.
53
Ibidem.
150
-151-
anatematizando previamente aqueles que o fizessem. Seu corpo, segundo a LA, ficou trinta e
cinco dias insepulto. Nessa passagem narrativa, cremos que Jacopo busca destacar a
autoridade e o poder do sumo pontfice, pois, mesmo aps sua morte, sua ordem honrada.54
Ainda segundo a LA, Decorrido esse tempo, o apstolo Pedro apareceu para Marcelo,
papa perguntou-lhe se ele j no havia sido sepultado, ao que Pedro respondeu considerar-se
O papa Marcelo falou que Marcelino havia excomungado todo aquele que o sepultasse
e Pedro perguntou-lhe: Voc no sabe que est escrito Quem se humilha ser exaltado?.56
Dito isso, ele ordenou que Marcelino fosse enterrado aos seus ps, o que foi imediatamente
cumprido. Acreditamos que o objetivo desse curto relato seria o enaltecimento de uma
constri a sua santidade com a visita de Pedro e o comando para que sepultassem Marcelino a
seus ps. A santidade de Marcelino est ligada ao cargo que ocupou e a sucesso de Pedro.
nossa ateno. Se considerarmos o captulo do papa Urbano (p. 462-463), cuja biografia,
que h uma preocupao textual em no explicitar as partes do corpo afetadas nem os tipos de
tortura recebidos pelo papa,57 comparado aos demais relatos. Defendemos que essa estaria
associada a sua prpria funo social e posto hierrquico alcanado dentro da Igreja.
54
Jacopo relata que com o furor hostil reaceso, no ms seguinte foram mortos 17 mil cristos. Destacando a ira
causada pelo arrependimento de Marcelino. Ibidem.
55
Ibidem.
56
Idem, 379.
57
O mesmo cuidado aparece na narrativa sobre Santo Urbano, que foi aprisionado junto a seus irmos. No
captulo, h apenas o relato de um suplcio, que os quatro cristos foram aoitados com chicotes com ponta de
chumbo, enquanto isso papa passou a clamar pelo Senhor.
151
-152-
firme advindo de petros. Dito isso, ele afirma que possvel entendermos as trs
Nessa passagem, podemos destacar a exaltao da pregao unida erudio um dos pilares
da Ordem Dominicana , o enaltecimento de sua virgindade ser completa com corpo e mente
A biografia do personagem inicia nos informando que Pedro era o novo mrtir da
Ordem dos Pregadores,59 natural de Verona. Nascido em uma famlia hertica e infiel,
conforme aparece no relato, Jacopo diz que ele conservou-se isento de seus erros. Aos sete
anos, um tio o questionou sobre o que havia aprendido na escola ao que ele respondeu
rezando o credo.
O tio o repreendeu afirmando que quem criou o cu e a terra foi o diabo e no Deus,60
e os dois iniciaram um debate sobre tal tema. A narrativa esclarece que o menino estava cheio
de Esprito Santo e rebateu os argumentos dados pelo tio que havia recorrido a diferentes
58
Idem, p.387.
59
Destacamos que Jacopo no apresenta nenhuma data relacionada ao martrio do personagem. Somente no fim
do relato, ele narra que, em 1259, em Compostela, um homem chamado Bento foi curado ao rogar por Pedro no
convento dos frades Pregadores. Dessa forma, incentivaria o culto do personagem e atrairia doaes e fiis para
os conventos da Ordem existentes nesse local.
60
Essa concepo estaria associada com a doutrina ctara, que defendia que o homem criado por Deus -
prisioneiro da matria, que est retida no mundo criado por sat. RIBEIRO JR., Joo. Pequena Histria das
heresias. Campinas: Papirus, 1985. p.73.
152
-153-
autoridades. Ao narrar que, ainda criana, Pedro falava com o tio cheio do Esprito Santo,61
marcado pela presena de Deus que, por dirigir tudo, evitou que o menino fosse retirado da
escola como era vontade de seu tio. Em suma, acreditamos que a marca de sua santidade
encontrar-se-ia evidenciada nos muitos milagres cometidos em vida e em morte, com uma
presena divina, colocando seu conhecimento como superior educao de seu tio, que pede
para o pai de Pedro retir-lo da escola, pois temia que o menino seguisse a prostituda Igreja
No relato, h a meno de que, como tudo dirigido pela mo de Deus, o pai de Pedro
Sublinhamos o destaque dado interveno divina, que teria orquestrado para que o jovem
permanecesse na escola.
No somos informados quando, apenas tomamos conhecimento que, aps tal episdio,
Pedro no se sentia seguro morando com a famlia e, por tal razo, juntou-se a Ordem dos
narrativa, h o destaque para ele ter ficado trinta anos na Ordem e alcanado a honra de ser a
pedra de Cristo.
Dito isso, lemos uma listagem das virtudes do personagem com enaltecimento do seu
afastamento das coisas terrenas e da ociosidade; dos seus estudos, viglia e leitura; da sua
61
Acreditamos que Jacopo, ao colocar o debate travado entre o infante Pedro e seu tio, realiza um paralelo com o
episdio da vida de Jesus no qual ele debateu, no templo, com os sbios com grande eloqncia ainda quando
criana, cf. Lc II, 22-52. BBLIA SAGRADA. Pe. Antnio Pereira de Figueiredo (trad.). So Paulo: DCL, 2006.
62
Jacopo se refere ao tio de Pedro como sendo outro caifs, afirmando que ele teria predito o que iria
acontecer. Acreditamos que ele estaria fazendo aluso ao papel de inquisidor de Pedro e traando outro parelo
entre o santo e Jesus. Segundo o livro de Joo II, 49-52, Caifs era um sumo sacerdote que profetizou que Jesus
iria ser morto pelo povo, assim como Pedro, atacado por um herege enquanto exercia a funo de inquisidor.
63
No captulo, Jacopo relata esse acontecimento citando uma passagem de uma carta do Papa Inocncio: O
bem-aventurado Pedro ainda na adolescncia abandonou o mundo para evitar os perigos e entrou na Ordem do
Frades Pregadores. Idem, p.388.
153
-154-
a refutar os dogmas envenenados por alguma doutrina hertica. A seguir, h mais uma nova
relao de qualidades e de elogios ao santo. Acreditamos que essa exaltao, seguida das
virtudes do personagem, estaria vinculado ao fato dele ser um dominicano, assim seria uma
exaltao da ordem. Jacopo ressalta o desejo do personagem em morrer por sua f como
mrtir e orava todas as noites pedindo tal beno e que seu desejo no foi frustrado.65
Jacopo afirma que a biografia de Pedro foi recheada por numerosos episdios
milagrosos,66 dentre os quais destacamos alguns ocorridos em vida, no qual h encontros com
hereges. O primeiro foi um encontro com um bispo hertico67 que havia sido preso pelos fiis.
Nesse relato, o personagem desafiado pelo bispo a conseguir fazer aparecer uma nuvem para
proteg-los do Sol com a fora de sua f. Ele responde que se o heresiarca prometesse abraar
a f catlica, ele o faria. Aps orar por uma hora e fazer o sinal-da-cruz, uma nuvem no
formato de uma borboleta cobriu os cus, cobrindo o seu povo do Sol. Ressaltamos que, nesse
Em outro episdio, lemos sobre uma peste hertica que contaminava a Lombardia e
outras regies. Assim, diversos inquisidores dominicanos foram enviados para combat-la.
Ao relatar que o sumo pontfice encaminhou Pedro para l com plenos poderes para combater
a heresia como inquisidor, Jacopo argumenta o que torna um pregador virtuoso, defendendo o
equilbrio entre prdica e erudio. Ele afirma que o mrtir foi escolhido:
64
Ibidem.
65
Idem, p.390.
66
No captulo sobre Pedro so narrados cinco milagres em vida sendo um relacionado aos hereges e quatro a
curas.
67
Ressaltamos que o dominicano no especifica qual a heresia. Podemos supor, porm, que se tratava dos
ctaros, por serem os principais rivais da ordem no perodo. Relembramos que somente aps Domingos
converter um ctaro ao cristianismo que ele teria decidido fundar uma organizao que suprisse a Igreja com
pregadores qualificados. Alm disso, a organizao da hierarquia ctara semelhante eclesistica, rivalizando
nesse ponto tambm.
154
-155-
Ressaltamos que a narrativa continua com o mesmo objetivo elogioso de exaltar o tipo de
perseguio deste ao afirmar que os hereges no resistiam sua sabedoria e ao Esprito San-
uma citao de uma carta Inocncio.70 Segundo a narrativa, ao sair da cidade de Como,71 o
prior Pedro direcionou-se a Milo para atuar contra os herticos. A seguir, lemos que
conforme o mrtir havia professado, durante uma pregao,72 ele foi atacado por um herege
cruel contra o manso, o mpio contra o piedoso, o furioso contra o calmo, o desregrado contra
o modesto, o profano contra o santo.73 Nesse trecho, Jacopo elabora discursivamente dois
personagens diametralmente opostos: de um lado o santo com todas as suas virtudes que so
recebe golpes terrveis com a espada na cabea. A espada fica molhada do sangue daquele
68
Idem, p.390.
69
Nenhum deles podia resistir sua sabedoria e ao Esprito Santo que falava por sua boca (Ibidem).
70
Destacamos que Jacopo no especifica qual o documento.
71
Como uma provncia da Lombardia.
72
Na parte final do captulo, reservada aos milagres do santo, esse episdio narrado: No domingo de ramos,
Pedro pregava em Milo diante da enorme multido de pessoas dos dois sexos, quando disse publicamente em
voz alta: Sei com certeza que os hereges tramam minha morte e que at dinheiro foi dado para isso, mas faam
o que faam, eu os perseguirei mais estando morto do que vivo (Idem, p.399). E aps seu martrio, de fato,
Jacopo relata acontecimentos milagrosos contra hereges procurando conceder credibilidade s palavras do mrtir
e reserva um extenso pargrafo recheado de comparaes que buscam reafirmar que ele fora mais voraz ainda
depois de morto.
73
Idem, p.391.
155
-156-
homem venervel, que no procura evitar o inimigo, ao contrrio, oferece-se como vtima que
encaixar-se-ia no argumento da autora Lucy Grig,75 j citada, que defende a exacerbao das
torturas, por parte dos mrtires, como forma de enaltecer a demonstrao da vitria crist.
Durante todo esse suplcio, Jacopo narra que Pedro no se queixa, no murmura,
suporta tudo com pacincia, encomendando-se: Senhor, entrego meu esprito em suas
mos.76 Acreditamos que ao narrar que o inquisidor mantm sua tranqilidade, Jacopo
destaca o desejo pelo martrio do personagem que no se desespera diante das maceraes,
pelo contrrio. Alm disso, essa passagem tambm serviria de incentivo aos irmos
inquisidores.
Por fim, o beato do Senhor recitou o smbolo de f antes do carrasco enfiar um punhal
em seu flanco.77 Segundo a LA, o responsvel pelo martrio de Pedro foi capturado por fiis.
Jacopo narra que, no dia de seu martrio, Pedro foi confessor, profeta, doutor e mrtir,
explicando cada um desses aspectos. Segundo ele, foi confessor, porque no meio dos
tormentos proclamou sua f constante em Cristo, e porque naquele mesmo dia tinha, como o
forma, ele ressalta o papel do beato como pregador o que, de certa forma, valoriza a Ordem
personagem tambm aparece na explicitao do seu papel como doutor, porque enquanto
estava sendo atacado ensinou a doutrina verdadeira recitando em voz alta o smbolo da f.79
74
Ibidem.
75
GRIG, Lucy. Op. Cit.
76
VARAZZE, Jacopo. Ibidem.
77
A seguir, somos informados que o beato estava acompanhado por um frade dominicano que tambm foi
atacado e morto.
78
Ibidem.
79
Ibidem.
156
-157-
Ele foi mrtir por ter derramado o seu sangue para defender a sua f, o que indica a
concepo de martrio de sangue de Jacopo. Alm disso, foi profeta pelo episdio em que
seus companheiros afirmaram no ter como chegar a Milo naquele dia referindo-se ao dia
do martrio e Pedro disse que eles ficariam em So Simpliciano. Aps o seu martrio, a
multido que fora velar seu corpo no permitiu que ele fosse levado ao convento e o beato foi
Destacamos que, na LA, aps essa passagem, h uma analogia entre o martrio de
Ressaltamos que Pedro Mrtir faleceu em 1252, sendo canonizado no ano seguinte. Segundo
James Ryan,81 no sculo XIII havia uma certa resistncia da Igreja em canonizar os novos
mrtires por no endossar seus cultos, afirmando que the Roman Church not only insited on
close scrunity before endorsing the cults of those killed while trying to convert infidels; it also
Dessa forma, o autor argumenta que apesar da Igreja ter endossado poucas
para servir de incentivo aos inquisidores que poderiam estar sob ameaas.83
Segundo o texto, a incluso do beato Pedro no catlogo dos santos foi celebrada com
um captulo em Milo pela Ordem Dominicana. Os irmos queriam realocar o corpo do santo
cheiro, mesmo aps um ano enterrado. Ele foi posicionado em um alto plpito para que os
Desse momento narrativo at o final so descritos trinta milagres, alguns pelo sumo
pontfice e outros por pessoas que os testemunharam; destes, treze so relativos cura
80
Jacopo analisa, comparativamente, os motivos destes, os carrascos, o momento temporal em que cada um
ocorreu, o que cada um teria dito, o preo pago pela morte de ambos e a conseqncia dela. Sendo que a de
Pedro teria sido a converso de milhares de herticos.
81
RYAN, James. Missionary saints of High Middle Ages. Martyrdom, Popular veneration and Canonization.
The Catholic Historical Review, v. 90, no1, p.1-28, jan./ 2004.
82
A Igreja Romana no s insistiu em atentos exames antes de aprovar cultos daqueles que morreram tentando
converter infiis; ela tambm se recusou a abrir processos que poderiam levar a canonizao. Ibidem, p.2.
83
Idem, p.4.
157
-158-
destacamos que duas dessas foram alcanadas graas s suas relquias, o que seria um forte
incentivo para seu culto. Inclusive, um evento milagroso foi contra trs moas que falavam
mal do culto, j os outros se subdividem em: dois relacionados com ressurreio; quatro com
hereges; cinco ligados ao combate contra demnios; a prpria viso de Pedro sobre sua morte;
incio do sculo XIII, certos milagres continuavam indispensveis para que um servidor de
Deus pudesse ser proclamado santo pelo papa;85 destacando que os telogos desse perodo
passaram a considerar aqueles com interveno direta de Deus como sendo verdadeiros.
aproximamos mais da argumentao de Sofia Boesch Gajano,86 que afirma que, a partir do
sculo XI:
84
VAUCHEZ, Andr. Milagre. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio Temtico
Medieval. So Paulo/ Bauru: Imprensa oficial do Estado/ EDUSC, 2002, 2V, v.2, p. 197-211.
85
Idem, p.208.
86
GAJANO, Sophia Boesh. Uso y abuso de los milagros em la cultura de la Alta Edad Media. Little, L.L.,
ROSENWEIN, B. (eds.). La Edad Media a debate. Madrid: Akal, 2003. p.506-520.
87
Ibidem, p.512.
158
-159-
cristianismo.88
Alm disso, cabe destacarmos que o relato de distintos milagres do santo estaria
vinculado ao fato dele ser um dominicano e um dos poucos mrtires canonizados no sculo
Nesse ponto, defendemos que a exaltao de suas qualidades e os elogios feito por
E devido a tais virtudes e sua sabedoria que ele foi atacado por um herege
contratado. O curto relato de seu martrio apenas evidenciaria o desejo do beato por esse,
negativa do herege oposta a de Pedro ; e, serviria para novos elogios a suas virtudes e
qualidades.
santidade, pois ele foi um dos poucos santos canonizados nesse perodo. No relato, Pedro
identificado como mrtir desde a interpretao aos significados de seu nome, mas o que se
Ordem dos Dominicanos, como inquisidor. Para essas aes, Pedro atuou com eloqncia,
firmeza e coragem.
88
Idem, p.209.
159
-160-
santidade de Pedro por ele ter sido o primeiro mrtir dominicano a ser canonizado, ainda mais
Essa argumentao no apenas valeria como apoio aos sermos dos irmos pregadores
tambm o estmulo ao culto do novo santo da Ordem Dos Irmos Pregadores atravs dos
5. So Tiago, o cortado
O captulo sobre So Tiago no inicia com um estudo etimolgico, mas sim com a sua
nomeao como mrtir. No comeo, aprendemos que ele era natural do pas dos persas,
oriundo da cidade de Epale, era de origem nobre, e ainda mais nobre por sua f.89 Segundo o
relato, ele possua pais e esposa muito cristos, no entanto ele deixou-se seduzir por amor ao
sua submisso a um mortal, desobedecendo assim o juiz dos vivos e dos mortos.90 Elas
tambm o informaram que se tornaram como estranhas e no mais morariam com ele. Aps
ler tais palavras, Jacopo nos conta que Tiago teria refletido que se sua famlia o via de tal
forma, como seu Deus o veria? Ento, arrependido e aflito por seu erro,91 mandou um
89
Idem, p.974.
90
Ibidem.
91
Ibidem.
160
-161-
esposa do santo, como tambm o fato de ter sido, justamente, atravs da repreenso feita por
elas, que Tiago percebeu seu equvoco. Nesse sentido, essas duas personagens, aparentemente
secundrias no relato, possuem um papel fundamental no martrio sofrido por ele, narrado
argumenta sobre o uso de smbolos femininos por personagens masculinos, fenmeno que
Nesse sentido, quando o santo foi repreendido pela sua me e sua esposa, ele foi
perodo, as mulheres que deveriam ser controladas e chamadas ateno devido a sua
inerente fraqueza. Com isso, defendemos que o mrtir humilhado e inferiorizado. Tiago
O prncipe convocou Tiago e questionou-o se era nazareno,93 o que ele confirmou sob
a ameaa de distintas e mltiplas torturas. Nesse momento, ele defende a existncia da vida
eterna, afirmando que ns [nazarenos] no tememos a morte, pois esperamos passar da morte
vida.94 Diante de tal resposta, o prncipe, aconselhado por amigos, condenou Tiago a ser
Ao ver que muitas pessoas choravam por ele, Tiago pediu-lhes para que no
chorassem j que ele ia para vida,95 mas que lamentassem por eles prprios, que
92
BYNUM, Caroline W. La utilizacin masculina de los smbolos femeninos. In: LITTLE, Lester K. e
ROSENWEIN, Brbara H. (eds). La Edad media a debate. Madrid: Akal, 2003. p. 431-449.
93
O termo nazareno costumava ser utilizado para se referir aos seguidores de Cristo, pois ele havia habitado em
Nazar, na Galilia.
94
Jacopo de Varazze. Op.cit.
95
Idem, p. 975.
161
-162-
O captulo sobre Tiago peculiar por ele narrar a biografia de um personagem que por
adorao ao Prncipe dos Persas, imolou aos deuses. Contudo, aps ter sido repreendido por
sua me e esposa, percebeu o erro cometido e enviou uma mensagem afirmando ser cristo e,
Ao ter o primeiro dedo de sua mo decepado, o carrasco pediu para Tiago obedecer ao
Prncipe, que ele lhe daria medicamentos e o pouparia. Ele retrucou com uma analogia aos
ramos da videira, afirmando que estes, conforme cortados, produzem novos galhos. O santo
concluiu afirmando que o cristo fiel est enxertado na verdadeira vinha que Cristo.
Conforme o carrasco cortava-lhe os dedos, ele os oferecia ao Senhor; e, na vez do quinto, ele
destino sagrado.
Aps esse suplcio, os carrascos novamente pediram para que Tiago poupasse sua vida
e nem se entristecesse em ter perdido uma mo, pois muitos nessa condio possuam muitas
riquezas. Ele respondeu traando uma metfora com a ovelha. Primeiro, afirmou que o animal
tosquiado por inteiro e no apenas em uma metade. Completando, disse que se este ser
irracional quer ser tosquiada por inteiro, ento ele, ser racional, no poderia desdenhar ser
Durante seu suplcio, Tiago evidencia e exalta sua f, reafirmando saberes teolgicos.
Como no oitavo dia foi circuncidado Jesus, como no oitavo dia circuncidam-
se os hebreus a fim de admiti-los nas cerimnias legais, ento faa, Senhor,
com que o esprito de seu escravo se separe desses incircuncidados que
conservam sua mcula, a fim de que eu v at voc e veja sua face, Senhor.97
96
Ibidem.
97
Idem, p.976.
162
-163-
Ele faz o mesmo quando lhe decepam o nono e o dcimo dedos,98 dizendo:
ele, quando cortaram o polegar do seu p direito, falando que o p de Cristo foi perfurado e
dele saiu sangue. A sua martirizao nos apresentada como fonte de jbilo do personagem
que afirma categoricamente que esse era um grande dia, pois iria se encontrar com Deus.
Tiago disse: Por que est triste, alma minha, por que se perturba? Tenho esperana em Deus,
confio Nele, que meu Salvado e meu Deus.101 Ao narrar o dilogo do mrtir com a alma,
acreditamos que Jacopo objetivaria discorrer sobre a superao inerente aos santos dos limites
Jacopo constri uma acepo somtica inferior a alma. Este pressuposto pode ser
que ele falou: Destruam esta velha casa, pois me preparam uma mais esplndida.102
A cada corte de um pedao de seu corpo, o santo oferece-o a Deus e o percebe como
uma beno e, por vezes, ri das torturas e enaltece o poder de sua f. Contudo, depois, passa a
suplicar por ajuda para ter a alma liberta da priso, referindo-se ao seu corpo semimorto. Essa
98
Aps ter os dedos das duas mos cortados, os que assistiam aos suplcios pediram para que Tiago falasse o que
o cnsul desejasse, pois existiriam mdicos capazes de trat-lo. Ele respondeu que aquele que pe a mo no
arado e olha para trs no est qualificado ao reino de Deus. Jacopo descreve que, nesse momento, os carrascos,
irritados, comearam a cortar os dedos dos ps.
99
Jota tambm a dcima letra do alfabeto.
100
Ibidem.
101
Ibidem.
102
Ibidem.
163
-164-
A partir dessa passagem, supomos que as mudanas das reaes do personagem em relao
suplcios a partir dos argumentos de George Duby, no livro Idade Mdia, idade dos homens:
do amor a outros ensaios.104 O autor levanta duas compreenses medievais relacionadas com
a dor. Primeiro, ele ressalta que o aconselhvel para o homem seria no demonstrar a dor
fsica para no ser rebaixado condio feminina. Em segundo, ele destaca que o sofrimento
possuiria, justamente, por essa degradao, um valor positivo, visto como um sinal de
correo.
103
Idem, p.977.
104
DUBY, George. Idade Mdia, idade dos homens: do amor a outros ensaios. Jnatas Batista Neto (trad.).So
Paulo: Cia. das Letras, 1989.
105
POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
106
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4,
p.11-46, 2002
164
-165-
humana da corporalidade, logo h uma valorizao dos mrtires e dos ascetas. Nesse sentido,
defendemos que atravs dos suplcios que a santidade de Tiago estabelecida e confirmada.
Retornando ao relato, aps Tiago fazer o supracitado pedido de auxlio a seu Senhor,
peculiar, rompendo com o modelo hegemnico de masculino cristo. Na narrativa, ele fraco,
adora os deuses pagos por um amor mundano por um prncipe pago. Depois, ele
repreendido por duas figuras femininas que o fazem recobrar o juzo e arrepender-se do
pecado cometido.
Em outras palavras, suas aes estariam mais vinculadas s caractersticas vistas como
auto-controle, dominado por sentimentos e desejos. a sua dor que atesta a salvao de sua
Os seus carrascos e aqueles que viam seus tormentos suplicaram para que ele fizesse o
lhe era pedido para ser poupado, afirmando que mdicos poderiam trat-lo e que muitos com
apenas uma mo eram cheios de riquezas apelando assim para o aspecto mundano. As suas
reafirmando saberes teolgicos, como quando lhe cortaram o oitavo, nono e dcimo dedos.
107
Lembramos que por amor ao Prncipe, ele imolou um incenso aos deuses.
165
-166-
Alm disso, seu relato possui uma especfica relao com o sofrimento somtico para
ratificar o destino de sua alma, como quando lhe deceparam o quarto e quinto dedos do p
direito. O mesmo pode ser percebido ao cortarem o segundo dedo do seu p esquerdo, ao que
ele pediu para que destrussem sua velha casa, pois uma morada mais esplendorosa o
aguardava. Assim, o corpo apenas um receptculo da alma, ou ainda, uma priso desta,
Nesse sentido, Tiago, diferente dos outros mrtires, no age com a razo, fraco e
possuem o processo de genderificao marcado pela funo social exercida, seja dicono,
tribuno, inquisidor dominicano e papa. A nica exceo Tiago, cujo relato no faz aluso a
nenhum cargo ocupado, apenas informa que ele era nobre e possua uma esposa.
onde foi condenado a ser atirado, foi transformado em um banho agradvel. No captulo
apstolo Pedro, que serve para comprovar a sua santidade e destacar a apostolicidade e o
166
-167-
relacionados cura, sendo que em dois episdios as suas relquias funcionaram como veculo
para realizao desses; dois, com ressurreio; cinco, com hereges; cinco ligados ao combate
de demnios; a viso de Pedro sobre sua morte e trs sobre temas distintos. O relato sobre
Tiago o nico, dentre os analisados, que no menciona nenhum tipo de interveno divina e
comprovada e evidenciada atravs da dor infligida nas suas torturas. atravs do sofrimento
que ele purificado e consegue expiar o erro cometido. A punio somtica o reaproximaria
na narrativa de Vicente, em que, mesmo morto, o santo foi cercado de milagres. Quando
Daciano mandou que seu corpo falecido fosse abandonado em um campo para ser comido por
animais, ou quando ordenou que amarrassem uma enorme pedra no defunto para que, jogado
no mar, afundasse. Contudo, no primeiro, ele foi guardado por anjos e protegido por um corvo
e, no segundo, o mrtir foi levado praia, onde foi encontrado por alguns cristos que o
sepultaram.
destes. Sendo que o captulo desse ltimo tambm apresentaria um marcado incentivo s
O captulo de So Vicente teria como finalidade a sua construo como smbolo de vitria,
representando a igreja triunfante. Seu corpo serviria como veculo dessas vitrias,
comprovando-as atravs da sua superao dos carrascos, das torturas e dos instrumentos
167
-168-
crist, e, por conseqncia, da Igreja triunfante, marcadamente viril, forte, mscula face aos
evidenciado na orao final, em que o santo pede ao Senhor para atender a quem implorasse
sua pregao, da sua funo social e da virilidade demonstrada nos relatos sobre seu encontro
com um drago.
papa, por medo, imola aos deuses. Levado a julgamento, os bispos argumentam que ele quem
deveria julgar seus prprios pecados, logo a ausncia de descries acerca das punies
construo de sua identidade de gnero, assim como o de Jorge, feito atravs do destaque
dado a prdica e do seu papel social como inquisidor. Sendo que este concomitante ao de
de sua sabedoria atrelada a sua prdica e utilizadas na perseguio dos hereges de sua ao
contra os hereges, o que exaltaria a Ordem Dominicana. Alm disso, tambm evidenciaria
Afinal, sublinhamos que So Tiago, o cortado, tambm sacrificou aos deuses por
amor ao prncipe no por temor s maceraes e a retaliao de seu erro ocorreu atravs de
168
-169-
um detalhado relato sobre sua punio, com um destaque para seu sofrimento, sem nenhuma
interveno divina.
veculo de sofrimento, diante do qual, ele engrandeceu sua f, louvou o poder de seu Senhor e
cada decepao de um membro de seu corpo, o personagem purificado pela dor, corrige o
erro cometido e comprova sua f e sua santidade. Em uma perspectiva diametralmente oposta,
o fsico, no captulo sobre Vicente, aparece como uma forma de ratificar as vitrias do
personagem, sendo que ele no salvo das torturas, contudo no sofre nada com elas. O nico
milagre que transforma seu suplcio em delcia ocorre quando o santo foi preso, com os ps
pregados.
ao poder advindo destas, atestadas atravs das torturas desfeitas. Enquanto o primeiro sofre,
mas goza das torturas, o segundo salvo de, praticamente, todos os suplcios atravs de
milagres. Destacamos que nas narrativas de Marcelino e de Pedro Mrtir o aspecto fsico no
Conclumos que cada captulo atende a um objetivo de Jacopo, sendo que as relaes
169
-170-
condenando-as e estabelecendo um modelo ideal de pregador para seu combate, que deveria
ser seguido pelos irmos dominicanos. Alm disso, narra episdios milagrosos vinculados s
cruzadas, estabelecendo que a proteo divina ocorreu por causa do cavaleiro: cristo e
protetor dos pobres; da mesma forma, assume um posicionamento frente s contendas entre os
Por fim, ressaltamos o captulo de So Pedro Mrtir, que seria o personagem mais
contemporneo a Jacopo. Por ele tambm ser da Ordem Dominicana, o compilador evidencia
especialmente aos hereges. Alm disso, o motivo de sua morte diferente dos demais, porque
ele no foi perseguido porque a sua religio era a oficial do Imprio, pelo contrrio, Pedro
foi caado por ser Inquisidor, por um herege que o temia. Assim, ele enquadrado na nova
170
CONCLUSO
e da santidade. Para tanto, cumprimos outros objetivos secundrios fundamentais para nossa
pesquisa.
informaes biogrficas sobre seu compilador. Segundo a historiografia, a partir do sculo XI,
uma srie de mudanas ocorreu na Pennsula Itlica incentivando, entre outras coisas, a
vida crist.
movimentos religiosos laicos, frutos de uma busca da vita apostlica, calcada em releituras da
Igreja Primitiva. Assim houve o desenvolvimento das chamadas Ordens Mendicantes e das
A partir de nosso recorte do sculo XIII, estudamos como a LA foi marcada pelas
relaes estabelecidas para/ com a Igreja e a Ordem Dominicana assim como entre essas
Nossa hiptese foi que a escolha desse gnero literrio deveu-se flexibilidade dogmtica
variados.
-172-
ele, dentre os quais, sublinhamos a tenso religiosa em Gnova, no sculo XIII, os discursos
evidenciamos nossa hiptese atravs da anlise dos captulos sobre Santo Ambrsio
poltica, em que Jacopo selecionou relatos e fontes que lhe permitiram argumentar mais
de boa conduta para instruo dos religiosos e leigos e ser uma fonte teologicamente correta
no auxlio na formulao dos sermes para a manuteno dos fis e a converso dos infiis e
hereges.
Acreditamos que Jacopo argumentaria nos relatos o tipo de pregador mais eficaz,
exaltando uma combinao equilibrada entre erudio e ao. Portanto, em nossa opinio, a
LA se caracteriza como uma sequncia de topos sem uma unidade lgica unificadora, ou seja,
cada relato formado por elementos narrativos que no aparecem necessariamente em outro
da mesma forma. E so essas particularidades dos captulos que favorecem o carter didtico
nossa dissertao tratamos de alguns dos discursos com os quais Jacopo poderia ter tido
contato. Defendemos que o dominicano teve como preocupao afirmar valores e posturas
polticas dentro de das relaes de poder das quais participou. Em muito dos relatos da obra, o
172
-173-
equilbrio entre erudio e pregao. De modo similar, ele escolheu narrativas que lhe
oferecessem a abertura para abordar os conflitos entre o papa e o poder civil, buscando
batalhas polticas.
Munidos dessas reflexes sobre Jacopo, o contexto vivido pelo dominicano e a LA,
pesquisamos algumas acepes do tema do martrio. Nosso objetivo foi encontrar caminhos
que nos auxiliassem a compreender a sua retomada no sculo XIII, considerando como ele se
eclesistica como os infiis, hereges, entre outros sob a justificativa de guerra justa, a
promessa de martrio foi um til mecanismo de incentivo aos que morressem em nome de
Deus.
missionrios mendicantes e a guerra santa, sob o ideal de guerra justa, tinham como objetivo a
173
-174-
identificao do cavaleiro cristo, que protegido e auxiliado por Deus. Nos captulos sobre
relato sobre Domingos de Gusmo, visava incentivar aos irmos dominicanos no combate s
exaltao e incentivo das cruzadas com a objetivao do tipo de cavaleiro que seria auxiliado
Assim, Jacopo teria sido influenciado por elementos associados com a retomada do
entre outras coisas, aos inimigos da cristandade como os herticos e os infiis servindo de
qualidade, caracteriza-se como uma seqncia de topos sem unidade homogenizante. Logo,
sendo que a funo/ lugar social o elemento principal de diferena entre o grupo de
notrio que enquanto os homens exercem funes sociais em relao sociedade com os
1
De modo semelhante, no captulo sobre Francisco de Assis, no qual o compilador ressalta a busca pelo martrio
do personagem ao visitar as terras dos infiis.
174
-175-
relao aos homens, sejam pais, maridos ou autoridades. A exceo desse caso Tiago, o
cortado, que identificado apenas como nobre e, num certo sentido, tutelado por
Tambm destacamos o uso dos captulos para desvalorizar as crenas pags, contudo
de formas diferenciadas, seja atravs da apresentao de castigos possveis aos infiis, hereges
aparece na construo narrativa dos personagens nas biografias: mrtires e algozes (sejam
o/a cristo/ como puro/a, racional, correto/a, e o outro, que dominado pela luxria, a
lascvia e o pecado.
Nos relatos das mulheres essa questo evidenciada em uma perspectiva sexual, em
que os corpos femininos so palcos fundamentais das relaes de poder e, em muitos casos,
meritrias do martrio. Hegemonicamente, nos relatos dos homens, o corpo figura como
elemento fundamental nas relaes de poder, mas sendo objetivado como smbolo das vitrias
triunfante.
uma forma totalmente diferente dos demais, por este ser o nico personagem masculino em
que o fsico o caminho para comprovao de sua santidade e para torn-lo meritrio da
coroa do martrio, como nas biografias das mulheres. Outra exceo o caso do papa Urbano.
Nessa narrativa, o corpo no possui nenhum tipo de destaque, o que, acreditamos, deve-se ao
175
-176-
desvantagens de seu sexo, apresentando-se como fortes, sem medos dos suplcios, virginais
e eloqentes. Elas recebem e exercem poder e dominao nos captulos em intensas relaes
de poder.
associao entre o seguimento dos valores da vida crist e a salvao da alma. Acreditamos
que Jacopo defende que apenas ser cristo no garante o caminho da alma para o reino dos
cus. Seguir a f correta era o primeiro passo, complementado com a retido de uma vida
Contudo, isso no significava que possuir esse modo de vida garantia a santidade, porque
ressaltamos novamente que o santo j nasceria com a marca da santidade. Nesse sentido, os
constituintes dela. Flax destaca que a categoria gnero no apenas relacional, mas toca as
relaes entre sexos diferentes, entre indivduos do mesmo sexo, a construo das identidades
Nesse sentido, os discursos construdos acerca dos gneros e das santidades dos personagens
2
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176
-177-
dominicano no combate ao outro : os herticos, infiis ou pagos. Por fim, sublinhamos que
a ao dominicana era direcionada tambm aos fiis, logo, a objetivao dos santos como
modelos de comportamento voltado aos demais cristos marca a LA, em que o discurso
predominante a defesa de uma vida recheada de valores cristos para alcanar a salvao.
177
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186
-1-
INTRODUO
1. Apresentao
Os relatos de Santo Ambrsio e de Santa Eugnia. Ambos foram realizados sob a orientao
desses processos em dois relatos presentes na compilao conhecida como Legenda urea1 a
mbito social por percursos diferentes. Nesse sentido, tanto a afirmao da qualidade divina
Ressaltamos que a importncia dessa etapa na graduao foi dupla para nossa
formao. Alm de aprofundarmos as nossas reflexes acerca dos Estudos de Gnero, tivemos
um maior contato com a obra LA do sculo XIII, compilada pelo dominicano Jacopo de
Varazze. E foi durante as nossas leituras que percebemos a constante e detalhada descrio
Portanto, comeamos a questionar o porqu deste destaque. Seria este parte da retrica
1
-2-
serviam aos interesses da Igreja, no sculo XIII? Como as relaes de poder institudas no
mbito religioso aparecem nos relatos de martrios antigos? Qual o papel das maceraes
somticas dos santos nas construes de uma santidade genderificada? Essas so as principais
questes que permearam nossa pesquisa para as quais elaboramos algumas hipteses
A partir dessas questes iniciais, desenvolvemos nossa pesquisa, cujo objetivo central
foi examinar as estratgias narrativas utilizadas nos relatos sobre os mrtires selecionados
considerando elementos como a posio social ocupada pelo cristo martirizado e o motivo
A temtica martrio foi difundida por obras hagiogrficas, a partir do sculo II,
devido s perseguies aos cristos, o que conferiu outra significao a esse termo grego que
a ser aquele que, apesar de nunca ter visto ou ouvido Cristo em vida, estaria to convencido
Segundo Lucy Grig, no artigo Torture and truth in late antique martiriology,4 o mrtir
era um soldado de Cristo que confrontava a fora do mal, representada, nesse momento, pelo
estado romano. Este personagem desejaria a sua morte, exacerbando as torturas, j que, dessa
forma, quanto maiores fossem os seus sofrimentos, maior seria a demonstrao da vitria
crist coroada com a sua morte. Segundo a autora, os mrtires se tornaram os heris da Igreja
3
Sublinhamos o motivo real do martrio, pois, mesmo nos relatos sobre personagens contemporneos s
perseguies aos cristos, a defesa da f nem sempre era a verdadeira motivao para a execuo.
4
GRIG, Lucy. Torture and truth in late antique martiriology. Early Medieval Europe. v.2, n.4, p.321-336, 2002.
p. 322.
2
-3-
hagigrafos, foram norteados pela unio de quatro noes: a ecclesia, j que sem a Igreja no
haveria o martrio; o dom da vida, pelo mrtir simbolizar a doao da vida em nome de um
amor maior representado pela f; a cristologia, pois deixar-se morrer era seguir o exemplo de
Cristo, que deu a vida pelos irmos; e a defesa da verdade do Evangelho, j que o mrtir no
morre por si, mas para testemunhar sua f diante de seu perseguidor.
destaca Nri de Almeida Souza no artigo Hipteses sobre a natureza da santidade,6 a Igreja
crist caracterizava-se por uma intensa ascese, com a valorizao da exposio do corpo alm
dos limites biolgicos, atravs de penitncias, das maceraes, da abstinncia sexual, dos
jejuns, entre outros, sendo identificada como martrio branco ou espiritual. Ou seja, a vida
asctica mantinha uma proximidade com o martrio de sangue: a superao da dor fsica.
Assim, nos anos iniciais do medievo, os santos eram aqueles que iam alm da condio
desejo por um novo ideal de vida religiosa, acompanhado por uma diferente percepo da
santidade, que dentre outros aspectos, encontramos a retomada do desejo pelo martrio
sangrento, contudo, com uma marcada releitura. O mrtir no era mais o perseguido pela sua
f, mas sim aquele que morria na defesa da cristandade, contra os inimigos da Igreja e da
justia.
5
FISICHELLA, Rino. Martrio. IN: _____. PACOMIO, Luciano & PADOVESE, Luigi (Orgs.) Lexicon.
Dicionrio Teolgico Enciclopdico. So Paulo: Loyola, 2003, p. 467-468.
6
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4,
p.11-46, 2002.
7
Segundo a pesquisadora Brenda Bolton, as mudanas ocorridas a partir do sculo XI, como o aumento
populacional, o crescimento das cidades e do nmero de ofcios especializados, a formao de grupos maiores e
mais dinmicos, a difuso de uma pregao no oficial, o contato com as heresias, entre outros, traziam uma
valorizao do indivduo, o desenvolvimento da religiosidade leiga e a tentativa de retorno vita apostolica
como interpretada a partir do Novo Testamento. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies
70, 1983.
3
-4-
interior do cristo, que estaria disposto a dar a vida em nome da cristandade, caso a situao
seria a continuidade do martrio branco e morte do santo por testemunhar a sua f atravs da
defesa diante dos inimigos da cristandade, que era uma retomada do ideal do martrio de
configuraram-se de acordo com as relaes de poder estabelecidas pela e com a Santa S.8
captulos da mesma obra, com a base terica nos estudos de gnero. Ao efetivar tal proposta
nossa questo de pesquisa, no visa comparar duas obras, mas a construo de dois discursos,
exploramos uma modalidade de Histria Comparada, que rompe com a idia de que s h
Por fim, sublinhamos que como nosso interesse est nos relatos dos martrios da LA,
essa obra no foi examinada integralmente. Portanto, estabelecemos como critrio de seleo
dos relatos a ateno que reservada s descries das penas somticas, j que analisamos a
existncia de uma relao entre a nfase dada s torturas sofridas e a construo da identidade
8
Ressaltamos que, nesse trabalho, destacamos as relaes estabelecidas com os hereges, os infiis e os pagos.
4
-5-
mrtires, aqueles que, na obra, apenas citado o tipo de morte sofrida, aqueles cujo o
como tal. A partir dessa seleo, escolhemos alguns relatos sobre santos e santas, para anlise
e comparao.
distintos lugares ou funes sociais; como soldados, nobres, pregadores, papas e etc. No
enquadradas na sociedade apenas pela sua relao com personagens masculinos, possuindo os
2. Pressupostos tericos
utilizados. Como nosso interesse reside na percepo e no estudo dos processos de construo
9
Blasucci afirma que o testemunho de f que o mrtir fornecia poderia assumir trs distintas formas: diante de
tribunais ou suportando prises e maltratos por causa da f, contudo sem morrer (confessor que era o martrio
incompleto ou incoativo advindo da confisso da f atravs da palavra); atravs de uma vida crist seguida com
perfeita observncia da lei divina (martrio branco, do qual trataremos a seguir); e o testemunho selado com a
morte (martrio perfeito, ou consumado ou de sangue). Contudo afirma que em todas essas modalidades e
significaes de martrio foram acentuadas na relao entre esses personagens e Cristo, j que eles simbolizariam
a extenso do seu sacrifcio de sangue. Como trabalharemos apenas com a ltima expresso de martrio,
tomamos cuidado para no selecionarmos relatos sobre confessores, tambm presentes na LA, j que sofreram
punies somticas como os mrtires. BLASUCCI, Antonio. Martrio, imolao, sacrifcio. In: GUIMARES,
Almir Ribeiro (Org.). Dicionrio Franciscano. Petrpolis: Vozes, 1999. p.416-420.
10
Cabe sublinharmos que as pginas dos relatos referem-se as da edio brasileira realizada por Hilrio Franco
Jr. JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos. So Paulo: Companhia das Letras, 2003.
5
-6-
de santidades genderificadas, nossa base terica encontra-se nos Estudos de Gnero,11 tal
Profundamente influenciada por Michel Foucault, Scott afirma que gnero o saber a
respeito das diferenas sexuais. Scott utiliza o conceito saber aplicando-o, segundo o filsofo,
Essa produo do saber encontra-se no social, logo, consideramos que a concepo de gnero
relaes de gnero na teoria feminista,13 defende que o paradigma identificado como ps-
moderno condio sine qua non para guiar os estudos de gnero. Dessa forma, essa teoria
contesta o aspecto racional e objetivo da cincia, nega sistemas explicativos gerais, no aceita
categorias como homem, mulher, feminino, masculino nem dicotomias como, por
hegemnico construdo sobre o gnero era caracterizado por uma viso misgina. Segundo
11
Para mais informaes sobre os pressupostos dos Estudos de Gnero e as suas relaes com corpo e sexo, cf.
FLAX, Jane. Ps-modernismo e relaes de gnero na teoria feminista. In: HOLLANDA, Helosa Buarque
(Org). Ps-modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p. 217-250; GULLEY, A. Heo Man Ne Waes":
Cross-Dressing, Sex-Change, and Womanhood in Aelfric's Life of Eugenia. Mediaevalia: A Journal of Medieval
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categoria gnero nos estudos de Histria Medieval no Brasil. Caderno Espao Feminino, v.11, n.14, p. 87-107,
jan./ jul. 2004.
12
SCOTT, Joan. Op.cit., p.12.
13
FLAX, Jane. Op.cit., .p. 217-250.
6
-7-
qualitativa, ou seja, quanto mais prximo do masculino, mais perfeito e perto de Deus. As
nico sexo, cujas variaes relacionavam-se a uma ordem superior, que transcendia o
biolgico. A patir desses elementos, consideramos o sexo uma construo situacional, que
apenas pode ser entendido dentro do contexto de luta sobre gnero e poder.
olhar construdo sobre o natural cultural. No estamos com isso negando a materialidade do
prtico a partir das concepes culturais construdas acerca dos corpos. Segundo Bordo,
inteligvel. E esses mesmos discursos podem funcionar como regras e regulamentos prticos,
do corpo,17 no qual argumenta que cada cultura atribui significados especficos aos
14
LAQUEUR, J. Op. Cit.
15
Para mais informaes sobre o lugar do corpo, cf. CANNING, Kathleen. The Body as Method? Reflections
on the Place of the Body in Gender History. Gender and History, v. 11, n. 3, p.499-513, nov. 1993; BORDO,
Susan e JAGGAR, Alison M. Gnero, corpo, conhecimento. Rio de Janeiro, Record: Rosa dos Tempos, 1997;
FEHER, Michelet et al. (Ed.). Fragmentos para uma historia del cuerpo humano. Madrid: Taurus, 1990;
MONTSERRAT, Dominic. Changing bodies, changing meaning. Studies on the human body in Antiquity.
London, New York: Routledge, 1998; RODRIGUES, Jos Carlos. Tabu do corpo. Rio de Janeiro: Dois Pontos,
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BURKE, Peter (Org.). A escrita da histria. Novas perspectivas. So Paulo: Editora da Universidade Estadual
Paulista, 1992. p. 291-327; LAQUEUR, Thomas. Op.cit.
16
BORDO, Susan e JAGGAR, Alison. Op. Cit.
17
RODRIGUES, Jos Carlos. Tabu do corpo... Op.Cit.
7
-8-
corporal. Por conseguinte, normas e regras sobre o corpo so apresentadas como naturais. O
historiador Roy Porter, no artigo Histria do corpo, complementa; o corpo no pode ser
tratado pelo historiador, simplesmente como biolgico, mas deve ser encarado como mediado
Assumimos para nosso estudo que no corpo e atravs dele que se inscrevem os
limites so flexveis.19
Desta forma, reafirmamos que no existe uma materialidade orgnica inteligvel fora
de uma perspectiva cultural. Mas nossa compreenso dos pressupostos dos estudos de gnero
lugares onde se travam lutas de poder genderificadas. Assim, o entendimento dos homens e
das mulheres das suas especificidades corpreas fruto de relaes de gnero pr-existentes.
Toda a construo sobre uma dada viso de gnero realizada e mantida sobre um
aspectos da experincia humana, sendo constituintes dela. A categoria gnero toca nas
relaes entre sexos diferentes, entre indivduos do mesmo sexo, na construo das
relaes sociais. Todos esses elementos esto presentes na construo dos significados,
variantes no tempo e espao, dos gneros e dos sexos. Eles estabelecem os efeitos de serem
atribudos a uma ou outra categoria dentro das prticas sociais concretas como, por exemplo,
18
PORTER, Roy. Op.Cit.
19
De acordo com o antroplogo Jos Carlos Rodrigues, no livro O corpo na Histria, j citado, cada cultura
atribui significados especficos a comportamentos e/ ou elementos relacionados materialidade orgnica, alm
de inibir ou exaltar impulsos instintivos. Dessa forma, as normas e regras sobre o corpo so apresentadas como
naturais.
20
FLAX, Jane. Op. Cit.
8
-9-
a insero nas relaes de poder. Contudo, em nossa pesquisa, utilizamos essa categoria de
compreendemos e o empregamos.
atravs da delimitao abstrata e simblica de diferenas. Para existir, uma identidade precisa
simblica o meio pelo qual damos sentido a prticas e s relaes sociais, (...). por meio
21
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferena: introduo terica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da
(Org.). Identidade e diferena: a perspectiva dos estudos culturais. Petrpolis: Vozes, 2000. p.7-72.
22
Ainda nesta questo, defendemos que, alm das mltiplas associaes simblicas nas construes de
identidade, estas so realizadas por duas perspectivas, muitas vezes conflitantes: a individual e a externa ao
indivduo, mas atribuda a ele.
23
Ibidem. p.14.
9
-10-
com os sistemas simblicos, com as relaes sociais e com as de poder imputadas nelas.
santidade.
Cristina da Silva, no artigo Reflexes sobre o uso da categoria gnero nos estudos de Histria
Medieval no Brasil (1990 2003), considerando que essa categoria seria o conjunto de
comportamentos, atitudes e qualidades que num determinado lugar e tempo so critrios para
considerar o indivduo como venervel, seja pelo reconhecimento oficial da Igreja ou no.24
Nesse sentido, tambm seria uma produo histrica, particular e dinmica, isso porque,
Vamos nos deter um pouco sobre a expresso santidades genderificadas. Esta foi
construdos, vamos pensar sobre as diferenas e as semelhanas existentes nos percursos dos
3. Discusso Bibliogrfica
seleo das obras. O primeiro diz respeito aos trabalhos que tratam do martrio, pensando-o,
24
SILVA, Andria C.L. da. Reflexes sobre o uso da categoria gnero... Op. Cit. p.101.
10
-11-
analisam os martrios da LA pela perspectiva terica dos Estudos de Gnero. Nossa discusso
centrou-se nesses materiais, contudo, apenas destacamos os objetivos centrais de cada texto,
ou seja, no faremos uma anlise exaustiva de cada um, j que nossa finalidade apresentar
Inicialmente, destacamos os textos nos quais o martrio foi trabalhado em relao com
corpo no Imprio Romano e nas descries literrias da Antigidade Tardia e da Alta Idade
sofrido pelas virgens. Fecharemos essa parte inicial com anlise dos argumentos centrais de
trs artigos que utilizaram a categoria gnero para o estudo dessa temtica.
Aps essa viso mais geral, deteremo-nos nas pesquisas que estudaram as relaes
entre a Igreja e os novos mrtires. Em seguida, focalizaremos nossa ateno em trabalhos que
analisam os corpos martirizados na LA, para, por fim, concluirmos com o nosso
posicionamento frente a tais obras e como nossa pesquisa contribuir para enriquecer o debate
os artigos de Merrall Llewelyn Price, Purifying violence: Santity and the somatic, de 2001,25 e
mdivale ds rituels, de 1997.26 Em ambos, temos a defesa de uma marcada ligao entre o
martrio e o Imprio Romano,27 com o foco no corpo condenado do mrtir, que por poder
adquirir aspectos sagrados, alteraria o significado da justia romana e das punies somticas,
25
PRICE, Merrall Llewelyn. Purifying violence: Santity and the somatic. Gender and Medieval Studies
Conference, York, January 5-7 2001. Disponvel em http://tango.lib.uiowa.edu:8003/smfs/search.taf?function=
detail&Layout_0_uid1=39336. Consulta em 20/08/2008.
26
BUC, Pilipphe. Martyre et ritualit dans lantiquit tardive. Horizons de lcriture mdivale ds rituels.
Annales. Histoire, Sciences Sociales, v.52, n.1, p. 63-92, 1997.
27
Destacamos que h outros textos que, ao trabalharem a relao entre o cristianismo e o Imprio Romano,
mencionam a questo do martrio de forma pontual, por isso no foram utilizados nessa discusso. Cf.: BENKO,
Stephen. Pagan Rome and the Early Christians. London: B. T. Batsford, 1985; BERR, Jean de. L'aventure
chrtienne. Paris: Stock, 1981; BOWERSOCK, Glen Warren. Martyrdom and Rome. Cambridge: Cambridge
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CROIX, G. E. M. de. Por que fueron perseguidos los primeiros cristianos? In: FINLEY, Michael. I. (Org.).
Estudios sobre Historia Antigua. Madrid: Akal, 1981. p. 253-78.
11
-12-
trazendo a presena de Deus diante dos que assistiam ao espetculo e dos que o comandavam.
Llewelyn ainda articula essa hiptese a uma funcionalidade especfica das obras hagiogrficas
The Suffering Self: Pain and Narrative Representation in the Early Christian, publicado em
1998,28 trata do surgimento de uma cultura do sofrimento pessoal, na Igreja Antiga, na qual
o ato de sofrer valorizado como base para uma relao mais ntima com a divindade. Nesse
violencia y dominacin del cuerpo femenino,29 de 2000, argumenta que a dor fsica sentida
pelos mrtires possua uma incidncia especial sobre o corpo das mulheres, por conta da
leis da natureza, caracterizado pela debilidade e pela passividade. Nesse sentido, Rodrgues
defende que o tratamento fornecido ao corpo nos relatos das santas mrtires, entre os sculos
II e IV d.C., permitia aos autores cristos apresent-las sob uma aparente subverso de sua
experimentada por elas como via para transgredir as estruturas de gnero da sociedade pag.
No entanto, apesar de sua comprovada capacidade para superar as limitaes de sua natureza,
seguem sendo, para pagos e cristos, essencialmente, corpos sexuados que precisam ser
controlados.
28
PERKINS, Judith. The Suffering Self: Pain and Narrative Representation in the Early Christian Era. New
York: Routledge, 1995.
29
RODRGUEZ, Mara Amparo Pedregal. Las mrtires cristianas: gnero, violencia y dominacin del cuerpo
femenino. Studia historica. Historia antigua, n.18, p. 277-294, 2000.
12
-13-
O argumento principal que os autores cristos da Antigidade Tardia e da Alta Idade Mdia
Igreja. Por fim, Montserrat distingue o tratamento dado s virgens mrtires nas obras crists.
tambm confere uma natureza sexual aos martrios das virgens. Todavia, ao contrrio de
como a celebrao da castidade e supresso das tentaes do corpo. Coyne sublinha que,
apesar destas vitrias, o martrio no fornecia um status superior para a santidade das
virgens, j que esta somente era construda e comprovada a partir de forte violncia. Por fim,
articula a flexibilidade do corpo torturado das virgens com a Igreja, sob as perseguies
pags. A virgem torturada funcionava como um artifcio cultural que no apenas preservaria a
Mrida, de 1999, Raquel Homet32 trabalha com a comparao de dois relatos sobre o martrio
Imperador, sendo assim, o foco estaria na relao entre o paganismo e o cristianismo, com o
30
MONTSERRAT, Dominic. Changing bodies, changing meaning. Studies on the human body in Antiquity.
London e New York: Routledge, 1998.
31
COYNE, Katheleen Kelly. Useful virgins in Medieval Hagiography. In: CARLSON, Cindy L. et WEISL,
Angela Jane (Ed.). Constructions of Widowhood and Virginity in the Middle Ages. New York: St. Martin's Press,
1999. p.135-164.
32
HOMET, Raquel. Significaes de los martirios de Eulalia de Mrida. In: _____. et al. Aragon en la Edad
Media XIV-XV. Zaragoza: Universidade de Zaragoza, 1999. p.759-775.
13
-14-
cidade como um ser encarnado pelo mal. A autora defende que, nessa paixo, a fora
espiritual da virgem mrtir encontrava-se na resistncia aos tormentos sofridos pela sua f.
Assim, Homet conclui que, apesar de ambos os documentos colocarem nfase no martrio
pesquisadora Maud Burnett McInerney, no livro Eloquent virgins from Thecla to Joan of Arc,
de 2003,33 que aponta que o tratamento dado s virgens mrtires, nos documentos, variou
segundo o sexo do autor. Ela analisa textos de Ambrsio, Tertuliano, Hidelgarda, Hrotsvitha,
entre outros. A partir desse estudo, ela defende que em cada perodo histrico h duas
voyerismo, perceptvel nas descries da violncia sexual e das torturas somticas. Nestas
textos de autoras femininas, ela percebe a construo de narrativas que colocam as virgens
mrtires como ativas e inteligentes, capazes de realizarem suas prprias escolhas, e poderosas
ao lidarem com homens vis e injustos. Sendo assim, a proposta dessas obras era que, atravs
que o corpo da virgem foi descrito e percebido de modos diferenciados pelos autores
Conclumos a primeira parte de nosso debate bibliogrfico com trs textos que
33
MCINERNEY, Maud Burnett. Eloquent virgins from Thecla to Joan of Arc. New York: Palgrave Macmillan,
2003.
14
-15-
Topos in the Legends of Female Virgin Martyr Saints, de Kirsten Wolf, de 1997;34 Heo Man
Alison Gulley, de 1998;35 e no mais recente, de 1999, Gender and Martyrdom, de Evelyn
Birge Vitz.36 Apesar de trabalharem com diferentes obras hagiogrficas, as trs autoras
na absolvio da alma.
Esse segundo momento de nossa apresentao uma reflexo que foi fundamental
para nossa pesquisa, por tratar o tema martrio no mesmo recorte temporal que o nosso, alm
de focar nos santos mendicantes ao analisar as relaes entre a Igreja e os novos mrtires,
no sculo XIII. Trabalharemos com as propostas dos artigos Martyrdom, Popular veneration
dos infiis e dos pagos, com o propsito da converso, afirmando que aqueles que perdessem
Deus.39 Contudo, o autor argumenta que queles que morreram para proteger a f crist, e,
portanto, em uma situao similar aos mrtires das perseguies, no tiveram a sua santidade
34
WOLF, Kristen. The Severed Breast: A Topos in the Legends of Female Virgin Martyr Saints. Archiv fr
Nordisk Filologi, v.112, p. 97-112, 1997.
35
GULLEY, Alison. Op. Cit.
36
VITZ, Evelyn Birge. Gender and Martyrdom. Medievalia et Humanistica, n. 26, p.79-99, 1999.
37
RYAN, James. Missionary saints of High Middle Ages. Martyrdom, Popular veneration and Canonization.
The Catholic Historical Review, v. 90, n.1, p.1-28, 2004.
38
FORTES, Carolina Coelho. Os mrtires da Legenda urea: a reinveno de um tema antigo em um texto
medieval. In: LESSA, Fbio & BUSTAMANTE, Regina (Orgs.). Memria e Festa. Rio de Janeiro: Mauad,
2005, p. 375-400.
39
Ryan sublinha ainda que o Papa Inocncio III escreveu algumas cartas para as ordens dominicana e
franciscana garantindo a recompensa para as pessoas ligadas a essas ordens que morressem em nome de Cristo.
No entanto, as canonizaes s comearam a partir do sculo XIV. RYAN, James. Op. Cit. p.5.
15
-16-
vezes, eram sobre pessoas que foram renegadas pela Igreja, como os herticos e os cismticos.
Assim, passou a haver a necessidade de uma investigao sobre a santidade, trazendo essas
esferas das prticas populares para seu controle e aprovando os que eram de seu interesse.
Possuindo uma hiptese semelhante, Carolina Fortes complementa que o influxo de novos
santos foi visto como uma ameaa ao status de cultos mais antigos e tradicionais, e tambm
levantou o espectro de uma Igreja fragmentada na qual toda pequena comunidade veneraria
santos diferentes.40
O objeto central do artigo de Fortes , contudo, a retomada do tema martrio pela LA.
Antigidade Tardia e da Alta Idade Mdia, que abordavam os sculos I-IV, fez com que a
Jacopo, ao escolher mrtires que se colocavam frente aos poderes seculares que lhe eram
Por tratar das formas como esses personagens apareciam na LA e as relaes entre as
a vida terrena do santo d-se com a permanente exposio do corpo aos limites da
sobrevivncia.43 Assim, o que aconteceria ao corpo santo atestaria o destino de sua alma.
40
FORTES, Carolina Coelho. Ibidem. p.7.
41
Nesse sentido, a LA marcaria a idia que, invariavelmente, os perseguidores seriam punidos pelos seus atos.
42
SOUZA, Nri de Almeida. Op. Cit.
43
Ibidem. p.13.
16
-17-
Nesse sentido, ela afirma que esta compilao divulga um ideal de santidade que derrota a
nega a importncia do corpo para os mrtires, pelo contrrio, a obstinao dos santos em
expor a carne em si o objeto de suas preocupaes. A dor proporcionaria uma ligao entre
dois plos, o privilegiado (a alma) e o anulado e desprezado (o corpo), permitindo que o santo
existisse entre o plano terreno e o espiritual. O aspecto sexual do martrio tambm apontado
pela autora: a dor fornece prazer. Neste ponto, Pouchelle sublinha que as descries das
leis e prticas civis pelos autores Llewlyn45 e Buc,46 que percebem que a presena do corpo
autores, o sofrimento foi tratado de duas formas distintas nos documentos contemporneos s
perseguies. Perkins47 defendeu que os textos antigos valeram-se deste para afirmao da
vitria crist em relao aos seus perseguidores e no outro artigo analisado, Montserrat48
44
POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
45
LLEWLYN, Merrall. Op. Cit.
46
BUC, Pierre. Op. Cit.
47
PERKINS, Judith.Op.Cit.
48
MONTSERRAT, Dominc. Op. Cit.
17
-18-
Coyne49 defende que a conotao sexual dos relatos possuiria um marcado teor moralizante,
Por ltimo, Wolf,52 Gulley53 e Vitz54 percebem o martrio como a libertao da alma
aprisionada no corpo. Sendo assim, a partir do plano geral do debate, destacamos que o
martrio foi tratado pelos pesquisadores como smbolo do divino e da vitria do cristianismo,
comportamento ambguo em relao aos novos mrtires. Se, por um lado, os incentivava para
rumarem s terras dos infiis e pagos para convert-los, prometendo a coroa do martrio para
Fortes,56 temos como justificativa que a Igreja procurava, nesse momento, regulamentar e
somticas sofridas pelos mrtires na LA. As autoras apontam que Jacopo utiliza-se do
sofrimento para construir um tipo ideal de santidade, afirmando que o compilador colocaria a
Assim, encontramos pesquisas que trabalharam com a temtica martrio com outras
49
COYNE, Katheleen Kelly. Op.Cit.
50
HOMET, Raquel. Op.Cit.
51
MCINERNEY, Maud Burnett. Op. Cit.
52
WOLF, Kristen. Op. Cit.
53
GULLEY, Alison. Op. Cit.
54
VITZ, Evelyn Birge. Op. Cit.
55
RYAN, James. Op. Cit.
56
FORTES, Carolina Coelho. Op. Cit.
57
POUCHELLE, Marie-Chistine. Op.Cit.
58
SOUZA, Nri de Almeida. Op. Cit.
18
-19-
sentido, nosso trabalho avanar por um caminho ainda muito pouco explorado, discutindo as
portanto, que nosso estudo apresenta novas vises e possibilidades, enriquecendo o debate
pesquisadores apontam que o gnoves teria participado dos captulos de Luca, em 1288, e de
Ferrara, em 1290. Assim, ele estava imerso nos preceitos dominicanos, como tambm na
com Carolina Coelho Fortes, que, na sua dissertao Os atributos masculinos das santas na
Legenda urea. Os casos de Maria e Madalena,59 aps avaliar diferentes hipteses, situa a
trabalhar com duas edies da obra. A primeira a recente edio brasileira de 2003,
organizada por Hilrio Franco Jr., com 175 captulos. Sua base est na edio crtica de T.
59
FORTES, Carolina Coelho. Os atributos masculinos... Op.Cit.
19
-20-
Graesse,60 por sua vez, fundamentada em outras verses, a saber: a francesa do abade J.-B.
questiona quantos foram os captulos compilados diretamente por Jacopo, que variam entre
175 e 182. Esse debate figura como um dos maiores problemas em se trabalhar com a LA: as
um marco histrico, perpetuado atravs de diversas edies ao longo dos sculos. Como
sofreu acrscimos e revises ao longo dos anos, afirmamos que a compilao foi resultado de
sentido. Para tanto, trabalhamos com o levantamento de informaes dos relatos selecionados
que foram organizadas em quadros de leitura especficos aos nossos interesses.62 Estes foram
livro O Inventrio das diferenas, 63 e do historiador Jrgen Kocka que, no artigo Comparison
60
Edio impressa em 1845, reimpressa em 1890 e em 1969 com o ttulo Legenda urea, vulgo histria
lombardica dicta.
61
IACOPO DA VARAZZE. Legenda urea su CD-ROM. Texto latino delledizione critica a cura de Givanni
Paolo Maggioni. Firenze: SISMEL-Galuzzo, 1999.
62
Cf. ANEXO 1 QUADROS DE LEITURA UTILIZADOS.
63
VEYNE, Paul. O inventrio das diferenas. Histria e Sociologia. So Paulo: Brasiliense, 1983
20
-21-
and beyond,64 apresenta sua definio de comparao: Para os propsitos desse comentrio
eu quero enfatizar que comparar em Histria significa discutir dois ou mais fenmenos
Nesse trabalho, Kocka ainda afirma que os objetivos da comparao iro variar
objeto com o qual j possui familiaridade, ampliando seu espao de reflexo, evidenciando
Nossa abordagem enquadra-se nas propostas desse autor. Nesse sentido, ao comparar
hipteses que no poderiam ser percebidas de outra forma, construir explicaes histricas
comparativamente.
que nenhum objeto peculiar por natureza, ou seja, de forma absoluta. Nesse sentido, o
64
KOCKA, Jrgen. Comparison and beyong. History and Theory, v.42, p.39-44, feb. 2003.
65
Ibidem. p.39.
21
-22-
uma constante trans-histrica, com o uso de uma teoria que fornea os conceitos,
Nesse sentido, a discusso acerca dos significados do ideal de martrio, no sculo XIII,
foi fundamental para a nossa pesquisa, porque, seguindo a proposta de Veyne, acreditamos
os relatos analisados, conclumos que o elemento norteador de todos eles a ligao entre a
salvao da alma e o modo de vida cristo. Em outras palavras, seguir uma vida recheada de
boas obras, condizente com os valores cristos, era a forma de garantir a salvao da alma.
Nossa dissertao, alm dessa introduo, possui quatro captulos e a concluso, que
de Varazze e o contexto por ele vivido. Essa preocupao est em sintonia com a perspectiva
estabelecidas com/ pela Igreja e com/ pela Ordem Dominicana, duas instituies nas quais ele
esteve inserido. Optamos por esse tipo de correlao para centralizarmo-nos nos fatos com os
dominicano. A seguir, focalizamos nosso estudo na sua mais famosa obra e documento
utilizado por nossa investigao emprica: a LA. Nessa parte, iniciamos com reflexes sobre o
relaes entre a estruturao individual dos relatos, bem como a organizao geral da obra,
66
Ao utilizarmos a expresso funcionalidade prtica da santidade, estamos aludindo aos usos desta para
benefcios pessoais ou institucionais distintos como o incentivo a peregrinao ao lugar de culto de determinado
santo, o que atraa doaes e fiis.
22
-23-
com os discursos extratextuais com os quais Jacopo pde ter tido contato. Nesse sentido,
Nesse captulo, defendemos a hiptese de que Jacopo teria escolhido redigir uma
hagiografia, ou melhor, elaborar uma conpilao, por esta no ter uma rigidez dogmtica,
logo, permitia a abordagem de temas distintos. Ao colocarmos o estudo dos relatos sobre
a nossa hiptese de que Jacopo, ao compilar a LA, objetivou responder questes especficas
s relaes de poder nas quais estava inserido, como a valorizao do poder eclesistico, a
Pelgio sobre argumentando acerca das associaes entre o poder imperial e o religioso,
retomada no sculo XIII. Para tanto, exploramos essa temtica pelo desenvolvimento dos
movimentos herticos e das cruzadas, pela atuao dos missionrios mendicantes e pela
nesses fenmenos. Por fim, buscamos perceber como Jacopo abordou, na LA, o processo de
estabelecidas com a Ordem Dominicana e com a Igreja. Assim, defendemos que a promessa
23
-24-
ctaros, e o papel da Ordem Dominicana e da Igreja no combate a esse grupo religioso. Nossa
compilao. Em relatos distintos, ao longo da LA, temos o confronto de santos com hereges,
morte por um herege como meritria do martrio, o que seria um incentivo pregao dos
irmos dominicanos.
cruzadistas. Nesse sentido, pensamos no ideal norteador das cruzadas e em sua proximidade
ao da Guerra Santa, ambas ligadas noo de guerra justa. Seguindo nossa lgica,
levantamos a hiptese de que coroa do martrio fora colocada como recompensa aos que
morreram em uma Cruzada, assim como na guerra santa, por ambas serem justas.
Ressaltamos que tambm estudamos a participao dos missionrios mendicantes, que, cabe
Sobre essas questes, elaboramos como hiptese que a retomada dessa temtica foi
realizada por hagigrafos, nesse momento, como tambm pela prpria Igreja Catlica (atravs
mendicantes). Jacopo de Varazze, diante desse cenrio, selecionou relatos com os quais
24
-25-
Reservamos os dois ltimos captulos para a apresentao e o exame dos dez relatos
estudo das narrativas das mulheres e o quarto ao dos homens, seguindo a proposta de Kocka.
processo genderificao, estabelecido atravs das relaes de poder. Por fim, comparamos
esses apontamentos finais, visando a percepo das semelhanas e diferenas entre eles, tendo
as.
Aps a comparao dos relatos, defendemos que a LA no possui uma unidade de sentido,
sendo uma seqncia de topos. O elemento em comum aos captulos a defesa da vida crist para
seguidos, contudo eles so santos porque nasceram com a marca da graa divina, o que a vida
Nossa dissertao est organizada segundo as normas postuladas pelo SiBI publicadas na
pelo CEPG em 1997. Assim, ressaltamos que as referncias bibliogrficas esto de acordo com a
6023), de 2007.
67
PAULA, Elaine Baptista de Matos et al. Manual para elaborao e normalizao de Dissertaes Teses. Srie
Manuais de Procedimentos, n.5, 3 ed. Rio de Janeiro: SiBI, 2004.
25
-26-
CAPTULO 1
1. Apresentao
Para tanto relacionamos o contexto da Pennsula Itlica com alguns dados biogrficos do
dominicano para, a seguir, ponderarmos sobre a compilao. Nesta anlise, refletimos acerca
direcionamento de nosso olhar quanto s singularidades da LA, atravs da relao entre sua
sociedades acerca dos diferentes aspectos da organizao social, estando presente nas prticas,
1
Para mais informaes sobre Jacopo de Varazze e a LA cf. AIRALDI, Gabriella. Jacopo da Varagine tra santi
e mercanti. Milano: Camunia, 1988; BAUDOT, Jules. Jacques de Voragine. In: AMANN, mile; MANGENOT,
Eugne et VACANT, Alfred (dir.) Dictionnaire de thologie catholique. Paris: Librairie Letouzey et An, 1939;
DONDAINE, Antoine. Le dominicain franais Jean de Mailly et la Lgende Dore. Archives dhistoire
dominicaine, 1, 1946; BOUREAU, Alain. Les estrucutures narratives de la Legenda Aurea: de la variation au
grand chant sacre. In: DUNN-LARDEAU, Brenda (org.). Legenda Aurea: Sept Sicles de Diffusion. Actes du
Colloque international sur le Legenda Aurea: textes latin et brainches vernaculaire. Montreal-Paris: Bellarmin-
Vrin, 1986; REAMES, Sherry. The Legenda Aurea: A reexaminat of its paradoxical History. Wisconsin:
University Press, 1985; WYZEMA, Teodor de. Introduction In: La Lgende dore. Paris: Seuil, 1960. p. 18-
19.
2
FOULCAULT, Michel. A ordem do discurso. So Paulo: Loyola, 1996. p.9.
26
-27-
concordamos com Andria C. L. Frazo da Silva, que defende que nenhum discurso
Roger Chartier com Carlos Aguirre Anaya, Jess Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio
Saborit,4 estes esto estruturados nos enunciados, assim como no prprio sistema de
histrico considerando que a sua produo tambm um acontecimento que, como tal, deve
contudo nossa preocupao residir nas condies em que a Ordem Dominicana surgiu,
apontando a relao entre esta e a Igreja. Como assinalamos, a nossa proposta traar
da bibliografia e da LA.
nossa ateno esteve direcionada aos elementos extratextuais mais imediatos ao compilador,
pensando nos desafios enfrentados por essas organizaes e em como essas influenciaram na
entre os mbitos civil e religioso, aqui estudadas, aparecem na obra, defendendo a nossa
3
SILVA, Andria C. L. Frazo da: Reflexes metodolgicas sobre a anlise do discurso em perspectiva
histrica: paternidade, maternidade, santidade e gnero. Cronos: Revista de Histria, Pedro Leopoldo, n. 6, p.
194-223, 2002.
4
CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e histria: Conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre
Anaya, Jess Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre: ArTmeD, 2001.
27
-28-
desde os sculos XI e XII. Esses fenmenos teriam sido mais perceptveis na Itlia, por esta j
de homens e idias.6
A expanso das cidades italianas foi favorecida, principalmente, por uma maior e
melhor explorao dos campos somada intensificao das relaes comerciais.7 Sobre esse
5
Segundo Franco Cardini, um dos resultados dessas trocas comerciais e culturais foi o surgimento da primeira
forma de lngua verncula, comum s reas que passavam por um processo similar de urbanizao. O autor no
especifica qual teria sido esta. ____. A Itlia entre os sculos XI e XIII. MONGELLI, Lenia Marcia. (coord.):
Mudanas e rumos: o Ocidente medieval (sculos XI-XIII). Cotia: bis, 1997. p.85-107. p.87.
6
Para mais informaes sobre o contexto da Pennsula Itlica cf. ABULAFIA, David. Italy in the Central Middle
Ages: 1000-1300. Oxford: Oxford University Press, 2004; CAMMAROSANO, Paolo. Storia dell'Italia
medievale. Dal VI all'XI secolo. Roma-Bari: Laterza, 2001; DEAN, Trevor. The Towns of Italy in the Later
Middle Ages. Manchester: Manchester University Press, 2000; GENICOT, Leopold. La Europa nel siglo XIII.
Barcelona: Labor, 1976; HYDE, John Kenneth. Society and politics in medieval Italy: the evolution of the civil
life, 1000-1350. New York: St. Martin's Press. 1973.
7
Nesse processo, destacou-se o comrcio martimo realizado por Gnova, Veneza e Pisa.
8
GENICOT, Leopold. Op.Cit. p.68.
28
-29-
ca. 1105,9 defende que, no sculo XIII, a sociedade ocidental passou por um processo de
similiar, Indro Montanelli e Roberto Gervaso, no livro Itlia: os sculos decisivos, afirmam
que o mbito clerical possua duas vantagens sobre o laico. A primeira diz respeito a certo
monoplio cultural exercido pelo clero que seria o principal responsvel pelo ensino. A
segunda seria que a entrada na clerezia figuraria uma mudana do status social de
determinada pessoa, tornando mais fcil o seu acesso aos cargos militares e civis, reservados
a membros das fileiras nobilirias. Em suma, eles afirmam que o ingresso no mbito clerical
significaria que:
Ambos acabaram se tornando marcadores sociais de diferena cada vez mais visvel, sendo
vez mais habitual da escrita motivaram os burgueses a confiar aos clrigos partes da
que isso no implicou em um aumento da autoridade episcopal ou de qualquer outro tipo nas
9
MOORE, Robert Ian. La alfabetizacin y el surgimiento de la hereja, ca. 1000- ca.1105. In: GARCIA, Maria
Loring Isabel. La Edad Media a debate. Madrid: Akal, 2003, p. 552-570.
10
MONTANELLI, Indro et GERVASO, Roberto. Itlia: os sculos decisivos (Idade Mdia, ano 1000 a 1250.
O nascimento das comunas). So Paulo: IBRASA, 1968. p.29.
11
Ididem. p. 556.
12
Ressaltamos o cuidado com esse tipo de argumentao, afinal no intencionamos indicar que o processo de
alfabetizao clerical ocorreu de forma homognea para o clero inteiro. Defendemos que este estaria, ainda, mais
retrito ao alto clero.
29
-30-
cidades. Pelo contrrio, desde o sculo XII, a autoridade eclesistica sofria uma diminuio
gradual como el poder jurisdiccional ms importante de la ciudad,13 ficando cada vez mais
atrelada ao civil.
relevante nas cidades europias. No final do sculo XII e incio do XIII, foram se
e o imprio germnico.14 Segundo Cardini, apesar do poder eclesistico ter tentado construir
uma autonomia diante das potncias seculares, a cria romana no conseguiu evitar a
influncia dos poderes leigos fortes. Nessa mesma poca, a renovao da vida religiosa
comeou a ser registrada atravs de buscas por uma reforma na Igreja, para elevar seu nvel
relacionada a uma definitiva separao das hierarquias eclesisticas em relao aos poderes
laicos.16
imprio. Segundo Brenda Bolton, no livro A reforma na Idade Mdia,17 a Igreja tornara-se
negligente e mundana nas suas atividades. Reinava a simonia, isto , o abuso do trfico de
13
WALEY, Daniel. Las ciudades-repblica italianas. Madrid: Guadarrama. 1969. p.56.
14
Segundo Cardini, desde o sculo X, o papado esteve a mrce da dinastia dos tonidas que, a partir do
privilegium Othonis de 962, estabeleceu que os papas deveriam jurar fidelidade ao imperador. Alm disso, Oto I
e seus sucessores passaram a intervir mais na Igreja, fundando bispados e abadias. O autor afirma que estes
episdios deram incio a um processo denominado investidura leiga. Esta era marcada pelo controle da Igreja
pelo poder do Estado (Cesaropapismo), do qual surgiria, posteriormente, o fnomeno chamado querela das
investiduras. CARDINI, Franco. Op. Cit. p. 88.
15
Ibidem.
16
Brenda Bolton defende que, inicialmente, os ideais reformadores dos mosteiros de Cluny, Brogne e Gorze
estavam direcionados ao retorno a uma viso idealista da Igreja nos primeiros tempos, a ecclesia primitiva dos
apstolos. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1983. p.21.
17
BOLTON, Brenda. Op. Cit.
30
-31-
de dignitrios da Igreja.18
simonaco de suas funes,19 que objetivava, dentre outras coisas, uma separao definitiva
Destacamos que uma das reaes contrrias a essas medidas partiu, justamente, de famlias
A reforma pode ser dividida em dois plos com objetivos diferentes: um que propunha
um retorno a uma releitura da ecclesia primitiva dos apstolos e da pobreza de Cristo, com
uma ateno especial relevada pregao da palavra do Senhor; e o outro que pretendia
foram sentidas no fim do sculo XII, com o fortalecimento das tentativas laicas24 de retorno
pregao, o que aumentou o desejo dos leigos por aes pastorais direcionadas ao saeculum e
por uma maior participao laica na ecclesia. Os monges, tentando responder a tais
secular eram insuficientes e/ ou sem o devido preparo para a ao pastoral junto aos fiis.
18
Ibidem. p. 20.
19
importante ressaltar que no consideramos que a reforma colocou um fim definitivo a essas prticas, sendo
ainda mencionadas, quase que duzentos anos depois, no IV conclio de Latro.
20
Sobre esse processo, Cardini coloca que o imperador [refere-se a Henrique IV], amparado pelo clero alemo,
tomou posio contra a deciso papal, mas Gregrio agravou a situao proclamando em 1075 a superioridade
do pontfice sobre o imperador: ao papa cabiam as insgnias do imprio e a ele atribua-se o poder de depor o
imperador e, portanto, de liderar os sditos deste da obrigao de fidelidade. CARDINI, Franco. Op.Cit. p. 90.
21
Segundo Franco Cardini, esse processo teria iniciado no conclio lateranense de 1059, quando, com a eleio
do Papa Nicolau III, estabeleceu-se que a eleio do pontfice seria confiada a um colgio cardinalcio.
22
Idem.
23
BOLTON, Brenda. Op.Cit. p. 21
24
Cardini e Bolton, nos respectivos livros supracitados, defendem que os movimentos espirituais, j iniciados,
refletiam as inquietaes laicas em relao vida religiosa proposta pela Santa S, estando em consonncia com
as mudanas ocorridas nos meios social, econmico e poltico.
31
-32-
fim do sculo XII, de movimentos dissidentes que a Santa S considerou herticos, como os
que algumas Ordens, como a Franciscana e a Dominicana,30 sentiram pelas cidades estaria
espirituais laicas e uma atuao na defesa dos preceitos defendidos pela Santa S.
postulado mais ativo voltado ao meio urbano, caracterizado por um forte trabalho assistencial
e pela pregao calcada no estudo das Escrituras.33 Assim, Hilrio Franco Jr, na apresentao
25
Analisaremos a heresia ctara ou albigense no captulo II.
26
Em 1184, tanto os valdenses como os humiliati foram excomungados pelo decreto Ab abolendam, sob o
pretexto de pregarem ilegalmente e por possuirem pontos de vistas deturpados sobre a f e os sacramentos
cristos. De fato, ambos os movimentos procuravam viver sob a conformidade da vita apostolica, sendo que eles
se autoconsideravam em conformidade com os ideais da ortodoxia, no protestando contra a Igreja. BOLTON,
Brenda. Op. Cit. p. 63.
27
LAWRENCE, Clifford Hugh. The Friars. The impact of early mendicant movement on Western society. Nova
Iorque: Longman. 1994. p. 3.
28
Destacamos que a Ordem Dominicana figurou como uma exceo, j que foi formada por clrigos desde seus
primrdios.
29
LE GOFF, Jacques. As Ordens Mendicantes. In: BERLIOZ, Jacques. Monges e religiosos na Idade Mdia.
Lisboa: Terramar, 1994. p. 227-241.
30
O aumento quantitativo das Ordens foi tal que no Conclio de Lyon, em 1274, reconheceu apenas quatro
Instituies, trazendo-as para o seio da Santa S: a dos Frades Menores, a dos Pregadores, a dos Irmos da Bem-
Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo e a dos Eremitas de Santo Agostinho.
31
Ao colocar a expresso vaga ortodoxa fazemos aluso a atuao do clero secular e do monacato vista como
insuficiente frente s demandas espirituais especficas das cidades.
32
Ibidem. p. 228.
33
Uma das principais diferenas entre essas ordens era o fato da Ordem Dominicana ter optado pela posse de
bens materiais que os franciscanos, para auxiliar na formao intelectual dos pregadores. Portanto, segundo
32
-33-
Uma das melhores expresses desse novo quadro global tinha sido
exatamente o surgimento das Ordens Mendicantes, cuja prtica despojada
(no possuam bens materiais), humilde (viviam de esmolas), de apego
natureza (especialmente os franciscanos), de intensa pregao e represso
aos hereges (sobretudo os dominicanos), atendia melhor que as velhas
ordens monsticas s novas necessidades espirituais e sociais. 35
constituda apenas por clrigos; alm da busca pelo equilbrio entre pregao e erudio,
reconhecimento ocorreu em um momento conturbado para a Igreja que lidava com novos
desafios, como o combate aos distintos movimentos herticos, aos infiis e aos pagos; bem
como as conflituosas relaes com o poder imperial. Para compreenso acerca das contendas
entre o papado e o imprio nesse momento, cabe refletirmos sobre o cenrio poltico-religioso
Frederico II, confiando-lhe a alguns doutos da Igreja para sua formao educacional. Em
1209, aps a morte de seu pai, Henrique VI, ocorreu a coroao do imperador do Sacro
Pedro.
Pontifcio e seus limites, confirmando os direitos da Igreja sobre a Siclia. No entanto, logo
depois desse reconhecimento, o imperador desgostoso com sua recepo em Roma, permitiu
que seu exrcito espalhasse-se pelos territrios toscanos, inclusive o Reino da Siclia, que
Antonio Linage Conde, os dominicanos aceitaram terras e propriedades conventuais . Cf. ___. Las ordenes
mendicantes. Madrid: Histria 16. 1985. p.14.
34
JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos. FRANCO JR., Hilrio (trad.). So Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
35
Ibidem. p.13.
33
-34-
nesse momento, por doao, pertencia ao pontificado. Em resposta a essa traio, Inocncio o
excomunga em 1210.
O antema era mais uma arma poltica que espiritual, possuindo um forte poder
sugestivo sobre a populao. Nesse sentido, aps a excomunho, Oto ficou enfraquecido,
sendo destitudo por alguns prncipes, em Nuremberg, que coroam Federico II, com o apoio
de Inocncio III.36
Em 1211, Frederico II, que j havia reunido um exrcito com o objetivo de restaurar o
imprio a fora em 1209, ocupou Constance e recebeu a coroao oficial em Mainz em 1212.
Segundo David Abulafia, no livro Italy in the middle central ages,37 ele teria ficado oito anos
restaurando a ordem no reino germnico. Durante esse perodo, ocorreu uma segunda
cerimnia de coroao, em 1215, em Aachen, que lhe concedeu o ttulo de Rei da Germnia.
Frederico II possua o apoio do papa Inocncio III, que, em troca, exigiu do rei o
retorno do reconhecimento dos privilgios e direitos que Oto havia concedido Igreja. E,
ele foi coroado, pela terceira e ltima vez, como Imperador em Roma. Contudo, segundo
o ttulo de rei dos romanos, tornando-o seu herdeiro. Dessa forma, tomando para si a coroa.
36
GERVASO, Roberto e MONTANELLI, Indro. Op. Cit. p.186.
37
ABULAFIA, David. Op.Cit.
34
-35-
hereges, renovando o voto de tomar a cruz. Contudo, quebrou esses votos ao marchar a
Pglia, ao invs de ir Terra Santa, onde reuniu os bares e promulgou novas leis do reino.38
dos cristos na Palestina, apelou ao Imperador para que organizasse uma cruzada
prosseguisse. O papa convencido que fora trado por Frederico, o teria excomungado. Iniciou-
se, assim, uma guerra que contou com bulas papais que acusavam os Hohenstaufen de
se a juntar suas armas s dele e combater unidos os sarracenos.39 Diante disso, Frederico
conseguiu realizar acordos de paz com o Sulto Al Kamil, o que teria agradado cristos e
Segundo Roberto Gervaso e Indro Montanelli, o papa no teria ficado satisfeito, pois
acreditava que uma guerra santa s se efetivava com o extermnio dos infiis, e assim teria
instigado uma revolta contra o imperador no Sul da Itlia. Em 1227, iniciou-se o papado de
Gregrio IX (1227-1241) que foi obrigado a aceitar um acordo com Frederico aps este
invadir o Estado Papal. Nesse contexto, em 1230, nasceu Jacopo, em Varazze, local prximo
a Gnova.
Contudo, o acordo no significou o fim das disputas entre o papado e o imprio, que se
prolongaram, culminando com um novo antema, em 1239. No ano seguinte, no reino das
Duas Siclias, Frederico respondeu a esse com a destituio dos procos e dos bispos
38
GERVASO, Roberto e MONTANELLI, Indro, Op.Cit. p. 184.
.39 Ibidem, p.185.
40
Idem.
35
-36-
Montecassino.
Alm de pedir auxlio aos dominicanos para que, da mesma forma que pregavam contra os
Gnova e Pisa foram as cidades que mais se desgastaram com essas lutas, sofrendo um
Tireno, especialmente sobre Crsega e Sardenha, sendo rivais. Essa rivalidade foi acirrada
quando Pisa apoiou o Imprio nos conflitos entre Guelfos, que eram a favor do papa, e
Gibelinos, que sustentavam o imperador. Por tal razo, Frederico II teria concedido a
prosseguiram aps o papado de Gregrio IX, com Inocncio IV (1243-1254), que assumiu a
cria aps uma vaga papal e colocou seus propagandistas e agentes contra os Hohenstaufen.
Em 1244, o jovem Jacopo decidiu entrar na ordem dominicana aps ter tido contato
sendo agravado com o anncio da deposio do imperador Frederico II pelo papa em 1245,
que tambm teria convocado alguns irmos dominicanos para instigarem e pregarem uma
41
LAWRENCE, Clifford Hugh, Op.Cit. p. 186.
42
Veneza, envolvida por Gregrio IX nas contendas com o imprio, aps um perodo de crise, fortaleceu seu
comrcio com o Oriente.
43
AIRALDI, Gabriella. Jacopo da Varagine tra santi e mercanti. Milano: Camunia. 1988. p.140.
44
Alm dos problemas enfrentados com o imprio, os pequenos prncipes e oficiais locais desafiavam a
autoridade da cria ao fornecerem proteo aos hereges e, por vezes, rechaaram inquisidores e at bispos de
seus territrios. Cf. FORTES, Carolina Coelho. Os atributos masculinos das santas na Legenda urea. Os casos
de Maria e Madalena. Dissertao (Mestrado em Histria) Programa de Ps-graduao em Histria Social. Rio
de Janeiro: Universidade do Rio de Janeiro, 2003. p. 66.
45
Carolina Coelho Fortes defende que as aes adotadas por Gregrio e por Inocncio, durante o extenso
combate contra o imperador, abriram espao para que outros governantes desafiassem a autoridade da Igreja.
FORTES, Carolina Coelho. Op. Cit. p. 68.
36
-37-
Jacopo estaria estudando na Universidade de Bolonha47 nesse momento. Esta teria surgido
sua organizao foi distinta das outras grandes universidades, possuindo como disciplina
faculdade de teologia, criada apenas em 1364, foi monopolizada pelas Ordens Mendicantes.50
Em Bolonha, a lngua verncula j havia alcanado sua forma fixa, cujo contato teria
auxiliado Jacopo em suas pregaes. Devemos considerar que a pregao verncula era cada
vez mais utilizada na Itlia, nesse momento, especialmente pelos lderes dos movimentos
herticos. Richardson argumenta que, aps ter completado seus estudos, o dominicano teria
direo a Gnova, onde manteve uma produo epistolar pedindo auxlio ao clero para que
46
RICHARDSON, Ernest. Op.Cit.
47
A universidade bolonhesa, junto com a parisiense, possua uma certa notoriedade no mbito intelectual, sendo
uma das primeiras universidades estabelecidas ainda no sculo XII.
48
CARDINI, Franco. Op. Cit. p.95.
49
Em Bolonha, Jacques Verger sublinha a existncia de duas universidades: a dos italianos ou citramontanos e a
dos estrangeiros ou ultramontanos, dirigidas por reitores eleitos anualmente. No temos informaes sobre em
qual destas Jacopo estudou. VERGER, Jacques. Universidade. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-
Claude (Coord.). Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval. So Paulo: Imprensa Oficial/EDUSC, 2002. 2V,
v.2, p. 573-588.
50
Ibidem, p.578.
51
Frederico II faleceu em 1245, deixando seu filho Conrado IV como sucessor no reinado da Siclia. Este subiu
ao trono como Henrique VII e seguiu com os planos paternos de conquistar Roma, mas foi mal sucedido. Foi
exomungado em 1254. No detalharemos sua atuao como imperador, j que a LA menciona apenas o imprio
de seu pai. Para mais informaes, cf. ABULAFIA, David. Op.Cit.; WALEY, Daniel. Op.Cit.
52
Escreveu tambm o Sermo de Planctu beatae Mariae Virginis e o Sermo de passione Domini.
53
Cf. GUIDETTI, Stefania Bertini. I Sermones de Iacopo da Varazze. Firenze: SISMEL, 1998.
37
-38-
Marialis,57 produzidos a partir de 1255. Essa produo inicial estava direcionada ao auxlio de
membros da Ordem no combate aos movimentos herticos que viria a ser conhecida como
Em 1258, foi eleito prior da Gnova.58 Sua atuao indicaria que ele esteve presente
nos captulos provinciais e em muitos dos captulos Gerais. Alguns pesquisadores apontam
que Jacopo de Varazze teria participado dos captulos de Luca, em 1288, e de Ferrara, em
1290. Ele manteve-se nesse cargo at 1267,59 quando foi eleito provincial da Lombardia,
sendo reeleito algumas vezes. Cabe ressaltar que, de acordo com Fortes, a situao poltica e
religiosa estava conturbada nesse local, onde as seitas herticas dos valdenses e,
Ordem Dominicana, viajando para Florena e depois Bolonha, em 1272; para Budapeste e
Faventia, em 1273; para Lion e Milo, em 1274.60 Dois anos mais tarde, o dominicano
Inocncio V eleito papa, permanecendo apenas meses no cargo. Richardson aponta que ele e
Jacopo eram prximos, tendo convivido pelos menos nos Captulos Gerais.
A curta durao de seu pontificado teria sido uma surpresa para ordem, principalmente
devido ao fato do sucessor, Joo XXI (1276-1277), no ser muito prximo dos Mendicantes.
Richardson argumenta que essa antipatia do papa em relao aos mendicantes teria
54
Essa obra seria composta por 307 textos, podendo ser caracterizada como um santoral, cuja organizao
estaria alinhada ao calendrio litrgico dominicano estabelecido.
55
Segundo Richardson, estes totalizariam 98 sermes, quase todos dedicados Quaresma. Cf. JACOBI A
VARAGINE. Sermones quadragesimales eximii doctoris, fratris Iacobi de Voragine, ordinis paedicatorum,
quondam archiepiscopiianuensis. Ex Officina Ioannis Baptistae Somaschi, 1571.
56
Segundo Fortes, essa compilao tem sua base no missal romano quanto no dominicano, reunindo elementos
importantes da religiosidade dominicana em trs sermes: em honra Trindade, Virgem e a Domingos. Cf.
JACOBI A VORAGINE. Sermones domenicalis per totum annum. Venetiis: Ex Officina Ioannis Baptistae
Somaschi, 1586.
57
Composto em 1294, essa coletnea de 161 sermes trata das virtudes da Virgem Maria.
58
Richardson destaca que ele tambm poderia ter sido prior em Bolonha, Asti, Como ou Acqui. RICHARDSON,
Ernest. Op. Cit., v. 2. p. 36.
59
Cabe ressaltar que segundo Daniel Waley, entre 1265/1268, a causa dos Hohenstaufen marca o final de uma
fase e incio de outra, j que o guelfismo era caracterizado por um sistema de alianas voltadas a manuteno de
certa configurao de poder. WALEY, Daniel. Op. Cit. p.203.
60
RICHARDSON, Ernest. Op. Cit., v.3. p.19.
38
-39-
dominicano teria retornado ao posto em 1281. Segundo Carla Casagrande, de 1283 a 1285, il
exera les fonctions de rgent de lOrdre aprs la mort de Jean de Verceil et avant llection
dentre outros foi sugerido para substitu-lo. O papa concedeu embaixada genovesa a
escolha de um dos candidatos apresentados. Jacopo teria sido eleito por unanimidade,
No ano aps sua eleio, o dominicano comeou a escrever a Cronaca della citta di
Genova dalle origini al 1297,64 cuja temtica era a cidade e seus fundadores, abordando
questes polticas, colocando as regras para o bom governo e argumentando como ser um
sublinha que apesar da obra ter sido redigida e publicada nesse ano, ela foi editada pela
segunda vez em 1296, sendo reeditada por, aparentemente, Jacopo at sua morte.
uma certa reputao de santidade, sendo em 1816, beatificado pelo papa Pio VII.65
com o poder civil. Essas relaes de poder nutriram uma necessidade de alcanar novos fiis e
atrair as almas perdidas de volta para seu seio. Esse o pano de fundo da produo literria
61
Ibidem, p. 20.
62
De 1283 a 1285, ele exerceu as funes de regente da Ordem aps a morte de Jean de Verceil e antes da
eleio do novo Mestre Geral, Munio de Zamorra. Cf. CASAGRANDE, Carla. La vie et les oeuvres de Jacques
de Voragine, 2007. Disponvel em: http://www.sermones.net/spip.php?article4&artsuite=0#sommaire_2. Acesso
em: 17/03/2008. Traduo nossa.
63
Alm disso, destacamos que, segundo Ernest Richardson, Jacopo era conhecido como apaziguador (____.
Op. Cit. p. 62 et. Seq.). Entre outros motivos, esse reconhecimento deve-se a sua atuao na negociao de paz
entre Gnova e Pisa no fim da Batalha de Meloria, no dia 3 de abril de 1288. Neste ponto, cabe destacarmos que
a rivalidade entre essas cidades, como argumentado anteriormente, iniciou devido s pretenses de ambas em
dominar a economia martima no Tireno, tendo se agravado quando elas assumiram posies opostas no conflito
entre Guelfos e Gibelinos. A batalha iniciada em 1284 teria significado o incio da derrocada de Pisa como
potncia no comrcio martimo.
64
JACOPO DA VARAGINE. Cronaca della citta' di Genova dalle origini al 1297. Torino: ECIG, s/d.
65
REAMES, Sherry. The Legenda Aurea: A reexaminat of its paradoxical History. Wisconsin: University Press,
1985. p.15.
39
-40-
Contudo, apesar de sua extensa produo literria, cujos temas tocaram em questes
Legenda sanctorum alias Lombardica hystoria, dita Legenda urea, que foi transmitida por
mais de mil manuscritos e mais de duzentas edies e tradues, durante o primeiro sculo
aps a sua publicao. Antes de adentrarmos em questes especficas sobre essa compilao,
objetivao das obras hagiogrficas como literatura crist,67 relativa santidade, como
tambm sua valorizao, concomitante expanso do culto aos santos. No artigo Palavra de
plpito e erudio no sculo XIII. A Legenda urea de Jacopo de Varazze, Nri de Almeida
Souza68 diz:
66
Diante da sua produo literria e de sua atuao como dominicano e arcebispo, Richardson aponta que, nesse
perodo caracterizado pela celebrao do conhecimento escolstico, Jacopo destacara-se por sua erudio, sendo
conhecido como Jacopo, o telogo (Ibibem, p.3).
67
O termo hagiografia possuir razes gregas, hagios = sagrado e graphia = escrita, neste sentido envolvia
questes e temas no mbito mais amplo do sagrado, no sendo circunscrito ao cristianismo.
68
SOUZA, Nri de Almeida. Palavra de plpito e erudio no sculo XIII. A Legenda urea de Jacopo de
Varazze. Revista Brasileira de Histria, n.43, p. 68-84, 2002.
69
Ibidem, p.69.
40
-41-
que se tornaram interdependentes. Se, por um lado, o culto aos santos facilitava a
receptividade das hagiografias, por outro, estas nutriam tal prtica pela sua prpria natureza e
por seu papel didtico e carter propagandstico. Essa relao constituiu um mecanismo de
-poltico.
-se, a priori, a fixar na memria as aes dos heris da nova f.71 No entanto, concordamos
com Fortes ao afirmar que isso no significava construir um relato biogrfico, mas retratar o
Les legende dore: Le systme narratif de Jacques de Voragine (+1298),75 que argumenta que
o significado da narrativa hagiogrfica, ao contrrio dos contos tradicionais, estaria fora dela,
70
Defendemos que as relaes entre hagiografia e santidade constituram um importante elemento nas operaes
convencimento da Igreja.
71
BOESCH GAJANO, Sofia. Santidade. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. (Org.). Dicionrio...
Op. Cit. p.449-462. p.253.
72
FORTES, Carolina Coelho. Op. Cit., p. 202.
73
Delehaye enfatiza o aspecto ficcional da hagiografia. Portanto, a leitura deste gnero no deveria ser calcada
nos padres do criticismo histrico. (DELEHAYE, Hippolyte. Les legendes hagiografiques. Bruxelas: Societ
des Bollandistes, 1973. p.3).
74
VAUCHEZ, Andr. La Santit nel Medioevo. Bologna: Molino, 1989.
75
BOUREAU, Alain. Les legende dore: Le systme narratif de Jacques de Voragine (+1298). Paris: Cerf,
1984.
41
-42-
Nesta lgica, os santos eram o objeto central das obras hagiogrficas. Partindo destas
O santo marcado desde o seu nascimento pela graa divina. A sua vivncia entre os
homens serve justamente para atestar essa santidade inerente; atravs da manifestao de suas
sentido, Vauchez argumenta que ao santo era imputada uma separao radical da condio
humana.76 No entanto, defendemos que apesar dos santos serem profundamente relacionados
existncia. Neste sentido, poderiam ser evocados no combate s foras do mal ou agir como
As hagiografias, muitas vezes, retratam os santos como aqueles que abdicaram dos
presente na LA, em que h uma constante associao entre a santidade e a renncia sobre-
apenas cinco so de santos contemporneos ao compilador, ou seja, dos sculos XII e XIII, a
Canteburry e Santa Isabel da Hungria.77 Nri de Almeida Souza78 defende que o uso de
76
VAUCHEZ, Andre. Op. Cit. p. 291.
77
Sublinhamos que este relato no consta na edio brasileira de Hilrio Franco Jr.
78
SOUZA, Nri de Almeida. Idem.
42
-43-
relatos antigos possibilitaria ao dominicano ponderar algumas questes de seu tempo, mais
livremente.79
antigos, permitiram Jacopo trabalhar com personagens que venceram o corpo na vida e na
de leo, leite, sangue ou luz. Este encadeamento de fenmenos constitui um cdigo sensorial
Os santos eram aqueles que iam alm da condio humana, dessa forma, evidenciando
Jacopo de Varazze considera o corpo como meio de alcanar a santidade, atravs da subverso
dos sentidos e dos sentimentos e da exposio do corpo dor, estando em sintonia com os
79
Boureau afirma que considerando a mensagem tradicional e conservadora de Jacopo, no surpresa ele ter
selecionado, quase que totalmente, santos-heris da Igreja Primitiva, j que a sua santidade inimitvel.
Defendendo que Jacopo, assim como muito outros autores, teriam considerado os mrtires como modelos
capilares de santidade e virtuosidade. BOUREAU, Alain. Op.Cit)
80
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: Op.Cit.. p.13.
81
Ibidem.
82
POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
83
Corroborando com essa hiptese, temos que dos cento e cinqenta e trs santos biografados, pela edio de
Hilrio Franco Jr., noventa e um foram martirizados de oitenta e uma formas diferentes.
43
-44-
postular modelos de conduta,84 usando o que era exemplar. Alm disso, os hagigrafos ainda
obteve novo impulso com a atuao das ordens mendicantes. Dentre elas, destacaram-se as
ordens dos Frades Menores e a dos Dominicanos, que atravs da produo de obras em lnguas
uma obra de natureza hagiogrfica devido a sua funcionalidade e por j existir um espao de
diferentes tipos hagiogrficos ao longo da obra milagres, translao, vidas, entre outros e
temticas festas crists, a superao do corpo, o diabo, a morte, entre outros. Dessa forma,
postulou questes especficas ao seu interesse, algumas das quais sero pensadas a seguir.
provavelmente, foi redigida aps a morte do Imperador Frederico II, em 1249, pois este
44
-45-
ano da morte de Pedro Mrtir, j que ficaria implcito que desta data at a publicao da obra
Milo ficara livre da presena hertica.86 O autor defende que a estrutura da obra deveria estar
LA muito extensa, seguimos Carolina Coelho Fortes87 que, aps avaliar os trabalhos de
alguns desses pesquisadores, estabelece que a primeira redao deve ter sido realizada na
dcada de 60, do sculo XIII. De acordo com Paolo Giovanni Maggioni,88 a compilao
passou por vrias revises do prprio Jacopo, ou consentidas por ele, ao longo de sua vida.
Richardson corrobora com essa afirmao tendo em vista a extensa quantidade de manuscritos
para o catalo, no ltimo quarto do sculo XIII, e para o alemo, em 1282. Em torno de 1340,
foi elaborada a primeira traduo para o francs; em provenal na primeira metade do sculo
facilitou ainda mais a difuso dessa obra, surgindo edies do documento em latim a
primeira foi em 1470 e, crescentemente, em lnguas vernculas iniciando com uma edio
Segundo Robert Seybolt,89 entre 1470 - 1500, foram publicadas em torno de cento e
cinqenta e seis edies da LA. Entre 1500 e 1530 so encontradas menos edies: vinte e
uma em latim e vinte e oito em vernculo. Com o tempo, percebemos uma queda desse ritmo:
de 1531 a 1560 podem ser encontradas apenas treze edies; sete em latim, quatro em francs
mudanas realizadas, a quantidade de captulos compilados por Jacopo, entre outras questes.
86
FORTES, Carolina Coelho. Op.Cit., p.113.
87
Idem.
88
IACOPO DA VARAZZE. Op.Cit.
89
SEYBOLT, Robert Francis. The Legenda Aurea, Bible, and Historia scholastica. Speculum, v. 21, n.3, p. 339-
342, julho de 1946.
45
-46-
de relatos de martrios presentes na LA, optamos por utilizar duas edies da obra. A primeira
a recente edio brasileira de 2003, organizada por Hilrio Franco Jr., com 175 captulos.90
Sua base est na edio crtica de Theodor Graesse, por sua vez, baseada em outras verses, a
saber: a francesa do abade J-B. Roze, de 1967, e a inglesa de Granger Ryan e Helmet
Justificamos a opo por duas edies da LA devido s modificaes que a compilao sofreu
quantos foram os captulos compilados por Jacopo, que variam entre 175 e 182.
Dito isso, buscaremos contornar esses problemas suscitados pela produo da LA,
destinatrios com a sua prpria configurao geral e a individual de seus captulos, tendo em
A LA uma obra constituda por relatos relativamente curtos sobre santos (as) e datas
90
VARAZZE, Jacopo. Op. Cit.
91
IACOPO DA VARAZZE. Op.cit.
92
RICHARDSON, Ernest. Op. Cit. p. 42.
46
-47-
Igreja, e utilizada pelos dominicanos, das festas religiosas, relacionadas a cada corte temporal.
A obra est organizada em cinco partes: inicia com as festas do tempo da Renovao,
indo do Advento ao Natal; segue com as celebraes ocorridas nos perodos da Reconciliao
Lectura Crtica de libros94 acerca da edio da LA feita por Alessandro e Lucetta Vitale
Brovarone, defende que essa organizao das biografias era uma novidade em relao s
organizao dos captulos, ao invs de seguir uma tipologia (milagres, vidas, paixes e outros)
Alain Boureau defende que a distribuio dos relatos revelaria um propsito didtico.
Para o autor, Jacopo no buscou originalidade nos relatos nem individualizou os santos, pelo
contrrio, ele teria construdo uma narrativa com uma proposta universalizante e atemporal,
da obra, como a vida inspirada em Cristo, e nas releituras sobre a Igreja primitiva, com os
47
-48-
episdios com a valorizao do ideal de vida apostlica e no apoio nas Escrituras que seriam
guias na orientao religiosa, nos sermes e na conduo moral da vida. Dentre eles, a
converso (e no combate) dos hereges e dos infiis ou fornecendo material para os sermes
apostlicas dos pregadores ou nas doutrinrias dos professores.97 Este impasse cresceu
sociedade.98
remisso ao Evangelho, o que acreditamos que indicaria seu uso para instruo dos demais
96
Os exempla so relatos breves e de fcil memorizao, cabveis de serem destacados de seu contexto e
utilizados como instrumentos de persuaso nos sermes.
97
Se, por um lado, segundo Richardson, Jacopo vive em um perodo de valorizao da cultura escolstica e da
erudio; por outro, segundo Maria Hernndez Esteban, devido ao advento das heresias e ao crescimento de uma
espiritualidade laica associada a uma pregao popular, esse tambm fora um perodo de valorizao de uma
cultura da pregao. Esta autora completa que a Ordem Dominicana, como brao direito da Igreja, cumpriu um
papel decisivo, provavelmente, por buscar um equilbrio entre esse dois mbitos. ESTEBAN, Maria Hernandez.
Leitura crtica da edio... Op.Cit.
98
Nesse ponto, cabe ponderarmos que o discurso de Jacopo visto, por Boureau, como tradicional cuja natureza
conservadora poderia ser entendida pelo perigo dos movimentos herticos juntamente com qualquer inovao
relacionada f. A tradio seria, portanto, uma tentativa de salvaguardar uma pretensa ortodoxia BOUREAU,
Alain. Op. Cit. p.214.
48
-49-
Isaias, J e Salmos, assim como ao remeter-se a autores cristos (como, por exemplo,
autoridades doutrinrias o apoio erudito necessrio para construir um santoral cuja veracidade
seria validada.
Contudo, por outro lado, o uso recorrente dos exempla e o destaque aos feitos
santidade dos personagens. Richardson tambm destaca que as breves etimologias, que
antecedem a maioria dos relatos sobre santos, possuiriam a mesma conotao alegrica, sem
questo. Assim, o autor destaca sobre as etimologias: The purpose was, however, not
instruction in history but inspiration in religion and he chooses, arranges and treats his
apologtico: a existncia de uma recompensa em manter-se fiel ao ideal cristo, mesmo que
hereges.
este dualismo e as tenses entre pregao e ao, se nos questionarmos sobre os possveis
destinatrios da LA. Como ponto de partida, apontamos um argumento de Hilrio Franco Jr.:
99
No entanto, o propsito no foi a instruo em histria, mas inspirao religiosa e ele escolhe, organiza e trata
seu material de acordo. Idem.
49
-50-
A partir deste trecho, podemos imputar LA trs funes diretamente relacionadas aos seus
como obra de edificao e como fonte de consulta para o preparo dos irmos pregadores.
Portanto, defendemos que Jacopo de Varazze pretendia atingir dois pblicos principais
de formas distintas. O primeiro e mais imediato era formado por clrigos, especialmente, os
considerarmos que a lngua original de redao foi o latim e que parte do material abordava
doutrinais; breves ensaios sobre a histria de elementos particulares da liturgia; notas crticas
sobre os conflitos entre uma fonte e outra, entre outros poderamos circunscrever o pblico
mais direto parte do clero bem educada. O segundo seriam todos os demais cristos,
infiis e a manuteno dos fiis. Somado a isso, ainda percebemos a promoo dos preceitos
religiosos propostos pela Igreja e a colocao da lei divina acima das demais, mesmo dos
poderes imperiais.101
100
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit. p. 12.
101
Acreditamos que essa questo relacionar-se-ia a resqucios da Reforma Eclesistica ou Gregoriana e o
processo de separao das coisas eclesisticas das laicas. Essa distino visava retirar a Igreja e os clrigos do
domnio laico. Contudo, a lei divina, representada pela Igreja, no poderia ser submetida a nenhuma outra.
102
A estrutura conduz o curso da histria. BOUREAU, Alain. Op.Cit. p. 7.
50
-51-
almejado, por Domingos, equilbrio entre estudo e pregao ao compilar uma extensa obra,
cujas leituras forneceriam instruo e material suficientes para garantir a eficcia da prdica.
Em outras palavras, consideramos que se o seu uso inicial era a instruo dos clrigos, seu
objetivo final era tornar mais eficaz a disseminao e o entendimento dos pressupostos cristos
religioso
Nessa parte, refletiremos em como algumas das questes aqui estudadas aparecem na
LA,103 centralizando-nos na relao entre o poder religioso e o secular. Iniciamos, ento, com
uma reflexo mais geral acerca das disputas entre eles e, a seguir, especificaremos nas que
respectivamente.
relatos presentes na LA, de forma mais direta ou no. Encontramos constantes referncias ao
fato do poder representado pela Santa S estar acima do Imperial ou Real. No captulo sobre
Santo Ambrsio acreditamos importante ressaltar a passagem na qual Jacopo trata da relao
que Ambrsio solicitou ao Imperador que perdoasse aqueles que o ofenderam. Apesar de
seguir sua orientao e perdo-los, Teodsio foi instigado pela m ndole dos cortesos e
mandou matar muitas pessoas. To logo soube do ocorrido, o bispo proibiu a entrada do
103
Ressaltamos que as pginas especificadas para os relatos e as citaes realizadas aqui fazem referncia a
edio brasileira de Hilrio Franco Jr..
104
A primeira narrativa est na pgina 358 e a segunda, nas pginas 363-364.
51
-52-
imperador na igreja de Milo, a no ser que este fizesse penitncia para pagar pelos seus
Na segunda narrao desse mesmo episdio, percebemos uma sutil diferena. Nesta,
mais autoridade ao seu relato. Nesta verso, durante uma revolta em Tessalnica, alguns
juzes foram apedrejados pelo povo e o imperador Teodsio, revoltado, mandou matar 5 mil
pessoas, sem diferenciar culpados de inocentes. Quando foi a Milo, foi proibido de entrar na
divina.105 O dominicano caracteriza o bispo como um autntico pontfice por ele no temer
o imperador, o que, em nossa opinio, seria uma crtica aos sacerdotes que se curvavam
Rufino insiste e segue para Milo, mas no consegue alterar o jugo de Ambrsio.
Assim, o imperador decide reencontr-lo e aceitar a punio pelos seus pecados. Aps
105
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit. p. 363.
106
Ibidem, p.364.
52
-53-
sculo XII. Jacopo responde diretamente aos conflitos entre o papado e a dinastia
sculo XIII. Neste sentido, ele posiciona-se acerca do lugar do imperador em relao Igreja,
Pelgio. Assim, narrou a relao entre Oto IV (1198-1215) e Inocncio III, que se encontrava
partir do momento em que o papa pde destitu-lo do cargo. Contudo, como analisamos,
anteriormente, o antema enfraqueceu Oto, fazendo com ele perdesse apoio, sendo destitudo
por outros representantes do poder civil, mas no por Inocncio III, como narra Jacopo.
A seguir, ele continua com a narrativa da relao entre Frederico e a Igreja da seguinte
forma:
Quando Oto foi deposto, elegeu-se Frederico, filho de Henrique, que foi
coroado pelo papa Honrio. Ele promulgou timas leis para a liberdade da
Igreja e contra os herticos. Ultrapassou todos os monarcas em riqueza e
em glria, mas deixou-se enganar pelo orgulho que tinha delas. Foi, de fato,
um tirano da Igreja, pois encarcerou dois cardeais e mandou enforcar os
107
Idem, p.1024.
53
-54-
apresent-lo como um timo aliado s leis da Igreja e colocar que seus atos contra a mesma
foram posteriores, resultados de seu orgulho. Acreditamos que Jacopo no menciona a relao
entre Frederico e o papa Inocncio IV por este ainda estar vivo, durante a redao da obra.
Assim, podemos concluir que, atravs de relatos da LA, Jacopo postula respostas s
defende posies pessoais em relao ao clero e o seu envolvimento com o mbito civil, que
produto das relaes de poder, nas quais seu compilador est inserido.
3. Consideraes parciais
religiosos laicos. Em suma, a sociedade medieval passou por diversas transformaes, ligadas
enfrentava novos desafios com o surgimento dos movimentos religiosos laicos, como as
Ordens Mendicantes, as confrarias, assim como as distintas heresias, resultados de uma busca
A partir desse contexto, pensamos como as relaes estabelecidas para/ com a Igreja e
a Ordem Dominicana assim como entre essas duas instituies influenciaram a produo
108
Ibidem.
109
Veremos essa colocao em relatos contemporneos no prximo captulo com a anlise do martrio
imaginrio de Domingos de Gusmo e a relao com os hereges.
54
-55-
e hagiografia, conclumos que o compilador teria escolhido tal gnero, por este no possuir
variados.
compilao foram o de postular modelos de boa conduta para instruo dos seus irmos e o
entre os fis e a converso dos infiis e hereges. Partindo desta premissa, tambm afirmamos
que Jacopo, ao compilar a LA, posicionou-se politicamente nas relaes de poder entre a
Alm disso, defendemos que a obra representava uma tentativa de atingir o equilbrio
entre erudio e ao. Portanto, a explorao das particularidades de cada vitae que a compe
favorecia seu carter didtico e seu uso na pregao, possibilitando o vnculo entre o leigo e o
santo em questo. Em suma, Jacopo preocupou-se em afirmar que o ideal de vida crist
poderia ser seguido por qualquer um, no entanto, esta mensagem precisaria da ampla
receptividade da obra, proporcionada pela oralidade, ou seja, pela pregao. Em suma: Jacopo
110
VARAZZE, Jacopo. Op. Cit.
55
-56-
Por ltimo, conclumos que, a partir dos discursos com os quais Jacopo teve contato,
ele preocupou-se em contra atacar erros doutrinais especficos associados aos hereges de seu
tempo aparecendo em distintos relatos. Contudo, influenciado pelos conflitos entre o papa e o
poder civil, ele selecionou narrativas que forneceriam material necessrio e adequado para os
56
-57-
CAPTULO 2
da Cristandade
1. Apresentao
Como j assinalamos, a temtica do martrio foi difundida, a partir do sculo II, por
hagigrafos, devido ao advento das perseguies aos cristos, no mbito do Imprio Romano.
Ento como podemos compreender a sua retomada, no sculo XIII, estando presente em
hagiografias e em documentos papais? Essa foi uma das perguntas iniciais de nossa pesquisa.
Este estudo preliminar foi fundamental para a nossa anlise dos relatos dos mrtires, presentes
na LA, no apenas por nos fornecer uma compreenso dos significados que esses personagens
tinham nesse momento, como tambm por auxiliar na nossa interpretao do porqu Jacopo
de Varazze ter reservado a maioria dos captulos a eles, especialmente aos martrios ocorridos
Nesse captulo, exploramos duas vias que selecionamos para compreenso desse
fenmeno: os movimentos herticos e as cruzadas. Ressaltamos que elas foram tratadas tendo
em vista as relaes de poder estabelecidas entre hereges e infiis com a Igreja e com a
cristianismo.
A seguir, iremos analisar o porqu dos hereges serem vistos como um problema para a
57
-58-
heresia ctara. Desse ponto, pensamos como a questo do surgimento dos movimentos
herticos influenciou a produo da LA. Para tanto, correlacionamos as reflexes dessa parte
inicial com a anlise do relato sobre o martrio imaginrio de So Domingos (p.614/ 631).2
cruzadista. importante ressaltarmos que nossa anlise centralizou-se nas cruzadas contra os
infiis, no geral, sem nos especificarmos em uma, j que nossa preocupao reside na
hagiogrficos surgiram a partir do culto aos mrtires, se limitando quase que exclusivamente
s Actas de los mrtires, cujo exemplo mais antigo seria o martrio de So Policarpo, de
meados do sculo II. Contudo, o autor no acredita que essa tenha sido a primeira expresso
os mrtires, que narravam dos ltimos dias de suas vidas at a sua morte.5 Como assinalamos,
2
Cabe sublinharmos que as pginas dos relatos referem-se edio brasileira realizada por Hilrio Franco Jr.
JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos. FRANCO JR., Hilrio (trad.). So Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
3
BAOS VALLEJO, Fernando. La Hagiografa como Gnero Literrio em la Edad Media. Tipologia de Doce
vidas individuales castellanas. Oviedo:. Departamiento de Filologia Espaola, 1989.
4
Ibidem, p. 29.
5
Haveriam ainda outros dois tipos de produo literria sobre os mrtires, os acta ou gesta e as legendas picas
e romanescas. O primeiro grupo de textos tratavam dos interrogatrios e julgamentos, enquanto o segundo
abordava a vida do personagem, estando prximos ao gnero pico ou ao romance histrico.
58
-59-
durante as perseguies aos cristos.6 Eles so norteados por episdios incrveis, sendo
conferiram uma nova significao ao termo grego que designava, originariamente, testemunha
(martyr).
aquele que, apesar de nunca ter visto ou ouvido Cristo em vida, estaria to convencido das
verdades do cristianismo que preferia morrer a renegar sua f. Blasucci afirma que o mrtir
seria a testemunha perfeita de Cristo (imitatio Christi), j que o imitava na vida e na morte,
Cristo sobre o mal,9 sendo a extenso do seu sacrifcio de sangue, colocando-se como
Charles Altman, no artigo Two types of oppositionand the structure of saints lives,10
argumenta que as narrativas sobre os mrtires antigos possuem, necessariamente, uma forte
oposio entre esses e seus perseguidores, com um desenrolar concreto de eventos: a priso,11
o interrogatrio e o martrio.
Calavia Saz defende que as notcias sobre as perseguies aos cristos circulavam devido ao
6
Di Berardino ressalta que o culto aos mrtires comeou a ganhar contornos especficos como resultado do
prprio nascimento da literatura hagiogrfica . DI BERARDINO, Angelo et all. Martrio. In: _____. (Org.)
Dicionrio Patrstico e de Antigidades Crists. Petrpolis: Vozes, 2002. p.895-902. p. 896.
7
MORENO, Jos Garrido. La pena de muerta em la Roma Antigua: Algunas reflexiones sobre el martrio de
Emeriterio y Celedonio. Kalakorikos, n. 5, p. 47-64, 2000. p. 49.
8
BLASUCCI, Antonio. Martrio, imolao, sacrifcio. In: GUIMARAES, Almir Ribeiro (Org.). Dicionrio
Franciscano. Petrpolis: Vozes, 1999. p.416-420. p. 416.
9
Lucy Grig, no artigo Torture and truth in late antique martiryology, argumenta que os smbolos de tortura ou
morte atrelados s iconografias dos mrtires representavam a sua vitria sobre os instrumentos utilizados para
causar-lhes os suplcios. GRIG, Lucy. Torture and truth in late antique martiriology. Early Medieval Europe, v.
2, n.4, p.321-336, 2002.
10
ALTMAN, Charles. Two types of Oppositionand the structure of latin saints Lives. Medievalia et Humanistica,
n.6, p.1-11, 1975.
11
Nesse ponto, cabe ressaltarmos que a prtica do crcere foi adotada apenas no Alto e no Baixo Imprio,
figurando como parte da pena capital. MORENO, Jos Garrido. Op. Cit, p.58.
12
SAZ, Oscar Calavia. Religio e restos humanos. Cristianismo, corporalidade e violncia. Antropologia em
primeira mo, n. 55, p. 1-27, 2003. Disponvel em: http://www.antropologia.ufsc.br/55.%20oscar-
cristianismo.pdf. ltimo acesso: 17/03/2008.
59
-60-
de acepes sobre essas afirmando que Tertuliano insistiu no carter implacvel delas,
enquanto Orgenes ressaltou que Deus protegeu muitos cristos para evitar uma guerra que
acabasse com a comunidade crist. Ele conclui que os discursos culminavam no argumento de
descomunal.13
O autor tambm afirma que as fontes da poca indicariam que os relatos martiriais
eram feitos para serem lidos em voz alta para multides de peregrinos e devotos: o objetivo
era o de criar uma exaltao emotiva propcia aos fins da terapia, tratando-se de um modelo
Segundo Lucy Grig, no artigo Torture and truth in late antique martiriology,15 o
mrtir era um soldado de Cristo que confrontava a fora do mal, representada, nesse
momento, pelo estado romano. Nessa lgica, este personagem desejaria a sua morte,
exarcebando as torturas, j que, dessa forma, quanto maiores fossem os seus sofrimentos,
maior seria a demonstrao da vitria crist coroada com a sua morte. Segundo a autora, os
construo desses personagens que invertiam as relaes de poder nas torturas17 e nas
execues. Nestas, o mrtir deseja a sua morte, procurando exacerbar os suplcios recebidos,
dentro da lgica de que quanto maior forem os sofrimentos, maior ser a demonstrao da
13
Ibidem, p.9.
14
Ibidem, p.10.
15
GRIG, Lucy. Op.Cit., p. 323.
16
O autor Oscar Calavia Saz defende que a narrativa das crueldades dos suplcios serviria para construo do
culto aos santos. SAZ, Op.Cit..
17
Segundo a autora, no Imprio, todos eram submetidos ao uso da fora no interrogatrio (questio per tormenta),
j que esta seria a nica forma de garantir a verdade. GRIG, Lucy. Op.Cit., p.323.
60
-61-
(mrtir) no torturado para confessar seu crime a no adorao dos deuses , mas sim para
refut-lo.18
Aps o reconhecimento do cristianismo como religio oficial pelo Imprio, Nri de Almeida
Souza, no artigo Hipteses sobre a natureza da santidade,19 afirma que a Igreja iniciou um
processo de exaltao da vida asctica,20 contudo, mantendo laos com o ideal de martrio,
sendo identificado como branco ou espiritual. Este era caracterizado por uma intensa ascese,
com a valorizao da exposio do corpo aos limites naturais, atravs de penitncias, das
proximidade: a superao do limite fsico. Ou seja, os santos eram aqueles que iam alm da
texto The White martydom of Kateri Tekakwitha,21 ao analisar o caso desta beata do sculo
XVII, argumenta que o martrio espiritual a total oferenda da vida do santo a Deus. Nessa
modalidade, os santos morreriam para o mundo e seus prazeres, seguindo uma vida herica de
devoo ao Senhor.
Essa mudana tambm teria tido repercusses em relao ao culto aos mrtires, no
qual Angelo di Berardino destaca trs importantes alteraes. A primeira foi a gradual
eliminao de qualquer associao que poderia fazer crer que a igreja orava pelos mrtires,
afirmando que esses personagens que rezavam por todos. O culto no os tornaria iguais a
18
GRIG, Lucy. Op.Cit. p.328.
19
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4,
p.11-46, 2002.
20
Segundo Blasucci, at o final do sculo IV, somente os mrtires eram objetos de honra e cultos. Assim, com o
fim das perseguies foram encontrados equivalentes ao martrio de sangue. O autor destaca que, nesse
sentido, o ascetismo e a virgindade constituram ttulos a serem venerados pelos fiis e pela igreja. BLASUCCI,
Op.Cit..
21
LEMIRE, Paula Anne S. The White martyrdom of Kateri Tekakwitha. Disponvel em:
http://www.catholic.org/featured/headline.php?ID=980 ltimo acesso: 11/06/2007.
61
-62-
Deus, pelo contrrio, os deixaria em sua condio humana. Em segundo lugar, houve a
supresso dos banquetes fnebres em sua homenagem, substitudos por viglias de orao. Por
ltimo, a prpria liturgia especfica a esses personagens passou a ser caracterizada por leituras
nos textos, foram norteadas pela unio de quatro noes: a ecclesia, pois sem a Igreja no
haveria o martrio; o dom da vida, pelo mrtir simbolizar a doao da vida em nome de um
amor maior representado pela f; a cristologia, que seria seguir o exemplo de Cristo que deu a
vida pelos irmos; e a defesa da verdade do Evangelho, j que o mrtir no morre por si, mas
representante da Igreja, no era mais perseguido e morto por no negar sua f, mas sim devido
Nessa nova lgica do martrio sangrento, o papel do pregador ganha uma conotao
diferenciada, j que a prdica representaria uma outra forma de combate aos que eram
mais colocavam a pregao como um dos objetivos do santo, passando essa a figurar como um
interior do cristo que estaria disposto a dar a vida em nome da cristandade, caso a situao se
22
DI BERARDINO, Angelo. Op.Cit. p.897.
23
FISICHELLLA, Rino. Martrio. In: ____. ; PACOMIO, Luciano & PADOVESE, Luigi (Orgs.) LEXICON.
Dicionrio Teolgico Enciclopdico. So Paulo: Loyola, 2003, p.467- 468.
24
SOUZA, Nri de Almeida. Op.Cit. p.12.
62
-63-
morte do santo por testemunhar a sua f na defesa dos inimigos da cristandade (martrio de
em manter-se fiel ao ideal cristo, mesmo que em condies adversas. Por ltimo,
acreditamos que esta ltima modalidade estaria associada ao martrio branco, mas guardaria
Diante dessas colocaes, podemos concluir que o sculo XIII foi marcado pelo
especficos, adaptadas s associaes estabelecidas com e pela a Igreja, ao longo dos sculos,
indicando a importncia dessa temtica nas operaes de convencimento utilizadas por esta
25
Com o intuito de exemplificarmos essas modalidades, utilizamos os casos de Clara e Francisco de Assis,
citados por Blasucci. Primeiro, ele destaca que Clara se manteve no claustro colocando-se como uma oferenda
sacrifical ao longo de sua vida, na esperana de ser coroada com a palma do martrio. Em outras palavras,
acreditamos que ele esteja fazendo meno ao desejo dela em ter sua vida asctica reconhecida, ou seja, do seu
martrio branco. Alm disso, destaca que os hagigrafos de Francisco de Assis narraram seu desejo de receber o
martrio de sangue, visto as suas trs viagens s terras dos infiis em busca deste. Portanto, trabalha, justamente,
com a associao entre o martrio e a pregao como meio de alcan-lo. (Cf. BLASUCCI, Antonio. Op.Cit.
p.418). Dessa forma, ns tambm podemos pontuar que a retomada do martrio no fora um fenmeno especfico
LA.
63
-64-
Clifford Hugh Lawrence, no livro The Friars. The impact of early mendicant
movement on Western society,26 afirma que, nesse perodo, paralelo a certo renascimento
ligao entre a vocao crist e um engajamento com o mundo secular. Em resposta s novas
Segundo Lawrence, no fim do sculo XIII, aps diversas tentativas dos clrigos para
pediu auxlio aos cistercienses, que iniciaram misses em Languedoque, sob superviso de
Arnald Amaury, abade de Cteaux.27 Em 1203, junto ao bispo de Osma Diego de Azevedo,
28
que se encontrava em uma misso diplomtica, Domingos de Gusmo, na condio de
que teria lamentado, com Diego, o insucesso da investida contra os hereges. Este teria se
26
LAWRENCE, Clifford Hugh. The Friars. The impact of early mendicant movement on Western society. New
York: Longman, 1994.
27
Bolton ressalta que a misso contaria tambm com a presena e liderana de outros cistercienses: Pedro
Castelnau e Raul Frontefroide (BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1983. p.88).
28
Domingos de Gusmo era filho dos nobres Flix de Gusmo e Joana de Aza Ele nasceu em 24 de agosto de
1170, em Caleruega (Castela), falecendo no dia 6 de agosto de 1221, em Bolonha. Por volta de 1186, foi enviado
escola em Palncia, com o objetivo de ser clrigo. Em 1196, o jovem Domingos ingressou no cabido de Osma,
tendo contato com a vida monstica, sob a Regra de So Agostinho. Seus hagigrafos destacam suas aes
hericas e seu comportamento cristo mpar, seu dom como pregador, sua austeridade pessoal e suas viglias e
oraes freqentes. Contudo, procuravam sempre testemunhar sua humanidade, afastando-o de qualquer
aspecto divino. Sobre a vida de Domingos cf., entre outros: GARGANTA, Jos Maria de. Santo Domingo de
Guzmn visto por sus contemporneos. Madri: BAC, 1946; MANDONNET, Pierre. St. Dominic and His Work.
Londres: Herder Book, 1948. ASHLEY, Benedict. The Dominicans. Minnesota: Michael Glazier Book/The
Liturgical Press, 1990. HINNEBUSCH, William. The Dominicans. A Short History. Dublin: Dominican
Publications, 1985; VICAIRE, Marie-Humbert. Saint Dominic and his Times. Nova Iorque: MacGraw-Hill,
1964.
29
HINNEBUSH, William. Op. Cit. Disponvel em: http://www.op.org/domcentral/trad/shorthistory/default.htm.
Acesso em: 14/04/2007.
64
-65-
oferecido para auxiliar uma nova misso composta por alguns desses abades que seguiriam
pregando e vivendo sob pobreza involuntria. Segundo Bolton, o papa Inocncio III teria
Durante essas viagens, teria ocorrido um dos mais famosos episdios da vida de
Em 1207, Lawrence defende que o Papa teria concordado com a organizao de uma
Cruzada para confisco dos bens dos hereges, em Midi, devido aos poucos resultados
contra os hereges pelo uso da fora.30 Em 1209, sob comando de Simo de Montfort,
Inocncio comeou a organizar o movimento que seria conhecido como Cruzada Albigenseda
pastorais. Por volta deste mesmo ano,31 fundou uma casa religiosa em Proille, na diocese de
Convento de Santa Maria de Proille, onde se seguia uma forma de vida austera, dentro de uma
ganharam destaque por serem vistas como centrais para impedir que elas se desviassem,
30
LAWRENCE, Clifford Hugh. Op.Cit. p. 8.
31
Essa data motivo de debate, pois, segundo Brenda Bolton, ele teria fundado o convento em 1206. A autora
destaca que o perodo entre 1209-1214 da vida de Domingos obscuro, sendo conhecido em relatos parciais
sobre Prouille de Jordo da Saxnia, sucessor de Domingos de Gusmo.
32
MONTENEGRO, Margarita Cantanera e CANTANERA, Santiago. Las rdenes Religiosas en la Iglesia
Medieval. Siglos XIII e XV. Madrid: Acor/ Libros, S.L., 1998. (Cuardenos de Historia, 49).
65
-66-
Tolouse,33 obteve a aprovao oral da Ordem que passava a se chamar Ordem dos Irmos
Pregadores, alm de prestar conta dos rendimentos da mesma. Porm, cabe sublinharmos que,
segundo o cnone XIII,34 as novas casas religiosas eram obrigadas a adotar uma regra j
Honrio III (1216-1227), atravs da bula Religiosam vitam.36 Aps esse episdio, os
dominicanos estabeleceram-se como pregadores, cuja principal caracterstica foi a busca pelo
professores.37 Segundo Lawrence, em 1218, o papa pediu assistncia da ordem com a tarefa
da pregao no combate aos herticos. O pedido foi atendido e misses de pregadores saram
conhecimento dos preceitos cristos e a prdica, ou seja, entre contemplao e ao. Assim
33
O bispo Diego de Osma faleceu em 1208, deixando Domingos comandando a misso de Montpellier. Nesse
mesmo ano, o dominicano comeou a pregar pelo sul francs.
34
(...) quien desea fundar uma nueva casa religiosa debe recibir la regla y la institucin de alguna de las
ordenes apropadas (FOREVILLE, Raimunda. Lateranense IV. Vitria: Eset, 1973. p.170).
35
LAWRENCE, Clifford Hugh. Op.Cit. p. 71.
36
Segundo Marie-Humbert Vicaire, uma segunda bula, expedida em janeiro de 1217, reconhecia a novidade das
idias de Domingos e aprovava sua fundao como uma ordem dedicada pregao. VICAIRE, Marie-Humbert.
Saint Dominic and his Times. New York: MacGraw-Hill, 1964. p.152.
37
MANDONNET, Pierre. St. Dominic and His Work Disponvel em:
http://www.op.org/domcentral/trad/domwork/default.htm. Acesso em: 14/04/2007.
38
VICAIRE, Marie-Humbert. Freres Precheurs. Dictionnaire de Spiritualit Disponvel em:
http://www.op.org/domcentral/study/ashley/ds00intr.htm. Acesso em: 15/04/2007.
39
LEHNER, Francis C. (Trad.) The Primitive Constitutions of the Order of Friars Preachers. Disponvel em:
http://www.op.org/domcentral/trad/domdocs/default.htm. Acesso em: 14/ 04/ 2007.
40
Hilrio Franco Junior, na apresentao da edio brasileira de Legenda urea, sublinha a erudio dos
dominicanos e dos franciscanos ao apontar que eles possuam uma presena hegemnica nas Universidades.
66
-67-
teolgicos, era um critrio para os irmos que desejassem pregar. O processo de recrutamento
de novos irmos era muito importante, iniciando com a seleo dos novios, feita em grupos
homem deveria no s estar apto a pregar, mas ser maduro, discreto, bem posicionado mental,
contato com homens em variadas circunstncias e evitar agir como muitos, de forma rude e
indiscreta.42 Alm do mais, o pregador, quando requisitado por padres das parquias locais e/
ou por bispos, deveria ser atencioso o suficiente para no causar nenhum atrito com o clero
local.
Assim, durante o sculo XIII, comeou a se constituir uma proximidade entre a Ordem
centralizado.
Alm disso, eles obtiveram papel de destaque junto s cruzadas, no combate aos hereges, na
Contudo, o papel de extirpar a heresia, em especial a ctara, foi reservado, principalmente, aos irmos
pregadores. JACOPO VARAZZE. Legenda urea; vida de santos ...p.13.
41
LAWRENCE, Clifford Hugh. Op.Cit. p.72.
42
RICHARDSON, Ernest. Op. Cit. p.25. Contudo, o autor no especifica nem se estes muitos seriam clrigos.
43
Gregrio IX, sucessor de Honrio III, tambm encarregou os dominicanos de estabelecerem o ensino teolgico
na Universidade de Toulouse, que se tornou uma clula de combate aos movimentos considerados herticos e
defesa da verdade postulada pela Igreja.
67
-68-
missionrios, seja no combate aos movimentos herticos. A seguir, veremos como a essa
ressaltar que nos focalizaremos nessa heresia devido a sua importncia na constituio da
Ordem Dominicana.
4. A heresia ctara
escola, tal como se dava com as escolas filosficas.45 A priori, no possua nenhuma
conotao pejorativa.
cristianismo surgiram variadas interpretaes sobre a doutrina pregada por Jesus Cristo,
contudo nenhuma fora considerada hertica. Ele defende que a construo pejorativa do termo
heresia47 foi concomitante ao processo de discusso doutrinria que buscava estabelecer certas
verdades, ntida em dois eventos emblemticos: o I (325 d.C.) e o II (787 d.C.) Conclio de
Nicia. Em nosso trabalho, utilizamos a idia proposta pelo autor: a conotao negativa
44
GROSSI, Vittorino. Heresia Hertico. In: DI BERARDINO, A. (Org.) Dicionrio Patrstico e de
Antigidades Crists. Petrpolis: Vozes, 2002, p.665-666.
45
Ibidem, p. 665.
46
MNGUEZ, Csar Gonzalz. Religon y Hereja. Clo & Crmen: Revista del Centro de Historia del Crimen
de Durango, n. 1, p. 19-21, 2004.
47
Para mais informaes acerca das heresias medievais, cf. FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. So Paulo;
Perspectiva, 1977; HERVE, Masson. Manual de herejas. Madrid: Rialp, 1989; GRANDA, Cristina et
Fernndez, Emilio Mitre. Las grandes herejas de la Europa cristiana (380- 1520). Madrid: Istmo, 1983;
RIBEIRO JR., Joo. Pequena Histria das heresias. Campinas: Papirus, 1989.
68
-69-
define herege como aquele que buscava um aperfeioamento espiritual a margem do que foi
oficialmente estabelecido. No mbito cristo, essa noo perde sua neutralidade conforme o
sido batizado, ou seja, tendo se submetido ao conjunto de dogmas e verdades aceites pela
Igreja, passa a negar ou duvidar desse conjunto ou de parte dele, interpretando-o livremente e
verdades das quais est convicto.50 Em outras palavras, a construo da identidade de herege
necessita da existncia de outra identidade, externa e diferente dela, que a qualifique como tal,
representava uma ameaa unidade crist sob o controle da Igreja por significar a perda de
fiis e o no-reconhecimento do erro, e sim a sua continuidade. Por outro lado, a Santa S
foi importante para a prpria constituio e a afirmao dos valores da Igreja, como tambm
48
FERNANDEZ, Emilio Mitre. Edad Mdia Hertica: lo real y lo instrumental. In: RUANO, E.L. (Coord.)
Tpicos y realidades de la Edad Media (III). Madrid: Real Academia de la Historia, 2004. p.135 211.
49
THOM, L.M.S., Da ortodoxia heresia: os valdenses. (1170-1215). Dissertao (Mestrado em Histria)
Programa de Ps-graduao em Histria. Curitiba: Universidade Federal do Paran, 2004.
50
Ibidem, p.20.
51
A partir do sculo XII o termo heresia passou a designar a totalidade dos movimentos dissidentes. GENICOT,
Leolpold. Europa en el siglo XIII. Barcelona: Labor, 1976.
69
-70-
Temtico do Ocidente Medieval,52 resume essa idia ao afirmar que a heresia existe onde a
Emilio Mitre Fernndez e Cristina Granda, no livro Las grandes herejas de la Europa
cristiana (380- 1520), de 1983,54 completam o argumento ao afirmarem que a heresia seria,
seguir, faz parte desses movimentos heterodoxos que, de qualquer modo, e, sobretudo
Dominicana
as reformas e os conclios que objetivavam destacar e refutar os erros. O autor ainda destaca,
dos maiores desafios cristandade, tanto pela sua abrangncia, quanto pela sua durao,
afirmando que:
52
ZERNER, Monica. Heresia. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J-C (Coord.). Op.Cit. p. 503-521.
53
Ibidem, p.521.
54
GRANDA, Cristina et Fernndez, Emilio Mitre. Op.Cit.
55
NELLI, Ren. Os ctaros. Lisboa: Edies 70, 1980. p.23.
56
Ressaltarmos que, segundo Emilio Mitre Fernndez, no texto Edad Media Hertica. Lo real y lo instrumental,
op. cit, e Robert Ian Moore, no livro La formacin de una sociedad represora. Poder y disidencia en la Europa
occidental. 950- 1250, publicado pela editora Crtica em 1989, os inimigos da cristandade eleitos pela Igreja
variaram, durante a Idade Mdia, segundo as relaes de poder estabelecidas. Nesse sentido, os autores destacam
os pagos, herticos, infiis, imperadores.
57
Para mais informaes sobre o catarismo, cf. BRENON, Anne. La verdadera historia de los ctaros. Vida y
muerte de una iglesia ejemplar. Barcelona: Martnez Roca, 1997; DALMAU, Antoni. Los ctaros. Catalunya:
UOC, 2002; DANDO, Marcel. Les origines du catharisme. Paris: Pavillon, 1967; GRIFFE, Ellie. Le Languedoc
cathare de 1140 1190. Paris: Letouzey e An, 1971; SDERBERG, Hans. La rligion des Cathares; tude
sur le gnosticisme de la basse antiquit et du Moyen ge. Sucia: Uppsala University Press, 1949.
70
-71-
O local de surgimento dos primeiros ctaros uma questo que suscita diferentes
possibilidades. Segundo Joo Ribeiro Junior, no livro Pequena Histria das heresias,59 o
movimento teria iniciado em Albi, no sul da Frana, contudo, no artigo Ctaros: Herejes o
Buenos hombres?, Martn Alvira Cabrer60 defende que teria sido na Renania, no norte da
Frana. Ren Nelli, no livro Os Ctaros61 defende que esse movimento desenvolvera-se
principalmente na regio da Occitnia62 e apresentar-se-ia como uma longa luta entre o norte
e o sul francs.
principalmente, para Languedoc.63 Cabrer defende que o catarismo teria se fixado no territrio
francs por este ser um porto de desenvolvimento cultural aberto a novas idias religiosas.
Acreditamos que o outro fator apontado pelo autor tenha sido mais importante nessa difuso:
a fragmentao poltica.
Roma, vinculada com a nobreza. Um dos pontos de oposio entre o catarismo e a Igreja
como corrompida pelas prticas do nicolasmo e simonia. Dessa forma, segundo Ren Nelli:
58
FERNNDEZ, Emilio Mitre. Op.Cit. p.167.
59
RIBEIRO Jr., Joo. Pequena Histria das heresias. Campinas/ SP: Papirus, 1985. p.72.
60
CABRER, Martn Alvira. Ctaros: Herejes o Buenos hombres? Clo: Revista de historia, n. 40, p. 20-27,
2005.
61
Op.Cit.
62
A Occitnia abrangia as regies da Provena, o Limoges, a Auvernha, a Gasconha, o Languedoc e o Delfinado
entre outras, englobando partes da Itlia, Frana, e um pequeno territrio Espanhol.
63
Languedoc foi anexado Frana em 1229, pelo Tratado de Meaux.
71
-72-
lhes apetecia, sem respeitar a Trgua de Deus; manter, para tal efeito,
bandos de homens armados que assolavam o pas; e, como no eram, de
modo algum, anti-semitas, no hesitavam em empregar judeus e em lhes
confiar postos em que tivessem autoridade sobre os cristos: atos que a
Igreja Romana proibiria se tivesse poderes.64
Ressaltamos que o catarismo comeou a se difundir pelo norte italiano; por Milo,
pela Lombardia e at mesmo por Florena. Segundo Joo Ribeiro Junior, o desenvolvimento
desse movimento ocorreu tambm por questes polticas, j que os ctaros contaram com o
apoio dos gibelinos, aliados ao Sacro Imprio Romano, e contrrios aos guelfos, favorveis ao
papado.65
O catarismo uma heresia dualista que defendia o duplo princpio eterno do bem e do
mal, tendo como texto de referncia o Evangelho de So Joo, considerado o nico escrito
Deus seria o esprito bom, e o mundo, por ele criado, seria povoado por seres
espirituais participantes da natureza divina. J o material seria fruto de uma fora puramente
maligna. Os homens seriam criaes do Deus bom, e, portanto, teriam a chance de alcanar a
esfera espiritual pela via da purificao. Para tanto, deveriam combater a carne que
como outra influncia, no acreditamos que essa possibilidade seja vivel, tendo em vista as
64
NELLI, Ren. Op.Cit. p.11.
65
RIBEIRO Jr., Op.Cit.p.74.
66
Idem. p.73
67
LAWRENCE, Clliford Hugh. Op. Cit. p.4.
72
-73-
eucaristia; opunham-se venerao aos santos, orao dos defuntos e aos sacramentos
cristos. Alm disso, no prestavam nenhum tipo de juramento, base das relaes feudais na
Eles pregavam uma vida em profunda ascese pobreza voluntria, castidade, jejum ,
contudo esta estaria ao alcance pleno de poucos, chamados de perfeitos, bons cristos ou
dualista, como tambm a instalao de uma hierarquia ctara no quadro de dioceses bem
delimitado.72 Esse arranjo estrutural figurou como mais um motivo de rivalidade com a Igreja
Romana.
68
NELLI, Rne. Op.Cit. p. 10.
69
A Igreja Ctara era formada por dois grupos distintos: pelos perfeitos ou eleitos, que seriam os escolhidos para
o encontro com o Deus bom. A profisso das idias era realizada apenas pelo grupo de ministros ctaros
(perfecti). Os crentes ou auditores participavam na qualidade de ouvintes. Havia duas cerimnias principais: o
consolamentum e o melioramentum. O primeiro era um tipo de batismo, que se destinava aos perfeitos. Aps o
recebimento deste, eles seguiriam uma vida de rigorosas penitncias, renunciando s propriedades pessoais, ao
casamento e atividade sexual; assim como realizando uma permanente abstinncia de alimentos de origem
animal, inclusive ovos e leite. O segundo era o nico rito obrigatrio para os crentes, que adoravam a presena
do Esprito Santo nos perfeitos e, ao mesmo tempo, pediam para serem aperfeioados. Alm disso, eles se
comprometiam a receber o consolamantum na hora da morte e se integrar totalmente a Igreja Ctara. NELLI,
Rne. Op.Cit..
70
Os ctaros consideravam-se os mais puros devido a seu padro de vida. A prpria palavra ctaros vem do
grego kathars, que significa puro.
71
FERNANDZ, Emilio Mitre. Op.Cit. p.166.
72
NELLI, Rne. Op.Cit. p.54.
73
-74-
Inocncio III (1198 1216) foi o primeiro papa a sistematizar um programa de luta
Toulouse, conclamou a Cruzada Albigense que objetivava, entre outras coisas, erradic-los da
Domingos de Gusmo75 e Pedro de Castelneau. Liderada pelo legado papal, Arnaldo Amauri,
a cruzada objetivava a completa derrota dos hereges que pululavam nas cidades e fortalezas
massacre de Blsiers, devido a seu teor sanguinrio. Esse fato ganhou destaque por ter
episdio, teria circulado, oralmente, uma anedota que fora apreendida pelo escritor
Dialogus Miraculorum.76 Nesta obra narrado que, antes da invaso, um dos guerreiros teria
perguntado ao legado papal Arnaldo Amauri sobre como distinguir quem era herege e quem
no era durante o ataque, recebendo a seguinte resposta: Matem todos, Deus escolher os
seus!
73
Segundo Martn Alvira Cabrer, a represso violenta teria iniciado entre 1178 e 1181 com o estabelecimento
das primeiras operaes armadas para combater esses inimigos utilizando a justificava da Guerra Santa da qual
trataremos na segunda parte deste captulo com a implementao das Cruzadas.
74
Neste ponto, ressaltamos que o Rei da Frana, Felipe Augusto, por nunca ter se considerado vassalo do papa,
manteve-se fora desse movimento. Apenas interveio, aps a derrota dos hereges, para anexar os territrios de
Raimundo VII, conde de Toulouse, e os de seus vassalos, o visconde de Blziers e o conde de Foix (RIBEIRO
JR, Joo. Op.Cit. p.76).
75
Domingos de Gusmo comeou a pregar junto cruzada tendo sua atitude copiada por outros, como o bispo
Diogo; o abade Arnaldo de Citeaux; o bispo Foulques de Toulouse. Contudo, durante o desenrolar da cruzada, o
dominicano rumou para Midi.
76
Para a traduo para o espanhol moderno dessa obra, cf. CESRIO DE HEISTERBACH. Dialogo de milagros
de Cesreo de Heisterbach. Zamora: Monte Casino, 1998.
74
-75-
utilizando o terror como arma de guerra.77 Simo morreu em 1218, aps seu retorno a
Montsgur, foi derrubado. Contudo, esse episdio no figurou como a derrota completa do
movimento, j que ainda eram encontrados vestgios de segmentos ctaros no sculo XIV.78
abalados com o catarismo.79 Essa questo aparece no cnone III do conclio de Latro (1215),
organizado quase uma dcada depois do incio dessa cruzada por Inocncio III: los catlicos
que habiendo tomado la cruz se armen para dar caza a los hereges, gozarn de la indulgncia
y del santo privilegio concedidos a los que van em ayuda de Tierra Santa.80 Assim, temos um
incentivo aos combatentes das heresias, com a promessa da indulgncia e dos mesmos
em relao s formas utilizadas pela Igreja para lidar com aqueles que eram considerados
movimento cruzadista para o combate com a fora armada, as reformas e os conclios que
objetivavam a identificao e refutao do erro. Inocncio III pode ser considerado como o
nico papa que sistematizou um projeto implementando quase todas essas formas de
combate.81
77
NELLI, Rne. Op. Cit. p.29.
78
Segundo Joo Ribeiro Junior, os albigenses se refugiaram na Itlia, contudo foram descobertos pela
Inquisio. Desde ento, espalharam-se pelos pases da Europa Ocidental e Oriental. Resistiram mais tempo nos
Alpeninos e nos Alpes da Lombardia, desaparecendo por volta de 1400. RIBEIRO JUNIOR, Op. Cit., p. 80.
79
A represso s heresias ocorreu tambm atravs dos conclios, dos quais destacamos o III Conclio de Latro
(1179) e o IV Conclio de Latro (1215), que ser tratado neste captulo.
80
FOREVILLE, Raimunda. Op.Cit. p. 160.
81
BOLTON, Brenda. Op.Cit. p.196.
75
-76-
De acordo com Bolton, o IV Conclio de Latro foi fruto de mais uma tentativa de
marcado carter normativo que visava a organizao institucional do corpo eclesistico sob a
liderana do Papa. Inclusive, a questo da heresia abordada nos trs cnones iniciais da ata
conciliar segue o mesmo ideal de centralizao de todo o corpo eclesistico tendo como
ponto central o Papa como portador da plenitude potesta, tema central destes cnones, visava
O primeiro cnone trata dos preceitos ortodoxos, defendidos pela Igreja com a
afirmao da existncia de apenas uma Igreja Universal. Neste, temos alguns elementos
contudo com a preocupao de afirmar que os ritos deveriam seguir conforme o estabelecido
pela ortodoxia.84
O terceiro85 destacou-se em nosso estudo por trs motivos. Primeiro, por tratar de
82
Ibidem ,p.130.
83
SILVA, Andria C. L. Frazo da. O IV Conclio de Latro: Heresia, Disciplina e Excluso. In: _____. e
ROEDEL, Leila.R. Semana de Estudos Medievais, 3, Rio de Janeiro, 25 a 28 de abril de 1995. Rio de Janeiro:
PEM - UFRJ, 1995. p. 95-101. Disponvel em: http://www.ifcs.ufrj.br/~pem/textos.htm. ltimo acesso:
11/06/2007. p.97.
84
Neste ponto, ainda destacamos um elemento que permeou alguns dos cnones do Conclio: a normatizao dos
costumes e das prticas eclesisticas e laicas.
85
Apesar da nossa opo em no trabalhar com o segundo cnone, cabe mencionarmos que este trata do
Joaquimismo, identificando os preceitos defendidos e refutando-os para, por fim, conden-los.
86
FOREVILLE, Raimunda. Op.Cit. p. 159.
76
-77-
A seguir, o cnone passa a determinar as penalidades aplicadas aos que forem suspeitos de
opinies herticas e no conseguirem provar a inocncia, aos condenados como hereges e aos
parte do mbito eclesistico, como essas relaes foram apreendidas por Jacopo e
influenciaram ou no a redao da LA? Para responder essa questo, iremos pensar como isso
Temtico do Ocidente Medieval,87 por volta dos sculos IV e V, teria iniciado um processo de
sacralizao do exrcito imperial, legitimado pela Igreja. Contudo, essa legitimao foi
controlada e restrita, com a constituio da noo de guerras justas por Agostinho, bispo de
Hipona: so ditas justas todas as guerras que vingam injustias, quando um povo ou Estado,
a quem a guerra deva ser feita, deixou de punir os seus ou de restituir aquilo que foi saqueado
em meio a essas injustias.88 Ele defendia que um cristo poderia tomar parte em alguns
casos especficos de combate, objetivando sempre a restaurao da paz iluminada por uma
justia autntica.89 Nesse sentido, estabelecia-se a idia de que um homem cristo era sempre
portador da paz, mesmo ao utilizar-se de armas, j que possua como finalidade o combate das
injustias.
No entanto, por volta dos sculos X e XI, a ausncia de um poder central forte
ameaava uma pretensa paz na cristandade. Em outras palavras, a Igreja perdia o controle
almejado sobre a violncia que havia permitido para a proteo dos cristos. Franco Cardini
87
CARDINI, Franco. Guerra e Cruzada. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J-C (Coords.). Dicionrio Temtico do
Ocidente Medieval. 2v., 1v. So Paulo: Imprensa Oficial/ EDUSC, 2000. p. 473-487.
88
SANTO AGOSTINHO Apud DEMURGER, Alain. Os Cavaleiros de Cristo. Templrios, teutnios,
hospitalrios e outras ordens militares na Idade Mdia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p.20.
89
CARDINI, Franco. Op. Cit., p. 475.
77
-78-
aponta que nessa questo havia o destaque do sofrimento dos pauperes, as violncias
snodos de paz. Com isso, houve o desenvolvimento de dois movimentos: o primeiro foi o
juramento conhecido como Pax Dei (Paz de Deus), que objetivava proteger pessoas
segundo foi a tentativa de impedir a prtica da violncia nas datas consideradas sagradas, com
a Tregua Dei (Trgua de Deus). Neste sentido, acreditamos que o fim central desses
processos que podem ser percebidos na utilizao crescente de membros do exrcito pelo
Cristo) em alguns textos do sculo XI. Alain Demurger destaca como a prpria utilizao da
cavalaria contra elementos do poder temporal fora enquadrada na idia de guerra justa.
guerra justa?
guerreiros franceses para rumarem para o Oriente, onde os cristos eram ameaados pelos
como o primeiro passo para a organizao e a estruturao das cruzadas.92 Cardini argumenta
90
Idem, p.477.
91
COLE, Penny J. The Preaching of the Crusades to the Holy Land, 1095-1270. Cambridge: Medieval Academy
Books, 1991.
92
Para mais informaes sobre as Cruzadas, cf. BARBER, Malcolm, Crusaders and Heretics, 12th - 14th
centuries. Aldershot: Variorum, 1995; BARKER, Ernest. The Crusades. London: Oxford University Press, 1923;
BENVINISTI, Meron. The Crusaders in the Holy Land. New York: MacMillan Publishing Company, 1972;
BILLINGS, Malcolm, The Crusades: a History. United Kingdom: Tempus Publishing, 2000; MARVIN,
Laurence E W. Thirty-nine Days and a Wake-up: the Impact of the Indulgence and Forty Days Service on the
Albigensian Crusade, 1209-1218. The Historian, v.65, n.1, p.75-94, 2002; QUESADA, Ladero et NGEL,
78
-79-
que a guerra na Terra Santa ou na Espanha, aps esse pedido do papa, chamou a ateno de
diversos cavaleiros que estavam dispostos a se sacrificarem na defesa dos santurios cristos e
dos peregrinos.93
como:
Segundo o autor, as Cruzadas teriam como antecedente a proteo dos peregrinos. Assim,
vamos nos focar em uma influncia relacional das peregrinaes com o ideal norteador da
Ramos e Demurger fazem a associao que nos parece mais interessante ao definir
cruzada como uma peregrinao armada, j que visava inicialmente libertar o Santo Sepulcro
do infiel, e no apenas orar e meditar nele. Contudo, conteria o ideal da Guerra Santa96 de
ajudar irmos cristos e recuperar o que era da cristandade por direito, mas que fora
injustamente usurpado pelos infiis. Nessa lgica, o cruzado se via como um peregrino, mas
tornava-se Miles Christi, soldado de Cristo, partindo para libertar o patrimnio do Senhor e a
Ramos destaca ainda que a cruzada possua uma perspectiva reformadora que
conduzia a guerra justa aos infiis excomungados. Contudo, ele atenta para o fato de que o
Miguel. Las Cruzadas. Barcelona: Destino, 1974; RODRGUEZ, Loste et ANTONIA, Mara. Las
Cruzadas. Madrid: Grupo Anaya, 1990; RUNCIMAN, Steven. A History of the Crusades. Cambrigde:
Cambridge University Press, 1954. 3v.
93
CARDINI, Franco. Op. Cit. p. 479.
94
RAMOS, Luis Garca-Guijarro. Papado, Cruzadas y rdenes militares, siglos XI-XIII. Madrid: Ctedra, 1995.
95
Ibidem, p.49.
96
Alain Dermurger, no supracitado livro, sublinha que a Guerra santa era entendida como a aplicao da guerra
justa a todos os adversrios da f cristo, da Igreja e do papado. Op.Cit. p. 21.
97
Idem, p. 23.
79
-80-
hereges e lderes cristos como os ministros do imprio dos Hohenstaufen, na Itlia, e contra
Penny J. Cole, no trabalho The preaching of the Crusades to the Holy Land, 1095-
1270, conclui que essa mudana no ideal e no objetivo primrios das cruzadas foi resultado de
uma srie de acontecimentos que direcionaram esse fenmeno para atender interesses
polticos. A autora percebe certo insucesso desse movimento, afirmando que este ocorreu pela
indulgncias, contudo, acreditamos que por possuir um objetivo inicial similar ao da guerra
santa, e ambas foram incentivadas e apoiadas pela Igreja, no podemos supor que haveria a
possibilidade do martrio como recompensa nos dois casos? Acreditamos que os ideais que
nortearam as cruzadas contra os infiis, assim como os da guerra santa, eram similares e que,
assim, aos que morressem haveria como recompensa a palma do martrio, especialmente no
caso de membros das ordens mendicantes, que acompanhavam as expedies. Nesse sentido,
Segundo Christoph T. Maier, no livro Preaching the Crusades: Mendicant Friars and
the cross in the Thisteenth Century,100 desde os primrdios das cruzadas, os papas
expedies. Contudo, no sculo XIII, como as Ordens Mendicantes possuam um novo estilo
98
O autor vai alm, afirmando que o autntico esprito cruzadista era o seu ntido carter antimulumano,
99
COLE, Penny. Op.Cit. p. 219.
100
MAIER, Christoph T. Preaching the Crusades: Mendicant Friars and the cross in the Thisteenth Century.
Cambridge University Press, 1949.
80
-81-
recrutamento papal. Especialmente com o papa Gregrio IX (1227- 1241) essa transformao
fica mais clara, j que ele convocou freqentemente freis, como os dominicanos Raimundo
Por fim, temos ainda que considerar que o incentivo que foi dado aos mendicantes,
dominicanos e franciscanos para que pregassem nas cruzadas foi justamente a promessa do
reconhecimento do martrio dos membros dessas ordens que falecessem. Segundo James
Ryan, no artigo Missionary saints of the high middle ages: martyrdoom, popular veneration
and canonization,102 essas ordens teriam recebido cartas do Papa Inocncio III nas quais
afirmava que os missionrios, assim como os inquisidores, que morressem em nome de Cristo
Assim, os trs casos guerra santa, cruzadas contra os infiis ou hereges e aes
armada ou da pregao. Partindo desse pressuposto, defendemos que a cruzada tambm pode
ser enquadrada no ideal de guerra justa, e, portanto, que poderia haver a recompensa do
martrio aos mortos sob essas trs condies; cruzadista, guerreiro da guerra santa ou
missionrio.104
101
Segundo Lawrence, dominicanos e franciscanos foram, constantemente, chamados por Gregrio IX para
pregar a f, com o objetivo de incitar os cruzados a se organizarem rumo a Terra Santa e aos blticos. Algumas
vezes o pedido era direcionado a pregadores individualmente e outras ao providencial da Ordem em questo com
a instruo de que fosse selecionado algum para pregar a cruz em sua regio.
102
RYAN, James. Missionary saints of High Middle Ages. Martyrdom, Popular veneration and Canonization.
The Catholic Historical Review, v. 90, no1, p.1-28, jan/ 2004.
103
Contudo, o autor coloca que Roma fazia-se hesitante em realizar novas canonizaes nesse momento. Assim,
coube aos hagigrafos dessas ordens preservarem a memria dos martirizados em vitaes e legendaes, assim
como em crnicas e oraes. RYAN, James. Op.Cit. p. 4.
104
Nos relatos sobre Domingos e sobre Francisco temos uma pequena, porm fundamental diferena. No
primeiro, h algumas menes a contatos com hereges, contudo nenhuma sobre os infiis. J no segundo
encontramos uma referncia de um encontro do mendicante com um infiel, contudo nenhuma com herege.
Compreendemos que estas escolhas estariam em sintonia com um novo ideal de martrio no sculo XIII
vinculado prdica.
81
-82-
que, durante uma viagem a Toulouse junto ao Bispo de Osma, Domingos percebeu que o seu
anfitrio estava corrompido pelo erro hertico. Dessa forma, o dominicano converteu-o a f
crist, oferecendo assim ao Senhor o primeiro feixe da futura colheita.105 Acreditamos que
Jacopo, com essa passagem, faz aluso organizao da Ordem Dominicana e ao seu sucesso
Nesse ponto, Jacopo afirma que foi o papa Inocncio III quem pedira a Domingos e a
Diego para que fossem a Montpellier pregar entre os hereges, na esperana de converterem os
ctaros ali presentes. Ao colocar o pedido feito pelo papa nominalmente, acreditamos que o
compilador estaria construindo a idia de que Domingos j era visto como um pregador,
Nesta cidade, ambos encontraram uma misso cisterciense que reclamou do malogro
diante dos hereges. Segundo esta, os ctaros gozavam de ampla simpatia entre os fiis devido
na populao. Devido ao resultado positivo que obteve, Domingos teria decido organizar uma
ordem que suprisse a Igreja com pregadores instrudos106 e preparados. Segundo Richardson,
Jacopo informa que a morte do bispo de Osma, em 1207, em Montreal, deixou apenas
Domingos e alguns outros poucos irmos no combate aos hereges, anunciando com
105
JACOPO DE VARAZZE. Op.Cit. p.615.
106
A ateno dada formao de pregadores no mrito apenas da Ordem, estando presente no seio das
preocupaes da Igreja, sendo suscitada no IV Conclio de Latro, em 1215 (FOREVILLE, Raimunda. Op.Cit.)
107
RICHARDSON, Ernest. Op.Cit. p. 25.
82
-83-
constncia a palavra do Senhor,108 sob as mais duras penas. Defendemos que a narrao de
situaes difceis nas quais o santo esteve inserido para predicar funcionaria como um forte
incentivo aos demais frades para se colocarem a merc dos hereges, com o propsito de
convert-los.
personagens, sendo todos enquadrados sob essa designao generalizante, tal como no cnone
desses episdios est qualificando-as como um erro que deveria ser combatido. Assim, no d
herticos.
ouvirem seu sermo. Nos demais, so atravs de milagres e do exemplo de sua vida que os
hereges convertem-se. Defendemos que dessa forma Jacopo ressalta a importncia em dar o
exemplo atravs de uma vida crist correta, segundo os preceitos estabelecidos pela Igreja.
Segundo Jacopo, esse evento ocorreu em Montreal, aps a morte do bispo de Osma,
deixando apenas Domingos e alguns outros poucos irmos no combate aos hereges,
anunciando com constncia a palavra do Senhor,110 sob as mais duras penas. A narrao de
situaes difceis as quais o santo esteve inserido para predicar funcionaria como um forte
incentivo aos demais frades para se colocarem a merc dos hereges, com o propsito de
convert-los.
108
JACOPO DE VARAZZE. Op.Cit. p. 616.
109
H uma sexta meno presena hertica, contudo esta no uma situao de contato direto entre o
dominicano e os hereges. No relato, Domingos quis vender-se para salvar um cristo que aderira a comunidade
hertica, contudo a misericrdia divina resolveu a situao de outra forma. A soluo no especificada na
narrativa (Idem).
110
Idem.
83
-84-
Ao longo do relato, temos o uso recorrente dos exempla e o destaque aos feitos
pedaggico e didtico.
A narrativa segue com o contato do santo com os hereges, que, quando o ameaavam
de morte, respondia: No sou digno da glria do martrio, ainda no mereo esta morte.111
Assim, o compilador, ao escolher essa frase para o relato, buscou encorajar os irmos
dominicanos afirmando que a morte pelas mos de um herege seria meritria do martrio.
sculo XIII, traduziu-se, nas obras hagiogrficas, na idia do desejo de martrio ligada
perfeio interior do cristo, que estaria disposto a dar a sua vida se necessrio. Domingos no
conseguiu ser martirizado, contudo, obteve o mrito de ter desejado o martrio, realizando, ao
recompensa em manter-se fiel ao ideal cristo, mesmo que em condies adversas. nesse
sentido que acreditamos que o relato do patriarca da Ordem serviria como exemplo aos demais
Jacopo segue o relato, destacando que o prprio santo buscava morrer pelos hereges
ao passar por lugares onde sabia que haveriam emboscadas contra ele. Defendemos que,
111
Idem.
112
Ao longo do captulo, a forma de vida crist de Domingos elogiada, tendo a pobreza, a humildade, o dom
com as palavras, o conhecimento, a benevolncia, como caractersticas destacadas em algumas passagens. Por
fim, Jacopo ressalta sua penitncia, narrando que toda noite [Domingos] recebia de suas prprias mos trs
chicotadas com uma corrente de ferro, uma por si mesmo, outra pelos pecadores que esto no mundo e a terceira
por aqueles que esto padecendo no purgatrio. JACOPO DE VARAZZE. Op.Cit. p. 625.
113
partindo desse pressuposto que compreendemos a converso das mulheres simpatizantes da heresia que o
hospedaram. Ao verem como Domingos guiava sua vida, segundo os preceitos cristos corretos, elas
converteram-se.
84
-85-
Acreditamos que nessa passagem Jacopo faz uma aluso ao relato sobre So Tiago, o
cortado, que analisamos no captulo 4. Este o nico mrtir da LA que teve os dedos, as
mos, os ps, os braos e as pernas cortados. Aps cada suplcio o santo louvava a Deus
sendo que, apenas nos ltimos, pediu pela interveno divina para faz-lo parar de sofrer.
Assim, no se rendeu macerao somtica, reafirmando a f em Deus aps ter cada membro
cortado. Pelo contrrio, respondeu as torturas com o testemunho de sua crena, para
Podemos chegar a concluso de que este relato apresenta uma profunda relao entre a
elementos, que podem ser associados ao antigo. Nesse sentido, o martrio imaginrio de
Domingos estaria enquadrado em um novo ideal de martrio sangrento, que tambm serviria
para reforar a viso do personagem como exemplo a ser seguido. Alm de ser um importante
dos demais frades, embasando tambm a prdica como meio para se alcanar o
reconhecimento como mrtir. Afinal, Jacopo qualifica a morte por um herege como meritria
da honra do martrio. Essa colocao serviria como um incentivo aos demais mendicantes que
114
JACOPO DE VARAZZE. Op.Cit. p.616.
85
-86-
7. Consideraes parciais
relacionadas s relaes de poder estabelecidas para e pela Igreja, adaptando-se a elas. Nesse
momento, ela exercia um papel diferenciado: perseguia os infiis, hereges, entre outros sob a
justificativa da guerra justa. Essa teria sido intensificada com a promessa de martrio para os
religiosos laicos, cujos frutos destacamos, analisando dois de seus exemplares: a Ordem
distintas, especialmente sob o papado de Inocncio III, com a organizao de conclios, das
Ao estudar a questo da retomada do martrio pelo vis das cruzadas, conclumos que
haveria uma similaridade nos objetivos e nas propostas que norteavam as cruzadas contra os
palavras: todas essas aes estavam sob a justificativa da guerra justa. Assim, defendemos a
possibilidade da temtica do martrio ter sido uma das estratgias da Igreja para incentivar as
presente na LA. Nesse relato, o compilador exalta valores dominicanos para vivncia crist,
86
-87-
Atravs de uma enunciao norteada por feitos maravilhosos, o martrio estaria enquadrado
no ideal da retomada da Igreja primitiva desde o sculo XII. Conclumos que ao colocar a
Nesse sentido, conclumos que Jacopo teria sido influenciado por elementos
associados a essa retomada do tema do martrio na escolha dos relatos narrados pela LA.
Contudo, procurando responder a questes do seu tempo relacionadas, entre outras coisas, aos
87
-88-
CAPTULO 3
da Legenda urea.1 Lembramos que, no total, foram escolhidas cinco narrativas de tamanhos
distintos sobre as seguintes personagens: Santa Anastcia (p.103-105); Santa gata (p.256-
260); Santa Juliana (p. 266-267); Santa Eufmia (p. 810-812); Santa Catarina (p.961-967).
Primeiro, analisaremos cada narrativa, seguindo a ordem apresentada acima. O segundo item
O relato inicia com um estudo etimolgico do nome Anastcia, que seria formado de
Ana , significando acima; e statis, que fica em p ou permanece. Jacopo argumenta que
esse sentido estaria relacionado ao fato de que ela teria se elevado e se mantido acima dos
vcios.
No incio da biografia de Anastcia, somos informados que ela era filha de Pretaxato,
romano ilustre, mas pago,3 e da crist, Fantasta. Foi de sua me e do beato Crisgono que
ela recebeu os ensinamentos cristos. Ao casar-se com Pblio, Jacopo narra que ela simulou
estar doente para abster-se das relaes conjugais, contudo no menciona se foi apenas para
1
VARAZZE, Jacopo. Legenda urea; vida de santos. Traduo: Hilrio Franco Jr. So Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
2
Destacamos que, em alguns captulos estudados, h o relato de outros martrios, inclusive de personagens
femininas. Todos foram mencionados em nosso trabalho.
3
VARAZZE, Jacopo, op. cit,, p.103.
88
-89-
Seu marido soube que, acompanhada por uma criada, usando trajes muito pobres, sua
esposa percorria as prises, onde estavam cristos, para levar-lhes as coisas de que
necessitavam.4 Ento, Pblio prendeu-a em casa, privando-a de alimentos para que ela
morresse e ele pudesse apossar-se de suas riquezas. Segundo a LA, durante esse perodo,
Anastcia correspondia-se com Crisgono, acreditando que iria morrer em breve, sendo
consolada por ele. Contudo, seu esposo faleceu e ela foi libertada.
categoria social: as das vivas virgens. Esta temtica foi problematizada no artigo The virgin
widow: a problematic social role for the early church?, de Charlotte Methuen,5 no qual,
partindo do argumento que a condio de viuvez6 fornecia s mulheres um status social mais
elevado7 ou uma certa liberdade,8 a autora define dois grandes tipos de acepes relacionadas
seguiram uma vida de devoo e conteno sexual. E nesse sentido que, segundo Methuen,
a viva recuperaria sua virgindade. A segunda estaria relacionada s virgens cujos noivos
faleceram ou que as abandonaram e que, por isso, se autodefinem como vivas. Ela destaca
que esse caso deu-se de diferentes formas durante os quatro primeiros sculos do cristianismo.
4
Ibidem.
5
METHUEN, Charlotte. The virgin widow: a problematic social role for the early church? Harvard
Theological Review, v.90, p. 285-298. Julho, 1997.
6
Ressaltamos que a autora posiciona sua anlise nos primeiros sculos da igreja crist. Apesar da obra que
analisamos ser do sculo XIII, relembramos que a Legenda urea uma compilao e o martrio da virgem
datado do segundo sculo.
7
Ela define esse status sintetisando-o nas funes que as vivas poderiam ter na sociedade, como orar para a
congregao; jejuar; instruir moralmente as moas jovens (em particular); supervisionar as mulheres durante a
adorao; e, em alguns casos, auxiliar no batismo. Ela ainda destaca que a constncia das proibies de vivas
ensinarem ou batizarem mostraria a recorrncia dessa prtica. Idem, p.289.
8
A autora no especifica que liberdade era essa, mas podemos pensar que seria o controle dos bens j que, com a
morte do marido, a viva passa a ser cabea da famlia. Cf. BELTRN, Maria Tereza. Em los mrgenes del
matrimomio: transgressores y estrategias de supervivencia em la sociedad bajomedieval castellana. In: IGLESIA
DUARTE, Jos-Igncio de la (coord.). La familia en la Edad Media. Semana de Estudios Medievales, 9, Njera,
2002. Actas... Logroo: IER, 2003. p. 349-386.
9
Ao referirmos-nos a dois grandes tipos, devemos ressaltar que durante o texto a autora discute os pormenores
envolvidos em ambos, utilizando, principalmente, Tertuliano.
89
-90-
Entretanto, a situao de Anastcia diferente de ambos os casos trabalhados pela autora por
ter se mantido virgem,10 apesar de ter sido casada de fato e ter perdido o marido.
smbolo de completa renncia ao mundano e de total adeso ao Senhor. O autor ainda defende
que a castidade (a fortiori a virgindade) possua mais valor se fosse voluntria, vivida em
matrimnio.
matrimnio por vontade dela lembrando que inventa uma doena para abster-se das relaes
sexuais , atingindo um grau superior de pureza. E, por ter sido casada de fato, aps a morte
de seu marido, segundo o relato, ela passou a possuir benefcios relacionados com a viuvez;
como o controle de suas riquezas, atraindo a cobia dos outros. Assim, alm de lutar por sua
martrio de trs irms de maravilhosa beleza,12 que estavam a servio da viva: Agapete,
Tionia e Irene. O dominicano destaca que todas eram crists e que se recusavam a obedecer
ao prefeito de Roma que estava apaixonado por elas. Ele ordenou que elas fossem presas em
um quarto onde eram guardados os utenslios de cozinha. Um dia, querendo saciar seus
desejos o prefeito foi encontr-las e, aps ser rejeitado novamente, teve um acesso de
loucura abraando panelas, caldeires e outros utenslios, que pensava serem as virgens.13
Depois de saciar-se, saiu todo sujo e esfarrapado. Seus serviais, achando que ele fora
10
Relembramos que Jacopo narra que ela simulou uma doena para no ter relaes sexuais com seu marido.
11
ROSSIAUD, Jacques. Sexualidade. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio Temtico
Medieval. Op.Cit., p. 477-483.
12
Destacamos que esse enaltecimento beleza das virgens aparece na narrativa.
13
VARAZZE, Jacopo. Idem.
90
-91-
do ocorrido, mas os guardas, vendo-o naquele estado, pensaram que ele estava possudo por
algum esprito furioso,14 bateram nele com varas e atiraram-lhe lama e poeira.
Segundo o relato, ele teria sido avisado sobre sua aparncia e pensou ter sido
enfeitiado. Assim, mandou que buscassem as virgens e ordenou-as que se despissem para
seu prazer. Com a recusa, ele mandou que elas fossem despidas a fora. Mas as roupas
aderiram a seus corpos e o prefeito caiu em sono profundo imediatamente. Algum tempo
viva foi entregue a dois prefeitos pelo imperador. Jacopo narra que o governante afirmou
para o primeiro deles que se ele convencesse a virgem a realizar sacrifcios, ele poderia casar-
se com ela. Ento o prefeito a levou para casa e ficou imediatamente cego ao tentar abra-la.
Ele foi ento implorar a cura a seus deuses, que lhe responderam: Como voc atormentou
Anastcia, padecer no Inferno a nosso lado os tormentos que sofremos.15 Ao retornar para
Alm disso, ressaltamos que, nesse episdio, Jacopo desqualifica a crena pag e
prefeito por ter atormentado Anastcia. Tambm sublinhamos dois pontos presentes nesse
da personagem pelos deuses pagos, que negam ajuda ao prefeito. Assim, acreditamos que,
Segundo o captulo, Anastcia foi entregue a outro prefeito, que ao saber de sua
riqueza, tentou convenc-la a lhe dar toda sua fortuna dizendo: Anastcia, se voc quer ser
crist faz o que seu Senhor mandou: Quem no renunciar a tudo que possui, no poder ser
meu discpulo. Ao que ela respondeu: Meu Deus disse: Vendam tudo o que tiverem e
14
Ibidem.
15
Idem, p.104.
91
-92-
dem aos pobres. Ora, como voc rico, eu estaria agindo contra o mandamento de Deus se
Depois dessa conversa, a virgem foi jogada em uma masmorra horrvel17 para
morrer de fome, contudo foi alimentada por dois meses com po celeste por Santa Teodora,18
que j sofrera as honras do martrio.19 Passado esse tempo, ela foi levada com duzentas
virgens para a ilha Palmarola, onde muitos cristos tinham sido exilados. Alguns dias depois,
Os mrtires que estavam na Ilha de Palmarola foram trazidos junto com a virgem e
pereceram sob distintos suplcios. Anastcia foi amarrada a uma estaca e queimada viva.20
Ela foi sepultada no pomar de Apolnia21 e em seu tmulo construiu-se uma igreja. Segundo
Jacopo, ela sofreu sob Diocleciano, que comeou a reinar no ano do Senhor de 287.
longo do relato, verificamos como o gnero construdo atravs do estudo etimolgico de seu
nome e do casamento casto, com a manuteno de virgindade. Ela, como viva, controlava
suas riquezas, o que atraiu a cobia de dois prefeitos que queriam casar com a virgem para
Jacopo, nesse relato, destacaria sua virgindade, mantida mesmo casada e apesar dos
prefeitos graas interveno divina. Acreditamos que essa virtude confere personagem
uma santidade especial e, por causa disso, seu captulo objetivaria o enaltecimento dessa
16
VARAZZE, Jacopo. Idem, p.104.
17
Ibidem.
18
Jacopo apresenta nenhuma informao sobre essa santa, somente que ela foi martirizada antes de Anastcia.
Na LA, h o relato sobre uma Santa Teodora, que era nobre e casada. Segundo a narrativa, o diabo, com inveja
da santidade de Teodora, fez com que um homem rico se apaixonasse e se inflasse de desejos por ela. Jacopo
relata que ele a importunava tanto que a crist at perdeu a sade. Ento, aps consecutivas rejeies, o homem
pediu a uma feiticeira para ajud-lo. Ela mentiu e enganou Teodora, que se rendeu aos desejos desse homem.
Percebendo ter sido iludida, ela se arrependeu, travestiu-se e, como Teodoro, fugiu para um mosteiro. Em uma
viagem, uma moa pediu-lhe para deitar-se com ela, mas, ao ser rejeitada, procurou outro rapaz. Contudo, ao
descobrir que estava grvida, acusou o monge Teodoro/ Teodora de ser o pai da criana. Quando o beb nasceu,
levaram-na ao abade do mosteiro que repreendeu e expulsou o monge Teodoro/ Teodora. Ele/ela, ento,
permaneceu sete anos em p em frente ao cenbio, alimentando o infante com leite dos rebanhos. Devido a sua
perseverana, o abade reconsiderou e aceitou-o/a de volta. Ele/ela faleceu dois anos depois, por volta do ano de
470. No dia de sua morte, o abade teve um sonho que lhe revelou a verdade sobre Teodora e seu filho.
19
Ibidem.
20
Idem, p.105
21
Sublinhamos que Jacopo no apresenta nenhum dado sobre essa personagem.
92
-93-
qualidade, sendo que esta no seria especfica ao homem ou mulher, mas desejvel ao
cristo, servindo como recurso para evidenciar a sua oposio ao pago: voluptuoso,
O relato de Santa gata tambm comea com um estudo etimolgico, no qual Jacopo
atribui cinco possveis significados para o seu nome. Destes, destacamos o primeiro: o nome
provm de gios, santo, e Theos, Deus significando santa de Deus. Nesse sentido, no
incio da narrativa h uma interpretao que j identifica a personagem central como santa. E
qualidades que fazem todos os santos.23 Ao enumerar quais seriam essas caractersticas, ele
faz referncia a Crisstomo que, por sua vez, afirma: a pureza no corao, a presena do
Esprito Santo e a abundncia de boas obras. Aqui, o dominicano se posiciona em relao aos
Jacopo narra que seu nome derivaria tambm de a que seria sem, geos, terra; e
Theos, Deus. Nesse sentido, seria a deusa sem terra, o que explicitaria a ausncia de
qualquer apego aos bens terrenos. Ele ainda narra outros trs possveis significados para
thaas, superior por colocar-se como escrava do Senhor, o que transparece nas suas
22
Segundo Rossiaud, o discurso vigente na Antigidade tardia defendia que os que viviam em contato com o
sagrado deveriam privar-se do sexo, que era visto como poluo suprema por afast-los do divino. ROSSIAUD,
Jacques. Op. Cit., p.479.
23
Idem, p. 256.
24
Acreditamos que esta qualidade possuiria relao com um incentivo a prpria pregao dos irmos
dominicanos.
93
-94-
palavras que lhe so atribudas no texto; e consumao solene aga, solene; thau,
maneira, exaltando a sua expressividade com as palavras e a seu sepultamento feito por anjos,
No incio da narrativa biogrfica, Jacopo relata que gata nasceu na cidade de Catnia
e identifica-a como uma virgem de nobre estirpe e lindssima de corpo.25 Sublinhamos que
ele no apresenta, ao longo do captulo, nenhum personagem masculino que possua uma
relao com gata, convivendo com a santa como um parente, ou como um diretor religioso,
ou algo assim. Esse fato rompe com o discurso misgino caracterstico desse momento,26 que
Thomas Laqueur afirma que, de acordo com o discurso sobre o modelo do sexo nico,
havia uma ordenao social hierrquica e verticalmente estabelecida, na qual o homem era
visto como o ser mais perfeito e superior a mulher. Segundo o autor, essa percepo de
Assim caberia aos homens atuarem como seus intercessores perante o Senhor. E as mulheres,
25
Ibidem.
26
Para mais informaes sobre quais eram esses discursos e do que exatamente tratavam cf. BYNUM, C. El
cuerpo feminino y la pratica religiosa na Baja Edad Media. In: FEHER, Michelet et al.(Ed.). Fragmentos para
uma historia del cuerpo humano. Madrid: Taurus, 1990; DUBY, Georges et PERROT, Michelle. Histria de las
mujeres. La Edad Media. La mujer en la familia y en la sociedad. Argentina: Editora Taurus, 1992;
SARANYANA, J-I. La discusin medieval sobre la condicin femenina (siglos VIII al XIII). Universidad
Pontificia de Salamanca, 1997; LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gnero dos gregos a Freud.
Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 2001.
27
LAQUEUR, Thomas. Op. Cit. p.45.
94
-95-
jovem, rica e virgem, morando sozinha e sem nenhuma meno a sua famlia ou a figuras
masculinas responsveis pela sua superviso e controle, servindo como intercessores entre ela
e Deus. Tal ausncia, em nossa opinio, caracterizaria gata de forma singular, j que no
tutelada.
pelo martrio de gata. O dominicano marca tal personagem com quatro caractersticas,
construo de relatos sobre mrtires, nos quais os personagens do mrtir e do(s) responsvel
(is) por seu martrio so situados em posies diametralmente opostas.28 Jacopo narra que,
social superior ao seu, saciar-se em sua beleza, apoderar-se dos seus bens e agradar a seus
entregou para a meretriz Afrodisia e as suas nove depravadas filhas. Jacopo afirma que o
cnsul acreditava que elas poderiam convencer gata a entregar-se a ele em trinta dias, fosse
contedo de nenhum desses meios de persuaso, mas supomos que as ameaas estariam
envolvidas com a possibilidade da santa ter a sua pureza corrompida pela sexualidade e pela
depravao, j que foi colocada em uma casa de prostituio. Contudo, ela mostrou-se
resoluta em sua condio crist, afirmando que sua f estava fundamentada na certeza de
Cristo. Nesse momento narrativo, lemos que ela chorava diariamente, orando e pedindo a
palma do martrio.
28
ALTMAN, Charles. Two types of Oppositionand the structure of latin saints Lives. Medievalia et
Humanistica. Sl., n.6, p.1-11, 1975.
95
-96-
Segundo Elizabeth Alvilda Petroff, no livro Body and Soul: Essays on medieval
womem and Mysticism,29 a partir do sculo X, comeou a ser construda uma viso herica
sexual por uma pessoa virgem se render as paixes estariam na escala herica.30 Acreditamos
desviar gata de suas prticas crists. Ele mandou cham-la e questionou-lhe sobre sua
condio social, ao que ela respondeu ser livre e de famlia ilustre. Ele indagou o porqu de
seus modos servis e ela replicou dizendo ser escrava de Cristo, pois essa era a suprema
liberdade. Ele, ento, ordenou que ela escolhesse sacrificar ou suportar diferentes suplcios.
gata: Que sua futura esposa seja parecida com a deusa Vnus, que voc
cultua, e que voc mesmo seja como o deus Jpiter, que tanto venera.
Quintiano mandou esbofete-la com fora, dizendo: No ofenda seu juiz
com gracejos temerrios. gata replicou: Surpreende-me que um homem
to prudente como voc tenha chegado loucura de chamar deuses aqueles
cujos exemplos no gostaria que sua mulher ou voc mesmo seguissem, j
que considera injria meu desejo que voc viva como eles.31
Desse episdio, atentamos para a ironia de gata j que, segundo os mitos antigos,
Vnus, considerada a deusa do amor, traiu o marido com vrios amantes; e Jpiter enganava a
esposa com outras deusas e com mulheres mortais. Esse comentrio tambm reflete o seu
conhecimento sobre as crenas de Quintiano. Com essa argumentao, a virgem provou que
os deuses adorados por ele no eram dignos de tal, dando-lhe uma lio de moral ao justificar
o porqu. Diante da reao furiosa do cnsul, ela desqualificou sua crena, enquanto
29
PETROFF, Elizabeth Alvilda. Body and Soul: Essays on medieval womem and Mysticism. New York e
Oxford: Oxford University Press, 1994.
30
Ressaltamos que a autora no define essa gradao (Idem, p.94).
31
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit, p.257.
96
-97-
engrandecia a sua, finalizando sua fala dizendo: Se seus deuses so bons, desejei apenas o
bem para voc, mas se detesta parecer-se com eles, compartilhe meus sentimentos.32
ouvirem o nome de Cristo elas ficaro mansas; se empregar o fogo, os anjos derramaro do
Cu um rocio salutar sobre mim. Se me infligir chagas e torturas ver que desprezo tudo por
ter em mim o Esprito Santo.33 Desta forma, gata enaltece o poder de sua f e precipita a
possvel interveno divina, ressaltando a presena do Esprito Santo, qualidade que Jacopo
gata foi condenada ao martrio por ironizar Quintiano, ao desejar que ele e a sua
mulher fossem iguais a Jpiter e a Vnus, confundindo-o em pblico. Segundo a LA, aps
este fato, ela foi jogada na priso, para onde foi com enorme alegria, como quem ia para um
No dia seguinte, Quintiano concedeu uma nova chance para gata adorar aos deuses e
diante da constncia da recusa, ordenou que ela fosse suspensa em um cavalete e torturada.
Ela respondeu-lhe:
Nesses suplcios meu deleite o de um homem que recebe uma boa notcia,
ou v uma pessoa por muito tempo esperada, ou que descobriu grandes
tesouros. Da mesma forma que o trigo s pode ser colocado no celeiro
depois de fortemente batido para ser separado de sua casca, minha alma s
pode entrar no Paraso com a palma do martrio se meu corpo tiver sido
dilacerado com violncia pelos carrascos.34
sofrimento. gata descreve sua entrada no paraso como sendo possvel atravs da destruio
da dor nas palavras da personagem. Essa reao, diante das torturas, enquadrar-se-ia nos
32
Idem, p.257.
33
Ibidem.
34
Idem, p.258.
97
-98-
somticas, invertendo as relaes de poder. A lgica seria que quanto mais violenta fosse sua
Assim, ela demonstrou grande alegria em ser torturada, devido promessa do martrio
torturas, os carrascos e os responsveis por suas dores. Segundo o relato, com essa resposta,
Nesse sentido, acreditamos que Jacopo est reafirmando a relao oposta entre os dois
personagens, cada vez mais esteriotipados: de um lado, a virgem crist, feliz por ser
martirizada e smbolo de bondade; e, do outro, o vil pago, raivoso por no conseguir superar
a f de gata.
o tormento que se segue: Quintiano ordenou que arrancassem lentamente as mamas de gata
com tenazes.36 Frente esse suplcio, ela reagiu dizendo: mpio, cruel e horrendo tirano,
voc no tem vergonha de mutilar numa mulher o que chupou na sua me? Tenho em minha
alma mamas totalmente sadias com as quais nutro todos os meus sentidos e que desde a
infncia consagrei ao Senhor.37 Nas palavras da virgem, h uma renncia do corpo com uma
ntida definio de sua inferioridade em nome da alma; estabelecendo, assim, uma relao
hierrquica entre eles. Alm disso, a fala da virgem evidenciaria a lgica dos tormentos
hegemnico que estabelecia as funes sociais para homens e mulheres segundo uma
98
-99-
anatmicas dos corpos femininos e masculinos eram alcanadas por dois processos
concomitantes; uma anlise emprica e uma interpretao teolgica. Partindo destas reflexes,
as autoras afirmam que as leituras dos corpos estavam circunscritas idia de finalidade, ou
seja, algumas partes do corpo, por possurem fins especficos, no poderiam ser associadas ao
prazer sexual. Dentro dessa perspectiva, o seio no era visto como uma zona de prazer, mas
do sculo XVIII.41 A autora destaca que a difuso e reinterpretao dos trabalhos de Galeno
suscitaram trs grandes obstculos ao estudo da anatomia feminina. O primeiro era a analogia
absoluta autoridade.42
39
LAQUEUR, Thomas. Op. Cit.
40
THOMASSET, Claude. La naturaleza de la mujer. In: DUBY, Georges et PERROT, Michelle. Histria de las
mujeres. La Edad Media. La mujer en la familia y en la sociedad. Argentina: Editora Taurus, 1992. p.60-91.
41
Cabe ressaltarmos que uma das questes trabalhadas pela autora foram as relaes entre a renovao terica e
o discurso religioso. Para Thomasset, as teorias aristotlicas e a escola hipocrtica forneceram o fomento
necessrio para aumentar a divergncia entre os tericos, no que diz respeito ao prazer, concepo, ao corpo e
relao feminino/ masculino. Somando a isso, destaca o papel da medicina rabe, que intensificou a preocupao
da Igreja, entre os sculos XIII e XIV, em controlar e restringir os corpos com variadas normas de conduta, em
especial os femininos.
42
Nesse caso, Thomasset refere-se a autoridade da Igreja que tentou reprimir o estudo da anatomia feminina,
implantando e nutrindo o medo. Essa constante tentativa foi to intensa que, segundo a autora, uma das marcas
da literatura medieval a presena do medo (Ibidem, p. 89).
43
Idem, p.60.
99
-100-
lugar inferior como mulher e subjug-la a sua autoridade civil e masculina. Dentro dessa
lgica, acreditamos que a reao da virgem a tal suplcio maldizendo o cnsul e questionando
em nome da f, pelo contrrio, acreditamos que a santa reagiu desta forma pelo prprio
significado que esta parte do corpo tinha para a mulher, associado lgica de funcionalidade
anteriormente.44
cumprir certas tarefas estabelecendo inclusive os papeis sociais ,45 perder a mama
significaria, na verdade, perder parte de sua funo social como mulher, j que as mulheres
prprio discurso da virgem, que atentou para a crueldade de arrancar nela o que a me de
Depois de ter as mamas arrancadas, ela foi jogada na priso, no podendo receber
nenhuma visita de mdico e nem alimentos. Contudo, em torno de meia-noite, um ancio com
uma criana, segurando uma tocha apareceu-lhe e disse-lhe: Embora aquele louco a tenha
coberto de tormentos, voc o atormentou mais ainda com suas respostas. Embora ele tenha
44
Segundo Claude Thomasset, essas concepes cientficas visavam dar validade aos modos de pensar vigente,
passando a circular. Desde a segunda metade do sculo XI, a medicina ocidental foi marcadamente influenciada
pela cincia rabe e pelos escritos filosficos da Antigidade, que ganharam mais fora aps as tradues
iniciadas por Constantino, o africano. _____. La naturaleza de la mujer... p. 63.
45
O pensamento de Isidoro de Sevilha esteve presente na construo de discursos, ao longo da Idade Mdia,
sendo disseminado nas universidades a partir do sculo XIII. Cf. VERGER, Jacques. Isidore de Sville dans ls
universits mdivales. In: FONTAINE, Jacques y PELLISTRANDI, Chistrine. (Eds.). L Europe hritiere de
lEspagne Wisigothique. Colloque international du CNRS. (Paris, 14-16, maio, 1990) Madrid: Casa de
Velzquez, 1992. p. 259-267.
46
BELTRN, Maria Tereza. Op. Cit. p.349.
100
-101-
deformado seu seio, ele ser coberto de amargura. Eu presenciei todas as suas torturas e vi
Diante disso, gata respondeu nunca ter exibido o corpo nem para receber medicao
e que seria indecoroso faz-lo naquele momento, demonstrando o cuidado que possua para
cristo, ela retrucou que no era esse o motivo, pois seu corpo estava to horrivelmente
dilacerado que ningum poderia desej-la, e o agradeceu pela oferta. A mrtir reagiu,
modstia en los gestos, junto con la moderacin en los adornos, outro valioso baluarte en la
defesa del bien precioso de la castidad que um cuerpo exhibido em pblico podra poner em
peligro.49 Acreditamos que a reserva de gata em relao a seu corpo vincular-se-ia com a
comportamento ideal exigido das virgens. Ela, mesmo sabendo que seu aspecto fsico no
despertaria desejos alheios pela sua deformidade, a disciplina corporal que a santa impe
ferimentos. Ela respondeu ter o Senhor Jesus Cristo, que com uma s palavra cura e
restabelece todas as coisas.51 Ouvindo isso, o ancio revelou ser o Apstolo Pedro e afirmou
que ela estava certa, j que foi Deus que o enviara, curando-a por completo, restituindo-lhe as
47
VARAZZE, Jacopo. Ibidem.
48
CASAGRANDE, Carla. La mujer custodiada. In: DUBY, George et Perrot, Michelle. Op.Cit. p. 92-130.
49
Idem, p.121.
50
Joyce Salisbury argumenta que a mulher encontrava uma forma alternativa de ascetismo na virgindade e na
castidade, vivendo uma vida recheada de Esprito Santo. SALISBURY, Joyce E. Church fathers, independent
virgins. New York: Verso, 1991.
51
VARAZZE, Jacopo. Ibidem.
101
-102-
exacerbando a fora da cura divina, demonstra certo desapego pelo mundo material.
seios reafirmam a santidade de gata. Alm disso, cabe refletirmos sobre a importncia
De acordo com Eamon Duff, no livro Santos e pecadores: A histria dos papas,52
Pedro j caracterizado como lder ou, pelo menos, como porta-voz dos apstolos nos
Evangelhos e nos atos dos apstolos.53 Seguindo essa tradio, o autor apresenta alguns
episdios54 que demonstram um certo favorecimento a ele por parte de Cristo, o que
Eamon Duff ainda argumenta que, aps Mateus redigir sobre o episdio da confisso
de Pedro em Cesaria de Filipe,55 Jesus acreditaria que a f desse homem foi uma revelao
direta de Deus. Dessa forma, Ele redefiniu o nome de Simo Cefas para Pedro a pedra , e
teria afirmado sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e te darei as chaves dos Reinos dos
Cus; o que ligares na terra ser ligado aos cus.56 O autor ressalta que, devido a essas
palavras, a autoridade do apstolo perpetuou-se pela sua comunidade, inclusive nos escritos
primado de Pedro e como sua autoridade foi transmitida aos seus sucessores sobre a
sucesso apostlica.
primeira carta, que escrita por ele ou no, a verdade que a epstola o apresenta no
simplesmente como apstolo e testemunha salvadora da obra de Cristo, mas como fonte da
52
DUFF, Eamon. Santos e pecadores: A histria dos papas. So Paulo: Cosac & Naify, 1998.
53
Idem, p.3.
54
Duffy diz que Pedro foi o primeiro a reconhecer e proclamar Cristo como Messias, em Cesaria de Filipe, o
que indicaria sua f na Igreja do Senhor. Tambm destaca que ele foi o primeiro a testemunhar a transfigurao
de Cristo, entre outros episdios. Ibidem.
55
Destacamos que ele se refere ao relato supracitado na nota anterior.
56
Idem, p.4.
102
-103-
historiadores, como uma tarefa difcil, j que as igrejas eram governadas por colegiados de
bispos ou presbteros.58
apstolos Paulo e Pedro apaream ligados Igreja Romana, pouco a pouco, a partir de uma
apropriao do texto bblico por meio das tradies jurdicas romanas, Pedro ganha prioridade
e destaque frente a Paulo. Alm disso, ressaltamos que a escolha por essa primazia de Pedro
est associada relao entre ele e Cristo narrada nos Evangelhos e nos Atos dos Apstolos,
apesar dele e Paulo terem sido martirizados juntos, o martrio de Paulo celebrado apenas no
dia seguinte, enquanto o de Pedro festejado no mesmo dia de sua morte. Jacopo justifica
essa preferncia destacando que essa data foi dedicada igreja de So Pedro, que maior em
dignidade, foi o primeiro a ser convertido e tem o primado em Roma.59 No sculo XIII,
Nesse sentido, a apario do apstolo no relato de gata seria uma referncia Igreja
romana com a defesa do primado de Pedro e, dessa forma, da supremacia da igreja romana e
emanava do calabouo onde gata encontrava-se, e os guardas, vendo isso, fugiram, deixando
o crcere aberto. Algumas pessoas pediram para que ela aproveitasse a oportunidade e
57
Idem, p.5.
58
Idem, p.7.
59
VARAZZE, Jacopo, Op cit. p.512.
60
De acordo com Girolamo Arnaldi, a importncia da primazia de Pedro para a Igreja e para o enaltecimento do
bispado romano, foi argumentada por Gregrio VII na proposio XXIII dos Dictatus papae afirmando o bispo
de Roma, com a condio de ser canonicamente consagrado, torna-se indubitavelmente santificado graas ao
bem-aventurado Pedro. ARNALDI, Girolamo. Igreja e papado. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-
Claude. Dicionrio Temtico... Op.Cit., p.567-589. p. 583.
103
-104-
imolar aos deuses, sob ameaas de novos e piores suplcios. A virgem fez pouco caso do
cnsul, chamando-o de miservel sem inteligncia por querer que ela adorasse pedras e
renegasse quem a curou: Deus. Jacopo narra um curto dilogo entre eles, que termina com a
Dito isso, o cnsul ordena que joguem cacos de cermica no cho e, sobre eles, brasas,
para que o corpo nu de gata fosse arrastado por cima. Destacamos que a nudez era parte da
punio da santa, que demonstrou tamanha resistncia em revelar o seio destroado para
obteno da cura pelo ancio. Por que a necessidade de expor o seu copo nu para a tortura
final? Levantamos dois argumentos para compreenso desse episdio: o primeiro, que essa
fisicamente de uma forma que no pudesse ser curada por Deus. Em segundo, no podemos
esquecer que, segundo nossa perspectiva terica, o fsico um dos lugares de disputa de
poder genderificado. Como Rossiaud argumenta a relao carnal um ritual de poder que
est no centro da identidade masculina.62 Assim, atravs do controle sobre a nudez de gata,
Quintiano demonstra o poder que sua posio social lhe concedia sobre o corpo da virgem,
humilhando-a.
Durante o suplcio da virgem, lemos que um terrvel terremoto assolou a cidade inteira,
que ele parasse de injustamente torturar a jovem, pois era apenas esse o motivo do terremoto,
visto como sinal divino. Em outras palavras, defendemos que essa interveno divina
61
VARAZZE, Jacopo, op cit, p.259.
62
ROSSIAUD, Jacques. Op. Cit., p.488.
104
-105-
No crcere, gata orou agradecendo ao Senhor por t-la preservado dos amores e das
mculas mundanas e por ter-lhe concedido as foras necessrias para que vencesse os
tormentos aos quais fora submetida; pedindo-lhe que recebesse seu esprito. Ela deu um
grande grito que poderia simbolizar a entrega final e total, e rendeu o esprito em torno de
253. Jacopo relata que quando Quintiano ia inventariar a riqueza da santa, dois de seus
cavalos soltaram-se. Um mordeu-o e o outro lhe acertou um coice que o jogou no rio e seu
Jacopo narra que, no dia do sepultamento de gata, surgiu um homem trajando belas
vestes de seda, acompanhado por cem outros belssimos rapazes, que colocou uma lpide
perto da cabea da santa e desapareceu.63 Com a divulgao de tal milagre, gentios e judeus
passaram a venerar seu tmulo. Nesse sentido, acreditamos que o dominicano buscava
incentivar o culto da virgem ao narrar a sua adorao por parte de pagos e de judeus.
Identificamos objetivo similar quando ele relata que perto do aniversrio de um ano da
morte da santa, um vulco entrou em erupo, e vomitou fogo, que descia como uma
corrente, fundia os rochedos e a terra, e vinha com mpeto sobre a cidade.64 Segundo ele,
No fechamento do captulo, lemos a exaltao dos milagres feitos por gata e o fato
dela ter sido visitada pelo apstolo Pedro como smbolo de sua glria, com a citao das
feliz e ilustre virgem que mereceu o martrio, derramando seu sangue para
a glria do Senhor! gloriosa e nobre virgem, ilustrada por uma dupla
63
Na lpide lia-se a inscrio: Alma santa, generosa honra de Deus e libertadora da Ptria VARAZZE, Jacopo,
op cit., p. 259). Jacopo ao explicar tais dizeres apenas os repete com outras palavras, ressaltando as qualidades
santas de gata. Ele relata que tal aparecimento deve-se a sua alma santa, ao fato dela ter-se oferecido
generosamente a Deus, por t-lo honrado e por ter liberto sua ptria.
64
Idem, p.259-260.
105
-106-
glria, por ter feito toda sorte de milagres no meio dos mais cruis
tormentos e por ter merecido ser curada pela visita de um apstolo! Os cus
acolheram essa esposa de Cristo sujos restos mortais so objeto de glorioso
respeito, e cuja santidade da alma e libertao da ptria proclamada por
um coro de anjos.65
nome, no qual Jacopo argumenta quais seriam as qualidades que todo santo deveria possuir
citando Crisstomo.
gata identificada como santa duplamente gloriosa por seus milagres e por ter
recebido a visita de um apstolo. Ressaltamos que ela no morreu durante os suplcios, sendo
salva pela interveno divina, que, junto com o destaque dado aos acontecimentos
A mrtir revela grande felicidade face os suplcios, demonstrada nas falas e nas aes
sua virgindade constitui um ascetismo prprio da santa, o que tambm evidenciaria a sua
santidade.
torturas com a exposio do corpo atravs da mama arrancada lembrando a virgem de sua
cristianismo: primeiro, ele busca posicionar a crist gata em seu lugar como mulher,
reconstitudas, tortura-a nua para que ela no pudesse ser curada atravs de nenhuma
65
Idem, p.260.
66
Como os milagres relatados, a resistncia s duras maceraes, a ao da natureza na proteo dos corpos dos
santos, entre outros.
106
-107-
marcaria uma intensa relao de poder, na qual o cnsul acredita ter sido vitorioso ao romper
com o recato da santa e impor-se sobre seu corpo, controlando-o devido a posio social
ocupada. Contudo, o terremoto que se seguiu, levando os citadinos a exigirem o fim das
torturas, evidencia que o controle sobre a personagem no abalava a fora de sua f crist, que
virgens, com a valorizao de seu recato e de sua pureza, sendo essa ltima qualidade
desejvel todos os cristos. Ela identificada como santa e a seguir como uma jovem virgem.
construo de seu gnero, pois palco de marcadas relaes de poder entre a santa e
Quintiano, reveladas claramente nos episdios em que teve a mama arrancada e no da sua
nudez forada. No primeiro relato, atravs dessa punio somtica, o cristianismo exaltado
como vitorioso aps a reconstituio do seio da personagem, feita pelo Apstolo Pedro,
segundo, a vitria ocorre devido ao da natureza, em que um sbito tremor da terra, fez
com que o povo exigisse o fim do suplcio. Conclumos que, em ambos os casos, a vitria do
Iniciando com a sua apresentao, tomamos conhecimento que, assim que se casou com
Eulgio o prefeito de Nicomdia , afirmou que s teria relaes sexuais com ele caso se
convertesse ao cristianismo.
Na narrativa, ela voltou para a morada paterna, onde seu pai mandou despi-la e surr-
la duramente. Destacamos que no h explicaes para esse retorno: se foi forado pelo
107
-108-
marido ou fruto de sua vontade. Contudo, ao considerarmos que ela foi surrada despida,
acreditamos que isso seria uma tentativa de humilh-la e relembr-la da sua condio como
O pai de Juliana a reenvia ao prefeito, que questionou o motivo de seus atos. Ela lhe
respondeu que se ele adorasse o Deus cristo seria aceito como seu senhor.68 Eulgio afirmou
que no poderia faz-lo por temer o Imperador, que poderia mandar cortar-lhe a cabea, ao
que a personagem retrucou dizendo se voc teme dessa forma um imperador mortal, como
quer que eu no tema um que imortal? Faa o que quiser, assim no me ter.69 Nesse
trecho, sublinhamos o claro uso do sexo, pela personagem, como elemento de negociao
para converter o marido ao cristianismo. Ainda que virgindade fosse o padro ideal para os
cristos, o casamento, e o sexo praticado pelo casal, no eram condenados. Alis, no sculo
XIII, era o esperado para os leigos. Logo, a negociao feita por Juliana no era considerada
ilegtima.
O martrio de Juliana, portanto, teria como causa inicial justamente o seu desprezo
pelo marido pago que, segundo o relato, mandou-lhe surrar duramente com vara e, durante
meio dia, pendur-la pelos cabelos, enquanto lhe derramavam chumbo derretido sobre a
67
Os possveis significados da nudez das santas no perodo medieval, especificamente a da santa Juliana, foram
problematizados no artigo de Peter Dendle, cf. _____. How Naked Is Juliana? Philological Quarterly, v.83, n.4,
p.355-390, 2004.
68
Essa questo aparece tambm em outro relato da LA, o da Santa Ceclia (p.941-947), contudo com um
desfecho diferenciado. Segundo o captulo, a nobre, virgem e crist Ceclia foi prometida em casamento para
Valeriano, contudo, no dia das npcias ela revelou ter um anjo de Deus como amante, que cuidava de seu corpo
com grande solicitude. Ela explicou para o marido que se o anjo percebesse que ela fora maculada, ele seria
atingido imediatamente. No entanto, se visse que o amor dele por ela era sincero, o amaria como a um cristo,
caracterizando, assim, o amor puro vinculado ao cristianismo. Segundo a narrativa, o jovem, por vontade de
Deus, falou que queria ver o anjo. A virgem o instruiu que para v-lo teria que ser batizado e rumar a cidade de
pia, onde perguntaria aos pobres sobre o velho Santo Urbano, falando ter uma mensagem secreta para
transmitir-lhe. Ao encontrar com o santo bispo, Valeriano seria purificado e veria o anjo. Ele seguiu as
instrues de Ceclia e converteu-se ao cristianismo.
69
VARAZZE, Jacopo de. Op.Cit. p. 266.
108
-109-
cabea.70 Contudo esse suplcio no a teria feito mal algum atestando a marca de sua
Na priso, um anjo foi visit-la pedindo para que sacrificasse aos deuses. Chorando,
Juliana orou pedindo ao Senhor que no lhe permitisse fraquejar e que lhe mostrasse quem
estava diante dela de verdade. A santa ouviu uma voz dizendo para agarr-lo e obrig-lo a
confessar quem era. Ela o fez e o anjo revelou ser um demnio, filho de Belzebu, que falou
nos faz cometer toda sorte de mal e nos faz aoitar rudemente cada vez que
somos vencidos por cristos que para minha desgraa aconteceu quando vim
aqui, porque no pude super-la (...). Ento Juliana amarrou-lhe as mos
atrs das costas e, jogando-o no cho, bateu duramente nele com a corrente
que servia para prend-la. O diabo dava gritos e suplicava: Minha senhora
Juliana, tenha piedade de mim.71
Nessa passagem, Juliana domina o diabo e exerce poder sobre ele, intimidando-o e
acorrentando-o. Acreditamos que a fora que a personagem revela sobre o demnio seria uma
Segundo o relato, o prefeito mandou que retirassem Juliana da priso e ela seguiu pela
praa com o diabo, que lhe suplicava piedade, porque agora ele j no poderia mais dominar
ningum preso nas correntes. Ela o arrastou por todo trajeto e o jogou em uma latrina por fim.
Levada diante do prefeito, Juliana foi amarrada a uma roda de madeira de modo to
violento que, segundo o relato, todos os seus ossos foram deslocados e a medula saiu
70
Idem, p.266.
71
Idem, p. 267.
72
Ibidem.
73
Jacopo ressalta que os que testemunharam esse acontecimento, se converteram e foram, posteriormente,
decapitados, sendo quinhentos homens e cento e trinta mulheres.
109
-110-
virgem foi jogada em uma caldeira de chumbo derretido. Contudo esse tormento virou um
uma moa que lhes ofendia e mandou decapit-la. Ressaltamos, desse trecho, a inferioridade
concedida aos deuses pagos que no conseguiam superar uma crist; inferioridade essa
gritando para no poup-la. Ao perceber que ela o olhou, ele fugiu exclamando Ai, pobre de
mim! Ainda acho que essa moa quer me prender e me acorrentar.74 H, novamente, uma
subjugao do demnio, evidenciada no temor que a santa lhe causava. Novamente, Jacopo
Aps a decapitao de Juliana, uma tempestade muito forte caiu e o prefeito, junto a
mais trinta e quatro homens, se afogou. Segundo a narrativa, seus corpos foram devorados por
animais e aves aps terem sidos vomitados pelas guas. Assim, o castigo divino enaltece, por
e do espancamento por seu pai, que a relembraria de sua condio como mulher. O seu corpo
ganha, no seu captulo, papel de destaque associado ao sexo e utilizado como elemento de
Juliana tem a sua santidade comprovava atravs dos milagres e da interveno divina,
narrativa.
74
Idem, p.267.
110
-111-
Contudo, nesse relato, acreditamos que a grande meta uma objetivao da fora da f
crist e de seu poder em relao aos outros que, nesse caso, seriam o demnio e os deuses
tentao para Juliana fraquejar e imolar aos deuses, sob disfarce angelical. A jovem, porm,
ora e pede ajuda ao Senhor para confirmao de sua viso e a verdade lhe revelada. Nesse
ocorresse, porque o poder da f seria superior, porque o do Senhor o era. Essa questo seria
reforada com a narrao sobre a fora com a qual a santa controla o demnio, fazendo-o
implorar por piedade e amedrontando-o. Se, como mulher, Juliana sofre abuso de seu pai e de
seu marido, o prefeito, tentando negociar com este, trocando a converso dele pela vida
compilador afirma que o nome Eufmia derivaria de eu, bom, e femina, mulher,
significando boa mulher. Jacopo argumenta que ela foi boa, pois o que bom possui trs
caractersticas: til, honesto e agradvel. A personagem teria sido til por sua maneira
de viver, honesta pela excelncia de seus costumes e agradvel a Deus pela contemplao das
coisas do Cu.75 Devido ao seu nome, j encontramos nesse momento narrativo a sua
identificao como mulher e um elogio ao seu modo de vida crist, caracterizando-a como um
exemplo aos demais. Acreditamos que, ao enaltecer suas virtudes, o dominicano argumenta
75
VARAZZE, Jacopo. Op. Cit. p. 810.
111
-112-
Eufmia tambm viria de eufonia, que quer dizer, segundo Jacopo, som agradvel.
O dominicano alega que este poderia ser alcanado de trs formas: com a voz, com cordas e
com o ar. A personagem teria pronunciado um som agradvel por meio da pregao, de suas
destinavam-se comunidade crist que poderia ter acesso ao relato atravs das pregaes;
dominicano.
publicamente ao juiz Prisco ser crist, aps ver as muitas torturas sofridas pelos cristos, no
tempo de Diocleciano. Na narrativa, somos informados que sua atitude teria confortado os
fila. Seu objetivo era atemorizar os demais obrigados a assistir as execues , para que, por
medo, imolassem aos deuses. Contudo, ao decapitar alguns santos na presena de Eufmia,
Alegre por crer que a demovera de sua f, Prisco questionou-lhe como a insultava.
Eufmia respondeu que, por ser de linhagem nobre, deveria ser martirizada e alcanar a glria
seguindo a perspectiva de Lucy Grig,77 Eufmia se via como um soldado de Cristo que
confrontava a fora do mal, representada, nesse momento, pelo estado romano. Nessa lgica,
o mrtir desejaria a sua morte, exacerbando as torturas, j que quanto maiores fossem os seus
sofrimentos, maior seria a demonstrao da vitria crist coroada com a sua morte. Ainda
76
Idem, Ibidem.
77
GRIG, Lucy. Torture Op.Cit. p. 322.
112
-113-
Eufmia, apesar de no exaltar suas penas, destaca a sua condio social devido ao seu forte
Prisco respondeu que havia ficado aliviado por verificar que Eufmia havia
recuperado seu bom senso e se lembrado da sua nobreza e de seu sexo,79 estabelecendo um
modo de agir e um lugar prprio para as mulheres de sua condio social no perodo. Jacopo
simplesmente narra que a santa foi aprisionada e, no dia seguinte, ao ser levada presena do
juiz sem estar amarrada como os outros, reclamou amargamente por apenas ela ter sido
dispensada dos grilhes, afirmando que isso contrariava as leis dos imperadores.80 Nesse
trecho do relato, sublinhamos a nfase dada ao conhecimento da mrtir sobre as leis romanas.
O juiz a seguiu e tentou violent-la, contudo, segundo a narrativa, ela lutou como um
homem e, por vontade divina, a mo de Prisco ficou paralisada, o que no permitiu que ele
Brown,81 para alguns pensadores cristos, atravs da virgindade a alma se uniria a Cristo,
tornando-se sabedoria e luz. Por exemplo, para Crisstomo82 e Gregrio de Nissa,83 o corpo
78
O autor Oscar Calavia Saz defende que a narrativa das crueldades dos suplcios serviria para construo do
culto aos santos. Cf. SAZ, Oscar Calavia. Religio e restos humanos. Cristianismo, corporalidade e violncia.
Antropologia em primeira mo, n.55, p.1-27, 2003. Disponvel em: http://www.antropologia.ufsc.br/
55.%20oscar-cristianismo.pdf. ltimo acesso: 17/03/2008.
79
Ibidem.
80
No h nenhuma especificao sobre qual compilao legislativa o relato se refere, contudo as leis dos
imperadores costumavam ser compndios contendo resumos das leis do imprio anterior. Cf. ALMEIDA, Jorge.
Perodos e fontes da Histria do Imprio. Disponvel em: http://www.azpmedia.com/historia/
content/view/69/28/. ltimo acesso em: 23/01/2008.
81
BROWN, Peter. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renncia sexual no incio do cristianismo. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 285.
82
Joo Crisstomo nasceu na Antioquia por volta de 344. A data de sua morte teria sido provavelmente em 405
ou 407. Teria seguido uma vida asctica e pregador. Ele figura entre os quatro grandes Padres do Oriente. Para
mais informaes sobre sua vida e trabalho, cf. HAMMAN, Adalbert-G. Para ler os Padres da Igreja. So
Paulo: Paulus, 1995.
83
Gregrio de Nissa foi um telogo e filsofo cristo nascido em Cesaria, da Capadcia, na Anatlia, sia
Menor, hoje Kayseri Turquia. Personagem da era Patrstica, ele possuiu certo renome no processo de
consagrao do pensamento cristo, sendo um dos precursores do trabalho de Santo Agostinho. Para mais
113
-114-
virgem era o veculo da ascenso da alma rumo a Deus. Em outras palavras, essa virtude era
comeou a ser construda uma viso herica vinculada virgindade. Ela defende que tal
acepo devia-se crena de que resistir s tentaes, para no se render s paixes, era
considerado um ato herico.85 Logo, acreditamos que a luta travada entre a virgem e o juiz
desse pressuposto, defendemos que a tentativa de controle sobre o fsico da jovem, por parte
do juiz, evidenciaria uma batalha de poderes, em que, apesar dele no ter conseguido demov-
la de sua f, o comando do somtico da jovem poderia ser uma forma de comandar tambm a
sua alma. No entanto, a mrtir sai vitoriosa dessa disputa. Atravs de uma comparao com a
resultado do poder da sua f , destaca-se que a santa foi auxiliada com a interveno divina
Acreditando estar sob algum feitio, Prisco ordenou que seu prepsito86 fosse at o
crcere onde se encontrava Eufmia, para tentar convenc-la a aceitar o juiz como amante. No
entanto, a sua cela no se abria com o uso das chaves e nem era quebrada a machadadas.
Somos informados que o prepsito, por fim, foi possudo por um demnio e fugiu, aos gritos,
santa, mas, nesse caso, seguida de uma justia punitiva, na qual o funcionrio do juiz,
informaes sobre sua vida e seu trabalho, Cf. CORBELLINI, Vital. A doutrina da encarnao do Verbo no
Adversus eunomium de so Gregrio de Nissa, 357-375. Revista Eclesistica brasileira. Para alm da idolatria.
v. 65, n.258, p.357-375, abril 2005.
84
PETROFF, Elizabeth Alvilda. Body and Soul: Essays on medieval womem and Mysticism. New York e
Oxford: Oxford University Press, 1994.
85
Ressaltamos que a autora no define essa gradao. Idem, p.94.
86
Prepsito ou prelado refere-se a um superior masculino. No lexus religioso cristo passou a ser o dignitrio
eclesistico.
114
-115-
endemoniado, acabou por se automutilar.87 Vale destacar que a ajuda sobrenatural, no caso de
primeira atravs de sua identificao como mulher no estudo etimolgico, feito por Jacopo,
e de sua posio social como filha de um senador. A segunda aparece na sua performance no
mbito social, pois, segundo seu relato, ela lutou como um homem ao ser agarrada pelo juiz.
Assim, acreditamos que o seu relato estaria contrrio aos discursos misginos hegemnicos
saberes construdos sobre seu gnero, aperfeioando-se. No entanto, esse processo s lhe foi
possvel por ela ser crist e, principalmente, por seguir uma vida recheada de virtudes crists
Cabe ressaltarmos que possuir uma vida recheada de valores cristos no era o aspecto
formador da santidade, mas sim a comprovaria. Segundo a viso da poca, o santo marcado
desde o seu nascimento pela graa divina e a sua vivncia entre os homens serviria para
suscitar efeitos purificadores e milagres, entre outros. Em outras palavras, Eufmia teria a
santidade inerente a ela, sendo que ao argumentar sobre as suas virtudes e qualidades,
acreditamos que Jacopo objetivou afirm-la como um exemplo a ser seguido pelos cristos.
Retornando a narrativa, aps o prepsito ter sido tomado por um demnio, Eufmia
foi colocada sobre uma roda, cujos raios estavam cheios de brasas. O plano era que um
arteso, posicionado no meio da roda, desse um sinal sonoro para que seus ajudantes
iniciassem o seu movimento, carbonizando o corpo da mrtir. No relato afirma-se que, por
vontade divina, o instrumento que retinha a roda caiu das mos do arteso e os ajudantes,
87
Essa conotao alegrica da automutilao possuiria um forte carter pedaggico e didtico, fornecendo
provas da santidade dos personagens e da fora da f crist.
115
-116-
A famlia do arteso decidiu, ento, queimar a roda com a virgem amarrada nela,
texto, para pegar Eufmia no lugar em que estava foram colocadas escadas, e quando
algum quis esticar a mos para agarr-la, no mesmo instante ficou completamente paralisado
e somente com muita dificuldade conseguiram desc-lo meio morto.89 Em seguida, lemos
que um homem chamado Sstenes subiu na escada e foi convertido imediatamente por
Eufmia, afirmando que preferia a morte a ter que tocar em uma pessoa guardada por anjos.
Ela foi descida, mas no sabemos como, pois Jacopo no revela. O juiz, ento,
mandou seu chanceler reunir todos os jovens libertinos para que se divertissem com ela at
morrerem de esgotamento. Porm, quando o primeiro entrou no local onde estava a virgem,
Alm disso, a apario de muitas outras virgens seria uma coroao de sua qualidade
A seguir, somos informados pela narrativa que ela foi suspensa pelos cabelos, mas
somticos. Foi reconduzida priso, com a proibio de receber alimentos, para que ela fosse
esmagada entre quatro pedras aps sete dias. Contudo, ela orou e as pedras foram reduzidas a
p. Assim, para salv-la h, novamente, a interveno divina, com um milagre voltado sua
Outro milagre nessa mesma linha aparece no episdio narrado aps esse, no qual o
juiz, envergonhado por ter sido vencido por uma mulher,90 decidiu jog-la em um fosso onde
88
Segundo Philippe Faure, no artigo Anjos, a manifestao Anglica uma descida do Cu terra que santifica
o homem, o tempo e o espao. A visita e a viso dos anjos parecem como signo de santidade do monge e de sua
semelhana com os habitantes do Cu. Desse trecho, destacamos a santificao de Eufmia confirmada pela
visitao de um anjo para salv-la. FAURE, Philippe. Anjos In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude.
Dicionrio Temtico...Op.Cit., p. 69-80.
89
VARAZZE, Jacopo de. Op.Cit., p.811.
90
Nesse sentido, acreditamos que ele foi vencido porque suas torturas no afetaram Eufmia, pelo contrrio, elas
acabaram por enaltecer o poder da f crist. Alm da conotao de humilhao vinculada ao fato de Prisco ter
perdido para uma mulher, deixando-o envergonhado.
116
-117-
estavam trs animais selvagens que poderiam devorar qualquer homem.91 Contudo, estes
foram at Eufmia, mansos, para acarici-la, e arrumaram as caudas juntas para servir de
Prisco quase morreu de angstia e o carrasco, para vingar a afronta feita a seu senhor,
enfiou a espada no tronco de Eufmia. Aps lutar por sua virgindade e por sua f, por fim,
Eufmia foi morta com uma espada enfiada no seu flanco pelo carrasco do juiz. Ele foi
recompensado com um traje de seda e um colar de ouro, contudo ao sair foi apanhado por
um leo que o devorou completamente (...). O juiz foi encontrado morto depois de ter
Ambos os algozes foram penalizados pelo martrio de Eufmia, sendo que o juiz se
destaque dela possuir o mrito de ter convertido a todos os judeus e pagos da regio, o que
acreditamos sublinharia as converses que foram feitas atravs do exemplo da vida e das
palavras da virgem. Jacopo termina o relato citando o prefcio da obra Sobre a virgindade de
s oraes na superao dos suplcios sofridos e viso da carne como uma priso para a
alma:
91
Idem, p.812.
92
Ibidem.
93
Idem, p.812.
117
-118-
No relato de Eufmia destacamos que os suplcios aos quais ela foi condenada foram
vencidos por interveno divina, atravs de aparies angelicais ou de punies feitas por
figura nesse captulo. Ou seja, os tormentos de Eufmia so indolores. Esse elemento pode
ser atribudo prpria virgindade da personagem. Essa virtude, enaltecida ao longo do relato,
ganharia contornos hericos com a total renncia de Eufmia aos prazeres mundanos e com a
sua luta para manuteno de sua virgindade, o que j atestaria o caminho de sua alma. Logo,
serviriam para definir qualidades desejveis nos cristos e nos irmos pregadores. Nesse
sentido, defendemos que sua biografia apresenta um caminho para salvao da alma baseado
cristos.
como tambm ao valor concedido virgindade da personagem. A luta de poder sobre o corpo
enaltecida ao longo do captulo e protegida com milagres que comprovariam a sua santidade.
Sua virgindade adquiria valor similar dor para atestar o caminho de sua alma. Essa virtude,
94
POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
95
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4,
p.11-46, 2002
118
-119-
de carter herico, possibilitou que Eufmia superasse comportamentos construdos sobre seu
gnero fragilidade, fraqueza de sua carne, entre outros , aperfeioando-se. Esse processo
s lhe foi possvel por ela ser crist e, principalmente, por seguir uma vida recheada de
Como em outros relatos, esse tambm se inicia com uma anlise etimolgica. Segundo
a obra, Catarina significaria runa universal, porque ela arruinou o edifcio do diabo com o
seu modo de vida: a soberba com a sua humildade, a concupiscncia carnal com a sua
virgindade e a cupidez mundana com seu desprezo pelas coisas materiais. Alm disso, poderia
ser correntinha advindo de catenula. De acordo com sua interpretao, ele afirma que foi
com boas obras que ela fez para si uma corrente com a qual subiu ao Cu. Cabe destacarmos
que ao escrever quais seriam os quatro degraus que formariam essa corrente, o compilador
cita o livro bblico de Salmos, quando o profeta pergunta quem subiria na montanha do
Senhor (Salmos 24, 3), ele mesmo responde: Aquele cujas mos so inocentes e o corao
puro, que no ocupou sua alma com futilidades, que no fez juramentos falsos contra o
prximo.96
convocou a todos que residiam em Alexandria para sacrificar aos deuses, ameaando punir os
que no o fizessem. Ento a personagem, que, com dezoito anos de idade, vivia em um
96
Ibidem.
97
Cabe ressaltarmos que o relato no norteado por muitos milagres ou intervenes divinas, s h quatro
episdios milagrosos. O primeiro milagre foi o envio de uma pomba pelo Senhor que alimentou a santa por doze
dias com alimento celeste. O segundo foi a destruio das rodas, que iam moer a carne da santa, que causou a
morte de quatro mil gentios. O terceiro foi a morte do imperador que, segundo Jacopo, foi castigado por esse
martrio, alm de muitos outros, e, por ltimo, consideramos tambm o sepultamento de Catarina, que foi
realizado por anjos no alto do Monte Sinai.
98
Ao final do relato, Jacopo diz haver uma dvida sobre quem teria sido o responsvel pelo martrio de Catarina:
Maxncio ou Maximiano. Provavelmente por tal razo, o compilador apenas menciona o nome do imperador
nesse momento narrativo, chamando-o de imperador ou rei ao referir-se a ele ao longo do captulo.
119
-120-
aplausos, mandou imediatamente algum verificar o que acontecia. Informada, saiu do palcio
junto com outras pessoas e protegendo-se com o sinal-da-cruz. Viu muitos cristos que,
levados pelo temor, ofereciam sacrifcios.99 Nesse trecho, destacamos a relevncia dada ao
sinal-da-cruz como meio de proteo e de ligao com o Senhor, como veremos a seguir.
procurando demov-lo de suas crenas. Jacopo afirma que esses argumentos vincular-se-iam
primeira pertenceria aos retricos e dialticos, a segunda, aos filsofos, e a terceira, aos
sofistas. Ele conclui, portanto, que ela dominava todas as formas de saber humano. Apesar de
aparecer na LA que ela recebera instruo em todas as letras liberais, lemos que o imperador
ficou estupefato pela sapincia dela, pois, alm de bela, ela expunha com sabedoria muitas
coisas sobre a encarnao do Filho.102 Destacamos dois elementos para anlise nessa
condizente com a educao que recebera, assim como pela doutrina crist, ainda que no
aparea no relato nenhuma meno de que fora instruda por um clrigo. Logo, defendemos
que o espanto causado por sua sabedoria estaria associado no ao conhecimento da "cincia
Sublinhamos que havia, no sculo XIII, uma preocupao com a difuso dos trabalhos
nossa interpretao, Jacopo utiliza esse relato para argumentar que o saber completo seria
99
Idem, p. 962.
100
Idem, p.969.
101
Ao final do relato ele discorre sobre a filosofia ou a sabedoria que estaria dividida em saberes tericos,
prticos e lgicos, dos quais Catarina possua entendimento e domnio (Ibidem).
102
Idem, p.963.
120
-121-
que, alis, Catarina detinha sem receber alguma instruo especfica, conforme o texto. Dessa
forma, acreditamos que essa personagem simbolizaria o saber no seu sentido mais completo,
seu gnero. Isto , a jovem, ainda que mulher, possua profundos saberes seculares, nem
sempre comuns ao sexo feminino, assim como aqueles inspirados pelo prprio Deus, tambm,
O relato continua com o imperador, sem saber o que responder, ordenando que a
levassem ao Palcio at os sacrifcios acabarem, que ento ele a responderia. E assim o fez.
Ele foi at Catarina e questionou quem ela era e qual era a sua origem. Ela respondeu e, ao
no perigo!.105
O rei retrucou que se o que ela falava fosse verdade, todos estariam errados, no
entanto toda afirmao deveria ser confirmada por pelo menos duas testemunhas,
acrescentando que mesmo que voc fosse um anjo ou uma potncia celeste, ningum deveria
Catarina unicamente por sua condio de mulher. Na continuao do dilogo, ela lhe pediu
citando um poeta:107 Se o esprito o governa, voc ser rei, se o corpo o governa, ser
103
Jacques Le Goff afirma que foi Toms de Aquino quem defendeu que arte seria toda atividade racional e
justa do esprito aplicada no fabrico de intrumentos, quer materiais, quer intelectuais. Dessa forma, as artes
liberais (cincia) eram chamadas de artes porque implicariam em um conhecimento que resultaria da razo
diretamente. LE GOFF, J. Os intelectuais na Idade Mdia. Lisboa: Estdio Cor, 1973. p.68-69.
104
Segundo a historiografia, Cassiodoro teria divulgado as sete artes liberais como fundamentais para a
composio da educao crist. Para mais informaes, cf. PAUL, Jacques. Historia intelectual del occidente
medieval. Madrid: Ctedra, 2003, LE GOFF, Os intelectuais ... Op. Cit., RAINHA, Rodrigo dos Santos. A
Educao no Reino Visigodo. Rio de Janeiro: HP Comunicao Editora, 2007.
105
Idem, p.964.
106
Ibidem.
107
Ressaltamos que no encontramos informaes sobre qual teria sido o poeta ou filsofo em questo.
121
-122-
pedindo-lhe para superar o fato dela ser mulher, para que seu saber obtivesse a devida ateno
e reconhecimento.
sabedoria, reuniu secretamente cinqenta oradores que superavam todos em qualquer gnero
da cincia, entre gramticos e retricos de toda Alexandria, para que confundissem Catarina.
grande imperador, voc convocou os sbios de todas as regies mais afastadas do mundo para
uma simples discusso com uma moa, quando um de nossos discpulos podia facilmente
refut-la!.109 Novamente sua condio como mulher aparece como motivo de desqualificao
De acordo com o compilador, o rei, ao fazer isso, desejava confundir Catarina em seus
argumentos e no apenas tortur-la com suplcios.110 Ele queria desqualificar a crena dela
como ela fez com a dele, enquanto enaltecia a sua. A narrativa continua e a virgem, informada
deste encontro com os oradores, recomendou-se ao Senhor. Um anjo lhe apareceu e avisou
para ela ser firme, pois ela no apenas converteria os sbios como os destinaria palma do
martrio. Em outras palavras, a sabedoria com a qual ela expunha a doutrina estava
diretamente associada sua confiana no Senhor, que mandou um anjo preveni-la para
manter-se de acordo com a f. Ao narrar isso, defendemos que Jacopo objetivava incentivar
108
Ibidem.
109
Ibidem.
110
Eu podia obrig-la pela fora a oferecer sacrifcio, ou elimin-la por meio de suplcios, mas julguei
prefervel que seja confundida pelos argumentos de vocs (Idem, p.963).
122
-123-
justo que voc oponha uma moa a cinqenta oradores aos quais promete
gratificaes pela vitria, ao passo que me fora a combater sem me
oferecer a esperana de uma recompensa? Entretanto para mim a
recompensa ser meu Senhor Jesus Cristo, que a esperana e a coroa dos
que combatem por ele.111
mulher e certo receio da prpria personagem devido a seu sexo. Contudo, ela demonstra total
coisas materiais.
estariam dispostos a converterem-se. Catarina prega. Ela faz com que pessoas convertam-se.
Sem temer o que poderia ocorrer a sua pessoa, ela age como um dominicano deveria agir: usa
serem queimados no centro da cidade. Contudo, eles lamentaram morrer sem serem batizados,
mas Catarina pediu para que nada temessem, pois o sangue que derramassem no martrio seria
entregaram-se s chamas, que no atingiram nem seus cabelos nem suas vestes. Nesse trecho,
111
Idem, p.963-964.
112
Ela diz: Plato estabelecera que Deus um crculo cortado em forma de meia-lua. Assim, quando Jacopo
apresenta um Plato cristianizado, demonstra uma pungente preocupao abertura aos filsofos pagos nas
Universidades, devido presena dos dominicanos nesses centros intelectuais.
113
Idem, p.964.
123
-124-
verificamos que apesar de toda a sabedoria da santa, o fato dela ser mulher impediu-a de
batizar os sbios. Nesse sentido, defendemos que o dominicano constri a personagem como
representao de sabedoria por interveno divina, como uma espcie de smbolo, no como
um ser real.
O rei prope para a jovem sacrificar aos deuses, poupando sua juventude e recebendo
o segundo posto mais importante no reino, depois da rainha, o que Catarina recusou. Diante
disso, Jacopo escreveu que cheio de raiva, o csar mandou despi-la e tortur-la com
escorpies e depois jog-la em uma escura priso, na qual deveria padecer de fome durante
que ela era apenas uma mulher. Alm disso, defendemos que o somtico da personagem seria
palco das relaes de poder genderificadas: como o rei no poderia controlar a alma de
Nesse meio tempo, o rei teve que se ausentar para resolver questes em outra regio e
a rainha, que se afeioara a Catarina, foi visit-la junto com o comandante militar Porfrio. No
crcere, ambos foram convertidos, alm de outros duzentos soldados. Jacopo aqui refora a
pensando, que algum lhe dera alimentos, mandou torturar seus soldados. Catarina retrucou
afirmando que ningum a alimentara, pois ela recebera alimento celeste. Nesse sentido, seu
esplendor estava relacionado sua f, que tambm a nutriu. O imperador ento lhe ordenou
escolher entre oferecer sacrifcios ou perecer, ao que ela respondeu: Quaisquer que sejam os
tormentos que voc possa imaginar, no demore em aplic-los, pois desejo oferecer minha
114
Idem, p. 965.
115
Ibidem.
124
-125-
carne e meu sangue a Cristo, como ele prprio se ofereceu por mim. Ele meu Deus, meu
serras de ferro e de pregos pontiagudos, para que essa mquina moesse Catarina em pedaos e
Contudo, a virgem rogou ao Senhor, pedindo-lhe que destrusse tal mquina pela glria de seu
nome e pela converso do povo que se encontrava ali. Ou seja, mesmo sendo uma mulher,
Catarina no temia a dor. Ao rogar para que a roda fosse destruda, o relato destaca que ela
Nessa passagem, temos no apenas a interveno divina, que salvou a virgem, como
tambm o castigo divino voltado aos gentios. E, alm disso, ao narrar que o pedido por ajuda
foi prontamente atendido, o compilador enalteceu a posio contrria de Deus em relao aos
deuses pagos, que no o auxiliavam, como disse Catarina, e enalteceu os mritos em manter-
Jacopo narra que a rainha, que assistia a tudo, foi ao encontro de seu marido e lhe
chamou a ateno por suas crueldades. Ela exortou o marido que furioso com a recusa da
decapitada.118 Nesse sentido, a f crist deu-lhe as foras necessrias para rebelar-se contra
seu esposo, sem se importar com as conseqncias desse ato.119 Catarina disse para ela no
116
Idem, p.965-966.
117
Nesse ponto, Jacopo descreve como a mquina funcionava, o que acreditamos seria uma estratgia textual
para enaltecer tanto como a coragem da virgem quanto o milagre que sucederia: Dispuseram-se duas rodas que
deviam girar numa direo, ao mesmo tempo em que duas outras seriam postas em movimento sentido contrrio,
de maneira que as de baixo deviam rasgar as carnes que as rodas de cima houvessem jogado nelas. Idem, p.
966.
118
Ibidem.
119
Acreditamos que a inteno de corta-lhe as mamas fora para lembr-la de sua condio: ela era apenas uma
mulher e como tal no poderia desafiar um homem, em especial o seu marido e rei. Ora, ao narrar esse episdio
em que a f fortaleceu a rainha, Jacopo pretendia incentivar mais ainda os irmos a no desistirem por medo das
conseqncias. Ressaltamos que o imperador acusa Catarina de ter feito a rainha morrer com a sua arte mgica,
mas coloca-se disposto a perdo-la caso ela se arrependesse e prometendo-lhe como recompensa o posto de
pessoa mais importante do palcio. A tentativa de seduzi-la com o poder novamente falha.
125
-126-
temer, pois ela iria ganhar um marido imortal.120 Aps sua morte, Profrio, o comandante
militar, revela ao imperador ter sepultado o corpo dela e de ter-se convertido f crist.
comentar o ocorrido com os soldados, eles tambm lhe revelaram estarem todos convertidos
f crist. Jacopo afirma que brio de furor, o csar ordenou ento que se cortasse a cabea
deles e de Profrio e que seus corpos fossem jogados aos ces.121 E, apesar desse estado
mental alterado, Maxncio122 no condenou a virgem, pelo contrrio, deu-lhe uma nova
chance de arrepender-se. Somente diante da nova recusa que ele a condenou decapitao.
Aps ser decapitada, Jacopo narra que do corpo de Catarina jorrou leite e no sangue e
que os anjos pegaram seu corpo e o sepultaram com honras no alto do monte Sinai. De acordo
com Thomas Laqueur, no livro Inventando o sexo. Corpo e gnero dos gregos a Freud,
da noo de economia de fluidos fungveis. Nesse sentido, todo sangue que no era
nutrio.123
chamado vasa mestrualis, Merral Llwelyn Price, no artigo Bitter milk: The Vasa Mestrualis
and the cannibal(ized) virgin,124 defende que a equivalncia entre o sangue e o leite
de Cristo na Eucaristia.
significados: ligada a ltima ceia do Senhor; codificao de preces eucarsticas, que recebeu
126
-127-
natureza histrica das fontes; e ao seu entendimento como oratio-prex seguindo a idia de
sacrifficium offerre por parte da comunidade crist.125 Nesta ltima, associa-se ao sacrifcio
individual, possuindo relao com a Igreja. A Eucaristia vista como alimento e como
engravidado, podemos supor que ao jorrar leite e no sangue de seu ferimento, Jacopo estaria
realizando um paralelo com a idia de Catarina nutrindo os seus filhos, que seriam aqueles
sacrifcio da mrtir que morre em nome da f diante de todos. Sublinhamos que Renzo
Gerard127 defende a viso de Eucaristia como sacrifcio, afirmando que a vtima imolada
bebendo o nico clice que algum se torna a oferenda viva, se assemelhada a Cristo, vtima
pascal.128
seu sacrifcio, nutre aqueles que assistiram seu martrio e os que tomaram conhecimento dele,
colocando-se na posio de oferenda Cristo. Coroada com o martrio, ela foi acolhida por
Segundo o captulo, sublinhamos um marcado incentivo ao seu culto dado por uma
passagem ao final. Jacopo argumenta que, antes de morrer Catarina orou, pedindo que todos
que se lembrassem de seu martrio e fizessem um pedido, fossem atendidos. Ela escuta como
resposta: Vem, minha querida, minha esposa, a porta do Cu est aberta para voc. A todos
125
HAMMAN, Adalbert. Eucaristia. In: DI BERARDINO, Angelo (Org.). Dicionrio Patrstico e de
Antiguidades Crists. Petrpolis: Vozes, 2002. p.527-530.
126
Justino apud HAMMAN, Adalbert. Op.Cit.. p. 527.
127
GERARD, Renzo. Eucaristia. In: FISICHELLA, Rino; PACOMIO, Luciano & PADOVESE, Luigi (Orgs.)
LEXICON. Dicionrio Teolgico Enciclopdico. So Paulo: Loyola, 2003. p. 264-265. p. 264.
128
Ibidem, p. 264.
127
-128-
os que celebrarem a memria do seu martrio com devoo, eu prometo a ajuda do Cu que
pedirem.129
Acreditamos que essa passagem visava ser um incentivo ao culto da mrtir, o que seria
fortalecido quando Jacopo narra que um monge de Ruo foi ao Monte Sinai, onde Catarina foi
sepultada e l permaneceu por sete anos a servio da mrtir, rogando-lhe por algum pedao de
seu corpo. Um dia, um de seus dedos desprendeu-se e o monge recebeu esse dom de Deus
com alegria, levando-o para seu mosteiro.130 Nesse caso, no h apenas uma argumentao
uma relquia131 em um local determinado, o que serviria para atrair fiis e doaes.
quais Catarina era admirvel: sua sabedoria, sua eloqncia; sua firmeza; sua castidade; e seus
Ao tratar sobre a sabedoria, ele afirma que Catarina reuniria todos os aspectos
desejveis da sapincia que possua trs faces: a terica, a prtica e a lgica, como
subdivises, afirmando que ela detinha saberes de cada expresso de conhecimento abordada.
Ressaltamos que, na sabedoria terica, h uma associao ao divino em duas das suas
ela possua a sabedoria natural no conhecimento de todos os seres inferiores, que usou em
129
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit., p.967.
130
Ibidem.
131
Para mais informaes sobre o papel das relquias no perodo medieval, cf. BUENACASA PEREZ, Carlos.
La instrumentalizacin econmica del culto a las reliquias: una importante fuente de ingresos para las Iglesias
tardoantiguas occidentales (ss. IV-VI). In: BOSCH JIMNEZ, Concha, VALLEJO GIRVS, Margarita,
GARCA MORENO, Luis A., GIL EGEA, Mara Elvira. (coord.). Encuentro Hispania en la Antigedad Tarda,
3, lcala de Henares, 13 a 16 de Octubre de 1998. Actas... lcala de Henares: Universidad de lcala, 2003. p.
123-140, GAJANO, Sofia Boesch. Santidade. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio
Temtico... Op.Cit., p. 449-463. p. 452.
132
A sabedoria intelectual associada ao conhecimento do divino, pois foi com ela que a santa comprovou a
existncia de um nico Deus e descartou os demais, assim, de certa forma Jacopo defenderia um tipo de
conhecimento vinculado ao teolgico. VARAZZE, Jacopo, Op. Cit., p.967.
133
Catarina possuiria o conhecimento matemtico por ter se despojado de todo bem material enaltecimento do
desapego material mendicante e a utilizou ao convencer a rainha a desprezar o mundo e amar o rei eterno.
Ibidem.
128
-129-
seu debate com o imperador,134 desqualificando-o. Alm disso, sublinhamos que ao narrar
viveu, pela sua relao honrada com a sua famlia e pelos sbios conselhos dados ao
imperador.
ato de pregar, comumente realizado por personagens masculinos na LA. Apenas Catarina de
Alexandria e Maria Madalena esto claramente associadas a este papel na compilao, o que
Latro, em 1215. O cnone 10, dedicado a essa questo, estabelece que a pregao poderia ser
designadas pelo bispo responsvel pelo local quando este no puder cumprir com essa
Em suma: nesse, lemos sobre uma santa objetivada como smbolo de uma sabedoria
completa a ser seguido pelos irmos dominicanos, mas no pelas mulheres. Defendemos que
Jacopo destaca que, para o soberano, Catarina, por ser uma mulher, era inferior aos
homens, sendo inferiorizada pelo prprio rei, pelos oradores e at por suas prprias atitudes.
Ela contorna essa viso por ser crist, por ter assumido as verdades do cristianismo e deixar
que seu Senhor falasse por ela. Nesse sentido, o dominicano defende, atravs dessa
personagem, as qualidades que os irmos pregadores deveriam ter, o que fica mais evidente
nas ltimas pginas do relato dedicadas para o compilador trabalhar com as qualidades
129
-130-
melhor, um tipo de erudio que reunia saberes variados, mais associados s universidades,
muitos se converteram. Afinal, se uma mulher podia fazer isso, imagine do que os irmos
Assim, apesar de haver uma construo de identidade de gnero atravs de uma certa
disputa de espao entre a sua condio como mulher, ressaltada constantemente, e a sua
que a essncia desse relato encontra-se na construo de uma personagem cuja sabedoria
superaria o infortnio de seu sexo e cuja vida seria coroada com o martrio.
martirizao, foram distintos. gata e Anastcia foram levadas a julgamento por causa da
ganncia de suas riquezas por terceiros. A primeira foi vtima de Quintiano, enquanto a
segunda foi alvo de dois prefeitos. Catarina e Eufmia foram at aos locais onde outros
segurana aos coraes cristos. J a santa Juliana foi condenada por negar-se a ter relaes
formulao dos sermes, visando ao entre os fis e a converso dos infiis e hereges, no
entanto cada captulo teria finalidades especficas. Nesse sentido, a obra apresenta uma
sucesso de topos sem unidade, justamente por ser uma compilao e Jacopo aproveita-se
130
-131-
relao pag e a sua superao ao demonaco, indicando a proteo fornecida pelo Senhor
A exaltao dessa qualidade tambm aparece no captulo de Catarina, quando ela teria
objetivao dessa personagem como smbolo de sabedoria, funcionando como pano de fundo
principalmente.
No relato sobre gata, o objetivo era incentivar os fiis a manterem-se retos na vida
crist, no importando a situao. Apoiamos tal hiptese na felicidade com a qual a santa
encara os suplcios o que transparece nas suas falas e nas suas aes , por acreditar no
poder de sua f e, ao mesmo tempo, desejar a vida eterna ao lado de seu Senhor. A visita
recebida do maior dos apstolos para cur-la, apenas a enaltece, pelo mrito de manter sua
retido e persistncia.
demonstrada na raiva do prefeito Quintiano, que amaldioou os seus prprios deuses. Nos
virgindades, marcando assim uma total rejeio dos prazeres carnais por parte das santas.140
137
Destacamos que todas as personagens so virgens, contudo em algumas narrativas h o destaque para tal
condio.
138
O relato de gata tambm possuiria, em menor destaque, essa argumentao sobre a sabedoria, contudo a
superao somtica para alcanar a santidade seria o principal elemento.
139
Sublinhamos que todos os relatos so norteados por milagres que evidenciavam a presena divina e
confirmavam a santidade das personagens, contudo apenas nas narrativas das santas Eufmia e Anastcia eles
voltam-se proteo da virgindade delas, como analisado anteriormente. Esse recurso narrativo relacionar-se-ia
ao objetivo de cada relato. No primeiro, temos o enaltecimento dos mritos e das virtudes em manter-se fiel f
crist, utilizando-se da narrao de eventos sobrenaturais e de episdios milagrosos; j, no segundo, como j
dissemos, o cerne do texto est na exaltao da virgindade apesar dos pesares.
140
Ressaltamos que nem todo santo da LA possui essa desvinculao com o aspecto carnal. Lembramos do
relato sobre Santa Teodora, por quem um jovem rico inflamou-se de desejo, graas ao diabo. Segundo a
narrativa, ele a atormentou de tal forma, que ela perdeu a sade e o sono e o homem foi a uma feiticeira pedindo
auxlio. A personagem havia dito que nunca cometeria um pecado to grande ela era casada aos olhos de
131
-132-
impostas s personagens com os corpos nus nos chama ateno. No caso de Santa gata, em
nossa opinio, o somtico possuiria dois grandes objetivos. Primeiro, o suplcio de ter o seio
arrancado, serviria para relembr-la de sua condio como mulher, contudo a sua restituio
tortur-la nua, o propsito seria humilh-la: Quintiano a superaria pela sua condio social,
mas perde pela f da personagem relembramos que ele foi atacado pelos seus prprios
Relatos sobre torturas com as personagens nuas, tambm ocorrem nos captulos de
Juliana, h duas apresentaes de usos do seu corpo dentro de relaes de poder. A primeira
seria o uso do sexo como mecanismo de convencimento do marido, para que ele se
convertesse. A segunda seria a surra que levou do pai, que representaria a sua humilhao e
demonstrao do controle que ele possua sobre seu corpo. No caso de Catarina, a nudez
corpo virgem est presente em todos os relatos, no entanto participaria de modo direto na
Jacopo pontua durante a narrativa que Catarina uma mulher e inferior aos homens,
atravs de passagens narrativas em que ela dialoga com o rei, os oradores e at consigo
mesma. Ela contorna qualquer viso sobre ela, por ser mulher, ser inferior com o uso de sua
Deus que tudo v ento a feiticeira a convenceu que o que acontece depois do cair do Sol no era visvel pelo
Senhor. Assim, ela cedeu volpia do rapaz, mas se arrependeu ao perceber o que tinha feito, travestiu-se e
retirou-se para um cenbio sob o nome de Teodoro.
141
No captulo sobre Catarina, h outra narrativa com o relato do seio ter sido arrancado: a rainha que foi
condenada ao martrio. Contudo, apenas h a meno desse castigo, antes dela ser decapitada, logo acreditamos
que, nesse caso, o objetivo era apenas coloc-la em seu lugar social como mulher.
132
-133-
espao entre a sua sapincia e seu sexo biolgico. Nesse caso, a nudez da personagem
entregue ao ltimo prefeito, ela exilada na Ilha de Palmarola junto com outros cristos. Eles
so buscados e martirizados.
Nos relatos sobre os corpos torturados, salientamos que todas as mrtires so salvas
por eventos milagrosos, dos suplcios ou no sentem o tormento, com exceo de gata. Na
sua narrativa lemos sobre milagres que a curam, o que estaria vinculado ao enaltecimento do
objetivado como palco de relaes de poder sofridas associadas s passagens de nudez, por
Assim, conclumos que Jacopo compilou esses relatos visando atender certas questes
133
-134-
CAPTULO 4
relativos aos personagens masculinos da Legenda urea.1 Lembramos que, no total, foram
1. So Vicente, o vitorioso
O relato segue uma narrativa linear, sendo iniciado por um rpido estudo etimolgico.
Segundo a interpretao de Jacopo, no captulo sobre So Vicente, este nome significaria trs
coisas: queimando o vcio (vitium incendens), aquele que vence os incndios (vincens
1
VARAZZE, Jacopo. VARAZZE, Jacopo. Legenda urea; vida de santos. So Paulo: Companhia das Letras,
2003.
2
Sublinhamos que, em alguns captulos estudados, h o relato de outros martrios, inclusive de personagens
femininas. Todos foram mencionados em nosso trabalho.
134
-135-
foi devido sua sabedoria, pureza3 e constncia que ele venceu os trs flagelos do mundo: as
Destacamos que o santo marcado por vitrias durante todo o relato, sendo colocado
face aos carrascos, a Daciano responsvel pelo seu martrio -, aos instrumentos de tortura e
Aps essas reflexes sobre o nome Vicente, Jacopo cita Agostinho,5 informando que
segundo esse autor os martrios dos santos foram e continuam sendo exemplos para vencer o
mundo com todos os seus erros, amores e temores.6 Desta forma, o dominicano j identifica,
no incio do captulo, a santidade de Vicente vinculada ao martrio e ainda aponta para o valor
nascimento e mais nobre por sua f e sua religio.7 Na LA, lemos que ele era dicono do
bispo Valrio, que lhe confiou pregao pela sua facilidade em exprimir-se, enquanto o
reforaria o ideal proposto por Domingos acerca do equilbrio necessrio entre pregao e
3
Ressaltamos que, no relato, no h informaes sobre Vincente ser casto ou virgem, apenas essa colocao
sobre sua pureza e sua abstinncia dos amores imundos. Contudo, se relembrarmos o argumento do supracitado
Jacques Rossiaud, que defende que aquele vinculado ao sagrado deveria abster-se do sexo, visto como a poluo
suprema por afast-lo do divino; podemos supor que o personagem era virgine. ROSSIAUD, Jacques.
Sexualidade. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio Temtico Medieval. So Paulo/
Bauru: Imprensa oficial do Estado/ EDUSC, 2002, 2v, V.2, p. 477-483.
4
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit., p.188.
5
Jacopo destaca que alguns defendem que foi Agostinho quem descreveu o martrio de Vicente, posteriormente
versificado por Prudncio, o que demonstra a sua preocupao em apresentar as fontes utilizadas.
6
Ibidem
7
Ibidem.
8
Ressaltamos que Daciano s quis v-los por achar que eles estariam mortos de fome, contudo encontrou-os
sadios e alegres.
135
-136-
seguirem outra religio, o bispo respondeu em voz baixa e Vicente chamou-lhe a ateno,
pedindo que soltasse a voz e falasse com liberdade, oferecendo-se para faz-lo em seu lugar.
Valrio aceitou a oferta, afirmando que h muito tempo j havia nomeado o dicono para falar
por ambos.
Ento, Vicente respondeu a Daciano que eles no sacrificavam aos deuses, porque
para os cristos uma blasfmia recusar-se a prestar Divindade a homenagem que lhe
devida.9 Dessa forma, ele desqualificou os deuses pagos afirmando que eles no eram
divinos. Por causa disso, o dicono foi considerado um jovem presunoso e arrogante e foi
Aps ter seu corpo todo desconjuntado no potro,11 Daciano perguntou-lhe: Que tal
est agora seu miservel corpo, Vicente? Este, sorrindo, respondeu: Como sempre desejei.12
Wolf,13 de Alison Gulley14 e de Evelyn Birge Vitz,15 que defendem que o mrtir construdo
o com todo tipo de tormentos se ele no renegasse suas idias, ao que ele respondeu:
como estou feliz! Ao fazer o que pensa que me fere, voc faz o maior
benefcio. Anda miservel, lana mo de todos os recursos maldosos e ver
que quando sou torturado tenho, com a ajuda de Deus, mais fora do que
quem me tortura.16
9
Idem, p.189.
10
O dominicano sublinha que Daciano intencionava fazer desse castigo um exemplo para os outros cristos.
11
Hilrio Franco Jr., na edio da LA aqui utilizada, descreve, em nota, esse instrumento de tortura romano
como sendo constitudo por uma armao de madeira, cujo formato era semelhante a um pequeno cavalo e, por
causa disso, o nome potro equuleum. Ibidem.
12
VARAZZE, Jacopo. Ibidem, p.189.
13
WOLF, Kristen. The Severed Breast: A Topos in the Legends of Female Virgin Martyr Saints. Archiv fr
Nordisk Filologi, v.112, p. 97-112, 1997.
14
GULLEY, Alison. Heo Man Ne Waes": Cross-Dressing, Sex-Change, and Womanhood in Aelfric's Life of
Eugenia. Mediaevalia: A Journal of Medieval Studies, v. 22, n.1, p.113-131, 1998.
15
VITZ, Evelyn Birge. Gender and Martyrdom. Medievalia et Humanistica, New Series, v. 26, p.79-99, 1999.
16
VARAZZE, Jacopo. Ibidem.
136
-137-
Nesse sentido, h o destaque para a superao dos limites somticos e o desejo do mrtir pelo
Segundo a LA, Daciano, descontrolado, chicoteou seus carrascos, afirmando que eles,
que haviam superado parricidas e adlteros, foram vencidos por Vicente, que ironiza tal
enfiaram pentes de ferro at o fundo das costelas, mostrando as entranhas de Vicente. Ento,
Daciano pediu para que o santo apieda-se de sua juventude, ao que ele retrucou:
Jacopo narra que, durante as torturas, Vicente manteve-se com os olhos voltados ao
Cu, orando:
17
GRIG, Lucy. Torture and truth in late antique martiriology. Early Medieval Europe. V.2, n.4, p.321-336, 2002.
18
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit., p.189.
19
Idem, p.189-190.
20
GRIG, Lucy. Op. Cit., p.324.
21
Essas associaes esto presentes tambm no fechamento do captulo, que composto com citaes de
Prudncio, que, como assinalamos anteriormente, teria colocado em versos a vida de Vicente, afirmando que
Vicente falou para Daciano: Tormentos, prises, garfos, lminas crepitantes de fogo, e, enfim, a morte, que a
ltima das penas, tudo isso brincadeira para os cristos. VARAZZE, Jacopo, Op.Cit., p.191.
137
-138-
era que quanto maior a dor sofrida, maior era a possibilidade da vitria do cristianismo e da
Segundo Lucy Grig, a inverso tambm ocorreria pelas relaes traadas durante o
julgamento, porque o criminoso seria torturado para confessar o crime, enquanto o cristo
teria que neg-lo. A confisso seria a reafirmao de sua f.22 Alm disso, ressaltamos que so
os suplcios que colocam o mrtir na sua posio original de testemunha: ele no morre por si,
Daciano, ao saber do ocorrido, disse aos carrascos que Vicente pode superar as
torturas que vocs lhe infligem,24 reconheceu-se vencido como desejava o dicono. J
destacamos que a marca da vitria e da superao do santo norteia toda construo do relato e,
com isso, Jacopo elabora uma relao de oposio, quase que caricata, entre o cristo vitorioso
Ento, Daciano ordenou que o colocassem em uma masmorra escura, deitado no cho
coberto por cacos de vidro pontiagudos e com os ps pregados em uma estaca, pedindo que o
avisassem quando ele morresse. Aps terem feito isso, os carrascos foram at a masmorra,
onde observaram entre as frestas da parede que as penas haviam virado glrias:25 a escurido
ele ordenou que levassem Vicente para repousar em uma cama macia, sobre as almofadas
mais confortveis do reino para que ele se recuperasse. Segundo o relato, to logo foi
carregado e colocado em uma cama macia morreu por volta de 287. Segundo Jacopo, o
22
GRIG, Lucy. Idem, p. 328.
23
Como, por exemplo, atravs das citaes de Prudncio, que informa que, durante as torturas, Vicente,
deliciando-se com as mos ensangentadas, ria dos carrascos que no conseguirem enfiar mais fundo os garfos
de ferro em suas costelas.VARAZZE, Jacopo, Idem. p.189.
24
Ibidem.
25
Idem, p.190.
26
Para mais informaes sobre a importncia da apario anglica, Cf. FAURE, Philippe. Op.Cit..
138
-139-
presidente do tribunal imperial afirma que fazia isso porque se o mrtir morresse em meio aos
suplcios, ele seria mais glorioso. Ao apresentar esse reconhecimento por parte do presidente
temeroso das repercusses da morte de Vicente, ou seja, de seu martrio. nesse sentido que
as relaes de poder esto invertidas: quanto mais violentas fossem as penas somticas, maior
pelo martrio, a outra f. Alm disso, acreditamos que dessa forma o papel simblico do
mrtir enaltecido.
O relato continua com o presidente do tribunal imperial afirmando que queria vingar-
se em Vicente depois de sua morte, destruindo seu corpo, pois, ao menos assim, ele venceria o
mrtir. Logo, ordenou que colocassem o corpo do santo em um campo, exposto s criaturas
selvagens, mas ele foi guardado por anjos e por um corvo, ave voraz por natureza.27 Ao
saber disso, Daciano reconheceu que no superaria o santo nem na morte, ento ordenou que
ele fosse jogado ao mar para ser devorado por criaturas e nunca ser encontrado. Contudo, a
correnteza arrastou-o at a margem, onde seu corpo foi encontrado por uma senhora e alguns
cristos que tiveram uma revelao a esse respeito. Eles o sepultaram honrosamente.
natureza, j que os animais selvagens protegeram o santo e a correnteza levou seu corpo para
a margem, para que ele fosse encontrado e sepultado honradamente por um grupo de cristos.
27
Ibidem.
139
-140-
alcanou o mrito do martrio ao resistir aos suplcios em nome da f. Tal questo reforada
com uma citao de Ambrsio que resume as torturas sofridas pelo santo, afirmando:
Vicente foi torturado, espancado, flagelado, queimado, mas no vencido em sua coragem de
tortura, e celebra a cada um desses episdios. E ele vence vivo e vence morto, neste ltimo
caso com a interveno divina que orquestra a natureza e os animais para proteo do corpo
santo e com a apario angelical para guard-lo e proteg-lo. Assim, ele simboliza
com uma forte e marcada associao do somtico em prol da salvao da alma. Assim, estaria
28
Idem, p.191.
29
Ibidem.
140
-141-
transformao de suplcios em deleites.30 Em suma, ele aquele que vence todas as torturas
fortalecido pelas torturas, triunfando sobre os seus carrascos e perseguidor, zombando das
torturas somticas que lhe eram infringidas e do prprio Daciano. Os seus triunfos so uma
Segundo o estudo etimolgico feito por Jacopo, o nome Jorge viria de geos,
que o dominicano associa com a sua carne. Citando Agostinho, no livro Sobre a Trindade, a
boa terra pode estar no alto das montanhas, o que convm ao pasto, nas encostas temperadas
das colinas, para as vinhas; ou nas plancies, para os cereais. A partir desse apoio em uma
autoridade eclesistica, lemos o argumento de que o beato foi como a terra alta por desprezar
as coisas baixas e exaltar as puras, foi como a terra temperada devido descrio com o vinho
da eterna alegria, foi como a terra plana pela humildade eu produz frutos de boas obras.31
Segundo o relato, Jorge tambm poderia advir de gerar, sagrado, e de gyon, areia,
sendo areia sagrada pelo peso de seus costumes, miudeza na sua humildade e secura na sua
volpia carnal. Um terceiro sentido viria de gerar, sagrado, e gyon luta, representando
30
POUCHELLE, Marie-Christine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
31
VARAZZE, Jacopo. Op.Cit., p. 365.
141
-142-
lutador sagrado e associando a sua batalha com o drago e com o carrasco. Nesse sentido,
O ltimo significado de Jorge resultaria de gero que seria peregrino, gir, cortado,
e ys, conselheiro, porque ele foi peregrino em seu desprezo pelo mundo, cortado em seu
para seu desapego ao mundo, uma identificao do beato como mrtir e a sua atuao como
pregador. Acreditamos que essa nfase visava exortar os irmos da Ordem dos Irmos
Pregadores
desse santo foi considerada como apcrifa pelo conclio de Nicia. Essa afirmao evidencia a
eclesistica e destacando seu carter de verdade. Essa atitude vincular-se-ia ao contato que ele
algumas certificam que Jorge sofreu o martrio sob os imperadores Diocleciano e Maximiano,
outras j defendem que foi sob o imperador persa Diocleciano e na presena de oitenta
generais, e, por fim, h uns autores que alegam que foi sob o governador Daciano, sob o
imprio de Diocleciano e Maximiano, enquanto o calendrio de BEDA diz que ele foi
existentes, sem posicionar-se frente a elas nesse momento narrativo, fazendo isso ao fim do
32
Ibidem.
33
Ibidem.
142
-143-
Segundo a LA, Jorge tinha ido a Silena, cidade da provncia da Lbia, onde habitava,
nas redondezas, um drago feroz que afugentava aqueles que tentavam derrot-lo. Para
habitante, de qualquer sexo, escolhido por sorteio.34 Depois de um tempo, foi sorteada a nica
filha do rei. Este, desesperado, pediu que os citadinos pegassem todo seu ouro, prata e metade
Diante dessa proposta, os citadinos reclamaram que seus filhos haviam sido
sacrificados devido ao edito do rei, logo, ou a sua filha era levada para ser devorada pelo
drago ou ele perdia seu povo. Diante disso, o rei pediu oito dias para lamentar o destino dela.
Ao final desse tempo, somos informados que a populao foi ao castelo exigir que a promessa
fosse cumprida e o soberano lamentou no ter a chance de ter netos de estirpe real. Segundo o
Jacopo narra que o beato Jorge, que passava pela regio, ao v-la chorar, perguntou o
porqu das lgrimas. Ela pediu para que ele montasse em seu cavalo e fugisse para no morrer
com ela. Pedindo calma, ele indagou a jovem sobre o que toda aquela gente esperava ver.35
Ento, a moa explicou toda a situao e, quando o drago apareceu, suplicou ao tribuno para
ir embora depressa.
atacou o monstro que caiu ferido. Ele falou para a moa colocar o seu cinto no pescoo deste.
Ela o fez e o drago a seguiu feito um cozinho muito manso.36 Ao chegarem cidade, o
povo entrou em desespero, contudo o beato os acalmou avisando que se todos aceitassem o
34
Na verdade, a Legenda destaca que, inicialmente, davam duas ovelhas, contudo foi por falta delas que os
cidados comearam os sorteios para escolher um citadino.
35
Os sacrifcios ocorriam fora aos muros da cidade, onde se encontrava o drago. Na LA, no aparecem
informaes sobre quem Jorge referia-se.
36
Idem, p.367.
143
-144-
batismo, ele mataria a criatura. E nesse dia, 20 mil homens foram batizados, sem contar
gnero de Jorge, pois relaciona a fora fsica e militar do personagem como poder da f crist.
Segundo Juan Antonio Ruiz Dominguez,38 dentre as funes possivelmente atreladas ao sinal-
Ressaltamos que nas obras de Gonzalo de Berceo, estudadas pelo autor, no figura a
associao entre o sinal e a proteo divina, ao contrrio da LA. Essa construo aparece em
muitos relatos, como o de Jorge, enaltecendo a cruz como signo de esperana, proteo e
Aps a sua vitria sobre o drago, para homenagear a bem-aventurada Maria, o beato
Jorge mandou construrem uma igreja, onde sob o seu altar surgiu uma fonte de gua curativa
para os enfermos. Nesse momento narrativo, defendemos que a presena do divino serviria
para atrair fiis para o templo em questo, j que a localizao da cidade colocada no relato.
Aps esse episdio, o rei ofereceu a Jorge uma enorme quantidade de dinheiro, mas
ele no aceitou e mandou que ela fosse doada aos pobres, o que destaca, na narrativa, a sua
caridade e o seu desapego das coisas materiais. Antes de partir, o beato deu quatro conselhos
ao soberano: escutar o santo ofcio, cuidar das igrejas, honrar os padres e lembrar-se dos
37
Ibidem.
38
O autor trabalha com o papel das mentalidades na devoo crist e a construo das funes da cruz e do sinal-
da-cruz nas obras de Gonzalo de Berceo, mas faz consideraes gerais sobre a questo. DOMINGUEZ, Juan
Antonio Ruiz. La devocion a la cruz en la obra de Gonzalo de Berceo. (em prensa) In: CONGRESO MUNDIAL
DE HERMANDADES DE LA VERA CRUZ, 1. Sevilla: Ceira, 1995. p.1-12.
39
Para mais informaes, cf. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1983;
RAMOS, Luis Garca-Guijarro. Reforma eclesistica y rdenes Militares (ss. XI-XIII). In: BENITO, Ricardo
Izquierdo e GMEZ, Francisco Ruiz (coords.). Las Ordenes Militares en la Pennsula Ibrica. Cuenca:
Universidad Castilla-la-Mancha, 2000. V. 1, p.1005-1017; MITRE FERNNDEZ, Emilio. La implantacin del
cristianismo en una Europa en transicin (c. 380-c. 843). In: SEMANA DE ESTDIOS MEDIEVALES, 7,
1996, Njera. Actas... Logroo: Instituto de Estudios Riojanos, 1997, p. 197-215.
144
-145-
contudo centrando-se no martrio sofrido pelo santo. Este recheado de milagres, apoiado nas
Aps relatar uma segunda verso mais curta da histria do drago, Jacopo coloca que
dezessete mil. Na narrativa, somos informados de que muitos dos cristos fraquejaram e
Emocionado com tal fato, Jorge doou tudo que possua aos menos afortunados, trocou
as roupas militares pelas dos cristos, foi viver entre eles, e passou a chamar os deuses gentios
de demnios, pois o Deus cristo fizera os cus. Nesse trecho, acreditamos que Jacopo
pelas ordens mendicantes. Alm disso, ao mencionar a troca das vestes, acreditamos que ele
estaria, metaforicamente, referindo-se ao fato dele deixar de servir um pago e passar a servir
questionou sobre quem ele era e de onde, o que o cristo respondeu. Ele ainda complementou
sua resposta dizendo que, com o auxlio de Cristo, ele se submeteu Palestina, contudo largou
tudo para servir ao Deus do Cu. Daciano40 percebendo que no conseguia demov-lo,
mandou suspend-lo no potro e dilacerar cada um de seus membros com garfos de ferro.
Mandou queim-lo com tochas e esfregar sal em suas feridas e em suas entranhas.41
40
No relato, Jacopo refere-se a Daciano ora como juiz, ora como prefeito.
41
Idem, p. 368.
145
-146-
viso, Jorge fortaleceu-se tanto que os suplcios sofridos pareciam no ter acontecido.
imolar aos deuses atravs de torturas, chamou um mgico para demov-lo de sua f atravs da
magia. Assim, o mgico invocou os seus deuses e misturou vinho com veneno, depois deu
para Jorge, que fez o sinal-da-cruz, bebeu e nada aconteceu. Diante disso, uma dose mais
potente foi feita e, novamente, aps fazer o sinal-da-cruz, o santo tomou o lquido e nada
aconteceu.
a inferiorizao da crena pag, j que os deuses tambm foram invocados, contudo foram
No dia seguinte, Daciano teria mandado colocar Jorge numa roda com espadas de dois
gumes ao seu redor, contudo ela se quebrou e ele saiu ileso. Ento, ele foi condenado a ser
jogado em um caldeiro de chumbo fervente, que aps o santo fazer o sinal-da-cruz e pela
Sublinhamos que o relato no menciona que Jorge teria feito o sinal-da-cruz antes de
ser colocado na roda, e apesar disso ele foi igualmente salvo. Acreditamos que Jacopo estaria
Daciano, vendo que no poderia vencer o santo com suplcios, mudou o seu modo de
persuaso, tratando-o com suavidade e gentileza. Ele afirmou para Jorge que os seus deuses
eram calmos e que o perdoaria, caso abandonasse a f crist. Jorge riu e disse Por que voc
42
Ibidem.
43
Ressaltamos que a no-meno ao sinal-da-cruz tambm pode ser devida grande variedade de fontes
utilizadas pelo compilador ou as diferentes edies realizadas a posteriori.
146
-147-
no falou assim antes de me torturar? Estou pronto a fazer aquilo que me exorta.44 Segundo
o captulo, com essa fala, o mrtir iludiu o juiz, e, dessa forma, h um destaque para o uso da
Jorge foi levado para o templo, onde Daciano convidou a cidade inteira para ver o
cristo rebelde imolar aos deuses, demonstrando satisfao em t-lo subjugado. No entanto,
diante de todos, o mrtir pediu ao Senhor para destruir o templo e as imagens dos dolos por
completo. No mesmo instante, caiu o fogo do Cu sobre o templo, queimando-o com seus
deuses e seus sacerdotes. A terra entreabriu-se e tragou tudo o que restara.45 Nessa passagem,
representado pelo mrtir, sai vitorioso, j que, com apenas um pedido, o cristo foi abenoado
Objetivando conferir um tom de veracidade ao relato, Jacopo cita Ambrsio, que teria
dito que, aps tomar conhecimento desse evento, Daciano ordenou que levassem Jorge a sua
presena e o questionou sobre qual foi o tipo de magia que ele usou para cometer tal crime.
Dizendo no crer nisso, o beato tentou enganar o juiz novamente, pedindo que ele o seguisse,
pois ele imolaria aos deuses. Contudo, Daciano no o fez por temer que o beato fizesse a terra
Inicia-se, no texto, um debate entre os dois. Durante o embate, o juiz virou-se para sua
esposa, Alexandrina, e confessou ter perdido para o beato e temer a morte. Ela chamou a sua
ateno ofensivamente, por ele perseguir os cristos, pois eram protegidos por Deus. Dito
Alexandrina foi condenada a ser surrada duramente, pendurada pelos cabelos. Ela
lamentou com Jorge o fato de no ter sido batizada, demonstrando sua preocupao por no
44
Idem, p.369.
45
Ibidem.
147
-148-
ter sido regenerada pela gua do batismo.46 O beato respondeu-lhe que o seu sangue seria
Segundo o relato, no dia seguinte morte de Alexandrina, Jorge foi condenado a ser
arrastado pela cidade. Ele orou ao Senhor pedindo que atendesse a todos os que implorassem
seu socorro, e ouviu-se a voz divina concedendo-lhe o pedido. Terminada a orao, seu
martrio foi consumado e sua cabea cortada48 Nesse trecho, h um forte incentivo ao culto
do santo.
O beato, segundo Jacopo, foi martirizado em 287, sob o prefeito Daciano, durante o
suplcio de Jorge para seu palcio, fogo vindo dos Cus consumiu a ele e a seus soldados.
Jacopo afirma que Gregrio de Tours teria contado que, um dia, um grupo de pessoas s
conseguiu sair de um oratrio onde estavam hospedadas aps deixar algumas das relquias de
So Jorge. Depois, o dominicano faz aluso a Histria de Antioquia. Ele cita que um
conjunto de cristos, rumo a Jerusalm, foi abordado por um belssimo rapaz que lhes disse
que eles estariam protegidos, caso levassem alguma relquia do mrtir. H uma marcada
46
Idem, p.370.
47
Destacamos tambm a importncia dada ao batismo, um dos sacramentos cristos, como veculo de
purificao. Ao todo so sete sacramentos, a saber: Batismo, Confirmao, Sagrada Comunho (Eucaristia),
Matrimnio, Penitncia, Ordem Sacerdotal e Extrema-Uno.
48
Ibidem.
49
Ibidem.
148
-149-
narrados ao citar as suas fontes para conceder-lhes um teor de verdade e valorizar o aspecto
Segundo James B. MacGregor,50 por volta de 1184, Alan de Lille fez um sermo
direcionado aos cavaleiros, defendendo que eles deveriam portar armas espirituais, assim
como as temporais, alm de condenar a violncia para com a Igreja e com os pobres. Em sua
piedade cavaleiras.51 Assim, ao narrar a apario de Jorge em uma Cruzada, acreditamos que
etimolgico feito por Jacopo, em que o ltimo significado do nome do personagem aponta
para a sua identificao como mrtir. O seu gnero construdo atravs da exaltao de sua
pregao, da sua funo social como tribuno, da nfase dada eloqncia do personagem , de
sua caracterizao como santo-guerreiro, protetor dos inofensivos, cuja virilidade ainda
Destacamos que, por ofender os deuses pagos, Jorge foi condenado pelo governador,
sendo que todos os seus suplcios foram desfeitos ou transformados em delcias no caso do
50
MACGREGOR, James B. Negotiating Knithly Piety: The cult of the warrior-saints inthe west, ca. 1070- ca.
1200. Church History. v.73, n.4, jun - 2004.
51
Ibidem, p.320.
149
-150-
tipo de cavaleiro apto para receber a proteo do mrtir. Finalizado com sua decapitao, o
dogmas religiosos.
3. So Marcelino, o papa
romana por nove anos e quatro meses. De acordo com a LA, ele foi capturado por ordem de
Diocleciano e Maximiano. O papa teria se negado a imolar aos deuses, contudo foi ameaado
a sofrer uma srie de suplcios no especificados pelo dominicano e, por medo, ele
ofereceu dois gros de incensos aos deuses pagos. Isso causou grande alegria aos infiis e
Ressaltamos que mesmo no havendo nenhum relato sobre os suplcios sofridos pelo
papa, Jacopo narra que aps estar curado, ele foi levado a julgamento, mas os bispos presentes
disseram-lhe o sumo pontfice no pode ser julgado por ningum, voc mesmo que deve
Segundo o relato, Marcelino, arrependido, deixou o cargo, contudo foi reeleito pelo
povo. Os csares, ao tomarem conhecimento desse fato, o aprisionaram pela segunda vez.
Contudo, o papa, dessa vez, negou-se a realizar sacrifcios e com isso, foi condenado a ser
decapitado.
52
Idem, p.378.
53
Ibidem.
150
-151-
anatematizando previamente aqueles que o fizessem. Seu corpo, segundo a LA, ficou trinta e
cinco dias insepulto. Nessa passagem narrativa, cremos que Jacopo busca destacar a
autoridade e o poder do sumo pontfice, pois, mesmo aps sua morte, sua ordem honrada.54
Ainda segundo a LA, Decorrido esse tempo, o apstolo Pedro apareceu para Marcelo,
papa perguntou-lhe se ele j no havia sido sepultado, ao que Pedro respondeu considerar-se
O papa Marcelo falou que Marcelino havia excomungado todo aquele que o sepultasse
e Pedro perguntou-lhe: Voc no sabe que est escrito Quem se humilha ser exaltado?.56
Dito isso, ele ordenou que Marcelino fosse enterrado aos seus ps, o que foi imediatamente
cumprido. Acreditamos que o objetivo desse curto relato seria o enaltecimento de uma
constri a sua santidade com a visita de Pedro e o comando para que sepultassem Marcelino a
seus ps. A santidade de Marcelino est ligada ao cargo que ocupou e a sucesso de Pedro.
nossa ateno. Se considerarmos o captulo do papa Urbano (p. 462-463), cuja biografia,
que h uma preocupao textual em no explicitar as partes do corpo afetadas nem os tipos de
tortura recebidos pelo papa,57 comparado aos demais relatos. Defendemos que essa estaria
associada a sua prpria funo social e posto hierrquico alcanado dentro da Igreja.
54
Jacopo relata que com o furor hostil reaceso, no ms seguinte foram mortos 17 mil cristos. Destacando a ira
causada pelo arrependimento de Marcelino. Ibidem.
55
Ibidem.
56
Idem, 379.
57
O mesmo cuidado aparece na narrativa sobre Santo Urbano, que foi aprisionado junto a seus irmos. No
captulo, h apenas o relato de um suplcio, que os quatro cristos foram aoitados com chicotes com ponta de
chumbo, enquanto isso papa passou a clamar pelo Senhor.
151
-152-
firme advindo de petros. Dito isso, ele afirma que possvel entendermos as trs
Nessa passagem, podemos destacar a exaltao da pregao unida erudio um dos pilares
da Ordem Dominicana , o enaltecimento de sua virgindade ser completa com corpo e mente
A biografia do personagem inicia nos informando que Pedro era o novo mrtir da
Ordem dos Pregadores,59 natural de Verona. Nascido em uma famlia hertica e infiel,
conforme aparece no relato, Jacopo diz que ele conservou-se isento de seus erros. Aos sete
anos, um tio o questionou sobre o que havia aprendido na escola ao que ele respondeu
rezando o credo.
O tio o repreendeu afirmando que quem criou o cu e a terra foi o diabo e no Deus,60
e os dois iniciaram um debate sobre tal tema. A narrativa esclarece que o menino estava cheio
de Esprito Santo e rebateu os argumentos dados pelo tio que havia recorrido a diferentes
58
Idem, p.387.
59
Destacamos que Jacopo no apresenta nenhuma data relacionada ao martrio do personagem. Somente no fim
do relato, ele narra que, em 1259, em Compostela, um homem chamado Bento foi curado ao rogar por Pedro no
convento dos frades Pregadores. Dessa forma, incentivaria o culto do personagem e atrairia doaes e fiis para
os conventos da Ordem existentes nesse local.
60
Essa concepo estaria associada com a doutrina ctara, que defendia que o homem criado por Deus -
prisioneiro da matria, que est retida no mundo criado por sat. RIBEIRO JR., Joo. Pequena Histria das
heresias. Campinas: Papirus, 1985. p.73.
152
-153-
autoridades. Ao narrar que, ainda criana, Pedro falava com o tio cheio do Esprito Santo,61
marcado pela presena de Deus que, por dirigir tudo, evitou que o menino fosse retirado da
escola como era vontade de seu tio. Em suma, acreditamos que a marca de sua santidade
encontrar-se-ia evidenciada nos muitos milagres cometidos em vida e em morte, com uma
presena divina, colocando seu conhecimento como superior educao de seu tio, que pede
para o pai de Pedro retir-lo da escola, pois temia que o menino seguisse a prostituda Igreja
No relato, h a meno de que, como tudo dirigido pela mo de Deus, o pai de Pedro
Sublinhamos o destaque dado interveno divina, que teria orquestrado para que o jovem
permanecesse na escola.
No somos informados quando, apenas tomamos conhecimento que, aps tal episdio,
Pedro no se sentia seguro morando com a famlia e, por tal razo, juntou-se a Ordem dos
narrativa, h o destaque para ele ter ficado trinta anos na Ordem e alcanado a honra de ser a
pedra de Cristo.
Dito isso, lemos uma listagem das virtudes do personagem com enaltecimento do seu
afastamento das coisas terrenas e da ociosidade; dos seus estudos, viglia e leitura; da sua
61
Acreditamos que Jacopo, ao colocar o debate travado entre o infante Pedro e seu tio, realiza um paralelo com o
episdio da vida de Jesus no qual ele debateu, no templo, com os sbios com grande eloqncia ainda quando
criana, cf. Lc II, 22-52. BBLIA SAGRADA. Pe. Antnio Pereira de Figueiredo (trad.). So Paulo: DCL, 2006.
62
Jacopo se refere ao tio de Pedro como sendo outro caifs, afirmando que ele teria predito o que iria
acontecer. Acreditamos que ele estaria fazendo aluso ao papel de inquisidor de Pedro e traando outro parelo
entre o santo e Jesus. Segundo o livro de Joo II, 49-52, Caifs era um sumo sacerdote que profetizou que Jesus
iria ser morto pelo povo, assim como Pedro, atacado por um herege enquanto exercia a funo de inquisidor.
63
No captulo, Jacopo relata esse acontecimento citando uma passagem de uma carta do Papa Inocncio: O
bem-aventurado Pedro ainda na adolescncia abandonou o mundo para evitar os perigos e entrou na Ordem do
Frades Pregadores. Idem, p.388.
153
-154-
a refutar os dogmas envenenados por alguma doutrina hertica. A seguir, h mais uma nova
relao de qualidades e de elogios ao santo. Acreditamos que essa exaltao, seguida das
virtudes do personagem, estaria vinculado ao fato dele ser um dominicano, assim seria uma
exaltao da ordem. Jacopo ressalta o desejo do personagem em morrer por sua f como
mrtir e orava todas as noites pedindo tal beno e que seu desejo no foi frustrado.65
Jacopo afirma que a biografia de Pedro foi recheada por numerosos episdios
milagrosos,66 dentre os quais destacamos alguns ocorridos em vida, no qual h encontros com
hereges. O primeiro foi um encontro com um bispo hertico67 que havia sido preso pelos fiis.
Nesse relato, o personagem desafiado pelo bispo a conseguir fazer aparecer uma nuvem para
proteg-los do Sol com a fora de sua f. Ele responde que se o heresiarca prometesse abraar
a f catlica, ele o faria. Aps orar por uma hora e fazer o sinal-da-cruz, uma nuvem no
formato de uma borboleta cobriu os cus, cobrindo o seu povo do Sol. Ressaltamos que, nesse
Em outro episdio, lemos sobre uma peste hertica que contaminava a Lombardia e
outras regies. Assim, diversos inquisidores dominicanos foram enviados para combat-la.
Ao relatar que o sumo pontfice encaminhou Pedro para l com plenos poderes para combater
a heresia como inquisidor, Jacopo argumenta o que torna um pregador virtuoso, defendendo o
equilbrio entre prdica e erudio. Ele afirma que o mrtir foi escolhido:
64
Ibidem.
65
Idem, p.390.
66
No captulo sobre Pedro so narrados cinco milagres em vida sendo um relacionado aos hereges e quatro a
curas.
67
Ressaltamos que o dominicano no especifica qual a heresia. Podemos supor, porm, que se tratava dos
ctaros, por serem os principais rivais da ordem no perodo. Relembramos que somente aps Domingos
converter um ctaro ao cristianismo que ele teria decidido fundar uma organizao que suprisse a Igreja com
pregadores qualificados. Alm disso, a organizao da hierarquia ctara semelhante eclesistica, rivalizando
nesse ponto tambm.
154
-155-
Ressaltamos que a narrativa continua com o mesmo objetivo elogioso de exaltar o tipo de
perseguio deste ao afirmar que os hereges no resistiam sua sabedoria e ao Esprito San-
uma citao de uma carta Inocncio.70 Segundo a narrativa, ao sair da cidade de Como,71 o
prior Pedro direcionou-se a Milo para atuar contra os herticos. A seguir, lemos que
conforme o mrtir havia professado, durante uma pregao,72 ele foi atacado por um herege
cruel contra o manso, o mpio contra o piedoso, o furioso contra o calmo, o desregrado contra
o modesto, o profano contra o santo.73 Nesse trecho, Jacopo elabora discursivamente dois
personagens diametralmente opostos: de um lado o santo com todas as suas virtudes que so
recebe golpes terrveis com a espada na cabea. A espada fica molhada do sangue daquele
68
Idem, p.390.
69
Nenhum deles podia resistir sua sabedoria e ao Esprito Santo que falava por sua boca (Ibidem).
70
Destacamos que Jacopo no especifica qual o documento.
71
Como uma provncia da Lombardia.
72
Na parte final do captulo, reservada aos milagres do santo, esse episdio narrado: No domingo de ramos,
Pedro pregava em Milo diante da enorme multido de pessoas dos dois sexos, quando disse publicamente em
voz alta: Sei com certeza que os hereges tramam minha morte e que at dinheiro foi dado para isso, mas faam
o que faam, eu os perseguirei mais estando morto do que vivo (Idem, p.399). E aps seu martrio, de fato,
Jacopo relata acontecimentos milagrosos contra hereges procurando conceder credibilidade s palavras do mrtir
e reserva um extenso pargrafo recheado de comparaes que buscam reafirmar que ele fora mais voraz ainda
depois de morto.
73
Idem, p.391.
155
-156-
homem venervel, que no procura evitar o inimigo, ao contrrio, oferece-se como vtima que
encaixar-se-ia no argumento da autora Lucy Grig,75 j citada, que defende a exacerbao das
torturas, por parte dos mrtires, como forma de enaltecer a demonstrao da vitria crist.
Durante todo esse suplcio, Jacopo narra que Pedro no se queixa, no murmura,
suporta tudo com pacincia, encomendando-se: Senhor, entrego meu esprito em suas
mos.76 Acreditamos que ao narrar que o inquisidor mantm sua tranqilidade, Jacopo
destaca o desejo pelo martrio do personagem que no se desespera diante das maceraes,
pelo contrrio. Alm disso, essa passagem tambm serviria de incentivo aos irmos
inquisidores.
Por fim, o beato do Senhor recitou o smbolo de f antes do carrasco enfiar um punhal
em seu flanco.77 Segundo a LA, o responsvel pelo martrio de Pedro foi capturado por fiis.
Jacopo narra que, no dia de seu martrio, Pedro foi confessor, profeta, doutor e mrtir,
explicando cada um desses aspectos. Segundo ele, foi confessor, porque no meio dos
tormentos proclamou sua f constante em Cristo, e porque naquele mesmo dia tinha, como o
forma, ele ressalta o papel do beato como pregador o que, de certa forma, valoriza a Ordem
personagem tambm aparece na explicitao do seu papel como doutor, porque enquanto
estava sendo atacado ensinou a doutrina verdadeira recitando em voz alta o smbolo da f.79
74
Ibidem.
75
GRIG, Lucy. Op. Cit.
76
VARAZZE, Jacopo. Ibidem.
77
A seguir, somos informados que o beato estava acompanhado por um frade dominicano que tambm foi
atacado e morto.
78
Ibidem.
79
Ibidem.
156
-157-
Ele foi mrtir por ter derramado o seu sangue para defender a sua f, o que indica a
concepo de martrio de sangue de Jacopo. Alm disso, foi profeta pelo episdio em que
seus companheiros afirmaram no ter como chegar a Milo naquele dia referindo-se ao dia
do martrio e Pedro disse que eles ficariam em So Simpliciano. Aps o seu martrio, a
multido que fora velar seu corpo no permitiu que ele fosse levado ao convento e o beato foi
Destacamos que, na LA, aps essa passagem, h uma analogia entre o martrio de
Ressaltamos que Pedro Mrtir faleceu em 1252, sendo canonizado no ano seguinte. Segundo
James Ryan,81 no sculo XIII havia uma certa resistncia da Igreja em canonizar os novos
mrtires por no endossar seus cultos, afirmando que the Roman Church not only insited on
close scrunity before endorsing the cults of those killed while trying to convert infidels; it also
Dessa forma, o autor argumenta que apesar da Igreja ter endossado poucas
para servir de incentivo aos inquisidores que poderiam estar sob ameaas.83
Segundo o texto, a incluso do beato Pedro no catlogo dos santos foi celebrada com
um captulo em Milo pela Ordem Dominicana. Os irmos queriam realocar o corpo do santo
cheiro, mesmo aps um ano enterrado. Ele foi posicionado em um alto plpito para que os
Desse momento narrativo at o final so descritos trinta milagres, alguns pelo sumo
pontfice e outros por pessoas que os testemunharam; destes, treze so relativos cura
80
Jacopo analisa, comparativamente, os motivos destes, os carrascos, o momento temporal em que cada um
ocorreu, o que cada um teria dito, o preo pago pela morte de ambos e a conseqncia dela. Sendo que a de
Pedro teria sido a converso de milhares de herticos.
81
RYAN, James. Missionary saints of High Middle Ages. Martyrdom, Popular veneration and Canonization.
The Catholic Historical Review, v. 90, no1, p.1-28, jan./ 2004.
82
A Igreja Romana no s insistiu em atentos exames antes de aprovar cultos daqueles que morreram tentando
converter infiis; ela tambm se recusou a abrir processos que poderiam levar a canonizao. Ibidem, p.2.
83
Idem, p.4.
157
-158-
destacamos que duas dessas foram alcanadas graas s suas relquias, o que seria um forte
incentivo para seu culto. Inclusive, um evento milagroso foi contra trs moas que falavam
mal do culto, j os outros se subdividem em: dois relacionados com ressurreio; quatro com
hereges; cinco ligados ao combate contra demnios; a prpria viso de Pedro sobre sua morte;
incio do sculo XIII, certos milagres continuavam indispensveis para que um servidor de
Deus pudesse ser proclamado santo pelo papa;85 destacando que os telogos desse perodo
passaram a considerar aqueles com interveno direta de Deus como sendo verdadeiros.
aproximamos mais da argumentao de Sofia Boesch Gajano,86 que afirma que, a partir do
sculo XI:
84
VAUCHEZ, Andr. Milagre. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio Temtico
Medieval. So Paulo/ Bauru: Imprensa oficial do Estado/ EDUSC, 2002, 2V, v.2, p. 197-211.
85
Idem, p.208.
86
GAJANO, Sophia Boesh. Uso y abuso de los milagros em la cultura de la Alta Edad Media. Little, L.L.,
ROSENWEIN, B. (eds.). La Edad Media a debate. Madrid: Akal, 2003. p.506-520.
87
Ibidem, p.512.
158
-159-
cristianismo.88
Alm disso, cabe destacarmos que o relato de distintos milagres do santo estaria
vinculado ao fato dele ser um dominicano e um dos poucos mrtires canonizados no sculo
Nesse ponto, defendemos que a exaltao de suas qualidades e os elogios feito por
E devido a tais virtudes e sua sabedoria que ele foi atacado por um herege
contratado. O curto relato de seu martrio apenas evidenciaria o desejo do beato por esse,
negativa do herege oposta a de Pedro ; e, serviria para novos elogios a suas virtudes e
qualidades.
santidade, pois ele foi um dos poucos santos canonizados nesse perodo. No relato, Pedro
identificado como mrtir desde a interpretao aos significados de seu nome, mas o que se
Ordem dos Dominicanos, como inquisidor. Para essas aes, Pedro atuou com eloqncia,
firmeza e coragem.
88
Idem, p.209.
159
-160-
santidade de Pedro por ele ter sido o primeiro mrtir dominicano a ser canonizado, ainda mais
Essa argumentao no apenas valeria como apoio aos sermos dos irmos pregadores
tambm o estmulo ao culto do novo santo da Ordem Dos Irmos Pregadores atravs dos
5. So Tiago, o cortado
O captulo sobre So Tiago no inicia com um estudo etimolgico, mas sim com a sua
nomeao como mrtir. No comeo, aprendemos que ele era natural do pas dos persas,
oriundo da cidade de Epale, era de origem nobre, e ainda mais nobre por sua f.89 Segundo o
relato, ele possua pais e esposa muito cristos, no entanto ele deixou-se seduzir por amor ao
sua submisso a um mortal, desobedecendo assim o juiz dos vivos e dos mortos.90 Elas
tambm o informaram que se tornaram como estranhas e no mais morariam com ele. Aps
ler tais palavras, Jacopo nos conta que Tiago teria refletido que se sua famlia o via de tal
forma, como seu Deus o veria? Ento, arrependido e aflito por seu erro,91 mandou um
89
Idem, p.974.
90
Ibidem.
91
Ibidem.
160
-161-
esposa do santo, como tambm o fato de ter sido, justamente, atravs da repreenso feita por
elas, que Tiago percebeu seu equvoco. Nesse sentido, essas duas personagens, aparentemente
secundrias no relato, possuem um papel fundamental no martrio sofrido por ele, narrado
argumenta sobre o uso de smbolos femininos por personagens masculinos, fenmeno que
Nesse sentido, quando o santo foi repreendido pela sua me e sua esposa, ele foi
perodo, as mulheres que deveriam ser controladas e chamadas ateno devido a sua
inerente fraqueza. Com isso, defendemos que o mrtir humilhado e inferiorizado. Tiago
O prncipe convocou Tiago e questionou-o se era nazareno,93 o que ele confirmou sob
a ameaa de distintas e mltiplas torturas. Nesse momento, ele defende a existncia da vida
eterna, afirmando que ns [nazarenos] no tememos a morte, pois esperamos passar da morte
vida.94 Diante de tal resposta, o prncipe, aconselhado por amigos, condenou Tiago a ser
Ao ver que muitas pessoas choravam por ele, Tiago pediu-lhes para que no
chorassem j que ele ia para vida,95 mas que lamentassem por eles prprios, que
92
BYNUM, Caroline W. La utilizacin masculina de los smbolos femeninos. In: LITTLE, Lester K. e
ROSENWEIN, Brbara H. (eds). La Edad media a debate. Madrid: Akal, 2003. p. 431-449.
93
O termo nazareno costumava ser utilizado para se referir aos seguidores de Cristo, pois ele havia habitado em
Nazar, na Galilia.
94
Jacopo de Varazze. Op.cit.
95
Idem, p. 975.
161
-162-
O captulo sobre Tiago peculiar por ele narrar a biografia de um personagem que por
adorao ao Prncipe dos Persas, imolou aos deuses. Contudo, aps ter sido repreendido por
sua me e esposa, percebeu o erro cometido e enviou uma mensagem afirmando ser cristo e,
Ao ter o primeiro dedo de sua mo decepado, o carrasco pediu para Tiago obedecer ao
Prncipe, que ele lhe daria medicamentos e o pouparia. Ele retrucou com uma analogia aos
ramos da videira, afirmando que estes, conforme cortados, produzem novos galhos. O santo
concluiu afirmando que o cristo fiel est enxertado na verdadeira vinha que Cristo.
Conforme o carrasco cortava-lhe os dedos, ele os oferecia ao Senhor; e, na vez do quinto, ele
destino sagrado.
Aps esse suplcio, os carrascos novamente pediram para que Tiago poupasse sua vida
e nem se entristecesse em ter perdido uma mo, pois muitos nessa condio possuam muitas
riquezas. Ele respondeu traando uma metfora com a ovelha. Primeiro, afirmou que o animal
tosquiado por inteiro e no apenas em uma metade. Completando, disse que se este ser
irracional quer ser tosquiada por inteiro, ento ele, ser racional, no poderia desdenhar ser
Durante seu suplcio, Tiago evidencia e exalta sua f, reafirmando saberes teolgicos.
Como no oitavo dia foi circuncidado Jesus, como no oitavo dia circuncidam-
se os hebreus a fim de admiti-los nas cerimnias legais, ento faa, Senhor,
com que o esprito de seu escravo se separe desses incircuncidados que
conservam sua mcula, a fim de que eu v at voc e veja sua face, Senhor.97
96
Ibidem.
97
Idem, p.976.
162
-163-
Ele faz o mesmo quando lhe decepam o nono e o dcimo dedos,98 dizendo:
ele, quando cortaram o polegar do seu p direito, falando que o p de Cristo foi perfurado e
dele saiu sangue. A sua martirizao nos apresentada como fonte de jbilo do personagem
que afirma categoricamente que esse era um grande dia, pois iria se encontrar com Deus.
Tiago disse: Por que est triste, alma minha, por que se perturba? Tenho esperana em Deus,
confio Nele, que meu Salvado e meu Deus.101 Ao narrar o dilogo do mrtir com a alma,
acreditamos que Jacopo objetivaria discorrer sobre a superao inerente aos santos dos limites
Jacopo constri uma acepo somtica inferior a alma. Este pressuposto pode ser
que ele falou: Destruam esta velha casa, pois me preparam uma mais esplndida.102
A cada corte de um pedao de seu corpo, o santo oferece-o a Deus e o percebe como
uma beno e, por vezes, ri das torturas e enaltece o poder de sua f. Contudo, depois, passa a
suplicar por ajuda para ter a alma liberta da priso, referindo-se ao seu corpo semimorto. Essa
98
Aps ter os dedos das duas mos cortados, os que assistiam aos suplcios pediram para que Tiago falasse o que
o cnsul desejasse, pois existiriam mdicos capazes de trat-lo. Ele respondeu que aquele que pe a mo no
arado e olha para trs no est qualificado ao reino de Deus. Jacopo descreve que, nesse momento, os carrascos,
irritados, comearam a cortar os dedos dos ps.
99
Jota tambm a dcima letra do alfabeto.
100
Ibidem.
101
Ibidem.
102
Ibidem.
163
-164-
A partir dessa passagem, supomos que as mudanas das reaes do personagem em relao
suplcios a partir dos argumentos de George Duby, no livro Idade Mdia, idade dos homens:
do amor a outros ensaios.104 O autor levanta duas compreenses medievais relacionadas com
a dor. Primeiro, ele ressalta que o aconselhvel para o homem seria no demonstrar a dor
fsica para no ser rebaixado condio feminina. Em segundo, ele destaca que o sofrimento
possuiria, justamente, por essa degradao, um valor positivo, visto como um sinal de
correo.
103
Idem, p.977.
104
DUBY, George. Idade Mdia, idade dos homens: do amor a outros ensaios. Jnatas Batista Neto (trad.).So
Paulo: Cia. das Letras, 1989.
105
POUCHELLE, Marie-Chistine. Representations dus corps dans la Legnde dore. Ethmologie franaise,
v.4, p. 293-303, 1976.
106
SOUZA, Nri de Almeida. Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o Heri e a Morte. Signum, n.4,
p.11-46, 2002
164
-165-
humana da corporalidade, logo h uma valorizao dos mrtires e dos ascetas. Nesse sentido,
defendemos que atravs dos suplcios que a santidade de Tiago estabelecida e confirmada.
Retornando ao relato, aps Tiago fazer o supracitado pedido de auxlio a seu Senhor,
peculiar, rompendo com o modelo hegemnico de masculino cristo. Na narrativa, ele fraco,
adora os deuses pagos por um amor mundano por um prncipe pago. Depois, ele
repreendido por duas figuras femininas que o fazem recobrar o juzo e arrepender-se do
pecado cometido.
Em outras palavras, suas aes estariam mais vinculadas s caractersticas vistas como
auto-controle, dominado por sentimentos e desejos. a sua dor que atesta a salvao de sua
Os seus carrascos e aqueles que viam seus tormentos suplicaram para que ele fizesse o
lhe era pedido para ser poupado, afirmando que mdicos poderiam trat-lo e que muitos com
apenas uma mo eram cheios de riquezas apelando assim para o aspecto mundano. As suas
reafirmando saberes teolgicos, como quando lhe cortaram o oitavo, nono e dcimo dedos.
107
Lembramos que por amor ao Prncipe, ele imolou um incenso aos deuses.
165
-166-
Alm disso, seu relato possui uma especfica relao com o sofrimento somtico para
ratificar o destino de sua alma, como quando lhe deceparam o quarto e quinto dedos do p
direito. O mesmo pode ser percebido ao cortarem o segundo dedo do seu p esquerdo, ao que
ele pediu para que destrussem sua velha casa, pois uma morada mais esplendorosa o
aguardava. Assim, o corpo apenas um receptculo da alma, ou ainda, uma priso desta,
Nesse sentido, Tiago, diferente dos outros mrtires, no age com a razo, fraco e
possuem o processo de genderificao marcado pela funo social exercida, seja dicono,
tribuno, inquisidor dominicano e papa. A nica exceo Tiago, cujo relato no faz aluso a
nenhum cargo ocupado, apenas informa que ele era nobre e possua uma esposa.
onde foi condenado a ser atirado, foi transformado em um banho agradvel. No captulo
apstolo Pedro, que serve para comprovar a sua santidade e destacar a apostolicidade e o
166
-167-
relacionados cura, sendo que em dois episdios as suas relquias funcionaram como veculo
para realizao desses; dois, com ressurreio; cinco, com hereges; cinco ligados ao combate
de demnios; a viso de Pedro sobre sua morte e trs sobre temas distintos. O relato sobre
Tiago o nico, dentre os analisados, que no menciona nenhum tipo de interveno divina e
comprovada e evidenciada atravs da dor infligida nas suas torturas. atravs do sofrimento
que ele purificado e consegue expiar o erro cometido. A punio somtica o reaproximaria
na narrativa de Vicente, em que, mesmo morto, o santo foi cercado de milagres. Quando
Daciano mandou que seu corpo falecido fosse abandonado em um campo para ser comido por
animais, ou quando ordenou que amarrassem uma enorme pedra no defunto para que, jogado
no mar, afundasse. Contudo, no primeiro, ele foi guardado por anjos e protegido por um corvo
e, no segundo, o mrtir foi levado praia, onde foi encontrado por alguns cristos que o
sepultaram.
destes. Sendo que o captulo desse ltimo tambm apresentaria um marcado incentivo s
O captulo de So Vicente teria como finalidade a sua construo como smbolo de vitria,
representando a igreja triunfante. Seu corpo serviria como veculo dessas vitrias,
comprovando-as atravs da sua superao dos carrascos, das torturas e dos instrumentos
167
-168-
crist, e, por conseqncia, da Igreja triunfante, marcadamente viril, forte, mscula face aos
evidenciado na orao final, em que o santo pede ao Senhor para atender a quem implorasse
sua pregao, da sua funo social e da virilidade demonstrada nos relatos sobre seu encontro
com um drago.
papa, por medo, imola aos deuses. Levado a julgamento, os bispos argumentam que ele quem
deveria julgar seus prprios pecados, logo a ausncia de descries acerca das punies
construo de sua identidade de gnero, assim como o de Jorge, feito atravs do destaque
dado a prdica e do seu papel social como inquisidor. Sendo que este concomitante ao de
de sua sabedoria atrelada a sua prdica e utilizadas na perseguio dos hereges de sua ao
contra os hereges, o que exaltaria a Ordem Dominicana. Alm disso, tambm evidenciaria
Afinal, sublinhamos que So Tiago, o cortado, tambm sacrificou aos deuses por
amor ao prncipe no por temor s maceraes e a retaliao de seu erro ocorreu atravs de
168
-169-
um detalhado relato sobre sua punio, com um destaque para seu sofrimento, sem nenhuma
interveno divina.
veculo de sofrimento, diante do qual, ele engrandeceu sua f, louvou o poder de seu Senhor e
cada decepao de um membro de seu corpo, o personagem purificado pela dor, corrige o
erro cometido e comprova sua f e sua santidade. Em uma perspectiva diametralmente oposta,
o fsico, no captulo sobre Vicente, aparece como uma forma de ratificar as vitrias do
personagem, sendo que ele no salvo das torturas, contudo no sofre nada com elas. O nico
milagre que transforma seu suplcio em delcia ocorre quando o santo foi preso, com os ps
pregados.
ao poder advindo destas, atestadas atravs das torturas desfeitas. Enquanto o primeiro sofre,
mas goza das torturas, o segundo salvo de, praticamente, todos os suplcios atravs de
milagres. Destacamos que nas narrativas de Marcelino e de Pedro Mrtir o aspecto fsico no
Conclumos que cada captulo atende a um objetivo de Jacopo, sendo que as relaes
169
-170-
condenando-as e estabelecendo um modelo ideal de pregador para seu combate, que deveria
ser seguido pelos irmos dominicanos. Alm disso, narra episdios milagrosos vinculados s
cruzadas, estabelecendo que a proteo divina ocorreu por causa do cavaleiro: cristo e
protetor dos pobres; da mesma forma, assume um posicionamento frente s contendas entre os
Por fim, ressaltamos o captulo de So Pedro Mrtir, que seria o personagem mais
contemporneo a Jacopo. Por ele tambm ser da Ordem Dominicana, o compilador evidencia
especialmente aos hereges. Alm disso, o motivo de sua morte diferente dos demais, porque
ele no foi perseguido porque a sua religio era a oficial do Imprio, pelo contrrio, Pedro
foi caado por ser Inquisidor, por um herege que o temia. Assim, ele enquadrado na nova
170
CONCLUSO
e da santidade. Para tanto, cumprimos outros objetivos secundrios fundamentais para nossa
pesquisa.
informaes biogrficas sobre seu compilador. Segundo a historiografia, a partir do sculo XI,
uma srie de mudanas ocorreu na Pennsula Itlica incentivando, entre outras coisas, a
vida crist.
movimentos religiosos laicos, frutos de uma busca da vita apostlica, calcada em releituras da
Igreja Primitiva. Assim houve o desenvolvimento das chamadas Ordens Mendicantes e das
A partir de nosso recorte do sculo XIII, estudamos como a LA foi marcada pelas
relaes estabelecidas para/ com a Igreja e a Ordem Dominicana assim como entre essas
Nossa hiptese foi que a escolha desse gnero literrio deveu-se flexibilidade dogmtica
variados.
-172-
ele, dentre os quais, sublinhamos a tenso religiosa em Gnova, no sculo XIII, os discursos
evidenciamos nossa hiptese atravs da anlise dos captulos sobre Santo Ambrsio
poltica, em que Jacopo selecionou relatos e fontes que lhe permitiram argumentar mais
de boa conduta para instruo dos religiosos e leigos e ser uma fonte teologicamente correta
no auxlio na formulao dos sermes para a manuteno dos fis e a converso dos infiis e
hereges.
Acreditamos que Jacopo argumentaria nos relatos o tipo de pregador mais eficaz,
exaltando uma combinao equilibrada entre erudio e ao. Portanto, em nossa opinio, a
LA se caracteriza como uma sequncia de topos sem uma unidade lgica unificadora, ou seja,
cada relato formado por elementos narrativos que no aparecem necessariamente em outro
da mesma forma. E so essas particularidades dos captulos que favorecem o carter didtico
nossa dissertao tratamos de alguns dos discursos com os quais Jacopo poderia ter tido
contato. Defendemos que o dominicano teve como preocupao afirmar valores e posturas
polticas dentro de das relaes de poder das quais participou. Em muito dos relatos da obra, o
172
-173-
equilbrio entre erudio e pregao. De modo similar, ele escolheu narrativas que lhe
oferecessem a abertura para abordar os conflitos entre o papa e o poder civil, buscando
batalhas polticas.
Munidos dessas reflexes sobre Jacopo, o contexto vivido pelo dominicano e a LA,
pesquisamos algumas acepes do tema do martrio. Nosso objetivo foi encontrar caminhos
que nos auxiliassem a compreender a sua retomada no sculo XIII, considerando como ele se
eclesistica como os infiis, hereges, entre outros sob a justificativa de guerra justa, a
promessa de martrio foi um til mecanismo de incentivo aos que morressem em nome de
Deus.
missionrios mendicantes e a guerra santa, sob o ideal de guerra justa, tinham como objetivo a
173
-174-
identificao do cavaleiro cristo, que protegido e auxiliado por Deus. Nos captulos sobre
relato sobre Domingos de Gusmo, visava incentivar aos irmos dominicanos no combate s
exaltao e incentivo das cruzadas com a objetivao do tipo de cavaleiro que seria auxiliado
Assim, Jacopo teria sido influenciado por elementos associados com a retomada do
entre outras coisas, aos inimigos da cristandade como os herticos e os infiis servindo de
qualidade, caracteriza-se como uma seqncia de topos sem unidade homogenizante. Logo,
sendo que a funo/ lugar social o elemento principal de diferena entre o grupo de
notrio que enquanto os homens exercem funes sociais em relao sociedade com os
1
De modo semelhante, no captulo sobre Francisco de Assis, no qual o compilador ressalta a busca pelo martrio
do personagem ao visitar as terras dos infiis.
174
-175-
relao aos homens, sejam pais, maridos ou autoridades. A exceo desse caso Tiago, o
cortado, que identificado apenas como nobre e, num certo sentido, tutelado por
Tambm destacamos o uso dos captulos para desvalorizar as crenas pags, contudo
de formas diferenciadas, seja atravs da apresentao de castigos possveis aos infiis, hereges
aparece na construo narrativa dos personagens nas biografias: mrtires e algozes (sejam
o/a cristo/ como puro/a, racional, correto/a, e o outro, que dominado pela luxria, a
lascvia e o pecado.
Nos relatos das mulheres essa questo evidenciada em uma perspectiva sexual, em
que os corpos femininos so palcos fundamentais das relaes de poder e, em muitos casos,
meritrias do martrio. Hegemonicamente, nos relatos dos homens, o corpo figura como
elemento fundamental nas relaes de poder, mas sendo objetivado como smbolo das vitrias
triunfante.
uma forma totalmente diferente dos demais, por este ser o nico personagem masculino em
que o fsico o caminho para comprovao de sua santidade e para torn-lo meritrio da
coroa do martrio, como nas biografias das mulheres. Outra exceo o caso do papa Urbano.
Nessa narrativa, o corpo no possui nenhum tipo de destaque, o que, acreditamos, deve-se ao
175
-176-
desvantagens de seu sexo, apresentando-se como fortes, sem medos dos suplcios, virginais
e eloqentes. Elas recebem e exercem poder e dominao nos captulos em intensas relaes
de poder.
associao entre o seguimento dos valores da vida crist e a salvao da alma. Acreditamos
que Jacopo defende que apenas ser cristo no garante o caminho da alma para o reino dos
cus. Seguir a f correta era o primeiro passo, complementado com a retido de uma vida
Contudo, isso no significava que possuir esse modo de vida garantia a santidade, porque
ressaltamos novamente que o santo j nasceria com a marca da santidade. Nesse sentido, os
constituintes dela. Flax destaca que a categoria gnero no apenas relacional, mas toca as
relaes entre sexos diferentes, entre indivduos do mesmo sexo, a construo das identidades
Nesse sentido, os discursos construdos acerca dos gneros e das santidades dos personagens
2
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a ao dominicana era direcionada tambm aos fiis, logo, a objetivao dos santos como
modelos de comportamento voltado aos demais cristos marca a LA, em que o discurso
predominante a defesa de uma vida recheada de valores cristos para alcanar a salvao.
177
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186
- 187 -
Quadro 1:
mart.)
(p./ p.
Mrtir
Quadro 2:
Os tipos de torturas e
mart.)
(p. /p.
Mrtir
Os motivos de seu
penas sofridas Referncias de
martrio (caso tenha Os tipos de morte Existncia ou no de milagres
partes do corpo interesse
mais de um)
afetadas
1
Essa categoria foi reservada para informar sobre outros mrtires figuram no relato em questo, alm do que d ttulo ao captulo, nomeando-os quando possvel.
2
Nesse espao, destacamos as obras citadas por Jacopo, no captulo estudado.
3
Nos espaos marcados como referncia de interesse, sublinhamos as informaes presentes na narrativa estudada que foram consideradas relevantes e no se enquadravam
nos outros quadros.
- 188 -
Quadro 3:
Mrtir